Leu - Laboratório de Expedições Urbanas

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Laboratório de Estudos e Vivências da Espacialidade

LEU | Laboratório de Expedições Urbanas

Escola de Belas Artes - UFMG Belo Horizonte 2017

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Dedicamos essa publicação à querida Fernanda Macruz

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Sumário Elisa Campos Habitar a imagem: práticas de percurso e compartilhamento na arte

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Alice Costa DivagAções em Belo Horizonte

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Cecilia Pederzoli Ensaio fotográfico

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Drin Cortes Verde entre cinzas

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Fernanda Macruz Reflexões: relato espontâneo sobre o nosso não lugar

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Cristiano Bickel Ensaio fotográfico

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Maria Luisa Fonseca Deriv(ações) ao LEU

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Rodrigo Borges Sorver a linha e a cor em um minúsculo percurso de ar

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Sávio Reale Intervenção artística: experimento e provocação no cotidiano das cidades

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Rodrigo Valente Resistências

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Lear Paker | Laetitia Laforge ktha compagnie: pequenas urbanidades livres (PUL)

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Thálita Motta Por uma poética urbana encarnada

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Flávio Cro Ensaio fotográfico

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Grupo LEVE

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Elisa Campos

Habitar a imagem: práticas de percurso e compartilhamento na arte Esse conjunto de textos e imagens aqui reunidos é sobretudo resultado de um encontro... um encontro que se desdobrou em outros e possibilitou a configuração de um grupo, ou o início de um grupo, aberto e em fluxo. Para falar desse encontro, entrei numa espécie de imersão interna buscando entender a partir de que lugar poderia me colocar para enfim introduzir essa publicação. Estive envolvida nos diferentes momentos desse trabalho como propositora mas sobretudo como alguém que constrói frases incompletas, desejando a participação do outro para completá-las e assim procurar compreender quantas formas haveria para lhes dar sentido. Tenho tendência a pensar que me tornei professora por puro pretexto de favorecer encontros e confesso que usufruo do privilégio de perceber-me em processos instaurados com essas pessoas, com quem me encontro a cada semestre, podendo muitas vezes vivenciar esses mesmos processos numa lógica de continuidade, ao mesmo tempo em que é renovação e invenção. 7


Costumo considerar cada início de curso, um buraco negro, talvez mais comparável ao desafio e dúvida que nos lança uma folha de papel em branco. Tudo pode caber e mesmo assim é preciso considerar algum fio condutor, o primeiro traço, o primeiro gesto, uma provocação que seja, tendo como certo a heterogeneidade dos grupos e suas expectativas particulares, além de seus repertórios específicos. Mas qual o primeiro gesto que houve aqui? Tinha comigo algumas ferramentas iniciais: um desejo, que posso expressar através da necessidade de trazer para o âmbito acadêmico a energia e inventividade, que é por excelência atribuição da criação em arte. Além disso, alguns textos e uma experiência acumulada de 14 anos de explorações variadas a espaços da cidade, como consequência de um programa do curso de Artes Visuais que me solicitou trabalhar o desenho de paisagem com turmas de graduação. Naquele momento, há quatorze anos atrás, não fazia ideia de que esse seria o tema de tantos outros trabalhos, individuais e coletivos que ainda hoje alimentam minha prática. E alimentou esse trabalho que apresentamos aqui. As relações que se estabelecem em cada grupo são imprevisíveis e nesse caso foi o ponto alto que certamente possibilitou todas as ações que se desenvolveram e que agora se consolidam com essa publica¬ção: uma experiência única em que 12 pessoas se encontraram e, no final de 2013, criaram o Chamado ao LEU – Laboratório de Expedições Urbanas.

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Nascentes de uma metodologia prático-teórica para a problematização da paisagem na arte No contexto da Pós-graduação em Arte, na Escola de Belas Artes da UFMG, ofereci em 2012 e 2013 a Disciplina Paisagem Local | Paisagem Global buscando, através dela, atuar sobre o campo da produção artística acompanhada por uma reflexão crítica e teórica. Alimentando o curso com leituras sobre a paisagem, sobre a identidade na contemporaneidade, sobre os conceitos de território, espaço e lugar, sobre a complexidade das relações entre o local e o global e sobre condições geopolíticas que engendram possibilidades artísticas, promovemos debates que eram também associados às práticas artísticas e/ou à pesquisas desenvolvidas pelos participantes do grupo. A disciplina aconteceu em dois anos consecutivos, sendo no primeiro ano dividido nos seguintes seminários temáticos: Imagem; Identidade; Espaço e Paisagem; O Local e o Global; Fronteiras Geopolíticas e Geoartísticas. Durante esse percurso, a princípio teórico, foi estimulado o debate problematizando as diferentes linguagens plásticas que dialogam com essas questões tão recorrentes na contemporaneidade. O trabalho desdobrou-se a seguir em dois momentos de imersão prática em percursos experimentados na cidade de Belo Horizonte e num circuito nos arredores de Lagoa Santa, numa iniciativa de constituir material de pesquisa que pudesse contribuir para as poéticas individuais. O trabalho final usufruiu dessa experiência, resultou em produção ensaística individual. Na segunda edição dessa disciplina foi incluído o sub título Habitar a Imagem, buscando intensificar o estímulo à uma produção prática em diálogo com a teoria. Considerou-se a necessidade de propiciar uma experiência coletiva que ao mesmo tempo se conectasse às pesquisas autorais de cada um do grupo, respeitando-se suas diferentes manifestações. Nesse caso o programa se dividiu em outros cinco temas: Habitar a imagem; Paisagens deslocadas; Circuitos e caminhos; Pequenas Urbanidades Livres - PUL; Dispositivos de ação e apresentação, todos focalizando perspectivas possíveis de criação em âmbito coletivo.

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Pequenas Urbanidades Livres - PUL No desenvolvimento do trabalho durante o semestre foi fundamental o contato e a problematização de um projeto trazido como estudo de caso às discussões e como estímulo para a experiência prática a ser desenvolvida. No primeiro semestre de 2013, tive contato com a Companhia francesa ktha que desenvolve, além da montagem e apresentação de peças teatrais em espaço público, o projeto Pequenas Urbanidades Livres, onde promovem o questionamento sobre situações encontradas na cidade, além da apropriação e ativação desses espaços através de diversificadas iniciativas artísticas. Em texto disponível no site do grupo são apresentadas as possíveis definições para o termo Pequenas Urbanidades Livres, deixando claro que não desejam chegar a um único denominador comum ou a uma conceituação definitiva, tendo em vista a diversidade e riqueza que passou a ser vislumbrada pelas próprias interpretações que cada participante apontava ao ser instigado pela proposta. O projeto foi criado em 2011, proposto sem duração definida, convocando a todos do grupo, além de convidados, para lançar um olhar curioso em relação à cidade, um olhar de reconhecimento e captura de espaços específicos, identificando-os, registrando-os a partir da fotografia, desenho ou anotação e inventariando-os num primeiro momento, para em seguida confrontar seus registros e as escolhas que representavam. Há para eles um interesse tanto em compreender a dinâmica do grupo como em problematizar as noções de comum, de propriedade, uso e desuso, sentido, memória e ruína, dentro da realidade urbana. Trata-se de um projeto coletivo, participativo e processual, que propõe reunir artistas, urbanistas, habitantes e curiosos da cidade, em torno de um evento criativo temporário. 10


Trago aqui o texto por eles desenvolvido para explicar o termo: Trata-se de um espaço pequeno, na maioria das vezes, abandonado pelo urbanismo, sacrificado, ao qual se pode acessar a partir do espaço público, sendo na maior parte das vezes inútil. Um interstício, um vazio, um rasgo no tecido urbano. Da anfractuosidade no terreno, cada pequena urbanidade livre é diferente por seu tamanho, seu entorno, seu estatuto legal, sua visibilidade. (...) 1

Para reconhecer uma pequena urbanidade livre no espaço da cidade é preciso adotar uma postura atenta, indagativa, rastreando os mínimos lugares, deixando-se acolher por todo e qualquer detalhe que causa estranhamento ou uma certa incongruência nas ruas, nos equipamentos urbanos, nas edificações. Segundo o grupo, para realizar tal trabalho é preciso comportar-se como um “estrangeiro em seu próprio país”:

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Disponível em http://pul.ktha.org/info/plus acessado em 02/12/2014. (Tradução da autora) 11


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(...) Visitar 100 vezes as mesmas ruas atravessando-as com um olhar curioso e atento, e deixar sua imaginação divagar por 1000 possíveis. É encontrar o lugar da curiosidade, perder tempo para olhar. Fazê-lo junto com os outros. Partilhar. Se questionar. Conversar. Debater. Ser modesto e ambicioso ao mesmo tempo. Revelar a estrangeiridade. Cultivá-la. A forma e o fundo, sendo igualmente importantes. O fundo dentro da forma. A forma dentro do fundo. Evidenciar essas pequenas urbanidades livres e as ocupar, é oferecer por um instante, a possibilidade de olhar para nossa cidade de outra maneira abrindo a porta da sensibilidade, do poético. É aguçar o olhar que temos sobre nosso espaço comum, espaço de vida, espaço público. 2

Dentre as inúmeras tentativas de definir uma pequena urbanidade livre, o grupo aponta algumas possibilidades como, por exemplo, perceber os lugares esquecidos da cidade, lugares que passam a ser quase invisíveis por sua inutilidade, por sua falta de funcionalidade no ambiente urbano. São normalmente pequenos vazios, e se apresentam muitas vezes como resquícios ou espaços residuais de arquiteturas ou estruturas que já foram demolidas. Por essas características configuram-se como potencias ­expressivas, poéticas, pela solidão que emanam, sendo então insignificâncias prenhes de possibilidades disponíveis para a fantasia, para a impregnação de sentido, para a expressão. Segundo Leatitia Laforgue, uma das participantes e propositoras do projeto, a beleza desses lugares está na impossibilidade de defini-los e de permanecerem como realidades abertas ao devaneio.”:

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Idem. (Tradução da autora) 13


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Como proposta coletiva, em sua construção processual e despretensiosa, o projeto acabou constituindo algumas diretrizes que aos poucos conferiu a ele um perfil: a ideia de um projeto ­compartilhado por muitas pessoas de diferentes áreas e o encontro que isso representava; a relação propiciada de maior intimidade com a cidade; escolhas singulares de lugares e situações a partir de múltiplos e distintos olhares configurando uma cartografia específica; a discussão aberta sobre os potenciais de cada lugar em função de seu entorno, dos contextos humanos e materiais que o circundam, as possibilidades de apropriação e fabulação que contém. A quantidades de espaços inventariados e as ações potenciais engendradas levou naturalmente ao desejo de se realizar um evento onde as propostas de ocupação, uso e apropriação pudessem ser vistas e usufruídas pela comunidade em geral. A primeira iniciativa contou, segundo eles, com 39 propostas entre instalações, proposições interativas, jogos, performances e esquetes teatrais.

Chamado ao LEU – Laboratório de Expedições Urbanas Após trabalharmos nos seminários teóricos propostos na disciplina Paisagem Local | Paisagem Global: Habitar a Imagem e inspirados pelo projeto das Pequenas Urbanidades Livres trazido ao grupo para discussão, decidimos por, num primeiro momento do trabalho prático, realizarmos derivas individuais, levantando lugares da cidade que nos causassem também um estranhamento aliado a um potencial de provocação poética, capturando situações perceptíveis na rotina de cada um, a partir de seus percursos cotidianos. O que nos interessava era justamente perceber as várias interpretações possíveis sobre essa ideia ainda bastante vaga do que seria uma urbanidade livre, e o que caracterizaria sua pequena dimensão, tendo em vista a escala da cidade. Mesmo nos aproximando e conhecendo melhor a experiência vivenciada e relatada pela cia Ktha, ainda assim as possibilidades de escolhas e reconhecimento desse suposto recorte sobre a paisagem urbana era uma incógnita para todos nós. Seria necessário mergulhar na paisagem da cidade e habitar suas múltiplas imagens e circunstâncias, registrando-as em fotografias para em seguida confrontá-las, apresentá-las para reconhecimento e debate a partir das derivas particulares. 16


Diante do levantamento heterogêneo realizado foi inevitável discutir sobre as diferentes metodologias e sobre a diversidade de compreensões a respeito do que seriam as pequenas urbanidades livres para o grupo. Verificamos, com as imagens levantadas, que a cidade nos oferece uma gama muitíssimo variada de possibilidades e os interesses e olhares individuais as multiplicam. Num grupo formado tanto por artistas plásticos como por historiadores, fotógrafos e profissionais das artes cênicas, as escolhas poucas vezes foram as mesmas e, como também correspondiam a localizações geograficamente diversificadas, acabamos por definir dois trajetos para realizarmos juntos, ainda sem fecharmos nenhuma diretriz que delineasse qualquer projeto específico. O primeiro trajeto iniciou-se na Praça da Estação, local emblemático e central da cidade de Belo Horizonte. Lá pegamos o metrô em direção à Cidade Industrial, bairro que já faz parte de Contagem, estando num limite de município de contornos pouco visíveis e cuja paisagem mostra uma ocupação precária com uma vila operária sendo desocupada por consequência de especulação imobiliária, à beira do Córrego Ferrugem, além de várias fábricas e galpões industriais. Após uma caminhada de reconhecimento do local e identificação das numerosas “urbanidades” já apontadas por Rosângela Oliveira, participante do grupo, continuamos a exploração do lugar até descobrirmos um espaço insólito e abandonado, caracterizado longitudinalmente por uma estrada de ferro desativada, como um rasgo nessa paisagem industrial... uma fissura em que se vê o mato crescendo desordenadamente, além de vestígios de passagem de uma 17


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c­ omunidade que habita esse lugar: botas desparelhadas, camisetas encharcadas e pisoteadas, papéis rasgados, dejetos de toda a ­espécie. O segundo trajeto escolhido ocorreu boa parte sob chuva, todos juntos no conforto de uma Van que Fernanda Macruz generosamente providenciou para o grupo. O circuito dessa vez foi entre o Bairro Ouro Preto e o Bairro da Pampulha, nos arredores da lagoa. A chuva não permitiu que a exploração dos espaços fosse mais ampliada mas, da mesma forma como no circuito anterior, identificamos os locais apontados por Fernanda e experimentamos as possibilidades e imagens que essa condição meteorológica nos oferecia. Finalizamos o percurso no caloroso acolhimento de sua casa, todos em volta de uma mesa farta, com café quentinho, bolo, biscoito e geleia feita em casa. Esse espaço doméstico e afetivo introduzido em meio ao trabalho foi um contraponto fundamental para os momentos de deriva na cidade, apontando a importância das relações que então se estabeleciam em novas dimensões, dando uma guinada contundente e bastante significativa à lógica dessa vivência vinda de uma conjuntura acadêmica. Após as duas derivas pela cidade, que renderam muitas imagens coletivas, além das imagens produzidas individualmente, retomamos o pensamento sobre o que produziríamos a partir daí. A abertura desencadeada por tais percursos continha ,em si, uma infinidade de desdobramentos potenciais que naturalmente extrapolava o tempo que tínhamos para trabalharmos juntos. Assim discutimos as possibilidades e nos demos conta de que toda aquela vivência de certa forma se distanciava do mote inicial proposto pela busca das pequenas urbanidades livres. A motivação havia sido importante para dar o impulso inicial ao trabalho, mas agora já encontrávamos novas perspectivas que 20


se desviavam e criavam vida própria. Havia uma indagação no grupo que foi se sobrepondo à vontade (mesmo que ainda presente) de intervir sobre os espaços mapeados: onde estaria o principal ganho dessa experiência? E qual o circuito e as propostas que enfim escolheríamos realizar dentro da profusão de possibilidades que se abriram? A partir das discussões feitas, o que foi se evidenciando como mais importante para o grupo era, para além das construções individuais, a vontade de compreender o próprio percurso como lugar de experiência e criação, algo que ganhava sentido sobretudo no compartilhamento. Assim surgiu um pensamento mais claro sobre a paisagem que, desde o início do trabalho era o principal foco de problematização e potência, discursiva, crítica e poética. Podemos simplesmente nos contentar em ver uma paisagem, observá-la de longe, usufruir de sua amplitude que se estende diante de nós. Mas podemos também mergulhar nela, participar de seus contornos e espaços, interagir com seus elementos. Então nossa simples presença se torna de alguma forma uma intervenção: estamos lá com nosso corpo, modificando aquele topos e tornando-nos também parte da paisagem. Deixando fluir a tendência a “experimentar” o lugar, lançamo-nos a ouvir seus ruídos, sentir os vários estímulos que tocam nosso olfato, perceber outras presenças e os interstícios ocultos nas situações incomuns que nossa anestesia cotidiana tornam invisíveis: uma arruela entalada nas fissuras de uma calçada, canudinhos de plástico recorrentes por toda parte, as inúmeras imagens (paisagens) refletidas e deformadas nas poças, nos vidros dos carros, nas janelas da cidade, cacos de azulejo, arame enroscado e enferrujado, a conversa com a vendedora de frutas ou com o vigia de uma indústria de alimentos, o ruído incessante canalizado para fora de uma fábrica, o terreno úmido fazendo proliferar espécies vegetais, tudo isso se transforma em verdadeiros tesouros no percurso. Muito frequentemente o impulso diante de tais elementos presentes na paisagem urbana é menos o da intervenção e mais o da coleta ou captura, pois esses ínfimos fragmentos, desprezíveis dejetos ou registros de nossa época, em seu ciclo entre construção e ruína, mantém mesmo assim uma surpreendente potência poética. Enquanto souvenires de nossas cidades 21


acabam, vez ou outra, se transformando em uma proposta estética, um trabalho plástico, lugar de privilegiadas convergências, em deslocamentos que instauram outras paisagens. Nesse sentido, também a fotografia passa a ser instrumento de captura e coleta, uma forma de preservar encontros fortuitos e fugidios em que paisagens heterogêneas se encontram, se interceptam, em convivências improváveis, entretanto reveladas no instante fotográfico. Mas, tais instâncias poéticas, após tantas discussões, não bastavam ao grupo, que sentiu então a necessidade de abrir a proposta, escolhendo um dos percursos – aquele que pareceu mais rico pela diversidade de paisagens e situações encontradas, para compartilhar a experiência com um número maior de pessoas. Nossa “intervenção”, ou trabalho coletivo seria então o convite, divulgado amplamente, para realizarmos aquele mesmo caminho até a Cidade Industrial, sugerido agora para ser refeito em formato de expedição. E como estávamos num final de ano chuvoso alertamos no cartaz: ATENÇÃO: a expedição será mantida mesmo se chover. Preparos para o trajeto: apetrechos em caso de chuva ou sol; dispositivos para registros diversos (escrita, som, imagem...) Interessava-nos não somente realizar as propostas que cada um ia aos poucos construindo para colocar em prática no dia da expedição, mas que cada convidado também pudesse fazer do percurso um espaço de observação e criação. 22


O Chamado ao LEU – Laboratório de Expedições Urbanas, ocorreu pela primeira vez em 30 de novembro de 2013, com a presença de 35 pessoas, entre elas dois representantes do Grupo Ktha, Leatitia Laforgue e Lear Packer, idealizadores do PUL – Pequenas Urbanidades Livres, que convidamos e que vieram da França para acompanhar a finalização do trabalho conosco. Com eles realizamos um encontro fechado para apresentarmos os resultados de nossas atividades, antes mesmo da expedição e propusemos um seminário aberto ao público e com a presença de outros convidados (Brígida Campbell do Grupo Poro e Wellington Cançado, editor da 23


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revista Piseagrama), para um diálogo mais aprofundado sobre iniciativas que tem o espaço urbano como palco, espaço a ser problematizado e lugar de interações e ações artísticas. Enfim, partindo da pesquisa sobre a Paisagem na contemporaneidade, e pautados pela experiência dessa ação coletiva, encontramos esse formato de expedição como uma possibilidade de colocar em prática uma atividade artística que se alia ao caminhar e ao compartilhamento. A ideia de deslocamento e de produção artística em situações de trânsito por cidades, seja nas regiões centrais seja nas mais periféricas, revelam uma poética que se processa através da experiência de troca entre artistas e a comunidade, num contato ativo com os espaços da cidade. 25


Sendo a paisagem, tema de inegável tradição dentro da história da arte, permanece lançando questões, atualizado diante da realidade das redes de comunicação e da subtração das distâncias geográficas proporcionada por elas, em suas diferentes formas de produção, reprodução e dilaceramento. Especificidades culturais que identificam regiões, países e/ou grupos sociais, aliadas às circunstâncias de circulação, fluidez, proporcionam um campo crítico e instigante onde a imagem e a ação - física e imersiva - adquirem papéis preponderantes e de fundamental contraponto, constituindo, deslocando e transformando paisagens. Numa época de inquietações generalizadas quanto aos rumos que a sociedade tem tomado em suas estruturas econômicas e políticas, percebemos uma disposição mais declarada em reivindicar novas lógicas nas relações sociais, onde podemos destacar a arte e a cultura, como importantes ferramentas de reflexão e provocação. Daí a pertinência das práticas de percurso, ou do caminhar, onde se torna mais sensível a percepção da cidade, de seus fluxos, de suas deformações e contaminações, onde o contato e a vivência do cotidiano se fazem mais agudos. Apropriando-se do conceito de Ecossistemas Artísticos, torna-se esclarecedor o que Boaventura de Souza Santos desenvolve em sua obra Gramática do tempo (2006) apontando cinco diferentes instâncias do estudo sobre a ecologia: ecologia dos saberes, das temporalidades, dos reconhecimentos, das escalas de pensamento e ação, e das produções e distribuições sociais. Seria uma interessante abordagem a ser apropriada pela arte a fim de refletir a respeito das manifestações que se produzem no caminhar e no compartilhamento. Lembrando que o autor conceitua como ecologia “a prática de agregação da diversidade pela promoção de interações sustentáveis entre entidades parciais e heterogêneas” (SANTOS, 2010: 105)3, podemos afirmar que a arte pode desempenhar um papel importante justamente por atuar na estrutura mesma de uma imaginação crítica, expressiva, aberta à diversidade e às formulações possíveis de pertencimento, sobretudo nesse tipo de proposição como a do Chamado ao LEU que se coloca no próprio lugar nevrálgico das relações sociais, ou seja, no espaço urbano.

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SANTOS, Boaventura Souza. Gramática do tempo. São Paulo: Ed. Cortez, 2006.


Veremos a seguir os ensaios, fotográficos, artísticos e críticos realizados a partir das experiências com o projeto Pequenas Urbanidades Livres e com o evento criado coletivamente Chamado ao LEU – Laboratório de Expedições Urbanas. A publicação propõe registrar e divulgar essas experiências, contando também com a participação de ensaios fotográficos de alguns dos convidados que participaram de sua primeira versão, assim como um ensaio fotográfico da segunda edição do LEU ocorrida a convite do Evento O comum de as Cidades, realizado de 3 de julho a 3 de agosto de 2014, no Espaço do Conhecimento UFMG. Como parte dessa programação, participamos da Exposição Cartografias do Comum, onde apresentamos objetos, fotos, montagens e instalações relativas à primeira versão do Chamado ao Leu e propusemos a segunda versão da expedição no dia 05 de julho, realizando o mesmo trajeto para a Cidade Industrial, mas dessa vez iniciando-o no próprio Espaço do Conhecimento e contando nessa ocasião com vinte participantes. O grupo responsável por todo o trabalho apresentado nessa publicação criou em novembro de 2013 o LEVE – Laboratório de Estudos e Vivências da Espacialidade e tem se dedicado ao estudo das diferentes práticas artísticas e à problematização do espaço na arte contemporânea, em uma abordagem pautada nas relações entre arte e vida, arte na cidade, no espaço doméstico e no ambiente natural, em diálogos propositivos atentos aos entrecruzamentos sociais, políticos e culturais e a apropriação das diferentes linguagens artísticas.

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Alice Costa Souza

DivagAções em Belo Horizonte [a cidade é] a tentativa mais bem-sucedida do homem de refazer o mundo em que vive mais de acordo com os desejos do seu coração. Mas, se a cidade é o mundo que o homem criou, é também o mundo onde ele está condenado a viver daqui por diante. Assim, indiretamente, e sem ter nenhuma noção clara da natureza da sua tarefa, ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo. (Robert Park)

Figura 1 Demarcação de percursos individuais no mapa de Belo Horizonte. Seminário Interno com membros da Companhia ktha (Foto: Laetitia Laforgue). 34


Visível e invisível: a cidade revelada A proposta de fazermos uma caminhada por Belo Horizonte à procura de pequenas urbanidades livres foi essencial para que eu conhecesse melhor a cidade, pois, residi na capital anteriormente por um ano e meio para estudos, mas, pouco a conheci (Fig. 1). Foi essencial a noção de flâneur, o tipo literário do explorador urbano, o conhecedor da rua conceituado por Walter Benjamin (a partir da poesia de Charles Baudelaire), para quem “a cidade é o autêntico chão sagrado da flâneur” (BENJAMIN, 1994, p.191). A partir do século XIX, o assunto foi muito explorado com a publicação de alguns estudos consagrados à deambulação ou deriva. Em um pequeno tratado do início do século, por exemplo, Karl Gottlob Schelle, filósofo amigo de Immanuel Kant, faz do passeio uma arte, o que não era novidade, mas, a partir da perspectiva kantiana, o que é mais singular e lhe permite vislumbrar esta atividade não como um simples movimento do corpo, mas como uma ação na qual algo de espiritual está envolvido (DAVILA, 2002, p. 15)1. Honoré de Balzac também escreve uma Théorie de La démarche (Teoria do caminhar)2, publicada em 1833, na qual o caminhar do homem, supõe-se, suscita questões importantes e reúne ao seu redor algumas das maiores disciplinas. Como um flâneur, com a experiência urbana da deriva, eu procurava pelos espaços pequenos, abandonados pelo urbanismo, sacrificados, sem função na maior parte do tempo, os interstícios ou vazios no tecido urbano possíveis de acessar a partir do espaço público. Fiz a primeira caminhada solitária tendo em mente lugares com visibilidade, portanto, pensando em um público grande para ver as intervenções urbanas que faríamos. Também, por

1 A livre tradução é de Domingos Sávio Reale Pereira e foi gentilmente cedida para os colegas da disciplina. 2 Balzac, Honoré de. Théorie de la démarche et autres textes [1830-1833], Paris, Albin Michel, 1978, p.17. 35


estar sozinha, evitei prosseguir em alguns lugares por medo, uma vez que eu queria andar sem pressa e fotografar. Percorri, então, ruas movimentadas do Centro e região da Savassi. Caminhei atenta pelas ruas para captar cada detalhe, reparar nas pequenas urbanidades, que eu não via quando passava apressada e distraída. Procurei aguçar o olhar sobre o espaço público da cidade, de forma mais sensível e poética. Foi um primeiro exercício para olhar e ver. Ainda sobre a experiência na cidade com o caminhar, o flâneur pode ser assim definido: O flâneur era o perceptivo caminhante do espaço urbano. Ele - pois eram poucas as flâneuses - era uma personagem característica da cultura do séc. XIX. [...] Embora um tipo de hedonismo desapressado fosse a sua marca verdadeira, o flâneur também procurava compreender o novo fenômeno social em que estava inserido. ‘Ah! Perambular em Paris’, ponderou Balzac. ‘Que existência adorável e deliciosa. Ser flâneur é uma ciência: a gastronomia do olhar.’ O flâneur não apenas se divertia pela cidade; ele também buscava entendê-la. (JONES, 2009, p. 302)

Propostas de intervenção Quando ainda estávamos no início da disciplina e tivemos que apresentar um pouco do nosso trabalho e uma proposta artística nova, quis expandir a noção de bordado, que já era presente em meu trabalho artístico há uns dez anos, para a cidade, uma vez que estudávamos a paisagem urbana. Pensei em “bordar” as cercas 36


próximas da portaria principal da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que tem grande visibilidade pela Avenida Presidente Antônio Carlos, uma das principais vias da cidade (Fig 2). Tocada pelas notícias de violência dentro do campus, pelos assaltos constantes a estudantes nos arredores da universidade (dentre os quais as mulheres tem sido as maiores vítimas) e pelas manifestações de julho de 2013 (que culminaram em mortes nas proximidades da universidade, e cercas depredadas), achei que elas eram um lugar potente, que poderiam de alguma forma chamar a atenção contra a violência naquela região. É ainda inegável a associação de bordados ao feminino, então, nas grades da universidade ­levam também a pensar na ampliação de espaço que a mulher conquistou: a sua importância

Figura 2 Alice Costa. Sem título (2013). Lã branca. Projeto de intervenção na tela de proteção da UFMG, campus Pampulha (Montagem sobre foto Google Maps).

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Figura 3 Alice Costa. Abordar. Proposta de intervenção urbana na ArcellorMittal, Av. Cardeal Eugênio Pacelli, 593 - Cidade Industrial, Contagem MG. (montagem sobre foto do Google Maps). Figura 4 Alice Costa. Abordar - proposta de intervenção urbana nas grades da ArcellorMittal (Montagem sobre foto de Rodrigo Borges). Figura 5 Teste de material na grade da ArcelorMittal. (Foto: Alice Costa)

na memória familiar e seu trabalho doméstico, mas também na construção do país quando passa a ter formação em ensino superior e a trabalhar fora de casa. No entanto, assim como em outros trabalhos que tenho produzido, não eram os temas comuns aos bordados que me interessavam, mas, justamente, uma desconstrução deles, uma vez que o lugar escolhido trazia uma memória recente de violência que uma parte considerável da população parece desconhecer ou esquecer rapidamente. Ativar aquelas lembranças era, então, o meu desejo. Lã branca seria o único material empregado, com auxílio de agulha e tesoura para a execução. Porém, com o avançar das aulas e a consequente escolha de outro espaço da cidade, o projeto foi arquivado. Após a escolha de um trajeto delimitado na cidade para fazermos a nossa expedição, a minha proposta artística seria “bordar” as grades da ArcelorMittal, empresa de trefilaria localizada na Cidade Industrial de Contagem, próxima a Belo Horizonte. 38


A intervenção efêmera chamada Abordar (Fig. 3 e 4) buscava levar um pouco do artesanato ao local, em referência à memória afetiva de nossos antepassados e seus trabalhos manuais a uma Cidade Industrial, uma paisagem geralmente muito árida aos observadores, em sua maioria, os motoristas acelerados e os trabalhadores das fábricas. A Avenida Cardeal Eugênio Pacelli, nas proximidades de onde o trabalho seria executado, não oferece qualquer relação de afeto com os transeuntes, se constituindo em um “não-lugar”.3

3 O conceito é de Marc Augé: “Os não-lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos), quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde são estacionados os refugiados do planeta.”(AUGÉ, 2004, p. 36). Sua distinção dos lugares está melhor especificada no capítulo “Dos lugares aos não lugares (p. 71-105). 39


A grade, que se repete em várias outras indústrias - e que na ArcelorMittal, fabricante da mesma, se repete incessantemente nos modelos em mostruários - é também um marco de impessoalidade, que limita os terrenos, o espaço privados do espaço público. Para “romper” a rigidez da forma geométrica e do metal resistente das grades, os materiais usados seriam lã branca e fio de nylon (Fig 5). Infelizmente, após contatos com a empresa, sobre seu interesse pelo projeto, não foi autorizada a ocupação do espaço a tempo e o trabalho também teve que ser arquivado.

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Figura 6 Alice Costa. Divagações (2013). Cidade Industrial. (Fotos: Rosângela Oliveira)

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Figura 7 Alice Costa. Divagações (2013). Organza, linha de bordar, agulha. 1,5m x 4m. Rampa do Metrô Estação Cidade Industrial. (Foto: Rodrigo Valente).

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A expedição urbana coletiva A expedição urbana coletiva ocorrida no dia 30 de novembro de 2013, da Estação Central à Rua Dr. Antônio de Carvalho Laje, apresentou-me aquele trajeto (Fig 6). Continuei meu exercício de olhar e ver. Pelo metrô reparei na paisagem natural ao sair do centro da cidade, na performance da Thálita Motta e Maria Luísa Fonseca, nos diversos painéis para propagandas desocupados dos vagões, como se fosse uma exposição de quadros brancos. Ao desembarcar na Estação Cidade Industrial, deparei-me com uma paisagem desconcertante: diversas fábricas ativas ou não, uma rampa enorme que dá acesso aos becos da humilde Vila Itaú, que está em processo de desocupação, a mudança de uma família, trilhos desativados, lixos e oculto, entre eles, um jovem se drogando. Em seguida, a chuva tornou-se tão forte que paramos e nos abrigamos até que pudéssemos prosseguir, passando sob o barulhento viaduto Amazonas, depois as camadas de grades da ArcelorMittal onde eu faria a intervenção Abordar, até o nosso ponto final no “oásis” que é um beco verde e silencioso na rua Dr. Antônio de Carvalho Lage.

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Divagações divagar - di.va.gar (lat divagari) 1 Andar errante, caminhar ao acaso; vaguear; 2 Afastar-se do assunto que vinha tratando; 3 Devanear, fantasiar;4 Discorrer sem nexo. Caminhava e bordava branco sobre branco um longo tecido transparente, cuja barra se arrastava pelo chão. A transparência, brancura, limpeza, leveza e maleabilidade da organza, que eu carregava enrolada junto ao meu corpo, contrastavam com a rigidez do concreto cinza e sujo da cidade esquecida (Fig 7). As pessoas paravam para ver, ler e identificavam as experiências pelas quais passávamos (Fig 8). E de certa forma, o instante, através da palavra no tecido bordado, foi para sempre fixado. Bordei pelo tecido divagações acerca da cidade e todo o processo até a expedição (Fig 9). Deixei inacabado, fragmentado, com espaço para que eu pudesse acrescentar palavras durante o percurso. O bordado imita o movimento da mão quando escreve. Era quase um diário bordado, embora o formato em nada lembrasse um. Como veladura, o tecido deixa entrever a imagem do outro lado, cortada pela palavra (Fig 10). A ideia inicial era que houvesse uma interação entre os passantes e eu: pediria palavras para os mesmos e as bordaria na hora. Depois, notei que o bordado é algo muito moroso e teria que fazê-lo caminhando junto aos demais da expedição, uma vez que a paisagem escolhida pelo grupo não permitiria que eu o fizesse desacompanhada ou que ficasse para trás. Como era minha primeira passagem pelo percurso, mas também fazia uma ação artística, eu estava localizada entre o flâneur, tentando reparar em tudo, e o performer, distraída com meus bordados. A chuva muito forte determinava interrupções em nosso percurso.

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A ação em si, pautou-se pelo improviso, até mesmo pelo fato da fábrica de trefilaria não ter autorizado em tempo a intervenção urbana Abordar, que eu faria. Mas a ideia inicial persistiu: pensava na ampliação das possibilidades de apropriação da lógica artesanal em um trabalho de arte contemporânea. O próprio flâneur requeria um novo modo de olhar para o mundo e novas propostas estéticas desde a expansão sem precedentes da economia industrial e a consequente explosão demográfica das cidades e o ambiente urbano moderno. Em um país como o Brasil, onde a industrialização não rompeu com o modo de produção que a antecedeu, a arte tem resgatado, com intensidade e propriedade, práticas artesanais através de vários artistas. Com um trabalho ou outro, o meu dever de memória se cumpriu.

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Divagações Ver a cidade plena: lugar e não-lugar global, local grande, pequeno, lembrado ou esquecido, nobre pobre quebrado, inteiro feio bonito, o visível, e o invisível, rastro, resto borda gente, mapa, rua terra, mato cinza grade,

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muro, dor cor arte instante, passado, efêmero, moroso ou veloz, dócil hostil quem existe, desiste ou persiste, memória/ esquecimento monumento ruína, (e a futura ruína) silêncio ruídos caos singular, plural Ver a cidade viver a cidade viverá a cidade? veracidade construída.


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Figura 8 Alice Costa. Divagações (2013). Organza, linha de bordar, agulha. 1,5m x 4m. Rampa do Metrô Estação Cidade Industrial. (Foto: Flávio Cro). Figura 9 Alice Costa. Divagações (2013). Organza, linha de bordar, agulha. 1,5m x 4m. Rampa do Metrô Estação Cidade Industrial. (Fotos: Maria Luísa Fonseca) Figura 10 Alice Costa. Divagações (2013). Organza, linha de bordar, agulha. 1,5m x4m. (Foto: Alice Costa)

Referências: AUGÉ, Marc. Não-lugares – Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus Editora, 2004. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. DAVILA, Thierry. Marcher, créer. Déplacements, flâneries, derives dans l’art de la fin du XXe siècle. Paris: Editions du Regard, 2002. JONES, Colin. Paris: Biografia de uma cidade. José Carlos Volcato e Henrique Guerra (trad). Porto Alegre: L&PM, 2009. Petites Urbanités Libres (PUL) Disponível em: <http://ktha.org/fichiers/pul/petitesurbaniteslibres.pdf> Acesso em: 03 jan 2014. 51


Cecilia Pederzolli

Ensaio fotogrรกfico

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Drin Cortes

Verde entre cinzas

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Galpões, pátios, cargas, paletts... Do alto da estação vislumbrávamos as possibilidades de atuação em um espaço designado para ser o motor do progresso mineiro: a fornalha que há anos consome o horizonte para que as luzes continuem acesas. Havíamos sido instigados a percorrer a cidade, em busca das ­chamadas pequenas urbanidades livres, conceito estabelecido pelo grupo francês Ktha Cie de intervenções urbanas, e refere-se a espaços cujo propósito tenha se perdido, ou que tenham surgido da sobreposição de funcionalidades. Em resumo, procurávamos, em um mundo de símbolos, por espaços que não carregassem em si nada que os caracterizasse como algo, sendo assim, passível de apropriações e re-significações simbólicas. Nossas caminhadas nos levaram a Contagem, zona industrial da região metropolitana da capital, local que viria a ser escolhido como palco para uma experiência, um laboratório de expedições urbanas. Aos pés da passarela do metrô, descemos na Vila Itaú, comunidade habitada por pessoas ligadas às atividades locais, como ­funcionários das indústrias, pequenos comércios e serviços. A vila, freqüentemente ameaçada pela especulação imobiliária, margeia o córrego para onde escoa toda a chuva, que lava o asfalto, esse que só começava do outro lado da linha do trem, na Cidade ­Industrial. Passeios estreitos e ausência de sinalização específica para pedestres deixam claro o direcionamento do desenvolvimento dessa 58


r­ egião, cujo espaço é dividido, basicamente, entre vias de trânsito, elevados e galpões cercados. Não há muitas pessoas caminhando, não há muitos espaços sociais. Perto dos portões, dos acessos, percebemos respiros onde se apoia ainda a comunidade daquele local, um trailer na esquina entre duas fábricas, quatro mesas e oito cadeiras de metal. Árvores que se tornam cabideiros, a falta do tijolo no muro, que vira gaveteiro e esconde aquilo que não se leva no bolso do macacão: pequenas urbanidades funcionais. Placas e controle. Buzinas e sirenes conferem sons àquele cheiro de maizena e fumaça. A chuva havia passado e o mormaço trazia um gosto salgado para aquela experiência sinestésica. Debaixo do viaduto, carros estacionados. No meio da tarde permanecem ali, parados, enquanto ao seu redor flui um trânsito impiedoso, incessante e lento. Há bocais e fios, mas não há lâmpadas. A penumbra confere um ar de antiguidade àquelas máquinas, como se estivessem ali há tanto tempo quanto a fuligem, a chuva, o concreto, a poeira e os fungos somados ao que mais escorre do teto e formando estalactites de sujeira. Um museu abandonado. Nichos retangulares, como caixas de sapato encravadas na estrutura do viaduto, ostentavam fios velhos dependurados como cipós. De uma delas, notamos uma árvore que se projetava para fora, enraizando-se na antiga luminária que já compôs o sistema de iluminação da Via Expressa, em frente a um banco. O formato me remeteu aos oratórios, e aquele, em especial, pareceu simbolicamente forte, um convite à apropriação. Acredito que observar a resistência da natureza à modernidade tenha pautado a minha observação no restante do percurso... a raiz que brota no rachado do concreto, a luz que entra pelo buraco. Foi imerso neste pensamento, na relação entre a apropriação da natureza para a construção de uma via urbana-industrial e a re-apropriação pela natureza do espaço desfuncionalizado, que nos depararmos com aquele espaço verde, resistindo em meio ao cinza. Um respiro entre dois galpões, por onde corre um trilho de trem já tomado pelo mato, nos 59


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sugeria uma paisagem peculiar: um jardim de sensibilizar sensíveis. Enquanto o grupo adentrava pelos portões de cipó, passei minutos, que poderiam ser horas, ali em silêncio, apenas ouvindo o metrônomo louco de um escapamento de fábrica, o regente rítmico do bater de asas de pequenas borboletas amarelas. O porteiro de um dos galpões nos alertara sobre o perigo de lá: desviantes, viciados em crack circulam na região. Por se tratarem de áreas que se opõem àquela realidade industrial, os mais propensos a desfrutar das urbanidades livres são mesmo aqueles que se desviam das normas de conduta esperadas nos demais lugares. No entanto, não houve nenhum tipo de problema entre os hipotéticos freqüentadores do local e os membros do grupo, em nenhuma das incursões para o local. Pareceu-nos mesmo se tratar de um lugar especial dentro das possibilidades. Sob a minha ótica pessoal, o local, de certa forma, resume a realidade daquele espaço e traduz ao campo dos sentidos a relação política entre o planejado e o que é adaptado pelo uso ou, no caso, pelo desuso. Parece-me natural tecer uma ligação entre essa resistência sensorial, lúdica e social praticada no coração do espaço funcional (se não concebida, certamente alimentada por um fluxo de oposição à funcionalização do espaço social) e a resistência da vida vegetal em resposta às sobreposições de funcionalidades, uma ocupação natural de um espaço que se tornou obsoleto dentro da lógica do progresso. Hipoteticamente, se compararmos o espaco construido e o indivíduo como costruto social, não seria natural concluirmos que a transformação do ser humano em um equipamento industrial, movido pela ambição material, produzisse, consequentemente, “pequenas humanidades livres”? Elegemos, então, aquele como o local a ser explorado em nosso trabalho coletivo, cujo objetivo seria, então, o de oferecer uma caminhada por um trajeto incomum, através de um percurso que não levasse necessariamente a algum lugar, instigando o olhar curioso à cerca daquele espaço esquecido e seu entorno, não necessariamente para convertê-lo a uma 62


função especifica, mas para possibilitar uma interação com sua não-funcionalidade. Vejo este tipo de apropriação simbólica do espaço como uma espécie de propulsor de pensamento, capaz de induzir ritmos ao nosso subconsciente, ativar nosso repertório imagético e trazer o subjetivo para o cotidiano. Recordo-me do episódio em que fomos autuados em flagrante, um amigo e eu, por graffitar as paredes internas de uma Instituição Mental abandonada de Diamantina, durante o Festival de Inverno de 2010. O prédio era tombado e fomos denunciados pela direção da Santa Casa. Nossa defesa foi a legitimidade de nossa ação, pois não estávamos fazendo nada além do que nos propomos na vida. Nos apresentamos como artistas plásticos que participavam de um evento cultural, e não como quem comete um atentado à estabilidade da ordem, embora, a meu ver, uma coisa não exista sem a outra. Na delegacia fomos tratados como vítimas de infortúnio, e o processo prescreveu. Três anos depois, vi-me envolvido com a apropriação de um edifício tombado, uma antiga Instituição Mental abandonada pelo Estado com o objetivo de convertê-lo no Espaço Comum Luiz Estrela, cujo propósito é construir coletivamente um ambiente autogerido, capaz de promover a aproximação cultural entre pessoas de diferentes esferas sociais e viabilizar a produção e expressão artística em suas variadas manifestações. A maioria dos envolvidos são pessoas habituadas a experienciar o espaço de uma forma que vai além da função prescrita: apreciadores, fomentadores e interventores do espaço público. 63


O fato de não haver barreiras institucionais que cerquem as possibilidades de interação entre obra e expectador, faz com que a intervenção artística no território urbano não apenas possa estabelecer outro tipo de comunicação entre as pessoas, como instigar a participação do cidadão comum na construção do espaço social. Não atribuo ao artista a glória de canalizar todo um fluxo de informações que corre no universo e traduzi-lo sob seu filtro individual em formas acessíveis pelos sentidos, mas sim aquele que toma para si a responsabilidade de fazer isso e mostrar que trata-se de algo que poderia ser feito pelo próprio expectador, o qual, abandonando uma condição passiva, pode converter o espaço comum em palco lúdico, crítico, sensível. Utilizar o contexto de transformações e re-significações que compõe o fazer artístico como ferramenta de transformação da realidade compartilhada. Como proposta de intervenção na Cidade Industrial, dediquei-me ao vão retangular do viaduto, no qual cresce aquela árvore. Inserir uma Imagem de santo ali, desconstruiria a funcionalidade de um oratório, e, ao mesmo tempo, profanaria a santidade de uma via de trânsito expresso. Ocorreu-me a imagem de São Sebastião, soldado romano amarrado a uma árvore e alvejado por flechas por demonstrar compaixão pelos cristãos. No sincretismo religioso representa Oxóssi, orixá das florestas e das relações entre os reinos animal e vegetal. Torci para que o tamanho da representação da imagem do santo atado a um tronco de gesso fosse proporcional à árvore que brotava, e não foi por torcer que deixei de surpreender-me com o fato do encaixe da imagem com a planta ser perfeito, como se tivessem sido feitos sob medida. Trajando um macacão cinza, utilizei de um cone de sinalização alaranjado que levei comigo, como apoio para alcançar o vão, em uma ação que instigou os motoristas que passavam no momento. A serviço de quem estaria aquele funcionário que se arrisca em meio ao trânsito? 64


Durante a semana, contamos com a presença de membros do grupo ktha em rodas de discussão a respeito da atuação no ambiente urbano, a arte política e a noção de espaço comum. Participamos juntos de um trajeto até o local, registrando e intervindo pelo caminho com adesivos, cartazes e performances. Além de inserções de objetos, arranjos de elementos e peculiaridades locais, nosso recanto bucólico fora preparado com redes e balanços para receber nossa comitiva, conferindo um aspecto ainda mais lúdico para aquela experiência. Havia uma tenda para abrigar-nos da chuva, bolos e sucos. Um ambiente quase socialmente funcional, não fosse pela presença inevitável do vento e da chuva, que restringiu o desfrute do espaço apenas àqueles que não viram a chuva como um adversário a ser temido, e sim como outra oportunidade de experimentação sensória daquele improvável jardim. 65


Fernanda Macruz

Reflexões: relato espontâneo sobre o nosso não-lugar

Não-lugar. No início do curso me deparei com este conceito, já ouvido e lido, mas não estudado. Deveríamos tirar fotos dos não-lugares que achássemos interessantes para uma possível intervenção, individual ou em grupo.

PRIMEIRA INCURSÃO No caminho CANTO - uma rua que se estreita. Uma calçada que se alarga. Um canteiro de calçada totalmente cimentado apenas com as plantas pra fora. Chamei de Objeto não identificado Na Praça • Cubo • Canos nos muros – fazer: evidenciar, completar, partes do corpo. Chamei de Criaturas •Pedaços do chão e construções desfeitas – chamei de Lapsos 66


Na lagoa • Árvores querendo a água da lagoa - fazer: balanços grandes de adultos ou mínimos como maquetes. Optaria pelo último – chamei de Devaneio • Árvores e postes formando duplas – fazer: um grande laço colorido com uma etiqueta - é possível! Alusão ao desenvolvimento sustentável. – Chamei de É Possível. Na prática o que é um não lugar? Tem que conjuminar vários aspectos: Esquecido, invisível para o público? Lugar por onde passa muita gente? Lugar que muita gente utiliza? Abandonado? Ou seja, já teve um uso. Tem uma história. Um lugar para se intervir, então pressupõe-se plateia? Um espaço onde nosso trabalho pode dar a ele outro sentido ?

VISITAS AOS LOCAIS: floresta, metrô, cidade industrial.

Todos tirando fotos, fotos minimalistas... já era pra fazer parte do trabalho? Mas que trabalho? Uma intervenção coletiva: ou individual ...? Como combinarmos... como quisermos... ... e já queríamos.

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Não tinha levado máquina, mesmo assim registrei. Todos fomos descobrindo olhares, não lugares pequenos, grandes, PULs e desbravando aquela exótica, incômoda cidade industrial. Incômoda de mal tratada. Incômoda pela poluição. Pelo não cuidado, pelo não lugar, pelo lugar de ninguém. Av Amazonas: um enorme não lugar!

Primeira possibilidade de intervenção

Local : Av. Amazonas, em frente ao viaduto. Duas ou três poltronas confortáveis na calçada, com fone de ouvido, convidando os transeuntes a se sentarem e ouvirem : • Voz cantando solo • Voz contando um acontecimento interessante e curto • Voz contando piada • Música instrumental • Orquestras • Música alta, forte, tipo Beethoven 68


• Música mansa, tipo Vivaldi • Música popular • Forró • E também a possibilidade do sentador escolher a próxima audição. Fone de ouvido e viseira para se isolar e entrar em um outro mundo? Não! Melhor sem viseira. Viver o contraste do que ouve e do que vê. Tentar de alguma forma unir o prazer e o não prazer, agora perceptível, evidenciado.

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Segunda possibilidade de intervenção

Local: linha do trem. Instalar diversos tecidos pelas árvores, pelo caminho afora. Ventos e panos. Cores, luzes e sombras... valorizando detalhes da paisagem. Valorização de um espaço não abandonado, desconhecido. Como foi dito no encontro nas Artes Cênicas: quebrar o ritmo de quem passa por ali, de quem já se acostumou com a mesmice do cotidiano, arte como instrumento de transformação. Foi necessário um retorno e agora com máquina fotográfica para registrar meus olhares. Voltamos Rosangela e eu.

RELATO Nos encontramos na Vila Itaú, eu vindo do metrô e Rosangela vinda da Amazonas. Queríamos fotografar o beco e explorar mais a vila. Logo no início encontramos D. Maria José, que mora ali há 40 anos. Tem 11 filhos, que entendi, moram ali, em puxadinhos. Ela é a responsável pelas plantas do beco e, por termos elogiado, nos chamou para ver as da casa dela. Nos mostrou as plantas, apresentou a filha que lavava roupa e falou de um rapaz, que aluga

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um quarto dela, este sim recebeu um apartamento no novo prédio Oásis. Nos mostrou a altura da enchente de 2002 e a parede que caiu e que por sorte, o morador, seu filho, estava com ela lá em cima. Enquanto nos servia um café, contava que todos tem até dezembro pra sair de lá. Alguns receberam apartamento no prédio e outros indenização. Ela recebeu 90 mil reais por toda a casa e os puxadinhos. Mas está feliz, pois conseguiu uma casa com jardim... Terá que construir alguns quartos ainda, mas a dona da casa fez pra ela por 85 mil. Já se tornaram amigas. É num bairro muito longe dali (por lei quando há desapropriação desse tipo, as pessoas tem que morar no máximo em 3 km, pensando nas relações estabelecidas de trabalho e amizades). Falamos que iríamos voltar dia 30, com 30 pessoas. Perguntamos se teria algum problema e se poderíamos fotografar, se ela poderia contar sua historia... Com todo prazer, irá nos receber. Pegamos seu tel. Assim nos sentimos em casa e saímos pela Vila afora, muito bom, muitas visões, descobertas... Estamos com a proposta de talvez dividir o grupo e ser outro o território para a deriva do dia 30. Encontramos um grupo de mulheres conversando, duas, mãe e filha grávida, estavam chegando do hospital: o médico disse que ainda não é hora, mas a qualquer momento nasce. Por aí entramos na conversa... Uma das mulheres mora há 41 anos lá e está tendo que sair. Meio desconfiada, não quis falar muito. Estávamos à beira do Córrego Ferrugem tirando fotos e ela conversando - contando caso. Encaminhou-se para o guarda corpo com um papel em sua mão, titubeou, provavelmente por nossa causa, mas decidiu e jogou... O córrego tem muito lixo, inclusive o ícone das enchentes: um sofá. 71


Depois conversei com uma comerciante, que recebeu uma indenização, também achou uma casa longe, mas pediu mais um prazo pra sair de lá, pois tem que construir. Deram até março... : — Mas tá vendo aquele ali, sai semana que vem... aquela casa, o morador já saiu, mas outros vieram e ocuparam, vai dar trabalho tirar eles dali... uns já receberam e não saíram, outros só saem quando receberem e está bastante atrasado o pagamento... mas eu não vou nas reuniões, eles falam que não adianta ir em reunião, ir falar com prefeito, juiz ... que nada vai modificar a situação, tem que receber e sair. Aí é isso que eu vou fazer... Senti também uma certa desconfiança, entendi que toda hora deve chegar ˜estrangeiros˜ querendo conversar pelas bordas, pra tirar informações ou convencê-los de alguma postura com relação à empreiteira. Depois um homem nos viu e veio conversar: eu tomo conta dos carros, moro logo ali... Descobrimos que é filho de D. Maria José. Simpático, seu nome INDER, — só tem eu com este nome... Posso levar vocês onde vocês quiserem... mostrar a Vila toda... Enfim ficamos com a missão honrosa de registrar os últimos suspiros de uma Vila. E tem como se isentar desta história? E tem como apenas levar as imagens, (como dizem os Karajá: querem levar nossa alma?) sem se importar com as histórias dos que vivem ali desde 1950 ? Ficamos mexidas com tudo isto. Pensei em gravar histórias de quem quisesse, precisasse contar, e qual história quiser contar... como uma mini vídeo-cabine... e ao mesmo tempo, convidar as pessoas que quiserem fazer dobraduras de barcos e aviões, (todo mundo sabe algum, aviões, então sempre aparecem muitas formas diferentes) com sentido de mudança, de viagem, de sair de um local para outro, e também desenhar uma casa, a casa para onde vai... recortar todos estes e ir construindo um móbile grande, ir dependurando ali mesmo. Um cafezinho... pra quem chegar.

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Depois fomos pra linha, e novamente o guarda falou nervoso com a gente - penso que ele deve ser conivente com os noiados que devem esconder material por ali...hahahaaha! foi esta a história que construí. Não consigo aceitar que ali é lugar de noiados, tantos, perigosos ... Perguntamos a que horas os noiados aparecem....rsrsrs ele disse que a qualquer hora... ficamos horas naquele dia e horas neste dia, não vimos ninguém... a trilha é certeira, mais parece usada por algumas pessoas que cortam caminho... perguntamos se aparece gente armada, jogando o verde pra colher o maduro...: É, eles também andam armados... e também passa trem por aí... foi o último recurso que poderia nos falar para nos tirar de lá. Inclusive estas pedras, pode tirar do trilho pois prejudica o trem que vai pra Vilma... Fomos embora.. e já na rua perguntamos pra um homem que estava com uma turma testando uma barraca de evento, e nos disse que há muitos anos não passa trem algum por lá. Claro! E no final fomos ao cafézinho da Vilma e sem esperar encontramos Sávio que estava indo pro trilho... e a conversa foi longe... se deixar a gente inventa ... ele propõe de nos encontrarmos na quinta na Vila... pra todos conhecerem, vivenciarem... não é Sávio? E como foi lá? apareceu noiado? vigia? Bem , tentei retratar o que foi. Grande abraço e aproveitem... Fer e Rosangela.... 73


Terceira possibilidade de intervenção

Dividir o grupo do dia 30 em duas derivas. Uma para Vila Itaú e outra para a linha de trem.

Quarta possibilidade de intervenção

Mini vídeo-cabine, gravar histórias da Vila Itaú. Construção do móbile.

Acabou a bateria da máquina. Chegamos nos trilhos, tudo igual, porém o mato havia crescido e muito. Andamos, sentimos, queríamos que aquela paisagem única, como um todo e a paisagem dos pequenos detalhes nos contaminassem, nos mobilizassem novamente, é isto que imagino ser habitar a imagem. Conversamos sobre a intervenção possível, calculamos o tempo ... tempo, tempo... Fazer intervenção com material dali? E o tempo? Quem sabe? Caminhávamos e tentávamos, armações com gravetos grandes... mas não haveria tempo! 74


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Os tecidos... ? ... não haveria tempo. Discutíamos intervenção coletiva ou individual, criação coletiva ou o coletivo das intervenções individuais; o não lugar; comparações com a Vila Itaú. O que fazer na Vila? Ao mesmo tempo sorvendo aquele espaço e suas coisas, ao mesmo tempo deixando rastros... pequenas torres de pedras... o vigilante nos mandou retirá-las dos trilhos ... Duvidamos mas retiramos. (por que obedecemos?) E nos retiramos, pois ameaçou com os noiados novamente. Nem pensávamos neles, mas ao pensar deu receio. Árvores grandes com galhos nos recebendo, o trilhos dando a direção, os muros que nos dão limites, com seus detalhes nos atraindo, ou nos traindo, a atenção Bem, combinamos onde iria a faixa de inauguração, como amarrá-la? Então mais a frente pois tem onde. De que tecido? E o laço? E a tesoura? Meu trabalho não seria com foto, uma vez que a máquina não quis ir até o final do trajeto. Portanto, eu teria que levar material para fazer algo, como uma memória cadastral dos materiais encontrados, escolhidos, catados... os lixos (rastros) e as plantas ...

Quinta possibilidade de intervenção

Um diário no formato da linha de trem, de colagens do que foi recolhido, com escritas por cima. Cheguei a começar. A pesquisa dos não lugares continuou, assim sem ser voluntária. E pensei ser excelente ­conhecermos os atalhos que atravessam a lagoa da Pampulha.

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Tão surpreendente quanto os trilhos. Fazer um trabalho paralelo... Andar no meio das águas. Dragas em funcionamento, parecendo tratores dentro da lagoa, de um lado e a ilha com a ­preservação da fauna de outro. O silêncio, o reflexo da água, o sol, as plantas e você com uma visão 360º de água. Fomos todos lá. Choveu! E como Choveu! Encontrar um local na Cidade Industrial, um bairro de altas ­tecnologias, encontrar um local do tempo do trem de ferro, abandonado!!?? Por ali, um dia passou um trem. Como esquecer este fato? Algo que se movimenta, que traz e leva materiais, coisas, gentes, lixos. Com certeza, um local onde muita criança brincou escondido das mães. Sempre que se conversa com pessoas que moraram à beira de trilhos, elas contam sonhos, imaginações, fantasias, estripulias sérias e brincantes. Era preciso fazer algo que deixasse a lembrança dessas rodas.

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Daí uma grande roda com pintura de ferro, de ferrugens e porcas. Uma grande roda com­ ­colagens de materiais recolhidos ali, pra dizer da quantidade de coisas agarradas que as rodas levavam de um lado para outro. Também uma roda que lembra carro de boi, hoje o local lembra caminho da roça. Roda feita, colocá-la onde? Fomos três nas tentativas. ... Em cima do trilho, dependurada! Linda! Novamente uma roda em movimento, o vento.

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Pronto, devolvido o que foi tomado dali! Um sentido dialético de construção. A rede, a cadeira-rede e a roda , formavam um cenário. E um convite. (sou cenógrafa e esta também é a função de um cenário) Tudo isto e a fita de inauguração, o lanche na entrada e a barraca vista ao longe com ­banquinha de lembranças do lugar, tipo ESTIVE EM, completariam o clima PACOTE TURÍSTICO, que queríamos dar à expedição. Na banquinha, entre outras, a minha lembrança estava lá, o talismã da sorte. Um lugar, urbano industrial e rural ao mesmo tempo, público e privado ao mesmo tempo, (nós nos apropriamos por diversos momentos e tempos de duração, coletiva e ­individualmente),

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enfim um lugar híbrido, mágico que conseguiu fazer nossas cabeças e nos levar a ele por várias vezes, se faz necessário a criação de um talismã da sorte.

Feito com plantas dali, flores e folhas, mas também as tradicionais fecha corpo, proteção, tira mal olhado, (afinal queríamos apenas bons e criativos olhares). Sementes, ervas, conservadas na cachaça que é nossa bebida nos rituais de alegrias e de visões. Vidrinhos coloridos e com rótulo : Oásis Village (contra meu gosto que não colocaria um nome em inglês, mas a turma havia fechado assim). 82


E um talismã para cada carência: sabedoria, criatividade, solidariedade, amor.

Tudo isso faria muito sentido e haveria de ser percebido se não fosse a persistente chuva, pela segunda vez atravessando, nossos caminhos... não fiz talismã para intempéries...

O que nos espantou? O que nos atiçou a curiosidade, a vontade de irmos pra lá? O forte contraste entre o : • Dentro das cercas: o super industrial, bonito, limpo, organizado, vigiado, privado, fábrica de lucros. • Fora das cercas: o de ninguém, o necessário, não mais que o necessário, beleza alguma, o público, o não-lugar . Subjetivamente o não-lugar não me pertence, não é meu desejo, que não se imiscua comigo e não me incomode.

Este lugar paraíso, idílico, utópico, a 100m do monstro da Amazonas e de onde não se escuta sua poluição, não se afeta pela sua movimentação. Um espaço que poderia ser um 83


pomar, uma horta, galinhas, porcos, um lago com patos... que poderia ter um sarau! Poderá acontecer uma exposição, uma peça, um bazar de trocas, um bem articulado show, uma filmagem...

Nos sentimos mexidos pelas descobertas de vários PUL’s pelo caminho, que nos fizeram querer intervir, ocupar, fazer história, mesmo que pontual.

É sim um lugar que não passa ninguém, quase ninguém. Um espaço que, se quisermos intervir, teremos que levar o público, levar o espetáculo, e as estruturas, e os lanches e os banheiros, e ... Temos o espaço, que nos faz sonhar.. Espaço cheio de rastros : gentes passam ou passaram por lá. Pessoas gostam de lá, assim como nós. Pessoas ocupam o espaço para estar. É uma intervenção?

Dia 30 foi nossa Chamada ao LEU. Expedições Urbanas. Chamamos turistas que não viram postais, que não viram fotos na internet, que não conhecem o trajeto, pelo menos deste ponto de vista, de um passeio ao leu .

A produção: Preparar o local. Curtir o espaço do trilho

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Montar a fita de inauguração. Abrir a trilha (cortar um pouco o mato) Chuvisco. Árvore alta. Amarrar a corda, alta tecnologia. Corda pra roda, corda pra rede, corda pra cadeira, corda pra faixa. Chuva, recolhe tudo. Porta malas. Estiou. Tira-se novamente e monta-se o cenário. Tudo certo? Olhamos pra trás. Agora acho que tá. Beleza! Então vamos pro metrô encontrar a turma. Quiséramos dar um ar de pacote turístico:

Atenção: a expedição será mantida mesmo em caso de chuva. Preparos para o trajeto: apetrechos em caso de chuva e sol; dispositivos para registros diversos (escrita, som, imagem)

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Cristiano Bickel

Ensaio fotogrรกfico

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Maria Luísa Fonseca

Deriv(ações) ao leu Este texto reúne as “derivações” (fotografias, memórias, ações, derivas, opiniões...) que me acompanharam no processo de ­construção do trabalho realizado para a disciplina Paisagem ­Local/ Paisagem Global: Habitar a Imagem do PPG-UFG, da Escola de ­Belas Artes, no decorrer do segundo semestre de 2013.

Eu-Outro: Paisagem Local-global No decorrer das derivas, eu já estava experimentando a cidade de outro modo. Pensava nas paisagens que observava e nas relações existentes entre elas. Questionava-me sobre o que poderiam ser imagens “globais” e “locais” e como eu poderia expressá-las. Então como fazer de mim mesma o “lugar” por onde estas imagens pudessem passar e dançar...? Pois andando, eu identificava muito bem as impressões que tinha do espaço por onde ia; mas logo, intimamente, estas mesmas impressões eram substituídas por outras imagens e novos estímulos: um cheiro estranho, uma cor brilhante, uma avenida barulhenta, uma dor repentina, um céu desbotado, a sensação de estar perdida e ao mesmo tempo 92


alegre... Na verdade, todas aquelas eram imagens não muito localizáveis ou figurativas. Onde localizar uma imagem local? Em mim, no espaço, no metrô, em meus colegas? E o global, seria a reunião, a síntese de tudo isso? Eu me perguntava... apreendendo esta conexão com os lugares, eu portava, com uma câmera fotográfica, a tecnologia que me dava acesso ao mundo dos registros visuais e simultaneamente, à precariedade da enunciação total da realidade. Já que explorar o território das imagens traz o incômodo das descobertas desestruturadoras, deixa ao avesso o espaço do recolhimento e mostra assim, a sua exterioridade invisível: esse lugar de encontro e desencontro, onde tudo é possível, tudo é passageiro, porque até então lá nada permanecia. Então estes questionamentos, sobre a formação do espaço e a produção de subjetividades , foram avançando na medida em que também nos movíamos na investigação das pequenas urbanidades livres, influenciados pelo trabalho do cia ktha de Paris/França, de teatro e intervenção urbana. Os integrantes deste grupo realizam intervenções artísticas em Paris e também em outras cidades pelo mundo. Por meio de uma cartografia prévia e um mapeamento dos PUL´s, eles lançam propostas artísticas nos lugares que para eles são, dentre outras coisas, “os espaços urbanos que se encontram sacrificados” pelo processo de modernização e industrialização e que sugerem o vazio, o abandono ou que perderam a sua funcionalidade no meio da arquitetura e do trânsito da cidade. Fizemos uma parceria com este grupo e ao final do semestre, recebemos a visita de dois de seus integrantes, ( Lear Packer e Laetitia Lafforgue) para a troca de experiências, de forma a concluir o trabalho que foi elaborado por nossa turma, dentro da temática das paisagens urbanas. Estávamos desta forma, movimentando paisagens locais e globais e lidando com um conceito vindo do outro, vindo de fora, e que, portanto, deveria ser entendido de forma prática em nosso trabalho, e claro, dentro da realidade brasileira.

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A noção de “pequenas urbanidades livres”, proposto pelo grupo ktha, me orientava nas derivas . Este termo, porém, dentro da nossa turma, adquiria novas conceituações e entendimentos a cada novo encontro e conversa que tínhamos. Dentre outras interrogações, questionávamos se uma PUL necessariamente deveria ser um lugar vazio; se este espaço precisaria ser ocupado e transformado ou se por si só, este lugar já não era potente o suficiente para causar suas mudanças estéticas e micropolíticas de modo autônomo. Cada vez que tento conceituar de maneira mais sólida o que seria habitar uma paisagem local ou global, deparo-me com a construção de uma ação entre eu e o outro, entre o particular e o público, entre o conhecido e o desconhecido. Porque o espaço não existe por si só, a priori, ele é construído no movimento. Penso num processo, como a organização de uma cena entre estas distâncias; um tipo de dança entre os corpos, que produzem imagens e interagem com no espaço. Se habitar é agir, então fazer derivas pela cidade seria também experimentar as diversas tonalidades, temperaturas e formas de ser si mesmo e de estar em relação com o outro. Daí, novos caminhos e novas paisagens vão aparecendo... A imagem que temos de nós mesmos parece ser algo muito simples e definível por si só: basta olhar-se no espelho e pronto, mesmo que o tempo promova as mudanças mais radicais, o reconhecimento daquilo que é próprio acontece instantaneamente. Assim como quando nos deparamos com a imagem do outro, sabemos distingui-la dos demais perfis, observamos os seus traços e características mais marcantes, e ao final podemos dizer aliviados: este 94


sou eu e aquele é o outro. Junto desta observação, acrescentamos o lugar e o posicionamento de quem observa e de quem é observado, ou seja, a paisagem e os seus respectivos pontos de vista. Portanto, a construção subjetiva e a criação da singularidade relacionam-se com uma questão territorial. Geralmente sabemos identificar a nossa casa das outras casas da rua, somos capazes de falar sobre nosso deslocamento até ali, reconhecemos as nossas origens e tentamos nos situar de maneira particular naquelas dimensões espaciais. Porém, a concepção que se faz da imagem de si mesmo e das imagens de um território não se dá por meio de um processo tão óbvio e de simples construção. Isto é uma questão também social. O eu só se constrói a partir do olhar do outro. A imagem se inter-relaciona com a linguagem. Nós temos discursos, cenários, comportamentos e sentimentos que se confundem, se descolam, se conectam e se re-significam. O que dizer sobre o indizível? E quando o olhar se esvai para um fundo sem profundidade? Basta pensar um pouco sobre o fascínio da arte, sobre as dificuldades de relacionamento entre as pessoas, sobre a loucura, os erros de comunicação, sobre as guerras e as disputas territoriais de cunho econômico, político e religioso, para vermos que a definição da imagem de alguém ou de algum lugar é um processo delicado e complexo. Vivemos em um mundo de linguagens plurais, que vão se apresentando na medida em que percorremos as suas dimensões, os seus relevos, suas texturas; damos à superfície do nosso próprio corpo o suporte para este contato, e desta maneira, vamos modulando, através das imagens, a consistência destes deslocamentos pelo tempo e pelo espaço. A cultura, as leis e normas sociais, encarnam a figura de um outro ( tomo aqui o outro como uma paisagem global, como um horizonte inalcançável, ao mesmo tempo muito próximo e distante...) que me devolve, garante e sustenta a imagem sólida de tudo o que reconheço como meu: meu corpo, minha família, meus amigos... Mas afinal, o que é o eu? Seria a imagem de si mesmo, uma paisagem local, ou quem sabe, uma espécie de lugar especial no mundo, como uma Pequena Urbanidade Livre; um ambien95


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te restrito onde é possível identificar a presença das sensações, dos desejos, das posturas e tensões, todos estes aspectos internos aliados à exterioridade infinita? A sensação de ser si mesmo, de ser um entre os demais, ou seja, esta capacidade de fazer a antinomia entre o diferente e o idêntico, entre o real e o ideal nos dá a solidez apaziguadora de ser um só (NASIO, J.-D., 2009,p.29). O sujeito se transforma, produz e assume a sua própria imagem através do olhar do outro. Então, a noção que se constrói de alteridade sintetiza todo um processo de identificação através do qual as imagens surgem; talvez desse desejo comum de representar as cenas de uma família, de um acontecimento ou de retratar uma determinada região e os seus habitantes com as suas cores, sons, suas formas de vida. Mas, uma vez tendo a autonomia de ser um só, descobrindo-se este indivíduo único e responsável por suas próprias ações, como fazer com que as diferenças (subjetivas, geográficas, étnicas...) sejam vistas apenas como singularidades, que devem ser respeitadas, sem que se caia no discurso da homogeinização e da padronização? Por outro lado, como não agir de forma “narcísica”, individualista, dentro de uma sociedade cujo sistema é, ele mesmo, voltado para a lógica do consumo, onde vemos as pessoas procurarem nos objetos (cada vez mais descartáveis) a satisfação e a imortalidade para o próprio eu? O fato é que, em momentos de crise, ser si mesmo fica intolerável, então começamos a levantar sérias questões referentes à imagem que construímos de nós enquanto indivíduos, enquanto cidadãos: às vezes nos julgamos fortes, moradores de um país cuja população é unida, livre e vencedora. Aí repetimos indiscriminadamente o slogan de uma nação, tal como a frase que diz que o nosso povo não “desiste nunca”. Mas, em outros momentos, usamos nossa própria história pública e individual como um motivo de piada, perdemos a paciência, somos irônicos, compartilhamos a suspeita de que algo não vai muito bem e que consequentemente forjamos o tempo inteiro a fantasia que montamos de nós. A começar por Brasília, uma cidade projetada para o futuro, um sonho, uma espaçonave político-administrativa, longe das intempéries e dos burburinhos do povo miscigenado, longe das secas, longe do mar, 98


longe...Depois começamos a questionar a Copa do Mundo... Tenho a impressão que o espelho se quebrou e que a visão está um pouco embaçada, daí a nossa silhueta se metamorfoseou... Estamos traçando novas cartografias, criando um mapa diferente daquele que é instituído pelo Estado, então algo está novamente acontecendo pelas ruas do país (assim espero...), como vimos nas manifestações de Junho/Julho de 2013 aqui no Brasil. No fundo, no fundo, todos nós temos uma imagem-refúgio, que resgatamos (ou que perdemos), de vez em quando; então em certos momentos nos apresentamos como portadores de um corpo fragmentado, frágil, semelhante ao de uma criança que ainda deve aprender a controlar a sua própria imagem diante do espelho, ou nas condições de alguém que ,doente, sofre ao sentir suas desordens internas. Aí, alienados, não respondemos mais pelo nosso fazer e ficamos demasiadamente dependentes do olhar do outro para existir e exercer nossas vontades. Talvez esta seja a função social do paraíso, dos ideais de beleza e da perfeição humana: no fim das contas, nos acalmar, fazendo-nos acreditar que um dia teremos algo a ver com essas imagens utópicas criada justamente para que, a partir dela, possamos permanecer estáveis e consistentes no espaço e no tempo. Porém, a sensação de estabilidade me parece um pouco abalada nesses tempos de globalização. Vivemos no mundo do movimento constante e das altas velocidades, onde as pessoas são impulsionadas diariamente a se deslocar pelo espaço urba99


no. As fronteiras não estão mais tão fortemente delimitadas, temos alguns centros políticos e econômicos espalhados pelo globo conectados a uma rede de empresas multinacionais. Então vemos crescer as desigualdades... O “global”, também se liga à lógica do todo, à uma “totalidade” que a ciência muitas vezes utiliza para por a técnica a serviço de generalizações não muito saudáveis, buscando parâmetros universais para os seus procedimentos e escalas de avaliação. Simplesmente fazendo a quantificação universal de sintomas, dando instruções, catalogando comportamentos. O problema não é a ordem e o rigor das técnicas e da disciplina, porque isto é às vezes necessário para que muitas coisas realmente funcionem... A questão é a estupidez humana que às vezes chega ao limite. É possível fazer um tratamento estatístico que se enquadre a qualquer conjunto populacional: para o grupo dos deprimidos, damos os seus devidos medicamentos; para o grupo dos feios, a suas devidas cirurgias; para os pobres as suas casas nas margens das cidades e os benefícios do Estado, as cestas básicas. Mas não é só... Tudo ao alcance das formas universais, ou seja, há um ponto de partida e um ponto de chegada, sendo que, o que importa ao final é a conformidade e a adaptação social. Então, podemos perceber também que a globalização une o mundo e o amplia, mas é extremamente seletiva, o seu sistema elege os lugares e seleciona as pessoas, restringe os desvios, define o que é comum ou normal, já que no sistema capitalista os espaços só se tornam “visíveis” se são interessantes economicamente, pois se não, eles ficam às margens e desaparecem do mapa! 100


2- Distancia em movimento: espaço entre-linhas Fizemos duas derivas coletivas: uma primeira para a Cidade Industrial, Contagem e outra para o bairro Pampulha, em Belo Horizonte. Em nossa primeira deriva, para a Cidade Industrial, não sabíamos ao certo o que iríamos encontrar e o quê estávamos exatamente procurando. Para mim, a indefinição do olhar, resumida na situação de não saber onde pousar a curiosidade, fez com que eu me conduzisse não para fora da linguagem, mas para o meio... O “meio” para mim é um limite entre a compreensão racional e o não-saber, um espaço onde a transgressão transforma o movimento de deslocamento em um campo de sentidos possíveis.

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O que eu quero dizer é que eu me interessei, desde o início das derivas, em colocar o meu corpo numa “escuta ativa” com o espaço, colocando-me em estado de porosidade com o ambiente, entendendo que eu mesma era aquele espaço habitado, que era tudo aquilo o que eu via e sentia no meu caminhar. Fomos de metrô para a Cidade Industrial, que para mim se transformou no lugar próprio do atravessamento, um não-lugar. Nem tanto ao céu e nem precisamente na terra: nos trilhos, na linha de fuga. Um pouco flutuante. A imagem da linha de fuga, como no conceito deleuziano, carrega em si o avançar ininterrupto do devir, ela processa inversões e divergências pelo caminho, propõe dobras e envergamentos sem parar em lugar nenhum, estando presente apenas no aqui e no agora que só passa, passa... Na Cidade Industrial, exploramos tudo o que encontrávamos pelo caminho: fragmentos da industrialização, do descaso do poder público; cacos; imagens publicitárias; nichos; quinas; avenida e ruas; casas; lixo; vestígios da natureza; construções... Quando encontramos uma linha férrea desativada. Fomos entrando pelo caminho dos trilhos, um lugar bastante tomado pelo mato, bem atrás de uma fábrica. Foi quase uma epifania caminhar por ali porque era uma paisagem “bucólica” em meio à paisagem das indústrias. Depois de passada a experiência da visita à linha de trem desativada, o grupo decidiu que seria interessante uma intervenção ali. E que lugar era aquele que tínhamos escolhido para a nossa intervenção de trabalho final da disciplina, senão um espaço “entre”, uma verdadeira linha de fuga, um espaço que não era nem Belo Horizonte e nem Cidade Industrial, que era apenas uma linha férrea desativada no meio do mato...? Aquela era, na verdade, uma Grande Urbanidade Livre, mas que não constava precisamente no mapa. Nosso colega Sávio Reale batizou este lugar de “Vila Oásis”, como uma crítica a estes empreendimentos imobiliários perversos que vendem a ilusão e a utopia de um lugar que não existe. Novamente via que a decisão por trabalhar “em cima dos trilhos” ou “no limite”, era uma escolha comum em nosso grupo e isto me instigava cada vez mais. A imagem da linha de trem é algo muito curioso: a linha em movimento é algo que corta, como uma linha de fuga, atra102


vessa fronteiras, não está nem lá e nem cá, passa pelo tempo, infinita, sem se fixar em nenhum instante. Acho que também entramos numa linha de fuga, este espaço “entre-linhas”, quando fizemos a deriva até o bairro Pampulha. Chovia muito e o tempo nublado compreendia um tipo de fase crepuscular que era o intervalo entre o dia e a noite, como uma greta, uma esquina, um beco, uma pequena urbanidade livre... E assim, seguimos fotografando, ora no escuro, ora escorrendo com a chuva... Despertando a suspeita de que atrás de toda coisa vista, há só vazio. Como se atrás do véu não tivesse nada ou que depois de chegar ao lugar, nada fosse encontrado. Mas uma vez estando nesse lugar sem dono, sem origem e sem destino, fosse possível alcançar a maior das originalidades daquele tempo escorregadio: uma fotografia.

3- encontro LEU: vendo como veria um viaduto Da idéia de fazer uma intervenção na Vila Oásis, na Cidade Industrial, nasceu a vontade coletiva de organizar, para a conclusão do nosso curso, o evento Chamado ao LEU (Laboratório de Expedições Urbanas), que seria uma expedição urbana coletiva, onde pudéssemos compartilhar os encontros, as imagens e as impressões acerca das diversas formas de habitar o espaço público. O local onde faríamos a intervenção, a Vila Oásis, serviu de inspiração para que a Thálita Motta e eu, propuséssemos uma performance no metrô, durante o trajeto LEU, para falar des103


sas nossas percepções, através do corpo e do movimento. A temática das linhas de fuga foi me interessando mais e mais, porque toda deriva pelo espaço desloca linhas e atravessa lugares, recompõe figuras e traduz narrativas. Registrávamos as nossas caminhadas principalmente através da fotografia, e estas imagens, posteriormente, foram a base para a o entendimento conjunto do termo PUL. Decidimos que, na performance, de Belo Horizonte até a Cidade Industrial, utilizaríamos ­inclusive o espaço interno do metrô, pensando as fronteiras entre o corpo e a cidade. O desejo era justamente o de colocar-nos em situação de limite, tentando estabelecer conexão com a materialidade do corpo social, com a arquitetura, com as velocidades e os fluxos de informações. Estávamos interessadas em experimentar um corpo dissolvido, que acompanhasse o movimento da gravidade e os deslocamentos das pessoas pelo espaço, que pudesse se encaixar e compor com as es-

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truturas do lugar, pelas frestas, as quinas e esquinas; articulando e alongando as imagens através dos fluxos do corpo e da cidade. Para a execução desta performance, nós nos inspiramos livremente na dança Butoh, uma dança contemporânea japonesa, que de certa forma “rompe com a hierarquia do sujeito como mais importante do que os objetos inanimados do mundo” (GREINER, Cristine, 2005:5) e busca no corpo, o processo de inacabamento para se abrir a afetações mais sinceras. Achamos que alguns princípios da técnica Butoh se relacionavam com o nosso trabalho, assim como também contamos com a referência da artista e performer Valie Export, em série fotográfica Body Configuration, que nos ­influenciou na construção dos exercícios de “composição urbana”, onde tentávamos nos “encaixar” na paisagem e na arquitetura da cidade. Começamos a performance na estação de metrô, onde nos preparamos com alongamentos. Lentamente, eu fui testando este estado de permeabilidade com o ambiente, e me sentia assim, tocada por esta atmosfera. Nesse momento, o corpo naturalmente foi pedindo os movimentos de “dissolução” com o espaço. Depois fomos fazendo pelo percurso as “composições”; cada uma fazia uma ação e se posicionava em um local diferente (eu escolhia, de preferência lugares que achava serem Pequenas Urbanidades Livres). O corpo se encaixava e experimentava o seu recolhimento na materialidade daquele espaço, respirar ali, permanecer ali. Era como se o exercício de composição revelasse a pose de um corpo imóvel e ao mesmo tempo cheio de vida, como uma fotografia urbana ao vivo.

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Na última composição, decidimos nos reunir. Estávamos debaixo de um viaduto e chovia muito, inclusive no lugar onde escolhemos para compor, que era um cantinho espremido na extremidade da estrutura de concreto do viaduto... Era possível escutar os carros que passavam encima de nós! Lá, tentávamos a conexão do ritmo da nossa expiração/inspiração, contando o tempo, de forma lenta e profunda. Naquele canto eu caminhava imóvel, sempre na atualização do “aqui”, exatamente porque uma imagem sempre requer essa plasticidade do instante com o espaço: ia bordando o seu entorno para poder dar margem ao horizonte, e nele revelar um mundo sensível, para tocar a concretude das coisas que via e que sentia. Eu queria a visão do viaduto. Eu achava que estava vendo... Então, aquilo que você encontra, se torna uma paisagem irreconhecível, sempre surpreendente, inédita. A propósito da paisagem “ir”, ela é uma coisa que só passa. Eu penso que encontrar uma pequena urbanidade livre é deixar perder-se nela. Encontrar é também perder, deixar faltar. E decidir se encontrar novamente, com firmeza, com serenidade. Como se identificar com isto que é pura ausência e que recusa a se presentificar, a não ser através das imagens entrecortadas e fugidias que contemplamos pelas janelas dos carros, nos ônibus, pelas ruas...? Que espacialidade estrangeira e estranha é esta que se instala, mesmo dentro de meus próprios limites? Um espaço constante, recorrente, ele mesmo uma relação sem relação, onde ser sujeito e ser objeto não faz diferença, não tem mais importância? Sempre fica um resto de luz no lugar dessa qualidade transbordante que é o contato vivo com a experiência do presente. Lugar que nenhuma câmera consegue captar e então a imagem vem furada, esbarra no seu limite impossível... Ela parece desautorizada a revelar a obviedade do que está mostrando, ela vem falha, abre espaço para um lugar desconhecido... inconsistente, turvo... igualmente criativo, inventivo. Como uma pequena urbanidade livre, se eu pudesse ter a visão de um viaduto... veria um tempo sem memória, um espaço sem lugar... Essa estranheza comum e familiar que passa diariamente pela cidade e as pessoas. O cotidiano apressa paisagens e que as arrasta para o campo do virtual; na potência e na capacidade de serem tão passageiras, quanto algo que 106


ainda não é propriamente uma imagem, mas sim um projeto de vir-a-ser: um abrigo, o lugar do abandono, o acolhimento, o cenário para uma performance, um registro.

Referências: BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências humanas. Rio de Janeiro. Jorge Zahar,1998 GREINER, Cristine. O colapso do corpo a partir do ankoku butô de Hijikata Tatsumi. www.japonasartesescenicas.or. 2005. NAZIO, J.-D. Meu corpo e suas imagens. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. SALIBA, Ana Maria Portugal Maia. O vidro da palavra: O estranho como objeto limite entre a literatura e a psicanálise. Em Tese. Belo Horizonte, v.8, p. 1-243, dez. 2004. SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo. São Paulo: Edusp, 2008.

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Rodrigo Borges

Sorver a linha e a cor em um minĂşsculo percurso de ar

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Caminhar! No passado, transitar, viajar e caminhar eram as únicas formas de se estabelecer contatos e trocas. Hoje, a pressa e o medo alteraram de maneira drástica a experiência de transitar, viajar, caminhar e, nesta ação, observar, identificar, reconhecer e ter atenção às coisas pelas quais passamos e/ou passeamos. Passear! Os lugares pelos quais sempre passamos, revelam-se cheios de sentidos insuspeitados em um caminhar incomum. De um modo desfocado e deslocado da pressa cotidiana, esse passear dirige-se a um destino preciso em busca de lugares inusitados que se escondem nas coordenadas geográficas dos mapas. Encontro com o perdido. Olhe o chão! Olhe o céu! Olhe à frente! O que vemos? Olhe para o chão! Cabeça baixa! Olhe! Descreva! No chão resta o presente: despejos, desejos, desmontes, desenhos. Ao passear inventamos narrativas com a utilidade perdida. Olhe para o chão! Um recorte da extensão, do distante, do que a vista não alcança na correria do dia a dia e, também, do que está próximo e é tão miúdo que passamos por sobre.

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Ao caminh(passe)ar pela cidade, olhando para o chão, encontro pousado - posado, deitado - um canudinho que serviu para alguém sugar o líquido de um recipiente (Copo? Garrafa?) até a boca. Observo a forma. Identifico e invento sua inutilidade. Coloco de pé o objeto jogado ao chão. Dou-lhe uma posição. Desenho sua presença. Canudos jogados às margens de ruas, calçadas, jardins e lotes vagos. A frequência com que nos deparamos com essa forma e sua imagem largada, abandonada, banal e desatenta chamam a atenção do passeante. Descartado pelas ruas da cidade, o canudo é um lixo. Um pedaço de plástico sem caráter, sem marca, sem distinções, sem cultura. O que agora circula por ele? O que ele circula? Um objeto mágico. Sua forma simples é o elemento chave para sua eficácia plástica, ordenadora de sensações, fluxos, diferenças e ritmos. Mínimo desenho do observado o canudo abandonado é transitivo. Deitado ao chão, divide pequenos territórios: um lado de cá e outro de lá. Canudo-muro. ­Fronteira-oca. Fronteira-canal. Muro-túnel. Ao mesmo tempo meio para sorver líquidos e barreira, limite e ligação, um canudo largado no chão é um minúsculo ­percurso de ar.

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Diferente da linha sobre o papel que cria espaços e volumes; diferente da visão de topo da linha de um muro levantada perpendicularmente do solo; a mínima secção de linha que um canudo é, conduz e direciona o olhar para um destino com intenções próprias e ainda desconhecidas. Alude a relações que ainda serão construídas. Sua potência de desenho é a de se ligar e de ligar as coisas. O ajuntamento de um canudo a outro (e sucessivamente a outro(s)) acentua uma modularidade construtiva que, em sua geometria dobrável cria planos e formas, geografias e paisagens maleáveis, dinâmicos e fluídos. O canudo deitado no chão sonha organicidades. Sonha caminhos, rios e movimentos através do ar que lhe percorre. Sua potência como imagem - como desenho, linha e cor – preserva, de sua função ordinária, a potência de ser passagem mínima entre mundos. Visto de cima e centralizado no enquadramento fotográfico, o canudo quer ser o resultado de uma construção. Uma imagem construída do descanso, de um lugar do repouso. Avesso à energia necessária ao levantar-se e pôr-se de pé, interessa a essa imagem mostrar uma indiferença própria do sono. Deixar dormir. O que sonha um canudo?

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Sávio Reale

Intervenção artística: experimento e provocação no quotidiano das cidades [...] a maioria dos lugares no mundo moderno são ­curiosamente renegados pela arte, estranhamente. Arte ­ainda se foca em um tipo de gênero em particular, muitas ­vezes conectado à vida privada. Mas a maior parte de nós não passa a vida apenas no campo privado. Temos a vida privada, mas temos outros momentos. [...] E creio que um escritor deve se engajar nisso. Há algo de especial quando um autor, ou fotógrafo, ou cineasta nos mostra esses ­lados da vida. [...] creio que a arte deve nos fazer sentir em casa nos lugares mais inóspitos. Este é um dos propósitos, re-humanizar o inumano. Isso me parece um projeto muito importante, quase político, para os artistas.

Há quase quatro décadas vivendo em Belo Horizonte, foram muitas as ocasiões em que me senti deslocado, fora de sua lógica funcionalista e pragmática No início, creditava esta sensação apenas à minha origem interiorana (nasci e vivi até os 15 anos na diminuta Rio Doce, de aproximadamente 2.500 habitantes), mas ela se intensificou com o passar do tempo e, há muito, desconfio que seja pelo fato de nunca ter lidado com a ferramenta que traduz o modo de vida preponderante em metrópoles na contempo120


raneidade: não possuo automóvel, pois não dirijo. Nunca me interessei por carros. Meus deslocamentos quase sempre se fizeram a pé e é da perspectiva pedestre que me localizo, esteja onde estiver. Ainda hoje percorro longas distâncias utilizando o transporte coletivo, ou caminhando. Outras vezes correndo, muito, com pressa de chegar para ser pontual e não faltar aos compromissos (felizmente, numa proporção inversa, tenho diminuído esse ritmo na mesma medida em que envelheço). Assim desenvolvi minha forma preferida de perceber a(s) cidade(s), caminhando, algo determinante para a imersão que permite que com ela me relacione de maneira mais atenta e íntima. A onipresença dos carros, a exigir cada vez mais e mais espaço – com vias de traçados objetivos, anulando particularidades e diferenças – define a maneira como poder público e população vêm se relacionando com as cidades. A isto se soma o medo da violência que se alastra, a poluição visual dos inúmeros anúncios publicitários, propagandas, outdoors e cartazes, a profusão de imagens, a proliferação de signos, o excesso de informações que se sobrepõem em sua arquitetura, a ausência de planejamento urbano criterioso, o crescimento incontrolável, o tal progresso que leva à degradação de áreas e ambientes, numa crescente desvitalização dos espaços de convivência, induzindo a uma repetição de condutas, tornando invisível muito do que nela existe. Através do filtro da janela dos automóveis, quase sempre fechada, a cidade é apenas percebida, vista de passagem. Paisagem. À minha maneira, no entanto, busco perspectivas quase sempre incomuns aos milhares de cidadãos-motoristas, seja através das janelas dos coletivos (mais altos que os veículos particulares) ou mesmo do rés-do-chão, da calçada. Há detalhes que só se pode alcançar quando se desacelera o passo e se adota uma mirada atenta, perscrutadora, rejeitando-se aquela rápida e automática – a que Cristina Freire, citando Walter Benjamin, denomina percepção tátil – que permite olhar sem ver, pois [...] efetua-se menos pela atenção do que pelo hábito. (FREIRE, 1997:217-218) Para este olhar, onde a vontade está excluída do ver, Walter Benjamin cunhou o termo percepção do choque. Sobre esse olhar o escritor Ítalo Calvino deixou-nos um apontamento, 121


feito em sua primeira viagem ao Japão, quando ainda se encontrava numa fase de admiração pelas profundas diferenças que testemunhava: A partir do momento em que tudo tivesse encontrado ordem e lugar em sua mente começaria [...] a não achar mais nada digno de nota, a não ver mais o que estou vendo. Porque ver quer ­dizer perceber diferenças, e, tão logo as diferenças se uniformizam no cotidiano previsível, o olhar passa a escorrer numa superfície lisa e sem ranhuras. (CALVINO, 2010: 166 - grifos meus)

Ao desenvolver uma maneira de inserir-me no dia-a-dia da cidade, foram incontáveis as ocasiões em que me tornei espectador de situações e realidades que a um típico morador, afobado, passariam despercebidas. Nesses deslocamentos desvelam-se detalhes que permanecem encobertos aos olhos desatentos, nas diversas camadas que ali estão, nas diversas cidades que subjazem naquela do quotidiano. O ritmo frenético, por outro lado, perturba não somente a contemplação do entorno: ele leva à dificuldade de evocação e compromete as dinâmicas da memória, que solicitam tempo para se desprender da rotina apressada. A aceleração, portanto, é [...] "sinônimo de destruição, ou pelo menos de uma outra forma de olhar, com a qual ainda não nos acostumamos totalmente." (FREIRE, 1997: 46-47) A observação curiosa e demorada só tem lugar para aqueles que, ao se deslocarem, diminuem o ritmo (e as ruas tornam-se, então, lugares de múltiplos encontros e surpresas) ou para aqueles que vêm de outras partes, estrangeiros de toda espécie. No andar atento, surgem encontros com esculturas e monumentos, cheios de nuanças, que, se não passarem totalmente despercebidas, se a velocidade do deslocamento não for muito acelerada, podem até despertar lembranças, reavivar emoções e desencadear narrativas. Na crescente homogeneização, portanto, ainda há lugar para o exercício de ressensibilização. Embora isso pareça cada dia mais difícil, ver a cidade esteticamente, investir em seus espaços uma carga afetiva, 122


ainda é possível. E foi andando por suas ruas e avenidas, parando em suas praças, que pude reparar melhor algumas dessas obras que nelas se abrigam (se escondem, se revelam). Com a proximidade física, corporal, propiciada pelo caminhar, aliada a um tempo maior de observação, pude perceber o estado de abandono em que muitas se encontram e, posteriormente, desenvolver uma proposta de trabalho, que passo a descrever: [projeto desmemória] Grandes cidades, como Belo Horizonte, contam com significativo e crescente número de monumentos e esculturas. Os habitantes, ao que tudo indica, parece não se reconhecerem neles e, junto a administradores públicos desleixados e desinteressados, talvez nem os percebam sendo diariamente espoliados. O que levaria a esta subtração? O que está subjacente a este seqüestro de nossa memória? Apenas as injunções de nossa economia e a desigualdade social bastariam para dar uma resposta satisfatória? Tudo leva a crer que o descaso das autoridades pela preservação do patrimônio e pela educação de seu povo, se não fornece todas as pistas, tem grande peso para elucidar estas questões. O projeto, em processo desde 2004, nasceu dessas reflexões. Por algum motivo, seja por roubo ou descaso, a população não se identifica com esses bens coletivos. Placas de informação que costumam constar nos pedestais de bustos, estátuas, esculturas e monumentos espalhados pela malha urbana vêm 123


sendo, sistematicamente, subtraídas. Muitos dos monumentos estão descaracterizados, tiveram partes suprimidas, estão danificados, em parte devido aos constantes deslocamentos a que foram submetidos a caminho de logradouros que lhes são estranhos, espremidos no centro do corre-corre da metrópole ou relegados a cantos esquecidos, quase bucólicos. Por abandono ou uma falsa revitalização (uma adaptação às exigências atuais ou ao gosto moderno), ao serem removidos para fora do ambiente para o qual foram concebidos, ficaram dissociados de seu novo entorno sendo assim aniquilado seu sentido simbólico. E há também aqueles que nunca mais veremos (ainda que, em alguns casos, sua ausência tenha uma presença maior que sua materialidade, assegurada, sobretudo, nas lembranças dos mais idosos): foram perdidos, totalmente destruídos ou estão desaparecidos. Meu trabalho consiste em fotografar pedestais vazios e bens públicos danificados, espoliados, sem identificação. Naqueles onde ainda restam vestígios das placas suprimidas – restos de cola, pinos utilizados na sustentação, buracos deixados por parafusos – procuro instalar outra “placa”, ainda que de caráter acentuadamente provisório, em cores vivas, grafada com o nome do projeto – como se fora algo arquitetado, planejado para nos subtrair a memória. Assim, procuro tornar evidente a falta de cuidado e o descaso, por parte dos agentes de governo e dos cidadãos, para com a sua história. Aquilo que um dia foi concebido para homenagear pessoas e fatos marcantes, um constante apelo à lembrança, o reconhecimento por um grande feito ou por uma vida que beneficiou a vida de outras pessoas (ainda que muitos deles não sejam, realmente, dignos de tal distinção – mas isto não importa aqui), tornou-se um tributo, sintomático, ao esquecimento. 124


Com a constante promessa do novo, a cidade vai se consumindo, insensível à destruição desses suportes da memória. A “dança” dos monumentos-errantes leva a uma dissociação de todo e qualquer culto, desconstruindo o esforço que os fez, um dia, serem erguidos. Uma rejeição da história em nome do pragmatismo do mundo moderno. Cristina Freire, a partir de Rosalind Krauss, situa o nomadismo da escultura já no final do séc. XIX, quando sua lógica se tornou incompatível com os princípios do monumento. Incorporando o pedestal à sua estrutura, ela torna-se independente do local de exposição. Thierry Davila recorre à mesma autora, quando afirma que isto se deu, sobretudo, com Rodin, que descolou a obra de todo lugar especial de acolhida, deixando-a livre para a auto-referencialidade, uma autonomia espacial que torna possível circundá-la por diversos enquadramentos.Porém, desta essência nômade inaugurada com a modernidade, o que restaria na “dança” das esculturas públicas e monumentos de Belo Horizonte, dentro da lógica utilitarista, ditada pelo Estado e pelo mercado, que prevalece no marketing urbano? É fato que a essência da escultura moderna diluiu-se ou mesmo perdeu-se. Porém, numa dinâmica própria da criação artística, de sua produção e exposição, novas propostas surgiram a partir de então. O atelier já não centraliza a criação do artista, como outrora. A produção e “vivência” da / com a arte foi pulverizada, ultrapassou as paredes, invadindo as ruas, interagindo ou mesmo surgindo da relação com o ambiente, intensificando suas possibilidades de exibição. Freire acrescenta que nesse mesmo espaço urbano onde tudo é para ser visto rapidamente, [...] "um lugar onde a lei da funcionalidade é cada vez mais naturalizada, há também a possibilidade de interação, tornando-o [...] campo privilegiado para as experiências artísticas coletivas." (FREIRE, 1997: 47) Diferentemente da observação distanciada dos urbanistas, historicamente os artistas o vêm apreciando e com ele se relacionando de maneiras as mais diversas, esporadicamente ou não, como terreno de fantasias, projeções inconscientes, onde se articulam mundo interior e exterior, ou mesmo como campo privilegiado de investigações estéticas, fonte de inspiração e de prospecções sistemáticas, para um trabalho que se dará em seu corpo (da cidade) ou alhures. Esta apropriação da cidade pelos artistas tem sido levada a termo ao longo do tempo e tem 125


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um de seus períodos mais representativos nas décadas de 1960-70 do séc. XX, quando ventos contestatórios que chegam a todos os domínios também afetam o sistema de arte, seus artistas e instituições: alteram-se radicalmente as formas convencionais de fazer arte e de mostrá-la. Os objetos artísticos deveriam se desinvestir da aura de eternidade, da durabilidade e, muitas vezes, de qualquer possibilidade de venda, de ser consumido. Os programas estéticos das novas correntes de arte implicam não apenas uma nova forma de fazer, mas também uma nova forma de mostrar e, conseqüentemente, de ver a arte. Com as novas propostas artísticas, espaços antes impensados (fora das instituições, nas ruas ou em meio à natureza, até mesmo a mais isolada) passam a ser ocupados para a sua realização-exposição. Há um resgate da sensibilidade e da percepção individual (ou uma tentativa dele) invalidando definições apriorísticas do que seja um “público de arte”, pois ela é feita, a partir de então, para quem a presencia ali, naquele momento e lugar. O encontro com a arte é absolutamente casual. Em seu livro, Davila traz um breve histórico das relações estabelecidas, em diferentes épocas, entre alguns artistas e a cidade, suas intervenções e trabalhos artísticos daí decorrentes. Segundo o autor, há uma dimensão plástica no caminhar, e isto se percebe num conjunto de práticas para as quais a travessia física de uma distância espacial constitui ou condiciona a configuração de uma obra. É o que se prenuncia ainda no séc. XIX, com a publicação de certo número de estudos consagrados à deambulação e – numa aproximação processual entre ciência e arte – na cronofotografia de, entre outros, Eadweard Muybridge e Étienne-Jules Marey, que se dedicaram à decomposição do movimento através de fotografias. Mais tarde, no início do séc. XX, a cronofotografia e os estudos do movimento humano exercerão forte influência sobre os avant-gardes, seja nas excursões de dadaístas e nas errâncias surrealistas por Paris, ou na pintura de artistas como Marcel Duchamp (Nu descendo uma escada, 1912) e Giacomo Balla (Menina correndo na varanda, 1912). Em fins dos anos 60 e início dos 70, quando começa a se desfazer a noção de atelier como central de produção, o artista, e não somente o performer, torna-se um indivíduo que tem na mobilidade a sua essên127


cia. Suas andanças, dentro ou fora do espaço citadino, fundam, ou ao menos influenciam, fortemente, suas realizações. Aí estarão os Situacionistas, o grupo Fluxus e os artistas Max Neuhaus, Bruce Naumann, Richard Long e Hamish Fulton (entre outros), ao se apropriarem do caminhar como matéria-prima e ferramenta na elaboração de uma obra de arte. Já nos anos 90 o nomadismo será comum ­nas práticas artísticas. O deslocamento, as evocações e interações que desperta, é cultivado no trabalho de artistas como Gabriel Orozco, Francis Alÿs e o laboratório de arte urbana Stalker, coletivo atuante em Roma. Trata-se do conhecimento do mundo a partir do movimento do corpo no espaço, possibilitando novas assimilações no campo da Arte. Segundo Davila, desse ponto de vista, a figura do turista – aquele que, no melhor dos casos, viajou para ver como o mundo é, aquele para o qual o deslocamento, constitui a identidade – aparece como a ilustração mais flagrante dessa situação estética. Este é, no campo da arte, o destino da deambulação: ela é capaz de produzir uma atitude ou uma forma, de conduzir a uma realização plástica a partir do movimento que ela encarna, e isto além ou em complemento da pura e simples representação do caminhar. Chamados ao LEU Andar, caminhar, passear, flanar, divagar, vagar. Deriva, perambulação, deambulação, errância, deslocamento, trajeto, percurso, prospecção, imersão (física ou introspectiva), distância, espaço, território, mapa, movimento, mobilidade, travessia, transporte, interação... Foram muitos os termos lidos, ditos e postos em prática, individualmente ou nos encontros, experimentos e conversas 128


compartilhados junto a um grupo de trabalho que se dedicou a explorar as possibilidades de discutir e “experimentar” a paisagem. Termos que carregam importantes nuanças para a melhor compreensão dessa experiência humana do atravessamento, sobretudo quando ela se torna uma forma de arte, uma experiência em arte. E, sim, passamos através de, cruzamos, percorremos espaços “vazios”, “inusitados”, “desconhecidos”, “fora de nosso cotidiano”, atentos à inquietação de não nos deixarmos instalar confortavelmente entre as paredes (reais ou virtuais) de um cubo branco. A força que nos movia era a da vontade de interagir, reativar, re-significar, e não apenas a de descobrir, apontar, dar relevo e... depois... deixar de lado. Será que conseguimos? Essa espécie de nomadismo, então, tornou-se o cerne da prática artística do LEU (Laboratório de Expedições Urbanas). Desde o ano passado – e agora abrigado no LEVE (Laboratório de Estudos e Vivências da Espacialidade, PPG-EBA/UFMG) –, passear tornou-se também uma possibilidade de compartilhamento, de se estar junto, de troca e de novas assimilações. Durante minhas prospecções individuais, buscando sugestões de local para uma possível realização do trabalho coletivo a que nos propusemos, encontrei um pedestal vazio em uma praça de Belo Horizonte . Fiz-me fotografar sobre ele, tendo na cabeça uma sacola colorida de feira (numa tentativa de supressão de identidade): um tributo ao caminhante, ao pedestre, a todo aquele que se desloca pela cidade, seja o turista clássico ou o habitante da cidade, também ele, quando desperto, um observador de seu entorno. O trabalho que ora passo a apresentar é um tributo (pois todo monumento é um tributo), passageiro, aos turistas, viajantes, pedestres, estrangeiros, locais, transeuntes, cidadãos, que se dedicam a vagar pela cidade, a se perder nela, a percebê-la e experimentá-la fora da moldura da janela dos automóveis. Nele incorporo os mais diversos “pedestais” encontrados na malha urbana, durante alguns deslocamentos, andando em suas calçadas, observando, fruindo, quando possível, algo que transporta e eleva, mas também aquilo que aponta para onde a escolha humana, de vivermos tão próximos e tão distantes, tem nos levado. 129


Não se trata, certamente, de performances, mas ações de intervenção, provocações. Ele teve início em 2013, em meio às prospecções individuais na cidade e aos subseqüentes percursos do LEU. Esta ação é fruto de algumas reflexões desenvolvidas (ou, antes, deflagradas e sem conclusão) durante e após esses deslocamentos através das cidades de Belo Horizonte e Contagem, situando-se, nesta última, o sítio escolhido pelo grupo (trecho abandonado de linha férrea, próximo à empresa de alimentos Vilma) para o trabalho de encerramento da disciplina, devido à grande potência ali vislumbrada durante as visitas de prospecção. Finalizando, outra questão ainda aflora: Onde se inserem, não somente os monumentos, mas os espaços abandonados das metrópoles? Sua pertinência é inegável, entre outros, no campo da criação, da renovação e da arte. Mas esses locais não estão adequados à nova lógica que se instalou no mundo globalizado, pois eles nunca possuíram ou, em algum momento, passaram a não mais ter uma função (encontram-se esquecidos, subutilizados, inutilizados), não se enquadram, portanto, na lógica produtiva, onde tudo deve ter sua função, sua objetividade. Esses lugares seguirão existindo? Ainda é possível a sua existência? Ou se tornarão cada vez mais restritos, mais raros, menos presentes nas cidades de hoje?

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Monumento ao Turista-Viajante-Pedestre (e variantes)

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Estação Central, Vla Itaú e R. Zezé Camargo - Belo Horizonte e Contagem/MG - 2013

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Vila Oásis Contagem/MG - 2013 Referências: BOTTON,Alain. Trechos de vídeo-entrevista (www.youtube.com); Fronteiras do pensamento (www. fronteiras.com) CALVINO, FREIRE E DAVILA. CALVINO, Ítalo. A velha senhora de quimono violeta, in: Coleção de areia. Tradução de Maurício Santa¬na Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 166. (grifos meus) (DAVILA, Thierry. Marcher, Créer - Déplacements, flâneries, dérives dans l'art de la fin du XXe siècle. Paris: Edition du Régard, 2007.) 133


Rodrigo Valente

Resistências

“Brotam no cimento, crescem onde não deveriam. Com paciência e vontade exemplares, erguem-se com dignidade. Sem estirpe, selvagens, inclassificáveis para a Botânica. Uma estranha beleza cambaleante, absurda, que enfeita os cantos mais cinzentos. Elas não têm nada, e nada as detém. Uma metáfora de vida irrefreável que, paradoxalmente, me faz ver minha fraqueza.”1

1 Trecho do filme Medianeras: Buenos Aires da era do amor virtual. Direção: Gustavo Taretto.Argentina, 2011 . 134


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ktha campagnie: pequenas urbanidades livres

No segundo semestre de 2013, por iniciativa de Elisa Campos, alunos da escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte apropriaram-se do projeto Pequenas Urbanidades Livres (PUL) da companhia ktha.

O que é uma pequena urbanidade livre? É um espaço, geralmente pequeno, abandonado pelo urbanismo, um espaço sacrificado, accessível desde o espaço público, um espaço geralmente inutilizado e inútil. Um vão, um vazio, um rasgo no tecido urbano. Desde uma fenda até uma rotatória, cada pequena urbanidade livre é diferente em tamanho, contexto, estatuto jurídico e visibilidade. Pequenas Urbanidades Livres foi iniciado em 2011 como um projeto coletivo de identificação e apropriação artística desses espaços específicos, em um perímetro de 500 metros em volta do Centro Cultural Confluences, em Paris. Desde então o PUL evoluiu, tornando-se um projeto a longo prazo, encontrando a cada vez 148


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novas zonas urbanas para questionar a relação entre o indivíduo e esses “resíduos” da história urbanística de uma cidade. O PUL pretende compor visões inusitadas e curiosas sobre a cidade, ocupando fragmentos do espaço público com propostas artísticas. Além de levar à criação de um projeto coletivo, um dos desafios é também o de questionar o trabalhar em conjunto, através de um processo de reflexão coletiva sobre as noções de comum e de propriedade no espaço urbano. É um projeto proteiforme, que se renova a cada vez, que segue um processo que envolve várias etapas: LOCALIZAR / CARTOGRAFAR / NOMEAR / CRIAR / COMPARTILHAR. “E pensar que no começo, era uma simples concavidade na parede exterior de um hospital, um buraco para a calha do tamanho de um ser humano, a primeiríssima a primeira pequena urbanidade livre e pensar que logo depois, as encontrávamos por toda parte, nichos, buracos, canteiros, proteções para impedir que a gente sente, ou deite, absurdidades, vazios, grades, rasgos no tecido urbano. e pensar que logo quisemos colecioná-las identificar, colocá-las em um mapa tomar esses micro terrenos baldios e fazer crescer neles novas coisas, apropriá-las e reumanizá-las, resgatá-las do nada e pensar que encontramos 243 em um raio de 500 metros mas não sozinhos uma coleção coletiva a partir de círculos concêntricos, um grupo nasceu e amigos se juntaram a amigos de amigos e seus amigos e outros mais, seguindo os encontros e pensar que fomos 50 compartilhando essa loucura, 50, no mínimo, mais de 100 no final trabalhando juntos para que apareçam de repente, em uma eclosão 39 propostas artísticas dentro de um grande circulo que desenharam raízes no ­concreto.” 1 150


PULs Belo Horizonte P.U.Ls ... L.E.U ... L.E.V.E. A companhia ktha através de Elisa Campos apresentou o projeto PUL a um grupo de estudantes de pós-graduação da Escola de Belas Artes da UFMG. Determinou-se assim um campo e uma metodologia de exploração, a partir de recomendações propostas pela companhia ktha. Os alunos não escaparam de questionar a definição de PUL. O que é uma Pequena Urbanidade Livre ? Será que isso é uma PUL ? Está em um espaço público ou em um espaço privado? O que é um espaço público ? Qual é a história deste lugar? Como ela pode mudar a nossa visão sobre a cidade? Como em outras experiências do projeto, não se tratava de formalizar uma definição final e fechada do que pode ser uma Pequena Urbanidade Livre, mas sim de criar as condições da discussão e troca de ideias em torno dos conceitos envolvidos. Surgiram também, como em outras ocasiões, debates voltados a reconhecer na existência desses objetos urbanos, valores morais, estéticos e normativos antagônicos do tipo certo/ errado, bonito/feio, bem/mal. Esse momento no processo coletivo do projeto PUL é não somente necessário para poder ir mais além de uma discussão e ocupação centradas em juízos de valor, mas também permite revelar que os sentidos dados a esses objetos, e à cidade como um todo, estão construídos 1

Editorial #7, Petites Urbanités Libres 2011, [http://www.

ktha.org/blog/expo/edito-7] 151


por sistemas de valor por um lado comuns, mas também violentamente fragmentários e opostos. Um exemplo recorrente é o dos dispositivos anti-mendigos e outras arquiteturas da exclusão que florescem em todas a grandes cidades do mundo e que são a concretização física de conflitos sociais. Finalmente Pequenas Urbanidades Livres é um pretexto para compartilhar, discutir e inventar novos sentidos à cidade. A cidade de Belo Horizonte é realmente diferente das áreas parisienses exploradas inicialmente pelo projeto Pequenas Urbanidades Livres. O contraste é necessariamente marcante entre Paris e Belo Horizonte, uma cidade por um lado planejada e por outro com todas as características de uma certa urbanização caótica presente em muitas grandes cidades latino-americanas. Nesse sentido, as sobreposições urbanas e arquitetônicas que se ­acumularam desde o final do século XIX deslocaram diretamente a noção de PUL. A meta para os alunos foi de desenvolver um processo de reflexão e apropriação de lugares listados e mapeados para, eventualmente, realizar um dia de exposição de obras de arte no espaço ­público. Cada um escolheria um lugar e proporia um projeto artístico para ocupá-lo. Não é mera casualidade se a metodologia original da companhia ktha de partir de um perímetro circular para explorar e ocupar esses fragmentos da cidade se transformou na ideia criada pelo grupo de um percurso/trajeto. A proposta do LEU, Laboratório de Expedições Urbanas, permite relacionar-se com a cidade com uma apreensão das diversas escalas de Belo Horizonte, desde o 152


minúsculo nicho num muro até os gigantes vãos que deixam os viadutos. É no bairro Cidade Industrial, na fronteira entre Belo Horizonte e Contagem, uma zona extremamente urbanizada, com suas amplas avenidas, construções industriais, e muito árida, ainda que arborizada, que o grupo escolheu para convidar os visitantes a conhecer. O dia de exposição final se transformou no primeiro encontro do LEU. Somos vinte no ponto de encontro na Estação Central. Tomamos juntos o trem em direção de Floramar. Nesse sentido, é uma verdadeira expedição coletiva. Foi também um encontro. Os estudantes, na maior parte artistas bem avançados em uma perspectiva artística pessoal, foram capazes de apropriar-se da PUL, conservando sua própria pro153


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posta seja ela plástica, performativa ou mais conceitual. No final, a experiência ocorreu desde o encontro na estação. Ao longo do percurso foram mostradas as PULs presentes no caminho. As propostas se entreteceram por todo o trajeto. Algumas pontuaram todo o caminho, como o véu bordado cujo fio ocupou diversos pontos, ou a performance na qual corpos se encrustavam nos interstícios que por aí encontravam. E até a poça d'água, pequena urbanidade efêmera, que alguém soube ocupar durante o tempo de uma chuva com barcos de papel. De P.U.Ls nasceu L.E.U que se tornou L.E.V.E. Longues vies et bonnes routes.

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A companhia ktha A ktha é uma companhia de teatro. Suas peças são apresentadas em dispositivos instalados na cidade.(Dentro de containers, caminhões em movimento, no teto de prédios, em subsolos, estacionamentos, no centro de estádios, rotatórias, corredores do metrô...) Os atores se dirigem aos espectadores olhando-os nos olhos, sem desvios, diretamente. Além de suas peças, a ktha também organiza cursos, workshops, laboratórios de investigação ... Ela também produz regularmente formas teatrais curtas, performances, leituras, instalações, exposições ... Nos últimos anos ela começou a explorar a cidade através de projetos coletivos relacionados com o urbanismo, artes plásticas e performance. Em 2011 a Ktha iniciou o projeto Petites Urbanités Libres que continuou em 2013 com estudantes da Escola Nacional de Arquitetura de Paris - La Villette et da pós-graduação em Projetos Culturais no Espaço Público da Universidade de Paris - La Sorbonne. Manter um olhar implicado, militante e curioso sobre o nosso mundo, tentar compartilhá-lo, afiá-lo no encontro.

http://ktha.org http://pul.ktha.org

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Thálita Motta

Corpopresenças/corpoausências nas urbanidades livres - por uma poética urbana encarnada

1. A cidade e o corpo Não seria hoje nos lugares superpovoados onde se cruzavam ignorando-se milhares de itinerários individuais que subsistia qualquer coisa do encanto incerto dos terrenos vagos, dos baldios e estaleiros, dos cais de gare e das salas de espera onde os passos se perdem, de todos os lugares de acaso e de encontro onde se pode experimentar fugidamente a possibilidade mantida da aventura, impressão de que bastará “ver o que aí vem”? (Marc Augé)

Há tempos a cidade deixou de ser apenas um lugar privilegiado para o humano em sua luta de sobrevivência contra as ameaças da natureza – consolidando o abismo que se instaurou no entrelugar da natureza e cultura, sendo hoje cada vez mais evidenciada e praticada como campo de experimentação artística e, nem por isso livre de tensões. 160


O Direito à Cidade de Lefebvre, vem se tornando um grito recorrente entre ativistas, artistas, citadinos e acadêmicos das mais diversas áreas, que se dedicam aos estudos urbanos e questionam sua fragmentação e o impacto, cada vez mais evidente, de um sistema econômico de exclusão do ser e otimização do ter. Diante da sensação de impotência e da necessidade de resistêcia, nos percebemos envoltos em uma grande teia urbana, intimidados por sua arquitetura de verticalização imponente e sua lógica adestradora, pelo peso do concreto na paisagem, pelos fluxos imediatistas e disciplinadores que nos aceleram os passos e o pulso, pela sensação de insegurança que nos força a olhar o outro como potência destruidora de nossos privilégios e, como ameaça à sobrevivência in vitro. A natureza não nos amedronta mais, ainda que reproduzamos as leis da selva. Dentro dessa lógica se encontra o corpo atravessado que, como aponta Lapoujade, não aguenta mais: Primeiro, ele [o corpo] não aguenta mais aquilo a que o submetemos do exterior, formas que o agem do exterior. Essas formas são, evidentemente, as do adestramento e da disciplina. Mesmo nas situações cada vez mais elementares, que exigem cada vez menos esforço, o corpo não aguenta mais. Tudo se passa como se ele não pudesse mais agir, não pudesse mais responder ao ato da forma, como se o agente não tivesse mais controle sobre ele. Os corpos não se formam mais, mas cedem progressivamente a toda sorte de deformações. (...) O “eu não aguento mais” não é, portanto, o signo de uma fraqueza da potência, mas exprime, ao contrário, a potência de resistir do corpo. Cair, ficar deitado, bambolear, rastejar são atos de resistência. (LAPOUJADE, 2012 : 81-90)

A cidade é também o lugar fascinante em que as intensidades se multiplicam e se ampliam, em que o caos se torna poesia e, talvez, por isso ainda o reivindiquemos. O direito à cidade seria um grito que pretende liberar os espaços públicos de sua função atual inteiramente 161


mercadológica, onde o corpo é somente (e por isso também já não aguenta ) mais uma ferramenta, como elabora Cristina Ribas: Um corpo é uma ferramenta na cidade. Usado sob a força do comando que o faz agenciar elementos, valores, mercadorias. Um corpo é como um mapa para uma cidade: só uma ferramenta. Da mesma forma, ao revés indissolúvel, o espaço da cidade é para um corpo o local de sua produção. São elementos de uma equação nunca repetível. Ou sim. Se assim se afirma. A cidade repete o homem porque suporta máquinas de fazer o corpo do homem dentro da proteção e do medo. (RIBAS, 2010: 4, grifo da autora)

O sujeito que vivencia a cidade, como eixo fundamental da práxis artística, tem sido amplamente explorado ao longo do tempo na história das artes, como é o caso do Flâneur de Baudelaire. Da mesma forma ocorre com a ideia de que o percurso indeterminado nas urbanidades é a própria experiência artística, como evocaram os Dadaístas e Surrealistas em suas deambulações e, mais tarde, os Situacionistas com as derivas, ou ainda, no Brasil, os trabalhos/processos 4 dias e 4 noites de Arthur Barrio e Delirium Ambulatorium de Hélio Oiticica, propostas que estreitam as relações entre arte e vida.

2. Das primeiras impressões - Laboratório de Expedições Urbanas O Laboratório de Expedições Urbanas (LEU) consistia inicialmente, ainda em estado de deriva, na ação de caminhar pela cidade sem destino, em que o sujeito que anda e expe162


riencia as situações urbanas, simultaneamente enriquece sua poética pela vivência do processo de criação artística que o acaso, o fluxo, os detalhes, encontros e paisagens urbanas proporcionam. Para que isso fosse possível foi necessário abrir a escuta, uma escuta pelo corpo todo, o que nos leva a outro ritmo, menos habitual nas grandes cidades. O ritmo que os homens lentos – de que fala Milton Santos – vivenciam cotidianamente. Entre os lugares investigados individualmente, um em especial chamou a atenção da maioria dos participantes da disciplina : o bairro Cidade Industrial, localizado na cidade de Contagem,

Vista da passarela do metrô - Cidade Industrial | Fonte: Arquivo pessoal 163


região metropolitana de Belo Horizonte. Como indica o nome, nele se situam indústrias diversas e de grande porte, sendo inaugurado em 1946, via decreto Estadual e desde então tem sido uma região de complexas problemáticas urbanas. Partimos então para uma lenta e pedestre expedição coletiva em direção ao bairro, saindo da Rua Sapucaí, localizada na parte detrás da estação central de metrô, munidos de material para registro e abertos ao percuso por aquela região pouco fruída, sendo muitas vezes uma área evitada ou que evoca a rápida passagem, pelo trânsito intenso, poluição sonora, visual e atmosférica, entre outros fatores que nos condicionam à uma sensação física de desconexão com o espaço referida por Richard Sennett quando disserta em sua obra Carne e Pedra sobre a relação entre o corpo e a cidade ao longo da história: Navegar pela geografia da sociedade moderna requer muito pouco esforço físico e, por isso, quase nenhuma vinculação com o que está ao seu redor (...). O viajante, bem como o telespectador, vivencia o mundo como uma experiência narcótica; o corpo se move de maneira passiva, anestesiado no espaço, para destinos estabelecidos em uma geografia urbana fragmentada e descontínua. (SENNETT, 2010: 17) Lembro-me da sensação de estranheza ao sair da estação de metrô, típico não-lugar ao qual se refere Marc Augé, em que há um padrão de estrutura arquitetônica, dando a impressão de que sempre estamos no mesmo lugar. Entretanto, talvez pela falta de uma conexão histórica ou de alguma outra particularidade do lugar, o fato é que a paisagem que se abria diante de nós, ao sairmos da estação, me surpreendeu por ser completamente diferente das paisagens que o olhar havia se acostumado, gerando um estranhamento que durou um instante, entre o que achava que veria, pela expectativa do lugar habitual e o que se via ali, naquele horizonte industrial e novo para mim, já que resido em Belo Horizonte há pouco tempo. 164


Passado o primeiro deslumbre, porque é, ao mesmo tempo uma imagem que representa uma ferocidade industrial e, é também fascinante por sua estética irresistivelmente particular. Adentramos-nos em seguida pela Vila Itaú, onde desemboca a passarela do metrô, local em que residem famílias, em sua maioria, de trabalhadores das indústrias locais. O estreito caminho que nos conduziria da passarela do metrô até as indústrias se encontrava completamente inundado pela chuva que havia ali desaguado, os moradores nas portas das casas observavam os fluxos da chuva e dos atípicos turistas que provavelmente parecíamos ser, e, talvez fossemos mesmo. Mais tarde descobrimos, em conversa com os moradores, que a vila se encontrava em situação de despejo, em função de obras de contenção por conta do constante inundamento do Córrego Ferrugem, que perpassa toda a vila, como alega o site do governo estadual. Encontramos também um anúncio publicitário colado por toda a região, em que tornava pública a construção de um condomínio no local. Em meio ao intenso caos sonoro dos veículos motorizados, assim como a fumaça espessa produzida por eles, ficou mais evidente do que nunca a relação desencarnada que propõe esse tipo de setorização nas grandes cidades, um lugar que não comporta o corpo, em que o projeto não o considerou, senão, como uma ferramenta de leva-e-traz; o corpo ausente, que se torna, para além da cidade industrial, o próprio corpo industrial, preso em sua função única.

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3. Por uma cidade encarnada : a ação LIMIAR A questão inicial que me moveu em direção à proposta prática para a disciplina – tendo em mente a falência do projeto modernista, a função primordial da cidade neoliberal na otimização do lucro, os espaços públicos cada vez mais privatizados e/ou destinados somente a passagem, o higienismo que não suporta os homens lentos, a “shoppinização” da vida que captura desde as esferas moleculares da nossa subjetividade – foi inspirada em Spinoza: o que pode um corpo (na cidade)? E se desdobra em Lapoujade: o que o corpo aguenta, sofre [na cidade], em sua exterioridade interiorizada? Segundo Lapoujade (2002:81-90), “Um corpo sofre de sua exposição à novidade do fora, ou seja, ele sofre de ser afetado. Como diz Deleuze, um corpo não cessa de ser submetido à erupção contínua de encontros, encontro com a luz, com o oxigênio, com os alimentos, com os sons e palavras cortantes etc.” Ou ainda e, para além, como Cristina Ribas discute em seu artigo acerca da exposição homônima: a cidade repete o homem e/ou o homem repete a cidade? Impregnada dessas questões e, já antes tendo desenvolvido exercícios performáticos perseguindo o mesmo eixo temático – o corpo e a cidade – desenvolvi uma proposta prática junto à bailarina e, também aluna da disciplina, Maria Luisa Fonseca, que trouxesse, por meio das composições do corpo nas frestas e formas que o espaço urbano propõem, um diálogo sobre as potências e vulnerabilidades do corpo e da cidade em situação de comunhão e disrupção. A proposta da ação era de uma simplicidade enorme :1) dois corpos disponíveis para o contato com a rua, 2) espaços permeáveis, praticáveis, lugares cheios de possibilidades, 3) o acaso, 4) os encontros, 5) o improviso 6) a composição. Maria Luisa e eu preenchíamos as frestas que nos evocavam o corpo, as formas nos retorciam. Na proposta de contágio direto com o urbano, o risco da infecção, da afecção e assim fomos nos permitindo ser afetadas.

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4. Das reverberações limiares Entrar em um estado mais intenso de corpo-a-corpo com a cidade nos traz evocações diversas. As evocações provocativas, para mim, são as mais interessantes, já que me deslocam e me desconfortam do lugar, às vezes comum, do qual me rendo em uma ação performática, seja pelo cansaço, por uma interiorização mais intensa, pela distração ou mesmo pelos vícios condicionados ao longo do tempo. No entanto, estar se propondo à rua não permite que esse conforto seja uma constante, ainda bem! É sempre um jogo. Provocamos, mesmo que sem querer, e, é claro, somos provocados. E, sendo provocados, nos intensificamos nas evocações provocativas. Somos atravessados o tempo todo, certamente isso se dá durante toda a vida, não é bem uma novidade. O que acontece nos afetos de um corpo que se dispõe às interrupções e devires da rua é, para mim, o que potencializa tais atravessamentos, alguns de maneira permanente, realmente acessíveis pela memória corporal, outros menos abruptos, mas com uma delicadeza quase perversa, como daquela que vem como ajuda. O fato é que há sempre o risco. Ao finalizar a ação LIMIAR terminanos profundamente atravessadas, sujas, exaustas, impressas, afetadas, infectadas e até mesmo tristes sem saber muito bem o motivo ou por que necessarimente ter um. De todo modo, sinto que é o risco de sair da zona de conforto, de estar completamente vulnerável, que tem o poder de desanestesiar o corpo cotidiano, que não se en167


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volve, que teme o outro, que reproduz, e, ás vezes, se deixa ser máquina, porque simplesmente o automático é mais fácil, limpo e seguro e não deixa de ser confortável. Independente dos enunciados, estar em ação performática na cidade é se despir de um dado corpo-ferramenta, social, maquínico, fantasmático e utópico e se atentar ao máximo às erupções dos encontros, mesmo quando o corpo assim se transveste, é de modo geral, a experimentação de um outro corpo, um corpo outro. Vivenciamos a ação LIMIAR duas vezes, nos dois Laboratórios de Expedições Urbanas que ocorreram, percorrendo o vetor centro em direção à cidade industrial, sendo que o primeiro partimos da Rua Sapucaí e o segundo, por fazer parte da Exposição Cartografias do Comum, partimos do Espaço do Conhecimento da UFMG na praça da Liberdade. Na primeira vez que a realizamos definimos que a veste seria preta, na segunda optamos pelo macacão branco para ambas, a fim de visualizar as impressões da cidade sobre a roupa ao final da ação, inspiradas pela proposta do participante Sávio Reale. O branco uniforme do macacão de serviço alterou o modo como eu percebia a ação, assim como pude perceber que a recepção também se alterou, ganhando camadas de significação que não prevíamos. Há algo de familiar nos uniformes que nos aproximava de algum código ainda indecifrável, o que aguçava a curiosidade de algumas pessoas que encontrávamos pelo caminho. Senti que estavam mais a vontade para isso, para a troca, para a provocação e ajuda. Na segunda edição vivenciei uma aproximação que ao mesmo tempo que poética, foi também desconcertante, inquietando-me profundamente. Eu estava experimentando um corpo-espera, introspectivo, meio dissolvido, encostado em um suporte na plataforma central do metrô, quando uma senhora chegou bem perto de mim, se encostou também, calada, só observando. Com muita familiaridade e doçura ela me disse: ‘Não precisa ficar envergonhada, às vezes eu também me perco pela cidade.’ Não deu muito tempo de reagir e ela entrou no vagão, indo embora. Fiquei com a frase na cabeça, como um mantra soando durante parte do resto da ação, não poderia esquecer, precisava registrá-la, já que estava atravessada por 169


ela. É bem provável que ela tenha me atribuído à alguma loucura institucionalizada, pelo comportamento desviante-passivo, o uniforme branco e a longa espera. Ainda assim, a sua forma de operar, sua alteridade era profundamente devastadora. Em outro momento, quando Maria Luisa e eu investigávamos o trajeto na cidade industrial, logo na descida da rampa do metrô dava para avistar um grande lote com árvores, algumas ruínas, um balanço e vários meninos. Fizeram pose e os fotografamos. Ao voltar do percurso, um deles nos acompanhou até a rampa de subida para o metrô – que dá de vista para o balanço – e nos perguntou sobre a nossa presença ali. Explicamos e o questionamos sobre o que ele achava da desocupação na Vila Itaú. Mais que rapidamente, deu de ombros e nos chamou pra avistar um pé de mamão que se situava próximo ao balanço, apontou e nos disse algo como: “se derrubarem o pé de mamão que meu tio plantou, aí sim eu vou pirar. O balanço então, piro mais ainda.” Conversamos um pouco além, e seguimos pra casa, em ambos os momentos, com o corpo impregnado de presenças e ausências urbanas.

Referências: LAPOUJADE, David. O corpo que não aguenta mais. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo / organizadores Daniel Lins e Sylvio Gadelha. – Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria da Cultura e Desporto, 2002. RIBAS, Cristina. A cidade repete o homem. Revista Redobra. Bahia. N° 8, 2010. Disponível em: <http://www.corpocidade.dan.ufba.br/redobra/r8/jogo-e-catimba-8/a-cidade-repete-o-homem/> SENNETT, Richard. Carne e Pedra. 2a Ed - Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. 170


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Flรกvio Cro

Ensaio fotogrรกfico

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Mostra: O comum e as cidades Espaรงo do Conhecimento UFMG 3 de julho a 3 de agosto de 2014

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Grupo LEVE Alice Costa Souza Leopoldina MG - 1982 Artista visual, graduada em Artes pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em 2005. Mestre pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA-UFMG) com a dissertação “Imagens de Memória/Esquecimento na Contemporaneidade” em 2011. Cursa doutorado na mesma instituição desde 2013 com pesquisa sobre memórias da resistência artística à ditadura no Brasil. Pedro L. de S. Côrtes Belo Horizonte, MG - 1986 Bacharel em Artes Visuais com habilitação em pintura, pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Especialização – Arte Ambiente: Intervenções Urbanas, Instalações e Performance, Arena da Cultura, pelo Núcleo de Formação Artística. Participou de diversas exposições coletivas em Minas Gerais e na Bahia. Drin Cortes vê na arte urbana uma possibilidade de inserir subjetividade no cotidiano do observador e estabelecer uma comunicação direta com seu repertório imagético. Pessoas de diferentes centros urbanos sao figuras recorrentes nas diversas linguagens com que trabalha, como a aquarela, a pintura e o desenho. O graffiti e suas variedades técnicas surgem no percurso do artista como um deslocamento dessas imagens e ampliação dos pensamentos que levam seu trabalho para espaços de cotidianos peculiares, livres e irrestritos.

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Elisa Campos São Paulo, SP - 1964 Artista-pesquisadora, tem participado de exposições coletivas e individuais em várias cidades do Brasil, desde 1991. Doutora em Arte (EBA/UFMG), pesquisando a Materialidade da Imagem na Université Paris 8 – Paris/FR, é Professora Adjunta na Habilitação em Artes Gráficas e na Pós Graduação EBA/UFMG, atuando ainda na Pós Graduação Lato Sensu da Escola Guignard / UEMG. Coordena o Grupo de Pesquisa LEVE – Laboratório de Estudos e Vivências da Espacialidade, dando continuidade a projetos e ações coletivas na cidade. Atuou no Museu de Arte da Pampulha (SMC-PBH), organizando exposições nacionais e internacionais, curadorias do acervo e implantando o núcleo de Arte Educação (1997 /2003). Junto a Benedict Wiertz, implantou também o Projeto Educativo do Instituto Inhotim (2005/2006) - Brumadinho/MG. Fernanda de Morais Sarmento Macruz São Paulo, SP 1954 / Belo Horizonte, MG - 2015 Graduada em Licenciatura em Educação Artística - 1º e 2º graus pela Escola de Música - Universidade do Estado de Minas Gerais (1999), com especialização em Artes Plásticas e Contemporaneidade pela Escola Guignard - Universidade do Estado de Minas Gerais(2002), e aperfeiçoamento com o projeto Elaborando o olhar pela Faculdade de Educação - Universidade Federal de Minas Gerais (2004). Fez aperfeicoamento na obra de Bertold Brecht e o Teatro Épico, na Escola de Belas Artes - Universidade Federal de Minas Gerais (2004).Desenvolveu vários trabalhos na área de Artes, com ênfase em arte-educação, sendo atriz, cenógrafa, brincante, educadora popular, arte mobilizadora e criadora do Grupo Parangole Arte Mobilização.

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Maria Luísa Fonseca Mariana, MG - 1985 Graduou-se em Psicologia, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), em 2012. Em 2014, concluiu o curso de pós-graduação (Lato Sensu) em Dança e Consciência Corporal, pela faculdade Estácio de Sá. Em 2015, concluiu o mestrado na Escola de Belas Artes (UFMG), onde, através de um trabalho teórico-prático pesquisou a temática das imagens, da fotografia, do contexto urbano e a corporeidade. Atualmente trabalha no CRAS (Centro de Referência da Assistência Social), da Prefeitura Municipal de Mariana-MG, com Psicologia Social.

Rodrigo Borges Governador Valadares, MG - 1974 Doutor em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, tem na prática do desenho e da instalação seus campos de pesquisa desenvolvendo trabalhos que buscam uma espacialidade capaz de articular novos sentidos de envolvimento do espectador. Realizou as mostras individuais Caixa Aberta (Galeria EmmaThomas, São Paulo, 2011), Embrulho (Espaço Cultural Cemig Galeria de Arte, Belo Horizonte, 2010), Rodrigo Borges (Centro Cultural São Paulo, 2005), Entre tem Ar (Galeria da Escola de Belas Artes da UFMG, Belo Horizonte, 2005) e participou das coletivas Campo Branco (Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza, 2012), Geometria Impura (Centro de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, 2010-11), Bomserá (Anexo do Museu da Inconfidência, Ouro Preto, 2010), Geometria I_zmpura (Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador, 2009) Resposta (Palácio das Artes, Belo Horizonte, 2008), Fiat Mostra Brasil (Porão das Artes da Fundação Bienal, São Paulo, 2006), Território Museu Mineiro (Museu Mineiro, Belo Horizonte, 2006), Geometrias Impuras (Projeto Amplificadores, Recife, 2006), I Mostra do Programa de Exposições do CCSP (Centro Cultural São Paulo, 2005), Disposição (Palácio das Artes, Belo Horizonte, 2005) Grafias do Lugar (Itaú Cultural Belo Horizonte, 2002) Rumos da Nova Arte Contemporânea Brasileira (Palácio das Artes, Belo Horizonte, 2002) Resposta (Galeria de Arte da Cemig, Belo Horizonte, 2001). Professor da EBA/UFMG, onde cursa o doutorado em Artes Visuais, vive e trabalha em Belo Horizonte. 196


Sávio Reale Rio Doce, MG - 1963 Mestre em Artes Visuais (EBA/UFMG, 2010). Bacharel em Artes Plásticas (Fundação Escola Guignard, 1987) e em História (FAFICH/UFMG, 1987). Professor de Desenho (Escola Guignard/UEMG, 2011-15). Gerente de Artes Visuais (Fundação Clóvis Salgado/Palácio das Artes, 2005-09). Colunista (O Tempo, 1996-05). Departamento de Artes Plásticas (Museu de Arte da Pampulha/MAP, 1999-02 e Núcleo de Informática e Cultura/Instituto Cultural Itaú, 1994-96). Bolsista do governo francês (oficina e estágio em Museologia em instituições museais francesas, 1999).

Thálita Motta Melo Andradas, MG - 1989 Thálita Motta é mestre doutoranda em Artes Cênicas pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Graduada em Artes Cênicas/Licenciatura pela Universidade Federal de Ouro Preto (2011). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Teatro, atuando principalmente nos seguintes temas: performance, corpo, arte/educação, figurino. Faz parte do grupo de pesquisa LEVE - Laboratório de Estudos e Vivências da Espacialidade (UFMG/Cnpq), é membro da equipe que criou e que organiza o Laboratório de Cenas Curtas - A-mostra.LAB e componente do Coletivo Quando Coisa, onde são desenvolvidas práticas e pesquisas em performance, intervenção urbana e teatro performativo, entre outras promiscuidades teoricopráticas da cena. Atualmente está editando a 3ª Edição da Revista Cabaret Filosófico, publicação independente que articula, nesta edição, uma orgia multidisciplinar envolvendo a noção de heterotopias de Michel Foucault.

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Grupo Leve Coordenação: Elisa Campos

Revisão de textos: Elisa Campos, Keila Gonçalves e Alice Santos Projeto Gráfico: Grupo LEVE Tratamento de imagens e diagramação final: Julia Larama, Nathaly Ferreira e Alice Santos Foto Capa: Cristiano Bickel Composição Folha de Guarda: Alice Costa Fotos miolo (fora os ensaios fotográficos autorais): Grupo LEVE Escola de Belas Artes Programa de Pós Graduação em Artes Universidade Federal de Minas Gerais 198


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFMG, MG, Brasil)

L652 LEU : Laboratório de Expedições Urbanas / LEVE - Laboratório de Estudos e Vivências da Espacialidade, [organização]. – Belo Horizonte : Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes da UFMG, 2017. 187 p. : il. ; 19 x 21 cm. Vários autores. Inclui referências. ISBN 978-85-88587-20-5 1. Laboratório de Expedições Urbanas. 2. Arte contemporânea. 3. Espaço urbano. 4. Performance – (Arte). 5. Arte e fotografia. 6. Fotografia. I. LEVE. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Belas Artes. CDD: 709.05

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