PARE OLHE ESCUTE
LABORATÓRIO DE ESTUDOS E VIVÊNCIAS DA ESPACIALIDADE
Escola de Belas Artes - UFMG Belo Horizonte 2016 1
Sumário Pare Olhe Escute
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José Lara Sistematização e ruína
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Thálita Motta A coleção que nenhum outro imita
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Elisa Campos Desenhando formas de habitar a cidade
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Letícia Grandinetti Mapa
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Armando Queiroz Preâmbulo: o atrito, o trem
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Keila Gonçalves Notas sobre o tempo, o lugar a experiência e a alteridade
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Marcelino Peixoto
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Mônica Vaz Habitar a cidade
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Indrid Sá Lee O cotidiano como paisagem
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Rafael Sodré Afectos e perceptos em lugar algum 2
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Mariana Paz Eu não sei onde pousam os seus olhos
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Isadora Bellavinha Le Paysage c’ est comme un visage
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Laís Ferreira Ver so Re ver so Con ver so
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Diego Medeiros experiência LEVE
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Frederico Caiafa Das potências do espaço à transgressão da arte, a cidade como espacialidade
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Laura Berbert Corpo de encosta
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Nélio Costa Acaso e Deriva
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Leonardo Rocha Vivência presencial e digital do espaço-tempo em jogo deambulatório pelas pedreiras de Belo Horizonte.
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Currículos
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Pare olhe escute
Esse foi o recado que ficou reverberando em nós e que permanece a nos inspirar: Pare, olhe, escute. Um pedido de desaceleração, de pausa. Ralentemos o passo, então, e nesse novo tempo constituído, aproveitemos o entorno, as pessoas, as paisagens, os estranhamentos promovidos ao nos permitirmos olhar e escutar. Sentir esse ar que nos envolve, essa cidade que nos fala. Diante da profunda crise política pela qual o país passa, nossas ações, em vários momentos, se deixaram atravessar por discussões e pela necessária imersão nas circunstâncias promovidas por ela. Convocados a reagir, nas expedições que nos propusemos realizar, não pudemos nos furtar a percorrer e ainda que minimamente participar, de algumas das sintomáticas ocupações que se instalaram na cidade. Refletindo a necessidade de encontrarmos formas de resistência e ação, diante das cotidianas perdas, que tem-se acumulado nesse período de incertezas. Trata-se de uma realidade nacional que toca a todos os brasileiros diretamente, e diante da qual, foi difícil não nos sentirmos provocados. Mas outras questões, também muito expressivas, nos mobilizaram nesse encontro, que aliou diferentes percepções e formas de elaborar a experiência de contemplação e diálogo com a cidade. De fato, não somos exatamente ativistas, mas talvez tenhamos o desejo de sermos nós mesmos ativadores, a partir de nossas inquietações e das particulares formas que inventamos para lidar com elas e com o outro. 5
A possibilidade de construir o trabalho coletivo, no próprio percurso de experimentação e vivência, vem de encontro a uma crença que se consolida a cada ano - em práticas desenvolvidas dentro do âmbito acadêmico e das atividades do Grupo LEVE. Buscando as bases teóricas para que essa crença não fosse somente uma intuição isolada, tem sido importante resgatar atualmente, entre outras leituras, à compreensão das reflexões feitas pelo pensador austríaco Ivan Illich (1926/2002). Sua ferina crítica às instituições, em especial à instituição escolar e hospitalar, e o desenvolvimento do importante conceito de “convivialidade”, são alguns dos motivos dessa recente investigação a qual no contexto do LEVE, se revela fértil terreno para experimentar e debater. Por um lado, Illich ataca o sistema escolar, dizendo tratar-se de “ (...) uma das múltiplas instituições públicas que exercem funções anacrônicas, que não se adaptam à celeridade das transformações e que não servem senão à estabilização e à proteção da estrutura social que as produz. » 1 Diante dessa realidade, cabe a nós, artistas e professores, buscarmos na experiência de compartilhamento, tanto dos enfrentamentos cotidianos, como dos projetos e vivências profissionais, além dos desejos peculiares a cada sujeito, as motivações e a energia que movem em direção à pesquisa e à criação. Nessas engrenagens da produção humana, se encontram toda a potência da descoberta e do conhecimento e nesse sentido, cabe então evocar o conceito de convivialidade. Um valor que deveria ser protegido e cultivado em nossa sociedade, afim de conciliar as diferenças ao invés de neutralizá-las, beneficiando-se delas, valorizando a riqueza presente em cada individualidade e em cada grupo social. Uma sociedade convivial, é uma sociedade que oferece ao homem a possibilidade de exercer uma ação mais autônoma e mais criativa, com auxílio das ferramentas menos controláveis pelos outros. »2 A cada semestre o LEVE – Laboratório de Estudos e Vivências da Espacialidade, experimenta novas configurações. A última, vivida durante esse primeiro semestre de 2016, insistiu uma vez mais em colocar-se como disciplina, oferecida tanto à graduação como à pós graduação. Com uma adesão
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GAJARDO, Marcela. Ivan Illich. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.
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ILLICH, Ivan. La convivialité. Paris: Seuil, 1973. pg. 37 6
Pg.12.
de 18 participantes, o desafio que se apresentou, foi a articulação da diversidade de interesses e formações - o que enriqueceu de forma substancial as experiências vividas. A intersecção possível entre a ideia de Grupo de Pesquisa e a condição de disciplina integrada ao Programa de Pós e de Graduação da Escola de Belas Artes UFMG foi algo delineado com os participantes, a fim de descobrirmos o caminho mais interessante e profícuo para todos. No seu terceiro ano de atividades, hoje contamos com integrantes que deram origem ao grupo há três anos atrás, mas também novos adeptos, que se juntaram a essa empreitada de desenvolver um trabalho com começo, meio e fim - na duração pré-estabelecida de um semestre. Ainda que, apostando no que a experiência de contato nos transforma, desdobrando-se para além das atividades realizadas. Sempre pautado pela diversidade de formações, pelo encontro entre profissionais e estudantes, interessados em variadas áreas e linguagens artísticas, o LEVE preserva e defende a liberdade de instaurar espaços que potencializam experimentações práticas e pesquisas teóricas, no desejo de compartilhamento e construção coletiva. Usufruindo de metodologias pouco ortodoxas, nosso interesse reside nas trocas possíveis que podemos ter entre nós e com o espaço em que habitamos, na sua complexidade e riqueza. Podemos tanto nos apropriar do jogo e da sorte, como do enfrentamento com situações que se revelam e nos expõe ao dilaceramento das diferentes camadas da epiderme da cidade. Essa publicação reúne as diferentes respostas à essa vivência comum, instaurada em um semestre de expedições e discussões, ocorrendo tanto através de reflexões teóricas, como de ensaios artísticos e poéticos. Convidamos pois, o leitor, a percorrer tais ensaios e as possíveis provocações, que oferecem em sua diversidade de linguagens e reflexões.
Elisa Campos Primavera, 2016
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José Lara
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Sistematização e ruína
Minas Gerais é o principal estado minerador do Brasil. Segundo dados do IBRAM (Instituto Brasileiro de Mineração), responde por 35% do total da produção mineral do país e é o maior produtor brasileiro de ferro (das 350 milhões de toneladas produzidas no Brasil em 2007, 70% saíram de suas jazidas). Essa questão, relativa à extração mineral no estado, está diretamente ligada à uma memória pessoal de vivência, compondo um plano de fundo para a pesquisa que procurei desenvolver aqui. Durante a infância, observava instigado à movimentação intensa de trens transportando minério de ferro e sempre me perguntava: “Para onde vai a montanha de onde tudo isso é retirado?”. Grande parte da população de Minas Gerais testemunha a transformação progressiva da paisagem do estado, consequente da atividade mineradora. O trabalho começa com expedições por áreas de mineração, nos arredores de jazidas de minério de ferro da região do Quadrilátero Ferrífero. Saindo de carro da zona Centro-Sul de Belo Horizonte, através da BR-040, é possível chegar rapidamente a esses lugares. Já no limite com a cidade de Nova Lima, começam a aparecer as primeiras placas de empresas mineradoras. A movimentação de grandes caminhões cobertos pela poeira das minas, se intensifica à medida em que a paisagem natural, de relevo acidentado, mostra-se exuberante. No trecho da rodovia que vai de BH a Congonhas, assim como no desvio para Ouro Preto, pequenas estradas levam até os diversos complexos mineradores da região, operados por multinacionais e companhias de médio e pequeno porte. Escolho, aleatoriamente, alguma dessas rotas, que me leve próximo a uma mina. Normalmente só, dirijo devagar, observando o ambiente ao meu redor. Fico atento às placas que marcam territórios particulares, que proíbem entrar em determinados espaços, que alertam algum tipo de 10
perigo e que sinalizam o trânsito de máquinas pesadas. Geralmente, em pouco tempo, começo a perceber erosões no solo e interferências abruptas no terreno, que são etapas de preparação para a exploração da mina. Nem sempre consigo observar efetivamente os procedimentos de extração do minério de ferro, pois não possuo nenhum tipo de autorização para avançar os limites de propriedade de cada empresa e acompanhar de perto suas operações. Algumas minas, no entanto, localizam-se no alto de serras e podem ser vistas de longe. Às vezes é possível ver, mesmo que mais afastadas, as instalações onde a matéria mineral é processada e as barragens na quais os rejeitos da mineração são depositados. Constantemente saio do carro - para fotografar todas essas situações que despertam meu interesse. A partir delas, também faço desenhos de observação rápidos, com aspecto de anotações. Outra prática recorrente é a coleta de amostras minerais, parcialmente enterradas nas estradas. Aproveito a parada, para caminhar a procura de novos campos de visões. A pé, costumo acessar áreas proibidas, ultrapassando os cercados colocados pelas mineradoras - para tentar capturar imagens que não conseguiria desde as vias públicas. O impulso humano em sistematizar, dominar e explorar a matéria mineral suscita transformações irreversíveis na paisagem: feridas no solo, esgotamento das serras e o desmatamento. Além disso, a sujeira causada pela poeira avermelhada que se sobrepõe a quase tudo que permanece e passa nesses lugares, placas hostis e enferrujadas, objetos descartados e máquinas barulhentas e poluentes, testemunham ainda mais desdém e destruição. As áreas de mineração, verdadeiros territórios em ruínas, possuem uma atmosfera densa e às vezes fantasmagórica. 11
Essas expedições ativam sensações múltiplas e intensas, que vão da desolação à apreensão. Fico tenso diante da possibilidade de ser visto, perambulando pelas imediações da mina, por algum de seus agentes, pressupondo que um fotógrafo não-autorizado em ação possa representar algum tipo de ameaça ao empreendimento. Enquanto caminho por locais de entrada restrita, a ansiedade aumenta: com dificuldade, procuro ser objetivo. Nesses lugares, o fluxo de caminhões é incessante e todos os condutores olham rapidamente em minha direção, sempre intrigados. A movimentação desses veículos e a atividade de diversas outras máquinas nas jazidas, criam uma ambientação sonora singular: uma sobreposição de ruídos de motores, um apito contínuo e o choque das pás das escavadeiras com a rigidez do minério. A fase seguinte do trabalho, consiste em levar o material recolhido para o ateliê, onde tudo é reconfigurado. Trata-se de um exercício de natureza plástica: em minhas mãos as imagens coletadas e os fragmentos minerais, juntamente com materiais convencionais de pintura - são peças de um jogo operado de forma livre e experimental, de acordo com desejos, intuições e questionamentos pessoais. Os registros – desenhos e fotografias – e as próprias amostras de minério de ferro e outras pedras, são trabalhados através de processos pictóricos. Os minerais coletados, de diferentes formatos e dimensões, têm seus próprios corpos modificados: sobre cada um deles, são aplicadas camadas de tinta acrílica de tonalidades metálicas. Essa nova “pele” tem aspecto plástico, bem característico do material sobreposto, assim como um brilho uniforme. A fatura pictórica acrescentada às pedras – a materialidade da tinta e as marcas de pincel – transforma a aparência natural de cada mineral em 12
algo artificial, claramente modificado pelo homem. Esse vestígio de ação humana é reforçado na apresentação do conjunto: o trabalho é montado em uma mesa, aonde os fragmentos rochosos pintados são dispostos de maneira organizada. Esse trabalho se propõe a pensar sobre a ânsia humana em coordenar, controlar e transformar a matéria rochosa. A série de pinturas faz referência aos registros fotográficos capturados durante os percursos pelos arredores das minas. Além disso, em sua elaboração, o caderno de desenhos/anotações feitos nesses mesmos lugares é constantemente revisitado. Nas pinturas, formas alusivas a minerais são lançadas em espacialidades esvaziadas, às vezes, estruturadas como paisagens aonde permanecem estáticas ou movimentam-se de modo sugestivo. A paleta de cores é restrita às tonalidades metálicas e brilhantes – prata, grafite, chumbo – são novamente privilegiadas, em menção às identificadas no minério de ferro. As manchas e texturas criadas através de experimentações de métodos manuais de impressão com pedaços de embalagens plásticas, testemunham meu envolvimento pleno com o processo pictórico. As imagens desse conjunto buscam recriar, sutilmente, a atmosfera dramática das áreas de mineração visitadas. A princípio, compreendia que as fotografias eram simplesmente registros das expedições. Com o desenvolvimento do trabalho, no entanto, percebi que o conjunto dessas imagens ganhava autonomia na medida em que os pequenos subgrupos iam se formando. Elas procuram conduzir, de modo semelhante à pintura, o clima de decadência dos espaços minerados. Registram situações de interferência humana na paisagem, buscando lamentar o rebaixamento da natureza a um segundo plano. Placas de sinalizações, advertências, proibições e delimitações de propriedades privadas, normalmente, em estado de degradação, declaram o controle do homem sobre determinados territórios. Há uma reincidência de intervenções de máquinas no solo e erosões, que transformam a natureza em cenários inabitáveis. Da mesma forma, as barragens de rejeitos – desertos de resíduos de mineração – reforçam a atmosfera hostil dessas áreas. Além de nutrir desejos pessoais, penso no trabalho como alternativa de compartilhar vivências. Em um exercício de imaginação mineral – semelhante à dos alquimistas em seus devaneios em transmutar metais inferiores em ouro – procuro transformar minhas experiências, convicções e coletas em diálogos com o tempo e o espaço.
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Sem título, 2016 – óleo sobre tela - 50 x 50 cm Página anterior: Sem título, 2015 – óleo sobre tela - 40 x 40 cm Sem título, 2015 – óleo sobre tela - 40 x 40 cm
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Thรกlita Motta
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A coleção que nenhum outro imita
(...) Agora coleciono cacos de louça quebrada há muito tempo. Cacos novos não servem. Brancos também não. Têm de ser coloridos e vetustos, desenterrados — faço questão — da horta. Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaçadas, restos de flores não conhecidas. Tão pouco: só o roxo não delineado, o carmezim absoluto, o verde não sabendo a que xícara serviu. Mas eu refaço a flor por sua cor, e é só minha tal flor, se a cor é minha no caco de tigela.
Lavrar, lavrar com mãos impacientes um ouro desprezado por todos da família. Bichos pequeninos fogem de revolvido lar subterrâneo. Vidros agressivos ferem os dedos, preço de descobrimento: a coleção e seu sinal de sangue; a coleção e seu risco de tétano; a coleção que nenhum outro imita. Escondo-a de José, por que não ria nem jogue fora esse museu de sonho. (C.D. de Andrade – Coleção de cacos)
O caco vem da terra como fruto a me aguardar, segredo que morta cozinheira ali depôs para que um dia eu o desvendasse.
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“O museu é o mundo” já dizia Oiticica, ao sabor do cotidiano incorporado no samba e na ginga dos labirintos urbanos, imensos laboratórios delirantes que são para quem se permite, ambulante, delirar por suas quinas e escorregar nos acasos. Ora, cidades – umas mais que outras – parecem mesmo se tratar de labirintos que, por sua vez, são acasos sucessivos, recortes e brechas de devir. E como labirintos, as cidades tão logo são vertiginosas, por menor que sejam. Ao menos quando são reduzidas à sua potência mais pobre: a da funcionalidade. As cidades modernas, assim como o capitalismo impera, precisam ser funcionais, escoar o lucro, reduzir as complexidades e minimizar a imprevisibilidade, o que não as torna necessariamente mais simples e seguras, eis a tensão nos trópicos. É preciso também sobrepor viadutos sobre todas as cabeças, dar nós em eternos retornos, alargar as pistas até que não caibam pedestres e, se possível até que não existam, o que na prática torna tudo muito mais caótico, mas ainda assim e, por isso mesmo, extremamente lucrativo. Com isso, é preciso manter a sensação de insegurança, sabemos que NADA é mais eficaz que o medo para manter o controle. É preciso estocar o medo. Para tanto, introjetar a ideia de caos. Não é bem verdade que nele reside uma ordem? A quem interessa o caos otimizado das cidades contemporâneas? Como se configuram as paisagens desse caos estratégico, estético e esterilizante que cerceia o corpo? Que o impede de praticar a pólis? A primeira medida foi diminuir as curvas dramáticas e alturas dionisíacas como nas medievais/ barrocas e obter mais objetividade apolínea, ruas em linhas retas e largas, planejadas sem voluptuosidade, como ditou o discreto charme da burguesia protestante: sexy sem ser vulgar. Não é permitido que a cidade modernista seja erótica como foi a medieval/barroca em toda sua errância sagrada. Profana, afinal, nada prática, nada econômica aos nossos fluxos. Sobretudo nas cidades planejadas é possível, como de hábito, traçar o mesmo percurso de sempre. Organizar os próprios fluxos no espaço percorrido de modo a economizar tempo e dinheiro, esforço também, afinal não há espaço para a corporeidade. Tornar a experiência do deslocamento previsível ao máximo e assim tentar dissolver o labirinto. Suspender a sensação do risco. Otimizar, como de hábito, o olhar. Há de ser ver pouco, cada vez menos, para não gastar o interesse nas coisas pequenas e bobas que nos olham em todo canto, o tempo todo. Essas nos assustam, com sua promíscua inutilidade. Como ousam? 22
Olhar apenas para onde convém, desviar o olhar com ainda mais pressa. Respirar só o necessário e deixar o corpo se esforçar menos, o mínimo, pois é preciso funcionar a todo tempo. Viver assim o anti-labirinto, um manifesto não escrito – nem foi preciso – da cidade neoliberal. Viver a utopia do hábito, da não afecção. Esvaziar-se de vertigem. Anestesiar-se por indução. E, por fim, tornar-se também um hábito. Ser um hábito é ter chegado ao estágio máximo de condensação do cotidiano, prensar o desejo até que ele caiba em uma carteira, evitar qualquer contaminação com os desvios de rota, resistir aos encontros vagabundos, aos ventos da preguiça e sobretudo evitar a inércia perigosa da pausa, o que poderia abrir brecha para todas as situações labirínticas que o cotidiano oferece. O acaso acontece quando há fresta, quando há passagem (espaço tempo) e percepção (tempo espaço), ou seja, o acaso acontece na vértebra mais vadia. O que vai de retorno à Hélio Oiticica, ao mundo como museu, à vida como obra, ao cotidiano como linguagem, aos desvios como meta, ao acaso como metodologia, à arte como percurso, à arqueologia como experiência estética, à coleção de cacos de Drummond, seu ouro desprezado.
_A COLEÇÃO QUE NENHUM OUTRO IMITA Primeiro um frasco de plástico azul de pó “royal” amassado, logo depois um mapinha em preto e branco partido ao meio e um escrito em caixa alta: “PERDEU DINHEIRO!”. Bem ao lado um sachê amarelo de mostarda ainda cheio e fechado. Uma buchinha de cabelo marrom. Já mais à frente, perto da construção abandonada, o primeiro jornal e sua manchete na sessão INTERESSA: “Tinta térmica da Nasa pode ser alternativa ao ar-condicionado”. Outro jornal, outra manchete, agora em papel queimado: “TSE reabre ação que pode cassar Dilma e Temer”. Uma lâmpada fluorescente dissolvida até a base. Finalmente um isqueiro. Já perto do CERESP1 um caco de espelho sujo e opaco. Mais adiante, uma caixa de fósforos “Vitória”. Já na Vila Oásis2, nosso eterno retorno, uma lâmpada incandescente e seus reflexos convexos. Uma tomada quebrada cinza lembra um rosto. A fechadura inteira de uma porta, limpa e aparentemente nova. No canto esquerdo, bem discretamente, um telefone desbotado e quebrado. A metade da carcaça de uma lanterna verme1
CENTRO DE REMANEJAMENTO DO SISTEMA PRISIONAL.
2 A Vila Oásis, assim batizada pelo LEVE, é uma pequena faixa de terra arborizada, situada em um trecho da linha de trem na Cidade Industrial em Contagem. Em meio à paisagem do bairro, se apresenta como um “respiro”, um Oásis que de tempo em tempo retornamos, nem sempre intencionalmente. 23
lha. E por último, na saída da vila, um pedaço de papelão, com a frase mais comum e emblemática do universo das embalagens: “cuidado frágil”. Todos os objetos encontrados ao longo do percurs, traçado a pé, eram objetos frágeis ou já violados, expondo sua vulnerabilidade em relação ao humano e ao tempo. Objetos do cotidiano do humano em seu tempo. Resquícios de um tempo e rastros de existência humana. O objeto – esquecido, abandonado, inútil – narrando os sujeitos, seus hábitos e suas manchetes, suas fragilidades. Memória e esquecimento. O fogo e a eletricidade como elementos que, ausentes, operam também no jogo de memória e esquecimento dos objetos.
_O MUNDO, ESSE MUSEU DE SONHO Brincar de escavar a superfície da rua, fotografar o objeto encontrado, revolver e coletá-lo de seu lugar de descarte. Pensar o objeto, mas nem tanto. Ações propostas pela figura do arqueólogo do acaso, aquele que não se esforça muito, não tem tempo ou interesse de escavar profundamente. Interesses vagabundos. Haveria tanto a ser dito sobre os objetos coletados, sobre todo gesto do mundo ali contido, mas a arqueologia do acaso é descomprometida com a narrativa linear do tempo dos homens e seus abandonos precários. Apologia ao monumento mínimo, às narrativas fragmentadas, aos cacos e sua desimportância. O arqueólogo do acaso seria um acumulador dos afetos rompidos entre o sujeito e o objeto? Haveria busca pelo sintoma? Ou já seria profundo demais para quem apenas vaga por entre as coisas, coletando seus desencantos? Seria, portanto, o arqueólogo do acaso, mais um ser distópico por entre as narrativas das coisas? Um vadio, um ladrão, persona non grata, turista de safari urbano, gênero masculino, pós-moderno demais para ser comunista? Quase um dadaísta? Talvez um artista frustrado, colecionador de objetos frustrados, nas imediações que de tão familiares parecem acasos forjados. “A cidade repete o homem3”, gênero masculino. Então deus, homem, à sua imagem e semelhança criou a cidade industrial, nosso lugar de eterno retorno. Território em disputa, mínimas e globalizantes disputas. O arqueólogo do acaso nasceu assim, num espaço do abandono, no museu do
3 Referência ao artigo de Cristina Ribas, disponível em: http://www.corpocidade.dan.ufba.br/ redobra/r8/jogo-e-catimba-8/a-cidade-repete-o-homem/. Acesso em: 08/05/2016. 24
mundo. Entre objetos abandonados à própria imagem e semelhança dos homens esquecidos e ausentes na paisagem, habitando-a o tempo todo assim, desse modo d e s e n c a r n a d o.
_O COTIDIANO, NOSSO OURO DESPREZADO Mas “embaixo” (down), a partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os praticantes ordinários da cidade. Forma elementar dessa experiência, eles são caminhantes, pedestres, Wandersmänner (homens migrantes), cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um “texto” urbano que escrevem sem poder lê-lo. Esses praticantes jogam com espaços que não se vêem, tem dele um conhecimento tão cego como no corpo a corpo amoroso. Os caminhos que se respondem nesse entrelaçamento, poesias ignoradas de que cada corpo é um elemento assinado por muitos outros, escapam à legibilidade. Tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada. As redes dessas escrituras avançando e entrecruzando-se compõem uma história múltipla, sem autor nem espectador, formada em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaços: com relação às representações, ela permanece cotidianamente, indefinidamente, outra. (CERTEAU, 1998, p. 171).
O cotidiano, esse fluxo de cheios e vazios, de um texto urbano configurado a partir dos corpos ordinários da cidade e mediados por temporalidades sobrepostas, como na esteira de Certeau, fica por vezes em nosso imaginário acadêmico como um conceito abstrato, inodoro e envernizado, como na minha própria definição acima. Gosto de pensar também o cotidiano como uma grande e suntuosa tessitura de fios das mais diversas espessuras, materialidades e formas, o que ocasionaria em um sem limites de cruzamentos diversos, assim como possibilitaria pensar em toda tensão dessa costura em rede, em tantas forças que disputam entre si os espaços vazios da teia que não para de se formar e se sobrepor, cada fio em sua velocidade, peso e poder. Os fios do concreto, os fios dos automóveis, os fios dos homens lentos de Milton Santos, dos homens ordinários de Freud, os fios das operações ilícitas no submundo, das putas, dos ambulantes, 25
dos operários, dos velhos que ousam cruzar os grandes centros, os fios das crianças que cada vez menos brincantes nas ruas, os fios do mercado imobiliário, das ações, das especulações, gentrificações, os fios da resistência que persistem em compor essa teia complexa do cotidiano das cidades, alguns mais outros menos visíveis, alguns mais frágeis que outros, alguns mais perenes, outros mais efêmeros, como são os fluxos. Se pudéssemos visualizar essa manta como a um mapa, ou se estendêssemos sobre toda a cidade e sua configuração se alterasse de acordo com os fluxos e poderes, teríamos uma cartografia em movimento daquilo que se afina e se desafina como o cotidiano. Haveria, evidentemente, maior densidade nos grandes centros, por onde os fluxos de citadinos e de capital perfuram com maior vigor essa tessitura, e até mesmo, para nossa surpresa, com maior controle também. É que ali as forças atuantes, muitas vezes imperceptíveis, precisam tornar sempre fluidas as trocas econômicas: a entrega e a pronta entrega, a carga e a descarga, o saque e o depósito, a reserva, o fretamento, o empréstimo, o pagamento da conta, do imposto, da mercadoria, do contratado, da mão de obra barata, da mão de obra especializada, das mãos que fecham negócios da china, da própria China que está em cada canto da nossa existência com seus badulaques que nos possibilitam ter uma vida mais prática, mais plástica e mais descartável. E para tornar todo esse sistema possível, ainda que supostamente caótico, são instauradas as forças biopolíticas, panópticas, das regras tácitas, da ordem e do progresso. Na superfície da cidade parece existir muito mais o império da ordem do que da entropia, como nos habituamos a pensar. O caos parece ser orquestrado sempre com alguma finalidade lucrativa, a curto ou a longo prazo. “Desculpem o transtorno, estamos trabalhando por você” e “Evite transitar nesse local em caso de chuva forte” são pequenas amostras de como tratar transtornos causados pelo planejamento urbano com resoluções institucionais cirúrgicas ou como na segunda, por meio da máxima: quem avisa, amigo é. O que quero dizer é que mesmo a sensação de desordem na cidade é provocada em função de um espetáculo previamente instaurado, mesmo a violência em determinados pontos é orquestrada para manter a lógica pendular de valorização e desvalorização na cidade. A marginalidade é conduzida para agenciar o mecanismo de controle mais barato em nossa sociedade pós-moderna: o medo, ou como diz Bauman: a sensação de insegurança. 26
Poderíamos dizer que a insegurança moderna, em suas várias manifestações, é caracterizada pelo medo dos crimes e dos criminosos. Suspeitamos dos outros e de suas intenções, nos recusamos a confiar (ou não conseguimos fazê-lo) na constância e na regularidade da solidariedade humana. Castel atribui a culpa por esse estado de coisas ao individualismo moderno. Segundo ele, a sociedade moderna - substituindo as comunidades solidamente unidas e as corporações (que outrora definiam as regras de proteção e controlavam a aplicação dessas regras) pelo dever individual de cuidar de si próprio e de fazer por si mesmo - foi construída sobre a areia movediça da contingência: a insegurança e a ideia de que o perigo está em toda parte são inerentes a essa sociedade. (BAUMAN, 2009, p. 2).
O medo é catalizador na medida em que proporciona no imaginário coletivo a sensação de desproteção, típica de uma sociedade com o estado cada vez menor e mais rendido ao capital e sua lógica de desigualdade. Logo, esse vazio é preenchido pela promessa de proteção, tão conhecidamente patriarcal, que cria a doença e vende o remédio: muros, cercas, câmeras, sistemas elétricos em primeira instância. Em segunda instância está o próprio planejamento urbano de ação pendular: o indivíduo só se sente seguro nos lugares em que a marginalidade não mostra cara, ou onde não há aspecto de marginalidade, ou seja, há um verniz, uma ilusão de segurança, mesmo que na prática esteja também vulnerável, mas ali não foi instaurada a sensação de insegurança. O grande exemplo são os fluxos entre centro da cidade e condomínios residenciais fechados. O que há de mais cotidiano do que o medo? São incontáveis as forças que dariam tamanha rugosidade e efervescência para a manta do cotidiano, mas o que realmente comanda a cidade não é sempre tão visível, porque adquire formas múltiplas, apesar de empobrecidas. Aquilo que dá o tom, que molda como uma cidade deve ser resumida está dentro e fora do nosso cotidiano, da nossa tessitura, o grande arquiteto da cidade, como dito num pixo sobre o asfalto, é o capital. Como no filme de Godard4, ele define a rostidade certa para cada paisagem. É ele quem habita a imagem e a desaloja, despeja, remove, revolve, reassenta, perfura. Mas não somente ele. 4
Duas ou três coisas que eu sei dela de 1966, filme trazido ao grupo por Isadora Belavinha, membro 27
Há resistência. Múltiplas. Em planos da arte ou da própria existência que persiste ainda que quase invisível, como num rastro deixado por um caramujo na floresta a atravessar essa lógica tão maciça. São corpos vadios, escritos vadios, imagens vadias que não servem a nada senão ao gesto revolucionário da não funcionalidade. São os fios meio soltos da nossa manta. Nem por isso menos coletivos, menos políticos, menos potentes. São soltos porque se agrupam à sua própria lógica e se dissolvem como tática de não captura. Às vezes, muitas vezes, são capturados. Quase nada é tão escorregadio que não se capture. São modos de ser e estar no mundo que desinventam o cotidiano, criando suspensões temporárias ou mesmo poéticas de uma vida inteira singularizada. Suspendem um cotidiano instaurado, se infiltram nele, em alguma dimensão se tornam também cotidianos, nem que seja enquanto memória. Exemplo: para quem já vivenciou a Praia da Estação5, mesmo nos dias habituais, a praça parece sempre evocar na memória a sua potência outra, o seu novo signo e apropriação. Debaixo do Viaduto Santa Tereza6 não existe nunca um vazio, existe um palimpsesto de acontecimentos históricos para a cultura de resistência em Belo Horizonte. O que sobrevive, ecoando e se multiplicando, ganhando ou perdendo tônus, são heterotopias, espaços de contraespaços, sobreposições conflitantes, real e ficcional numa fricção potente, são espaços outros, para corpos outros. O que se pretende é reinventar o cotidiano, é ser contracultura do fascismo, é ser grão de areia nas engrenagens, habitar a paisagem outra, é festejar para combater pelo brilho. Como questiona Didi-Huberman (2014): “Os vagalumes desapareceram todos ou eles sobrevivem apesar de tudo?”
do LEVE. 5 A Praia da Estação é um movimento de carnavalização performativa que surgiu em 2010 em resposta ao decreto municipal que proibiu eventos de “qualquer natureza” na Praça da Estação. Trata-se de uma ocupação festiva que propõe, sem que haja um líder, a resistência ao projeto neoliberal de cidade que exclui a vivência corporal nas cidades, sobretudo quando não está à serviço do capital e tem se expandido e se multiplicado em outras iniciativas locais. 6 O Viaduto Santa Tereza, assim como a Praia da Estação, vem a ser um espaço de resistência em Belo Horizonte. O viaduto abrigou o Duelo de Mc’s, o Diversas, a Assembleia Popular Horizontal, dentre outros, todos movimentos que afirmam esse espaço como lugar de luta, cada um em sua especificidade. 28
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Elisa Campos
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Desenhando formas de habitar a cidade
Em geral, a heterotopia tem como regra justapor em um lugar real vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis.1 A heterotopia é um livro aberto, que tem, contudo, a propriedade de nos manter de fora.2 Há uma utopia de conciliação da heterotopia, possivelmente essencial à sobrevivência da cidade, na convivência dos estranhos, dos diferentes tempos, das diferentes ocupações, dos persistentes vazios. Há um desejo, ainda que ingênuo, de deixar de ser turista na própria cidade; desejo de enfrentar a própria impotência, diante de uma escala que se agiganta e engole o que está no caminho. Ruína e ruínas. O dejeto, tantas vezes sedutor, espelhando cada um de nós, nosso corpo na cidade. Imagem escancarada do que é vulnerável e frágil, pois que não é natural à cidade o acolhimento. Gosto de constatar que é o Carnaval de BH e o LEVE [Laboratório de Estudos e Vivências da Espacialidade] que tem me possibilitado ampliar roteiros pela cidade, por lugares insuspeitados, curiosos, inóspitos, e quase sempre prenhes de uma estranha beleza. Nas acumuladas expedições, caminhadas, derivas, (e acompanhando blocos carnavalescos) usufruo da desobrigação de produzir situações, obras, intervenções, deixando-me levar pela experiência do confronto e, sobretudo, do compartilhamento. A ideia de uma cidade convivial tem me inspirado, alimentando 1
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico; As heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013. Pg. 24.
2
Idem, pg. 27. 31
o desejo de compreender a caminhada como o próprio lugar da invenção. Uma invenção e reinvenção continuada do conviver, não só com essa diversidade que é o espaço urbano, mas com o outro, os outros, e um outro em mim. É notório perceber como há uma condição urbana na paisagem, qualquer que ela seja, até mesmo nos locais mais selvagens e distantes das cidades. Nossa lógica de produção, tanto espacial como econômica e social é necessariamente urbana e se amolda às castradoras imposições de um sistema financeiro pautado, muito significativamente, por exploração e descarte, tornando quase toda a paisagem, de certa forma, utilitária e instável. Coerente com isso, vemos então configuradas cidades utilitárias, da passagem apressada, do descaso voluntário, da sujeira, do abandono. E é na necessidade de driblar esse incômodo, (medo e fragilidade) que me coloco exatamente nesse espaço, resistindo e avançando, reunindo imagens e restos, souvenirs sem utilidade alguma, sempre cedendo ao vício de colecionar “entulho para poesia” – um gesto felizmente apaziguado pelas palavras de Manoel de Barros 3. Lendo a obra literária de Georges Perec (1936-1982)4, encanto-me com a possibilidade da invenção de estratégias para a criação. Recentemente, uma matéria na Revista Piauí, mencionou exatamente o grupo de literatos fundado por Perec, entre outros escritores: o OuLiPot5. O grupo se reúne desde os anos 60 e faz desde 1997 leituras públicas na Biblioteca Nacional Francesa, tendo o compromisso de submeter suas criações literárias a regras formais: jogos de palavras, palíndromos, poemas de formas fixas ou com restrições variadas e até derivadas de princípios matemáticos. A primeira vez que ouvi falar de Perec foi através de um desses ex-alunos que viram amigos e que passamos a admirar por sua criatividade e pela potência de seus trabalhos. Trata-se de Marco Antônio Motta, que apresentou certa vez, em evento no Museu de Arte da Pampulha, uma leitura inspirada em Perec a qual, de tão literal, emocionou-me, admirada que sou com as insignificân3
Frase de Manoel de Barros em Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Record, 1998. Pg. 28.
4 Escritor francês de verve irônica e crítica, com produção poética, ensaística e literária. Refiro-me aqui a obras específicas cujos títulos são As coisas (1965), Espèce d’Espace (1974),A vida modo de usar (1978). 5 OuLiPot vem da abreviação do nome do grupo Ouvroir de Littérature Potentielle. É possível acompanhar sua produção no site: http://oulipo.net/. 32
cias e vendo na literalidade, ironia e beleza. Marco Antônio lia um texto como performance: um texto sobre a lágrima, acompanhado pelo estímulo do rapé, que aplicava repetidas vezes em seus olhos. O sofrimento era portanto voluntário, mas por fisiológico e jocoso que fosse, fez com que eu chorasse com ele. Recentemente tenho me aproximado mais da obra literária de Perec, e apesar de por vezes achá-la enfadonha com suas litanias e descrições detalhadíssimas, de alguma forma percebia que meu incômodo estava justamente num espelhamento do que tenho sido. Afinal, em variados momentos de minha vida vejo-me entregue a descrições detalhadas de situações, reconhecendo nelas uma possibilidade aberta à reflexão, que permite ao outro avaliar por si e preservar sua própria interpretação dos fatos. Nessa ideia de litania, também se integram as coleções, essas acumulações por repetição que acabam revelando, na submersão que propõem, a busca pelas diferenças por menores que sejam. Das diferenças nascem as classificações, categorias, um encantamento pelas particulares características de cada coisa: selos, pedras, conchas, vidros como seixos rolados e os objets trouvés (objetos encontrados), essas insignificâncias que se destacam na epiderme de uma cidade que tanto tritura, ingere, fagocita - quanto expele, vomita, descarta, seus rejeitos e dejetos, mas também preciosidades. Essa operação de coleta sempre me acompanhou e hoje tenho um enorme acervo de insignificâncias. Um acervo que se tornou o próprio campo aplicado da heterotopia, mencionada acima. Sem classificações, nem registros, que pudessem pelo menos resgatar informações sobre seu local de origem (ou o local de seu encontro com meu olhar). Trata-se de objetos verdadeiramente extirpados da epiderme de várias cidades, cidades que se tornaram anônimas no conjunto formado e que jamais poderiam ser reconhecidas por qualquer das pistas que tais objetos pudessem representar: testemunhos invisíveis de lugares indistintos. Ao serem aproximados, da mesma forma como ocorre em qualquer coleção, entram em outra lógica de presença e diálogo, abrindo reflexões muito expressivas de um universo de valores, de meios, de consumo, de organização e ruína da vida contemporânea. Por uma razão que ainda não desvendei, nas diferentes derivas realizadas com o LEVE, sobretudo na deriva que se tornou matéria desse texto, poucos souvenirs reais recolhi, deixando que a coleta permanecesse somente como imagem (ainda que a operação seja praticamente a mesma): o ínfimo, o dejeto, o precário - levando-me a coletar. Não só pelo estranhamento, mas pelo reco33
nhecimento de narrativas implícitas e inesperadas. As fotos não mostram quase nada... focalizam um objeto largado e de certa forma ilustram o poema que tantas vezes recorro, também de Manoel de Barros, e que faz parte de sua bela publicação “Memórias inventadas 1”: Desobjeto O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente. O pente estava próximo de não ser mais um pente. Estaria mais perto de ser uma folha dentada. Dentada um tanto que já se havia incluído no chão que nem uma pedra, um caramujo, um sapo. Era alguma coisa nova o pente. O chão teria comido logo um pouco de seus dentes. Camadas de areia e formigas roeram seu organismo. Se é que um pente tem organismo. O fato é que o pente estava sem costela. Não se poderia mais dizer se aquela coisa fora um pente ou um leque. As cores a chifre de que fora feito o pente deram lugar a um esverdeado a musgo. Acho que os bichos do lugar mijavam muito naquele desobjeto. O fato é que o pente perdera a sua personalidade. Estava encostado às raízes de uma árvore e não servia mais nem para pentear macaco. O menino que era esquerdo e tinha cacoete pra poeta, justamente ele enxergara o pente naquele estado terminal. E o menino deu para imaginar que o pente, naquele estado, já estaria incorporado à natureza como um rio, um osso, um lagarto. Eu acho que as árvores colaboravam na solidão daquele pente.6
Mas por que passei a fotografar em lugar de recolher os “objetos-pente”, objets trouvés, que se revelaram para mim nesses percursos? Ao reler o poema de Barros, penso que adquiri um respeito pelo abandono em estado puro. E imaginei que aquela era a paisagem que acolheu tal abandono, copulando com os objetos, devorando-os aos poucos... e deixando para mim uma possibilidade sempre nova de vê-los (... ou perdê-los!), na inconstância dessa paisagem, no estado de transformação e potência em que se encontra. Daí a série Devorações, que a cada volta ao lugar que originou tais registros, aumenta e torna as imagens anteriores um arquivo do que já se perdeu.
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BARROS, Manoel. Memórias inventadas: A infância. São Paulo: Planeta, 2003. (III) 34
_1. LINHA DE ÔNIBUS 4031 – UMA EXPEDIÇÃO AO ACASO Jogamos cara e coroa e, de repente, estávamos nós naquele ônibus sacolejante e de destino incerto. Indo e voltando ao ponto de origem, seguindo e repetindo vários trajetos num só trajeto. Seria possível mergulhar nesse desenho traçado por ruas, avenidas e entendê-lo de outra forma? Descartado o sentido da busca de uma rota para atingir um fim, que outras camadas de sentido se descortinam no percurso? Sei que muitas paisagens foram aqui engolidas, rios, árvores e “trilhas do desejo”, que aprendi com Armando, serem os caminhos esculpidos, lavrados pelos passos, em trajetos recorrentes. Outros desenhos soterrados, empilhados no tempo, apagados por cons35
trução e asfalto. O sobre-desenho que me captura, é então a sequência sincopada de nomes, alguns se repetindo no caminho, placas identificando logradouros. Lograr: obter o que se tem direito ou o que se deseja; alcançar, conseguir; usufruir o que se conquistou; gozar, desfrutar.
Copio nas notas de meu celular nome por nome, com a ajuda de Fred, pois o caminho mostra-se cada vez mais labiríntico... e ainda que tenha sido capturada tardiamente, dentre muitas referências de diferentes ordens, chamou-me a atenção tantas personalidades ali homenageadas. Ter o nome identificando uma rua, avenida, praça ou alameda, parece ser uma honraria e faz pensar sobre conquistas, feitos, reconhecimento e merecimento. Há uma rua, na cidade em que meu pai nasceu, que leva o nome de meu avô. Um pai muito amado por seu filho. Mineiro de nascimento, formou-se farmacêutico e tornou-se por duas vezes prefeito dessa cidade do interior paulista. Morreu prematuramente. Tive por tarefa solicitada por meu pai, produzir seu busto a partir de duas fotos em preto e branco, uma de frente, outra de lado. Mas e as costas? Como seria? Enveredei-me na aventura de inventar uma imagem escultórica compatível com as fotos, com a memória de meu pai (e seus traços também), e com as lágrimas que desfocavam meu trabalho, na difícil tradução de meu amor por esse que já sabia da doença que o levaria. A memória é um bem precioso. Toda a experiência que envolveu esse trabalho, incluindo a amarcordiana7 banda de música, chegando na praça da matriz para o descerramento do busto que havia sido coberto com a bandeira da cidade, é um evento que ao mesmo tempo dói e alegra. Uma realização densa, povoada por sentimentos controversos. Hoje, então, o busto em bronze está na praça. Pássaros pousam sobre ele. Sua superfície explicita os anos que já se passaram desde a festa de inauguração. 7 Refiro-me aqui ao filme Amarcord, produção franco-italiana de 1973, do cineasta italiano de Frederico Felinni. 36
Mas por causa dele me pergunto: quem se lembra? Um busto na praça, um nome nas placas a cada esquina de uma rua como tantas outras, outros tantos nomes, outros tantos bustos desconhecidos dos moradores de suas cidades. Esse é outro desenho, um desenho-texto, escrito em letras indeléveis, mas praticamente invisíveis, misturando muitos assuntos, diferentes testemunhos que permanecem corriqueiramente silenciados.
Sobre um mapa de BH, procurei com o auxílio de uma lupa, a difícil leitura das ruas pelas quais passamos de ônibus e lancei-me, não só no desenho desse percurso, como no início de uma pesquisa mais ampla, inspirada certamente em Perec, e que aponta apenas uma das possibilidades de tratar dessa experiência vivida. Desde o início da pesquisa e apurando informações sobre o percurso realizado, sabia da tarefa infinita que encontrava pela frente. Inventando um roteiro genérico para uma possível abordagem
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do caminho8 e reconhecendo-o como um mecanismo de antemão controverso por sua pseudo-objetividade, escolhi a ferramenta mais criticada e execrada pela academia, e que, no entanto, está cada vez mais tornando distantes e vazias as bibliotecas. Através de consultas (e peregrinações intermináveis) na plataforma Google, e sobretudo na Wikipedia, – lugar dos conteúdos duvidosos, editáveis e re-editáveis ad nauseam – fui percorrendo mais uma vez as mesmas ruas da linha 4031 deixando que as ambiguidades, as informações questionáveis, as plurais possibilidades e ausências, criassem seu próprio texto, externando de forma caricata, nossa relação com a internet e a cultura da informação nessa era da comunicação digital. O diário constituído pela pesquisa tornou-se extenso e inexoravelmente incompleto, exigindo outro suporte para ocorrer futuramente, provavelmente, na forma de uma Enciclopédia da Linha 4031, movediça e em processo. Buscando torná-la minimamente acessível aqui, optei por registrar sua estrutura preliminar, além das conclusões inconclusas (primeiros apontamentos) e das imagens sempre profusas.
_ESTRUTURA PRELIMINAR DA ENCICLOPÉDIA ILUSTRADA DA LINHA 4031: I. GEOGRAFIA FÍSICA E POLÍTICA AMAZONAS
BAHIA
AUNENSE RIO GRANDE DO SUL
ZITO SOARES
8 Roteiro genérico para uma possível abordagem do caminho: 1. Quantificar o número de Avenidas, Ruas, Alamedas, Rodovias; 2. Classificar o classificável, distinguir o inclassificável; 3. Pesquisar cada referência identificada nas placas que dão nome às vias percorridas; 4. Levantar as imagens correspondentes; 5. Esboçar possibilidades de interpretação das informações. 38
II. HISTÓRIA NATURAL AMAZONAS
DOLOMITA
IMBIRUSSU
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ZIRCÔNIO
ARISTIDES JUNQUEIRA
ELOY DE MATTOS
BENEDICTO VALLADARES BERNARDO MONTEIRO
III. PERSONALIDADES ADONIAS FILHO
EMÍLIO DE MENEZES
CANDELÁRIA CELSO MELLO AZEVEDO ALFREDO BALENA
ALONSO STARLING ANDRADAS
ESTER AUGUSTA RIBEIRO
ANTÔNIO DE FRANCO
EZEQUIEL DIAS
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FARIAS BRITO
GOVERNADOR BENEDICTO
JUSCELINO KUBITSCHEK
VALLADARES
FRANCISCO SALES
LAFAIETE BRANDÃO LAFAIETE BRANDÃO JOAO BATISTA VIEIRA JOAQUIM GONÇALVES PIMENTA JOSÉ MOREIRA MOTA
LOPES CANÇADO MARIA MILTON CAMPOS PRINCESAS SERJOBES DE FARIA 130 SILVEIRA NETO
GENTIL PORTUGAL DO BRASIL GONÇALVES DE SOUZA
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SOARES NOGUEIRA
OCARA
V. VOCABULÁRIO INDÍGENA
SÓCRATES ALVIM
GOITACAZES
ZEFERINO MOTA
Andarilho do mato, nômade; Índios que viveram no litoral norte fluminense e foram dizimados.
IV. TRIBOS AMAZONAS
GUAICURUS Enseada de sapos;
TAPIRI
Parentes bexiguentos, (tribo de cavaleiros /MT); “Os invencíveis”, habitavam o Pantanal brasileiro e o Chaco paraguaio.
IMBIRUSSU Em Tupi: cipó grosso, corda encorpada;
GOITACAZES
(Bot.) Árvore bombacácea (Bombax cyathophorum), de madeira mole, que cresce, de preferência, nas várzeas, ao longo dos rios ou no fundo dos vales; paina-do-arpoador.
TUPINAMBÁS
Var: embiraçu, imbiriçu, imbiruçu. OCARA (Subst. fem.) Praça no interior de aldeia indígena
GUAICURUS
TAPIRI Palhoça onde se abrigam caminhoneiros; cabana; rio do tapir (anta ou gado)
TUPINAMBÁS Unidos na semelhança Tupi.
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PRIMEIROS APONTAMENTOS: _ 47 vias percorridas; _ Duas vias identificam o país: Amazonas e o inusitado nome “Gentil Portugal do Brasil”. _ 4 tribos foram atravessadas, entre elas três indígenas – Tupinambás, Guaicurus e Goitacazes –, mas nenhum índio foi visto. _ A 4ª tribo? Aquela das Amazonas – mulheres guerreiras, hábeis e destemidas, que buscavam parceiros uma vez ao ano somente para procriarem, matando-os após a fecundação. Chegavam a arrancar um dos seios para tornarem-se melhores arqueiras. _ Essa mesma tribo é um rio (e local onde passamos três vezes). O Amazonas é o maior do país: nasce no Peru, passa pela Colômbia e Brasil, desaguando no Atlântico. Já levou muita madeira, muita riqueza, muito sangue que não estanca. _ Dois minérios, Zircônio e Dolomita, explorados e consumidos também. O primeiro usado em reatores nucleares, ambos aproveitados pela indústria de refratários. _ Uma espécie vegetal o Imbirussu: tanto pode ser cipó como uma árvore que produz paina. _ 6 Vocábulos indígenas: Tupinambás (unidos na semelhança Tupi), Guaicurus (enseada de sapos) e Goitacazes (andar no mato), Imbirussu (cipó grosso), Ocara (praça no interior da aldeia); Tapiri (tipo de oca ou cabana). _ 33 vias homenageiam pessoas. Apura-se que: Entre os célebres e os nem tanto, temos: Princesas, um Presidente, um Governador, um Senador, um Desembargador, um Engenheiro, um Doutor, três Professores e um Padre. Há também três escritores, um advogado - e oito, literalmente, ilustres desconhecidos. Zito Soares é nome que só foi encontrado identificando uma cidade mineira. 43
As origens dos cidadãos homenageados variam, mas a maioria é de Minas Gerais. Entre as 32 pessoas, somente 3 são mulheres, sendo duas possivelmente santas (?!): Candelária e Maria Candelária, da memória indigesta de uma chacina; Maria, da inexplicável maternidade virgem... e Ester Augusta Ribeiro (1884-1963), nome que consta numa lista de mulheres que participaram da resistência ao regime autoritário português, entre 1926 e 1973. Se Ester Augusta Ribeiro, portuguesa, é a mesma que dá nome à rua, não se sabe, e outros cidadãos pesquisados podem também serem somente homônimos. Há ainda as Princesas, no plural, insinuando que, em número, poderiam até mesmo superar os representantes masculinos. Das fotos pesquisadas, é possível dizer o mesmo. Assim, em alguns casos, optou-se pela apropriação de imagens de pessoas diferentes para um mesmo nome. Os desdobramentos vislumbrados aqui, para esse ou qualquer outro percurso, faz crer que a cidade é um acúmulo intrincado de informações, apresentando muitos pontos cegos, dados controversos, com sua infinidade de desenhos possíveis, camuflados, calados, mas sempre à disposição para todo tipo de aproximação e revelação. _“MINHA ESCULTURA IDEAL É UMA ESTRADA”.9 Carl Andre, artista representante do minimalismo americano, rompe com a verticalização da escultura, propondo uma trilha formada por blocos de tijolo refratário , alinhados, que se estendem pelo mato a dentro. O sentido do deslocamento, adquire aqui uma espacialidade crescente, que acaba por desviar a percepção em direção ao ambiente que circunda a obra. Parafraseando Andre, eu diria que minha busca poética atual é uma estrada. Estradas e caminhos compartilhados. Nessa, que foi a quinta expedição realizada pelo LEVE, não posso deixar de mencionar a surpresa ao cumprir o trajeto da linha 4031 – decidido no jogo de “cara e coroa”, saindo do Marco Zero de BH, sem que soubéssemos o destino – que nos levou à Cidade Industrial diante do mesmo local da primeira expedição realizada [Chamando ao LEU] e onde já voltamos tantas 9 Citação feita pelo Prof. Dr. Stéphane Huchet, em aula proferida na disciplina As Artes Plásticas. Espaço Analítico da Arquitetura. Escola de Arquitetura da UFMG, 2000. 44
vezes! Revelou-se assim uma das possibilidades de comprovação da máxima: “todos os caminhos levam à Roma” e para manter a coerência com a pesquisa empreendida, dando continuidade à metodologia aplicada, recorro mais uma vez à internet, consultando a frase que era para mim uma incógnita, mesmo entendendo perfeitamente seu sentido. Finalizo o texto com essa citação, sem SIC, nem conclusão: Quando queremos indicar que todas as alternativas de que dispomos levam para o mesmo lugar ou têm o mesmo resultado, podemos dizer que “todos os caminhos levam a Roma”. E isso nos leva a pensar “gente, mas Roma tinha tanta estrada assim?” e a resposta é: hell yeah. A expressão remonta ao fato de que no século 1, quando o Império Romano era o umbigo do mundo e ia da Bretanha (na atual Inglaterra) à Pérsia (no atual Irã), ele chegou a ter 80 mil quilômetros de estradas. Chamadas de cursus publicus, elas não eram como as que temos hoje e constituíam mais um meio de comunicação do que de transporte, por onde mensageiros levavam ordens de um lado para o outro do império. Avançadas para a época, essas vias, traçadas sempre em linha reta, eram feitas de pedras cortadas e polidas e cimento, mas não resistiram às invasões bárbaras a partir do século 3. Anos depois da queda definitiva do Império Romano do Ocidente, em 476, as pedras foram utilizadas para erguer os castelos medievais.10
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[Imagem da Tábula Peutingeriana, o mapa viário do Império Romano. (Fonte: Wikicommons)] 45
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LetĂcia Grandinetti
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Mapa
O trabalho se constrói na caminhada-pesquisa, que percorre as bordas do bairro Jardim Canadá em Nova Lima, em busca de elementos da vegetação e da mineração que constituem as características de tal região. Durante todo o percurso foram recolhidos fragmentos de pedra e de troncos, flores, folhas de árvores e arbustos que se localizam na fronteira imaginária, apontada por um mapa de um sistema de localização. O desenho das silhuetas dos fragmentos e a fotografia dos mesmos, ao lado de seus registros gráficos, trazem a reflexão do potencial que cada uma dessas formas tem de nos remeter à noção de delimitação de territórios, que, na maioria das vezes, extrapolam o ato da demarcação cartográfica, tanto no mundo físico quanto nos desenhos apresentados. Em quais lugares da imagem e do mundo se localizam essas bordas? Seriam elas linhas de uma pretensa retenção dos movimentos das formas? Demarcadas, inauguram a falsa noção de um dentro e de um fora, incapazes de reterem seus potentes conteúdos que insistem no trânsito, na transformação, na expansão. 49
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Armando Queiroz
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Preâmbulo: o atrito o trem
“José Arcadio Buendía conseguiu por fim o que procurava: conectou a uma bailarina de corda o mecanismo do relógio, e o brinquedo dançou sem interrupção, ao compasso da sua própria música, durante três dias. Aquela descoberta o excitou muito mais do que qualquer das suas empresas descabeladas. Não voltou a comer. Não voltou a dormir. Sem a vigilância e os cuidados de Úrsula, deixou-se arrastar pela sua imaginação até um estado de delírio perpétuo do qual não voltou a se recuperar.” Cem anos de solidão Gabriel Garcia Márquez
O atrito do trem, ferro com ferro. Os mineiros conhecem a Serra dos Carajás. Foram e voltaram. Foram e voltaram. O atrito do trem. Foram e voltaram. Onde estamos o trem também passa. Viaduto, metrô e escuridão de trem de minério. Viaduto, metrô e escuridão de trem de mistérios. Viemos atrás dos mineiros. Também conhecemos a Serra do Carajás. Viemos e voltaremos. Carradas de minérios. Escarradas de minério... escarradas de ferro e pulmão de gente. Gente. Secura que fere as narinas. O mineiro somente é solidário no câncer? Quando os olhos se voltarão aos céus? Faro de vista oca. Ainda hoje o horror-menino ao ver um gato de olho vazado. Deus! Deus, como pode? Como pode, quantos maranhenses atravessarão às avessas a riqueza do sudeste paraense? Desqualificados, humilhados. Viaduto, metrô e escuridão de trem de minério. O atrito do trem, ferro com ferro. O interdito do desejo. O atrito do trem também esmaga. Esmaga também o atrito do trem. Ferro, ossos, ferro. A idade dos ossos. A idade do homem. O aço, o punho, a dor. 55
A forja, a melancolia, o calor medonho. O líquido queimante em brasa. Brasa-brasa-sol-quadriga-de-Apolo-amanhacendo-a-vastidão-da-Amazônia. Mário de Andrade detestou esta pintura. Os mineiros conhecem Serra dos Carajás. Foram e voltaram. O atrito do trem. Foram e voltaram. Conhecem os grandes projetos, as grandes desilusões. O voltar, o ir cabisbaixo dos nossos irmãos maranhenses é a derrota de todo o Brasil. A puta, o menino buchudo, o dito analfabeto. O rude, o brabo. O mesmo rude, o mesmo brabo que vive nas cercanias da rodoviária de Belo Horizonte. Aquele que quer partir, mas não pode. Pode abandonar seus sonhos, não pode. Quer ir, mas quer ficar. Cobertor surrado de sonhos surrados. O Crack, o álcool... dois paralelepípedos enegrecidos sustentam a lata rala do jantar. Dois paralelepípedos. Mais a diante, a pavorosa extorsão da fé dos homens. Teriam visto, os incréus, poetas subirem em viadutos? Uma talagada de cachaça, poesia bruta. Triste o câncer. Triste nossa solidariedade. Triste o atrito do trem, ferro com ferro. Ossos. Ossos sem carne. Ossos sem carne.1 _1. UMA IMAGEM DE TRECHO Inúmeros são os caminhos que levam grupos humanos a saírem de sua terra de origem, fatores como esgotamento dos recursos naturais, catástrofes e mudanças climáticas, outros ainda mais críticos e compulsórios como conflitos armados ou epidemias, sempre exerceram papel fundamental na movimentação do homem desde tempos imemoriais. Além, é claro, do desejo de expansão territorial e acúmulo de riquezas. Menos traumático, contudo não menos radical naquilo que implica em transformações significativas na percepção do vivido, o desejo de conhecimento das coisas do mundo apresenta-se como um dos motivos mais estimulantes para se iniciar alguma jornada, lançar-se para o além do reconhecível. Após o impacto gerado na mentalidade da Europa com o advento das grandes navegações e o contato com povos distantes, o séc. XIX trouxe confundido com o ideário romântico que pairava no antigo continente o impulso exploratório do indivíduo: a busca incessante pelo exótico, pelo inóspito e pelo selvagem que há fora de si mesmo, de sua cultura, a atração pelo diferente. Talvez, um diferente complementar. Diz-se que jamais se retorna o mesmo depois de uma longa caminhada. Agora não mais necessariamente à deambulação de grupos ou nações, é a experimen1 Este pequeno texto foi escrito para a minha esposa Janine em setembro de 2015, logo da minha chegada para fixar residência em Belo Horizonte. Nele estão contidas as primeiras impressões do lugar. 56
tação pessoal que se instala e se faz premente. Para a sensibilidade artística este é o terreno fértil a ser experienciado, experienciado em suas últimas consequências. Como aqui não se lembrar da obra capitular A peregrinação de Chide Harold (1812-1818) de Lord Byron, diante da hediondez das guerras napoleônicas ou A balsa da medusa (1819) de Gericault, em seu drama de esfacelamento de um ideário comum, onde a ordem estabelecida pelas regras sociais se tornam tão frágeis e incapazes de responder ao momento crucial vivenciado por cada um, pelo indivíduo, pela sensibilidade da pessoa. Lísia, Gália, Albion serão suficientes?
Figura 1 – A balsa de Medusa (1819), de Theodore Gericault.
Atravessado o séc. XX amainaram-se os ímpetos aventurescos do romantismo em que o mundo está palmilhado pelos recursos tecnológicos, onde satélites varrem o planeta com seus olhos eletrônicos e a precisão do GPS (Global Positioning System) torna-se máquina de guerra, onde 57
estará a pulsão da experiência do homem-artista? Após a derrocada de ideologias bipolarizadas com a queda do bloco soviético e a aparente hegemonia do capitalismo em sua nova fase, “o capitalismo informacional”, não há mais lugar para grandes narrativas. Restam o fragmento, a fratura. Corrobora com estas perspectivas, o inchaço incontrolável das grandes metrópoles apontando para a falência da cidade modernista em que as figuras baudelairianas do dandy, do flâneur e do boêmio são tragadas pela multidão e parecem não mais fazer sentido como tradutores da sensibilidade artística. Uma imagem de trecho. Uma cidade passageira. Sítios inconclusos. Estamos cegos e vemos, um homem é carregado sobre os ombros de seus iguais. Belo Horizonte à deriva. Deveria estar em Belém rumo à Estrada Nova. Estou aqui entre rochas e concreto, apanho um ônibus desgovernante de sentidos entre meus iguais. Ir sem destino, Alea jacta est. A sorte está lançada, sempre esteve. Minutos inconstantes sacolejam nossos desejos irrequietos. Ir e não ir. Partir e não partir. A sensibilidade colocada à prova do intelecto. Razão. Desrazão. A crível desinteligência das ruas posta em questão. Estamos na TV? Roda-rodopio de tempo e gente dentro do ônibus e conversas trançadas. Quentura e colo. Brisa sem brisa de outono. Tudo é novidade e morre. Tudo é atrativo e vai para o nunca mais. Do centro, da Praça Sete e marco, estamos em Contagem, estamos na zona industrial. Longe, longe demais das capitais. Tráfego intenso, ruelas, vielas. Calor incômodo, suportável para quem nunca abandonará o suor no rosto do norte do país. Vir, ver e não vencer. Estar. Estar, estar. Estar com seus pares, deriva. Nau, negras naus. A urbe é mar aberto e zona de oco. Tudo é paisagem. Tudo é ruína e não cai. Tudo é cemitério, casca de ovo. Muros e montanhas cenográficas. Nada rui porque o cotidiano sustenta a cidade. Uma parada para o lanche e a nota de dez reais é falsa para pagar o cafezinho. O alienado, o indígena, o zero valor atribuído a nós que seguimos entre avenidas que arrastam a riqueza do país. Rio, São Paulo, Minas Gerais. A Amazônia não é o pulmão do mundo: é o enclave moral da última fronteira. Anos nos separam da figura que ainda está nos braços de seus iguais. Terras vermelhas, ferro, pasto, pasto. Pare, escute, veja. _2. O EXPERIMENTAR EM BANDO À beira do abismo, encontramos possibilidade de refletir em oito seções de aula o que se constitui experiência hoje, dentro do que consideramos campo artístico. O que é experimentar na arte? 58
Oportunidade fundamental para se reavaliar e aprofundar as questões que trago para desenvolver reflexivamente na construção da dissertação deste mestrado. Qual é o lugar na academia de alguém que vem do campo do fazer artístico? O ser artista. Qual é o seu lugar de fala? Como se dá a escrita desta experiência, do artista na academia, do artista-pesquisador? Tateamos juntos em sala, à beira do abismo. De pronto consideramos ser impossível uma única definição. O sentido do experimentar é atravessado por óticas epistemológicas distintas, possivelmente complementares: história da arte, crítica da arte, filosofia da arte, a fala do próprio artista, escritos literários, tratados, pensares e fazeres múltiplos alargados no tempo. Sartre, Kaprow, Bataille, serão contramestres. Camadas de compreensão, tracejados complexos que se sobrepõem. Desvelar estes véus, sem romper a sutileza de compreensão deste emaranhado singular, é tarefa árdua e repleta de cuidados. O corte abrupto incidido pela razão pode causar impressões precipitadas e o que está pousando nas mãos e diante dos olhos pode escapar, esvair-se. Mistérios da não-linearidade do pensamento.
Figura 2 – Lâmina-passarinho (1999), Armando Queiroz. 59
O que estará acontecendo neste momento em Serra Pelada? Experientia. Qual é a definição etimológica de experiência? Faz-se necessário levar em consideração a dimensão do perigo, do risco embutido no ato de experenciar. Periculum. O risco como perturbador da ordem já estabelecida. Risco que afeta o ser em sua existência. Prova da existência, andar em bando. Animais quânticos nos apontam saltos. Pombos e seus padrões físicos indicam o momento-situação do salto-entendimento, penas em leque, plumagem. Pare, olhe, escute. Penas, plumagem, momento-situação do salto. Você está lendo e percebe o salto. Algo lá fora permanece, o ruído de carros que passam, uma máquina quebra o calçamento. Contudo, você escuta o que lê e percebe o salto. Mudança de qualidade energética do pensamento é o que apontam os saltos, sala de aula, escritório e casa. Anos 70. Ver e criar paisagens. Onde estão as paisagens? Aonde residem as paisagens? Qual é seu testemunho de existência sensível diante da paisagem, do mundo? “Voava sobre um mar em direção a uma linha áspera da costa (...) A terra fora um lugar onde aprendera muito, é certo, mas os pormenores estavam esmaecidos – qualquer coisa como lutar por comida e ser banido”2. Sim, e as borboletas? As borboletas que nos acompanham e ferem sentimentos. Que ferem e partem sentimentos. Partem, multiplicam-se na latência das larvas e são banidas. O bando bane. Pássaros pousam sobre o gume cortante da linguagem. O bando bane. A radicalidade da linguagem é posta à prova para além das preocupações entre criação e recepção. Há algo além e fora do bando. Algo único, incompartilhável, indivisível. A linguagem 2 BACH, Richard D. Jonathan Livingston Seagull — a story. Rio de Janeiro: Nórdica Editora, 1976. 60
é este fio condutor de rastros. Apenas estes rastros podem ser compartilhados. Testemunhos e rastros. Solidão. “Fui tomado de verdadeiro pânico. Já não sabia aonde ia. Corri ao longo das docas, me enfiei pelas ruas desertas do Bairro Beauvoisis: as casas me viam fugir com seus olhos apagados. Repetia para mim mesmo com angústia: aonde ir? Aonde ir? Tudo pode acontecer”3. Rastro e solidão. A experiência solitária dói aos ossos do entendimento. O bando bane. _3. O CLARÃO DAS MANHÃS Assim disse a borboleta: despeço-me da noite como quem se despede do amanhã. A noite não acompanha o dia, pois não se extingue ao raiar do sol, somente encolhe suas asas sem dar bom dia! Então, tudo é luz cegante, ofuscante. Mesmo assim, ao fecharmos os olhos deparamo-nos com a escuridão que não é dia. Mesmo que tudo em volta garanta claridade, a noite está dentro de mim. Saímos de casa, trabalhamos, somos tragados pelo calor e o brilho excessivo do sol, deslumbre de cor. Despeço-me da noite! Mesmo assim, fecho os olhos ao raiar do dia. Em mim, a consciência de Midas que se quer anti-Midas. Dourada as asas de borboleta batendo sincopadas sob o sol. Cintilantes. Frágeis suas tênues esperanças sob o sol. Pequenino músculo circulatório necessário e vingativo sob o sol. Queda sem plano de queda sob o sol. Rasgos de fantasia, princípio de carnaval sob o sol. Mecanismo propulsor de brilhos e olhares sob o sol. Pó, poeira de vidro sob o sol. Microtensões, sob o sol. Patas douradas, pelos dourados, antenas douradas, pólen dourado. Olhar dourado voltado para o sol dourado. Ouro velho, bater de asas velho, borboleta velha, velha e dourada. Pequenino músculo da manhã dourada. Minhas mãos ainda guardam vestígios de um Midas que não se quer Midas. Que não é Midas. Unhas douradas de uma noite que não findou. Cuidados contigo. Madrugadas e clarão do dia. Aí reside o Midas coletivo. Não aquele que pretende humanizar ouro, que transforma sentimentos em ouro. Ouro alquímico das invisibilidades querentes. Relações que apenas bordejam a indiscrição dos dias e vão habitar num aconchegante lugar distante de todos os olhos, o clarão. Bem-vinda madrugada de sol dourado. Estar em Minas. Pare, olhe, escute.
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SARTRE, Jean-Paul. A náusea. 7. ed. Tradução de Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. 61
Figura 3 – Stencil reverberante localizado nas ruas de Belo Horizonte, 2016.
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_4. ESTAR, EXPERIMENTAR Uma única gota de café pende da beirada do bule, parece uma lágrima negra que não seca. Ela sabia que eles viriam através do frio, do gelo. A quentura nas costas arde, o tempo não passa, passa sem passar. Agruras e Quimeras escarlates. Tecidos desbotados bruxuleiam lentamente os costados. O pano de boca se estende pela baia, o tempo passa e não passa, teso. Pouco vento, muito muito muito tempo. Muitas costas, muito ardor e tempo e tempo. O lodo, a lonjura das terras pagãs. Um terço, um terçado. A margem, à margem da história. Muito muito tempo. Ela sabia que eles viriam através do frio, do gelo. O carteado, o “eme” das mãos, as palmas vermelhas ciganas que eu quis ter tendo de mãe. O enforcado. Ela sabia que eles viriam através do frio, do gelo. Meu pai jogador de carteado. Muito, muito tempo. A quentura nas costas dói, a fivela nas costas dói. O perdão das fivelas. Eu traidor, eu marcado de dor. A praia, marujo, o dependurado, o degolado, o afogado. A ilha, o carro, o hotel-navio. A ponta de pedra, os farrapos vermelhos sob o sol que calcina os ossos. Abandono do corpo. Muitas costas, muito ardor e tempo. O longe o longe o longe. O longe o longe. Uma única gota de café pende da beirada do bule, parece uma lágrima negra que não seca. Bêbados não marcham, diz moribundo o roqueiro. Meu pai era jogador de carteado. Uma imagem de trecho. Uma cidade passageira. Sítios inconclusos. Pare, olhe, escute. Estamos cegos e vemos, um homem é carregado sobre os ombros de seus iguais. Belo Horizonte à deriva. Belém, Estrada Nova, Rochas e concreto. Alea jacta est. O que leva o rio Amazonas a desembocar em outro rio Amazonas. Superfícies em desalinho. Zonas intersticiais. Estar à deriva nos leva a compreender o quão importante é sustentar nossa subjetividade. Este elemento tão dissonante e necessário. Diz-se da potência do vivido, do ato e força da palavra-grão: experiência. 63
Keila Gonรงalves
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Notas sobre o tempo, o lugar, a experiência e a alteridade
Buscarei aqui, refletir sobre as afetações decorrentes de derivas ocorridas pelo bairro Cidade Industrial, localizado na cidade de Contagem e o bairro da Lagoinha, em Belo Horizonte; ambos em Minas Gerais. Descrevo os movimentos internos e externos, o diálogo entre o conhecido e o desconhecido. Assim, aponto percepções, apreensões, interrogações. Por outro lado, também espero proporcionar ao leitor a aproximação entre o eu-observador-participante, o eu-residente, o eu-escritor e o eu-leitor, considerando, portanto, as formas dinâmicas de ressignificações da vida, do lugar, do mundo.
_TEMPO, TEMPO, TEMPO, TEMPO1 Para a maioria de nós, o tempo caminha num ritmo demasiadamente acelerado, desenfreado. É a globalização, alguns dizem. É culpa da modernidade e seus dispositivos tecnológicos, dizem outros. Seja qual for o motivo, é factual que, por vezes, ele, o tempo, torna-se o nosso maior inimigo. Atribuímos tantas responsabilidades a ele, que vivemos num interminável jogo de gato e rato contra o tempo. E, entre “perder tempo”, ser “curado pelo tempo”, “não deixar nada para amanhã”, “tempo é dinheiro”, “não ter como corrigir o passado”, “a pressa ser inimiga da perfeição”, “o tempo não para”, “cada coisa no seu tempo”, “bons tempos”, “o tempo urge” e “dê tempo ao tempo”, nossa relação de amor e ódio é estabelecida. 1
Referência à música “Oração ao tempo”, do cantor e compositor Caetano Veloso. 65
Tic-tac, tic-tac, hora de levantar; tic-tac, tic-tac, vamos almoçar. Tic-tac, tic-tac, tenho que enviar o relatório; tic-tac, tic-tac, a aula vai começar; tic-tac, tic-tac, o dia já terminou. Tic-tac, tic-tac, vivia dizendo o coelho branco de Alice no país das Maravilhas, e embora tivesse bem próximo de si um relógio, estava sempre correndo e dizendo: Ai os meus bigodes... É tarde, é tarde até que arde... Ai, ai, meu Deus, alô, adeus, é tarde, é tarde, é tarde. Não, não, não, eu tenho pressa, pressa... Ai, ai, meu Deus, alô, adeus, é tarde, é tarde, é tarde.2 Ora, pode-se afirmar, portanto, que na realidade ou na ficção, o tempo se esquiva, nos escapa, nos atravessa, nos marca, se finda. Mas, igualmente, ele nos instiga, nos provoca, nos afeta, nos desloca, nos estimula para a lembrança do passado, a experiência do presente e o devir. E, embora nossa tendência seja considerá-lo a partir de uma lógica maniqueísta, bom ou mau, amigo ou inimigo, o tempo é paradoxal, complexo e relacional. Com isso, constato que o tempo não está simplesmente no relógio; encontra-se na experiência, e essa, por sua vez, configura-se nas trocas (com objetos, lugares e pessoas), o que sugere outro lugar, aonde não estou só, não faço só e não existo só. Esse lugar pode ser o do cotidiano, do tédio, da rotina, do ordinário e até mesmo do extraordinário. Lugar do planejado, mas também dos desencontros e desventuras. Afinal, é nos rastros que deixamos e absorvemos, que encontra-se o que entendemos por vida. E “tempo é vida”. Porém, em nossa correria “contra o tempo”, caminhamos numa linha tênue entre a domesticação da vida, seu aprisionamento na engrenagem do tic-tac e a dedicação ao experimentar, compartilhar. Assim, no desejo de controlar o tempo, acabamos podando parte da vida e corremos o grande risco de que ela nos escape entre os dedos, tornando-se desconhecida de nós mesmos. Mas,
2 CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. São Paulo: Martin Claret, 2007. Título original em inglês: Alice’s Adventures in Wonderland (1866). 66
como acompanhar o tempo que nos escapa e experimentar a vida que está associada a este? Segundo Rubem Alves: É preciso escolher, porque o tempo foge. Não há tempo para tudo. Não poderei escutar todas as músicas que desejo. Não poderei ler todos os livros que desejo. Não poderei abraçar todas as pessoas que desejo. É necessário aprender a arte de ‘abrir mão’ – a fim de nos dedicarmos àquilo que é essencial.3
A questão que emerge diante dessa fala é em que ponto nos encontramos na arte de ‘abrir mão’, nos dedicando de fato ao que é essencial? Para respondê-la, se faz necessário partir do pressuposto de que cada indivíduo possui algo que lhe é essencial, logo, cada qual materializa suas significâncias. Diante disso, outra indagação surge: Consideramos – de fato – o outro como essencial? Inclusive esse outro, que não está incorporado em meu cotidiano, que é para mim um estranho? As derivas surgem como uma ferramenta e um exercício de deslocar-me em direção ao outro. Vejo nelas, a potencialidade de transfigurar-me nesse outro e simultaneamente apreendê-lo. É uma tentativa de deixar-me registrada, mas, principalmente, ser
3 1998.
ALVES, Rubem. Tempus Fugit. São Paulo: PAULUS. 109p, 67
capaz de deixá-lo registrar-se em mim. Nessas derivas, o relógio bate em contextos distintos, mas em objetivos semelhantes. Cada percepção responde ao ritmo do relógio e à forma como me coloco nesses lugares. Ao revisitá-los durante a elaboração desse ensaio, eu estou neles e eles em mim.
_LUGAR OUTRO: VILA ITAÚ 4 E COMUNIDADE DA ARENA PITANGUI5 Vila Itaú é uma comunidade que integra a ocupação industrial da cidade de Contagem, localizada a aproximadamente 21 quilômetros do centro da capital do estado, Belo Horizonte. A história do município de Contagem inicia-se no período do Brasil Colônia, quando os “postos de registros”6 configuravam-se como lugar de fiscalização, descanso e negócios. Ao longo dos anos, cresceram plantações de roças e criações de gados em torno de alguns postos. É nesse contexto que surgem povoados, como por exemplo, o arraial de São Gonçalo de Contagem, nome atribuído em homenagem ao santo protetor dos viajantes, São Gonçalo do Amarante e, também, uma referência à contagem das cabeças de gado, de escravos e mercadorias para serem taxadas. Na década de 1930, a cidade passou a ocupar um lugar central no desenvolvimento mineiro, concentrando atividades industriais em uma área específica, apontando o caminho da industrialização. Nos anos 40, foi inaugurado o sistema de distritos industriais que seria gradualmente
4 Dados disponibilizados nos sites: <http://www.doidominas.com.br/2013/07/vila-itau-comunidade-esquecida-e-de.html> e <http://www.folhadecontagem.com.br/portal/index.php/sobre-contagem. html>. 5
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lagoinha_(Belo_Horizonte).
6 Os postos de registros eram locais de fiscalização e registro de todo o movimento de pessoas e mercadorias, cargas e tropas. Ali, os viajantes, mercadores de escravos e tropeiros eram obrigados a parar e, enquanto as mercadorias eram registradas, aproveitavam para descansar, aliviar os animais de suas cargas e também fazer negócios. Como as viagens eram longas, tais postos serviam ainda como referência para abrigo e pernoite. 68
construído em Minas Gerais, ao longo das décadas seguintes. O Parque Industrial, mais tarde denominado Cidade Industrial, é considerado como a primeira e principal medida resultante da nova perspectiva para a região. A narrativa da Vila Itaú e a história da cidade de Contagem se cruzam a partir da instalação da Fábrica de Cimento Portland Itaú e da Magnesita, no ramo de refratários. Assim, a Vila surgiu entre as décadas de 1950 e 1960, sendo construída pelos vários funcionários do estado que vieram para a região a fim de trabalhar na abertura das ruas e do futuro polo industrial.
Quatro Chaminés e Prédio Administrativo da Vila Itaú7 Antiga Fábrica de Cimento Portland Itaú. Nesse local, hoje está instalado o complexo “Itaú Power Center”.
Atualmente, o município possui aproximadamente 2.500 indústrias, cerca de 15 mil estabelecimentos comerciais e mais de 5 mil empresas prestadoras de serviços e além disso, está estrate7 Imagem e texto extraídos do site: http://contagemdasaboboras.blogspot.com.br/2014/03/fabrica-de-cimento-itau-contagem-minas.html 69
gicamente situada na região central de Minas Gerais, facilitando o acesso através das principais rodovias do país. No entanto, passados pouco mais de 50 anos, a Vila Itaú permanece à margem, seja pela falta de saneamento e infraestrutura adequada ou outros problemas sociais que enfrenta. Para além dessas demandas, os moradores se deparam com o projeto de desapropriação, que visa o crescimento do Shopping Itaú Power, resultando em mais uma reprodução da exclusão do direito à cidade. Com uma história similar, a Comunidade da Arena Pitangui localiza-se no bairro da Lagoinha, na cidade de Belo Horizonte, surgiu concomitante à construção da cidade. O bairro nasceu fora dos limites planejados para a nova capital mineira e inicialmente era habitado, em grande parte, por migrantes da região central do estado de Minas Gerais e descendentes de italianos operários que tinham vindo participar da construção da capital. Nesse período, o bairro da Lagoinha era formado por moradores que compartilhavam o mesmo território; diverso culturalmente, rico em manifestações mineiras e italianas. Na década de 1950, o bairro foi reduto de seresteiros, dançarinos e amantes da noite. Assim, embora situado à margem da capital, o bairro Lagoinha era exemplar na agitação do comércio, dos botecos e cinemas. Até os dias atuais é possível observar alguns pontos que narram a história cultural da região. Há, inclusive, um bloco de carnaval e associação que tem o propósito de manter e valorizar as tradições do bairro. Infelizmente, muitos espaços se perderam durante a expansão e “desenvolvimento” do bairro, porém, suas marcas estão presentes na memória dos moradores. Adjacente à Lagoinha encontra-se a comunidade da Arena Pitangui, que tem grande parte da sua história escrita pelos trabalhadores que contribuíram na construção do bairro e que foram fixando residência na região. Entretanto, não é apenas por sua contribuição braçal que identificamos essa comunidade, mas também através da matéria prima utilizada na construção da cidade, retirada da pedreira localizada à margem da arena de futebol. Por sua vez, tanto a Pedreira Prado Lopes quanto a Pedreira da Arena Pitangui, ambas localizadas no mesmo bairro, são relevantes na história da construção da cidade, porém, igualmente, também se destacam pelas desigualdades sociais que se fazem presentes, sendo ainda possível encontrar moradores descendentes dos operários que trabalharam na edificação da cidade. 70
A arena de futebol está sempre ativa, contando com a presença dos amantes desse esporte de várzea. De lá, saíram alguns jogadores que foram contratados para o futebol internacional, ex-moradores da comunidade. Contudo, ainda assim, é possível encontrar contrastes sociais: de um lado o campo, com grama artificial no padrão FIFA, conforme informado no site do clube; do outro, a falta de saneamento básico adequado, barracões precários e pobreza.
O campo com vista para a pedreira.8
O campo com vista para a comunidade da pedreira9.
A situação de precariedade nas duas comunidades, Vila Itaú e Arena Pitangui, reproduzem a lógica de exclusão amparada numa perspectiva que narra a compreensão equivocada de quem “merece” a cidade, perpetuada desde a gênese de Belo Horizonte e realidade que se estende para outras cidades brasileiras. Esse processo de invisibilidade aparenta esquecer que foram as pessoas que ali residem que iniciaram a construção da capital contribuindo com seu trabalho, sua história. A realidade se faz presente em outros pontos, em diferentes territórios, que possuem histórias que, de alguma forma, se atravessam. Ao visitá-las é possível identificar a dura realidade de quem luta cotidianamente para conquistar o seu lugar, participando de uma história que nem sempre valoriza todos os seus personagens. 8
http://www.maisbola.com.br/arena/arena-pitangui
9 http://i1os.com/SANTA_CRUZ_FC_1_X_0_VENDA_NOVA_FC_JOGO_AMISTOSO_CAT_INFANTIL_2012_by_ivan_vieira_da_silva_vieira_silva/wXjZMQ8irDc.video 71
Com isso, nesse texto, além de contar um pouco do que fora vivenciado a partir do contato com os habitantes das regiões visitadas, numa tentativa de expor o que fora apreendido, eu tento dar visibilidade e promover sua importante historicidade, sendo esse último, o desafio maior. _LUGAR OUTRO O “lugar outro”, surge da compreensão de que é impossível dissociar a experiência objetiva da subjetiva, o indivíduo do coletivo, as diversas formas de apropriação do espaço, no sentido cultural, social e político. Sendo assim, o termo é uma estratégia para contar um pouco da história de indivíduos que não estão em evidência, mas são significativos na construção de determinado lugar. Dessa forma, o lugar se constrói – e é construído – a partir de narrativas, mas ele também se constrói a partir do meu olhar, da minha disposição, do meu encontro com quem habita esse local, das interconexões. Doravante, se o tempo em sua aceleração é um impedimento para apreender o outro, por meio das derivas me permite caminhar noutro sentido: “Enquanto o tempo acelera e pede pressa, eu me recuso, faço hora, vou na valsa. A vida é tão rara.”.10 Todavia, ainda assim, minha vista viciada, embaçada pela rotina, exige que eu disponibilize tempo, olhos e ouvidos atentos; vontade de conhecer o outro, dialogar. Nesse sentido, diante do lugar, é preciso caminhar na contramão das múltiplas tarefas cotidianas e do egocentrismo.
10 A música “paciência” do cantor Lenine, foi lançada no álbum “Na pressão”, em 1999,. 72
_EU-COM-O-OUTRO-NO-MUNDO: O EXERCÍCIO DA ALTERIDADE A expressão eu-com-o-outro-no-mundo vem me acompanhando desde 2014 e foi introduzida durante disciplina lecionada pela pesquisadora Marina Marcondes Machado. Em sua trajetória acadêmica, a professora associa esse termo à fenomenologia e às características relacionais, intrínsecas a essa base teórico-metodológica. Segundo ela: Não estaríamos “em relação com”, maneira de dizer que traduziria uma dicotomia ou separação entre eu e o outro, eu e o mundo, mas, antes, estamos mergulhados em relações – somos seres relacionais, no sentido daquele que estabelece vínculo, daquilo que diz respeito a.11.
Embora eu não siga o mesmo caminho teórico-filosófico, faço uso do termo eu-com-o-outro-no-mundo a partir de uma lógica que o aproxime do conceito de alteridade, uma vez que possuo como base metodológica a etnografia. Nesse contexto, a alteridade pode ser entendida como a capacidade de apreender o outro na plenitude de sua dignidade, dos seus direitos, de suas diferenças. Portanto, o conceito não se limita ao campo subjetivo, mas, sobressai-se no sentido de perceber o outro/indivíduo como cidadão, ser político e cultural. Para além disso, reconhecer-se no outro, mesmo que persistam diferenças. Sendo assim, a alteridade surge como uma forma de inserção no universo do outro, numa troca conjunta e enquanto elemento mediador de conflitos. No entanto, como visualizar ou efetivar essa concepção em nossas relações cotidianas? E, como nos amparar nela durante nossa caminhada como pesquisadores, a nos adentrarmos constantemente no universo do outro, do seu bairro, da sua comunidade, da sua casa? Como não vê-los meramente como objeto de pesquisa? Como não visitar o seu espaço apenas para capturar/registrar informações, mas trocar?
11 Citado em nota de rodapé de sua tese “A FLOR DA VIDA / Sementeira para a fenomenologia da pequena infância”, apresentada em 2007, por Marina Marcondes Machado. 73
Antoine de Saint-Exupéry (1943)12 nos responde: “Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram essa verdade, mas tu não a deves esquecer”. Nessa perspectiva, eu devo olhar para o outro com meus sentidos, não apenas com minha curiosidade de sabê-lo. Pare | Olhe | Escute é um convite à alteridade e, as derivas, tentativas de experimentar a alteridade.
EXPERIMENTANDO A ALTERIDADE O primeiro encontro com a “Vila Oásis” 13 foi inicialmente planejado, datado, contendo horário e percurso pré-estabelecido. Para alguns, re-ver; para outros; co-nhe-cer. Era uma terça-feira, especificamente dia 1º de setembro de 2015, e de um ponto de encontro definido, partimos para a vivência. No entanto, a nossa própria experiência já havia se iniciado, individual e coletivamente. No meu caso, sem câmera mas levando comigo post-it (pequenos papéis com verso adesivo), fiz um jogo com verbos (amar; andar; falar...) anotados nos post-it’s e fui deixando meus rastros, conforme ia ocupando os espaços. De lá, poucos vestígios carreguei. Era tudo tão novo, tão abstrato, e paralelamente, tão excludente, que fixei-me nas fragilidades e não nas possibilidades de trocas. Era o tempo acelerado, o medo do erro, a dúvida entre ser individuo, cidadão ou sociedade. Com isso, minha tentativa de apreender o outro, trocar, foi praticamente falida. Como ser sociedade num lugar que narra tantas vulnerabilidades? Por sua vez, o segundo encontro com a “Vila Oásis” deu-se ao acaso a partir da lei da atração. Em outra terça-feira de 2016, rendemo-nos a um percurso desconhecido, sorteado aleatoriamente e deparamo-nos com uma surpresa. Outro ponto de partida, outro trajeto. Mas, eis que no ponto final reconhecemos que estávamos a poucos passos, do mesmo lugar visitado antes, entre mon12
Frase de Saint-Exupèry em “O pequeno príncipe”, livro lançado em 1943.
13 Nome atribuído à Vila Itaú pelo Grupo Leve, ironizando as propagandas publicitárias que informavam sobre a construção do condomínio Oasis, próximo à região visitada. 74
tanhas e avenidas. Contudo, já não era o mesmo, as estações do ano haviam deixado suas marcas, os objetos contavam outras histórias. Sapatos, guarda-chuva, o recado de um espaço no tempo, a necessidade de Pare | Olhe | Escute. Dessa vez tinha em mãos a câmera e a tentativa de capturar o outro em flashes, mas tudo o que eu via era invisibilidade. Não por acaso, contrastava o som da circulação de transportes, quase ensurdecedor, com um silêncio profundo de narrativas de descaso, vidas condenadas pela intolerância do capital. Dessa forma, a câmera não era capaz de capturar o outro. O registro era fragmentado. Surgiram daí algumas questões: Para experimentar é necessário solidão e silêncio? Para experimentar é necessário me render ao lugar, ao seu ritmo? Para exercitar a alteridade é preciso mais do que curiosidade, atenção, é preciso deslocar-me para o outro e ele para mim. A última deriva deu-se com planejamento. Uma oportunidade de revisitar um lugar de convívio, que já fora morada, quando há alguns anos atrás eu residia naquele bairro. Para tanto, procurei reconhecer o outro nas esquinas, nas crianças que brincavam na rua, no varal de roupas limpas a secar, nas escadas com vista para o céu de maio, que ainda se estende por junho. Eu encontrei pistas da alteridade desejada, nas histórias de um fogão à lenha que jaz numa casa de Marias, na saudade de uma filha cuja mãe se foi, nos seus quase 61 anos de moradia e existência. Entre pedras, mina d´água e um acolhimento de abrir as portas, eu conheci mais do que ruas e bairros... Eu entrei em vidas e elas teceram minha existência por mais um dia. Produção bilateral de alteridade. Metodologias e aproximações diferentes em campo, mas, em ambos, a invisibilidade, o papel de figuração atribuído àqueles que constituem a história das cidades, mas que não possuem oportunidades iguais. Por fim, constato que cada deriva foi única, revelando nosso constante processo de metamorfose e as influências decorrentes de encontros e desencontros, de experiências trocadas por meio da fala, do olhar, do caminhar... Em cada deriva, tentativas de alteridade, por vezes frustradas, por vezes conquistadas. E assim caminho: eu-com-o-outro-no-mundo.
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Marcelino Peixoto
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Trabalho 1
Este trabalho é decorrente da proposta do Laboratório de Estudos e Vivências da Espacialidade. Foi concretizado na tarde do dia 12 de abril de 2016. Durante o tempo de 3:30 minutos um percurso é realizado, em ônibus da linha 2102, que perfaz o trajeto do Bairro da Serra ao bairro da Gameleira. Dois instrumentais de registro são utilizados: a câmera fotográfica e o corpo, ambos operando como índices do acontecimento. Corpo e câmera são aqui como suporte e matéria, como o que desenha e como o que registra. Neste trabalho, o Desenho é pensado como um espaço aberto, onde qualquer procedimento operado por um corpo deixa algum resíduo. É, portanto um Acontecimento. Nos dizeres de Roland Barthes, diante do fato Acontecimento sofremos uma iniciação. Cada novo ato, então, resulta em um novo resíduo que cumpre o papel de rearranjar o espaço. Neste jogo, entre corpo e tempo, cria-se um espaço específico que podemos nomear por lugar. Em A sabedoria da arte1, Barthes discorre sobre os desenhos de Cy Twombly sob o ponto de vista do Acontecimento. O filósofo destrincha o grande Acontecimento de uma obra de arte em cinco outros nomes de acontecimentos, tomados da antiguidade grega. Seriam eles o fato (pragma), o acaso (tyche), a finalidade/desfecho (telos), a surpresa/espantamento (apodeston) e a ação (drama). Para Walter Benjamim (Pequena história da fotografia) o traço, ou vestígio/índice é o aparecimento de uma proximidade, por mais distante que esteja daquilo que o deixou. Ou seja, é um conceito fundamentado em relações de contigüidade: o rastro tem a propriedade de evocar a distância BARTHES, Roland. A sabedora da arte. Lo obvio y lo obtuso. Imágenes, gestos, voces. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica. 1986, p. 181-197 78 1
− espacial ou temporal − de tal maneira que a proximidade persista. A ideia da fotografia também como índice é tratado por Barthes no livro a câmara clara, publicado em 1980. Barthes afirma que na fotografia existe uma “[...] teimosia do referente em estar sempre presente [...]”. É justamente pelo viés do vestígio que Rosalind Krauss irá indicar um novo parâmetro de unidade para a arte dos anos 70 caracterizadas pela Ação, pelo Acontecimennto. A fotografia, por seu caráter indicial, teria a potência de dar corpo físico/imagético aos Acontecimentos. No Ensaio Visual aqui apresentado a Ação é o Desenho, que faz tornar visível através das matérias corpo e câmera, o Acontecimento. Local: ponto final do ônibus 2102, no bairro da serra Descritivo: 1 - Armar câmera fotográfica para disparo automático; 2 – Abandonar câmera fotográfica no chão; 3 – Caminhar por 60 segundos em direção contrária a câmera; 4 – Recolher câmera fotográfica e armá-la novamente; 5 – Repetir procedimento 1, 2, 3, 4, 5.
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Trabalho 2
Ação realizada no dia 10 de maio, tendo como ponto de saída a ocupação Tina Martins, e como destino a ocupação popular na praça da Liberdade. Até onde se vai andando para trás Ação XEPA 11 de maio duração: 55 minutos Em silêncio, um homem caminha de costas da rua guaicurus até a praça da liberdade, em Belo Horizonte, MG Fotografias: José Lara
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Mônica Vaz
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Habitar a cidade
Inicio este texto pedindo licença, pois subverterei à ABNT. Conforme anunciado já na primeira palavra deste texto, assumirei a primeira pessoa do singular. Sinto-me à vontade para fazê-lo, uma vez que o LEVE – Laboratório de Experiências e Vivências da Espacialidade – nos estimula a buscar maneiras diversas de expressões plásticas, gráficas e textuais. Apresentarei ao longo deste texto o que significa, de maneira subjetiva, pessoal, habitar a imagem, um dos temas abordados em nossos encontros. Inquieta com a escolha de minha apresentação, não desvendei ou soube prontamente traduzir em poucas palavras o que seria exatamente “habitar a imagem”. Que imagem é essa que habito e sobre a qual devo discorrer em um punhado de linhas e, se julgar necessário, exibi-la? De imediato vem à minha mente que eu deveria falar sobre o meu corpo, morada do meu espírito. Entretanto, não disponho de repertório espiritual e também não tenho interesse em fazer tal apresentação. Olho ao meu redor e me vejo morando em um apartamento que não montei, com móveis claramente escolhidos por um homem de 35-40 anos, com as paredes cinzas. Nada neste lugar evidencia que o habito, exceto pelas roupas no guarda-roupas, alguns apetrechos femininos no banheiro, um pé de tomate que não cresce e um vasinho de flores secas. Na estante (ocupada em grande parte por livros que não são meus) consigo enxergar A invenção de Morel, do argentino Adolfo Bioy Casares1, que li há quase um ano. Não me ocuparei em fazer um resumo do livro e saltarei direto ao desfecho: o narrador solitário se vê imerso em duas realidades/imagens simultâneas – uma real e outra virtual, projetada. Mesmo sendo pertinente para esta apresentação, como eu poderia falar sobre uma imagem que jamais habitei e que é construída somente nesse texto fantástico? Assim, o desejo de falar sobre uma experiência vivida por mim mais uma vez justifica este texto escrito em primeira pessoa. 1
CASARES, Adolfo Bioy. A invenção de Morel. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 85
O livro de Casares me remete à primeira e única vez que fui à Igreja São José, na avenida Afonso Pena. Em uma de minhas perambulações pelo centro de Belo Horizonte decidi subir as escadarias da igreja, que ainda mantinha os andaimes de sua reforma do lado de fora. Ao entrar, não pude conter meu espanto. Tudo naquele espaço é falso! As pinturas nas paredes simulam madeira, pedra. Lembro-me de, em algum lugar, uma pintura simular vitrais (assim como na fachada do Cine Brasil). Uma alternativa barata para representar o real. Como o personagem do livro, eu me vi imersa em uma realidade simulada, irreal, mas muito apropriada para aquele lugar de adoração de um Deus também falso. Dessa forma, sinto-me à vontade e instigada a falar sobre minhas próprias experiências com aquilo que é REAL e não com as representações do real. Em sua tese, Elisa Campos escreve:2 [...] interessa-nos indagar de que forma encarar a imagem, não como uma experiência mais especificamente centrada na bidimensionalidade, mas como um lugar, uma paisagem, instaurando um terreno de envolvimento e experimentação sensível.
A experiência sensível do lugar é subjetiva e única. Penso a respeito desse espaço imersivo que, para mim, produz significados, me instiga e suspende passado e futuro, fazendo com que eu me coloque por inteiro no presente. O que me provoca é a experiência de andar pelo centro de Belo Horizonte, a paisagem urbana que me envolve e a qual habito. Não sou motorista e acho que isso contribui para o olhar atento que tenho dos espaços, das coisas e das pessoas, já que não é necessário que me mantenha constantemente alerta para o trânsito. Ando muito pelas ruas de Belo Horizonte e mais ainda agora, morando muito próximo ao centro. Mesmo assim é inevitável (e isso me causa grande espanto) que me perca ao tentar “cortar caminho” e SEMPRE vá parar na rua Tupis. Sempre. No centro sou anônima, desapareço em meio 2 AMARAL, M. Elisa M. Campos. Observatório: por uma materialidade da imagem na arte. Tese. EBA/UFMG, 2011, p. 271. 86
à multidão de pessoas que vão e vêm, não sei de onde e nem para aonde. Como vouyer, gosto de observá-las e imaginar quem são, o que fazem, como vivem (talvez por isso o trabalho de Sophie Calle3 e o filme Daguerreotypes4 me despertem tanto interesse). Por vezes já acelerei ou diminuí o passo para acompanhar o desfecho de uma conversa. Entretanto, elas me interessam à distância, sem qualquer aproximação, enquanto personagens que crio em minha mente. De perto, não me interesso pelas pessoas. Gosto das características inerentes ao centro e aceito o que, para muitos, são seus “defeitos”: barulho de ônibus, fumaça dos carros, trânsito congestionado, pedras portuguesas mal assentadas nas calçadas, excesso de informações nas vitrines, cheiro de pastel frito às 9h da manhã, revitalização de espaços que duram até a chegada da próxima chuva, lixos nas ruas, caixas de som nas portas das lojas com intuito de atrair clientes, mas que têm o efeito inverso. Gosto, especialmente, das construções com seus andaimes, tapumes e véus cobrindo os prédios que parecem dançar ao vento. Gosto ainda dos postes e muros cobertos por cartazes de propaganda de cartomantes, viagens no réveillon ou carnaval, dentistas... uma sobreposição gráfica que resiste ao tempo, ao sol e à chuva, na qual enxergo grande potencialidade plástica. Meu olhar curioso se interessa por esses aspectos da cidade, encontro beleza naquilo que, para outros, parece banal ou ainda desprezível. Aceito seus fragmentos e ruínas como componentes da paisagem urbana, como elementos que estão em constante
3 Refiro-me aqui a dois trabalhos, especificamente: Suite Venitienne (1979), e The Hotel (1981). 4 DAGUERREOTYPES. Dir.: Agnès Varda. Produção: Ciné-Tamaris. França, 1976. 78min. 87
modificação, são instáveis e efêmeros e, portanto, significantes com significados múltiplos. Oponho-me ao pensamento que os motoristas e transeuntes apressados devam desacelerar, que as memórias arquitetônicas devam ser todas mantidas ou que devamos todos andar a cavalo, de bicicleta ou a pé. Nossa cidade é um reflexo de seus habitantes, que são mal-educados, egoístas, conservadores e desconhecem a própria história. Temos ainda enorme complexo diante da Europa e dos Estados Unidos (como se fossem exemplos a serem seguidos) e queremos importar modelos que acreditamos equivocadamente serem adotados em tais lugares. Vi, recentemente, que a casa onde nasceu Van Gogh, em Ethen, foi transformada em estacionamento. O campo de girassóis que o inspirou ocupa hoje um pequeno espaço dentro de uma rotatória. Vivemos em uma cidade sem identidade, onde os prédios com as fachadas de vidro espelhado azul convivem com construções do início do século passado em ruínas, as lojas abarrotadas de mercadorias que mal cabem em seu interior poderiam ser as que vi em São Paulo ou em João Pessoa, uma “Cidade Genérica”, para citar o texto bastante apropriado de Rem Koolhaas5. Acho curioso perceber como a especulação imobiliária vence sempre em detrimento das pessoas, como ela cria e dita necessidades supérfluas aos habitantes. Para que se consiga vender um apartamento, por exemplo, é fundamental que ele tenha varanda – elemento arquitetônico essencial para aqueles que desejam ostentar certo nível socioeconômico. No entanto, antes mesmo
5 KOOLHAAS, Rem. “A cidade genérica”. In.: Três textos sobre a cidade. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2010. 88
da mudança, o primeiro ambiente a desaparecer na reforma é esse. Quando mantido, só é frequentado pelos moradores raivosos batedores de panelas. Assisti, recentemente, ao documentário Oscar Niemeyer – A vida é um sopro6, e nele, o protagonista, (único arquiteto que o brasileiro parece conhecer) diz: “as cidades não deveriam crescer sem controle. Deviam parar e depois se multiplicar.” Discordo do arquiteto, uma vez que as pessoas são atraídas para as cidades por diferentes motivos (oportunidades de emprego, questões familiares, êxodo rural...) e seu crescimento é inevitável. Não é possível que a cidade se multiplique em outro lugar, fora dela mesma, de modo a criar outras centralidades. Ora, Belo Horizonte cresceu de forma extraordinária, extrapolando o traçado regular original, indo ao encontro de outras cidades que estão ao redor. Sem que percebamos a passagem do tempo ou a mudança da paisagem, estamos em outra cidade em relativamente pouco tempo. Hoje, quando o metro quadrado atinge preços altos, o crescimento é vertical. Cabe aqui uma citação de Koolhaas a respeito da ocupação da cidade: “É estranho que aqueles que têm menos dinheiro habitam o recurso mais caro – a terra – e os que pagam habitem o que é de graça – o ar.”7 Para ele, de maneira simplificada, a ocupação da cidade se dá de duas maneiras: uma vertical, que é legal, e uma horizontal, ilegal. Um dos reflexos da nossa sociedade desigual e desumana posso ver nos muros das casas e prédios. Muito altos e intransponíveis, alguns têm o reforço de arames farpados, cercas elétricas e cacos de vidro. A meu ver, em uma tentativa de suavizar a brutalidade desse elemento arquitetônico, os arquitetos (será por imposição das construtoras?) optam por fazê-los de vidro. Vidro verde translúcido. Sempre. Mais um modismo, mais uma aberração contemporânea belorizontina (não ouso arriscar escrever sobre outras cidades). Penso que talvez essa “suavidade” seja ainda mais brusca ao lançar mão do translúcido, pois quem está do lado de cá, do lado de fora, pode apenas apreciar os jardins artificiais, cuidadosamente aparados e organizados, muitos deles com altas palmeiras (uma tentativa de fazer seus moradores ricos se sentirem em Miami, um artifício para atribuir monumentalidade aos projetos), e jamais transpor essa barreira.
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OSCAR Niemeyer – A Vida é um sopro. A. Dir.: Fabiano Maciel. Brasil, 2007. 90min.
7 KOOLHAAS, Rem. “A cidade genérica”. In.: Três textos sobre a cidade. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2010, p. 43. 89
Ao pensar a respeito dos muros em Belo Horizonte, vem a minha mente o muro de Varsóvia erguido pela Alemanha nazista, em 1940, com intuito de segregar os judeus em um gueto. Imediatamente me lembro de uma notícia de 2009 a respeito da construção de muros no Rio de Janeiro para conter a expansão de favelas. Quase 70 anos após o Gueto de Varsóvia, o “problema” é o mesmo: “aquele que é diferente de mim”, o pobre, “o imundo”, e a solução é exatamente a mesma: segregação por meio de um muro. A humanidade não aprende. É também nos muros onde o negro é humilhado, onde é obrigado a virar-se de costas e colocar as mãos. Seu crime? Não há. Já nasceu suspeito simplesmente por ser negro. Sobre o muro de Berlim, Koolhaas (novamente ele) escreveu um texto curto, mas bastante significativo à ocasião de uma viagem à Alemanha, enquanto estudante ainda nos anos 70. Para o arquiteto, o muro foi: Uma enorme surpresa: o muro era assustadoramente belo. Talvez depois das ruínas de Pompeia, de Herculano e do Fórum Romano, é o remanescente de uma condição humana mais puramente belo, empolgante em sua persistente duplicidade.8
Para o arquiteto sua beleza é diretamente proporcional ao seu horror. É belo não por seu atributo plástico ou arquitetônico, mas por sua potência significante. Os muros são, ainda, lugares de resistência (palavra tão recorrente e necessária aos dias sombrios em que vivemos), por meio de cartazes, palavras e frases de protesto; de manifestações artísticas; das lamentações. Além disso, são testemunhas do tempo, uma espécie de “palimpsesto moderno” e que é dispositivo para a sobreposição de cartazes que, com o tempo, descascam, rasgam e evidenciam o que fora antes colado. Os Novos Realistas rejeitam à representação do real e percebem aí, nos muros descolados, uma enorme potencialidade plástica. Expondo “os doces do Tapume”, a feliz casualidade do manifesto rasgado, Hains nos fazia ver com um olhar novo toda a inefável beleza dos muros da cidade, beleza instável e efêmera, que até então havia fugido à nossa quotidiana capacidade visual estragada pelo acinzentado dos hábitos.9
8 KOOLHAAS, Rem. “Field Trip – A(A) Memoir (First and Last)”. In.: S, M, L, XL. Nova York: The Monacelli Press, 1995, p. 222. 9
RESTANY, Pierre. Os novos realistas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 27. 90
Diferente dos artistas pop, os Novos Realistas apropriaram-se do real de forma mais direta. O gesto da descolagem lança mão do acaso, do não controle sobre o papel ou a composição final, que é exatamente o contrário da colagem. A urgência expressiva identifica-se com a propriação do real, sempre mais direta e mais total. No contexto da expressividade atual, os ready-mades ganham novo sentido: eles traduzem o direito à expressão de todo um setor específico da atividade moderna, o da cidade, da rua, da fábrica, da produção em série.10 Ainda sobre o muro na arte, encontro mais um trabalho que deve ser mencionado: o Arco inclinado, de Richard Serra. A escultura em aço cortava a Federal Plaza de Nova Iorque e restringia o trânsito e a visão dos pedestres. Em 1989, oito anos após sua inauguração, devido a constantes protestos daqueles que trabalhavam nas imediações da praça, a escultura-muro teve que ser removida. No conto “O muro”, de Jean-Paul Sarte, publicado pela primeira vez em 193911, o personagem central, Pablo Ibbieta, descreve suas útimas horas antes da morte por fuzilamento. Ele, ao contrário dos outros dois homens também condenados com os quais divide a cela, aceita gradativamente sua condição, sua morte. Ao longo da noite, Pablo percebe-se indiferente a tudo, ignora seu passado e sua mulher, sente-se anestesiado e impotente diante do final trá10 Ibid., p. 83. 11 1982.
SARTRE, Jean-Paul L. O muro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
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gico que lhe aguardava. Sentia-me cansado e superexcitado ao mesmo tempo. Não queria mais pensar no que ia acontecer de manhã cedinho, na morte. Aquilo não tinha sentido, não encontrava senão palavras, um vazio. Desde, porém, que começava a pensar em outra coisa, via canos de fuzis apontados para mim. Vivi talvez umas vinte vezes seguidas a minha execução; numa delas cheguei mesmo a pensar que o fuzilamento tinha ocorrido; devia ter dormido um minuto. Eles me carregavam para o muro enquanto me debatia; pedia-lhes perdão.12 E mais adiante, ao ouvir os fuzis sendo disparados para executar seus companheiros “Ouvi as salvas a intervalos quase regulares: a cada uma delas eu estremecia. Tinha vontade de urrar e de arrancar os cabelos. Mas cerrava os dentes e afundava as mãos no bolso porque queria continuar firme”.13 No texto de Sartre, o muro representa ao mesmo tempo o encarceiramento dos prisioneiros, a privação de suas liberdades e o lugar da morte por fuzilamento ao amanhecer. É o lugar do desespero, da agonia, do fim de tudo. É também o último lugar do lampejo de resistência, do último grande gesto de um homem forte diante da covardia de seus algozes, da pequena luz emitida pelas lucíolas descritas por Didi-Humerman, em Sobrevivência dos vaga-lumes.14 “Quero morrer de pé.”15 É a convicção final de um homem que encara sua morte. A imagem do muro tem me gerado grande interesse pela profusão de usos e, portanto, de significados, por sua simbologia. Não o muro enquanto representação, mas enquanto construção, edificação, elemento arquitetônico que compõe a cidade, enquanto coisa. Interessa-me, sobretudo, enquanto resistência, seja pelas frases e cartazes políticos, seja como construção que aprisiona ou como anteparo para o fuzilamento de homens e mulheres que se opõem aos poderes opressores.
12 Ibid., p. 23. 13 Ibid., p. 29. 14
DIDI-HUBERMAN, Georges. A sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
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SARTRE, Jean-Paul L. Op. cit., p. 27.
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Ingrid Sรก Lee
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O cotidiano como paisagem
Linhas que nos conectam. Linhas que conectam. Linhas. Contemporâneo. Somos contemporâneos. Somos contemporâneos a tudo. O tudo é agora. Qual é o seu cotidiano? Como é o cotidiano do outro? Eu. O outro. Nós. Cada cotidiano é único. Estrangeiro. Estranho. Somos estrangeiros em nossas próprias cidades. Assim como os outros nos são estranhos.
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Nasci em Belo Horizonte, mas logo em seguida fui morar na capital de São Paulo durante 8 anos. Sou mestiça, meu pai nasceu na Coreia do Norte, e minha mãe é brasileira. Nunca tive contato com a comunidade coreana, nem com sua cultura. Minha mãe, mesmo que tenha sido batizada, nunca me criou cristã, sequer fui batizada, e meus avós da parte materna também não tinham religião; só pisei em uma igreja aos meus 17 anos, por curiosidade - e não gostei muito. Não fui criada de forma tradicional de nenhum dos lados. Cresci na metrópole, em meio a prédios, o meu contato com o resto do mundo se dava pela TV, vivia no mundo paralelo da fantasia, dos desenhos animados e brinquedos, andava de bicicleta de rodinhas no carpete - só fui aprender a andar aos 18 anos. Aos 8 anos, mudei para Belo Horizonte, onde reside boa parte da minha família materna. Morei na região do Barreiro, onde comecei a estudar em escolas públicas a partir da 4ª série até o fim do meu Ensino Médio, residindo no bairro até os meus 20 anos. Em 11 anos morando em BH, somente nos últimos 2 anos, junto com o período em que entrei na faculdade, que comecei a realmente descobrir a cidade e juntar os fragmentos. Para mim, Belo Horizonte é como um quebra-cabeças, o qual fui completando ao longo dos anos. Cada canto da cidade complementa o outro, sanando questões recorrentes de “como eu vim parar aqui?”, “onde fica aquele lugar?” e “como chegar até lá?”. Quando estou num ônibus, gosto de me sentar do lado da janela para observar a paisagem em movimento. Coleciono detalhes para compor minha memória, como os pedestres, lojas, letreiros, ruas. Quando era adolescente, aos 15 anos, descobri minha deficiência auditiva - que havia piorado ao longo dos anos e comecei a usar aparelhos auditivos. Junto a isso, consegui um cartão de passe-livre para ônibus municipais., que usei algumas vezes, por mera preguiça de voltar para casa a pé, subindo todos aqueles morros. Mesmo que ainda fosse mais demorado, pois eu tinha que pegar dois ônibus - um para a Estação Barreiro - onde eu pegaria o 314 para minha casa. Foi a época em que comecei a pegar ônibus sozinha, o que me gerava certa empolgação com as pequenas viagens. Já cogitei diversas vezes pegar um ônibus aleatório na estação, ir e voltar, apenas para observar a paisagem e descobrir novos lugares. Porém, nunca tive coragem de fazer isso sozinha. Assim, avistava locais interessantes em sua estética e essência pela janela do ônibus e tinha vontade de descer, só para ver de perto como era uma fábrica abandonada em Contagem. Passava por ela sempre que pegava o 34, para ir e voltar do curso de inglês, que fazia no bairro Coração Eucarístico. 96
Só comecei a entender a composição do centro de BH quando residi no icônico Edifício JK, uma estadia que durou 1 ano. Antes disso, eu ficava perdida quase todas as vezes que tinha que ir ao centro. Compreender como as ruas se conectam, onde começam e terminam, para onde vão e voltam, foi uma experiência enriquecedora para mim. Poder contemplar a vista do 24º andar tanto para a Praça Raul Soares quanto para a Av. Amazonas, (no duplex há janelas para os dois lados) me ajudou a entender noções geográficas da cidade. Inclusive a Praça Raul Soares, que por si só já é uma rosa dos ventos - só que poucas pessoas se dão conta disso quando passam por ela. Reconheço o privilégio em ter essa cosmo-visão da cidade durante uma parcela da minha vivência em Belo Horizonte. Um pensamento recorrente que tenho, quando pego um ônibus sozinha, ou quando olhava pela janela do alto do Edifício JK é o da existência de inúmeros mundos paralelos. Espreito-me sobre fragmentos do cotidiano de um estranho, onde possuo um breve acesso. Já avistei um homem passando a roupa nu, do outro bloco. Um cachorro na cama enquanto uma mulher assistia à TV no outro cômodo. Um homem sentado na frente de seu computador; pessoas atravessando a rua; moradores de rua tomando banho e nadando na fonte da Praça Raul Soares - onde habitam com suas barracas improvisadas. Ao mesmo tempo em que todas essas informações são acessíveis, o mundo destas pessoas é inacessível para mim. Através de uma única migalha, jamais poderei saber o contexto real daquilo. O que traz aquelas pessoas àqueles lugares? Com destinos e motivos diversos, nunca saberei enquanto continuarmos sendo estrangeiros do cotidiano do outro.
Somos fantasmas do cotidiano alheio.
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Rafael Sodré
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Afectos e perceptos em lugar algum
19°56’55.4”S 44°00’38.3”W. Essas são as coordenadas de um lugar no bairro Cidade Industrial, entre os municípios de Belo Horizonte e Contagem, em Minas Gerais. O que se destaca nas imediações da coordenada é a Avenida Amazonas com suas seis pistas, bem como os seus muitos ônibus, carros e caminhões que atravessam o trecho diariamente. Na pista, o que mais chama a nossa atenção, é uma grade singular disposta sobre a barreira de concreto que separa a via. Há também pontos de ônibus cheios e quiosques verdes, uma passarela, um posto de gasolina, fábricas e alguns prédios no entorno que passam despercebidos, porque este local é, para a grande maioria das pessoas que o visita diariamente, nada além de um fundo colorido para as janelas dos veículos. Um olhar mais atento descobre, nos já citados prédios, uma arquitetura em ruínas que divide o espaço com grafites, pixos e portas comerciais que parecem não abrir há muito tempo. Como denominar como “lugar” uma porção de espaço desenhada, apropriada e desapropriada em função de seu papel enquanto ponto de passagem? A pesquisadora Ana Fani Alessandri Carlos, em seu livro O lugar no/do mundo, aponta o lugar como “a base da reprodução da vida” que “pode ser analisado pela tríade habitante – identidade – lugar” 1. Assim, o lugar propõe a experiência do cotidiano e seus desdobramentos incidentais relacionados não apenas ao espaço, mas também a uma noção de que o homem se insere enquanto corpo, constituinte e agente da realidade geográfica. A autora ainda aponta:
1
CARLOS, Ana Fani A. O Lugar no/ do Mundo. São Paulo: FFLCH, 2007, p. 17. 104
Motorista de ônibus, bilheteiros, são conhecidos-reconhecidos como parte da comunidade, cumprimentados como tal, não simples prestadores de serviço. As casas comerciais são mais do que pontos de troca de mercadorias, são também pontos de encontro (…). A tríade cidadão-identidade-lugar aponta a necessidade de considerar o corpo, pois é através dele que o homem habita e se apropria do espaço (através dos modos de uso). A nossa existência tem uma corporeidade pois agimos através do corpo. Ele nos dá acesso ao mundo (…)”2
Assim, a percepção de um lugar é engendrada a partir do corpo do sujeito e pode apontar os limites da sua apropriação do espaço (que também é corpo), sobrescrevendo o planejamento urbano ao inserir-se na paisagem de maneira diversa. O “estado de um corpo enquanto induzido por um outro corpo” é justamente o que Deleuze e Guattari3 definem como “percepção”, capaz de provocar mudanças a partir da reconfiguração do olhar, ação do corpo-lugar no corpo-sujeito: é preciso que alguém veja o local de passagem e desapropriação enquanto lugar. É o que ocorre com o ponto de ônibus cheio, que faz da zona de embarque e desembarque um ponto de encontro com seus personagens pontuais, suas comidas favoritas entre as 2
(idem, p. 18).
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DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 199. 105
vendidas nos quiosques e seus caminhos que dali derivam. O lugar, no entanto, também pode ser visto a partir da mudança de olhar do sujeito, que pode valorizar e reivindicar a força da passarela melindrosa que se ergue sobre a avenida cheia de carros para dar passagem aos transeuntes enquanto uma potência de ressignificação do espaço, de criação e observação de novas texturas criadas pelas sobreposições urbanóides a partir do olhar do sujeito. Como conceber uma paisagem sem os olhos que a percebem? Deleuze e Guattari definem o substrato (ao qual ainda falta o sujeito) da paisagem como percepto, apontando a partir dessa concepção a insuficiência do espaço: O percepto é a paisagem anterior ao homem, na ausência do homem. Mas em todos estes casos, por que dizer isso, já que a paisagem não é independente das supostas percepções dos personagens ,e, por seu intermédio, das percepções e lembranças do autor? E como a cidade poderia ser sem homem ou antes dele, o espelho, sem a velha que nele se reflete, mesmo se ela não se mira nele? É o enigma (freqüentemente comentado) de Cézanne: “o homem ausente, mas inteiro na paisagem” 4
A paisagem urbana, dessa maneira, antecede ao homem enquanto resulta dele e mistura-se a ele, propondo percepções e provocando afecções, “passagem deste estado a um outro, como aumento ou diminuição do potencial-potência, sob a ação de outros corpos: nenhum é passivo, mas tudo é interação, mesmo peso”5. Sobre as diferenças entre perceptos e percepções e afectos e sentimentos, os autores colocam: Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer
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DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 219 5
Ibidem. 106
vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e de afectos. A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si.6
A noção de afecto desenvolvida por Deleuze e Guattari se apoia na obra de Baruch Espinosa, filósofo cujo trabalho não concebe a supremacia da alma/mente sobre o corpo7 ou mesmo uma dualidade, mas um tipo de acordo entre estas partes, que possibilita que ao invés de uma dualidade se tenha “uma só e mesma coisa expressa de duas maneiras diferentes”8. Espinosa aborda a experiência não enquanto a dicotomia sujeito-objeto mas, ao invés disso, lança seu olhar às relações entre os corpos e os afectos9. Conhecemos nossas afecções pelas idéias que temos, sensações ou percepções, sensações de calor, de cor, percepção de forma e de distância. [...]. A afecção, pois, não só é o efeito instantâneo de um corpo sobre o meu, mas tem também um efeito sobre minha própria duração, prazer ou dor, alegria ou tristeza. São passagens, devires, ascensões e quedas, variações contínuas de potência que vão de um estado a outro: serão chamados afectos […]10 6
Idem, p. 213
7 Cf. MARQUES, Mariana Ribeiro. Afeto e sensorialidade no pensamento de B. Espinosa, S. Freud e D. W. Winnicott. 135f. Dissertação de mestrado em psicologia clínica. Rio de Janeiro: Universidade Católica do Rio de Janeiro/Departamento de Psicologia, 2012. 8 ESPINOSA apud GLEIZER, Marcos André. Espinosa e a afetividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 22. 9 CASTRO, Rafael. Reflexões sobre a trilha sonora a partir de Hanslick. 142f. Dissertação de Mestrado. Escola de Belas Artes. Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte, 2016, p. 68. 10
DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. 4. v Trad. Aurélio Guerra Neta e
Celia Pinto. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997, p. 156-157. 107
Propõe-se assim uma revisitação do espaço urbano marginal a fim de permitir a fruição de sensações, percepções e afecções: os blocos de perceptos comumente experienciados apenas na efemeridade da passagem podem dessa maneira assumir novas configurações capazes de construir novos sujeitos e, consequentemente, novas paisagens. A cidade sempre propõe com seus perceptos inúmeras variações de potência que podem ser experimentadas: cheiros que enojam ou apetecem; ruínas que convidam os olhos e as pernas a uma aproximação ou afastamento súbito, ruídos que interessam e encantam ou agridem e repelem. Certos lugares têm seu uso delimitado justamente a partir de uma diminuição da potência daqueles que os experimentam, uma vez que desagradam os sentidos, provocam medo ou sensação de não pertencimento. Mais do que a ação do corpo-cidade sobre o corpo-homem, as consequências da mistura de corpos reverberam em toda nossa existência e determinam uma diminuição da nossa própria duração em relação ao estado que precedia a ação da cidade sobre o nosso corpo. Nesse cenário, proliferam lugares privados destinados ao convívio social de parte da sociedade e a transformação do espaço urbano público em caminho, não um destino ou ponto de encontro, mas apenas passagem, em um processo de individualização da experiência urbana que segrega ou exclui. Esse afecto que transforma nossa relação com a cidade pode ser compreendido a partir de Deleuze e de Espinosa, para quem um signo é sempre um efeito, que por sua vez pode ser compreendido como “o vestígio de um corpo sobre outro, o estado de um corpo que tenha sofrido a ação de um outro corpo: um affectio”11. Na classificação dos signos proposta por Espinosa e comentada por Deleuze, destaca-se uma explicação acerca da nossa maneira de interpretar os signos que constroem a nossa percepção do mundo: “tomamos o efeito por um fim, ou a ideia do efeito pela causa (visto que o sol esquenta, acreditamos que ele é feito ‘para’ nos esquentar; já que o fruto tem um gosto amargo, Adão acredita que ele não ‘deveria’ ser comido)”12. Já que a cidade é construída como passagem, deveríamos apenas passar por ela? O que mais a cidade poderia oferecer a partir dos seus caminhos e paisagens?
11 DELEUZE, Gilles. Spinoza e as três éticas. In: DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997, p. 177. 12
Idem, p. 178-179. 108
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Os afectos e perceptos confundem-se com a própria materialidade (os corpos do sujeito, os corpos da cidade), uma vez que as suas existências perpassam o material. No entanto, o que permanece e constitui enquanto experiência não é o dado material, o concreto, o aço, os pés e olhos, mas o que com eles se forma e transforma. Daí a importância de buscar novas interações com o espaço urbano (e o lugar de passagem, mais propriamente), de flanar ao invés de simplesmente passar, permitindo toda troca e suas potências de significações e afectos, “devires não-humanos”13 Cada corpo pode então ser conhecido pelos seus afectos e pelas suas maneiras de se relacionar a outros corpos14. Este corpo se transforma bem como transforma o outro, em uma relação marcada pela mutualidade que se desenha a partir do encontro, do devir. Daí a força da questão de Espinosa: o que pode um corpo? De que afetos ele é capaz? Os afetos são devires: ora eles nos enfraquecem, quando diminuem nossa potência de agir e decompõem nossas relações (tristeza), ora nos tornam mais fortes, quando aumentam nossa potência e nos fazem entrar em um indivíduo mais vasto ou superior (alegria).15
13 DELEUZE e GUATTARI, O que é filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 220. 14
Idem, p. 43.
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DELEUZE apud DOREA G. Gilles Delleuze e Féliz Guattari.
Heterogênese e devir. In.: Revista Margem, 16, São Paulo 2002, p.105 110
A experiência ativa da recepção, que também é a experiência do flâneur, é capaz de considerar cada sujeito como uma soma de diversos afectos e perceptos que, em sua prática, percebe e experimenta as propriedades que não são suas, mas estão no corpo alheio. Experimentar com os olhos é ver o que não havia sido visto até então, deixar-se seduzir pelas ruínas, descobrir ou forjar padrões que podem constituir e/ou revelar uma paisagem de interesse estético. Na opinião do pintor Paul Cézanne: [...] as grandes paisagens têm, todas elas, um caráter visionário. A visão é o que do invisível se torna visível... a paisagem é invisível porque quanto mais a conquistamos, mais nela nos perdemos. Para chegar à paisagem, devemos sacrificar tanto quanto possível toda determinação temporal, espacial, objetiva; mas este abandono não atinge somente o objetivo, ele afeta a nós mesmos na mesma medida. Na paisagem, deixamos de ser seres históricos, isto é, seres eles mesmos objetiváveis. Não temos memória para a paisagem, não temos memória, nem mesmo para nós na paisagem. Sonhamos em pleno dia e com os olhos abertos. Somos furtados ao mundo objetivo mas também a nós mesmos. É o sentir.16
Pode-se buscar o que não foi visto até então. As coordenadas que inauguram este texto podem ser vistas como um endereço ilustrativo, mas também podem ser encaradas como um convite a permitir-se ser afetado, a desintegrar-se enquanto humano para integrar-se à paisagem, flanar por suas cercanias. “Não se trata de ver tudo, de ver em panorama, mas sim de se aproximar para habitar, de detalhar para se situar, para olhar no mesmo, no espaço de sempre, a diferença”17.
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CÉZANNE apud DELEUZE, G e GUATTARI, F. O que é a filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto
Alonso Munoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 219 1992, p. 220) 17
DIAS, K.S. Notas sobre paisagem, visão e invisão. In.:Revista Visualidades (UFG, v.6, Goiania,
2008, p. 130 111
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Mariana Paz
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Eu não sei onde pousam os seus olhos
Parados por um tempo, focam um pensamento. Pensamento é feito de quê, na mente de uma criança de sete anos? Seus deveres pesam mais de 10 toneladas, ele gira pela casa e procura mil desculpas para não se assentar a mesa. Se esgueira para o atelier, pega um pouco de argila, um copo de vidro e uma tábua de madeira. Constrói um vulcão. Depois o cobre com papel alumínio. Um vulcão prateado resplandecente . Abandonado o vulcão mas não esquecido, põe-se a copiar o desenho de um elefante que está sobre um bloco de folhas apoiado sobre a mesa. Copia e copia o elefante até que começa a fazê-lo de cabeça. Onde vai leva folhas e lápis e desenha elefantes por um dia. No carro, as folhas se espalham, amassadas, pisadas ou empilhadas sobre a poltrona melada de algum líquido açucarado que ele quis levar consigo nas nossas peregrinações pela BR. Quando se mora afastado da cidade, o carro é uma casa. Passamos muito tempo dentro dele e criamos camadas de açúcar e poeira e brinquedos e folhetos e papel de qualquer coisa, restos que vão ficando por ali até o limite do insuportável. Nosso carro sujo e arranhado, cheio das marcas da nossa forma um pouco suja e arranhada de habitar. De volta à casa imóvel que se encaracola ao nosso redor, ela também é um lugar de acúmulos. 115
Papéis são sim um peso leve dessa casa, mas que ocupam o olhar e a mente de forma aguda. Eles chegam pelo correio, chegam da igreja, são atirados na porta de manhã. Chegam da escola e da banca. Eles passam por nós. Guardamos os jornais para a lareira, guardamos os desenhos? Colamos na geladeira? Penduramos na parede, jogamos no lixo reciclável? Pra onde vão esses papéis que não param de chegar? Tomás digere as coisas. Uma noite eu o encontrei na cozinha. Estava fazendo muito barulho e fui ver o que era. Com uma faquinha de serra ele esculpia um côco. O côco sempre esteve por perto. Desde neném eu abria côco pra ele diariamente, e agora este se tornou um objeto de trabalho. Abriu nele olhos e uma boca. Animando tudo na casa, ele conhece seus cantos e esconderijos. Essa manhã mesmo, se escondeu tão bem, que não pude encontrá-lo. Tive que esperar que se revelasse, sob ameaça de tirar o tempo de TV, que ele aproveita para ver programas sobre animais selvagens e domésticos. Os animais agora estão dentro da sua predileção. Ele os tem desenhado com uma observação detalhista e exigente. Essas criações tomam forma em nossa casa, em desenhos de papel e imagens que chegam pela televisão. Através da cópia ele cria um vocabulário próprio e os olhos desenhados por um amigo de 12 anos ganham veia e rugas e pequenas borboletas murchas que caem como lágrimas. Suas criações são efêmeras e cumprem apenas a função do fazer. Mas cada papel desenhado com afinco também pode ser 116
carregado como mensagem, amassado na mochila da escola, mostrado a todos que ele pensa, poderiam entender a dimensão da sua própria fascinação por conseguir reproduzir aqueles raros animais em extinção que ele copiou da revista. Sem compreender muito sua dinâmica, nos alimentamos das suas criações e tentamos dar-lhe alguns contornos . Ele nos presenteia todos os dias com seu rastro, que incorporamos por um tempo como depósito e sobra e que aos poucos rói as bordas da ordem e do tempo cronológico, transportando-nos para um laboratório de possibilidades, um lugar dentro que busca um tempo fora do tempo, o tempo da imersão do desejo e do contato com as materialidades e imaterialidades do que nos absorve, do ponto de vista fresco de uma criança que amansa, esquenta e amolece a nossa rigidez voraz, conduzindo-nos para o sono das ideias e das brincadeiras de papel. Com eles voltamos à ternura e à angústia de nada saber. Como disse Manuel de Barros: Desde sempre parece que ele fora preposto a pássaro. Mas não tinha preparatórios de uma árvore Pra merecer no seu corpo ternuras de gorjeios. Ninguém de nós, na verdade, tinha força de fonte. Ninguém era início de nada. A gente pintava nas pedras a voz. E o que dava santidade às nossas palavras era a canção do ver! Trabalho nobre aliás mas sem explicação Tal como costurar sem agulha e sem pano. Na verdade na verdade Os passarinhos que botavam primavera nas palavras. ( Poemas Rupestres )
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Isadora Bellavinha
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Le Paysage c´est comme un visage
A relação entre indivíduo e paisagem é de extrema porosidade, seja na natureza desértica ou no caos urbano. Essa membrana fluida do sujeito e do espaço faz com que a troca entre essas dimensões opere significativas modulações e mutações nesses copos – humano e espacial. É possível tecer dinâmicas extremamente particulares e idiossincráticas na experiência de paisageisação (e também de auto-paisageisação), no entanto, é comum – e parece corresponder ainda mais às necessidades do sistema capitalista – a predominância de uma relação estática e facilmente identificável entre eu e “meu lugar, eu e “meu rosto”. Nas metrópoles e cidades grandes, onde o sistema monetário e o caldeirão cultural instauram seus principais polos, a tensão entre os indivíduos, as paisagens e esses “agenciamentos de poder”1 – a mídia, a ordem de consumo, a política, a cultura, a língua – atinge seu cume. Num movimento cada vez mais alienante, esses sistemas enrijecem o quanto podem os rostos e paisagens que os integram, colando determinada face à determinada geografia, determinado olhar a determinada identidade. É impossível escapar a esses agenciamentos de poder, nós “nascemos dentro deles e é dentro dele que devemos nos debater”. Não há possibilidade de se voltar a um estado primitivo onde não haja milhões de rostos, paisagens e padrões comportamentais compostos e impostos culturalmente; onde não se impere um movimento solidificador e ordenador das identidades culturais que transforma cada semelhança num caráter tribal, cada diferença num abismo identitário. A questão colocada por Deleuze e Guatarri no ensaio Ano Zero: Rostidade é exatamente como operar dentro 1 DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. 3. v. Trad. Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira; Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Editora 34. 1996, p. 42. 123
dessas condições determinantes, como habitar a imagem, habitar a paisagem a partir de desvios e deslocamentos que impedem a captura absoluta, de um corpo absoluto, numa paisagem absoluta. Como transitar sem fixar morada. Michel Collot, a partir da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty, coloca que “a paisagem é definida do ponto de vista a partir do qual ela é examinada”, portanto, faz parte da sua condição mesma de existência a atividade constituinte do sujeito. Nessa solidariedade entre paisagem percebida e sujeito perceptivo, “o sujeito se confunde com seu horizonte e se define como ser-no-mundo”2. Isso me parece, não avistar a paisagem, mas habitar a paisagem. Ponty dirá “[...] é um espaço considerado a partir de mim como ponto ou grau zero da espacialidade. Eu não o vejo segundo um invólucro exterior, eu o vejo de dentro, sou aí englobado. Afinal, o mundo está ao meu redor, não diante de mim”. 3 Essa paisagem percebida por mim tem inúmeras significações simbólicas, minha visão organiza e interpreta a partir da minha experiência - a paisagem é um modo particular de habitar o mundo, é a forma de “reivindicar o lugar do sujeito num espaço cada vez mais objetivado e objetivante”. Na perspectiva do Collot, ou das cabeças pesquisadoras deleuzianas, a paisagem quer ir contra o objetivado e o objetivante, mas essa está sempre sujeita aos agenciamentos, é agenciada enquanto paisagem turística, repetidamente, mas é também a forma como o sujeito cria e interfere no espaço, pelo olhar e pelo corpo. No filme “2 ou 3 coisas que eu sei sobre ela: a região parisiense” Godard parece tratar do desvio, do deslocamento desse corpo tanto através da fisicalidade de Paris (pela personagem Juliette Janson, pela câmera, pelo narrador), quanto num deslocamento perceptivo dos agenciamentos de poder a partir do pensamento livre, de uma fala imprecisa que questiona a obviedade da cidade frente a brutalidade das identificações absolutas, dos rótulos, a “máquina abstrata de rostidade”. Juliette – esposa, prostituta, dois filhos – é a figura que nos guiará por essa cidade óbvia mas também escavável, repleta de clichês e rostos cravados, mas também em constante devir
2 COLLOT, Michel. “Pontos de vista sobre a percepção de paisagens”. In: Literatura e Paisagem em diálogo. Carmem Negreiros, Ida Alves, Masé Lemos (org.). Rio de Janeiro: Makunaima. 2012, p.12. 3 MERLAU-PONTY, Maurice. L´OEil et l´esprit. Gallimard. In: Literatura e Paisagem em diálogo. Carmem Negreiros, Ida Alves, Masé Lemos (org.). Rio de Janeiro: Makunaima. 2012, p. 13. 124
e troca, respiração e bafo. Enquanto perambula pelas possibilidades diárias da cidade e experimenta a obviedade da vida cotidiana – lavar a louça, ir ao trabalho, visitar a loja de roupas, cuidar dos cabelos no salão, ir ao café – a personagem fomenta pensamentos que levantam inúmeras questões ontológicas, políticas, sociais e metafísicas, pensa sua relação com o mundo com a região parisiense, e também com espaços distantes, por exemplo, a Ásia-em-guerra. O diálogo corriqueiro da cidade se entrelaça ao seu pensar efervescente, como na conversa de salão com a manicure: Que bronzeado! Por onde tem andado? Na Rússia. Onde? Silêncio. Em Leningrado. Eles são legais? Felicidade. Eles são como qualquer um. Tem visto os Duperrets ultimamente? Eu os vi momentaneamente, perto de Gare St-Lazare. É verdade embora aquelas pessoas nunca conheçam umas as outras. E as crianças, vão bem? Vão bem. Palavras nunca dizem o que eu quero realmente dizer. Elas são boas, mas não são comportadas. Eu espero, eu observo.4
Na loja de roupas o entrelaçamento de discursos também ocorre. Dessa vez Juliette se volta a todo tempo para a câmera enquanto busca saias, blusas, vestidos. A fala se mistura a perguntas contextuais dirigidas às vendedoras, comentários das mesmas, cria-se uma estranha harmonia na dissonância - como é a cidade. As próprias atendentes olham diretamente para o espectador e afirmam seus rostos – dizem de onde são, o que fazem, fixam uma identidade de modo quase estéreo, como se isso as encerrassem enquanto indivíduos: Eu posso falar. Então vamos falar juntos. Junto é uma palavra que eu gosto, junto significa milhares de pessoas, talvez uma cidade inteira. Ninguém sabe como a cidade do futuro será. Parte do sentido que teve uma vez será indubitavelmente perdida. Sem dúvida. Talvez. Os papéis criativos e formativos da cidade serão feitos por outras formas de comunicação. [...] Ainda nenhum almoço e são três horas. Sweteresshet-land azul marinho. Uma nova linguagem é necessária. Eu me levantei às oito da manhã. Eu tenho olhos cor de avelã. Eu 4
GODARD, Jean-Luc. 2 ou 3 coisas que eu sei sobre ele: a região parisiense. PARIS, 1964. 125
posso provar este? Claro. Branco vai te cair bem. Você pode guardar pra mim? Sim mas só até às seis. É por isso que meus sentimentos nunca têm um objeto específico. Desejo, por exemplo. Às vezes se sabe o que deseja, outras não. Volto às seis.
Os rostos endurecidos da cidade vão sendo apresentados aos poucos, sempre em identidade com um lugar específico, seja um departamento, seja uma região. Há também o narrador, que longe de assumir um olhar onisciente como faz muitas vezes o narrador do romance, se indaga, observa, comenta e complementa o discurso de Juliette numa reflexão sobre o estar no mundo, sobre o habitar da paisagem, e ainda, como essência do cinema, a habitação da imagem. Há uma constante relação da fala desse narrador com a observação dessa cidade, das suas problemáticas políticas e como isso condiciona aquele espaço e aqueles habitantes; da língua constituidora da paisagem, e da paisagem determinante à constituição dessa linguagem. Atestando um caos degenerado pelo espaço terrestre e a solidão incorruptível do humano, o narrador cava saídas, possiblidades através da disposição para escutar e olhar ao redor – pare, olhe, escute – “o mundo, meu parente, meu gêmeo”. É interessante marcar a não hierarquização entre narrador e personagem: há um diálogo complementar que se dá pelo discurso indireto livre daquele que narra, uma relação que aponta exatamente para essa membrana fluida entre sujeito e objeto, rosto e paisagem, voz e imagem. A forma como o filme estrutura suas enunciações opera com o próprio sentido do discurso – esse inespecífico, em devir. Também a retratação da região parisiense se estrutura nessa con126
dição de devir. A cidade não é identificada por seus referenciais paisagísticos – cidade das luzes, torre Eiffel, Moulin Rouge – mas sim através de recortes alternativos desse espaço: a lateral de um prédio, de uma placa, cenas de construção e reformas urbanas, um depósito, um andaime, uma escavadeira que deforma o chão e dá a ver as entranhas desse lugar. Godard abre espaço para uma outra Paris, e ainda ela mesma, desprendida do seu peso histórico específico, da sua captura absoluta pelo turístico, uma Paris mais real, mais brutal, mais humana – ou menos humana. Deleuze, após identificar os condicionamentos gerados pelos agenciamentos de poder, pela “máquina abstrata de rostidade” – potência sociocultural externa e interna ao sujeito que determina os traços do seu rosto e de sua identidade –, ele sugere que, se debatendo dentro dessas forças, é preciso refazer, para além do rosto, as inumanidades das quais é feito o homem, compondo a inumanidade das “cabeças pesquisadoras”. Essas seriam aquelas que operam pontos de desterritorialização, que formam novas “polivocidades”, que armam uma “desrostificação”, que “atravessam os muros da significância”, que criam novas máquinas de rostidade, novos traços de rostidade que, nesse novo uso, atravessam para a fronteira do “a-significante; do a-subjetivo, do sem-rosto”. Essa proposta de composição de traços que se liberem do próprio código me parece ser a dimensão crítica e poética do filme do Godard. Juliette e o narrador se armam no movimento híbrido e fluente das cabeças pesquisadoras. Rompem com as fronteiras definitivas entre espaço e sujeito, ultrapassam os contornos da objetividade e da subjetividade, da paisagem e do olhar – “Eu fui o mundo. Eu era o mundo” – e percebem assim suas amarras com esse mundo. Juliette reconhece a deformidade do seu próprio rosto que é também conforme a deformidade de Paris – e a relação de identificação do rosto com a paisagem se dá por um desvio de ambos, 127
ambos rostos em formação – como em Francis Bacon. Essa existência intransigente, me parece, é movimentar a zona confortável do olhar para, da distância saudável, da fronteira territorial. É colocar na borda, e a ponto de despencar, o que “o ser é”, entre, quase, mas irrevogável na sua multiplicidade. É propor um olhar através, perfurante, um devir-cidade, devir-rosto, sempre a entrar e sair simultaneamente, atravessando os olhos a nado. O projeto político filosófico de Maria Gabriela Llansol, que se arma não através de um manifesto, mas entorno de uma disposição ao mundo, é voltado para a escrita da paisagem, para a reinvenção do mundo. Para a escritora portuguesa, uma das coisas que “metem medo” é o corpo a escrever, e é exatamente isso o que ela propõe e pratica como técnica de escrita: escrever é escrever com o corpo, e não com o rosto. O falar e negociar o produzir e explorar constroem, com efeito, os acontecimentos do Poder. O escrever acompanha a densidade da Restante Vida, da Outra Forma de Corpo, que, aqui vos digo qual é: a Paisagem. Escrever vislumbra, não presta para consignar. Escrever, como neste livro, leva fatalmente o Poder à perca de memória.5
Para esse projeto de escrita, filosófico e político da Llansol, escrever - essa escrita com o corpo - é romper com os agenciamentos de poder, é levar o poder à perda de memória, propor uma paisagem - a escrita de uma paisagem - onde não há poder sobre os corpos, onde não há rostificação dos corpos, onde não há hierarquias. É tomar a paisagem por seu caráter de incompletude, saber que ela escapa à plenitude da significação, que segue para um caráter de a-significância, de sem-rosto. Fica, como pergunta que deriva pelo caos urbano, para nós, LEVES: Como desfazer o rosto, como habitar de fato a imagem, a paisagem, o mundo sem ser simplesmente uma marionete das nossas identificações pessoais, dos nossos traços tribais, de bando que perambula turisticamente pela Cidade?
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LLANSOL, Maria Gabriela. O livro das comunidades. Porto: Afrontamento, 1977. Pág. 128
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LaĂs Ferreira
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Ver so Re ver so Contro ver so No intuito de provocar reflexão e incômodo, a série intitulada Ver So Re Ver So Contro Ver So traz-nos a ver a transformação dos bens naturais em produtos industriais e as dinâmicas de USO e desUSO [nãoUSo]. O decepar de uma árvore vale o objeto? Vale o descartado? Há valor ou h{á} PREÇO? (REVEJO) Preço de quem, A-PreSS(ç)o de quê? O que vemos. Só um? Só outro? Vemos o verso o reverso o controverso na beleza do corte da forma do suporte IMpresso
NO C ORTE SEM VERSO
NÃO 133
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Diego Medeiros
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experiência-LEVE
Isso bem que poderia se estender, mas não quero bancar o rebelde e ultrapassar as cinco linhas. É muito pouco para resumir esta trajetória de eterno viajante, um viajante do sonho, contador de histórias, ficcionista, cara-de-pau... A cidade. As ruas. Os carros passando. As árvores. O concreto e o asfalto. A urbanização. O cotidiano. Parece tudo muito igual. Eu olho da janela e vejo o verde das árvores se mesclar com o alvicinza dos prédios e dos carros, e ainda o alviceleste do céu. As outras cores são ofuscadas, reduzidas. É este o cenário com o qual me deparo todos os dias, é a selva de pedra, esta selva que a gente se acostuma muito - ou até demais - e fica achando que é o máximo. Entrar na fila, comprar ingresso, para levar porrada... No meio de tudo você, eu, todos nós tentando nos salvar da selva, sobreviver a ela. Minha maneira particular de enfrentar tal dragão é por meio de fotos modificadas digitalmente. Uma visão alternativa para algo já bem conhecido, a criação de um mundo próprio a base de imagens para abrigar minhas convicções e pensamentos em relação à cidade. As ruas se tornam uma enorme tela de pintura, um livro aberto para mim, na tentativa de compensar, de ao menos diminuir um pouco a chatice e monotonia visual que a cidade nos oferece. É uma brincadeira com a imagem, pois a seriedade e rigor excessivos me aborrecem. As expedições realizadas com o LEVE vieram bem a calhar: evidenciaram minha simpatia pelo simples ato de viajar. Andar sem destino, sem rumo, sem rota pré-estabelecida. Sair da rotina amedrontadora, do tédio mórbido, sem saber direito o que esperar, o que vai encontrar. É poético, é fascinante, 137
é desafiador, é bizarro, absurdo e completamente louco. Estou sempre à procura da loucura perfeita, neste hospício que chamam de cidade. É lindo e é horroroso, chato e empolgante, comum e anormal. Meu desejo é buscar a anormalidade oculta dentro do que é comum. Meu desejo é apresentar uma visão artística do cotidiano, é desenhar, colorir e pintar a vida. É arrancar um sorriso por mais singelo que seja, é confundir e não explicar. É justamente enrolar, dar um nó na cabeça dos demais. Pesquisa... Qual seria a minha pesquisa? Talvez a pesquisa seja buscar uma pesquisa, pescar uma pesquisa. A cada piscar de olhos uma pescada desse projeto de pesquisador-pescador que em clima pascoal chapisca a vida com suas ofuscadas ficções. Nas ruas da cidade não vejo mais Fuscas, há muito tempo morreu Puskas e não faz mais sentido essa busca... Pesquisador não só de imagens e técnicas, mas de palavras também sou. Ou acho, finjo que sou. Passear de ônibus, apesar de toda a precariedade do transporte público, é muito bom, é prazeroso. Algo que remete à infância. O trajeto torna-se muito mais interessante que o próprio destino. Registrar e modificar aquilo que vi ao meu gosto. É exatamente isso que foi feito. Não me importar com a interferência de fora, com as vozes aleatórias e me concentrar na obra de arte oferecida pela janela; aquelas imagens em movimento, imagens constantemente passando: passam carros, pessoas, calçada, árvores, postes, prédios, nuvens, a vida... Um diário de bordo, um relato de imagens, uma evidência do que foi feito, visto. Pode ser tudo e pode não ser nada. Fi-lo porque qui-lo e só isso já me basta. Verdade ou mentira? Então por qual causa, motivo, razão ou circunstância eu estou escrevendo, digitando estas palavras? Não estou preocupado com o porquê, e nem se utilizei corretamente este “porquê”. Tudo que eu quero é brincar com você, com vocês. Satisfação e prazer no fazer foram tudo que eu quis, e obviamente não foi por acaso. Nada é por acaso na cidade. Nossa querida cidade, muito grande e tão pequena, tão ingênua, um belo horizonte distante e próximo de nós. Suave momento foi este momento em que saí sem saber para onde ir, para onde os loucos companheiros me conduziram. Fui “Aliço” no país das supostas maravilhas, tomei o chá de LEVE, doce veneno mortal, que bateu, entrou na minha mente e me paralisou, descontrolou. Suave é a cidade pra quem gosta da cidade e tem necessidade de se esconder. Nas grandes cidades 138
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de um pequeno dia-a-dia, o medo nos leva a tudo, sobretudo à fantasia, daí então erguemos muros que nos dão a garantia de que morreremos cheios de uma vida tão vazia... Nas grandes cidades de um país tão violento, o muro e as grades nos protegem de quase tudo, mas o quase tudo quase sempre é quase nada, e nada nos protege de uma vida sem sentido... Nas grandes cidades de um país tão irreal e surreal, os muros e as grades nos protegem de nosso próprio mal... Palavras... São só palavras... APENAS palavras... Cabe a nós o sentido que cada um dará a elas... Eu já fui cego, já vi de tudo, já rodei o mundo - em pensamento - e fiquei mudo. Já fui bem pouco e fui demais. Estive longe, longas tardes a procura - não sei do quê - longe das cidades, cidades por todas as partes. Longe e perto simultaneamente, aproximando-me dos demais pela imagem, por aquilo que produzi e que é meu. Não foi só para mim, nada é individual. Vejam só, quem diria, não sou tão egoísta assim! A cidade está em todos os lugares, está dentro de nós, há uma cidade dentro de casa e, dentro de minha casa explorei essa terra inóspita, tão familiar e tão deserta. A loucura do LEVE foi trazida para meu suposto lar, meu local de repouso, meu esconderijo e refúgio, meu cotidiano que vira rotina, e minha rotina que vira tédio, meu tédio que vira chatice, minha chatice que agora escrevo aqui. É chato e é legal, é tudo uma dicotomia, um paradoxo, uma antítese. Cotidiano... É tão fácil fazer como todo mundo faz... É tão fácil fazer tudo sempre igual, do mesmo jeito... É tão fácil copiar e colar, dar ctrl + c e ctrl + v. Como dito anteriormente, dar novas visões, experimentar novas possibilidades e ideias é o que eu quero. Ir por novos caminhos, e eis a possível razão por estar em tal experiência. Nada, nada foi por acaso. O difícil é superar a preguiça e o comodismo que a cidade oferece, sempre com pressa para chegar ao destino, com medo de assalto, assédio, morte, temendo o lado negro da força, que a qualquer momento pode surgir, sem mais nem menos. Apresentei então um pouco do meu cotidiano, dos meus locais de afeto, explorei a mim mesmo e compartilhei a minha maneira, meu universo particular, onde as fotos viram ilustração. A questão é o quanto eu uso as coisas e o quanto as coisas me usam. Mas o que importa? Será que de fato importa? Na cidade globalizada viramos escravos das coisas, da tecnologia e, de alguma maneira, tal escravidão mostra-se atraente. Será que queremos mesmo nos livrar dela? É a linha tênue entre o prazer e a obsessão. 140
Os objetos de provável prazer, objetos do cotidiano: TV, computador, video-game, internet, lápis, papel, materiais de um suposto artista, materiais de trabalho. Ou ainda, objetos mais singelos como o sofá para inevitavelmente se esparramar, a cama para dramaticamente encerrar o dia, a porta para adentrar e deixar o recinto que ora é céu e ora é inferno, os óculos para enxergar nitidamente esse céu-inferno, o vaso sanitário para se livrar daquilo que o corpo não necessita mais, lugar para despejar tudo de ruim. Mesmo seres vivos; o cão ou o gato, objetos, lugares móveis com sensibilidade própria. Desta forma, até as pessoas se tornam exemplos destes lugares, prontos para serem usados, visitados e em algum momento deixados, desocupados. São lugares, como quaisquer outros, como uma autêntica cidade, um bairro, uma vila pronta para ser explorada e desbravada. É tudo passageiro, somos eternos passageiros e a exploração nunca acaba. E hoje estamos a perigo, separados e divididos. Quem sabe um dia, nós seremos a maioria. Estamos à deriva, perdidos no espaço sideral. Somos porta-aviões perdidos no mar de asfalto e concreto, esperando alguém pousar. Porto sem endereço certo, nômades sedentários, deserto em pleno mar. Poder-se-ia chamar isso de pesquisa? O conceito é particular. Sou um grão de areia no olho do furacão, em meio à zilhões de grãos. Cada um na sua busca, na sua suposta pesquisa, cada bússola em um coração, mente, todos os órgãos e sentidos. Cada corpo lendo de sua própria forma as interrogações, exclamações e reticências. Nem sempre se pode ter fé, nem sempre se pode chegar a um denominador comum, a um consenso. O jeito é respeitar os diferentes pontos de vista. Talvez seja nisso que se baseia a ideia de cidade, ou ao menos deveria... Eternos escravos e aprendizes das escolhas que fizemos, que fazemos, que faremos. Eu dependo das ideias de outros para compor a minha própria. As palavras lidas não são de maneira alguma aleatórias. Sem o cotidiano citadino, eu nada seria, ainda que eu falasse a língua de todas as etnias, todas as falanges e facções. Ainda que eu gritasse o grito de todas as legiões urbanas ou mesmo rurais. Palavras repetidas: cidade, cotidiano, rotina, pesquisa, arte, criar, projeto, imagem, expedição... Quais são as palavras que mais queremos repetir na vida? Confundir é o que eu quero, bagunçar a cabeça e intrigar com imagens e palavras. A cidade é o pretexto neste contexto. Testando sua paciência, não se perca no texto, ainda que se torne um chute no testículo ou uma bolada da testa. Seremos 141
testemunhas do ocorrido. Aonde há por aqui uma indústria têxtil? E quanto às imagens produzidas, minha alegria está em trazer alegria aos demais, um reles esboço de satisfação e êxtase. Quem sabe faça sentido para alguém, porém, não é uma obrigação. Afinal, o que é que faz sentido na nossa amada e idolatrada salve, salve cidade? Não quero protestar nem questionar. Não quero filosofar e nem ao menos faço questão que faça tanto sentido. Não é necessário tanto sentido, é necessário fazer. Tinha que ser feito, a oportunidade não podia ser desperdiçada, por isso uma força me leva a produzir, essa força tosca e bizarra. Por isso eu produzo, não posso parar, por isso essa loucura tamanha. O que eu quero é ironizar. Ironizar a mim mesmo, ironizar tudo que puder ser ironizado artisticamente. Não é preciso levar tão a sério e nem desdenhar a ponto de cuspir. É apenas mais um show que pode ser tudo e nada ao mesmo tempo. Lá vou eu: neste relevo deixo o LEVE me levar, LEVE leve eu. Oh, LEVE me leva, me leva que eu te quero me leva, só o tempo falará por mim. Lava a alma e me faça levitar, de tão leve que o LEVE é. Não importa quanto tempo levará, pois é irrelevante. Próximo das oliveiras, na livraria livre um livro cheio de palavras sobre o LEVE se encontrará, lavado no lavabo pelo lavrador sem luvas. É um perfeito lavatório, vamos todos louvar. E isso é tudo - ou nada -, pessoal... Mais uma vez eu agradeço por poder brincar. Outro dia a gente se encontra, e recomeça a brincadeira, num dia desses, num desses encontros casuais, e talvez eu diga, meus amigos, para ser sincero, prazer em vê-los, ATÉ MAIS...
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Frederico Caiafa
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Das potências do espaço à transgressão da arte, a cidade como espacialidade Nesse drama da geometria íntima, onde devemos habitar? Gaston Bachelard.1 O espaço urbano deflagra continuamente suas ranhuras e estruturas; sua consistência fendida, aberta a processos e atravessamentos. Acreditamos que essa pergunta de Bachelard cabe ao artista contemporâneo. Ao drama contemporâneo que enfatiza limites borrados entre público e privado aos não-limites, aos não-lugares de Augé2. Misturas entre a armadilha íntima e a espetacularização espacial. Ocupamos, transitamos, esperamos, vivemos, ou não, aonde o habitar extravasa todos as lógicas. O que nos leva a crer que este verbo estaria mais aproximado à conquista de afeto com e pelo espaço da cidade. A atual conjuntura arquitetural de nossa cidade, Belo Horizonte, privilegia uma padronização comportamental dentro de uma previsão por demarcadores sociais. Expostos a diversas consignas que nos dispõem a condições adversas, mas, todavia, nem sentimos que estamos sendo forçados ou obrigados a um comportamento cortês, não obstante, servil e alienado. Não pise à grama! 1
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BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes. 1996, p. 221.
AUGÉ, Marc. Não-lugares: Uma Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. Escolhemos a ideia de não-lugares de Augé, por sentirmos afinidade para tratarmos das relações atuais existentes no espaço urbano, que expressam os controles em prol da ordem e gestão dos indivíduos separando e os individualizando, até mesmo a internet, que cria uma sensação de proximidade, promove relações assépticas, distantes. 145
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Ônibus, metrô, tetos, solo, corpos imobilizados por suas singularidades, pessoas com necessidades especiais que não têm a cidade como espaço universal que facilite a sua vida. Mesmo aquela pessoa que não possui qualquer impedimento físico-psíquico, tem questões a enfrentar pela arquitetura urbana que o impede de prosseguir fluidicamente no espaço. A permanência nesta estação está condicionada ao período de entrada e embarque nos vagões do metrô. Não sendo permitida a permanência nem a ocupação das plataformas para a realização de festas ou qualquer tipo de comemoração. Sua permanência deve ser de no máximo 15 minutos.3
É proibido fotografar! Nos corpos já estão inseridos os comportamentos expectados pelo sistema funcional de nossa sociedade, que é controlado pelo corpo materializado deste funcionamento, o capital. Conforme a sociedade vai sendo conduzida mais suas manobras vão se refinando para fazer em nossos corpos substância de algo que vai conformando-se como natural ou comum aos indivíduos. Favor não tocar nas obras de arte. São ordem e comando transmitidos, impostos e que oprimem os corpos. Adestrando ao melhor estado de ser para uma conformidade de uma ordem fictícia. Incutem regras, establishments4, leis, normas. Simulacros que atentam contra à expressividade única e singular de cada sujeito a favor de um cenário mítico, espetacular. As forças do poder discursivo conformam todo um aparato de dispositivos e integram uma malha complexa e concatenada. A esse pensamento podería3 Esta frase é completamente ficcional, pois estamos realizando o exercício de lembramos do que o segurança da Estação Horto, da CBTU – Companhia Brasileira de Trens Urbanos – de Minas Gerais, em ocasião da ação performática do Obscena Agrupamento “Festa no Metrô”, falou-nos ao pedir a nossa saída da estação. Há 4 anos, a parceira de trabalho e pesquisadora do coletivo, Joyce Malta, criou um vídeo das várias festas realizadas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EDsxkCEiTjA. Acesso em: 10/06/2016. 4 A este termo estamos associando a ideia de uma ordem ideológica social, ou seja, a partir da construção burguesa e dos “estabelecimentos” existenciais definidos pela Sociedade de Controle e pelo reino das cifras. 148
mos associá-los em desdobramentos às ideias que são originadas de Debord e expressividades cooptadas pela maquinaria do sistema que conduz comportamentos preferíveis dentro de uma espetacularização e segmentação social. As arquiteturas urbanas são articuladas em máximas padronizadas, dentro de parâmetros que perfazem todo um discurso “orgânico”, esteticamente gentrificado, mas que falaciosamente camufla o universo escuso das cifras e da quantificação, da contabilidade dos corpos em fluxo, um sistema de fragmentação. Afora o movimento industrial, que acelerou o incremento do aparato de cooptação dos corpos e que cria historietas subjetivas potencializadas pela estrutura midiática, publicitária. A imposição de normativas em diversas situações do existir é o que constrói a falsa sensação de sua própria existência. Uma pertença social incrustada e ditada, repetida por toda uma maquinaria estrutural televisiva criando moldes standard de vida. Aos sinais vermelhos, amarelos, verdes: – Pare! Olhe! Escute! A opressão é reflexiva, retorna à sua origem em onda, recebe resposta à altura de sua chegada, portanto, o retorno tem também elevada escala. Quantas vezes seu corpo foi proibido hoje?5 5 Questão colocada pelos artistas do Obscena Agrupamento, em ação realizada nos arredores do Centro Cultural da UFMG, no ano de 2011, primeiro dos dois anos de ocupação do espaço, através de placas expostas durante os sinais fechados dos semáforos da Avenida do Andradas, quase em frente à praça da estação, este espaço estava sendo proibido de ser ocupado salvo sob a situação de locação. A 149
Thoreau (1987), ainda no século XIX, já assinalava que aos corpos são instauradas linhas duras sistêmicas que privilegiam apenas aos gestores do sistema em detrimento da população. Ao povo são impostos o controle intelectual e a manutenção do movimento dos fluxos. Não podemos nos enganar. Há algumas situações que apenas a desobediência civil é capaz de responder a altura às camadas estratosféricas da aristocracia burguesa para podermos produzir efeitos irruptivos no aparelho funcional capitalístico. Ao povo são impressas as burocracias e assim toda a ecologia humana é devastada. Poderíamos pensar nesta ideia de ecologia a partir de Guattari6 e, em evolução, Boff7 que trata da ecologia política enquanto aquele trata das relações sociais contiguamente à política. Ações de destruição da ecologia humana estão com intuito claro de enfraquecimento de forças. Criando diversas situações a distrair o povo as forças são reduzidas. As ações submetem-nos a lentidões e aceleramentos que produzem forçosamente despotencializações às insurgências revolucionárias individuais, grupais, múltiplas, em instâncias micro e macroscópicas. A arte urbana, como um texto de fruição, acontece em um estado de “intercampo” entre o produtor e sua produção final. Quando já não se saber separar um de outro. É aquela que realiza contato por gestar-se exposta e por criar a si própria no encontro de forças do espaço urbano. Portanto, arte por si só híbrida e por existir sempre na impureza, na mistura de outras diversas mesuras. Arte que costura-se ao tecido, textura de si impressa no concreto. A palavra textura em seu significado original está ligada ao ato de tecer, de formar tramas por sobreposições, justaposições e entrelaçamentos. Essas tramas podem acontecer por repetições de um único módulo ou pelo cruzamento de diferentes matrizes modulares. Nas texturas da cidade, incorporar-se à (sic) matérias de suporte, mui-
pesquisa que o coletivo realizava naquele período era relacionada a esta ideia de restrições aos corpos: “Espaços públicos, corpos proibidos”. E várias ações foram realizadas neste viés da proibição/limitação imposta aos corpos na contemporaneidade. 6
GUATTARI, Félix. As três Ecologias. 9. ed. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1999.
7 BOFF, Leonardo. As quatro ecologias: Ambiental, Política e Social, Mental e Integral. Rio de Janeiro: Mar de Ideias: Navegação Cultural, 2015. 150
tas vezes já texturizada, a vivência cotidiana e suas inscrições.8 Habitar a cidade está implicado ontologicamente à ideia de ocupar, presentificar corpos de resistência na superfície urbana. Considerando que todas as expressões artísticas promovem ou provocam, aparentemente, a fruição, não o diálogo significante, mas o exercício metalinguístico, que ultrapassa afinidades sígnicas ou histórias a contar. Acreditamos que há, dessa forma, uma relação bastante importante neste espaço desértico, portanto, profícuo que é o espaço urbano. A rua como espaço democrático por excelência, político, e a arte realizada neste é, pois, o exercício da transgressão da: Ficção de um indivíduo (algum Sr. Teste às avessas) que abolisse nele as barreiras, as classes, as exclusões, não por sincretismo, mas por simples remoção desse velho espectro: a contradição lógica; que misturasse todas as linguagens, ainda que fossem consideradas incompatíveis, que suportasse, mudo, todas as acusações de ilogismo, de infidelidade; que permanecesse impassível diante da ironia socrática (levar o outro ao supremo opróbio: contradizer-se) e o terror legal (quantas provas penais baseadas numa psicologia de unidade!).9 O interventor urbano cria para si uma rede de relações, principalmente de entrega, a qual se disponibiliza a estar em contato como o irremediável do inesperado. Com aquilo que o põe em questão e que o desestabiliza. O que o retira do terreno confortável e conhecido. A arte de rua se propõe aos acontecimentos entre o sujeito, que artista ou cidadão, que faz uso de seu corpo e de outros variados dispositivos para criar sua arte. A partir do leitmotive10 e dos riscos aos quais se expõem os interventores urbanos a arte urbana se realiza. 8 PONTES, Juliana R. “A Cidade na Superfície”. 2. cap. Superfícies do Cotidiano e Experiência Estética. In: MACIEIRA, Cássia; PONTES, Juliana (org.). na rua: pós-grafite, moda e vestígios. 2007, p.19. 9
BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. 4. ed. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2004.
10 Renato Cohen faz uso deste termo para dizer, que iremos traduzir para uma pergunta: o que te move? “O termo leitmotiv é originário da música e da literatura: uma primeira tradução possível seria vetor, dando conta dos diversos impulsos e tracejamentos que compõem a narrativa41. [...] A utilização de leitmotiv como estruturação, permite operar com redes, simultaneidades e o puzzle em que está se tecendo o roteiro/storyboard: os leitmotive encadeiam confluências de significados, tanto manifestas quanto subliminares, compondo, através de seu desenho, a partitura do espetáculo”. (2013, p. 25-26). 151
Ser que conquista sua alforria do panóptico sistêmico das linguagens do conviver e que atravessa insólito as lentes das vigilâncias para ostentar-se divergente, o artista urbano é presença efêmera. Está de passagem. Mais um indivíduo que configura o corpo urbano. Um dos membros de falanges anônimas. Ele é a vanguarda da infantaria11, singulares ou coletivas, à contra fluxo de ideias psicologizantes de funções e atividades em unidade. A regulamentação e a ostensiva amplitude do regime de controle de corpos é o que faz da arte urbana uma expressão insurgente, fazendo de seu exercício um ato político, fratura exposta. É, pois, a partir de um affair entre sujeito e signos, por afectos e perceptos12, dos quais destituem relações dicotômicas pela invenção de micropolíticas que configuram outros modos de existência. Outras possibilidades de resistência artística. Reagimos a estímulos da ordem do sensível, ao caos – como prometeu citadino, germinador de sua eterna reconstituição, sempre vário, outro – produtor de sua poética e gerador de estranheza e de desconforto. É um incômodo ao bem-estar sobretudo por romper com a fajuta harmonia urbana. Poderíamos pensar, por conseguinte, que a arte urbana gera para si uma usina de produção poética. Uma peste infecciosa que gera conexões aliciando miríades de possibilidades através de relações entre infectados e infectantes. Fazei da rua morada, talvez seja a proposta do que poderíamos chamar de pós-grafite e das produções artísticas que fazem uso da arquitetura, do espaço ampliado, aberto da cidade como ateliê artístico. Devires que conectam energias em potência criativa e compõem uma sinfonia de matizes anômalas extrapolando a ordem dos códices de convivência da cidade. 11 Termo surgido na fala da colega Thálita, em ocasião de seu seminário da disciplina do LEVE, dia 31 de maio de 2016. 12 DELEUZE; GUATTARI apud SILVA, Matheus. Corpodesembestado: relações entre Teatro, Literatura e Filosofia. 157fl. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas.) Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Departamento de Artes/Instituto de Filosofia, Artes e Cultura. Universidade Federal de Ouro Preto. Ouro Preto. 2016, p.115. “[...] “um mundo de microperceptos inconscientes, de afectos inconscientes, de segmentações finas, que não captam ou sentem as mesmas coisas que se distribuem de outro modo, que operam de outro modo. Uma micropolítica da percepção, da afecção, da conversa”. E neste sentido, para sintonizarmos melhor com estas ideias, poderíamos pensar que afectos estão em níveis de relação com o desconhecido, com o heterogêneo, porém de consistência de contágio. Perceptos são como os afectos, ou seja, relações de encontro, de infeção, porém abrangem uma ampla cobertura de contato, destoando limites e homogeneidades. 152
A arte urbana fervilha potência transgressora escoando a partir de expressões artísticas. A realização destas atividades desvela máximas, conceitualizações, que conferem ao artista um modus operandi. Pensando, de acordo com Goffman (2007)13, a arte urbana exerce o que para a contracultura, prioristicamente, é essencial, ou seja, o exercício de criar ações e atos que extravasem com as regras, códigos e condicionamentos dos corpos. Por julgar que todas essas normativas sociais servem apenas para o fortalecimento dos corpos sistêmicos de poder. Nessa consonância de matizes, poderíamos pender para uma visão de que a arte urbana é exclusiva atividade de contestação social, porém, não poderíamos jamais entrar em um campo minado como este. Antes de tudo, nossa intenção, aqui, é fazer uma observação de que, apesar de tudo o que estamos enfatizando, a arte urbana acontece em espaço propício para situações e acontecimentos inusitados tanto quanto transformadores dos corpos e dos sistemas enrijecidos espaciais. Certa vez, em 2013, o coletivo Obscena14 do qual fazemos parte, realizou a intervenção “Cadeiras”. Pretendíamos ir à Praça da Estação e para isso queríamos usar o metrô como ponto de encontro entre os artistas – esta ação consistia em se vestir com peças de roupas de uma cor única, uma cadeira e um livro, texto, algo
13 GOFFMAN, Ken; JOY, Dan. Contracultura através dos tempos: do mito de Prometeu à cultura digital. Trad. Alexandre Martins. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. 14 O obscena – agrupamento independente de pesquisa cênica –, desde 2007, realiza intervenções de caráter cênico-performático a partir da premissa de relações compartilhadas entre os artistas independentemente envolvidos no coletivo. Mais informações disponíveis em: www.obscenica.blogspot.com.br. Acesso dia 18/07/2016. 153
que se quisesse compartilhar e ler para a cidade – e da mesma forma, na estação central, fomos informados que: “É proibido ler no metrô”! Por acaso nesta estação especificamente existe um posto de empréstimo de livros, uma biblioteca pública. Ou seja, não é exatamente a leitura que é proibida, mas como esta leitura é feita e seu conteúdo claramente amedronta as pessoas. As poesias podem ser bastante revolucionárias. Além do mais, os assuntos que nos interessava tratar sempre foram temas minoritários ao funcionamento falocêntrico heteronormativo de nossa sociedade. Somos rechaçados do espaço público, conduzidos, oprimidos e comprimidos pela provocação que produzimos. O medo disseminado controla as gestões alternativas e perturbadoras de vida. O sistema gesta o temor e estimula a dor e a violência como formas pedagogizantes de contenção de massa. As anomalias devem ser controladas a fim de manter a sincronia monocórdica da macro-máquina. Não nos esqueçamos que compomos a maquinaria. Na maioria das vezes, sem vermos, estamos empoderando e reproduzindo as sistemáticas expectada.
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Laura Berbert
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Corpo de encosta
Dir-lhe-ia Vê como vejo. Não quero viver contigo, nem com ninguém. Quero ser nômade ou ermita. Ir ou estar de modo só. Ocupar-me na observação do que vejo e sinto, e imagino. Criar mundo no pensamento, praticar o paradoxo. Cuidar absurdamente do meu jardim, limpar o limiar da minha porta. Dar forma. Aprender a linguagem dos pássaros. De tempos a tempos, vir ter contigo, humana. Praticar o rito do chá, a delícia da tua morada, a claridade do teu espírito, o prazer do corpo.1
Fotografia da serra, na direção de sabará, tarde de inverno – junho 2016
1
p. 76, Finita - Maria Gabriela Llansol. 157
3 stils do vĂdeo: o registro da serra do curral, em belo horizonte, nos dias de chegada da primeira frente fria (Ăşltimos dias de abril), 2016
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tudo vivo; a mão cansada como medida de tempo, do texto que escorre, como a saliva pelo canto da boca de quem dorme sentado – cansado; e ao cair a gota, desperta-se pela mão, que recebe a gota que é parte do fluxo do que escorre pela boca; de quem longe vai: pelo sono, pelo sonho ou pelo cansaço da mão que escreve o cansaço do corpo, que respira pela boca. fluxo-água de vida, que passa pelos dias, que passa pela boca e pela mão cansada; ou o pé cansado ou até a vista cansada de quem sobe escadas sem olhar para trás.1
Página de caderno: estudo sobre a temperança, 2015.
1
Céu da boca, agosto de 2014. 159
O CORPO
como espessura entre o que é visível e invisível no ser e como ritmo dos ciclos cotidianos de tempo, o corpo é aqui o primeiro artifício : I - processo, modo ou meio de fazer um artefato ou produzir um objeto artístico. II - expediente, dispositivo ou disposição. III - condição do esforço. iV - procedimento ou habilidade que se usa para disfarçar a natureza.
corpo de encosta O corpo é um lugar e um caminho.
Se sou o próprio caminho que estou a trilhar, o que é a busca?1
O ser nasce do encontro do criativo com o receptivo – fazendo um corpo. Até uma certa idade o corpo é só movimento. Nasce, pouca extensão no espaço - já alguma essência. É parte do fazer o corpo, a memória da sensação de olhar-se crescendo no espelho; a primeira etapa: expandir-se enquanto extensão no espaço, movimento que cria a memória de ser este corpo latente, corpo-ação, corpo em direção ao fora.
1
pergunta do amigo Reuben. 160
das memórias que voltam:
O vento soprando para fora do carro, a roupa que não lembro se minha ou da minha irmã, deixada de lado junto a tampa do porta-malas, quando brincávamos ouvindo o barulho forte provocado pelo fluxo do vento passando por dentro do carro. Eu, sentada sozinha embaixo da penteadeira do quarto dos meus pais. A configuração do quarto um pouco turva pelas duas reformas do apartamento. Aquele quadro emoldurado por uma faixa de espelho: uma mulher com uma coroa de flores, a mão no rosto, olhando um ponto fora da imagem. Lembro da colcha marrom, inquestionavelmente feita à mão. Em sequência me vem a lembrança do quarto com a persiana fechada, quando o quarto deles tornou-se o nosso de quando criança. A mesma colcha marrom, minha mãe fora de casa e eu brincando com a revista de recortes de roupinhas para uma boneca de papel.
Eu descobri o corpo na imensidão do tempo que o atravessava, que o preenchia. Não captei somente a presença de um corpo desconhecido, mas o tempo fora da dimensão que tornou possível a evolução da vida, ou ao menos todas as flutuações do corpo humano sem forma, aberto sobre o tempo infinito não humano, aberto aos animais, às plantas, aos minerais, às moléculas, ao cosmos... mas que cosmos?2 Este é o ínicio – o marco de um começo que não cessa de recomeçar: o corpo, ponto de retorno (corpo-meditação: retornar-se o corpo diariamente3). O começo é – de onde aponta a flecha – 2 p.52 texto “Corpo-gênese ou tempo-catástrofe”, em A gênese de um corpo desconhecido de Kuniichi Uno. 3 “O real é aquilo com que a nossa relação é sempre viva e nos deixa sempre a iniciativa, dirigindo-se em nós a esse poder de começar, essa livre comunicação com o começo que somos nós próprios; e na medida em que estamos no dia, o dia ainda é contemporâneo do seu despertar.” - p.257 As duas versões 161
pensar o corpo que emerge para o dia e imerge para a noite, que oscila entre: corpo-desperto/ corpo-vigília/corpo-sonho/corpo-sono. Tentar desenhar a configuração, expressão de um corpo-recipiente, seu método e ciclos de trabalho. Do corpo-recipiente: o corpo-espírito que vê, sente, sonha, pensa e imagina. A construção deste estado de ser se dá em direção ao abismo ou às alturas, à montanha ou à água - encerrando em si possibilidades inversas: involução ou evolução, repouso ou movimento. Chamo este corpo, disposto para o trabalho, um corpo de encosta4 por ele ser índice do abeiramento de um fluxo. Procuro seu significado e encontro encosta como vertente ou o que verte; diz-se das águas que descem da encosta do monte; o declive da montanha, recosta, recosto, tombada; cada uma das superfícies de um telhado5. Um corpo de encosta é então este corpo que passa e por onde algo passa, o líquido que transborda e o recipiente, corpo que jorra e deixa jorrar, que tem a sua origem em ou toma determinado rumo; corpo em estado de desaguar. É corpo-água e corpo-montanha. “O tempo escorre sobre mim: eu permaneço”, insistia a fortaleza. “Vocês apenas afloram a superfície do devir como a pele da água dos riachos”. E as efêmeras: “Nós saltamos no vazio assim como a escrita sobre a folha branca e as notas da flauta no silêncio. Sem nós não resta senão o vazio onipotente e onipresente, tão pesado que esmaga o mundo, vazio cujo poder aniquilador se reveste de fortalezas compactas, o vazio-cheio que só pdoe ser dissolvido por aquilo que é leve e rápido e sutil”.6 Entre fortaleza e efemêra, é o corpo: do devir, do impulso e do ainda-não. A encosta como confluência do corpo real e imaginário – o campo da criação - a possibilidade de desfixar o imagido imaginário - Maurice Blanchot 4 Delineio esta noção de corpo a partir da reflexão, aproximação e cruzamento de pensamentos acerca do corpo que experimenta e cria em uma prática artística, com pensamentos suscitados pela imagem da temperança - virtude relacionada à sabedoria do estado de ser em que nada falta. 5
Definição de encosta no dicionário Michaelis, versão online.
6
p.87 “12. As efêmeras na fortaleza”, em Coleção de Areia de Ítalo Calvino. 162
Montagem com desenho OSAGE (presente de OlĂvia, aluna de 5 anos nas aulas de arte, quando fui estagiĂĄria na Escola da Serra), final de 2014; e fotografia de acervo pessoal.
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nário, propor e devolver figuras que correspondam ao infinito dos acontecimentos. À escuta do silêncio sussurrante - é um corpo em estado de desastre: “o que não significa nem a morte nem infelicidade, mas como se o ser se separasse da sua fixidez de ser, da sua referência a uma estrela, de toda a existência cosmológica, um des-astre.”7
7
p. 42 em O <<HÁ>>, Levinás. 164
Desenho em carbono da alegoria Temperanรงa, abril de 2016.
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Nélio Costa
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Acaso e Deriva
Deriva Desvio Percurso Viagem Exploração Descobrimento Desenho Resenhas Trilhas Trilho Memória Trauma Drama Trama Teia Conexão (impermanência) Acaso Nélio Costa, 2016 168
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Leonardo Rocha
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Vivência presencial e digital do espaço-tempo em jogo deambulatório pelas pedreiras de Belo Horizonte Essa reflexão decorre de uma experiência cotidiana tornada ação no momento em que se converte trajeto em destino, meio em fim. O que faz o olhar se converter em pensamento, que projeta uma fabulação em um determinado espaço, é primeiramente seu apelo sensorial, morfológico. Este lugar inusitado é um campo de futebol incrustado em uma encosta da colina, que divide os bairros: Colégio Batista, Concórdia e Lagoinha, em um quarteirão entre as ruas Pitangui, Rio Novo, Itabira e Formiga. Trata-se de um corte plano, cercado por um paredão de pedra em forma de J.
Vista da colina com a topografia achatada do paredão no Google Earth. Acesso em 24 de Junho de 2016.
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Na minha intenção nostálgica de encontrar na cidade uma natureza apartada da urbe, criei com o meu olhar o jogo paisagístico1 de considerar o semi-círculo rochoso da então denominada Arena Pitangui como uma formação natural, em uma natureza que se constrói geologicamente, sem a ação do homem. Num primeiro momento, a fantasia de sua resistência na paisagem urbana é mais afetuosa que a constatação da sua realidade como resíduo da ação humana - subtração involuntariamente escultórica. Mesmo esse espasmo, não foi o primeiro na forma como o olhar orientado pela trajetória de motorista em automóvel me permitiu: o trecho reto, paralelo às ruas Pitangui e a Itabira conduziu-me uma pregnância de paralelismo. Só depois, acrescentando a deambulação telemática do Google Maps, é que me foi possível depreender a curva inferior do “J”. No meu imaginário, essa forma parcial de panóptico vai de encontro à denominação arena, agora em voga para estádios de futebol, em analogia ao também tradicional Campo do Sete, tornado Arena Independência, que constato em novo espasmo deambulatório que faço no momento em que escrevo essas linhas: este também se encontra margeado pela mesma rua Pitangui trazendo ao jogo paisagístico esse parâmetro em comum, 23 quarteirões à leste. Outra constatação paralela, mas incontornável sobre uma cartografia do afeto é o fato da Arena Pitangui se encontrar a um quarteirão do meu endereço atual e a dois quarteirões do meu primei1 Segundo Frederico Canuto, “(...) A paisagem é o que vemos e não vemos e, mais além, como nos olham. (...)” (SIC) IN: Jogos Paisagísiticos: mapas e atlas como conceitos para a produção da paisagem. 174
ro endereço: por motivo de total coincidência venho a morar, em 2016, do outro lado da rua em que habitava entre 1970 e 1972. Um primeiro devaneio foi associar à escarpa a possibilidade de outras atividades físicas, tendo em vista que se trata de um espaço esportivo que testemunhei a “revitalização” a partir do quê que o Google me informa ser a primeira grama sintética “padrão FIFA” de Belo Horizonte2. Ocorreu-me que lá poderiam ser exploradas atividades de escalada esportiva. Em outros espaços em Belo Horizonte, como a Rokaz, no bairro Funcionários (na área conhecida como Savassi), a escala esportiva depende de um falso paredão de pedra feito em compensado de madeira e estrutura metálica. Na Arena Pitangui, junto à verticalidade do paredão que, naquele momento, me pareceu formado pela natureza, encontra-se essa também conveniente, mas sintética grama. A ironia feita pela notícia da grama “sintética” ao pé do paredão “natural” sendo o avesso da Rokaz é de fato intempestiva e falsa, pois antes dessa informação sobre o alinhamento espaço-temporal e qualitativo com a Copa do Mundo de 2014, já havia constatado que, antes de ser Arena Pitangui, o espaço havia sido uma das primeira pedreiras de Belo Horizonte, a Pedreira da Lagoinha, explicitando a origem de sua insólita verticalidade. São então, ambas, grama e paredão sintéticos. O blog que me fornece essa informação e ainda mantém a exclusividade cartográfica da menção à essa outra identidade do local na internet é o http://curraldelrei.blogspot.com.br, do pesquisador Alessandro Borsagli, com artigo dedicado ao que ele identificou como “as cinco pedreiras inseridas no espaço urbano de Belo Horizonte”3. São elas: Prado Lopes, Lagoinha, Morro das Pedras, Carapuça e Acaba Mundo. Essa matriz de informação estende o jogo paisagístico para os demais loci apontados por Borsagli, mais outros três em Belo Horizonte não mapeados por ele, nos quais se sobrepõem dados
2 2016.
Disponível em: http://www.futebolbh.com.br/?pg=noticia&id=965 Acesso em 23 de Junho de
3 Disponível em : http://curraldelrei.blogspot.com.br/2012/02/as-cinco-pedreiras-inseridas-noespaco.html Acesso em 23 de Junho de 2016. 175
temporais que, mesmo visuais, não são sempre convergentes. Mas ainda pesquisando sobre a Pedreira da Lagoinha, nota-se que buscas no google e no DuckDuckGo pelos termos Pedreira + Lagoinha, para além dos resultados no blog acima, nos levará à uma inversão do termo - Lagoinha Pedreira, que é uma obra da Igreja Batista da Lagoinha nas proximidades do mais próximo, antigo e notório locus da mesma origem na cidade que mantém hoje a exclusividade no uso do termo pedreira entre as cinco de Borsagli: (Antônio Pereira do) Prado Lopes, ou Pedreira da Viação - uma das primeiras favelas da cidade, cujos arredores são hoje conhecidos como a nossa mais evidente cracolândia, aderindo outro significado para o lugar de onde surgem “pedras”. Aliás, o crack é uma droga locativa, como detalha o estudo de Nayara Salgado4 no sentido de que seus usuários ficam próximos das fontes de distribuição da droga pelo seu caráter de segregação. Especulo que o caráter pejorativo que a denominação da pedreira vizinha suscita - o espaço hoje denominado Arena Pitangui - Recanto Sport Center, ingratamente, pouco faz menção à antiga pedreira que lhe deu o espaço plano - raro em BH e vital para o futebol. Pedreira e Lagoinha, dois termos que em si não suscitam entrelaçadamente degradação humana e urbanística mas recebem esse significado por ser esse bairro o mais violentado pela expansão viária da cidade e pelas condições de vida degradante da Aglomerado da Pedreira Prado Lopes e seu histórico com o tráfico de drogas. Hoje a Lagoinha é mais conhecida como um incompreensível complexo de viadutos - inclusive para quem os utiliza diariamente - adjacentes ao único conjunto de túneis urbanos de Belo Horizonte, também homônimo, deixando pouco espaço físico e mnemônico para a Lagoinha enquanto Bairro vibrante e boêmio que foi. Nota-se que o primeiro ato dessa expansão viária é a abertura da rua Pedro Lessa, dividindo a Pe-
4
SALGADO, Nayara. A pedra não pára. Revista. UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n.1, p.268-293, jan./
jun. Disponível em: https://www.ufmg.br/revistaufmg/downloads/20/13-a_pedra_nao_para_nayara%20 salgado.pdf 176
dreira Prado Lopes em dois flancos, expondo-a permanentemente junto à sarjeta (literal e simbólica). A única, outra das cinco pedreiras mencionadas por Alessandro Borsagli, que mantém esse nome, está no avesso da visibilidade física, social e afetiva da Prado Lopes: é a do Acaba Mundo, que se mantém oculta da malha viária da cidade, atrás de uma colina que a separa da sua comunidade homônima, de antigos mineiros, na zona sul da capital. Conhecidas nesse estudo apenas pela geografia telemática, Morro das Pedras e Carapuça, são “ex-pedreiras” como Pitangui/Lagoinha - tanto porque foram marcadas por tragédias e remediações sociais, mas também por não apresentarem (mais) uma morfologia destacada como as da Lagoinha e Prado Lopes, fato indicado pela deambulação eletrônica feita por elas. A primeira, na região que hoje só lhe tem o nome, foi, como as demais cinco, uma fonte de dolomita para calçamento da cidade em formação, em finais do século XIX. Irreconhecível enquanto pedreira, nas precárias visadas de ambos através do google earth e maps, precisa ainda de uma diligência física sobre a arqueologia dessa função, há muito extinta. O trabalho de quebrar pedras, emblema do castigo penitenciário, só encontra lugar na vida lícita de uma cidade quando essa se esquece - mesmo quando planejada como Belo Horizonte - de destinar moradia a esses literais mineiros fundadores da cidade. As cinco pedreiras apontadas por Borsagli geraram, ao seu redor, precárias comunidades contemporâneas e com condicionantes que lhe permitem o homônimo das favelas do Rio de Janeiro e da planta dos arredores de Canudos no século XIX. 177
Para o Morro das Pedras foram deslocadas comunidades do Barroca e Santo Agostinho, entre 1935 e 1938, pelo prefeito Otacílio Negrão de Lima. Entre expulsões e re-aglomerações forçadas por sucessivas ondas de especulação imobiliária é entre os anos 1960 e 1980 que a aglomeração mais cresce e torna-se indissociável da marginalidade, com a implementação na região de um equipamento urbano às avessas: o lixão, lugar de simples descarte desordenado de toda e qualquer sorte de resíduo. Entre 1945 e 1971 todo o lixo retirado da cidade era depositado sem qualquer controle de compactação, drenagem e aterramento. No lixo tinha de tudo: alumínio, cobre, vidro, papel, plástico, carne de frango, boi, peixe e de porco, arroz, feijão fubá, frutas, verduras, lixo hospitalar, etc. Da aglomeração no entorno do lixão surgiram as vilas Santa Sofia, Cascalho, Antena, Leonina e São Jorge. [VICTOR, 2012]5 Assim como sobre as demais pedreiras, as informações sobre o Morro das Pedras é escassa mas, no trailer de um precioso documentário baseado em relatos de seis moradoras do aglomerado6, confirma-se que, em um segundo momento, o vão gerado pela extração mineral foi ocupado por esse acúmulo: Na madrugada de 18 de novembro de 1971 5 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Morro_das_Pedras_(Belo_Horizonte). Autor: Nilo Victor, líder comunitário. 10 de Janeiro de 2012. Acesso em 24 de Julho de 2016. 6 O longa “Aterro”, de 2011, do documentarista Marcelo Reis: http://www.aterrodoc.com/ Mencionado em: Revista UH. Revista Urbanização e Habitação. Belo Horizonte, Jan.2014, Ano I, Nº 1 Cia. Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte - Urbel. p. 61 178
ocorre uma tragédia. Em decorrência das chuvas, a montanha de lixo desliza morro abaixo soterrando barracos e matando oficialmente 12 pessoas. Os moradores dizem que o número de vítimas foi maior. No ano seguinte, uma explosão de gás metano, produzido no processo de decomposição do lixo, provoca mais vítimas. Fato que veio a se repetir em 1976. Em 1992, outra explosão próxima à Rua da Pedreira provoca danos materiais em algumas casas e deixa os moradores apreensivos. Os acidentes despertam a atenção da Prefeitura. No mesmo ano, oito famílias são removidas para o Conjunto Habitacional Ziláh Spósito [IBDEM]
Em 2003, nova tragédia: um grande deslizamento de terra mata três crianças de uma mesma família. No mesmo site da prefeitura de Belo Horizonte, onde se encontra um breve histórico sem data do Morro das Pedras, conta-se que, entre outras realizações, no período de gestão de um certo Secretário Renato Santos Pereira, teria sido realizado, entre diversas obras, a implantação do Parque Esportivo Morro das Pedras, indexado no Google Maps como “Parque do Lixão”, no mesmo espaço onde ocorreu o desmoronamento de 20037. Também sem data, em outra página8 o site da prefeitura de Belo Horizonte, informa que: (...) realiza obras para a ampliação e reforma do Parque Ecológico Morro das Pedras. Os trabalhos consistem na ampliação da área existente, reforma, implantação de quadras e áreas de lazer. O parque está localização na rua Conselheiro Joaquim Caetano com Rua Braz, 207. São investidos cerca de R$ 790 mil neste empreendimento executado pelo Programa Vila Viva Morro das Pedras. Nenhuma imagem é mostrada. O google maps na vista aérea e na vista de solo (Street View) mos7 Disponível em: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=e cpTaxonomiaMenuPortal&app=historia&lang=pt_BR&pg=5780&tax=14375 - Acesso em 26/06/2016. 8 Disponível em: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal &app=politicasurbanas&lang=pt_BR&pg=5562&tax=19938 - Acesso em 26/06/2016. 179
tram situações diferentes, com obras no local. Depois de deambular pelo Google Maps no nível do solo, subindo a Rua Brás sem nada encontrar, faço o caminho inverso descendo pela rua sem nome entre Ruas Brás e Carmo, paralela à jusante da Rua Marcelo de Araújo Braga e encontro duas situações distintas na esquina, como o entroncamento de dois tempos em um mesmo espaço: 2015 e 2009. Nota-se que o espaço “novo” é de fato o antigo. Descubro o recurso de tempo do Street view e refaço a constatação. Não imagino que Canuto tivesse previsto uma situação tão espasmódica ao encadear em dados espacialidades desordenadas. Denomino essas imagens de Transversal do tempo, em homenagem à música de João Bosco e Aldir Blanc9. Utilizando o recurso de linha de tempo do Street view para essa esquina10 na data de 2009, nota-se a implementação de uma suposta portaria para o parque.
Julho de 2009
9 Letra que fala de um personagem que se sente suspenso no tempo enquanto espacialidades afetivas lhe atravessam: (...) As coisas que eu sei de mim Tentam vencer a distância. E é como se aguardassem feridas Numa ambulância As pobres coisas que eu sei Podem morrer, mas espero Como se houvesse um sinal Sem sair do amarelo. 10 Utilizando-se o endereço e as coordenadas: Rua Bráz, 255 - Santa Sofia Belo Horizonte - MG -19.948897, -43.965962, oriente a visão para o norte e se aproxime da esquina selecionando o recurso de linha do tempo. 180
Já nas datas posteriores de Julho e Novembro de 2013, Março de 2014, Agosto e Setembro de 2015: a obra desaparece. Assim como um arbusto diante da guarita “desaparece” e outros “crescem”.
Julho de 2013
Nov. de 2013
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Março de 2014
Setembro de 2015
No mais, só muda o lixo. Mas a Rua Brás não era transitável na descida em 2009. Só no asfalto melhorado de 2013, mas já sem o parque que se situava ao lado, nesse palíndromo espaço-temporal. Na contra-esquina – quase no encontro da Rua Tibiriçá com a Rua Conselheiro Joaquim Caetano11 - encontro a sequência temporal das placas da obra. Batizo esses printscreens de Falha na Matriz:
11 Utilizando-se o endereço e as coordenadas: Rua Tibiriçá, 228-270 - São Jorge Belo Horizonte - MG, 30431-390 -19.947228, -43.967808, voltando-se para o sudeste. 182
Julho de 2009
Julho de 2011
Maio de 2012
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Julho de 2013
Fevereiro de 2014
Agosto de 2015 184
Do ponto de vista do Google Earth, a Pedreira da Carapuça tem a sua área plana ocupada pelos prédios do Abrigo Pompéia, lar de pessoas desabrigadas da PBH, correlato à Escola Municipal São Rafael. Os Prédios parecem obliterar a Pedreira, que cumpre assim apenas a função de muro de fundos separando por altura a Vila São Rafael que a cerca. Seria interessante averiguar se o fato desse cava ser hoje um espaço público da municipalidade apresenta algum trabalho de memória do tempo da sua atividade. Não é possível ver a pedreira do Street View.
Trazemos da nossa memória a sensação de que toda vivência é síncrona com o agora. Experiências como a do Google Earth estão des-naturalizando essa sensação e inserindo-a em modalidades mais amplas de deslocamento no sentido de um displacement, desterramento no sentido tradicional de como o espaço se adere ao tempo e vice-versa. Agora o tempo torna múltiplo o espaço assim como esse faz dobras no tempo. Esse novo conhecer dos lugares com certeza afeta a nossa relação de surpresa, descoberta - de unicidade sensorial à um certo momento e lugar em uma explicitação um tanto violentadora da nossa imaginação. Essa explicitação do espaço-tempo o uniformiza ao contemplarmos a malha urbana como um aparente e monótono continuuum. Mas essa aparente monotonia se desconstrói quando o olhar se reeduca para essa paisagem explicitada. O exercício de descoberta de algo novo mesmo que telematicamente resgata algo nostálgico do frescor da deambulação física. Curiosamente, localizar as pedreiras de Borsagli na visada inumana da vista aérea do Google Maps me ensinou à interpretar descontinuidades similares como tal. Ainda mais quando a orientação espacial foi alertada para uma certa possibilidade de ocorrência desse ruptura espacial provida pelas pedreiras. 185
Procurando um endereço para orientar um deslocamento episódico descobri as quatro pedreiras justapostas do bairro Mariano de Abreu, que haviam sido mencionadas verbalmente por colegas do LEVE - Laboratório de Estudos e Vivências da Espacialidade da EBA-UFMG. Sua história e atualidade aguardam estudos.
Outra soma de relato verbal e escrutínio telemático é a descoberta da cava do bairro Engenho Nogueira, a mais desolada de todas. Seu acesso por carro é interrompido por manilhas colocadas no encontro das ruas Engenho do Mar e João Martins de Souza.
A via que parece ser a continuação da rua João Martins de Souza aparece sem nome no Google Maps. E ainda: uma nova consulta ao local o mostra em resolução mais baixa do que essas ima186
gens obtidas anteriormente. O Street view ainda mostra imagens de Abril de 2014 das manilhas interrompendo o acesso por carro.
A única cava de mineração urbana identificada apenas por sua marca gráfica na imagem aérea da cidade é uma no Jardim Vitória, inserida dentro de um empreendimento imobiliário chamado Parque Real, as margens da BR-381. De fato sua marca já é sub ou extra-urbana pois já que se encontrava aparentemente cercada de terreno não construído e cheia de água - provavelmente oriunda de rebaixamento do lençol freático como é recorrente em cavas abandonadas de mineração. É uma somatória de imagens de 14 de Junho de 2009 segundo o Google Earth, que utilizamos em Julho de 2016.
O Google Street View nos mostrava um enorme paredão de pedra entre os prédios, mas talvez a perspectiva tenha exagerado na redução dos prédios acima da cava. 187
Nos causou espanto o seu tamanho e o contraste entre o seu impacto visual e topográfico dentro do condomínio e o que propunham as imagens publicitárias, intrigando-nos se a promessa da tão sonhada área verde das “meras imagens ilustrativas” era factível e se os “acabamentos” da paisagem poderiam sofrer tal modificação12. A cava se encontra exatamente onda a imagem sintética aglomera árvores.
Para nossa surpresa, três meses depois da “visita” por Google Maps e Google Earth, nos deparamos nesse Novembro de 2016 com a cava encoberta na visão aérea, embora ainda mostre a visada da cava de Agosto de 2013 no Street View e também em um “tour virtual 360” no totalmente reformulado site do empreendimento.
12
Disponível em: http://www.parquereal.com.br/Acesso em 15 de Julho de 2016. 188
Se desconfiamos da “veracidade” de imagens publicitárias, mesmo sem o aviso de “meramente ilustrativas” e o que constatamos redundante à imagens de paisagem: “passíveis de modificação”, parece que o Google Maps as corrobora:
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Essa foi a mais rápida transformação da paisagem que encontramos em nossa deambulação virtual. Um contraste curioso quando justaposta à lenta agonia de transformações físicas e sociais do Morro das Pedras. Essas três últimas pedreiras - Mariano de Abreu, Engenho Nogueira e Jardim Vitória não apresentam nenhuma informação sobre a sua vida pregressa de atividade minerária na internet. À margem do mapeamento histórico de Borsagli, nos colocam no lugar do fabulador de certas possibilidades: a do Engenho Nogueira é fato uma pedreira gerada pela atividade humana? Ou resgata a minha nostalgia inicial de natureza pela Pedreira da Lagoinha? Qual é o potencial de histórias das quatro cavas do Mariano de Abreu tão cercadas de presença humana como testemunhamos em visita à Pedreira da Lagoinha? Como o apagamento geológico da pedreira do Jardim Vitória para ocultá-la dos moradores do Parque Real apaga a sua história?
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Currículos
ARMANDO QUEIROZ (Belém do Pará,1968) Mestrando da Escola de Belas Artes da UFMG. Detém-se conceitualmente às questões sociais, políticas, patrimoniais e às questões relacionadas à arte e à vida, tendo como referência a cidade e o outro. Em 2014, participou da 31ª Bienal de São Paulo. Em 2015, participa de exibição de videoarte no Pompidou – Metz (França) e do 19º Festival de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil e, em 2016, do Amazonian Video Art em Glasgow (Escócia - UK). Vive e trabalha entre Belém e Belo Horizonte.
DIEGO LUAN DE MEDEIROS (Belo Horizonte, 1990) Bacharel em cinema de animação, pelo curso de artes visuais da UFMG, graduando em desenho pela mesma. Ilustrador; artista plástico, gráfico; animador e, quem sabe, até escritor, performista, piadista, ator, enrolador e enganador que não engana ninguém...
ELISA CAMPOS (São Paulo, 1964) Artista-pesquisadora, Doutora em Arte pela Escola de Belas Artes da UFMG (2011), pesquisando a materialidade da imagem, fotografia e paisagem na contemporaneidade, com estágio na Université Paris8, Saint Denis – FR. É professora na EBA/UFMG, atuando na Pós-Graduação e na Habilitação em Artes Gráficas. Tem realizado exposições e experiências de intervenção urbana, individuais e coletivas, sendo coordenadora do Grupo de Pesquisa LEVE - [Laboratório de Estudos e Vivências da Espacialidade].
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FREDERICO ALVES CAIAFA (Belo Horizonte, 1984) Mestrando em Artes Cênicas pela UFOP. Especialista em Análise Institucional, Esquizoanálise e Esquizodrama. Professor de Língua Inglesa e Portuguesa. Trabalha com edição, revisão de textos, áudios e vídeos. Produtor e performer em coletivos de artes e DJ.
INGRID SÁ LEE (Belo Horizonte, 1995) Estudante de Artes Visuais, atualmente está imersa em sua iniciação científica com seu projeto investigativo sobre processos de criação de brinquedos, chamado “O Brinquedo tem Memória”. Já expôs coletivamente nos espaços da Casa Camelo, Centro Cultural do Salgado Filho e Centro Cultural do São Bernardo, além de ter participado de uma exposição individual virtual no site Galeria Aut, com uma série de fotografias onde aborda as estereotipias do autismo de seu irmão caçula.
ISADORA BELLAVINHA (Belo Horizonte, 1990) Isadora Bellavinha é pesquisadora nas áreas de Literatura e Artes formada pela UNIRIO e desenvolve investigações entorno da tradução intersemiótica, educação alternativa e desdobramentos do poético nas artes performáticas. Escreveu e dirigiu o espetáculo “Antes que você parta pro teu baile”, baseado na obra de Ana Cristina Cesar, e o curta “Por onde se entra”, a partir do estudo da paisagem na obra de Maria Gabriela Llansol.
JOSÉ LARA (Itaúna/MG, 1990) Vive e trabalha em Belo Horizonte/MG. Graduado em Artes Visuais pela EBA-UFMG. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes da EBA-UFMG. Apresentou três exposições individuais em Belo Horizonte: O que existe por dentro (ou por trás), 2013 - Galeria de Arte da CEMIG / Incursões, 2015 - Museu Inimá de Paula / Diante da Matéria, 2015 - Galeria de Arte da COPASA.
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KEILA GONÇALVES Mestranda em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Em sua trajetória acadêmica investiga o campo da cultura, das políticas culturais, da arte contemporânea e da museologia.
LAÍS FERREIRA (Belo Horizonte, 1991) Artista, pesquisadora, graduanda em artes visuais pela Escola de Belas Artes/UFMG. Tenho como práticas artísticas principais a pintura, a fotografia, a gastronomia e seus desdobramentos experimentais. Atualmente interessada em degustar a vida, um prato de cada vez.
LAURA BERBERT (Uberlândia/MG, 1990) Artista visual e editora, graduada e mestranda na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Desenvolve trabalhos em diferentes meios: desenho, pintura, gravura, fotografia, vídeo, costura e escrita. Fundou em 2013 a editora Lavoura ambulante & edições, em parceria com Ricardo Reis, que publica livros de artista e impressos autorais e de outros artistas.
LEONARDO ROCHA DUTRA (Belo Horizonte, 1970) Graduado em Comunicação Social pela PUC Minas (1993), Mestre em Design pela ED-UEMG (2012) e doutorando em Artes Visuais pela EBA-UFMG. Estuda, pratica e leciona arte e design audiovisual, com ênfase em motion graphics e stop-motion. Tem prêmios a publicações nacionais e internacionais nesses campos.
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LETÍCIA GRANDINETTI Mestre em artes visuais pela UFMG. Atuou como professora de desenho na escola de Belas Artes – UFMG e na Escola Guignard - UEMG até 2015. Atualmente desenvolve pesquisa sobre a presença do desenho na performance e orienta alunos interessados no estudo do desenho. (www.leticiagrandinetti.carbonmade.com)
MARCELINO PEIXOTO Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes/UFMG, Bacharel em Pintura EBA/UFMG. Tem como hábito praticar desenho. Atua como professor de Desenho. Desde 2005 integra o coletivo xepa.
MARIANA PAZ Graduada em Artes Plásticas pela UEMG, com especialização em desenho e escultura. Participou de algumas exposições coletivas, entre elas “O Grande Pique Nique” (Casa de Cultura de Brumadinho), “Casa das Vitaminas” (Galeria da EBA) e “Que mulher é essa” (Casa de Cultura de Sabará). Gosta de participar de coletivos e de estar com o desenho e a pintura. Emergindo da experiência da maternidade, traz o olhar transformado pela e para a infância.
MÔNICA VAZ (Belo Horizonte, 1982) Mestre em Teoria da Literatura, graduada em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes/UFMG. Artista gráfica, pesquisadora e professora assistente III do curso de Arquitetura e Urbanismo/UNI-BH.
NÉLIO COSTA Artista prático, Mestre em Artes Visuais pela EBA/UFMG e graduado em Artes Plásticas pela Escola Guignard/UEMG. Desenvolve projetos de criação, produção, formação e exibição na área audiovisual. É professor de cinema e novas mídias. Atualmente tem se dedicado a projetar imagens e provocações em paredes de prédios, como contraponto à hegemonia da mídia tradicional.
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RAFAEL SODRÉ DE CASTRO (Belo Horizonte, 1988) Músico e compositor de trilha sonora, é doutorando em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais, atuando na linha de pesquisa Poéticas Tecnológicas. Mestre em Artes, é graduado em Música pela Universidade do Estado de Minas Gerais (2010). Integra os grupos de pesquisa: LEVE - Laboratório de Estudos e Vivências da Espacialidade - e o InterSignos, que discute a relação entre imagem e som em obras audiovisuais contemporâneas. É professor de artes na Fundação de Ensino de Contagem e atua como VJ na banda experimental de Música-video “As Is”, dedicada a improvisações audiovisuais a partir de roteiros, partituras gráficas e games.
THÁLITA MOTTA (Andradas, 1989) Artista e pesquisadora, desenvolve seu doutoramento em Artes pela EBA/UFMG onde pesquisa carnavalização e performatividade. Professora substituta do Departamento de Artes Cênicas na UFOP, faz parte do coletivo cênico Transborda, é membro do LEVE em Belo Horizonte e coordena o núcleo LEVE / Ouro Preto. Também desenvolve o Núcleo de Pesquisa em Cenografia e Figurino do Galpão Cine Horto, onde atua como coordenadora dos Núcleos de Pesquisa.
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Grupo Leve
Coordenação: Elisa Campos Editores: Armando Queiroz; Frederico Caiafa; Isadora Bellavinha; José Lara; Keila Gonçalves; Mônica Vaz; Thálita Motta Revisão de textos: Fred Caiafa, Elisa Campos e Alice Santos Projeto Gráfico: Mônica Vaz Tratamento de imagens e diagramação final: Nathaly Ferreira e Alice Santos (Bolsistas de Iniciação Científica - CNPq) Foto /capa: José Lara [ação: Marcelino Peixoto] Foto/folha de guarda: Frederico Caiafa [manuscritos: Armando Queiroz] Fotos/miolo: Grupo LEVE
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFMG, MG, Brasil)
P227 Pare olhe escute / Laboratório de Estudos e Vivências da Espacialidade - LEVE, [organização]. – Belo Horizonte : Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes da UFMG, 2017. 197 p. : il. ; 19 x 21 cm. Vários autores. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-88587-19-9 1. Arte contemporânea. 2. Espaço urbano. 3. Sociologia urbana. I. LEVE. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Belas Artes. CDD: 709.05
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