Portfólio

Page 1

ANTONIO GUEDES


ESPETÁCULOS

1988 :: O olhar de Orfeu 1989 :: Valsa nº 6 1991 :: Quando nós os mortos despertarmos 1993 :: O marinheiro 1993 :: Valsa nº 6 1995 :: Penélope 1998 :: O fantasma de Canterville 1998 :: O jogo do amor 1998 :: A serpente 2000 :: Henrique IV 2001 :: Drummond 2002 :: A Rua dos Cataventos 2003 :: Medeia, de Eurípides 2003 :: O homem da flor na boca 2003 :: Navalha na carne 2004 :: Vestir os nus 2005 :: A confissão da Leontina 2006 :: Open House 2006 :: Peer Gynt 2007 :: Valsa nº 6 2007 :: Animal do Tempo 2007 :: A Rua do Inferno 2008 :: A filha do teatro 2011 :: AntígonaCreonte 2011 :: Teatro dos ouvidos 2012 :: Na solidão dos campos de algodão 2012 :: Primeiro amor


Antonio Guedes é Professor Assistente da Escola de Belas Artes da UFRJ. Foi Diretor Adjunto de Cultura entre 2010 e 2013. Formado em direção teatral pela UNIRIO e mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ, em 1991, fundou a Companhia Teatro do Pequeno Gesto com a qual realizou a encenação de 20 espetáculos e desenvolveu um projeto de oficinas itinerantes que passou por mais de 60 cidades de todo o país. Em 1998 criou, com Fátima Saadi, a revista de ensaios sobre teatro Folhetim, cujo conselho editorial integra. Neste mesmo ano recebeu duas indicações (direção e trilha sonora) para o Prêmio Shell de Teatro pelo espetáculo A serpente, de Nelson Rodrigues. Entre seus últimos trabalhos pela Companhia estão A Rua do Inferno, de Antonio Onetti e A filha do teatro, de Luís Augusto Reis. Estreou, em 2011, AntígonaCreonte, uma adaptação da tragédia de Sófocles e, no mesmo ano, Teatro dos ouvidos, de Novarina. Fora da Companhia, realizou recentemente A confissão de Leontina, de Lygia Fagundes Telles que, além de cumprir temporadas no Rio, também esteve em cartaz no Teatro D. Maria em Lisboa em novembro de 2006. Em 2007 estreou O animal do tempo, de Valère Novarina, no Espaço Sesc, que cumpriu temporada também em São Paulo. Em 2011 encenou Mirandolina em Maceió e, em 2012, encenou Na solidão dos campos de algodão, de Koltès no Recife, que resultou no Prêmio APACEPE de melhor diretor para Guedes e melhor ator para Tay Lopez e, tendo sido contemplado com o Prêmio Myriam Muniz, irá circular pelo Brasil em 2014. Sua mais recente encenação estreou em 2012: Primeiro amor, de Samuel Beckett. Em maio de 2013, integrando as atividades do MinC/Funarte do Ano Brasil em Portugal levou o espetáculo A serpente, apresentando-o nas cidades do Porto, Coimbra e Braga.


1988 1989

Olhar de Orfeu, de Maurice Blanchot

Valsa nº 6, de Nelson Rodrigues

Ainda cursando a graduação – concluída em 1988 –, Antonio Guedes foi convidado a integrar um núcleo de pesquisa prática dentro do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. A proposta era realizar uma investigação em torno do papel de cada elemento constitutivo do espetáculo. O trabalho se estendeu por todo o ano de 1987, e a pesquisa foi concluída em 1988. Essa empreitada partia do ensaio de Maurice Blanchot, O olhar de Orfeu, que deu título ao espetáculo. As apresentações tiveram lugar num pátio interno do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, cujo prédio foi construído por D. Pedro II, em 1841, para abrigar um grande hospício. O espetáculo era visto através das janelas desse edifício e o dispositivo cênico foi instalado em meio à vegetação que ora revelava, ora encobria os atores. Primeiro trabalho profissional, O olhar de Orfeu nasce de um desejo de encenar a partir de uma inquietação. E o resultado era um espetáculo abria novas inquietações. Valsa nº 6, de Nelson Rodrigues, foi a segunda tentativa de responder à questão apresentada pelo espetáculo anterior: como podemos construir um espaço que integre, de forma viva, a realidade e a ficção? E essa questão foi se repetindo pelos próximos 14 anos.

Olhar de Orfeu Elenco Beto Tibaji Claudia Vianna

3



5


Valsa nยบ 6 Elenco

Angela Leite Lopes

6


1991

Quando nós os mortos despertarmos, de Henrik Ibsen Estreou no Espaço Cultural Sergio Porto em 1991, seguindo, depois, para o Teatro Nelson Rodrigues. Quando nós os mortos despertarmos, escrita em 1899, é a última peça de Ibsen. O escultor, Arnold Rubek, enfastiado da rotina e do trabalho, que deixou de ser um desafio, encontra-se casualmente com Irene, a modelo com quem havia trabalhado na grande obra da sua vida. Agora, a paixão que os ligava se explicita e eles recordam os tempos de juventude, quando o vigor da criação era tão grande que impedia que o artista se voltasse para sentimentos mundanos. Resolvem, consumar sua paixão no alto de uma montanha, de onde poderiam contemplar “todos os esplendores da terra”. Entretanto uma avalanche de neve os colhe no caminho, impedindo a realização do amor de Rubek e Irene. Depois de Peer Gynt, sua última peça em versos, Ibsen escreveu em prosa uma longa série de peças, sempre reiterando que sua última peça seria em versos, forma que ele considerava nobre. Depois da estreia de Quando nós os mortos despertarmos cobraram-lhe a prometida peça em versos e ele respondeu que aquela não era sua última peça. Mas, pouco depois, teve um derrame que o deixou imobilizado. Passou seus últimos sete anos assistindo, da janela, a vida que se processava lá fora. Quando nós os mortos despertarmos não foi escrita em versos, mas o tema e a atmosfera criada pela peça, que dialogava com o simbolismo, fazem desse texto um belo poema em versos livres. Na encenação, todo o espaço é compreendido como uma instalação dividida em três partes que serão destinadas, cada uma, a um ato da peça. Pelo chão, folhas secas misturadas a páginas amarelecidas de livros unificam a área ocupada simultaneamente pelos personagens e pelo público.

Elenco Caco Monteiro Claudia Ventura Helena Varvaki Dudu Sandroni Noris Barth Luiz Carlos Persegani

Um rio envolve todos os presentes. Uma longa serpentina de canaletas de resina permite o escoamento da água, cujo ruído pode ser ouvido ao longo de todo o espetáculo. A música se apresenta em dois níveis: incidental, gravada, quando atua no sentido de criar climas, e ao vivo, quando dialoga com os personagens e com o texto. Um saxofonista funciona como uma figura intermediária entre o público e os personagens. O tratamento naturalista dado à atuação, em contraste com o espaço abstrato construído pelo cenário, conferia a esse espetáculo uma clara intenção de “jogar” com a distância no tempo, o espaço de quase 90 anos entre a sua escrita e a nossa montagem.

7



1993

O marinheiro, de Fernando Pessoa

Estreou no Teatro Duse em 1993 e seguiu, depois, para o Espaço Cultural Sergio Porto. Convidado a se apresentar no Festival de Uberaba em 1994. Um dos raros textos dramáticos de Fernando Pessoa, O marinheiro fala do sonho e de lugares e vidas imaginadas que se tornam presentes pela força da palavra de quem os cria e de quem ouve falar deles. Três jovens conversam suavemente. Velam uma moça. A noite custa a passar e as histórias fazem passar o tempo. Imóveis, conversam. Lembram do passado como de uma época feliz. Mas teria sido mesmo assim? Além-mar, um marinheiro perdido constrói para si um novo passado e povoa o silêncio desse encontro. Uma das jovens tece esse relato com sentimentos delicados como os matizes de uma bela e trabalhosa tapeçaria. Quando raia o dia, as próprias jovens, tomadas pela história que inventaram, percebem-se entre o sonho e a realidade – ficção de si mesmas, ficção que os passos que se ouvem fora daquela sala vêm interromper. A encenação, investindo na imobilidade das atrizes e no movimento proporcionado pelas imagens das palavras, coloca-as sentadas em cadeiras giratórias que estão sobre um palco também giratório. Assim, a vertigem proporcionada pelo envolvimento que a história cria, adquire concretude no giro que se acentua ou se atenua de acordo com o andamento do espetáculo.

Crítica

O poder mágico das palavras Lionel Fischer Tribuna da Imprensa, 21/10/93

Na madrugada de 11 para 12 de outubro de 1913, após infrutíferas tentativas de cair nos braços de Morfeu, Fernando Pessoa finalmente convenceu-se de que não conseguiria dormir. Então, resolveu escrever. Entretanto, desprezando sua especialidade – a poesia – pôs-se a dar forma a uma peça teatral cuja estrutura fugiria por completo da habitualmente utilizada pela esmagadora maioria dos dramaturgos e à qual batizaria de Teatro Estático. O resultado dessa experiência, O marinheiro, pode ser avaliado no Espaço Cultural Sérgio Porto. “Chamo de teatro estático àquele cujo enredo dramático não constitui ação – isto é, onde as figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas sequer têm sentidos capazes de produzir uma ação; onde não há conflito nem perfeito enredo. Dir-se-á que isto não é teatro”. De fato, as premissas essenciais do poeta contrariam frontalmente a conceituação clássica do que vem a ser teatro, que pressupõe a evolução da ação dramática como decorrência dos conflitos entre os personagens.

9


Elenco Christine Lopes Claudia Bernardo Claudia Ventura Julia Merquior Luciana Borghi

10


Mas Pessoa acreditava piamente na validade de seu projeto, argumentando que “pode haver revelação de almas sem ação, e pode haver criação de situações de inércia, momentos de alma sem janelas ou portas para a realidade”. Ou seja, o poeta estava convencido de que os personagens poderiam revelar-se muito mais em função das palavras que trocassem do que das ações empreendidas. Estas poderiam ser abolidas, desde que o universo evocado transcendesse o espaço físico da representação. No caso específico de O marinheiro, estamos diante de três irmãs insones que aguardam a aurora – no original, elas participam do velório de uma menina. Para aplacar a lentidão do tempo, inventam contos, que na verdade traduzem seus sonhos. Um deles fala de um marinheiro que, após escapar a um naufrágio, refugia-se em uma ilha e ali cria para si mesmo um passado absolutamente fictício, apenas para combater a solidão e o ócio. Fica implícito que, a partir de um determinado momento, o marinheiro não consegue distinguir realidade e sonho. O mesmo se dá com as irmãs, que inventaram o marinheiro e tentam recriar o próprio passado. A irrealidade e a dúvida, portanto, estão na essência da situação proposta por Pessoa. De concreto, apenas o poder mágico das palavras. Para dar vida à proposta de Pessoa, o encenador Antonio Guedes criou uma dinâmica cênica da mais alta teatralidade. As irmãs, à exceção de um breve momento, estão sempre sentadas em poltronas giratórias, acopladas a uma estrutura que também gira quando os sonhos evocados ganham substância. A ideia visa provocar no espectador a sensação de vertigem, que, embora obtida, teria sido ainda mais contundente se o processo fosse inverso: as atrizes permanecendo estáticas e a platéia girando. Outro mérito do diretor repousa na forma como conduziu o trabalho do elenco. Coerente com o nome da companhia que lidera – Teatro do Pequeno Gesto – , Guedes persegue a sutileza, a precisão do detalhe, a emoção que pode advir de um simples olhar ou de um discreto movimento de mãos. Tais objetivos foram inteiramente consumados, graças ao talento e inteligência das três intérpretes. Christine Lopes, cuja personagem evoca o sonho do marinheiro e que por isso tem maior influência do que as demais no desenrolar do espetáculo, tem atuação notável. A atriz mostra-se igualmente brilhante, tanto nos momentos em que a angústia a domina quanto naqueles em que, visceralmente arrebatada pelo sonho, transfigura-se por completo, como se acreditasse em sua materialização. Claudia Ventura, que acreditamos irá tornar-se uma das melhores atrizes deste país, valoriza as componentes fundamentais de seu papel: o otimismo ao qual se mesclam, em doses parecidas, tristeza e ingenuidade. Luciana Borghi defende com sensibilidade o personagem menos interessante, posto que habitado quase que tão somente pelo conformismo. Quanto à equipe técnica, já mencionamos a interessante estrutura cenográfica, de autoria de Gilson Motta. Ele responde ainda pelos ótimos figurinos, que convertem as personagens em viúvas de si mesmas, pois a vida real é substituída pela sistemática evocação de fatos não vividos. Outro destaque do espetáculo não é perceptível em cena: trata-se do ótimo programa, cuja aquisição (será que ele é gratuito?) torna-se obrigatória, entre alguns motivos pelos excelentes textos assinados pelo diretor e por Fátima Saadi, dramaturgista da montagem.

11


1993

Valsa nº 6, de Nelson Rodrigues Estreou no Teatro Duse (RJ) em 1993. Integrou o XX Festival de Teatro de São Cristóvão (1993), abriu o II Festival de Teatro e Dança do Estado do Tocantins (1994) e participou do I Porto Alegre em Cena(1994). Sônia, menina assassinada aos quinze anos, tenta durante os 60 minutos deste monólogo lembrar-se de tudo o que lhe aconteceu antes de ter sido apunhalada pelas costas por alguém que lhe pedia que tocasse ao piano a Valsa nº 6, de Chopin. Sônia tenta encadear fatos que ninguém, nem mesmo ela, poderia afirmar se são verdadeiros ou inventados. Assim, Valsa nº 6 conta a história de uma menina que não sabe quem é, nem onde está. Ela procura a si própria e, nesta busca, reinventa cada personagem que passou por sua vida. Reinventa, inclusive, Sônia. Fala-nos de uma Sônia malvada, ciumenta e perversa, mas também suave, lírica e infantil. O jogo com a ambiguidade é a marca desse texto de Nelson Rodrigues. Valsa nº 6 lida com o espaço da transição, o espaço da passagem: a menina que se transforma em mulher; a passagem da vida para a morte; o espaço entre a realidade e a ficção. E não há como privilegiar um desses níveis, pois eles estão todos entrelaçados, convivendo em cena.

Elenco Claudia Ventura Helena Varvaki

12


1995

Penélope, de Antonio Guedes e Fátima Saadi Estreou em 1995 e, após duas temporadas no Rio, o espetáculo foi convidado a participar do II Porto Alegre em Cenaea integrar o projeto Teatro nas Universidades, promovido pela Prefeitura do Rio. Em 2001, retornando ao repertório, foi convidado para o Festival Nacional de Garanhuns (PE) e para o Festival de Inverno de Ouro Preto (MG). Penélope, inspirada na Odisséia, de Homero, relata a noite anterior à chegada de Ulisses à sua casa, onde sua mulher o espera há vinte anos, lutando para se livrar do assédio dos pretendentes que desejam obter a sua mão e, assim, apoderarem-se dos tesouros do reino.

Crítica

Grupo reafirma talento em ótima versão do mito Lionel Fischer Tribuna da Imprensa, 13/06/95 Após aguardar a volta de Odisseu por 20 anos – ele partira para guerrear Tróia –, Penélope se vê obrigada a escolher um dos muitos pretendentes alojados em seu palácio. Na véspera dessa escolha, durante uma noite de insônia, ela relembra sua relação com o marido e tenta compreender por que orientara toda a sua vida em função do hipotético retomo. Pouco a pouco, ela se deixa envolver completamente por lembranças idealizadas, inteiramente alheia ao futuro que a aguarda. É este, em resumo, o enredo de “Penélope”, texto de Fátima Saadi e Antonio Guedes a partir do original de Homero. Dirigido por Guedes e protagonizado por Helena Varvaki, o espetáculo da Companhia Teatro do Pequeno Gesto fica em cartaz no Carlos Gomes só até o próximo domingo, com sessões de quinta a domingo, às 19h. Quarto espetáculo da companhia – os anteriores foram “Quando nós os mortos despertarmos”, “O marinheiro” e “Valsa n° 6” -, “Penélope” confirma uma vez mais a alta qualidade deste grupo ainda pouco conhecido, mas que sem dúvida vem trilhando um caminho da maior significação para o teatro carioca. Na atual montagem, como nas demais, verificamos a mesma excelência no que diz respeito ao trabalho do ator e à dinâmica cênica, despojada em sua aparência, mas extremamente expressiva na materialização dos conteúdos propostos.

13


Explorando com sensibilidade a ótima cenografia de Doris Rollemberg, que converte a rede em que está envolta a personagem em manifestação simbólica de suas angústias, o diretor Antonio Guedes impõe à cena uma atmosfera que possibilita ao espectador apreender toda a amarga trajetória emocional da protagonista e sua posterior libertação dos fantasmas que a atormentavam. Preciso no tocante ao ritmo e de uma beleza que advém de marcações que levam a intérprete a realizar um trabalho gestual esmerado, o espetáculo merece ser prestigiado de forma incondicional em sua curtíssima temporada. Helena Varvaki é uma atriz de sólida formação teórica e com grande domínio de seus recursos expressivos, sobretudo corporais. Além disso, costuma entregar-se por completo às personagens que interpreta, delas extraindo o que de mais significativo podem oferecer. Assim, em nada nos surpreende sua brilhante atuação, que combina inteligência e paixão em doses mais do que generosas, e permite uma aproximação gratificante com a mitológica mulher que a tudo renuncia em nome do amor. No complemento da equipe técnica, gostaríamos de destacar a engenhosa “saia” de Penélope confeccionada pelo pescador José Manuel Rebouças – acoplada a uma gigantesca rede, sugere o prolongamento da teia que aprisiona a protagonista às suas lembranças. Outro trabalho de alto nível é a composição eletroacústica de Rodolfo Caesar – é impressionante como a cena adquire dramaticidade e poesia através de sons de vidro, água, choro e falas da atriz. Com relação à iluminação, esta é bastante expressiva em sua simplicidade, e só lamentamos não poder citar o nome do autor, que não consta do programa da peça.

14

Elenco Helena Varvaki Antonio Guedes Julia Merquior Simone André


1998

O fantasma de Canterville, de Oscar Wilde Estreou em 1998 no Castelinho do Flamengo seguindo, depois, para o Teatro Gonzaguinha do Centro de Artes Calouste Gulbenkian. Foi apresentado, ainda, no Sesc Friburgo (RJ) e no Sesc-Maceió (AL) integrando a I Mostra Sesc de Teatro. O fantasma de Canterville conta a história do fantasma que, há mais de 300 anos, assombrava moradores e visitantes do Solar de Canterville. Mas o fantasma inglês jamais poderia imaginar que seria vendido junto com o solar a uma incrédula família americana que não se deixa impressionar por gargalhadas macabras, passos à meia-noite ou correntes que se arrastam pelos sombrios corredores da mansão. O que se verá são as constantes e frustradas tentativas que Sir Simon de Canterville empreende contra a família Otis, resultando numa hilariante crítica, tanto às tradições inglesas quanto à superficialidade moderna. Oscar Wilde constrói uma narrativa que agrada a toda a família. Crianças, adolescentes e adultos se divertirão com as trapalhadas do Fantasma de Canterville. O espetáculo alia o trabalho dos atores sobre a tradição dos relatos orais aos recursos de sonorização consagrados pelas novelas radiofônicas e à manipulação de uma série de objetos inusitados que ajudam a criar o clima cômico-terrorífico das fracassadas tentativas de nosso fantasma de Canterville para assustar os novos moradores do solar.

Elenco Vilma Melo Oscar Saraiva

15


1998 O jogo do amor, de Marivaux

Estreou em 1998 no Museu da República, seguindo depois para o Teatro do Planetário e Ziembinski. Cumpriu temporada de um mês no Sesc Consolação (SP). Participou dos festivais de inverno de Campina Grande (PB) e Ouro Preto (MG) em 2001. Integrou a primeira mostra Sesc-CBTIJ de Teatro para Crianças passando por 11 unidades do Sesc do Estado do Rio. Silvia, prometida em casamento pelo Sr. Orgon, seu pai, ao filho de um amigo dele que ela sequer conhece, temendo por sua felicidade, pede a seu pai que lhe permita observar, de uma posição privilegiada, seu pretendente Dorante. Não sendo um pai tirano, o Sr. Orgon consente que a filha troque de lugar com a criada Lisete. Marivaux contempla com carinho, mas sem pieguice, aqueles que mergulham na voragem da paixão e em suas dissimulações.

Crítica

Misto de humor e leveza na medida certa Mànya Millen Jornal O Globo, 20/02/99

A história de um troca-troca equivocado entre casais de apaixonados, um tema recorrente em comédias seculares, é também o mote de “O jogo do amor”, de Marivaux. Levada aos palcos pela primeira vez em 1730, a peça pode ser vista no Teatro do Planetário da Gávea numa ótima e descomplicada encenação do diretor Antonio Guedes e sua companhia, o Teatro do Pequeno Gesto. Ingenuamente malicioso e altamente lúdico, o texto (traduzido e adaptado por Fátima Saadi) ganha força nos diálogos rápidos e espertos que poderiam se perder numa direção frouxa, que sucumbisse às armadilhas dos trejeitos e exageros típicos de uma comédia do século XVIII. Porém, num espetáculo de estrutura singela – em que o figurino colorido compensa o cenário quase inexistente – Guedes conduz e marca o seu elenco com segurança, extraindo deles o humor na medida certa para cada personagem. Girando basicamente em torno da confusão de sentimentos e aparências, o texto conta a história de Sílvia (Simone André), que se vê prometida em casamento pelo pai (Alexandre Dantas) a Dorante (Maria Luiza Cavalcanti), um jovem que ela não conhece. Desesperada, porque quer se casar por amor, ela troca de lugar com sua espevitada criada Lisete (a excelente Claudia Ventura), para observar melhor o noivo e tomar a sua decisão. Só que este tem a mesma idéia e troca de lugar com o seu criado, o escrachado Arlequim (Vilma Melo). A partir daí sucedem-se cenas de confusão explícita e humor idem, com o jogo amoroso valorizado pela performance adequada do elenco: Simone e Maria Luiza mais contidas; Claudia e Vilma explorando o viés mais bufão de seus personagens. A brincadeira que termina em paixão verdadeira entre os dois patrões e os dois criados acontece de forma leve e graciosa, garantindo bons momentos de diversão.

16

Indicações para o Prêmio Coca-Cola 98 e Mambembinho 98.


O essencial da história em texto bem autoral Lúcia Cerrone Jornal do Brasil, 21/11/98 A companhia Teatro do Pequeno Gesto, responsável pela montagem de O jogo do amor, nos jardins do Museu da República, está em atividade desde 1992. Com um repertório dos mais variados, já montou Ibsen, Oscar Wilde, Fernando Pessoa e Nelson Rodrigues, entre outros. Em sua primeira incursão ao público infantil, o grupo escolheu nada menos do que Marivaux. Com cortes e recortes na obra do comediógrafo francês, o que se vê no palco é uma deliciosa trama de enganos, onde no primeiro plano está a arte de representar. A adaptação de Fátima Saadi não deixa o espectador esquecer que está no teatro. Não é raro escutar de um dos personagens frases como: “se eu pudesse abandonaria este cenário e tiraria este figurino”, integrado à trama, não como uma crítica, mas como mais um elemento do jogo que se encena. Sem nenhum purismo que pretenda encenar a comédia na íntegra – às vezes, espetáculos de três horas de duração que levam a platéia ao profundo tédio, Fátima tira o essencial da historia num texto bastante autoral. O resultado é dos melhores. Nesta comédia de erros escrita por Marivaux em 1730, Sílvia, prometida por seu pai, Sr Orgon, ao filho de um amigo, Dorante, resolve trocar de lugar com a criada Lisete para ver de longe se lhe agrada o pretendente. Dorante usa o mesmo recurso, trocando de lugar com o seu criado Arlequim. O Sr. Orgon sabe de tudo e é o primeiro a avisar ao público o que está para acontecer. Em meio a esse quiproquó de entradas e saídas estratégicas o final feliz é esperado e garantido. Antonio Guedes cria para o texto um espetáculo ágil, de imediata empatia com público. Antes de chegar ao palco, os atores vestidos com cores da Commedia dell’ Arte, em figurino assinado por Mauro Leite,tratam de deixar o público bem à vontade, brincando com a localização do teatro – um canto do jardim entre dois prédios por onde o vento encanado forma uma possante refrigeração natural –, mais cadeiras que chegam conforme o número de espectadores. Assim, já na platéia e criado um elo afetivo com a peça, capaz de romper a Quarta, a Quinta e Sexta e quaisquer outras paredes que possam existir. O jogo de humor continua no palco, com excelente trabalho de ator e construção do espetáculo. Um pocket Marivaux, onde vale roubar a cena, superatuar e, principalmente, tirar proveito dos pequenos gestos. Tiques do teatro “antigo”, em releitura contemporânea, onde até o mestre-sala e a porta-bandeira reverenciam seus antecedentes mais remotos como Arlequim e Pulcinella. A história dentro da história. No elenco de cinco atores, todos muito convincentes em seus papéis, Alexandre Dantas é Orgon, com interferência bem-humorada na trama. Simone André faz uma delicada Silvia, como pede seu papel de mocinha na história. Maria Luiza Cavalcanti, interpretando um papel masculino, não exagera na caricatura, e Vilma Melo também em personagem masculino, dá brilho ao seu Arlequim com um humor quase chanchadesco. A grande surpresa no entanto, fica com Claudia Ventura no papel da criada. A atriz desenha sua personagem que brinca na linha do exagero com a maior competência. Uma difícil composição que deu certíssimo. O jogo do amor é um espetáculo de pura delicadeza, bom de ver e de participar. É o teatro encenado além do palco, que vai para casa com a platéia.

Elenco Alexandre Dantas Claudia Ventura Helena Stewart Maria Luiza Cavalcanti Priscila Amorim Simone André Vilma Melo

17



1998

A serpente, de Nelson Rodrigues Estreou em 1998 e, após 3 temporadas, totalizando 5 meses em cartaz no Rio, partiu para uma série de apresentações pelo Brasil, participando de festivais e de projetos de intercâmbio nacional. A serpente cumpriu temporada no Museu da República, no Teatro Glace Rocha (1998) e no Teatro da UniverCidade (1999).

Indicações ao Prêmio Shell 98 Melhor Direção: Antonio Guedes Melhor Atriz: Claudia Ventura Melhor Trilha Sonora: Antonio Guedes

Foi apresentada ainda na II Mostra de Teatro de Maceió (AL) em 1998, no Festival de Londrina (PR) e no Festival de João Pessoa (PB) em 1999, participou do Palco Giratório do Sesc-DN (em PE: Recife, Caruaru, Garanhuns, Petrolina e Arcoverde e no CE: Crato, Juazeiro do Norte e Fortaleza) e do Funarte na Cidade (Brasília/DF, Curitiba/PR, Caxias do Sul/RS) em 1999. Esteve, ainda, no Festival de Inverno de Ouro Preto (MG) em 1999, nos Sescs-Barra Mansa, Madureira e São João de Meriti (RJ) em 2001. Apresentou-se no Festival Pequeno Gesto – Espaço 3 do Teatro Villa-Lobos em 2001, no Festival de Inverno de Mariana (MG) e no Festival Universitário de Blumenau (SC) em 2002. Participou do projeto Caravana Funarte em 2005, passando por Nova Friburgo (RJ), Campinas (SP), Itaúna e Belo Horizonte (MG).

Crítica

Último texto de Nelson em versão irretocável Lionel Fischer Tribuna da Imprensa, 08/10/98 Em seu último texto, Nelson Rodrigues conta a história de duas irmãs que se casaram no mesmo dia, na mesma igreja e dividem o mesmo apartamento. Mas enquanto Guida (Claudia Ventura) e Paulo (Alexandre Dantas) vivem enamorados, Lígia (Priscila Amorim) e Décio (Marcos França) jamais consumaram o ato sexual. Ao saber disso, Guida faz à irmã uma proposta que acaba desencadeando a tragédia.Vilma Melo (prostituta) completa o elenco da nova montagem da Companhia Teatro do Pequeno Gesto, em cartaz no Museu da República. Antonio Guedes assina a direção. Espécie de thriller de amor e morte, o ótimo texto recebeu versão irretocável de Antonio Guedes. Lançando mão de uma dinâmica cênica de extrema nervosidade e progressivo clima de exasperação, o diretor cria uma encenação que sugere um combate – essa sugestão é reforçada pela agressividade das posturas, pela forma como o texto é articulado e também através de uma permanente troca de posições, quase sempre a partir das extremidades do palco e passando pelo centro.

19



Tal proposta está em perfeita consonância com o conteúdo do texto, pois é exatamente isto o que ele propõe: um combate de vida e morte. Que num nível mais imediato se dá entre membros de uma mesma família, mas que no fundo faz emergir o eterno descompasso entre a moral vigente e obscuros desejos que habitam o nosso inconsciente. Mas a montagem tem vários trunfos adicionais. Um deles é a excelente atuação de todo o elenco. Neste particular, destacamos o vigor e expressividade da perfomance de Claudia Ventura – sem dúvida uma das melhores atrizes de sua geração – e também o excepcional trabalho de Marcos França na pele do patético e virulento Décio. Na equipe técnica, são funcionais e expressivos a cenografia de Doris Rollemberg, os figurinos de Priscilla Duarte e a luz de Binho Schaeffer e Simone André. E igualmente notáveis a preparação corporal orientada por Julia Merquior e a trilha sonora do próprio diretor, toda ela centrada na inquietante repetição de um tango de Piazzola. Uma abordagem viva de Nelson Macksen Luiz Jornal do Brasil, 19/12/98 Apesar de ser a última peça escrita por Nelson Rodrigues – quando a escreveu há 20 anos, por encomenda, já demonstrava uma certa inapetência para a dramaturgia –, A serpente mantém as mais profundas obsessões do autor. Lá estão a dubiedade das relações entre irmãs (Vestido de noiva), o determinismo nas decisões (A falecida), a manipulação em relação ao sexo (Os sete gatinhos) e a morte como revelação de sentimentos (Beijo no asfalto). O tratamento desses temas-obsessão é um tanto mais esquemático. Os diálogos curtos, secos, despojados, servem a uma narrativa igualmente curta, seca e despojada. Duas irmãs casaram no mesmo dia e vivem no mesmo apartamento, mas um dos casais não consumou o casamento. Ao descobrir essa situação, uma delas oferece o seu marido para que finalmente seja superado o impasse. O que acontece depois leva à tragédia, neste quase melodrama no qual Nelson Rodrigues condensa a ação num nervoso entrechoque de atitudes obsessivas e com uma tensão interna que insufla indiscutível carga dramática à trama. Mas A serpente não deixa de mostrar que é uma peça da fase menos realizada de Nelson Rodrigues. A extrema

21



concisão do texto, que eventualmente se anula pelo derramamento do melodrama, torna evidentes as fragilidades dessa peça que apela bastante para as imagens do frasista e do autor de folhetim em detrimento da carga dramática e força expressiva do dramaturgo. O espetáculo de Antonio Guedes, que simplifica ao extremo a cena – uma única janela, impositiva, onipresente, operística, toma conta do palco como cenário de vários significados dramáticos. O diretor concentra o nervosismo do texto na ocupação permanente do palco, numa movimentação em que os gestos e as vozes entrecortadas apoiam e revelam a interioridade da ação. Os atores, em movimentos coreografados e ao som de um tango de Artur Piazolla (referênçia reiterativa e óbvia), circulam pelo palco numa dança agitada, na qual os diálogos ganham um tom rascante. Cria-se, com este movimento intenso dos atores, uma tensão que se fragmenta pela forma como são interpretadas as frases curtas do diálogo. Antonio Guedes chega até a “remontar” o texto para enfatizar o aspecto mais folhetinesco da peça, com resultado discutível, especialmente porque utiliza o personagem mais esquemático de A serpente, “A crioula de ventas triunfais” é caricatural, um tipo que conduz outro personagem à consciência de sua condição. Mas que empresta à peça um caráter de melodrama bizarro. Na encenação, que está em cena no Teatro Glauce Rocha, até a modificação do final se integra à agitada montagem que tem ritmo que acompanha o sincopado e as pausas do texto. A direção procurou, com algum êxito, encontrar a correspondência desse ritmo interno da peça num espetáculo marcado pela secura de palavras ásperas. O elenco – Vilma Meio, Cláudia Ventura, Marcos França, Priscila Amorim e Alexandre Dantas – está perfeitamente sintonizado com a proposta coreográfica do diretor, e mesmo quando a movimentação se faz excessiva, afogando o sentido da palavra, os atores demonstram nesta forma antirrealista de interpretação uma abordagem viva de uma peça um tanto frágil de Nelson Rodrigues.

Elenco Alexandre Dantas Claudia Ventura Marcos França Priscila Amorim Simone André Vilma Melo Ana Elisa Al’San

23



2000

Henrique IV, de Luigi Pirandello Este espetáculo estreou, a convite do Festival de Curitiba, na mostra oficial em 2000 e realizou duas temporadas no Rio: no Conjunto Cultural da Caixa e no Teatro Glaucio Gill. Foi apresentado também no Sesc São João de Meriti e integrou o Festival Pequeno Gesto em 2001. Em Henrique IV Pirandello explora os limites entre a loucura e a lucidez a partir da história de um homem que, após uma pancada na cabeça, fixa o personagem que representava numa festa de carnaval, vivendo numa ficção durante 15 anos.

Crítica

Clássico de Pirandello ganha versão eficiente Lionel Fischer Tribuna da Imprensa

Ao recobrar a consciência após sofrer uma queda durante uma cavalgada a fantasia, ele acredita ser o personagem que encarnava, o imperador Henrique IV. A partir daí, por ordem de sua irmã, todos passam a agir visando perpetuar a farsa, que já dura 15 anos. Porém, depois de oito anos o protagonista percebe o ilusório contexto, mas faz questão de nada revelar. É este, em resumo, o enredo de Henrique IV, de Pirandello, mais nova produção do Teatro do Pequeno Gesto. Antonio Guedes assina a direção da montagem, que tem elenco liderado por Claudia Ventura, Marcos França, Alexandre Dantas e Walter Lima Torres. Como em quase toda a sua obra, aqui Pirandello trabalha de forma brilhante a tensão entre realidade e fantasia, deixando implícita a impossibilidade do estabelecimento de uma verdade absoluta. No fundo, sustenta que as coisas são o que parecem ser, também reafirmando sua convicção de que a arte é muito mais real do que a vida, posto que eternizada em uma forma. A partir da ótima adaptação feita em parceria com Fátima Saadi – que elimina um certo excesso de palavras e referências à cultura italiana –, Antonio Guedes impõe à cena uma dinâmica sóbria e eficiente, cabendo destacar a clareza expositiva do espetáculo – vital por se tratar de uma peça que trabalha simultaneamente vários planos de entendimento. No papel-título, Marcos França tem atuação vigorosa e emocionada, devendo apenas prestar atenção no que diz respeito à projeção vocal, em especial nas passagens em que fala de costas para a platéia. Claudia Ventura expressa de maneira irretocável o caráter cínico e debochado de Matilde, cabendo também mencionar as excelentes participações de Alexandre Dantas (médico) e Walter Lima Torres como o amante de Matilde. Os demais têm atuações seguras. Na equipe técnica, são igualmente eficientes e expressivos a cenografia de Doris Rollemberg, a luz de Binho Schaefer, os figurinos de Mauro Leite e a música de Andréa Spada.

25


Elenco Alexandre Dantas Andrea Spada Claudia Ventura Marcos França Mario Piragibe Priscila Amorim Simone AndrÊ Vilma Melo Walter Lima Torres

26




2001

Drummond - Um homem por trás dos óculos Roteiro organizado por Marcos França Este trabalho estreou em 2001 no Barteliê, um apartamento que se tornava um bar para saraus poéticos ou musicais nos finais de semana. O roteiro de Marcos França percorre sete faces identificadas nas poesias e crônicas de Drummond. Desde as lembranças de infância até o amor pelas mulheres e a sobrevivência no contexto urbano. Este espetáculo resiste ainda hoje e é apresentado em teatros, bibliotecas e centros culturais, sempre num espaço no qual o ator possa caminhar entre os espectadores.

Elenco Marcos França Elisa Ottoni


2002

A Rua dos Cataventos, de Marcos França Estreou no Teatro do Sesc-Tijuca em 2002. Participou da II Mostra Sesc-CBTIJ de Teatro para Crianças (11 teatros de unidades do Sesc-Rio) em 2002 e do Festival Internacional de São José do Rio Preto em 2003. A Rua dos Cataventos é um passeio pela obra de Mário Quintana. E, para falar de Quintana, o autor Marcos França se apropriou de seus personagens mais famosos: Lili e o Anjo Malaquias. Lili é uma menina em busca de suas lembranças. Malaquias é a própria inadaptação à condição terrena. O espetáculo cria uma atmosfera de sonho na qual a imagem da cena apresenta, em sua concretude, os tons, os movimentos e, principalmente, o ritmo de uma aventura que, depois de iniciada, só pode ser interrompida pelo barulho do despertador. E, nessa proposta, a música é fundamental. Ela determina o ritmo desse sonho. Andrea Spada compôs, especialmente para esta montagem, uma fantasia para orquestra, na qual cada personagem tem seu próprio tema, que é desenvolvido de acordo com as peripécias que se apresentam ao longo do sonho. Mauricio Leão criou desenhos animados a partir de características físicas dos atores e, com isto, todas as transformações mágicas que a história apresenta são realizadas numa dimensão imagética. A projeção dos desenhos sobre o cenário de Doris Rollemberg, dá vida às imagens que povoam a cabeça de Lili.

Elenco Alexandre Dantas Marcos França Viviana Rocha Priscila Amorim Fernanda Maia Simone André Mariana Oliveira

30



2003 Medeia, de Eurípides

Estreou no Espaço Cultural Sergio Porto em 2002 ficando, depois, um ano em cartaz no Teatro Maria Clara Machado (Planetário). Em 2004, foi apresentado nos Sescs de São João de Meriti e Campos e também integrou o Palco Giratório, apresentando-se em Florianópolis (SC), Brasília (DF) e mais nove cidades do Paraná. Participou do Festival Internacional de São José do Rio Preto e do Fenart João Pessoa (PB). Explorando as fronteiras entre o épico e o dramático, Medeia conta a história de uma mulher preterida por seu marido, que escolhe uma nova esposa. Não se conformando com a situação, Medeia se vinga de Jasão matando a noiva e o sogro dele e, para atingi-lo mais profundamente, mata seus próprios filhos, punindo o marido infiel no ponto mais caro para os gregos: sua posteridade. Essa tragédia coloca em questão os direitos de homens e mulheres uns em relação aos outros, os limites do desejo que um longo casamento impõe e as relações entre uma ordem constituída e os que a ela não pertencem, nesse caso, a ordem clássica e a bárbara.

Crítica

Nós, só vemos morte (Nota sobre Medéia) Flora Süssekind* Folhetim • 24 – jul-dez de 2006

A Medéia do Teatro do Pequeno Gesto termina com uma contradição. Com a in­tromissão, enquanto a ação se encerra, de um rastro nietzschiano na fala final do corifeu. Nietzsche passa, então, a falar “pela boca de Eurípides”, tomando como máscara justamente a daquele que, se­gundo a sua análise em O nascimento da tragédia, “combateu e venceu a tragédia antiga”, daquele que se teria servido dela, “morta sob suas mãos brutais”, como de um moribundo a quem se obrigaria a “prestar mais uma vez serviço”. E cujo drama “não-dionisíaco”, cujo “epos dra­matizado” se mostraria, a seu ver, incapaz de alcançar “o efeito trágico”.1 E não é à toa que se esco­lhe exatamente o desfecho da peça para essa intromissão pro­positada de uma dissonância conflituosa, para a substituição das últimas palavras do corifeu por trechos extraídos de Nietzsche e Rilke. É claro que ainda ecoa, na versão do Teatro do Pequeno Gesto, a “repetição triste, que serve de conclusão a inúmeras peças”2 de Eurípides, de que, se são os homens que se lan­çam em suas infelicidades, ninguém é, no entanto, senhor ab­soluto de sua sina. Cabendo aos acontecimentos, às paixões, aos imprevistos (felizes ou não) conduzi-los, inabalavelmente, à sua fortuna. Não se trata mais, porém, na tragédia euripidiana, de reafirmar, como em Ésquilo, a força da justiça divina. São, ao contrário, as “flutuações de uma sorte que já não tem senti­do”3 que parecem determinar, nesse teatro, as formas do des­tino. E que parecem barrar, também, implacavelmente, “o sentimento” de que o próprio devir possa ter, ele mesmo, “um sentido”.4 Tomado ao pé da letra o texto de Eurípides, o que se desta­ca, no momento final da peça, é, então, o inesperado, são as sur­presas que desafiam nossas suposições e que se intrometem, ne­cessariamente, no curso dos acontecimentos. Na adaptação, de 2002, realizada por Fátima Saadi e Antonio Guedes,

32

Elenco Alexandre Dantas Ana Alkmim Cristine A’Gape Cybele Jácome Fernanda Maia Luisa Baratz Mariana Oliveira Viviana Rocha


mantém-se a ênfase no acaso. Mas é, na verdade, a dor de existir o que domi­na, aí, nas últimas palavras do corifeu, marcadas pela afirmação da transitoriedade da vida, pela certeza de que, se “o delito maior do homem é ter nascido”,5 ninguém pode mesmo ser feliz. E a série euripidiana de conclusões praticamente idênticas (as de Alceste, de Medéia, de Andrômaca, de Helena e de As bacantes) se vê, desse modo, alterada suave, mas significativamente. Talvez valha a pena, então, para efeito de contraste, uma enumeração. E a repetição, em traduções diversas, desses fi­nais. “Muitas formas revestem deuses-demos. / Muito cumprem à contra-espera os numes. / Não vigora o previsto. / O poro do imprevisto o deus o encontra. / Este ato assim conclui”.6 Assim se encerra o texto de As bacantes na tradução de Trajano Vieira. “Espíritos manifestam-se sob as mais diversas formas / E muitas coisas estranhas nos proporciona o céu. / Muito do que se espera nunca sucede. / E o que nos assombra realiza-se com a ajuda dos deuses. / Assim finda esta ação”.7 São estas as últimas palavras do coro em Alceste. O final de Helena se­gue na mesma direção: “Variam as feições dos espíritos / e muitas das coisas vindas do deus contrariam nossos cálculos: / o que se buscava não se realiza, / enquanto os Céus encontram meios para o que não esperávamos; / Ajusta-se, assim, este ato”. Palavras que parecem repercutir, ainda, na fala final de Andrômaca: “Muitas as formas dos seres celestiais / e muito do que deles vem contradiz nossas esperanças. / Aquilo que pensávamos viria a ser não se consuma, / enquanto para o inesperado acha o deus uma via. / Põe-se, dessa maneira, fim a esta obra”.8 Finais semelhantes a que se poderia acrescentar também o de Medéia. Lembre-se, nesse sentido, a última fala do texto de acordo com a tradução de Mário da Gama Kury: “Dos pín­caros do Olimpo Zeus dirige / o curso dos eventos incontáveis / e muitas vezes os deuses nos deixam / atônitos na realização / de seus desígnios. Não se concretiza / a expectativa e vemos afinal / o inesperado. Assim termina o drama”.9 Contraste-se com esta versão a bela transformação de Fátima Saadi e Anto­nio Guedes dessa intervenção final do corifeu: Miserável raça dos homens, filhos do acaso e da dor! Por que que­rer ouvir o que não trará nenhum proveito? O maior bem nunca se poderá alcançar: é não ter nascido, não ser, não ser nada. (Pausa) Ninguém é feliz. (Pausa) Mas nós espectadores em tudo e sempre, ordenamos que tudo se desfaça. Por ora, basta! (Pausa) As coisas passam… e nós mesmos passamos.10

As diferenças são perceptíveis. E os responsáveis pela adaptação se encarregaram de avisar, em nota à edição de sua Medéia, quais foram os empréstimos utilizados na composição deste desfecho. As indicações são propositadamente precisas. E apontam para a conversa, na terceira seção de O nascimento da tragédia, de Midas e Sileno sobre “a melhor coisa para o homem” (i.é: não ter nascido) e para a “Oitava Elegia de Duíno” (com seus ecos nietzschianos) como fontes da versão adotada por eles para as palavras finais da peça. Deixando bem claro, desse modo, quem fala ai “pela boca de Eurípides”. Como se não quisessem deixar margem à dúvida de que o conflito discursivo, explicitado no encerramento, é algo a ser registra­do com atenção. E cabendo a essa dissonância a indicação de uma situação adicional de disputa, de uma cena potencial de agôn, envolvendo, como oponentes, não mais Medéia e Jasão, mas Nietzsche e Eurípides. A exposição da tragédia euripidiana a essa oposição no seu desfecho se deve, em parte, à possibilidade quase imedia­ta de detecção que uma intromissão discursiva em tal contexto permite (principalmente em se tratando de um conjunto de versos finais repetidos em várias peças). Mas dialoga igual­mente

33


com um dos elementos mais agudos da crítica de Nietzsche a Eurípides. Crítica aos desfechos euripidianos já presente na Poética aristotélica: “os desenlaces devem resul­tar da própria estrutura do mito, e não do deus ex machina, como acontece na Medéia”.11 Para Nietzsche, isso derivaria da dissolução da “consideração trágica do mundo”, do declínio da tragédia mítica, evidenciados pela substituição, nos desen­laces, de “uma consolação metafisica por uma consonância terrena”, do mito pelo “deus das máquinas e dos crisóis”. Como na aparição súbita, na versão euripidiana, de um carro flame­jante que tira Medéia de Corinto. “O deus ex machina tomou o lugar do reconforto metafísico”,12 comentaria Nietzsche. A “terrível sabedoria” de Sileno, que se intromete na boca do corifeu, no espetáculo de 2002, operaria uma recondução não só dos “temores e horrores do existir”, e do “deleite nasci­do das dores”, ao centro da cena trágica. Mas também do com­panheiro de Sileno, Dionísio, cuja irrupção, no contexto da encenação do texto de Eurípides pelo Teatro do Pequeno Ges­to, parecia se materializar, igualmente, no meio sorriso com que o corifeu (interpretado por Mariana Oliveira) dizia as suas palavras finais. Esse movimento de contraversão, evidenciado pelos tre­chos extraídos de Nietzsche e Rilke, não se faz presente, no entanto, apenas na dimensão textual da adaptação, num desfe­cho no qual não cabe qualquer deus ex machina. Ou qualquer sinalização em direção à “justiça dos homens”. Pois, à maneira do que observa Beckett no seu ensaio sobre Proust, trata-se aí de outra configuração trágica: A tragédia é o relato de uma expiação, mas não a expiação insigni­ficante de uma quebra codificada de um acordo local, redigido por patifes para usufruto dos tolos. A figura trágica representa a expia­ção do pecado original, do pecado original e eterno, cometido por ela e por todos os seus socii malorum, o pecado de haver nascido.13

Daí a tensão criada pelo meio-sorriso do corifeu em meio às terríveis considerações sobre a condição humana com que se encerra a Medéia do Teatro do Pequeno Gesto.

34


Antes mesmo de ter início a fala final, entretanto, e logo depois da saída de Medéia, “por uma das extremidades do corredor”, já se figuraria em cena a contraversão operada discursivamente pela intromissão nietzschiana. Pois, quando o corifeu ocupa, no final, o pequeno círculo rotativo (encaixa­do ao grande círculo de madeira que constitui o cenário), pela primeira e única vez, na montagem do Teatro do Pequeno Gesto, “Jasão pega uma das alavancas e começa a girar no sentido oposto àquele que o coro havia seguido ao girar o pequeno círculo durante o espetáculo”.14 Jasão vai girando cada vez mais rápido, até dar “um grito lancinante” e cair “de joelhos”. Durante esse processo, “as alavancas se arrastam com ruídos de ferros em atrito”. A inversão de direção do movimento rotativo parecendo forçar, ao limite, o maquinismo, e provo­car, desse modo, o ranger de suas peças, ruído que se mistu­ raria ao dos gritos desesperados de Jasão. Nesse palco (girando em direção oposta à de todo o movi­mento de alavancas, ao de todas as rotações circulares do es­petáculo) é que se apresentam as considerações finais. Ditas não apenas com um meio sorriso, mas com um movimento também giratório do rosto da atriz que faz o corifeu, e que se volta, assim, lentamente, para todos os lados, para toda a pla­téia. O que funciona como uma espécie de reafirmação coreográfica de que caberia a todos nós, “espectadores”, “compa­nheiros de infortúnio”, desconforto metafísico idêntico ao ex­presso nesse momento. Movimento giratório e generalizador, apontando, assim, para “uma visão do trágico como um aspec­to fundamental da existência humana, indicativo da irremedi­ável, dolorosa incompatibilidade entre o homem e o mundo em que ele se acha por acaso”.15 E não para sua visão como algo ligado unicamente a um gênero artístico ou a aspectos característicos desta ou daquela tragédia. Criando-se, assim, tensão evidente com o que a encenação parecia, de certo modo, nos convidar a fazer, entretanto, até aquele momento. Pois os trajes propositadamente anacronizantes, os mui­ tos vasos de barro espalhados pelo espaço cênico, os gestos e posturas corporais (sobretudo do coro) mimetizando represen­ tações de cenas teatrais pelas pinturas de vasos áticos, a ma­quilagem, esbranquiçada, figurando máscaras nos rostos dos integrantes do coro, o cenário, constituído de um grande cír­culo de madeira (com outro menor, giratório, no centro), pare­cendo levemente reminiscente do eciclema (a pequena plata­forma rolante na qual se exibiam, na tragédia grega, as cenas mais terríveis), tudo isso evidenciava, na encenação do Teatro do Pequeno Gesto, a vinculação histórica do texto euripidiano escolhido. À qual se contrapunham, porém, no desfecho, um desencanto do mundo, uma compreensão impiedosa da condi­ção humana, que demonstravam, ao mesmo tempo, um “uso estendido do trágico”,16 visto como “uma dimensão fundamen­tal da experiência humana”17 e não exclusivamente como manifestação artística ligada ao contexto específi-

35



co evocado pelos figurinos, pela quase máscara branca com a qual se recobrem os rostos dos coreutas, pelos movimentos marcados, quase “escultóricos” em alguns momentos, lembrando o uso dos braços (nas passagens longas), a padronização gestual (da locução e das emoções) na representação trágica, lembrando as “formas e gestos que não raro adotam os corpos dos heróis (dos atores trágicos) quando estes se defrontam com o fado inevitável”.18 É para essa tensão entre o texto euripidiano e uma com­preensão moderna, e alargada, do trágico que chama a aten­ção o final reformulado da Medéia do Teatro do Pequeno Ges­to, no qual se figura, pela contraposição de Nietzsche a Eurípides, espécie de disjunção entre um sentimento trá­gico generalizador, “universalmente humano”19 (expresso nas últimas palavras da peça) e a tragédia particular ali encenada. Nesse sentido se pode dizer que a presença de Nietzsche é tão essencial à montagem do Teatro do Pequeno Gesto quan­to é a de Eurípides na reconstrução nietzschiana do nascimen­to e da história do declínio da tragédia antiga. Assim como em O nascimento da tragédia se compreende a tragédia esquiliana a partir de sua “desfiguração”, a encenação de Eurípides se faz acompanhar do eco de sua crítica por Nietzsche. Essa in­tromissão figura uma distância, um movimento auto-reflexivo, por meio dos quais se contrapõe ao universo trágico de refe­rência o horizonte moderno, evidenciando-se, desta forma, o campo crítico no qual se realiza a encenação. Se Nietzsche funciona como ponto fundamental de dis­tância, não é, entretanto, o único fator propositado de “desor­dem” ao longo da adaptação. A começar da transposição de parte do diálogo final de Medéia e Jasão para o início do espetáculo, que parece apresentar, assim, sem sombra de dúvida, uma espécie de desenlace prévio, de síntese global, desdramatizando intenci­onalmente as ações que se seguem, e cujo resultado já se sabe (mesmo sem a “visão do futuro”) de antemão. Como se não bastasse essa ordem inversa, repete-se, em seguida, ainda uma segunda vez, todo o trecho transposto. Repetição que se torna, porém, propositadamente inaudível porque acompanhada pe­los sons dos pés dos coreutas batendo no tablado de madeira, e produzindo um ritmo marcial intenso que abafa o diálogo e as vozes de Medéia e Jasão. A cena auditiva (coral) contrarian­do a situação de disputa interpessoal exposta, no centro do palco, ao público. E não é só aí que a presença do coro parece se sobrepor à dos personagens individualizados na encenação de Eurípides pelo Teatro do Pequeno Gesto. É o seu movimento constante, são suas passagens pelo círculo maior de madeira, suas apari­ções à beira do círculo, seu deslocamento das alavancas que giram o pequeno tablado interno, seus modos de agrupamento e vocalização que conduzem a cena. Contraria-se, desse modo, explicitamente, a crítica aristotélica de que em Eurípides o coro não atuaria como um dos atores, deixando de funcionar como parte constitutiva do todo e da ação. Assim como o comentário nietzschiano de que, no teatro euripidiano, o coro, “o substrato musical-dionisíaco da tragédia”, se transformaria em “algo aci­dental”, numa simples “reminiscência da origem da tragédia”. Não se trata, porém, de discutir o uso sem dúvida impor­tantíssimo do coro na Medéia de Eurípides, cabendo a ele a exposição e a interlocução das transformações e reavaliações da protagonista ao longo da peça, assim como a belíssima con­dução do diálogo entre visível e invisível, no momento do as­sassinato (no interior da casa) das crianças, cujos gritos cor­tam o canto coral, parecendo, na verdade, nesse instante, encravar-se nele,20 como lamento ativo, “presença lancinante da morte”21 no texto euripidiano. Mas se a ênfase na figuração coral ao longo da encenação da Medéia pelo Teatro do Pequeno Gesto não

37



contraria, em absoluto, a peça, parece indicar, simultaneamente, um outro ponto de distância. Pois não é apenas a visão moderna do trá­gico, em tensão com uma exposição propositadamente historicizada dos corpos e ações dos atores, que impõe uma percepção distanciada à montagem. A onipresença do coro, sobrepondo-se, com freqüência, aos diálogos e disputas entre os protagonistas, parece sugerir que a agonia a que se assiste aí é, na verdade, a da relação dual, da retórica da conversa­ção, da “dialética otimista que supunha que o homem — perso­nagem de teatro — fosse o sujeito atuante da linguagem”.22 É, pois, para um crepúsculo do “drama dramático”, para um “crepúsculo do diálogo” (para lembrarmos diretamente a re­flexão de Sarrazac), que apontam as indagações sobre a forma trágica, sobre as tensões entre epos e drama, e entre visões conflitantes do trágico, encaminhadas na Medéia do Teatro do Pequeno Gesto. E não é à toa que se escolhe exatamente Eurípides como ponto de partida para essa figuração agônica do dramático. Aos olhos dos teóricos modernos do trágico (como se assinalou aqui via Nietzsche), atribui-se a ele papel fundamental na dis­solução das funções corais e monológicas do teatro, e na exclu­são gradual dos prólogos e epílogos. Assim como, por outro lado, na instituição da conversação e do conflito como os prin­cípios verdadeiramente constitutivos do dramático. Não é de estranhar, então, que se tenha convertido numa espécie de fonte ancestral para a exigência dialógica que caracterizaria a produção dramática clássica.23 Não é de estranhar, por outro lado, que, ao encenar sua Medéia, o Teatro do Pequeno Gesto, sobreponha ao conflito central da peça, dois outros. Um deles, explicitado na fala final do corifeu, contrapon­do Nietzsche e Eurípides, e suas compreensões diversas do trágico. O outro, de presença sinuosa, mas igualmente funda­mental, tensionando, no interior da encenação, dois processos de dissolução. O do modelo esquiliano de tragédia em Eurípides; e o do “drama dramático” no contexto contemporâ­neo. A escolha de Eurípides é, desse ponto de vista, estratégi­ca. Sobretudo pelo seu papel histórico como “lugar” privilegi­ado a partir do qual se tem definido (genealogicamente) o dra­mático como “ação dialogada”.24 A encenação de Eurípides pelo Teatro do Pequeno Gesto parece acentuar não uma prefiguração remota dessa poética dual (do diálogo e do conflito), mas, ao contrário, investigar as dobras épicas, redefinir a dimensão trágica e as tensões entre coro e monólogo na Medéia. O retorno a esse momento de dis­solução do trágico esquiliano parecendo apontar, pelo avesso, para a desordem moderna e contemporânea do dramático. O modelo cênico resultante desse cruzamento conflituoso de cri­ses formais e de visões trágicas tão diversas apontando para uma configuração em espelhamento duplo do processo tea­tral. O sentimento trágico moderno em tensão com o mito clás­sico; o modo coral espraiando-se e minando a reivindicação dialógica e as relações duais que costumam guiar as exigênci­as normativas do drama. O moto contínuo dos coreutas inva­dindo espectralmente as cenas de disputa, e desindividualizando-­as; a voz (lírico-meditativa) de Rilke, e a reflexão nietzschiana, colando-se ao desfecho euripidiano, e refigurando-o, interna­mente, via contradição. “Sua vida se desdobra a partir da morte, que não é o seu fim, mas sua forma”,25 diz Benjamin do herói trágico. É de modo semelhante que a Medéia do Teatro do Pequeno Gesto investiga o dramático. A partir de uma dupla dissolução: a do trágico, a do drama. O dramático se acha, pois, “rodeado pela morte”. A “ironia trágica” dessa investigação formal residindo no fato de apresentar, propositadamente, as “circunstâncias de sua morte” como se fossem as “de sua vida”.26 Figurando, no anúncio do drama, o horizonte pós-dramático no qual assis­timos à sua agonia.

39


Notas 1. Todos os trechos entre aspas des­te primeiro parágrafo são, evidente­mente, extraídos de O nascimento da tragédia (São Paulo: Companhia das Letras, 1992), de Nietzsche. Utilizo aqui a tradução de J. Guinsburg. 2. ROMILLY, Jacqueline de. A tragédia grega. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 126. 3. Idem, ibidem. 4. Idem, ibidem. 5. CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro. A vida é sonho - O alcaide de Zalamea - O mágico prodigioso. Porto: Livraria Civilização, 1968, p. 10. 6. EURÍPIDES, As bacantes. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 125. 7. Modifiquei ligeiramente, aí, a tra­dução de J. B. de Mello e Souza. 8. Essas versões improvisadas dos finais de Helena e Andrômaca tiveram como ponto de partida as traduções de E. P. Coleridge dos dois textos de Eurípides. 9. EURÍPIDES. Medéia. Hipólito. As troianas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 78. 10. SAADI, Fátima e GUEDES, Antonio. Medéia de Eurípides, Cadernos de Te­atro n. 169. Rio de Janeiro, O Tabla­do/ RioArte, out., nov., dez. 2002, p. 58. 11. ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Im­prensa Nacional, 1990, p. 124. 12. NIETZSCHE, op. cit., p. 107. 13. BECKETT, SamueL. Proust. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 70-71. 14. SAADI, Fátima e GUEDES, Antonio. Medéia de Eurípides, op. cit., p. 58. 15. MOST, Glen W. Da tragédia ao trágico. In: ROSENFIELD, Kathrin (org.). Filosofia & literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 34. 16. Idem, ibidem, p. 23. 17. Idem, ibidem, p. 25. 18. GUMBRECHT, H. U. Os lugares da tragédia. In: ROSENFIELD, Kathrin (org.), op. cit., p. 12. 19. BENJAMIN, Walter. Origem do dra­ma barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 124. 20. Lembrem-se, nesse sentido, os comentários de Charles Segal, em Eurípides and the Poetics of Sorrow (Durham: Duke University Press, 1993), sobre as funções do coro na Medéia. 21. LORAUX, Nicole. La Voix endeuillée. Paris: Gallimard, 1999, p. 131-132. 22. SARRAZAC, Jean-Pierre. Des mots et leur volume de silence. In: L’Avenir du drame. Paris: Circé, 1999, p. 112. 23. Ver, sobre isso, o texto de Sarrazac. 24. Alfred DÖBLIN apud Sarrazac, op. cit., p. 109. 25. BENJAMIN, op.cit., p. 137. 26. Idem, ibidem.

* Flora Süssekind é ensaísta, pesqui­sadora da Casa de Rui Barbosa e professora da Escola de Teatro da Unirio.

40


2003

O homem da flor na boca, de Luigi Pirandello Estreou no Festival de Mariana e Ouro Preto (MG) (2003), apresentou-se nos Sescs de Campos, São João de Meriti, Brasília (DF), Florianópolis (SC) e Paranavaí (PR). Esta performance de 25 minutos foi criada para fazer parte de uma oficina e acabou se desdobrando por outras viagens que fizemos. Um homem está prestes a morrer e reúne uma plateia para falar da apreensão, das saudades antecipadas e da preocupação por aqueles que ficam. De uma forma simples e comovente, esse homem se despede da vida lembrando à plateia que este será um momento que todos, sem exceção, viverão.

Elenco Alexandre Dantas

41


2003

Navalha na carne, de Plínio Marcos Estreou na Casa Rosa, sendo apresentado também no Sesc de São João de Meriti em 2003. Depois, integrando o Palco Giratório, foi apresentado em Florianópolis (SC), Brasília (DF) e Paranavaí (PR). Integrando a Caravana Funarte, esteve em Campinas (SP) e Friburgo (RJ). A Casa Rosa era um antigo prostíbulo carioca. Ali, num cômodo que, certamente, já foi testemunha de inúmeros encontros sexuais, um cafetão, uma prostituta e um homossexual mostravam o quanto o limite entre a humanidade e a animalidade é tênue. O público, convidado a entrar nesse quarto, assistia ao embate dessas figuras que se assemelham a dejetos humanos. Reféns de si mesmos, os personagens se relacionavam de forma extremamente violenta a poucos centímetros da plateia. Nossa Navalha na carne quer “jogar” com o realismo. Quer experimentar a identificação dos atores com os personagens. Quer colocar a platéia muito próxima, dentro da cena, não apenas para que ela se veja como parte daquele mundo, mas para que ela, de certa forma, seja cúmplice da relação que aqueles personagens apresentam em cena.

De escândalo a clássico Realismo de ‘Navalha na carne’ sobrevive a mais uma montagem Macksen Luiz Jornal do Brasil, 07/10/2003 Navalha na carne é um exemplar da dramaturgia de Plínio Marcos que se mantém como um clássico pela crueza dos diálogos desta fatia de realidade, na qual três excluídos vivem um jogo de dominação que reproduz a miséria moral de injustiças sociais que sofrem. A prostituta, o seu protetor e um homossexual dividem o espaço emocional da sua marginalidade no confinamento de um bordel ordinário em que cada um explora o outro, num círculo de medo, desprezo e violência e desesperada solidão. A permanência desses personagens – escrita em 1968, apeça causou escândalo na época – se confirma a cada montagem pelo caráter realista da cena e pela maneira como Plínio Marcos conduz a ação, com veracidade quase naturalista, mas estabelecendo conteúdo dramático bem mais complexo do que a aparência de uma fotografia do real.

42

Crítica



Os três personagens assumem posições cambiantes entre si, cada um tendo seu instante de domínio sobre os demais, numa luta de fraquezas que é trazida do campo minado de outras batalhas já perdidas. Sem saída, condenados à solidão e à morte social, simulam, como um pedido final de amor, qualquer um, a derrocada definitiva de suas vidas. Não há melodrama ou pieguice solidária às vítimas, mas um corte de realidade com fundamento dramático. As dezenas de montagens de Navalha na carne em mais de três décadas, de certo modo anestesiaram a virulência e o impacto do texto, devido a um tratamento que sublinha demais as características dos personagens ou de dramaticidade piedosa, que vitimiza esses mesmos personagens. A encenação de Antonio Guedes procura se fixar nas características realistas da peça para, através da exploração dessa linha interpretativa, atingir a essência dramática da cena. E a sua perspectiva de direção associa a área da representação ao centro da trama, utilizando a Casa Rosa, antigo bordel na Rua Alice, como ambientação. Ainda que pareça uma ideia fácil, identidade banalizada por semelhanças, a Casa Rosa não se impõe senão como memória cenográfica, impregnada de referências, mas recriada como citação. O público, de apenas 20 espectadores, distribuído por entre o cenário do quarto – cama, mesa de cabeceira, pia e duas lâmpadas pendentes do teto – se integra à ação, a princípio pela proximidade, que cria vínculo físico à ação, em seguida pela densidade dramática que reflui do ”palco” para a plateia. Se tudo se passa ao lado, com a respiração dos atores bafejando e o suor respingando nos espectadores, há que encorpar a cena para que não se transforme em demonstração de verdade sensorial. O diretor sustenta o realismo sem maiores apelos a esses contatos viscerais, mas não escapa de escorregões, como uma certa interatividade postiça dos atores que, eventualmente, se dirigem a algum espectador de modo direto. Mas a secura do espetáculo, que se revela quase expositiva de uma situação vivida diante de um grupo, reconfirma as qualidades do texto e, se não chega a revigorá-lo, pelo menos retoma a peça em seus próprios termos. Alexandre Dantas carrega de ações físicas a violência amedrontada de Vado, numa interpretação que alcança surpreendentes semitons. Marcos França é um Veludo sem se apoiar no patético. Helena Varvakifica um tanto prejudicada em função da sua juventude na envelhecida Neusa Sueli; afinal, há que justificar o realismo na montagem, tão coerentemente explorado pela direção. Navalha na carne: peça de Plínio Marcos continua atual em montagem do Teatro do Pequeno Gesto Gente de verdade num drama urbano e demasiadamente humano Jefferson Lessa Jornal O Globo, 09/10/2003 No fim de semana passado, chamei um amigo para assistir a “Navalha na carne” comigo, na Casa Rosa. “‘Navalha na carne’? Na Casa Rosa?!?” foi a reação dele, como deve ser a de muita gente por aí. Uma pena, pois a “Navalha na carne” da Casa Rosa merece ser vista e revista. Com urgência.

44

Elenco Helena Varvaki Alexandre Dantas Marcos França



Para quem não conhece a peça de Plinio Marcos, censuradíssima nos anos 60, um resumo: a prostituta Neusa Sueli (Helena Varvaki, nesta montagem) divide um quartinho sórdido de um hotel idem com seu cafetão, Vado, interpretado por Alexandre Dantas. No hotel trabalha o faxineiro Veludo (Marcos França), gay de carteirinha com direito aos trejeitos e olhares que se esperam de bichinhas na vida e na ficção. O trio se relaciona de forma violenta e, quando a féria da noite anterior desaparece da gaveta onde Neusa Sueli a havia guardado, começam os conflitos. Vado acusa sua “funcionária” de roubo, para descobrir, em seguida, que o culpado era Veludo. Segue-se a pancadaria física e verbal com momentos de muita tensão sexual. Ex-prostíbulo é local perfeito para a encenação Ao meu amigo, que acabou não me acompanhando, fica a pergunta: por que não na Casa Rosa? Para quem não conhece o lugar, cabe uma explicação. A Casa Rosa, na Rua Alice, em Laranjeiras, foi um dos prostíbulos mais célebres e longevos do Rio. Depois de um período de decadência ainda hoje aparente, virou casa de festas modernetes. A “Navalha na carne” em questão é encenada no que deve ter sido um quarto de motorista ou de empregada, transformado em quarto de uma das “meninas” na fase prostíbulo. E ficou perfeito, pois o lugar dá a exata noção de um quarto de hotel decadente, desses que abundam pelo Catete e pelo Centro. Com direito a infiltrações nas paredes e sensação de claustrofobia e abafamento. Os elementos cenográficos (cama, gravuras, velas etc), dispostos de forma inteligente e econômica, parecem que estiveram sempre ali. O trio de atores também parece que vive mesmo naquele quartinho sórdido de paredes cobertas por infiltrações e restos de antigas demãos de tinta. Alexandre Dantas faz um Vado sensual, safado e mau, sem abusar de olhares e gestos que se esperariam de um cafetão sensual, safado e mau. Helena Varvaki consegue passar o tédio, a tristeza e o cansaço infinitos de sua Neusa Sueli, enquanto Marcos França encarna um Veludo falsinho e dissimulado com grande sutileza. Expressões de época soam estranhas A tentação de recorrer à frase-clichê é grande – e vou ceder: “Navalha na carne” continua atual (pronto, falei!). Se estivéssemos nos anos de chumbo, poderíamos dizer “a peça recria, no microcosmo da prostituição, a atmosfera de desconfiança e violência de sua época”. Hoje, o que se vê é o drama demasiadamente humano de tantos Vados, Neusas Suelis e Veludos que sobrevivem largados por aí. E que os anos, de chumbo ou dourados, não erradicaram da paisagem urbana, seja aqui ou em Kuala Lumpur. O que não permanece atual são algumas expressões usadas pelos personagens (“Eu te manjo” deve soar tão estranho para uma “criança” de 20 anos como prafrentex, por exemplo). Mas isso não tira, de forma alguma, o brilho da montagem, uma pequena joia de concisão e um belo trabalho de equipe do pessoal do Teatro do Pequeno Gesto, dirigido por Antonio Guedes. Num determinado momento, Neusa Sueli pergunta: “Será que nós somos gente?”. São, sim, Neusa. Demasiadamente, aliás.

46


2004

Vestir os nus, de Luigi Pirandello Inaugurou o Espaço Pequeno Gesto em 2004. No mesmo ano, foi apresentado ainda nos Sescs São João de Meriti e Campos. Realizou uma série de apresentações nas Lonas Culturais do Rio. Vestir os nus é a tragédia de Ersília, que, salva depois de tentar o suicídio, conta a uma jornalista uma mentira sobre o motivo que a levou a tal atitude. Entretanto, essa mentira, publicada no jornal, atinge outros personagens de sua vida que, então, vêm à procura dela, uns para exigir retratação, outros para tentar corrigir erros passados. E, assistindo a tudo isso, um escritor, que pensava em viver um romance com Ersília, mas acaba por ver nela um excelente personagem para uma novela, um romance ou uma peça teatral. Vestir os nus é a história de uma mulher que se vestiu de muitas maneiras, todas muito adequadas à vida social, mas nenhum dos figurinos lhe caiu bem. Então ela, de novo, se despede da vida… nua… despede-se dizendo àqueles que assistem à sua morte que sigam e contem a todos que agora está morta aquela que não conseguiu se vestir.

44

Elenco Alexandre Dantas Antônio Alves Helena Varvaki Ludoval Campos Mariana Oliveira Priscila Amorim



2005

A confissão da Leontina, de Lygia Fagundes Telles Estreou no Teatro Glauce Rocha em 2005 e cumpriu nova temporada no Teatro Glória no mesmo ano. Participou de vários festivais pelo país e realizou, ainda, uma curta temporada no Teatro D. Maria II em Lisboa, Portugal.

Crítica

Espetáculo austero como a vida da protagonista Direção de Antonio Guedes encontra o tom certo para as exigências do texto de Lygia Fagundes Telles Bárbara Heliodora Jornal O Globo, 02/11/2005 No Teatro Glória, às terças e às quartas-feiras, a pouco conhecida Kelzy Ecard faz um trabalho contido e emocionante na encenação do conto de Lygia Fagundes Telles “A confissão de Leontina”. O conto narra a saga da anônima vida de mais uma anônima interiorana cuja pobreza leva ao decantado “mau passo”, passo este que se transforma inevitavelmente no primeiro ato de uma tragédia. A delicadeza do texto original, no entanto, consegue realizar a difícil proeza de individualizar a história, por meio de uma comovente solidariedade para com Leontina, sem perder sua pertinência para o quadro geral de todo um sofrido segmento da população feminina do país. O espetáculo é austero, duro e triste como a vida da protagonista e capta a humildade da narradora que Lygia Fagundes Telles tão bem caracteriza com o vocabulário e a estrutura de sua fala. Cenário simples mas significativo Essa austeridade fala de pobreza em último grau desamparo absoluto, em indigência em todos os planos, um mundo no qual a única riqueza de Leontina, o seu corpo, é sua esperança e sua perdição. O cenário de Ney Madeira é simples mas significativo, a luz de Binho Schaefer, eficiente. A direção de Antonio Guedes encontra o tom certo para as exigências do texto, mantendo tudo dentro de uma economia de movimento e gesto que acorda com uma instintiva economia de esforço onde a fome é o aspecto mais determinante da vida. O diretor conduz Kelzy Ecard a uma interpretação austera, despojada, porém muito comovente. Atriz dá corpo e voz à figura sofrida de Leontina Para a execução dessa patética confissão dessa patética Leontina, a atriz dá corpo e voz muito bem trabalhados para a composição de uma figura sofrida, ignorante, que nada sabe de códigos de bem e mal, essencialmente inocente e boa. Uma atuação de mérito, maior ainda no atual panorama, onde raramente algum dos frequentes monólogos consegue, como no caso de “A confissão de Leontina”, destacar-se, principalmente no caso de um trabalho tão contido, tão interiorizado.

Elenco Kelzy Ecard

49





2006

Open House, de Daniel Veronese Primeira experiência com um texto contemporâneo, este espetáculo nasceu como montagem de formatura de uma turma do Curso de Interpretação da Faculdade da Cidade. Devido à qualidade do resultado, após a temporada exigida pelo Curso, o espetáculo seguiu para outra temporada na Casa da Gávea. A peça se desenvolve com 10 atores em cena que não sabem o resultado que vão produzir em quem os vir. Eles não são mais inteligentes do que o público e se surpreendem com suas próprias possibilidades expressivas. Sua intenção não é produzir arte e se o fazem é por acaso, não podem ser responsabilizados por isto. Eles são estrangeiros no território dos artistas. Não falam o idioma da arte. Portanto, não têm interesses vanguardistas, nem muito menos clássicos. Os integrantes de Open House são pessoas que precisam dizer algo, nem que seja uma única vez. É muito provável que não haja uma segunda possibilidade. Os assuntos de que tratam giram em torno da solidão e do abandono, temas caros para cada um deles. Todos sentem que a vida é intensa e rápida, e não têm muito tempo para perder com aquilo que não sentem intimamente.

Elenco Ana Beatriz Torres Andréa Santiago Daniela Arantes Eduarda Studart Ivan Mendes Jaqueline Sperandio Luciano Pullig Lucio Fernandes Marcella Figueira Roberta Requião



2006

Peer Gynt, de Henrik Ibsen (leitura encenada) Peer Gynt é um poema épico, escrito em 1868, e, nele, Ibsen reconta a história desse personagem do imaginário popular da Noruega. Peer Gynt é uma espécie de Macunaíma nórdico. Sem nenhum caráter, ele faz o que quer, quando quer, sem medir as consequências de seus atos. O texto relata suas aventuras da adolescência à velhice: irresponsável na juventude, torna-se um homem de negócios sem escrúpulos, que trafica escravos e armas. Peer Gynt enriquece, perde tudo, caminha pelo mundo, sempre perseguindo o lema dos trolls: “basta-te a ti mesmo”. Ainda muito novo, ele conhece Solveig, a mulher da sua vida, mas é obrigado a fugir de sua cidade justamente para preservar a amada de um de seus malfeitos e, em sua viagem pelo mundo, acaba por se esquecer dela. Já velho, Peer Gynt resolve voltar à cidade natal. Lá reencontra Solveig, que o havia esperado por toda a vida. Ela o abençoa mas ele percebe que, depois de passar a vida correndo o mundo na tentativa de se tornar imperador de si mesmo, chegou finalmente ao lugar de onde nunca deveria ter saído… Ele percebe que voltou as costas àquela que lhe daria todo o império de que ele necessitava… e que toda a sua vida se resumiu numa grande perda. Não tendo conseguido captar a verba necessária para a montagem desse espetáculo, realizamos uma pesquisa cênica na qual chegamos a compor 12 músicas e elaboramos 5 longas cenas nas quais um coro de atores contava e dava origem a personagens que representavam a vida de Peer Gynt. A idéia seria transformar toda a saga de Peer Gynt numa narrativa cantada. Esse esboço do espetáculo foi apresentado como uma leitura encenada em algumas cidades do interior do RJ e esteve, em curtíssima temporada, no Teatro Maria Clara Machado.

Elenco Ana Luiza Alkimim Diogo Cardoso Dudu Sandroni Fernanda Maia Flávia Naves Kelzy Ecard Márcia Alves Pedro Rocha Viviana Rocha

55


46



2007

Animal do tempo, de Valère Novarina Este monólogo estreou em 2007 no Espaço Sesc. Participou do Festival de Curitiba e realizou novas temporadas em São Paulo e, em 2009, integrou o projeto Novarina em cena. Animal do tempo é uma narrativa que não se preocupa em ser o relato de um acontecimento. O texto de Novarina procura ser, ele próprio, acontecimento. Este espetáculo, a partir dessa compreensão, na qual coloca como protagonista a própria linguagem, não trabalha com a ilustração de uma fábula. Ela procura tornar a atriz que profere esse texto como um corpo que lança, no espaço, suas palavras para que sejam organizadas da maneira que a plateia preferir. Pode-se dizer que é uma abordagem abstrata, que a peça é a possibilidade de haver, ali, teatro. Toda a obra de Novarina, como a de Artaud antes dele, aponta para a subversão do uso da linguagem, para a criação de uma obra abstrata no teatro, leva o público a viver uma linguagem que aponta múltiplos sentidos. A mistura de palavras, de letras das palavras, de concordâncias, termos técnicos inventados, tudo isso é uma proposta de Novarina para que o espectador fique ao mesmo tempo atento e perceba que é um jogo, e entre no jogo.

Elenco Ana Kfouri

58




2007

Valsa nº 6, de Nelson Rodrigues Em uma retomada deste texto de Nelson, toda a encenação foi revista a partir da formação de uma nova equipe. Com concepção cenográfica assinada por Doris Rollemberg, figurinos de Mauro Leite, música de Paula Leal, iluminação de Binho Schaefer e interpretação de Mariana Oliveira, essa nova montagem estreou em Porto Alegre, representando a Companhia, que foi convidada a participar das comemorações pelos 10 anos do Palco Giratório do Sesc. Do Sul, Valsa nº 6 foi para Cuiabá (MT), Fortaleza (CE), Iguatu (CE), Sobral (CE), Crato (CE), Santo André (SP), Maceió (AL) e Palmas (TO). Além dessa turnê pelo Brasil, o espetáculo circulou também pelo interior do RJ passando por 11 unidades do Sesc. Sônia, menina assassinada aos quinze anos, tenta durante os 60 minutos deste monólogo lembrar-se de tudo o que lhe aconteceu antes de ter sido apunhalada pelas costas por alguém que lhe pedia que tocasse ao piano a Valsa nº 6, de Chopin. Sônia tenta encadear fatos que ninguém, nem mesmo ela, poderia afirmar se são verdadeiros ou inventados. Assim, Valsa nº 6 conta a história de uma menina que não sabe quem é, nem onde está. Ela procura a si própria e, nesta busca, reinventa cada personagem que passou por sua vida. Reinventa, inclusive, Sônia. Fala-nos de uma Sônia malvada, ciumenta e perversa, mas também suave, lírica e infantil. O jogo com a ambiguidade é a marca desse texto de Nelson Rodrigues. Valsa nº 6 lida com o espaço da transição, o espaço da passagem: a menina que se transforma em mulher; a passagem da vida para a morte; o espaço entre a realidade e a ficção. E não há como privilegiar um desses níveis, pois eles estão todos entrelaçados, convivendo em cena.

Elenco Mariana Oliveira

61



2007

A Rua do Inferno, de Antonio Onetti Ruídos de um parque de diversões. Gritos da montanha russa se fundem num único grito. Silêncio. A luz se acende e três mulheres jovens, com vestidos de dança flamenca, começam a conversar sobre o que teria acontecido. A Rua do Inferno é uma peça em quadros na qual três jovens mulheres, funcionárias de um supermercado, revelam suas frustrações, seus desejos, suas solidões no mundo moderno. Há um concurso de dança flamenca. Uma delas dança muito bem. As outras duas a disputam como par porque com ela a vitória é certa. Ela, a que dança muito bem, é casada. Outra é amante do marido dela, com quem costuma se encontrar no estoque do supermercado. A terceira foi possuída, por engano, enquanto fumava escondida no escuro, pelo mesmo marido que pensava encontrar-se com a amante. Uma delas revela à amiga a traição de ambas. Mas ela já sabia. E saber não é o pior. Horrível é perceber que o amor não existe, que tudo não passa de um jogo comercial e que a vida não oferece nada de graça. E ela pula da roda gigante. Numa narrativa não linear, a peça começa com essa morte para, em seguida, não apenas explicar o que tinha acontecido, mas revelar a aridez da vida destas três mulheres que se assemelham a tantas outras que precisam encarar a vida moderna. Primeiro texto de autor contemporâneo encenado pela Companhia, este espetáculo estreou no Teatro Municipal MariaClara Machado em 2007 e realizou uma pequena turnê pelo interior do Estado do Rio passando pelos Sescs de São João de Meriti, Niterói, Engenho de Dentro, Nova Friburgo e, integrando um projeto de circulação da Secretaria de Cultura do Estado do Rio, foi também a Itaocara.

Crítica

Surpresas e conflitos no supermercado “A Rua do Inferno” Lionel Fischer – Tribuna da Imprensa – 08/11/2007

Sempre que assistimos a um espetáculo – que não seja de dança, pantomima, mímica etc. – sempre nos preocupamos, inicialmente, em apreender ao máximo as pretensões do autor. No presente caso, estamos diante de três jovens que trabalham em um supermercado, cada uma exercendo uma função específica. Parecem amigas e se comportam como tal até o momento em que um concurso de sevilhana (dançada aos pares) faz aflorar algumas incompatibilidades entre elas.

Elenco Mariana Oliveira (Ana Alkimim) Fernanda Maia Viviana Rocha

63



Eis, em resumo, o enredo de “A Rua do Inferno”, do espanhol Antonio Onetti. Mais recente produção do grupo Teatro do Pequeno Gesto, a montagem, em cartaz no Teatro Maria Clara Machado (Planetário da Gávea) chega à cena com direção de Antonio Guedes e elenco formado por Ana Alkimim, Fernanda Maia e Viviana Rocha. Inicialmente, nossa impressão foi a de que o autor utilizaria o supermercado não em seu sentido óbvio, mas como possível metáfora do mundo contemporâneo. E talvez tenha sido esta a sua intenção, mas logo percebemos que os conflitos entre as personagens poderiam existir independentemente do local de trabalho comum. E também nos surpreendeu o fato de que boa parte da peça é consumida com o tema da traição, só se tornando realmente mais interessante quando as três jovens começam a falar de si mesmas, diretamente com a platéia, e aí afloram questões mais pertinentes, abrangendo a solidão, a inveja, a necessidade de amar, a excessiva preocupação com o corpo etc. Quanto ao espetáculo, e fugindo um pouco à estética habitual do grupo, Antonio Guedes trabalha a cena em um ritmo mais acelerado do que de costume, e também consegue criar marcas surpreendentes e divertidas, afora o fato de ter feito ótimo trabalho junto às atrizes. Ana Alkimim (Paqui), Viviana Rocha (Toñi) e Fernanda Maia (Juani) exibem atuações seguras e convincentes, tanto do ponto de vista vocal como corporal. Mas cabe conferir algum destaque a Fernanda Maia, na realidade a protagonista, pois muito do texto gira em torno da traição de seu marido com as amigas (o que a leva a proferir algumas considerações interessantes) e também é ela que carrega a maior carga dramática, assumindo sua mediocridade – o mais correto seria dizer mediania – e sobretudo seu desespero em face de um mundo que parece nada ter a lhe oferecer que mereça ser vivido. No tocante à equipe técnica, Antônio Gonçalves assina boa tradução, sendo de ótimo nível o singelo, multicolorido e abstrato cenário de Luiz Henrique Sá. Mauro Leite responde por corretos figurinos, a mesma correção presente na iluminação de Binho Schaefer e na música original de Paula Leal.

56

65


2008

A filha do teatro, de Luís Augusto Reis A relação de família que se estabelece entre três mulheres e o assassinato de uma diretora de peças experimentais é o ponto de partida de A filha do teatro. O espetáculo é uma homenagem ao teatro e uma busca pelo seu sentido. A peça de Luís Augusto Reis, que recebeu pelo texto da peça o Prêmio Funarte de Dramaturgia em 2003, é estruturada em nove monólogos e a história contada a partir de três pontos de vista diferentes: o da vítima, mãe adotiva de uma menina; o de uma ex-atriz pornô, mãe biológica da garota; e o da própria filha. As atrizes que representam esses personagens, não contracenam entre si, elas se revezam na interpretação das personagens, revelando, a partir de perspectivas diversas, os fatos que antecedem o assassinato. Mas elas estão em cena o tempo todo. Aquelas que não estão falando, permanecem à vista do espectador operando a luz, o som, abrindo ou fechando uma cortina, fazendo com que a cena se desenvolva. Entretanto, tão importante quanto o conteúdo da história, é a necessidade de ela se mostrar enquanto tal, como pura narrativa. Na literatura contemporânea, segundo o ensaísta francês Maurice Blanchot, a narrativa não deve ser compreendida como o relato de um acontecimento, ela própria é um acontecimento. A filha do teatro dialoga com essa idéia. E a cena apresenta uma série de engrenagens a serem montadas pelo espectador, sem que a história seja deixada de lado. A filha do teatro estreou em 2008 no Espaço Sesc. Convidada para participar do Festival Janeiro de Grandes Espetáculos, no Recife, o espetáculo fez 3 apresentações na capital pernambucana em janeiro de 2009 e, em abril, realizou mais uma temporada no Rio numa galeria de arte da Caixa Cultural.

Elenco Priscila Amorim Fernanda Maia Viviana Rocha

66



Crítica

JORNAL DO COMMERCIO – Artes e Espetáculos Ida Vicenzia – 01/05/2009 Em cartaz na Caixa Cultural da Av. Almirante Barroso, A filha do teatro, texto de Luís Augusto Reis, direção de Antonio Guedes. O texto, Prêmio Dramaturgia da Funarte de 2003, nos remete à vida real sem ser um texto realista. Ou melhor, o recurso narrativo buscado pelo autor poderia cair na armadilha do realismo, nas mãos de um diretor menos criativo. No caso, parodiando Pirandello, trata-se de um texto à procura de um encenador. Guedes mostra ser o artista indicado, pois, ao narrar o drama de uma vida, acrescenta, à narrativa, uma ação teatral deflagrada por imagens que capturam o público. O que mais impressiona no espetáculo é o texto possuir características de depoimento, com uma estrutura fechada, e, ainda assim, dar espaço para a modernidade. Uma leitura “cibernética” na qual câmaras, telões e aparelhos eletrônicos transmitem a ilusão de multiplicação da ação. Detalhe que intriga: as raízes clássicas do teatro estão presentes, com o surgimento de cada personagem como um corifeu narrando o acontecido. Pensando bem, trata-se de uma reciclagem de linguagens antigas, acrescidas de novas técnicas. Esse encontro de gêneros (o moderno e o clássico) surge principalmente em consequência da encenação das atrizes que, “impregnadas” pelo texto (belo trabalho), tornam-se, ao mesmo tempo, personagens e coro da tragédia narrada.Fernanda Maia, Priscila Amorim eViviane Rocha alternam-se, tornando vivo o relato dos acontecimentos. O espectador é pego de surpresa pela crueza da palavra falada, à qual vem juntar-se a técnica de uma câmara que a tudo amplia. Esse alternar do foco dramático vem reforçar outro aspecto do espetáculo: o “tempo”, como representação. Há um encadeamento de cenas que se inicia com um som minimalista que se repete: um tiro, um choro de criança e acordes de uma música pontuam o início de cada ação. As falas se organizam a partir desses sons. É como se estivéssemos vivendo em um eterno presente. Objetivo, o texto procura entender a motivação dos personagens. No caso, o problema recorrente da relação da mãe biológica (a prostituta) com a “filha do teatro”, a menina que nasceu e se criou na ribalta. Há também o relacionamento dessa menina com suas “outras mães”. Para contar essa história fracionada percebemos uma aproximação do diretor com o teatro experimental. Talvez este seja o estágio atual do Teatro do Pequeno Gesto, criado por Antonio Guedes e Fátima Saadi– uma aproximação com o teatro de pesquisa, com o teatro contemporâneo. Até um passado recente, a preocupação do grupo era a encenação dos grandes clássicos, deles fazendo parte, por exemplo, Quando nós os mortos despertarmos, a despedida simbolista de Ibsen.

68


O tema da presente encenação é palpitante. O que presenciamos na Galeria 2 da CaixaCultural é uma experiência artística marcante: imaginemos um palco, uma divisão, e duas cenas com depoimentos simultâneos. Há a sugestão de vozes, de ecos, de vida compartilhada, estilhaçada. Estamos participando de uma experiência que confunde o espaço cênico. A vida real encenada no texto permite que a ação se subverta. O caminho tomado pela narrativa é a palavra sendo vulnerada pela exacerbação: sexual, emocional, antiética, do sexo como condenação. Esse esfacelamento de todo pudor abre espaço para uma narração em que a verdade domina. A vida real pulsa, tal como é imaginada pelas atrizes-personagens. Luís Augusto Reis, o autor, inverte a vida real em seu texto e o resultado não pode ser mais eficaz. Várias são as opções de vida vivida, porém a prostituta (a transgressora) eletriza a cena. A personagem central, “a filha do teatro”, analisa e procura compreender as três mulheres que a encaminharam na vida. Por concessão do autor, ela transforma-se em uma atriz, herdando talvez o talento da mãe biológica (marcante a cena da interpretação de Lorca feita pela prostituta). A procura da “filha”, para compreender o conflito em que vive, se encaixa na narrativa em um movimento constante. A cenografia, impactante, é responsável pela mobilidade do espetáculo. Uma criação de Doris Rollemberg. Fátima Saadi, a “dramaturg”, destaca a eficácia do texto. A iluminação de Binho Schaffer é um fator que acrescenta ritmo ao espetáculo, com suas luzes acompanhando a ação. Os vídeos são de Paula Bahiana. A corda esticada da narrativa se encarrega do resultado. É bom ver bom teatro.

Três mulheres por trás de um crime Macksen Luiz Jornal do Brasil – 06/12/2008 O texto do pernambucano Luís Augusto Reis, em cartaz na Sala Multiuso do Sesc, divide a narrativa de um crime e a prática do teatro por três personagens, que, em vozes diretas, montam a história. Não é propriamente um formato original, muito menos inovador, mas artifício bastante atraente de explorar e desconstruir a maneira como se propõe a estabelecer o fluxo da palavra. Aproveita-se da linguagem cênica para verificar os seus meios. Ha­bilidoso como estrutura e seguro em seu desenvolvimento, permite que esses planos se encontrem de modo sintético e ajustado, formando um corpo dramático atraente. A ausência de rebuscamento confere simplici­dade formal, que pode sugerir ao encenador sugestivas alternativas de traduzi-lo no palco. Antonio Guedes aproveitou bem as indicações do autor para ampliar o sentido teatral da nar­rativa, sob a perspectiva de incluir até mesmo a plateia como recurso de encenação. A cenografia de Doris Rollemberg é decisiva nessa concepção, dividindo em duas a área de representação, separadas por cortinado transparente. As atrizes circulam, ora por um, ora por outro espaço, dirigindo-se frontalmente ao público, quando não indiretamente, através de imagens projetadas. O diretor conduz com fluência o tabuleiro com três figuras que se movimentam para ordenar uma forma de contar e de assistir. As atrizes – Fernanda Maia, Pris­cila Amorim e Viviana Rocha – têm atuações contidas pela maneira como buscam a atenção da plateia. Diretas, sem dramaticidade, são peças de um quebra-cabeças, percorrendo uma história e mostrando como pode ser decomposta em sua unidade.

69



2011

AntígonaCreonte, de Antonio Guedes e Fátima Saadi, a partir de Sófocles O interesse pelo trágico e pelas questões relacionadas com a tragédia sempre permeou as encenações do Pequeno Gesto. Apenas em 2003, porém, a companhia mergulhou em sua primeira peça do gênero, Medeia, de Eurípides. Alguns anos depois dessa primeira experiência, o Pequeno Gesto resolveu centrar sua pesquisa na dramaturgia contemporânea. Agora, juntando os dois interesses – o trágico e o contemporâneo – consideramos que chegou o momento de revisitar a tragédia grega e dimensioná-la no nosso tempo. Assim, trabalhar com uma nova tragédia, desta vez, Antígona, de Sófocles, é uma forma de afirmar o sentido da tragédia grega nos dias de hoje. Com duração de 45 minutos, AntígonaCreonte vai ao encontro do anseio da direção de adaptar a montagem com o mínimo necessário para contar a história. Sendo assim, além dos dois protagonistas, personagens do título, o elenco inclui o Corifeu, que faz as narrações. O título traduz nossa intenção de fazer uma abordagem muito particular dessa tragédia, na qual os dois personagens centrais se tornarão lados igualmente fortes de um embate, serão duas razões possíveis em relação ao direito privado e ao coletivo. O vídeo é utilizado para criar uma dimensão narrativa entre o real e o virtual. A música tem importância fundamental: o coro é totalmente musicado e, em algumas cenas, a música promove um diálogo entre Antígona e o Coro. O espaço é abstrato; não representa nenhum lugar específico. O cenário, formado de colunas de madeira, faz alusão, por um lado, às ruínas de um templo grego e, por outro, evoca uma estrutura incompleta de cena à italiana.

Crítica

Tragédia enxugada Versão contemporânea de Antígona centraliza a ação nos protagonistas e mantém o essencial Carlos Henrique Braz Veja Rio, 03/08/2012 Antígona, princesa de Tebas, é condenada à morte pelo rei Creonte. O motivo: contrariando uma lei baixada pelo tirano, ela promove o sepultamento do irmão Polinice, considerado um traidor. Escrita por Sófocles em 442 a.C., a tragédia grega é reduzida à essência, em 45 minutos de sessão, na montagem encenada pela companhia Teatro do Pequeno Gesto, AntígonaCreonte, adaptação de Fátima Saadi, concentra a ação nos dois papéis principais, interpretados por Vilma Melo e Gustavo Ottoni. Fazendo as vezes de corifeu, Mariana Oliveira desdobra-se por tipos e cenas de apoio à trama. Personagens-chave, a exemplo de Ismênia (Jackie Netzach), irmã da protagonista, e Hémon (Ivan Fernandes), filho de Creonte e noivo de Antígona, aparecem em imagens projetadas na fina cortina no fundo do palco. Os vídeos de boa qualidade produzidos pelos irmãos Rico e Renato Vilarouca entram com o toque contemporâneo. Uma representação do coro grego traz trechos do clássico narrados por vozes digitalizadas, como sons de robôs, e cita mortos insepultos da atualidade, a exemplo dos corpos não resgatados de vítimas do acidente no voo da Air France, em 2009. Na direção, Antonio Guedes extrai bons desempenhos de Vilma e Gustavo.

Elenco Gustavo Ottoni Mariana Oliveira Vilma Melo

71




2011

Teatro dos ouvidos, de Valère Novarina Pintor, poeta, dramaturgo, Novarina é um artista que transita pela fronteira que separa os diversos gêneros artísticos. Paralelamente à criação de seus textos, trabalha com grafismos, depois com pintura; primeiro desenhando os personagens, depois, pintando cenários até começar, a partir de 1986, a encenar alguns de seus livros. Sua obra chegou ao Brasil através das traduções de Angela Leite Lopes, em parceria com a Editora 7 Letras. Teve alguns de seus textos adaptados e misturados por Ana Kfouri, no espetáculo Esfíncter em 2006. Em 2007, pela primeira vez um texto de Novarina foi encenado na íntegra: O animal do tempo, com Ana Kfouri retornando ao palco depois de 15 anos, dirigida por Antonio Guedes. Desde então, a obra deste autor, já muito reconhecida na Europa, vem sendo difundida também no Brasil. Teatro dos ouvidos é uma narrativa entre o monólogo e a poesia, entre a fala e a literatura. Daí o título ambíguo – se levarmos em consideração que a palavra TEATRO, em sua origem, significa lugar para ver – aludindo à audição no lugar da visibilidade. Novarina trabalha exatamente na intersecção das ambiguidades. Ele evoca, no texto, a ideia de um sujeito que só existe enquanto ideia. De concreto, só o seu enunciado… só as palavras. “Não consigo acreditar que estou dentro de um homem. (…) Povoei o mundo de nomes.” Diz o texto, já no final. Esta impossibilidade de identificação entre aquele que pensa e fala com o corpo que se desloca no espaço traz a Linguagem para o primeiro plano. Este texto é construído num tom muito bem-humorado, vendo toda aquela impossibilidade existencial como um jogo no qual só resta achar graça dessa condição humana. O tema que Novarina desenvolve em Teatro dos ouvidos pode ser encontrado também em Beckett. Mas com a diferença que o clown ‘novariano’ é mais explícito, mais visível. Não é como um Buster Keaton: o homem que nunca ri. Ao contrário, é o clown que só adquire sentido a partir de um sorriso aberto. Este texto de Novarina não chega a contar uma história explícita, mas evoca imagens em sucessão e transborda afetividade. Esta montagem experimenta os limites entre o teatro e as artes plásticas, levando o público a fazer parte da cena, caminhando por um labirinto de paredes diáfanas da instalação criada por Bel Barcellos. Em algum momento ele encontrará Angela Leite Lopes que percorrendo os caminhos deste labirinto diz o texto de Novarina.

74




2012

Na solidão dos campos de algodão, de Bernard-Marie Koltès Encenado em Recife, este espetáculo estreou em 2012 no Teatro Marco Camaroti. O mote da situação é o comércio. Duas pessoas se encontram num lugar neutro, indefinido. Negocia-se alguma coisa que possa interessar a duas pessoas ou a dois animais. Um deles pretende fornecer o que o outro desejaria, mas nem o desejo, nem a mercadoria são apresentados. E essa relação – que irá avançar para lugar nenhum – mostra-se, ao longo do tempo, como um combate sem vencedores.

Recebeu, em 2014, os prêmios de Melhor Direção e Melhor Ator (Tay Lopez) pela APACEPE – Associação de Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco.

Um combate que só se realiza através da palavra. É a palavra que vai, no percurso do espetáculo, revelar que toda relação é um jogo comercial no qual um deseja e o outro sacia; e é a palavra que irá revelar o vazio que existe em toda relação comercial. Segundo Walter Benjamin, a tragédia é um fato linguístico. A tragédia brota da potência de sentidos que a linguagem engendra e da ambiguidade que esses mesmos sentidos podem evocar. Então, pode-se dizer que Na solidão dos campos de algodão é uma tragédia contemporânea, porque esta peça se apoia na linguagem, na potência da linguagem. A peça apresenta um jogo no qual o que é dito por cada um dos personagens tem a aparência de uma verdade, de uma certeza. Mas, no final, vemos que tudo não passou de retórica, pois duas ideias que, no início, pareciam estar em lugares opostos, revelam-se aos poucos como uma e mesma fala: a da impossibilidade de dois seres humanos alcançarem a completude; de representarem à perfeição, como diz Koltès, “cavidade e saliência”. Linguagem aqui não é entendida como veículo de comunicação. Seria um equívoco considerar esses personagens sem nome (dealer e cliente) como indivíduos que conversam, como indivíduos que buscam algum relacionamento íntimo. São ideias em tensão, são forças – a ordem e o caos, por exemplo – que experimentam sua potência. Mas sem maniqueísmo. Justamente, a conclusão do diálogo é a inexistência de armas... pois se parecia haver uma luta, no fim, percebemos que não há diferenças entre eles. As ideias não passam de posições que são descritas a partir de diferentes retóricas. No fim, no fundo, não sobra nada. Não há nada. Podemos dizer que a Linguagem é o protagonista dessa peça. É pela linguagem que percebemos a ambiguidade dessas duas imagens do homem em cena. É pela organização desses diálogos, elaborados como discursos construídos à maneira clássica (apresentação da questão, desenvolvimento e conclusão), que as ideias empreendem um combate. É a Linguagem que se mostra, na diferença das abordagens, como uma forma violenta de combate. Violenta e vazia, pois, apesar do cuidado na elaboração de cada discurso, o jogo mostra-se vazio de sentido... apenas ideias jogadas no vazio que vigora entre duas pessoas, duas posições, dois universos. O espaço ‘entre’ é justamente o que caracteriza essa situação: os discursos não dão conta de descrever o vazio que há entre dois homens que se encontram num espaço vazio, sem significado, um lugar que fica entre uma luz e outra luz.

Elenco Edjalma Freitas Tay Lopez

77



2012

Primeiro amor, de Samuel Beckett Estreou no Poeirinha em 2012. Após temporada no Rio, cumpriu mais duas temporadas em São Paulo: no Sesc Pompeia e no Espaço CIT – Ecum. Em Primeiro amor, um relato em primeira pessoa, temos um personagem que revela que tudo o que ele deseja é estar só, sem a terrível necessidade que as pessoas têm, quando estão juntas, de conversar, sem o insuportável esforço que é dar uma opinião, sem a intolerável exigência de dizer o que sente, sem a inadmissível obrigação de responder, seja o que for. Enfim, sem precisar de outro que confirme que sim, ele existe, e é um indivíduo porque fala, pensa e sente de forma muito particular. Mas uma mulher apareceu e exigiu, com toda aquela abominável delicadeza, um lugar no seu banco, acabando de vez com sua paz! Paz? Depois daquele dia, outros viriam e a imagem dela se tornou, para ele, tão necessária quanto o banco no qual dormia todas as noites. A ereção é uma consequência natural nesses casos. Mas é também o caminho para que esse sujeito que identificamos como uma pessoa singular comece a se esfumaçar, a ficar fora de foco e vá, pouco a pouco se diluindo para desaparecer de vez num mar de sensações. “Já não somos nós mesmos nessas condições, é penoso já não sermos nós mesmos, ainda mais penoso do que ser.” A desorientação que o amor inflige! Essa necessidade de ter esse amor por perto só é pior do que tê-lo ao seu lado. Ele luta, mas a proximidade dela e o fato de ela ter um quarto para ele o levam à sua casa. O inverno é também um ótimo argumento. E é possível suportar essa situação, desde que não produza mais infelicidade. Mas o nascimento acaba com ele; principalmente sabendo que a obra é sua. A náusea provocada pelos gritos do nascimento e pelo fato de deixar uma casa sem que o tenham expulsado, o levam a vestir o paletó, o sobretudo, o chapéu e os sapatos – acho que não se esqueceu de nada – e sair... para nunca mais voltar.Mas os gritos do nascimento continuarão a ecoar nos seus ouvidos.

Elenco Ana Kfouri

79


70







Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.