O Modelo Milionário Uma nota de admiração Oscar Wilde (1854-1900)
Introdução Esta nova empreitada da Oficina de Tradução da Casa Guilherme de Almeida, intitulada “Contos de Humor, Ironia e Sátira”, buscou contemplar contos da língua inglesa que retratam situações humorísticas, irônicas e satíricas, sempre revelando – ou sugerindo – uma visão crítica da sociedade e das ações humanas. Trata-se de uma coletânea de contos que inclui sobretudo autores americanos, ingleses e irlandeses: Mark Twain, O. Henry, Ring Lardner, William T. Thompson, Saki, Oscar Wilde, James Joyce e Seumas O’Kelly; entretanto, aqui se encontram também respeitados autores de outros países de língua inglesa: Premchand (Índia), Thomas C. Haliburton (Canadá) e Henry Lawson (Austrália), aparentemente pouco conhecidos no Brasil. Com isso, pretendemos mostrar a variada gama de estilos, aspectos culturais e morais de diferentes regiões e a universalidade dos sentimentos e atitudes humanas. Esperamos ter contribuído para a difusão da cultura e da literatura em tradução. Com exceção de um conto, “O Funeral de Buck Fanshaw”, de Mark Twain, que foi traduzido coletivamente, os outros foram traduzidos em pares, pequenos grupos ou, em situações especiais (casos de desistência), individualmente. A elaboração desta coletânea em tradução, é importante dizer, foi uma riquíssima fonte de aprendizado e de conhecimento para todos os participantes. A troca de informações, as discussões coletivas e as interpretações compartilhadas resultaram nestes textos que agora submetemos à apreciação do leitor, que terá a oportunidade de ler (ou reler) alguns autores conhecidos e de conhecer alguns até então desconhecidos no Brasil, mas que em seus respectivos países desfrutaram de grande sucesso. Que o humor, a ironia e a sátira aqui contidos revelem um pouco mais da face humana que, apesar de diferente aqui e acolá, revela-se, no fim das contas, a mesma em qualquer rincão do universo. Alzira Allegro Coordenadora da Oficina de Tradução
O Modelo Milionário Uma nota de admiração Oscar Wilde (1854-1900)
Oscar Wilde (1854-1900) Oscar Wilde nasceu em Dublin, Irlanda. Foi educado no Trinity College dessa cidade e, posteriormente, na Universidade de Oxford, onde sofreu forte influência de Walter Pater, adepto da doutrina da ‘arte pela arte’; em 1879 estabeleceu-se em Londres e tornou-se líder do novo movimento estético. Em 1882 fez uma viagem aos Estados Unidos e Canadá, o que lhe trouxe fama e dinheiro. E 1888 publicou O príncipe feliz e outras histórias, contos de fadas escritos para seus dois filhos. Em seguida, publicou o romance O retrato de Dorian Gray (1890) e no ano seguinte outras coletâneas de contos, entre as quais se destacam A casa das romãs e O crime de Lord Arthur Saville e outras histórias. Seu talento para a voz teatral revelouse em O leque de Lady Windermere (1892), Uma mulher sem importância (1893), Salomé (1894), Um marido ideal (1895) e a peça que é considerada sua obra-prima, A importância de ser Prudente (1895). Processado por sua homossexualidade, Wilde foi preso em 1895. Na prisão escreveu a longa carta-ensaio De Profundis, dirigida a Lord Alfred Douglas, além do poema “A Balada do Cárcere de Reading”. Libertado em 1897, mudou-se para Paris, onde morreu.
O Modelo Milionário Uma nota de admiração A não ser que alguém seja rico, de nada vale ser charmoso. Fantasia é privilégio de ricos e não profissão de desempregados. Os pobres devem ser práticos e prosaicos. É melhor ter uma renda permanente do que ser fascinante. Essas são as grandes verdades da vida moderna que Hughie Erskine nunca percebeu. Pobre Hughie! Quanto à sua capacidade intelectual, devemos admitir, ele não era muito importante. Jamais disse algo brilhante ou até mesmo algo desagradável na vida. Entretanto, era incrivelmente belo, com os cabelos castanhos encaracolados, perfil grego e olhos cinza. Era tão popular com os homens como era com as mulheres, e ainda possuía muitos talentos, exceto o de ganhar dinheiro. Como legado, herdou do pai a espada da cavalaria e a History of the Peninsular War em quinze volumes. Hughie pendurou a primeira sobre o espelho e acomodou a segunda na prateleira entre o Ruff’s Guide e o Bailey’s Magazine, e sobrevivia com duzentas libras por ano que uma velha tia lhe deixara. Havia tentado de tudo. Aplicara na Bolsa de Valores por seis meses. Mas o que significava uma borboleta entre touros e ursos? Fora comerciante de chá por algum tempo, mas logo se cansou do pekoe e souchong. Então, tentou vender cerejas desidratadas. Não obteve sucesso; a cereja era seca demais. Por fim, tornou-se um nada, um jovem encantador, dono de um perfil perfeito, mas sem qualquer habilidade ou profissão. Para piorar as coisas, estava apaixonado. A jovem que amava chamava-se Laura Merton, filha de um coronel aposentado que perdera a paciência e a boa digestão na Índia e nunca mais as encontrou. Laura o adorava e ele beijava-lhe os pés; formavam o casal mais lindo de Londres, mas não possuíam um tostão. O coronel gostava muito de Hughie, mas não queria saber de noivado algum.
– Volte a falar comigo, meu rapaz, quando tiver dez mil libras; então conversaremos – ele costumava dizer; e Hughie sentia-se melancólico nesses dias e precisava ver Laura para se consolar. Certa manhã, a caminho de Holland Park, onde os Mertons residiam, ele fez uma rápida visita ao seu grande amigo, Alan Trevor. Trevor era pintor. Na verdade, poucas pessoas escapam disso hoje em dia. Mas ele era um artista de fato e artistas são bastante raros. Pessoalmente, era um rapaz estranho e áspero, com o rosto sardento e a barba ruiva mal aparada. Entretanto, quando pegava o pincel, era um verdadeiro mestre, e seus quadros eram disputados com avidez. Trevor sentiu-se atraído por Hughie, em primeiro lugar, é preciso reconhecer, inteiramente por conta de seu charme pessoal. “As únicas pessoas que um pintor deve conhecer”, costumava dizer, “são aquelas pessoas bêtes e belas, que nos dão prazer artístico quando as contemplamos e nos trazem repouso intelectual quando conversamos com elas. Dândis e mulheres fúteis dominam o mundo, pelo menos assim deveria ser.” Contudo, após conhecer Hughie melhor, Trevor passou a admirá-lo não só por seu espírito alegre e confiante como por sua natureza despreocupada e generosa, e, assim, concedeu a ele entrée permanente no estúdio. Ao entrar, Hughie encontrou-o dando os últimos retoques em um maravilhoso quadro de um mendigo em tamanho natural. O mendigo estava em pé numa plataforma elevada em um canto do estúdio. Era um homem envelhecido, o rosto semelhante a um pergaminho enrugado e a mais infeliz das expressões. Uma capa marrom grosseira, em farrapos, toda puída, fora jogada sobre seus ombros; as botas grossas grosseiramente remendadas. Com uma mão ele apoiava-se em um bastão tosco e com a outra estendia o chapéu surrado para as esmolas. – Que modelo surpreendente! – sussurrou Hughie, enquanto cumprimentava o amigo.
– Modelo surpreendente? – bradou Trevor em seu tom mais alto. – Eu deveria imaginar. Mendigos como ele não se encontram todos os dias. Uma trouvaille, mon cher, um Velázquez vivo! Céus! Que gravura Rembrandt teria feito com ele! – Pobre criatura! – disse Hughie. – Que aparência infeliz! Mas suponho que para vocês, pintores, o rosto dele vale uma fortuna! – Certamente – replicou Trevor –, não se pode pretender que um mendigo seja feliz, não é? – Quanto um modelo ganha para posar? – perguntou Hughie, enquanto se acomodava confortavelmente em um divã. – Um shilling por hora. – E quanto você ganha pelo quadro, Alan? – Oh, por este eu conseguiria dois milhares. – De libras? – Guinéus. Pintores, poetas e médicos sempre ganham em guinéus. – Bem, suponho que o modelo deva ganhar uma porcentagem – declarou Hughie, rindo – eles trabalham tanto quanto vocês. – Tolice, tolice! Ora, veja só o trabalho que é dedicar-se a um quadro só e permanecer de pé o dia todo ao lado de um cavalete. Não há problema algum no fato de você pensar assim, Hughie, mas posso lhe assegurar que há momentos em que a arte quase alcança a dignidade do trabalho manual. Mas você não deve ficar tagarelando; estou muito ocupado. Fume um cigarro e fique quieto. Depois de algum tempo, o criado entrou e disse a Trevor que o fabricante de molduras desejava falar com ele. – Não fuja, Hughie – ele disse ao sair. – Volto em um minuto. O velho mendigo aproveitou a ausência de Trevor para descansar em um banco de madeira que havia atrás da plataforma. Parecia tão desampara-
do e infeliz que Hughie não pôde deixar de se apiedar dele e sentiu os bolsos para ver quanto dinheiro possuía. Tudo o que encontrou foi um soberano e algumas moedas de cobre. – Pobre coitado! – pensou consigo mesmo. – Ele precisa desse dinheiro mais do que eu, embora isso signifique eu ficar sem alugar fiacres por quinze dias. – Atravessou o estúdio e deslizou o soberano para a mão do mendigo. O velho assustou-se e um sorriso ligeiro passou pelos seus lábios ressecados. – Obrigado, senhor – ele disse –, obrigado. Quando Trevor voltou, Hughie fez menção de sair, um pouco constrangido pelo que fizera. Passou o dia com Laura, recebeu uma doce repreensão pela extravagância e teve de ir a pé para casa. Naquela noite ele perambulou pela cidade e chegou ao Pallete Club por volta das vinte e três horas. Encontrou Alan sentado sozinho na sala para fumantes, bebendo vinho e soda. – E então, Alan, terminou o quadro? – perguntou, acendendo um cigarro. – Terminado e emoldurado, meu rapaz! – respondeu Trevor. – E, a propósito, hoje você fez uma conquista. Aquele velho modelo está bastante interessado em você. Tive de contar a ele tudo a seu respeito – quem você era, onde morava, qual era sua renda, quais eram seus planos... – Meu querido Alan – exclamou Hughie –, provavelmente ele estará esperando por mim quando eu chegar em casa. Mas, claro, você deve estar apenas brincando. Pobre velho desventurado! Gostaria de fazer alguma coisa por ele. Acho horrível ver alguém tão infeliz. Tenho pilhas de roupas velhas em casa – você acha que ele gostaria de ganhar algumas? Ora, os trapos dele estavam mais que puídos! – Mas ele parece esplêndido naqueles trapos! – replicou Trevor. – Eu não o teria pintado em uma sobrecasaca por nada. O que você chama de tra-
pos eu chamo de fantasia. O que para você é pobreza é pitoresco para mim. Porém, vou contar a ele sobre a sua oferta. – Alan – disse Hughie seriamente –, vocês, pintores, são um bando de desalmados. – O coração de um artista é a sua cabeça – respondeu Trevor – e, além do mais, nosso propósito é compreender o mundo como o vemos e não reformá-lo como o conhecemos. A chacun son métier. E agora conte-me como está Laura. Aquele velho modelo está muito interessado nela. – Você não quer dizer que falou a respeito de Laura para ele, quer? – perguntou Hughie. – Claro que sim. Ele sabe tudo sobre o rígido coronel, a adorável Laura e as dez mil libras. – Você contou àquele velho mendigo tudo sobre minha vida particular? – gritou Hughie, muito vermelho e zangado. – Meu caro rapaz – disse Trevor, sorrindo –, aquele velho mendigo, como você o chama, é um dos homens mais ricos da Europa. Poderia comprar toda a Londres amanhã sem se descapitalizar ou ficar com a conta no vermelho. Tem uma casa em cada capital, costuma jantar em baixela de ouro e tem poderes para impedir que a Rússia entre em guerra quando ele quiser. – O que você quer dizer? – perguntou Hughie. – Exatamente o que eu disse – respondeu Trevor. – O velho que você viu hoje no estúdio é o Barão Hausberg. É um grande amigo, compra todos os meus quadros e outras obras, e no mês passado me pediu para pintá-lo como mendigo. Que voulez-vous? La fantaisie d’un millionaire! E devo dizer que ele fez uma figura magnífica em seus trapos, ou talvez eu deva dizer nos meus trapos; são de um terno velho que comprei na Espanha. – Barão Hausberg! – gritou Hughie. – Céus! E eu dei a ele um soberano! – e a própria figura do desalento afundou em uma poltrona.
– Deu-lhe um soberano! – repetiu Trevor, e explodiu em uma gargalhada. – Meu jovem, você jamais verá o soberano de novo. Son affaire c’est l’argent des autres. – Acho que você devia ter me contado, Alan – queixou-se Hughie, irritado –, e não ter permitido que eu fizesse papel de bobo. – Bem, para começar, Hughie – esclareceu Trevor –, jamais me ocorreu que você começaria a distribuir esmola dessa maneira descuidada. Posso entender você beijando uma linda modelo, mas dar um soberano para um modelo feio – por Júpiter, não! Além disso, o fato é que eu realmente não estava em casa hoje para ninguém; e quando você entrou, eu não sabia se Hausberg gostaria que seu nome fosse mencionado. Você sabe que ele não estava vestido formalmente. – Ele deve achar que sou um idiota – disse Hughie. – De maneira alguma! Ele estava de muito bom humor depois que você saiu; ficou rindo consigo mesmo e esfregando as velhas mãos enrugadas. Não consegui decifrar por que estava tão interessado em saber tudo sobre você; mas percebo agora. Ele investirá o seu soberano, Hughie, pagando juros a cada seis meses, e terá uma ótima história para contar depois do jantar. – Sou um pobre diabo sem sorte – lamuriou-se Hughie. – A melhor coisa que tenho a fazer é ir para a cama; e, meu caro Alan, não conte a ninguém. Eu não ousaria mostrar a cara na Row. – Tolice! Sua atitude revela o mais alto crédito do seu espírito filantrópico, Hughie. E não fuja. Fume mais um cigarro e fale sobre Laura o quanto quiser. Entretanto, Hughie foi para casa, sentindo-se muito infeliz e deixando Alan Trevor com seu acesso de riso. Na manhã seguinte, enquanto tomava o café da manhã, o criado entregou a Hughie um cartão no qual estava escrito Monsieur Gustave Naudin, de la
part de M. le Baron Hausberg. “Suponho que ele tenha vindo se desculpar”, pensou Hughie consigo mesmo; e pediu ao criado que fizesse o visitante entrar. Um cavalheiro idoso com óculos de aro de ouro e cabelos grisalhos entrou na sala e disse com um leve sotaque francês: – Tenho a honra de me dirigir ao Monsieur Erskine? Hughie fez uma reverência. – Venho em nome do Barão Hausberg – ele continuou. – O Barão... – Senhor, imploro que ofereça ao barão as minhas mais sinceras desculpas – gaguejou Hughie. – O Barão – disse o cavalheiro com um sorriso – incumbiu-me de lhe trazer esta carta – e estendeu um envelope lacrado. No envelope, estava escrito: “Presente de casamento para Hugh Erskine e Laura Merton, de um velho mendigo”, e dentro, um cheque de dez mil libras. No dia em que Hughie e Laura se casaram, Alan Trevor foi o padrinho e o Barão fez um discurso em uma cerimônia realizada durante o café da manhã. – Um modelo milionário – comentou Alan – é bastante raro; mas por Júpiter, um milionário-modelo é mais raro ainda!
Tradução: Maria Leonor da Costa Cione e Thelma Squillante
criação: angela kina | carlos santana