Centro Internacional das Artes José de Guimarães Plataforma das Artes e da Criatividade
PARA ALÉM DA HISTÓRIA Beyond History
A EXPOSIÇÃO PARA ALÉM DA HISTÓRIA É UMA VISITA GUIADA SEM GPS PELA NOITE DOS TEMPOS, ATRAVÉS DO LABIRINTO DA HISTÓRIA, A UM LUGAR EM QUE SE TORNA INDISTINGUÍVEL AQUILO QUE NOS É ESTRANHO E FAMILIAR, O COLETIVO E O INDIVIDUAL, A LUZ E A ESCURIDÃO, A VISÃO E A CEGUEIRA, A CRIANÇA E O ADULTO, PARA PROPOR UMA LEITURA DA PRODUÇÃO ARTÍSTICA QUE NÃO VEM NOS MANUAIS DA HISTÓRIA DE ARTE. THE EXHIBITION BEYOND HISTORY IS A GUIDED TOUR WITHOUT THE AID OF A SATNAV THROUGH THE MISTS OF TIME, THROUGH THE LABYRINTH OF HISTORY, TO A PLACE WHERE IT IS IMPOSSIBLE TO DISTINGUISH BETWEEN WHAT IS STRANGE AND FAMILIAR, BETWEEN THE COLLECTIVE AND THE INDIVIDUAL, LIGHT AND DARKNESS, SIGHT AND BLINDNESS, THE CHILD AND THE ADULT, SO AS TO PROPOSE A VISION OF ARTISTIC PRODUCTION WHICH IS NOT INCLUDED IN THE MANUALS OF ART HISTORY.
Arte Tribal Africana, Arte Pré-Colombiana e Arte Chinesa Antiga da Coleção José de Guimarães African Tribal Art, Pre-Columbian Art and Ancient Chinese Art of the José de Guimarães Collection
Daniel Barroca Mestre Caçoila Hugo Canoilas Pedro Valdez Cardoso Filipa César Mattia Denisse José de Guimarães Otelo Fabião João Maria Gusmão e Pedro Paiva Manuel Santos Maia Rui Moreira Pedro Paixão Teixeira de Pascoaes Thierry Simões f. marquespenteado (artista em residência) (artist in residence)
Obras das coleções de: Works from the collections of: Museu de Alberto Sampaio Sociedade Martins Sarmento Museu da Irmandade de São Torcato Museu da Agricultura de Fermentões Associação Artística da Marcha Gualteriana Veneravél Ordem Terceira de São Francisco
A principal questão que coloca talvez seja, entre outras, a de saber qual a misteriosa razão de o homem produzir objetos para a escuridão, para serem enterrados ou não serem vistos por todos, e de os exumar muitos séculos mais tarde, trazendo-os à superfície para os dar a ver - questionando se não será essa afinal a tarefa que cabe ao artista: esse constante vaivém entre a clareza e a obscuridade, entre o consciente e o inconsciente, o explicável e aquilo que não se deixa traduzir, o banal e o excecional, a norma e a exceção. A exposição define e explana o futuro âmbito programático do Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), uma estrutura dedicada à arte contemporânea e às relações que esta tece com artes de outras épocas e de diferentes culturas, tendo como chão o importante e singular trabalho de colecionador que o artista José de Guimarães vem articulando com a sua própria obra, como se fossem duas faces da mesma moeda. De facto, o CIAJG junta peças das três coleções que José de Guimarães vem reunindo há cerca de cinco décadas – arte tribal africana, arte pré-colombiana (México, Peru, Guatemala e Costa Rica) e arte arqueológica chinesa – , obras da autoria do artista e de outros artistas contemporâneos e objetos do património popular, religioso e arqueológico de Guimarães, num roteiro espiritual e simbólico que descreve um arco geográfico e temporal que tem origem na sua terra natal – a cidade de Guimarães – e que atravessa civilizações de três continentes com culturas ricas e complexas, para regressar ao lugar de origem, proporcionando uma reflexão sobre a diversidade enquanto forma de construção da identidade. Para Além da História está organizada em quatro blocos – A Origem, Emergência, Núcleo Mole e A Festa – que se subdividem em núcleos organizados de forma mais ou menos aberta. Neles, os objetos circulam livremente procurando relações escondidas, insuspeitas, obscuras, ou, por outro lado, evidentes e luminosas. É importante atentarmos ao facto de que entre alguns destes objetos existem milhares de anos de distância. O ponto fulcral é afinal o indivíduo que, aqui e agora, com a experiência que quotidianamente acumula, se confronta com este conjunto vasto e diverso de objetos feitos por mão de homem, que a história quis categorizar e hierarquizar e que, colocados lado a lado, voltam a ser questionados por aquilo que potencialmente são: objetos que celebram a vida e a morte, que procuram o sentido das coisas, instrumentos que nos ligam ao mundo, objetos transitivos e relacionais que aproximam as pessoas. Nuno Faria
The main question it raises is perhaps, among others, that of finding out the mysterious reason behind man’s practice of producing objects and keeping them in darkness, burying or placing them out of reach of the majority, and then unearthing them many centuries later, bringing them to light so as to exhibit them – questioning whether, ultimately, that is not the artist’s task after all: that constant shuttling to and fro between clarity and obscurity, between the conscious and the unconscious, the explicable and the inexplicable, the banal and the exceptional, between the norm and the exception. The exhibition defines and expands on the future programmatic scope of the José de Guimarães International Arts Centre (CIAJG), a structure focused on contemporary art and the relationships it establishes with arts from other eras and different cultures, based on the important and unique practice as a collector which José de Guimarães has been articulating with his own oeuvre, as if they were two sides of the same coin. In fact, the CIAJG brings together pieces from the three collections which José de Guimarães has been amassing over the last five decades – African tribal art, pre-Columbian art (Mexico, Peru, Guatemala and Costa Rica), and Chinese archaeological artefacts –, together with his own artworks and those of other contemporary artists, and objects of the folk, religious and archaeological heritage of the region of Guimarães, in a spiritual and symbolic itinerary that elaborates a geographic and temporal trajectory which has his hometown – the city of Guimarães – as its starting point, and which spans the civilisations of three continents with rich and complex cultures, in order to return to the place of origin, offering a reflection on diversity as a form of identity creation. Beyond History is organised into four units – The Origin, Emergence, Soft Nucleus, and The Feast – which are subdivided into sections organised more or less openly. In these, the objects circulate freely, seeking connections that may be hidden, unsuspected, obscure or, on the other hand, evident and luminous. It is important to bear in mind that some of these objects are separated by thousands of years across time. At the heart of it lies, ultimately, the individual who, here and now, with the experience he accumulates on a daily basis, is faced with this vast and diverse collection of objects created by man, which history wished to categorise and rank and which, placed side by side, are once again questioned for what they potentially are: objects that celebrate life and death, that search for the meaning of things, instruments which connect us to the world, transitive and relational objects that bring people closer together. Nuno Faria
JOSÉ DE GUIMARÃES BIOGRAFIA
JOSÉ DE GUIMARÃES BIOGRAPHY
Nasceu em Guimarães, em 1939. Desde 1995, reparte a sua vida entre Lisboa e Paris. Uma estadia em Angola entre a década de 60 e 70 do século XX, tornar-se-ia um vetor determinante na definição do seu vocabulário artístico, assim como o contacto com especialistas em etnologia africana que o conduzem à compreensão de uma simbologia existente em muitas peças de arte negra e sugerem-lhe um projeto artístico movido por uma tentativa de osmose entre duas formas de expressão plástica, europeia e africana. Mas se a primeira década de produção artística se baseia em África, nos mais de quarenta anos de trabalho, encontram-se séries completas dedicadas às culturas chinesa e japonesa, à arte de Rubens, à literatura de Camões ou à conceção particular da morte no México. Nos últimos anos, verifica-se que o seu percurso reflete uma vocação de formas e figuras tendencialmente cosmopolita. Assim, a sua expressão plástica tem vindo a acentuar a convivência de todos os fatores dominantes num longo percurso artístico e tem privilegiado a luz de NÉON e a luz de LED, sobretudo em caixas de madeira, que propõem um exterior de austeridade contrastante com a encenação do seu espaço interior, tratado com traços luminosos de NÉON e LED, pintura, colagens e objetos desviados do sentido que lhes é conferido pela sua função tradicional. Tendo realizado numerosas exposições em vários países, e, para além de exposições antológicas anteriores realizadas em Bruxelas no Palais des Beaux-Arts (1984), no Museu de Arte Moderna (Cidade do México, 1987), na Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, e na Fundação Serralves, Porto (1992), na última década, viu serem-lhe dedicadas exposições antológicas ou retrospetivas em Portugal (Cordoaria Nacional, Lisboa, 2001 e Fundação Carmona e Costa, Lisboa, 2012), na Alemanha (Museu Würth, Künzelsau, 2001), em Tóquio (Hillside Fórum, 2002), na Suíça (Art Fórum Würth, Arlesheim e Chur, 2003), no Brasil (Fundação Cultural FIESP, 2005 e Museu Afro Brasil, 2006, São Paulo), Espanha (Fundação Caixanova, 2003, e Museu Würth La Rioja, 2008), Luanda (Centro Cultural Português, 2009), em Itália (Art Fórum Würth, Roma, 2010), em Bruxelas (Espace Européen pour la Sculpture, 2007 e Parlamento Europeu, 2012) e na China (Museu Yan Huang, Pequim, 1994, Today Art Museum, Pequim, 2007 e Suzhou Jinji Lake Art Museum, Suzhou, 2012). O seu trabalho, representado nas mais relevantes coleções institucionais em Portugal e um pouco por todo o mundo, com especial incidência no Japão e Alemanha, propõe cruzamentos com a arte de civilizações não ocidentais – africana, chinesa e meso-americana – uma busca incessante de relações não verbais, a que não é estranho o labor de colecionador a que se vem dedicando há várias décadas.
José de Guimarães was born in Guimarães in 1939, and since 1995 has been dividing his life between Lisbon and Paris. A stay in Angola during the 1960s and 1970s was to become a determining vector in defining his artistic vocabulary, and the contact with specialists in African ethnology led him to the understanding of a symbology existent in many African art objects and suggested an artistic project driven by an effort to create an osmosis between two forms of visual expression, European and African. Yet, if the first decade of artistic production was based in Africa, his more than forty years of work displays complete series focused on the Chinese and Japanese cultures, on the art of Rubens, the literature of Camões and the unique conception of death in Mexico. In the last few years, his path has reflected a tendentiously cosmopolitan vocation of forms and figures. His visual expression has thus been highlighting the coexistence of all the dominant factors in a long artistic career and has privileged the light of neons and LEDs, especially in his wooden boxes, which propose an exterior of austerity in contrast with the scenographic setting of their interior space, fitted out with the luminous strokes of neons and LEDs, painting, collages and objects deflected from the meaning conferred by their traditional function. Having held a vast number of exhibitions in several countries and, apart from earlier anthological exhibitions held at the Palais des Beaux-Arts in Brussels (1984), at the Museo de Arte Moderno (Mexico City, 1987), at the Fundação Calouste Gulbenkian in Lisbon, and at the Fundação de Serralves in Porto (1992), he has been the subject of several anthological or retrospective exhibitions in Portugal (Cordoaria Nacional, Lisbon, 2001, and Fundação Carmona e Costa, Lisbon, 2012), in Germany (Museum Würth, Künzelsau, 2001), in Japan (Hillside Forum, Tokyo, 2002), in Switzerland (Art Forum Würth, Arlesheim and Chur, 2003), in Brazil (Fundação Cultural FIESP, 2005, and Museu Afro Brasil, Sao Paulo, 2006), Spain (Fundación Caixanova, 2003, and Museo Würth La Rioja, 2008), in Angola (Centro Cultural Português, Luanda, 2009), in Italy (Art Forum Würth, Rome, 2010), in Brussels (Espace Européen pour la Sculpture, 2007 e European Parliament, 2012)and in China (Museu Yan Huang, Beijing, 1994, Today Art Museum, Beijing, 2007, and Suzhou Jinji Lake Art Museum, Suzhou, 2012). His work, represented in the most relevant institutional collections in Portugal and a little all over the world, with special incidence in Japan and Germany, proposes crossovers with the art of non –Western civilisations – African, Chinese and Mesoamerican; a never-ending search for non-verbal relationships, which is also reflected in his practice as a collector, on which he has been focusing for several decades.
#1/5
A ORIGEM
The origin
A origem como princípio ou começo, mas igualmente como surgimento ou aparecimento; entendida como nascimento, que é uma síntese entre as duas ordens de significado do étimo. De certa forma, trata-se de uma das questões essenciais da produção artística de todos os tempos, da própria natureza do gesto criativo. Fazer aparecer, sob uma determinada forma ou aparência, ou ainda sem forma, aquilo que ainda não reconhecemos ou que, não nos sendo estranho, encerra sempre o mistério do aparecimento e da génese. Neste bloco, que cobre cinco salas e linguagens tão distintas quanto escultura, desenho, vídeo, filme, bordado, instalação, pintura, serigrafia, gravura, procurou-se abordar a origem desse gesto de separação (criar implica sempre separar, desdobrar a unidade original para propiciar a multiplicidade), justamente a partir dessa mescla de reconhecimento e de estranheza ou fascínio que aquilo que surge causa no indivíduo. Neste bloco encontramos coisas (vamos chamar-lhes assim, por enquanto) que convocam essa intensidade do aparecimento, que fazem ouvir a voz, o chamamento da origem. Aquilo a que chamamos “vocação”. Estas coisas estão muitas vezes próximas da infância, do começo, ou da morte, do fim. Surgem em forma de desenho, de máscaras, de objetos funerários, de fetiches. Surgem por contacto de uma superfície com outra (gravura ou serigrafia), por aproximação ou impressão, por emulsão (a película fílmica). Estes objetos, desenhos ou filmes são formas de materialização de coisas sem forma, sem corpo: pensamentos, memórias, experiências ou conhecimento que herdámos dos nossos antepassados e que transmitimos aos nossos herdeiros. É esse o segredo da arte, ser uma cadeia de transmissão de coisas que descobrimos ou que aprendemos pela experiência e que queremos que sejam preservadas. São cápsulas de memória que tomam formas ou formulações discursivas por vezes inusitadas, outras surpreendentes, raras vezes literais. O discurso artístico vem muitas vezes pelo caminho do novo, mesmo que trate de assuntos antigos. É radicalmente individual, apresenta-se frequentemente como aquilo que é outro. Aqui é também assim, não só porque estamos perante objetos de uma cultura que nos é estranha, como pelo facto de esses objetos conterem o estranho, convocarem a alteridade (o outro em mim). O exemplo mais eloquente e quiçá mais fácil de compreender (de reconhecer) são as máscaras, que em todas as civilizações estão presentes. Mesmo quando essa presença remete para a ausência ou a (des)possessão de nós próprios. NF
The origin as a start or beginning, but also as emerge or appearance; understood as birth, which is a synthesis of the two orders of meaning of the root of the word. In a certain way, it is one of the essential issues of the artistic production of all times, of the very nature of the creative gesture. To conjure up, under a certain form or appearance, or even without a form, that which we do not yet recognise or which, not being unfamiliar, always contains the mystery of the appearance and the genesis. The aim behind this section, which covers five rooms and languages as distinctive as sculpture, drawing, video, film, embroidery, installation, painting, screen-printing, or engraving, was to address the origin of that gesture of separation (creating always implies separating, unfolding the original unit to favour multiplicity), precisely from that mixture of recognition and unfamiliarity or fascination which what emerges causes in the individual. In this section we find things (we will refer to them as thus, for the time being) which convoke that intensity of the emergence, which bring out the voice, the call of the origin – what we call “vocation”. These things often lie close to childhood, to the beginning, or to death, the end. They appear in the form of drawing, masks, funerary objects, fetishes. They appear through contact of one surface on another (engraving or screen-printing), by approximation or printing, by emulsion (film). These objects, drawings or films are forms of materialising things without form, without a body: thoughts, memories, experiences or knowledge which we inherited from our ancestors and pass on to our heirs. This is the secret of art, to be a chain of transmission of things we have found or learnt through experience and wish to preserve. They are memory capsules that take on discursive forms or formulations which are sometimes unusual, other times surprising, rarely literal. The artistic discourse often emerges by way of the new, even when dealing with old issues. It is radically individual, often appearing as that which is something else. Here it is also thus, not only because we are in the presence of objects from a culture which is unfamiliar, but also because these objects contain what is strange, because they evoke alterity (the other in me). The most eloquent example, and perhaps the easiest to understand (to recognise), are the masks, present in all civilisations. Even when such presence alludes to the absence or the (dis)possession of ourselves. NF
#1 ALFABETO AFRICANO
AFRICAN ALPHABET
DA SÉRIE ALFABETO AFRICANO 1970-1974 TINTA-DA-CHINA SOBRE PAPEL SHOLLER STERN
FROM THE AFRICAN ALPHABET SERIES 1970-1974 INDIAN INK ON SHOLLER STERN PAPER
O período angolano operou uma transmutação radical no pensamento e linguagem de José de Guimarães, sendo disso o testemunho mais palpável o Alfabeto Africano, realizado entre 1970 e 1974, que é, em síntese, a aquisição de uma nova linguagem influenciada pelo pensamento ideográfico, próprio da cultura tribal africana. O Alfabeto é a aprendizagem de uma língua baseada numa riqueza cosmogónica, numa reinvenção permanente do mito fundador e não reificada ou mediada pela palavra. Dizer, comunicar com (o) outro, implica uma negociação com a complexidade e a diversidade radical da natureza, uma capacidade transformista e animista, o uso da imaginação e a convocação das dinâmicas criadoras fundadoras. Da aprendizagem da arte africana, na sua forma primitiva, ritualística e iniciática, o artista tomou aquele que é o vocabulário, a base de todo o seu trabalho, cuja gramática, operando por articulação de fragmentos recorrentes em possibilidades combinatórias, remete para a linguagem ideográfica própria de uma cultura de matriz oral que opera por transmissão e troca direta, objetual e metafórica. Os ideogramas, a utilização do símbolo, a forma clara, traduzida normalmente em negativo por via do uso da silhueta tornaram-se, mais do que uma importante forma de reconhecimento, a possibilidade de superação de uma visão dialética e retórica do mundo. NF
The Angolan period effected a radical transmutation in José de Guimarães’s thought and language, the most tangible testimony to this being the “Alfabeto Africano” (African Alphabet), produced between 1970 and 1974, which is, in short, the acquisition of a new language influenced by ideographic thought, inherent to African tribal culture. The Alphabet is the learning of a language based on a cosmogonic wealth, in a permanent reinvention of the origin myth and not reified or mediated by the word. To say something, to communicate with another or the other, implies a negotiation with the complexity and the radical diversity of nature, a transformative and animistic capacity, the use of imagination and the evocation of the founding creator dynamics. From his study of African art, in its primitive, ritualistic, and initiatory form, the artist adopted what became his vocabulary, the foundation of all his work, whose grammar, operating through the articulation of recurring fragments in combinatorial possibilities, alludes to the ideographic language which is particular to an oral culture that works by way of transmission and direct, objectual and metaphoric exchange. Ideograms, the use of the symbol, the sharp form, usually expressed in negative through the use of the silhouette, became, more than an important form of recognition, the possibility of overcoming a dialectical and rhetorical vision of the world. NF
#2 FEITIÇOS
SPELLS
“Ora a magia manifesta um desejo, exprime um desejo. O batismo como ablução. Só há erro, quando a magia é cientificamente exposta.” Ludwig Wittgenstein1
“Now magic manifests a desire, expresses a desire. Baptism as ablution. There is only error when magic is scientifically exposed.” Ludwig Wittgenstein1
Os missionários e os administradores coloniais, para convencerem os indígenas da falsidade dos seus ídolos, queimavam-nos; o erro residia no facto destes exprimirem conceções religiosas diferentes das suas. Não deixa de ser curioso que, à parte as três religiões do livro, as demais sejam invariavelmente designadas de mágico-religiosas, tornando-se a marca do exotismo e da superstição. Quando mais tarde os antropólogos procuraram explicar e tornar plausível os atos mágicos, apresentaram-nos como manifestações do pensamento primitivo, que precederiam simultaneamente a ciência e a religião, correspondendo ao que então diziam ser o “primeiro estádio de evolução mental que se pode supor ou verificar”2. Aceite como verdadeiro, apesar de muito pouco esclarecedor e de permanecer vinculado ao diminuto universo espiritual do século XIX, qualquer discurso sobre as magias permanece prisioneiro desta ideia de primitivismo. O complexo mágico-religioso tornou-se desde então uma expressão passe-partout, que tem servido para designar, confusa e equivocadamente, práticas rituais de sinal contrário, e que raramente convivem: as que cuidam dos desejos e problemas individuais, e as das solenidades públicas, obrigatórias e regulares. No recurso a um curandeiro, ao proprietário de um feitiço ou de um espírito, ao endireita ou ao feiticeiro existe um desejo, um objetivo particular, mas não uma obrigação moral. Em todas as sociedades os rituais mágicos, ainda que lícitos, estão envolvidos em mistério. É a natureza íntima, e portanto associal que faz com que o ritual mágico tenda como limite para o proibido. Em qualquer circunstância, é uma ameaça para qualquer sistema social organizado. EM
In order to convince the indigenous peoples of the falsity of their idols, missionaries and colonial administrators used to burn them; the mistake resided in the fact that the former expressed religious views different from their own. It is curious to note that, apart from the three religions of the book, the others are invariably designated as magico-religious, becoming the mark of exoticism and superstition. When later on anthropologists sought to explain acts of magic and render them plausible, they presented them as manifestations of primitive thought, which preceded simultaneously science and religion, corresponding to what they then termed as the “first stage in the development of the human mind that [man] determined – or even conjectured”2. Accepted as real, despite not being very enlightening and remaining linked to the diminutive spiritual universe of the 19th century, any discourse on magic remains captive to this idea of primitivism. The magico-religious complex has since then become an all purpose expression which has served to designate, confusedly and equivocally, opposing and rarely converging ritual practices: those which attend to individual desires and problems, and those of public, compulsory and regular ceremonies. In the act of seeking out the faith healer, the owner of a spell or a spirit, the bonesetter or the witch doctor there lies a desire, a particular objective, but not a moral obligation. In all societies, magical rites, even if licit, are enveloped in mystery. It is the intimate, and therefore asocial nature that drives the magical rite as a limit towards the forbidden. In any circumstance, it poses a threat to any organised social system. EM Wittgenstein, Ludvig (1982), Remarques sur le Rameau d’Or de Frazer, Montreux, L’Age d’Homme, Le Bruit du Temps, p.16. 2 Mauss, Marcel (2001), A General Theory of Magic, London, Routledge, p. 16. 1
Wittgenstein, Ludvig (1982), Remarques sur le Rameau d’Or de Frazer, Montreux, L’Age d’Homme, Le Bruit du Temps, p.16. 2 Mauss, Marcel (2000), Esboço de uma teoria geral da magia, Lisboa, Edições 70, p. 9. 1
TRANSFORMISMO
TRANSFORMISM
A ideia segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos humanos e não humanos que o apreendem de modos diferentes, é comum a muitos povos; todos os seres partilham de uma mesma força impessoal distribuída de modo desigual por cada um deles, o que lhes confere múltiplos aspetos. Não há uma qualidade invisível que distinga os seres espirituais dos humanos, dos animais, das plantas ou dos fenómenos naturais, apenas qualidades físicas, suas querências e os lugares que eles habitam. A sua classificação resulta essencialmente da relação que estabelecem com a “natureza”, que não significa apenas o que está fora do habitat humano, mas tudo o que não tem um princípio organizativo claro, que é confuso ou indiferenciado. A distinção clássica entre Natureza e Cultura, e todos os outros predicados inscritos neste mesmo sistema de negações, universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e espírito, animalidade e humanidade, não consegue descrever dimensões ou domínios internos a cosmologias não ocidentais, onde as plantas, os animais, espíritos, divindades ou humanos, sendo categorias instáveis e relacionais, podem ser simultaneamente uma e outra coisa. EM
The idea according to which the world is inhabited by different types of human and non-human beings that perceive it in different ways, is common to many peoples; all beings share a same impersonal force distributed unequally among them, which gives them multiple characteristics. There is no invisible quality that distinguishes spiritual beings from humans, animals, plants or natural phenomena, only physical qualities, their place of origin and the places they inhabit. Their classification essentially results from the relationship they establish with “nature”, a notion which is not limited to what lies outside the human habitat, but also includes everything that has no clear organisational principle, which is confused or undifferentiated. The classic distinction between Nature and Culture, and all the other attributes inscribed in this same system of negations – universal and particular, objective and subjective, physical and moral, need and spontaneity, immanence and transcendence, body and spirit, animality and humanity –, cannot describe internal dimensions or domains to non-Western cosmologies, where plants, animals, spirits, divinities or humans, being unstable and relational categories, can be simultaneously one thing and the other. EM
#3 AS MAGIAS
MAGIC
As máscaras são os mais comuns e os mais inquietantes dos objetos, porque é de sua natureza afirmarem e negarem simultaneamente a mesma coisa, esconderem e revelarem, serem secretas e regulares. No Ocidente moderno, as máscaras ficaram reduzidas à crítica social, centrando-se quase exclusivamente na relação entre indivíduos e grupos, numa adaptação ao novo senso comum que excluíra da matéria a sua ancestral dimensão imaterial. Tradicionalmente, as máscaras equacionam a mundividência das relações entre os sujeitos humanos e não humanos. Não se trata, portanto, de uma encenação sobre o outro mas sobre a alteridade; trazem para o espaço contido e controlado dos humanos a desmesura dos seres com os quais não convivem, mas cuja existência é central na edificação de um pensamento que estabelece relações de continuidade entre matéria e o espírito, entre o objecto e o referente. Nesta ordem de ideias, as máscaras são os objetos-referente por excelência. EM
Masks are the most common and most unsettling of objects, because it is their nature to both affirm and deny the same thing, to hide and reveal, to be secret and regular. In the modern Western world, masks have become reduced to social criticism, focusing almost exclusively on the relationship between individuals and groups, in an adaptation to the new common sense which excluded from matter its ancestral immaterial dimension. Traditionally, masks equate the world view of the relationships between human and non-human beings. It is not, therefore, a staging on the other, but rather on alterity; they bring to the contained and controlled space of humans the excess of the beings with whom they do not socialise, but whose existence is key to the creation of a system of thought that establishes relations of continuity between matter and spirit, between the object and the referent. In this line of reasoning, masks are the quintessential referent-objects. EM
#4 GABINETE DE DESENHO
DRAWING CABINET
“Os desenhos dos sonhos e dos transes indicam como os humanos pensam o seu lugar no mundo e como percebem as suas relações com as alteridades extra-humanas.”
“The drawings of dreams and trances reveal how humans conceive their place in the world and how they perceive their relationships with extra-human alterities.”
O desenho é coisa vital. É necessário e é performativo, engendra e é engendrado pelo fazer. Situa-se num espaço intersticial, entre duas modalidades percetivas, duas formas de decifrar o mundo: ver e ler. É, desde a origem, uma negociação frágil e precária entre a descoberta e a confirmação, a imaginação e a experiência, a visão e as visões. Este gabinete de desenho é inaugurado com um conjunto exemplar de modos de desenhar, isto é, de projetar e construir o mundo. Desenhar, etimologicamente, significa ver mais além, ver antes de ver. Ler é, em substância, equivalente. Construímos as nossas imagens pela decifração de signos no papel, suportados em experiências e vivências, reais ou imaginadas, mentais ou físicas. O desenho é complexo porque abre espaços e tempos por vezes longínquos e desconexos fazendo-os conviver (veja-se os desenhos de Thierry Simões onde se conjugam diferentes tempos do fazer e temporalidades distintas, como se na folha se abrisse a possibilidade de trazer vários modos de representar ou reativar formas de tempos diferentes). O desenho articula, vai em profundidade (veja-se os desenhos azuis de Mattia Denisse, onde se sobrepõem elementos por decalque), desvela e revela aquilo que é subterrâneo, que está fora da esfera do visível ou descreve com pormenor cirúrgico a realidade, desrealizando-a (veja-se os desenhos a grafite de Mattia, onde o pormenor descritivo reconstrói os lugares que ele efetivamente visitou). Desse ponto de vista, o desenho não tem tempo, demanda a origem do tempo, o começo das coisas. Nesta sala de leitura, procuramos acionar relações entre desenhos (ou entidades) distantes no tempo mas próximas no espírito ou no modo. A prática meditativa nos desenhos de Pedro Paixão, em que o tempo é alongado, adensado, tornando-se muito mais amplo do que o tempo da execução, uma espécie de tempo geológico, propiciador do aparecimento de seres, mas também da abertura de um espaço para a visão interior (veja-se a emergência da coruja como símbolo de uma visão para além da visão). Lado a lado, como se sempre ali estivessem, os desenhos visionários e espectrais de Teixeira de Pascoaes. Neles, o poeta faz-nos (re)descobrir um olhar animista, impregnado de visões, memórias e intuições, onde convivem homens e animais, santos e anjos, criaturas voadoras e paisagens onde se projetam os desejos e os fantasmas. NF
Drawing is something vital. It is both necessary and performative, it engenders and is engendered by its practice. It is located in an interstitial space, between two modalities of perception, two forms of deciphering the world: seeing and reading. It has been, from the very origin, a fragile and precarious negotiation between discovery and confirmation, imagination and experience, between sight and visions. This drawing cabinet is inaugurated with an outstanding set of ways of drawing, that is, of projecting and creating the world. The notion of drawing is connected with seeing further beyond, to see before physically seeing. Reading is, in substance, equivalent. We create our images by deciphering signs on paper, based on our experiences and existences, whether real or imagined, mental of physical. Drawing is a complex practice because it opens up spaces and times which are often distant and disconnected, bringing them together (see Thierry Simões’ drawings, where different times of creating and distinct temporalities are brought together, as if the possibility of enabling several ways of representing or reactivating forms of different times were engendered on paper). Drawing articulates, it goes deep (see Mattia Denisse’s blue drawings, where elements are superimposed by tracing), it unveils and reveals that which is subterranean, what lies beyond the realm of the visible, or describes reality in sharp detail, bringing about a derealisation (see the graphite drawings by Mattia, where the descriptive detail reconstructs the places he actually visited). From this point of view, drawing is timeless, it searches for the origin of time, the beginning of things. In this reading room, we aim to engender relationships between drawings (or entities) distant in time but close in spirit or mode. The meditative practice in Pedro Paixão’s drawings, in which time is expanded, densified, becoming much vaster than the time of execution, a kind of geological time, propitiating the emergence of beings, but also the opening of a space for inner vision (see the emergence of the owl as a symbol of a vision beyond sight). Alongside these, as if they had always been there, are the visionary and spectral drawings of Teixeira de Pascoaes. In them the poet makes us (re)discover an animist way of seeing, impregnated with visions, memories and intuitions, where men and animals, saints and angels, flying creatures and landscapes where desires and ghosts are projected come together. NF
#5 PROJEÇÃO
PROJECTION
O cinema mudou a nossa perceção do mundo e acionou mecanismos de associação que têm fundamentalmente que ver com dois dispositivos: o ecrã e a montagem. O Atlas Mnemosyne de Aby Warburg é concebido em torno destes elementos constitutivos de uma, então, proto-linguagem, que o historiador de arte alemão intuiu trazer uma radical transformação ao nosso modo de pensar e de relacionar as coisas. Projetar implica de certa forma propor um tempo outro e fazer deslocar o eixo do consciente para o eixo do inconsciente. João Maria Gusmão e Pedro Paiva recuperaram, à semelhança de outros artistas, procedimentos do cinema hoje caídos em desuso, utilizando meios rudimentares de forma absolutamente original. Filmam em película e usam projetores de cinema, procurando a materialidade que o digital vai aos poucos fazendo desaparecer. As micronarrativas que compõem remetem para um aquém da visão, utilizando não raras vezes mecanismos de alteração da visão enquanto modo particularmente formatado por uma conceção do mundo enquanto narrativa linear e teleológica. No conjunto de filmes escolhidos para esta exposição, realizados entre Angola, Quénia e São Tomé, a dupla de artistas utiliza um mecanismo recorrente do seu trabalho mais recente, filmar com uma câmara de alta velocidade e projetar as imagens em câmara lenta, o que conduz a um duplo-efeito percetivo, porventura contraditório: por um lado, aumenta exponencialmente, alonga o tempo de perceção, por outro lado desrealiza, desconstrói essa mesma capacidade percetiva, trazendo dados inéditos e porventura transformativos para aquele que faz a experiência da observação. NF
Cinema changed our perception of the world and set into motion mechanisms of association which are fundamentally connected with two devices: the screen and editing. Aby Warburg’s Mnemosyne Atlas was conceived around these two constitutive elements of what back then was a proto-language, which the German art historian intuited would bring about a radical transformation in our way of thinking and relating things. To project implies in a certain way to propose another time and to shift the axis of the conscious to the axis of the unconscious. João Maria Gusmão and Pedro Paiva recovered, as other artists have done, cinema procedures which have fallen into disuse, using rudimentary means in an absolutely original way. They shoot with film and resort to film projectors, seeking the materiality which the digital has gradually been doing away with. The micronarratives they compose allude to something which lies on this side of vision, often using vision-altering devices as a medium particularly formatted by a conception of the world as a linear and teleological narrative. In the films chosen for this exhibition, directed between Angola, Kenya and São Tomé, the two artists use a mechanism which has become recurrent in their more recent work, filming with a high-speed camera and projecting the images in slow motion, which leads to a perceptive dual-effect, perhaps contradictory: on the one hand it enlarges exponentially, it extends perceptive time, and on the other it brings about a derealisation, a deconstruction of that same perceptive ability, generating new and possibly transformative data for those who undergo the experience of observation. NF
#6/9
EMERGÊNCIA
Emergence
Emergência, ato de emergir; aparecimento; nascimento; (fig.) acontecimento inesperado; incidente. A arqueologia é uma forma de emergência, de trazer à superfície coisas que não são visíveis, que foram dadas à escuridão ou que o tempo se encarregou de sedimentar. O bloco que nomeámos “Emergência” divide-se em cinco etapas ou núcleos – Objetos Estranhos, Labirinto, Figura, Emergência e Aliança – e reúne objetos de proveniência e natureza diversa, muitos deles feitos para serem enterrados e que após serem exumados, em alguns casos passados períodos muito longos de tempo, são agora dados a ver. Emergência no sentido de trazer algo à superfície, aquilo que vem da noite dos tempos para a luz do dia, uma operação complexa que se aproxima de uma prática meditativa, autorreflexiva. Aqui, a idealização da prática arqueológica vai no sentido de a propor como metáfora particularmente produtiva, por se materializar a cada vez, por operar uma coincidência perfeita entre método e praxis – trata-se de recuar no tempo à medida que se avança em profundidade, estrato por estrato, camada por camada, escuridão adentro: é a perfeita metáfora do conhecimento, da construção do saber, da reconstituição, lacunar, é certo, da memória. Contudo, é importante tentar tornar claro que os objetos “arqueológicos” – chamemos-lhes assim à falta de melhor termo – aqui reunidos, não estão agrupados segundo qualquer sistema de classificação ou ordenação, nem sequer de nomeação, apesar de serem identificados com uma descrição técnica que preenche tão só a função mínima de lhes conferir uma identidade. Sendo mais ou menos evidente, aquilo que os distingue e aproxima, aquilo que os une entre si, é simultaneamente da ordem do sensível, do ininteligível, do indiscernível, da experiência, individual e coletiva, aquilo que nos é dado pela vivência, pelos laços que vamos estabelecendo uns com os outros, pela herança da educação, da troca, da oralidade, da bestialidade, da imitação, do desenho, em suma. Aquilo que não vem nos manuais da história (que não é efeito ou consequência), ou seja, aquilo que se processa imemorialmente, impercetivelmente, no decurso de gerações, no intervalo do desastre, das grandes catástrofes – origem, causa e continuidade. NF
Emergence: act or process of emerging; appearance; process of coming into existence or prominence; process of becoming visible after being concealed. Archaeology is a form of emergence, of bringing to the surface things which are not visible, which were placed in darkness or which were left to be buried by time. The unit which we have named “Emergence” is divided into five stages or sections – Odd Objects, Labyrinth, Figure, Emergence, and Alliance – and gathers objects from a diverse provenance and nature, many of which were made to be buried and which after being unearthed, in some cases after very long periods of time, are now displayed for all to see. Emergence in the sense of bringing something to the surface, that which comes from the darkness of night into the light of day, a complex operation that is akin to a meditative, self-reflective practice. Here, the idealisation of the archaeological practice is that of proposing it as a particularly productive metaphor, because it is materialised each time over, because it operates a perfect coincidence between method and praxis – it comes down to going back in time as one advances in depth, stratum by stratum, layer by layer, into the darkness: it is the perfect metaphor of wisdom, of the construction of knowledge, of the reconstitution, albeit lacunar, of memory. However, it is important to make clear that the “archaeological” objects – let us refer to them as such, for want of a better term – gathered here, are not grouped according to any system of classification or arrangement, or even naming, despite being identified with a technical description which simply fulfils the minimum function of providing them with an identity. Being more or less evident, what distinguishes and approximates them, what brings them together, is simultaneously of the order of the sensitive, the unintelligible, the indiscernible, the experience, both individual and collective, what we achieve through living, through the bonds we establish with each other, through the heritage of education, exchange, orality, bestiality, imitation, in short, through drawing. That which is not present in the manuals of history (which is neither effect nor consequence), which is to say, that which is processed immemorially, imperceptibly, in the course of generations, in the interval of disaster, of the great catastrophes – origin, cause and continuity. NF
#6 OBJETOS ESTRANHOS: ENSAIO DE PROTO-ESCULTURA
ODD OBJECTS: EXERCISE IN PROTO-SCULPTURE
Encontramos nesta sala objetos, mais uma vez de proveniência diversa, que mantêm com a noção de escultura uma relação problemática. Ora ainda não têm forma, ora são compostos por fragmentos esparsos não tendo propriamente um corpo uno, ora são o negativo, o molde de formas reconhecíveis (partes do corpo humano). Particularmente exemplares desta natureza fragmentária são as peças de Otelo Fabião: folhas de revista intervencionadas, objetos zoomórficos híbridos (meio aéreos, meio marinhos, meio terrestres) que resultam da recolha e montagem de materiais encontrados ao longo de caminhadas, tais como raízes de árvore, conchas, argila moldada e ressequida, pedras roladas, a partir da técnica de encaixe constituem uma plêiade de gestos que se entretecem e que se constituem como memória e idiossincrasia, a um tempo. A arte contemporânea interessa-se particularmente por aquilo que ainda não tem forma, ainda não existe como entidade, ainda não é (ou já não é). Também nesse aspeto é parente da arqueologia. A noção de negativo é, assim, operativa e consubstancia um pensamento sobre o surgimento da forma, enquanto corpo e a sua ausência. Alguns dos objetos mais perturbadores alguma vez produzidos são os ex-votos em cera, essa matéria que estabelece ligações entre estados. “A função votiva da cera é atestada bem antes da Idade Média. O termo ex-voto é a forma abreviada de ex-voto susceptu que significa “em razão de um voto formulado”. Serve de contrato “mágico” em que o homem compromete o seu futuro em troca de uma dádiva: do ut des (eu dou para que tu dês). Os ex-votos podem ser feitos seja em vista da realização de um voto, seja em memória de uma graça obtida, neste caso de uma cura. De natureza muito diversas, podem ser bens alimentares (dons ao guardião do sítio), objetos antigos usados (instrumentos, roupas), ou especialmente criados para celebrar um evento: miniaturas, objetos inteiros (canadianas, cadeiras de rodas...) ou objetos fragmentários que remetem para um mal preciso como aqui o seio ou o coração em cera, representações de uma particularidade patológica, expressões de um sofrimento. Estes fragmentos de corpos modelados em cera, matéria maleável de uma extrema plasticidade, são as marcas da doença, os infortúnios sofridos, conversões do infortúnio em milagre, da doença na cura”. NF
In this room we find objects, once again from diverse origins, which maintain a problematic relationship with the notion of sculpture. They are either still devoid of form, or composed of sparse fragments without really having an entire body, or even still being the negative, the mould of recognisable forms (parts of the human body). Particularly illustrative of this fragmentary nature are Otelo Fabião’s pieces: magazine pages with interventions, zoomorphic hybrid objects (part aerial, part marine, part land creatures) that emerge from the gathering and assemblage of materials found on one his walks, such as tree roots, sea shells, moulded and very dry clay, rolled stones, which from the technique of embedding constitute a plethora of gestures that are interwoven and which are formed both as memory and idiosyncrasy. Contemporary art is particularly interested in that which still has no form, does not yet exist as an entity, which is not yet (or is no longer). In this respect also it is akin to archaeology. The notion of negative is thus operative and materialises a thought on the emergence of form, as body, and its absence. Some of the most disturbing objects ever produced are the ex-votos in wax, that material that establishes connections between states. “The votive function of wax was attested to well before the Middle Ages. The term ex-voto is the abbreviation of ex-voto susceptu, which means “from the vow made”. It serves as a “magic” contract in which man compromises his future in exchange for a gift: do ut des (I give so that you will give). Exvotos can be created either in fulfilment of a vow, or in gratitude for a grace received, in this case a cure. With very diverse natures, they can be especially made to celebrate an event: miniatures, entire objects (crutches, wheelchairs...) or fragmentary objects which allude to specific ills such as the breast or the heart in wax displayed here, representations of a pathologic particularity, expressions of suffering. These body fragments moulded in wax, a malleable material with extreme plasticity, are the signs of the illness, the misfortunes suffered, conversions of the misfortune into miracle, of the illness into cure”. NF
(in Les Maîtres du Désordre, Museu do Quai Branly)
(in Les Maîtres du Désordre, Quai Branly Museum)
#7 LABIRINTO
LABYRINTH
Com o problema do labirinto passa-se algo de peculiar, algo que de resto se passa com a maioria dos problemas da investigação sobre mitos, assim que os pusermos com toda a seriedade. Não há nenhuma solução para acabar com eles. São mistérios, no sentido em que um grande intérprete de textos poéticos difíceis contrapõe mistério e problema: “este deve ser resolvido; uma vez que isso aconteça, desaparece. Aquele, pelo contrário, deve ser experimentado, venerado, integrado na própria vida. Um mistério que seja desvendado mediante explicação, nunca foi tal. O mistério autêntico resiste à “explicação”; e não porque se furte à prova, por meio de quaisquer truques de dupla verdade, mas sim porque, pela sua natureza, não pode ser desvendado racionalmente. Mas pertence à mesma realidade a que também pertence o explicável, e relaciona-se com a explicação de uma forma absolutamente honesta. Ele reclama a explicação, e a tarefa desta consiste, precisamente, em mostrar onde há algo de autenticamente inexplicável.”
With the problem of the labyrinth something peculiar takes place, something which also occurs with the rest of the problems connected with the research into myths as soon as we pose them in all seriousness. There is no solution to overcome them. They are mysteries, in the sense in which a great interpreter of poetic texts opposed mystery and problem: “the latter should be resolved; once this has occurred, it disappears. The former, on the contrary, should be experienced, venerated, included in life itself. A mystery that is unravelled by way of an explanation, was never one to begin with. The real mystery resists “explanation”; and not because it cannot be proved, by way of any tricks of double truth, but rather because, due to its nature, it cannot be rationally unravelled. Yet it belongs to the same reality to which the inexplicable also belongs, and it relates with the explanation in an absolutely honest form. It cries out for an explanation, whose task consists precisely of revealing where there is something authentically inexplicable.”
Károly Kerényi, Estudos do Labirinto, Lisboa, Assírio e Alvim, 2008, p. 59.
Károly Kerényi, Estudos do Labirinto, Lisbon, Assírio e Alvim, 2008, p. 59.
COLEÇÃO DE ARTE PRÉ-COLOMBIANA
PRE-COLUMBIAN ART COLLECTION
A Coleção de Arte Pré-Colombiana reúne cerca de 300 peças, através das quais podemos percorrer mais de dois mil anos e dezenas de milhares de quilómetros quadrados de história e cultura, e descobrir o primitivo e o sofisticado das culturas americanas pré-hispânicas. Em grande medida, a arte americana pré-hispânica foi uma arte para a morte mais do que para a vida. A maior parte dos objetos foram encontrados em túmulos, onde fizeram parte dos espólios funerários de indivíduos poderosos. Muitos deles nunca foram usados e podemos supor, de facto, que foram fabricados ex profeso para acompanhar a pessoa à qual foram associados no momento da sua morte. Podemos portanto pensar que a sua beleza não foi criada para ser admirada pelos olhos de outros – pelo menos não de uma maioria –, mas antes que o belo, o valioso de cada uma destas obras, para quem as fabricou ou usou, foi a sua própria criação. O processo de elaboração, desde a conceção intelectual de cada peça até à realização do último detalhe, deve ter sido em si mesmo um ritual: um ritual muitas vezes social, já que sabemos que podiam estar envolvidos na manufatura de um só objeto mais do que apenas um artesão, e um processo para o qual fluíam ideias ancestrais sobre o simbolismo das matérias usadas, e em que se imprimia um caráter especial a um exemplar concreto através de um traço não evidente à primeira vista ou legível para qualquer espetador. MJJD
The Pre-Columbian Art Collection comprises some 300 pieces, through which we can cover more than two thousand years and thousands of square kilometers of history and culture, and discover both the primitive and sophisticated nature of the pre-Hispanic American cultures. To a great extent, pre-Hispanic American art was an art for death more than for life. The majority of objects were found in tombs, where they belonged to the funerary furnishings of powerful individuals. Many of these were never used, and we can in fact infer they were expressly made to accompany the person to whom they were associated at the time of his death. We can, therefore, think that their beauty was not created to be admired by the eyes of others – at least not those of a majority –, but rather that, for those who made them, the beauty, the value of each of these pieces lay in their creation. The manufacturing process, from the intellectual conception of each piece to the accomplishment of the last detail, must have been a ritual in itself. It was a ritual that was often social, since we know that in the manufacture of a single object more than one craftsman could be involved, and a process into which flowed ancestral ideas concerning the symbolic value of the materials employed, and in which a special character was imprinted onto a particular piece through a stroke which was not immediately perceptible or legible to just any viewer. MJJD
COLEÇÃO DE ARTE CHINESA
COLLECTION OF CHINESE ART
A Coleção de Arte Chinesa representa um dos períodos mais significativos da história cultural e artística da China, desde a formação da civilização chinesa durante o Neolítico (c. 10.000 – c. 2000 a.C.) até à unificação do império durante as dinastias Qin (221 – 206 a.C.) e Han (206 a.C. – 220). Na sua essência, a coleção de jades, bronzes e terracotas constitui uma aproximação a um imaginário que reflete as estruturas matriciais do pensamento ético e estético da civilização chinesa. A natureza ritual, cerimonial, sacrificial e transcendental dos objetos é o elemento catalisador para a escolha dos materiais, para o aperfeiçoamento técnico na execução das formas e para a sofisticação artística que reflete a importância dos objetos no contexto do sagrado e da autoridade política. Um dos aspetos fundamentais inerentes ao caráter funerário e ritual dos objetos é o contexto da sua utilização. A consumação do ato ritual, através da cerimónia ou do sacrifício de animais e de humanos para comunicar e prestar culto aos espíritos ancestrais, atribui propriedades sobrenaturais aos objetos. A natureza prática e utilitária dos objetos transmuta-se para além da sua matéria e da sua dimensão mundana. Apesar de, pela sua morfologia, se tratar de instrumentos e de utensílios fundamentais às práticas rituais, o princípio espetacular, participativo e coletivo das celebrações demonstram que, na realidade, os objetos foram também concebidos para serem expostos e contemplados, um dos aspetos fundamentais inerentes à obra de arte. ROL
The Collection of Chinese Art represents one of the most significant periods of the cultural and artistic history of China, from the development of Chinese civilization during the Neolithic (ca. 10,000 – ca. 2000 BC) to the unification of the empire during the Qin (221 – 206 BC) and Han (206 BC – AD 220) dynasties. In its essence, the collection of jades, bronzes and terracottas constitutes an approximation to a visual universe that reflects the matrix structures of the ethical and aesthetic thought of Chinese civilisation. The ritual, ceremonial, sacrificial and transcendental nature of the objects was the catalysing element for the choice of materials, the technical refinement in the execution of the forms and the artistic sophistication that reflects the objects’ importance in the context of the sacred and of political authority. One of the fundamental features inherent to the funerary and ritual character of the objects is the context of their use. The consummation of the ritual act, by way of the ceremony or the sacrificing of animals and humans to communicate with and worship the ancestral spirits, imbues them with supernatural properties. The objects’ practical and utilitarian nature is transmuted beyond their materials and their worldly dimension. Despite being, according to their morphology, instruments and utensils fundamental to the ritual practices, the performative, participative and collective principle of the celebrations demonstrates that they were also conceived to be exhibited and contemplated, one of the key features inherent to a work of art. ROL
#8 FIGURA
FIGURE
A figura humana é a quinta-essência da escultura porque, essencialmente, coloca o indivíduo no espaço da representação e a representação no espaço da transfiguração. Este núcleo é particularmente exaltante pois põe lado a lado representações da figura humana (e algumas variações a ela) de diferentes culturas e épocas a partir de um denominador comum, imutável na forma e na idealização. Desta maneira, operamos por pequenas diferenças, menos por comparação do que por ajustamento, numa tentativa já não de reconhecimento – esse é um dado adquirido –, mas de deteção do diferencial que possa existir nas diversas formas de propor a figura como duplo do homem, ou de uma conceção de homem. NF
The human figure is the quintessence of sculpture as it essentially places the individual in the space of representation and the representation in the space of transfiguration. This section is particularly exhilarating because it places side by side representations of the human figure (and some variations of it) from different cultures and times, based on a common denominator, unchanging in both form and idealisation. We thus operate through small differences, less by comparison than by adjustment, in an attempt no longer of recognition – that is a given –, but of detection of the differential that may exist in the various forms of proposing the figure as man’s double, or as a conception of man. NF
#9 EMERGÊNCIA / ALIANÇA
EMERGENCE / ALLIANCE
Os núcleos Emergência e Aliança convivem na sala 9, fazendo deste espaço um dos mais profusos e complexos de toda a exposição. A ideia de emergência já foi abordada e convoca um conhecimento em profundidade, por estratos, e uma enigmática noção de fazer para a escuridão, talvez para uma visão interior, para lá do mundo das aparências. Ademais, evocou-se igualmente alguns mitos fundadores ou cosmogonias que se baseiam na crença de um eterno retorno às profundezas do mundo inferior ou subterrâneo. Da terra vimos, à terra volvemos. Não é por isso estranho que os objetos reunidos neste núcleo, provenientes das coleções de arte tribal africana e arte pré-colombiana de José de Guimarães, sejam objetos de terracota. O núcleo Aliança, que numa fase precoce de preparação da exposição chegou a ser chamado “Cosmos”, funda-se num conceito de tempo cíclico ou circular, por oposição ao tempo linear, baseado na escrita, que formata as sociedades ocidentais. Reúne um amplo conjunto de objetos e imagens, desde desenhos em que a forma circular evoca um tempo regenerador e em permanente revisitação (vide Rui Moreira e Pedro Paixão), a estelas pré-históricas representando espirais, suásticas ou o sol, passando por fusaiolas usadas em teares primitivos ou no tempo circular do loop nos filmes de Hugo Canoilas (Floor Drawing ou desenho de chão) e de João Maria Gusmão e Pedro Paiva (A Pedra Inviolável). Aqui evoca-se o fazer próprio do exercício artístico como algo de iminentemente repetitivo, realizado em torno de um mesmo eixo, projeto ou visão do mundo. NF
The sections Emergence and Alliance have been placed together in room 9, making this space one of the most profuse and complex of the entire exhibition. The idea of emergence has already been broached and convokes an in-depth knowledge, by way of strata, and an enigmatic notion of creating for darkness, perhaps for an inner vision, beyond the world of appearances. Furthermore, some founding myths or cosmogonies based on the belief of an eternal return to the depths of the underworld have also been evoked. From the earth we come, to the earth we shall return. It is therefore not surprising that the objects gathered in this section, from José de Guimarães’ collections of African tribal art and pre-Columbian art, are objects in terracotta. The Alliance section, which in an early preparatory stage of the exhibition was even named “Cosmos”, is founded on a concept of cyclical or circular time, by opposition to linear time, based on writing, which shapes Western societies. It brings together a wide range of objects and images, from drawings in which the circular form evokes a regenerative time, in permanent revisitation (see Rui Moreira and Pedro Paixão), to prehistoric stelae representing spirals, swastikas or the sun, by way of whorls used in primitive looms or in the circular time in the loop of the films by Hugo Canoilas (Floor Drawing) and João Maria Gusmão and Pedro Paiva (The Unbreakable Stone). What is evoked here is the very act of the artistic practice as something imminently repetitive, performed around the same one axis, project or world vision. NF
#10/11
NÚCLEO MOLE
Soft Nucleus
O mole por oposição ao duro. Aquilo que, aparentemente, não tem forma (ou tem mais do que uma forma), aquilo que não pode ser classificado, circundado ou catalogado. Morbido, em italiano, de mole. Trata-se de um núcleo poroso por definição, no qual convivem os trabalhos de artistas contemporâneos – f.marquespenteado, Pedro Valdez Cardoso e José de Guimarães – com bordados de origem religiosa e popular de diferentes épocas. Aqui, somos norteados pela procura de relações, longínquas por vezes, por entre modos de fazer, gestos, padrões, desenhos, texturas, pontos. Existe uma sabedoria milenar, que passa de mão em mão, sem oralidade, moldada pela repetição. Neste núcleo a cor é a subversão ou a expansão da forma, e o desenho, o corte, é feito à escala do corpo, a medida-padrão. Curioso é que nos trabalhos contemporâneos há uma dimensão política que se manifesta de diferentes formas mas cujo denominador comum é a instabilização de categorias rígidas como Estado ou Religião. f.marquespenteado trabalha sobre o tema da relíquia para problematizar a noção de corpo sagrado; Pedro Valdez Cardoso deambula entre as dimensões pública e privada do bordado, entre noções de género e de padrão, para subtilmente expor os interstícios dos discursos oficiais que, mais do que procurar especificidades, classificam; José de Guimarães rompe a integridade do conceito de Pátria através de uma lógica de colagem e de impressão que reúne motivos e elementos cujo encontro no espaço da tela aciona as mais improváveis relações. A prática do bordado configura-se como um voo sobre o tempo e o espaço. É concentração e meditação, herança e transmissão, alienação e libertação. Em grande parte devido a essa qualidade de ser mole (não é por acaso que os tapetes voam), que lhe conferiu uma natureza nómada, portátil, mas também de estar tradicionalmente associado à condição feminina. A prática do bordado (mas também da contemplação ou da manipulação, do uso), propicia a abertura de um imaginário extenso e poroso, aberto ao cruzamento de linguagens e de motivos, à propagação de padrões. Trata-se de um meio particularmente relevante no contexto da exposição e do campo de pensamento que com ela se abre, pois potencia a criação de cadeias de transporte de imagem, de linhas de transmissão de determinadas caraterísticas ou arquétipos visuais muito próximos de um tempo geológico, sedimentado pela aprendizagem e incorporação de gestos, de um fazer imemorial. Para f.marquespenteado, primeiro artista em residência no projeto do CIAJG e cocurador do Núcleo Mole, o bordado, seu meio privilegiado, configura um uso extravagante do tempo e da concentração, remetendo para o religioso, no sentido anímico do termo e não tanto na observância dos signos repetidos. Numa era enfaticamente marcada pela cultura do entretenimento e da imagem enquanto cosmética, a pergunta que se coloca é “como voltar a ter fé nas artes”? NF
Soft, as opposed to what is hard. That which apparently has no form (or has more than one form). Morbido, in Italian, from soft. This is a section that is porous by definition, which brings together the works of contemporary artists – f.marquespenteado, Pedro Valdez Cardoso and José de Guimarães – with embroideries of a religious and popular nature from different times. Here, we are directed by the search for connections, sometimes remote, between ways of doing things, gestures, patterns, designs, textures, stitches. There is an age-old knowledge which is handed down, with no orality, moulded by repetition. In this section, colour is the subversion or expansion of the form, and the design, the cut, is made in the scale of the body, the standard measure. It is interesting to note there is a political dimension in the contemporary works which is expressed in different ways, but whose common denominator is the destabilisation of rigid categories such as those of State or Religion. f.marquespenteado works on the theme of relics to problematise the notion of sacred body; Pedro Valdez Cardoso wanders between the public and private dimensions of embroidery, between notions of gender and pattern, in order to subtly expose the interstices of the official discourses which, more than searching for specificities, classify; José de Guimarães breaks with the integrity of the concept of Homeland through a logic of collage and printing which brings together motifs and elements whose encounter in the space of the canvas triggers the most improbable relationships. The practice of embroidery is a flight over time and space. It is concentration and meditation, heritage and transmission, alienation and release – largely due to that quality of being soft (it is not by chance that carpets fly) which conferred upon it a nomadic, portable nature, but also to being traditionally associated with the feminine condition. The practice of embroidery (but also that of contemplation or manipulation, of use), favours the opening of a vast and porous imagination, open to the combination of languages and motives, to the dissemination of patterns. It is a particularly relevant medium in the context of the exhibition and the field of thought it opens up, because it potentiates the creation of image-transporting chains, of transmission lines of certain visual characteristics or archetypes closely resembling a geological time, sedimented through learning and the incorporation of gestures, of a timeless practice. For f.marquespenteado, first artist in residence at the José de Guimarães International Arts Centre and co-curator of the Soft Nucleus, embroidery, his medium of choice, configures an extravagant use of time and concentration in connection with the religious, in the sense of the term connected with the soul, rather than to the observance of the repeated signs. In an era emphatically marked by the culture of entertainment and image as cosmetics, the question is therefore: “how to regain faith in the arts”? NF
#11 RELICÁRIOS
RELIQUARIES
Originalmente, um relicário é um recipiente onde se guardam relíquias de santos, normalmente partes do corpo, qualquer objeto que lhe pertenceu ou fez parte do seu suplício. Em latim significa “coisa deixada”. Nesta sala convivem coisas de diferente ordem mas próximas em espírito por serem celebrações, mais ou menos exacerbadas por um sentimento de devoção e pela sinalização de um lugar, um acontecimento, um milagre. Relicários contemporâneos da autoria de José de Guimarães, exvotos em pintura de autoria anónima provenientes das coleções do Museu da Irmandade de São Torcato e da Sociedade Martins Sarmento e um pequeno conjunto de pinturas da autoria de Mestre Caçoila, alfaiate que era também um pintor naïf, atento cronista da vida quotidiana da cidade de Guimarães com especial predileção por temas do imaginário popular. Em todas as pinturas ou “assemblages” aqui reunidas a ênfase é colocada mais na finalidade e menos na pintura enquanto exercício desapegado da vida: trata-se de objetos que servem para registar, para assinalar uma relação da ordem da magia com a realidade. NF
Originally a reliquary is a container where relics of saints are kept, usually body parts or any object that belonged to them or were part of their suffering. In Latin, it means “something which remained”. This room brings together things of a different nature but which are close in spirit for being celebrations, more or less exacerbated by a feeling of devotion, and for marking a place, an event, a miracle. Contemporary reliquaries by José de Guimarães, ex-votos in painting by anonymous authors from the collections of the Museu da Irmandade de São Torcato and the Sociedade Martins Sarmento, and a few paintings by Mestre Caçoila, a tailor by trade who was also a naïve painter, an attentive chronicler of the everyday life of the city of Guimarães with a special penchant for themes of popular imagery. In all the paintings or “assemblages” gathered here emphasis falls more upon their finality than upon painting as an exercise detached from life: these are objects that serve to record, to signal a relationship between that which is magic and reality. NF
#12/13
A FESTA
The Feast
A ideia de festa, de celebração, foi particularmente importante para a formação humana de José de Guimarães. Na memória de juventude permaneceram, indeléveis, as emoções, o sentimento de pertença e até de estranheza que os vários rituais enraizados na cidade berço lhe provocavam de forma renovada e ritmada. Muitas das obras do artista estão, assim, marcadas pela iconografia ou pelo sentimento de exaltação profano-religioso que carateriza as festas dedicadas a S. Gualter, S. Nicolau ou a S. Torcato, por exemplo. Um sentimento de continuidade, por um lado, e de júbilo, por outro, define a dimensão sacralizante do trabalho de José de Guimarães que de forma mais ou menos evidente associamos a esta dimensão biográfica. Neste bloco reúnem-se obras de pintura com néon da autoria de José de Guimarães (sala 12), entre as quais se poderia destacar os dois retratos de Marilyn Monroe, marcados pela iconografia da marcha gualteriana, e o Cortejo (sala 13), que reúne um amplo e diversificado conjunto de peças das mais variadas proveniências, com as quais se celebra a mundivivência própria do imaginário do artista e colecionador. Aqui, desenha-se ainda o retorno à infância que mais não é que um regresso à origem, individual e escatologicamente considerada. NF
The notion of feast, celebration, was particularly important for José de Guimarães’ formation as a person. In the memory of his youth, the emotions, the feeling of belonging and even of strangeness which the various rituals rooted in the city brought about in a renewed and rhythmic way, remained indelible. Many of the artist’s works are thus marked by the iconography or the feeling of profane-religious exaltation that characterises the feasts of St. Gualter, St. Nicholas or St. Torcato, for instance. A feeling of continuity, on the one hand, and of jubilation, on the other, defines the sacralising dimension of José de Guimarães’ artwork, which to a somewhat clear extent we associate with this biographical dimension. This unit brings together paintings with neon lamps by José de Guimarães (room 12), among which the two portraits of Marilyn Monroe – marked by the iconography of the marches devoted to St. Gualter – can be highlighted, and the Pageant (room 13), which gathers a vast and diversified set of objects from the most varied places, with which the world-view proper to the imagery and language of the artist and collector is celebrated. Here, a return to childhood – which is nothing more than a return to the origin, individually and eschatologically considered – is also traced. NF
Exposição / Exhibition
Desenho de Luz / Lighting Design Jorge Costa
Curadoria / Curator Nuno Faria
Infografia / Infographics Susana Sousa
Consultores / Consultants Eglantina Monteiro (Coleção de Arte Tribal Africana / African Tribal Art Collection) María Jesús Jiménez Díaz (Coleção de Arte Pré-Colombiana / Pre-Columbian Art Collection) Rui Oliveira Lopes (Coleção de Arte Chinesa Antiga / Chinese Ancient Art Collection) f.marquespenteado (Núcleo Mole / Soft Nucleus)
Textos / Texts Nuno Faria Eglantina Monteiro María Jesús Jiménez Díaz Rui Oliveira Lopes Tradução / Translation Cláudia Gonçalves (textos María Jesús Jiménez Díaz: Espanhol para Português / María Jesús Jiménez Díaz texts: Spanish into Portuguese) Miguel Moore (todos os conteúdos para Inglês / all contents into English)
Organização Curatorial / Curatorial Organisation Nuno Faria Sandra Guimarães
Revisão/ Proofreading Miguel Moore
Produção / Production A Oficina CIPRL
Montagem / Installation Técnicos de Museografia / Technicians of museography Artur Campos Ricardo Dias Nelson Faria Carlos Lopes Jaime Guimarães Miguel Barbosa Luis Vieira Martim Dias Emílio Barbosa Carlos Rego
Produção Executiva / Executive Production João Covita Pedro Silva Atelier José de Guimarães / José de Guimarães Studio Maria Castel-Branco Luís Castel-Branco Marques Miguel Marques Projeto Expositivo / Exhibition Design Luís Tavares Pereira, [A] ainda arquitectura, lda. colaboração/ team: Diogo Paradinha, Hugo Cruz e Tiago Costa
Registo e Conservação / Registrar and Conservation 20|21 Conservação e Restauro de Arte Contemporânea Transportes / Transportation FeirExpo Seguros / Insurance Hiscox
Este projeto, inserido na programação de Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura, é uma iniciativa da Câmara Municipal de Guimarães em colaboração com a Fundação Cidade de Guimarães. A exposição inaugural “Para Além da História” é produzida pel’ A Oficina e conta com o apoio financeiro do QREN, no âmbito de Guimarães 2012. This project, included in the programme of Guimarães 2012 European Capital of Culture, is an initiative of the Guimarães Municipal Council in partnership with the Fundação Cidade de Guimarães. The inaugural exhibition, “Beyond History”, is produced by A Oficina and has financial support from Portugal’s National Strategic Reference Framework (QREN), in the scope of Guimarães 2012.
Eletricidade e iluminação / Electricity and lighting Contraluz
Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG) Plataforma das Artes e da Criatividade MORADA/ADRESS Av. Conde Margaride, nº 175 4810-535 Guimarães PORTUGAL
HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO SEGUNDA A DOMINGO 10H00 ÀS 19H00 (ÚLTIMA ENTRADA ÀS 18H30)
OPENING HOURS MONDAY TO SUNDAY 10.00 AM TO 7.00 PM (LAST VISIT 6.30 PM)
TELEFONE/PHONE + 351 300 400 444
TARIFÁRIO 4 EUR
TARIFFS 4 EUR
Portadores do CARTÃO GUIMARÃES 2012 usufruem de um DESCONTO de 50%
GUIMARÃES 2012 card holders benefits from a 50% discount
3 EUR
3 EUR
Menores de 25 anos, estudantes, maiores de 65 anos, reformados, pessoa com deficiência e acompanhante, cartão quadrilátero cultural
under 25 years, Students, over 65 years, retired person , Handicapped patrons and the person accompanying them
ENTRADA GRATUITA
FREE ENTRANCE
Crianças até 12 anos
Children until 12 years old
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A ORIGEM The Origin #1 ALFABETO AFRICANO African Alphabet _José de Guimarães
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FEITIÇOS SPELLS TRANSFORMISMO Transformism _ Arte Tribal Africana _José de Guimarães _Manuel Santos Maia _f.marquespenteado _Daniel Barroca _Instalação do Museu de Luanda _Installation at the Museu de Luanda
#3 AS MAGIAS Magic _ Arte Tribal Africana _Máscaras Portuguesas _Portuguese Masks _Alain Resnais / _Chris Marke _Filipa César _Jean Rouch _António Reis
#4
GABINETE DE DESENHO Drawing Cabinet _Desenhos Africanos _African Drawings _Mattia Denisse _Thierry Simões _Teixeira de Pascoaes _Pedro Paixão
#5 PROJEÇÃO Projection _João Maria Gusmão / Pedro Paiva
EMERGÊNCIA Emergence #6
OBJETOS ESTRANHOS: ENSAIO DE PROTO-ESCULTURA Weird objects: essay on proto-sculpture _Otelo Fabião
#9
ALIANÇA E EMERGÊNCIA Alliance and Emergence _Rui Moreira _Pedro Paixão _Hugo Canoilas _Michel Giacometti _João Maria Gusmão / Pedro Paiva _f. marquespenteado
#7
LABIRINTO Labirynth _ Arte Pré-Colombiana _Arte Chinesa Antiga
#8
FIGURA Figure _Hugo Canoilas _Teixeira de Pascoaes
NÚCLEO MOLE Soft Nucleus #10 _Pedro Valdez Cardoso _f. marquespenteado _José de Guimarães
#11 _Relicários _José de Guimarães _Mestre Caçoila
A FESTA The Feast #12 _José de Guimarães
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CORTEJO Procession _f. marquespenteado _Pedro Valdez Cardoso _José de Guimarães
t. 300 40 2012 e. info@guimaraes2012.pt w. guimaraes2012.pt f. facebook.com/guimaraes2012
DESIGN SUSANA SOUSA
INFOS GUIMARテウS 2012