Serviço educativo lura 23 2013

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JORNAL DO SERVIÇO EDUCATIVO JANEIRO A MARÇO 2013 | NUMERO 23 Coordenação Elisabete Paiva Edição Elisabete Paiva e Sandra Barros Produção Gráfica Susana Sousa Comunicação Bruno Barreto Marta Ferreira

Design Atelier Martino&Jaña Textos de Amélia Polónia Elisabete Paiva Hugo Maia Sandra Barros Sofia Silva Ilustração Gémeo Luís

Laboratório LURA Gémeo Luís e Eugénio Roda Distribuição Andreia Abreu Andreia Novais Carlos Rego Hugo Dias Paulo Covas Pedro Silva Sofia Leite Susana Pinheiro

PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL servicoeducativo@ aoficina.pt ISSN 1646-5652 Tiragem 3000 exemplares

A CULTURA É UMA DAS FORMAS DE LIBERTAÇÃO DO HOMEM. POR ISSO, PERANTE A POLÍTICA, A CULTURA DEVE SEMPRE TER A POSSIBILIDADE DE FUNCIONAR COMO ANTIPODER. E SE É EVIDENTE QUE O ESTADO DEVE À CULTURA O APOIO QUE DEVE À IDENTIDADE DE UM POVO, ESSE APOIO DEVE SER EQUACIONADO DE FORMA A DEFENDER A AUTONOMIA E A LIBERDADE DA CULTURA PARA QUE NUNCA A ACÇÃO DO ESTADO SE TRANSFORME EM DIRIGISMO. SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, IN ASSEMBLEIA CONSTITUINTE

JORNAL DE ARTES E EDUCAÇÃO

EDITORIAL

PISTAS

E agora? Estamos aqui e seguimos caminho na companhia de quem nos inspira: criadores, professores, crianças, homens e mulheres, quem nos escreve e quem nos ouve, quem nos lê e quem diz de sua justiça. Janeiro inaugura um trabalho para pais e para mães. O Teatro do Vestido propõe uma oficina para eles, que querem dizer o futuro com todas as letras aos seus filhos. Pais e mães vão tropeçar num espetáculo que lhes fala das infâncias e dos silêncios, do contar e do fazer de conta, e vão-se lançar à aventura de semear no palco o que gostariam de declarar (ou de calar). Fevereiro chega com a cara das várias personagens que fomos,

portugalmente falando. Aldara Bizarro convoca pela dança as viagens que por mar e por terra nos fizeram isto e aquilo, mestiços e ricos… e muito saborosos. Por isso Março traz água na boca e língua no coração; come-se a língua. A Primavera vai ser quente e abraçada pelo Teatro do Frio que de frio só tem o nome e cozinhará durante o inverno um espetáculo com os ingredientes que Regina Guimarães foi colher nas suas “imaginações” feitas de letras.

Só Fevereiro vai ficar entre nós por muito tempo, porque uma semente germinou nos corpos de seis jovens, que se juntaram a Marina Nabais para nos revelar como a medida certa de esforço pode gerar tudo o que precisamos. Obrigada a todos por continuarem connosco a imaginar e a semear mundos. Elisabete Paiva

A MONTANTE

Os usos sociais da memória e o poder do esquecimento Amélia Polónia pág. 08

Tropeçar ou Era assim que começava Elisabete Paiva pág. 02

PISTAS

Comer esta nossa Língua Sandra Barros pág. 05


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21 a 25 Janeiro | 20h30 às 23h00 26 Janeiro | 15h00 às 18h00 Paredes de Vidro em Reconstrução ou Zona dos Pais Um workshop/oficina/ laboratório que parte dos métodos de trabalho do Teatro do Vestido aplicados à nova criação “Paredes de Vidro” e que se destina aos pais que queiram usar a sua experiência de pais, de estarem tantas vezes atrás do que parece uma parede de vidro em relação aos filhos, para connosco construírem e refletirem performativamente sobre esta temática. A oficina terá uma apresentação pública informal no dia 26 de janeiro, pelas 17h00, na Sala de Ensaios do CCVF, seguida de uma conversa. Coordenação Teatro do Vestido: Ainhoa Vidal, Gonçalo Alegria, Inês Rosado, Isabel Gaivão, Joana Craveiro, Miguel Seabra Lopes, Joana Vilela. Participação gratuita.

PISTAS CAMINHOS PARA FAZER JUNTOS

Tropeçar ou Era assim que começava ou ainda Pelo menos é assim que me lembro… Elisabete Paiva *

Tropeçar pretende ser mais sobre aquilo que as crianças nos dizem e menos sobre o que nós lhes dizemos a elas.

«Era assim que começava: no princípio não sabíamos como começar, então fomos atrás de saber o que estava na cabeça das crianças. Ficámos a um canto da sala de aula, calados, a ver. E no dia a seguir voltámos. Era assim que começava: fizemos uma lista de várias coisas – das que nos irritavam, das construções que costumávamos fazer, das traições dos adultos, das coisas que não compreendíamos, das que perdemos ou que nos tiraram, das pequenas crueldades. Era assim que começava: ensinámos uns aos outros uma brincadeira ou um jogo que costumávamos fazer. Era assim que começava: havia uma lista de formas de tropeçar e escolhemos algumas - tropeçar na memória, tropeçar na mentira, tropeçar nos sonhos, tropeçar na magia, tropeçar nas palavras, tropeçar na morte. E foi assim, destas formas todas, que começou. Tropeçar é um espetáculo para infância e adultos criado pelo Teatro do Vestido a partir das premissas que orientam o trabalho da companhia: desenvolvimento de uma dramaturgia original, histórias autobiográficas, questionamento do mundo e do seu funcionamento, reflexão sobre o que nos inquieta aqui e agora.

Em Tropeçar quatro vozes, quatro testemunhos, às vezes a solo às vezes em conjunto, desfiam memórias, jogos, narrativas, viagens e perguntas, numa jornada que os leva da rua onde cresceram até à ceia de Natal, das brincadeiras no ferro velho até à consciência da perda e da ausência, e das perguntas todas que os adultos até hoje não lhes souberam responder. Tropeçar pretende ser mais sobre aquilo que as crianças nos dizem e menos sobre o que nós lhes dizemos a elas. — O que é que sentiste quando viste o monstro? — Senti que devíamos fazer pouco barulho. — O monstro?! — A morte. — Ah.

* Coordenadora do Serviço Educativo


PISTAS CAMINHOS PARA FAZER JUNTOS

Este espetáculo (…) admite uma partilha em pé de igualdade entre criança e adulto, levandose ambas as partes a sério nas suas inteligências e experiências. »Este espetáculo, criado pelo Teatro do Vestido a convite da Fábrica das Artes/ CCB em 2011, convoca uma equipa rica e diversificada para construir uma forma singular de teatro para a infância, aquela que nos interessa: que admite uma partilha em pé de igualdade entre criança e adulto, levando-se ambas as partes a sério nas suas inteligências e experiências.

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Tropeçar, que bem podia chamar-se “Era assim que começava” ou ainda “Pelo menos é assim que me lembro...”, é um jogo de faz de conta que se vai desfiando aos nossos olhos ou de como efabular é crescer para o mundo. E é também a imensa viagem dos adultos do Teatro do Vestido às suas memórias de infância e à vivência da infância dos outros (essas crianças a quem procuraram conhecer melhor aquando da pesquisa para o espetáculo). Mas porque de vozes falamos e porque também a adultez tem os seus lugares de emudecimento e solidão, convidamos a Joana Craveiro e a sua equipa a levar mais longe a pesquisa, agora no espaço do dito ou calado dos adultos para as crianças. Esta pesquisa inicia logo após a apresentação de Tropeçar em Guimarães, numa residência artística que articula a presença da equipa criativa da nova produção com uma oficina teatral para adultos, pais e mães. Aqui fica, por escrito, o convite para participar nesta oficina de pesquisa, Paredes de Vidro em Reconstrução ou Zona dos Pais, aos nossos leitores que estejam hoje nessa condição tão particular e inquietante de ser pai ou mãe de alguém. A oficina não tem limite de idade nem requer experiência artística prévia.

(texto do Teatro do Vestido, retirado do dossier do espetáculo)

O Teatro do Vestido é um coletivo de criação fundado em 2001, que realizou até ao momento cerca de 20 criações, bem como diversas outras iniciativas de partilha dos seus métodos de trabalho, leituras encenadas, e desenvolve um programa pedagógico regular desde 2006. O trabalho da companhia pauta-se pela pesquisa e experimentação, bem como pelo desenvolvimento de uma dramaturgia original, com base em diversos pontos de partida. A companhia trabalha em colaboração, com direção artística de Joana Craveiro, que assina a quase totalidade das encenações da companhia. No ano de 2012, o Teatro do Vestido recebeu uma menção honrosa da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro pelos seus 10 anos de existência.


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PISTAS CAMINHOS PARA FAZER JUNTOS

Sobre a Cara Elisabete Paiva*

“Estar geograficamente num lugar do globo terrestre é uma situação factual, mas o efeito que isso provoca em nós é muito subjetivo. A nossa identidade é uma amálgama de coisas que fomos e que somos e que estão em permanente mudança. Esta convicção é tão forte que por vezes

Assim começa Aldara Bizarro a anunciar a questão que a deteve na sua mais recente criação, “A Cara”, que apresentaremos em Guimarães a 1 e 2 de fevereiro. Neste espetáculo-aula, concebido para crianças e jovens, mas da maior relevância para todos os públicos, uma bailarina de skate começa por confessar ao público “não saber nada” de história. Mas logo depois, aos nossos olhos, um pequeno país se vai formando e de seguida viajando por um mapa mundi cuidadosamente desenhado e corrigido pela jovem ao longo de mais de 1200 anos. Nesta longa viagem de ir sendo que se estende até aos dias de hoje assistimos, de modo crítico, por entre as inúmeras dúvidas e comentários partilhados entre a intérprete e o público, à constituição da(s) identidade(s) portuguesa(s), em diálogo com a realidade política, cultural e económica mundiais.

o verbo ser se torna demasiado estático e quase que se preferia que este se chamasse verbo ir sendo. Assim, dava a impressão certa daquilo que somos, ou melhor, daquilo em que permanentemente nos transformamos mesmo que, por vezes, em medidas tão pequenas que não se vê à vista desarmada.”

Através de um dispositivo simples e eficaz – uma bailarina conversando e desenhando um mapa, provocadoramente centrado num Portugal fora de escala e cheio de si, temos ao nosso dispor um conjunto vasto e relevante de informações para discutir com os nossos jovens, cara a cara: Quem somos, hoje e aqui, neste “país pequeno que faz por caber numa Europa cansada”? De que forma nos foi contada a nossa história? Como gostaríamos de continuar a escrevê-la? Como podemos ser úteis aos Portugueses? * Coordenadora do Serviço Educativo.

Nos dias 4 e 5 de fevereiro, Aldara Bizarro orientará uma oficina de dança para adultos, “Este (nosso) corpo”, centrada precisamente nas questões da identidade e fazendo pontes para o trabalho em sala de aula. Esta oficina integra o programa Corpo Comum, cruzamento de práticas artísticas e pedagógicas, de que fazem parte ainda uma oficina da artes visuais com João Sousa Cardoso (“Formas Comuns”, 2 de fevereiro) e uma oficina de escrita com Regina Guimarães (“O lápis da língua”, 23 de fevereiro).


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PISTAS CAMINHOS PARA FAZER JUNTOS

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PISTAS CAMINHOS PARA FAZER JUNTOS

Comer esta nossa Língua Sandra Barros*

Vivemos tempos de atalhos a palavras, em que um «que» pode ser k e os «t» iniciam o verbo estar. Comandadas por velozes polegares, as próximas gerações não correrão o risco de perder o fio à meada da língua? Não é possível que esqueçam, ou nunca cheguem a conhecer, as variantes que ela abarca? A língua portuguesa é traiçoeira, dizemos nós, volta e meia. Talvez seja… porque é complexa, possui arestas vivas e mágicas subtilezas. Pelas palavras expressamos o que nos passa pelo corpo e pela cabeça. Diz--se o que se quer e até o que não se quer. E diz-se ainda que a nossa língua se expressa como nenhuma outra – saudade… A língua é também uma forma de identidade coletiva, de pertença a um determinado grupo. Talvez por isso, falar fluentemente diversas línguas suscite admiração, como se alguém com essa capacidade desenvolvida fosse detentor

(…) um espetáculo teatral que nos revelasse a língua portuguesa de uma forma viva e com inteireza (…) de acordo com uma estrutura ágil e portátil que garanta que tal prato possa circular intensamente por todo o país

Descobrir a riqueza da língua que falamos tornanos mais hábeis, mais autónomos; estimula a leitura e a escrita e, consequentemente, a aprendizagem. Apura os sentidos e abre ou desdobra a relação com o outro.

de um livre-trânsito para a comunicação com outras culturas que não a sua original. A língua portuguesa tem uma forma especial de chegar aos ouvidos. Entre artigos, preposições, substantivos, verbos e outros ingredientes, as

Com todas estas palavras no pensamento e por considerar fundamental suscitar junto dos mais novos o prazer pelas palavras desta língua, o Serviço Educativo convidou Regina Guimarães a escrever um texto que falasse sobre a própria. Um texto para um espetáculo teatral que nos revelasse a língua portuguesa de uma forma viva e com inteireza. O Teatro do Frio, sob a direção de Catarina Lacerda, dar-lhe-á corpo e voz, cozinhando estes ingredientes com

combinações de um prato com a nossa língua são quase ilimitadas, mas pouco conhecidas. E sabemos haver palavras deglutidas à sôfrega quando contêm em si todo o potencial da degustação. Deixemos que as palavras assumam o seu lugar, que não sejam apenas meios de obter o necessário ou urgente. Deixemos que se mostrem em todo o seu esplendor, por vezes belo, por vezes cruel, ora cómico, ora de fazer chorar as pedras da calçada. Com hífens caídos e algumas consoantes fora de jogo ou mantendo actores com «c» como os factos; pelo novo ou velho, acordemos todos em dar a conhecer aos mais novos esta sorte que partilhamos – a de falarmos… português. Descobrir a riqueza da língua que falamos torna-nos mais hábeis, mais autónomos; estimula a leitura e a escrita e, consequentemente, a aprendizagem. Apura os sentidos e abre ou desdobra a relação com o outro.

todos os requintes, mas de acordo com uma estrutura ágil e portátil que garanta que tal prato possa circular intensamente por todo o país, como herança de Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura. É em Guimarães que pela primeira vez ele se apresenta, entre 13 e 23 de março. Salivamos…até à estreia de Comer a Língua.

* Integra a equipa do Serviço Educativo.

O Teatro do Frio foi oficialmente constituído em 2005, data desde a qual concebeu e produziu mais de uma dezena de criações e se envolveu na organização de diversos festivais e ações públicas na cidade do Porto. Este coletivo surgiu da necessidade artística e humana de criação de um espaço que privilegie na atividade teatral o lugar da pesquisa. Privilegia a criação de espetáculos teatrais através de processos de pesquisa e devising, daí resultando uma produção de textos originais em que a palavra surge como inevitabilidade dramatúrgica em estreita relação com o corpo e a ação. Privilegia igualmente o cruzamento entre criadores e práticas de diferentes naturezas artísticas, buscando uma maior pluralidade do discurso e ação artísticos.


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LABORATÓRIO PARA METER AS MÃOS NA MASSA


LABORATÓRIO PARA METER AS MÃOS NA MASSA

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PISTAS CAMINHOS PARA FAZER JUNTOS

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Amélia Polónia*

A MONTANTE AS NOSSAS REFERÊNCIAS

OS USOS SOCIAIS DA MEMÓRIA E O PODER DO ESQUECIMENTO A memória coletiva é partilhada e transmitida, mas também construída por um grupo ou uma sociedade. Daí as memórias conflituantes: ainda que coexistam, as memórias de um grupo não são as memórias de outro grupo. Políticas de memória e eventos comemorativos apresentam-se como meios pelos quais se procuram preservar memórias em sociedades que tendem a projetar-se no futuro sem questionarem as suas raízes mais profundas. A desvalorização social de disciplinas e de profissões ligadas às Humanidades ou às Ciências Sociais em favor de áreas de conhecimento aplicado, de natureza técnica, ou

Mas a memória é também pessoal e empírica: o corpo tem memórias que lhe são intrínsecas; os cheiros, os sons, os nomes, as palavras, a impressão tátil (…)

Neste sentido, o armazenamento das experiências do passado, que se constitui em saber acumulado, é base essencial para a sua aplicação, a sua operacionalização. A importância da memória é tal, que para além de utilizar o cérebro como suporte de uma memória biológica, o Homem foi criando, incessantemente, dispositivos artificiais de salvaguarda de informações. Essa é a função da memória nos computadores, e também da memória RAM (Random Access Memory), componentes sem os quais os sistemas eletrónicos digitais não funcionam. O mundo da inteligência artificial mais não faz do que reproduzir os mecanismos biológicos de guarda, ativação e utilização da memória para resolver novos problemas ou para produzir novos conhecimentos.

da gestão da vida pública de acordo com modelos que são, por natureza, universais, revelam, afinal, a perca de força atuante de memórias próprias de cada país ou região. Mas memória e passado não são necessariamente sinónimos, nem a memória apresenta um valor passivo de comemoração. Os sentidos e os enquadramentos funcionais da memória dão prova inequívoca da sua importância

Na pluralidade dos seus sentidos, a memória pode ser individual, produzida pelas experiências de cada sujeito, e por isso subjetiva, inerente à identidade de cada um, mas pode ser também memória coletiva, conceito criado pelo sociólogo Maurice Halbwachs, nos inícios do século XX. As funções e os usos sociais da memória coletiva têm sido explorados pelas várias ciências humanas, salientando o poder da memória coletiva como fator de identidade e de organização social, mas também o poder do esquecimento, que se revela tão importante e tão atuante como o poder da memória.

operativa nas sociedades do presente, em que é ativa e deve ser proactiva. A memória é, antes de mais, uma função cerebral, associada a um processo de retenção de informações obtidas em experiências vividas, criando um arquivo de dados, que podem ser recuperados, ou ativados, quando deles precisamos. A memória é também uma faculdade cognitiva, constituindo uma das bases do processo de aprendizagem.

Os seus usos políticos tornam-se também evidentes, sendo as memórias coletivas criadas, usadas e manipuladas para promover a legitimação de uma forma de poder ou determinados projetos político-ideológicos. Estes tendem a produzir, eles próprios, uma memória dominante, ao selecionar no passado o que consideram importante, e ao organizar e orientar esse material em ordem a alimentar e justificar um dado sistema de valores.

A memória tornou-se, pela sua importância, objeto de conhecimento, quer como ferramenta cognitiva, quer como condicionante de A memória coletiva é partilhada e comportamentos e, por isso, objeto de transmitida, mas também construída análise da Psicologia e da Psiquiatria, por um grupo ou uma sociedade. Daí que convocam memórias individuais as memórias conflituantes: ainda que e familiares, traumatizantes ou coexistam, as memórias de um grupo não estimulantes, para superar ansiedades são as memórias de outro grupo. Esta e disfunções dos indivíduos. Pela sua constatação é por demais importante, permanente ligação a experiências e tanto mais que a memória se constitui vivências adquiridas, a memória não como normativa e simbólica. Normativa, poderia deixar de ser objeto de análise porque visa preservar a tradição e a da História, também conhecida como estabilidade, cimentar a coesão das a “ciência da memória”. O conceito sociedades, partilhando significados de memória histórica, a que Pierre e comportamentos; simbólica, porque Nora veio dar valor acrescido, não os acontecimentos são idealizados e corresponde, em si, à memória do por vezes manipulados, consciente ou passado, mas à construção da memória, inconscientemente, para criar ou manter a qual resulta da reconstituição do a coesão e a identidade de um grupo. passado, mediada pelos historiadores.


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A MONTANTE AS NOSSAS REFERÊNCIAS

O conceito de memória histórica, […] não corresponde, em si, à memória do passado, mas à construção da memória, a qual resulta da reconstituição do passado, mediada pelos historiadores.

um poder político ou o domínio de um povo, acarretava a destruição dos seus arquivos, das memórias oficiais dessas entidades, do mesmo modo que as campanhas militares implicavam a apropriação dos arquivos militares do inimigo pelos invasores ou conquistadores. A subalternização de memórias é facto de igual modo decorrente de processos de domínio político e ideológico. Os países colonizados dependem, para a reconstituição das suas memórias, daquelas selecionadas, registadas e conservadas pelos colonizadores, cujos arquivos têm que frequentar, se querem recuperar e estudar as memórias do espaço, das populações e dos equilíbrios e conflitos de poder desse período. A dificuldade de recuperação de memórias intrínsecas dos ameríndios, dos afroamericanos ou dos povos africanos, no período colonial, revela de forma clara a existência de memórias dominantes, que são também aquelas que dominam um meio perene de registo: a escrita. O branqueamento das memórias de povos dominados política e militarmente, no passado, ou que se apresentam como minorias, no presente, revela o poder da memória, da sua guarda, preservação e disseminação. Sendo uma forma de identidade, constitui-se como uma forma de poder.

Entre o vivido e a memória do vivido, emerge um intermediário que constrói, através da investigação e da narrativa histórica, determinadas representações do passado. A memória que resulta dessa investigação histórica é preservada, estudada, conservada e difundida em instituições para isso vocacionadas: os arquivos, as bibliotecas, os museus, os “centros de memória”. Mas ela está também presente no quotidiano e em cada esquina: no nome de ruas, de praças, de escolas; nos prémios que evocam a memória de alguém, cujo nome em simultâneo pretendem perpetuar. O próprio calendário, religioso ou civil, evoca datas simbólicas, eventos comemorativos, essenciais para

Os usos da memória são, para além de políticos, também económicos. Vejam-se os usos contemporâneos do património (memória material e imaterial) com fins de desenvolvimento sustentável (turismo cultural; turismo rural; reconstituições históricas, indústrias criativas). Veja-se a invenção de tradições, ou a utilização de manifestações espontâneas preexistentes, próprias de uma cultura popular ancestral, de que as folias dos reis ou as festas joaninas são exemplo. A sua institucionalização apresenta-se como um meio para alimentar festividades orientadas para o mercado e para a comercialização do entretenimento, facto que frequentemente acarreta uma separação entre atores e público, entre agentes e assistentes, totalmente ausente das manifestações originais. Mas a memória é também pessoal e empírica: o corpo tem memórias que lhe são intrínsecas; os cheiros, os sons, os nomes, as palavras, a impressão tátil; as imagens constituem-se em memórias que se arquivam, ou apresentam-se como ativadores de memórias assimiladas, que inspiram usos pessoais, subjetivos, criativos, que em tudo contribuem para a construção da nossa individualidade, ou identidade: eu existo porque tenho memória de mim…

* Fundador e presidente da Binaural/Nodar www.binauralmedia.org

se propagar, na memória coletiva, acontecimentos considerados dignos de memória. Assim se compreendem as polémicas em torno da abolição de certos feriados (a implantação da República, por exemplo) ou a “comemoração” de certos eventos (as invasões francesas). Este debate prende-se com um outro tópico: o do branqueamento da memória, das memórias. Os romanos deram real significado à Damnatio memoriae, a eliminação da memória dos vencidos, a destruição de qualquer vestígio ou reminiscência daqueles que eram condenados como inimigos do Estado, incluindo a proibição de citar o seu nome. Ao longo dos tempos, a vitória militar sobre um chefe e


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TRILHOS MARCAS QUE FICARAM E QUEREMOS PARTILHAR

Ninhos Partilhados Partilhados porque de outra forma não faria sentido. Quando temos algo muito bom entre mãos é importante deixá-lo livre para ser difundido, expandido (…) Sofia Silva* Recebo a newsletter do Serviço Educativo há já alguns anos; vou-me mantendo informada sobre a programação do CCVF relativa a este departamento.

releiam o nome do projeto. Os Ninhos podem ser sítios mágicos, grandes, pequenos, acolhedores, sensíveis e com certeza de feitios muito variáveis – foi com todas estas características que fomos recebidos em cada sessão do projeto. Partilhados porque de outra forma não faria sentido. Quando temos algo muito bom entre mãos é importante deixá-lo livre para ser difundido, expandido, para que outras pessoas possam ter a oportunidade de conhecer e se apaixonar.

Num dos e-mails vejo a informação sobre o Projeto Ninhos Partilhados, curiosa, fui ao site saber mais. A “páginas tantas” referia que haviam decorrido oficinas para pais e filhos, onde se valorizou a dimensão sensorial e a partilha das primeiras experiências artísticas das crianças. O projeto propunha partilhar estas experiências com educadores de crianças até aos cinco anos. Como me enquadrava na descrição do público-alvo, Confesso que não sei se é exatamente e porque confio nas propostas do Serviço assim, mas esta é apenas a minha leitura Educativo, não hesitei e inscrevi-me. depois da experiência. Sobre o Projeto Ninhos Partilhados Participei primeiro na oficina Ninhos concretamente, o que me apraz dizer, é: Partilhados – Sons. Fomos muito voltem ao início desta frase, por favor, e bem recebidos quer pela Lara (SE),

*educadora de infância

O grupo de educadoras praticamente não se alterou da primeira para a segunda oficina, o que criou um ambiente ainda mais familiar.

Ainda sobre os Ninhos Partilhados

Julgo que estas iniciativas são muito bem-vindas e úteis para todos os educadores, tenho mesmo pena que poucas pessoas tenham conseguido aproveitar esta oportunidade.

Algumas educadoras de infância – os educadores de infância homens continuam a ser uma raridade – e, como designa em cima a Sofia, artistas/ formadores. O que pode surgir deste encontro e porque faz ele sentido na programação do Serviço Educativo (SE)? Por entendermos que com a primeira infância é necessário um cuidado especial – as crianças descobrem o mundo em redor, quase sempre, acompanhadas pelos olhos e através das mãos destes educadores. Assim, e após os excelentes resultados obtidos com as oficinas para pais e filhos nas áreas Sons, Cores, Objetos e Corpo, estendemos o projeto a educadores de infância, para que também estes pudessem usufruir das experiências sensoriais e de ferramentas simples mas

quer pelo formador/artista Henrique Fernandes, mas ainda assim os diversos instrumentos musicais visíveis na sala não me deixaram sossegada. No início estava muito apreensiva, porque receava ter de mostrar os meus dotes para a música, que são muito reduzidos. No entanto, à medida que a oficina foi decorrendo sentia-me cada vez mais à vontade e com vontade de participar em tudo o que foi proposto. A segunda oficina foi Ninhos Partilhados – Cores. Lembro-me como estava motivada nesta oficina tanto no primeiro como no segundo dia, devo agradecer à artista Catarina Claro, pela sua partilha, tão cativante e útil. A forma como nos recebem é importantíssima – neste segundo momento foi a vez de a Sandra (SE) nos acolher.

úteis no valioso trabalho de ajudar a crescer. O privilégio da individualidade e da experiência, a partilha das descobertas descomprometidas com os resultados mas verdadeiramente implicadas nos processos, foram algumas das pedras de toque destes NINHOS: geradores de sensibilidades agudas e de imaginações férteis. E não apenas para que as crianças possam crescer melhor, mas para que nós possamos crescer melhor com elas. Sandra Barros


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NA LURA ESPAÇO DE TODOS PARA TODOS

O Ensino de Música no 1° Ciclo do Ensino Básico Hugo Maia* No 1° ciclo do Ensino Básico, o grande objetivo do ensino de música/expressão musical é o desenvolvimento da literacia musical, cujo processo de ensino e aprendizagem assenta na conjugação de atividades relacionadas com a audição, interpretação e composição. A proposta de atividades tem, por isso, de se inscrever em ambientes e contextos estimulativos de modo a que as crianças, tidas sempre como capazes, desenvolvam todas as suas capacidades musicais, aprendendo fazendo. Assim, a Educação e Expressão Musical no 1° Ciclo desenvolve inúmeras competências e grandes capacidades de utilização da voz como recurso

instrumental próprio e potenciador da expressão individual e do canto de conjunto. A aprendizagem de música/expressão musical dá um contributo importante para o aumento de conhecimentos e aptidões musicais e torna-se uma valiosa ferramenta para a formação pessoal das crianças. A música desperta-as para um mundo alegre, facilitando a sua socialização e desenvolve a sua inteligência e o pensamento crítico. A música desenvolve o seu raciocínio, a sua criatividade e desperta emoções. Numa altura em que as atividades artísticas são vistas, por alguns, como algo efémero e meramente recreativo,

Aceitam-se Colaborações, Sugestões, Ideias e Outras Coisas… para publicação neste Jornal servicoeducativo@aoficina.pt

a minha experiência (atual docente de Educação Musical no 1° Ciclo, tendo passado já pelo ensino pré-escolar e secundário) prova-me, no entanto, que elas podem ser ferramentas valiosas de melhoria da aprendizagem dos alunos nas várias áreas curriculares. Temos hoje, várias pesquisas internacionais que comprovam que a arte tem um grande impacto na Língua Portuguesa e na Matemática. Como tal, penso que se torna imperioso defender acerrimamente a permanência das atividades artísticas, nomeadamente o ensino de música nos currículos.

*Docente na EB1/JI do Alto da Bandeira e EB1 de Candoso Agrupamento Escolas D. Afonso Henriques


MAPA DE BOLSO A nossa agenda do trimestre

VISITAS Visitas Orientadas • Maiores de 4 anos Todo o ano

Visitas Orientadas ao CCVF Visitas Orientadas Até 31 de março • Terça a Domingo • Maiores de 4 anos

Para Além da História ESPETÁCULOS Teatro • Maiores de 7 anos 18 e 19 de janeiro • 10h00 e 15h00

Tropeçar Teatro do Vestido Sessão de Contos • Maiores de 8 anos 26 de janeiro

Histórias do Princípio do Mundo António Fontinha e Convidados Dança/Teatro • Dos 8 aos 14 anos 01 e 02 de fevereiro

A Cara Aldara Bizarro

OFICINAS PARA ADULTOS

Dança • Maiores de 12 anos 14 e 15 de fevereiro

O Peso de uma Semente Outros Marina Nabais Ninhos, Outros Voos Inês Barahona Comer a Língua Regina Guimarães/Teatro do Frio Paredes de OFICINAS Vidro em OFICINAS PARA Reconstrução CRIANÇAS E JOVENS ou Zona dos Pais Teatro do Vestido Oficina de Olaria Oficinas para educadores de infância 16 janeiro

Teatro • Maiores de 7 anos 13 a 17 de março

Pais e Mães

21 a 26 janeiro

janeiro a junho • Terças • 4 aos 6 anos

Adultos 02 fevereiro • Artes Visuais • João Sousa Cardoso 04 e 05 fevereiro • Dança • Aldara Bizarro 23 fevereiro • Escrita • Regina Guimarães

Fernanda Braga janeiro a junho • Quintas • 7 aos 12 anos

Oficina de Fabrico de Papel

Corpo Comum Maiores de 15 anos 16 e 17 março • Bloco III

Nuno Ramos 18 a 22 e 25 a 28 março • 6 aos 10 anos

Programa à Descoberta

Caminhos do Olhar-Bloco III

LABORATÓRIOS DE CRIAÇÃO E FORMAÇÃO PARA JOVENS Som/Espaço/Performance • 14 aos 20 anos 23 e 24 fevereiro

Human Field Recordings Manuela Barile Cinema • 16 aos 21 anos 09 e 10 e 18 a 22 março 06 e 07 abril (ou 13 e 14 abril)

Filmar Hoje o Trabalho de Ontem Amarante Abramovici e Tiago Afonso Arquitectura • 14 aos 20 anos 25 a 28 março

:A Pé, Ante Pé: Luísa Alpalhão Reservas para espetáculos Tlf 253 424 700 / Fax 253 424 710 bilheteira@ccvf.pt Informações e reservas para outras atividades Tlf 253 424 700 servicoeducativo@aoficina.pt ou servico. educativo@guimaraes2012.pt

Magda Henriques

Vários formadores Organização

Apoios

Centro Cultural Vila Flor Av. D. Afonso Henriques, 701 4810 431 Guimarães Tel 253 424 700 geral@ccvf.pt www.ccvf.pt


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