Serviço Educativo | Lura nº 26 | 2014

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JORNAL DO SERVIÇO EDUCATIVO JANEIRO A JUNHO 2014 | NÚMERO 26 Coordenação Elisabete Paiva Edição Elisabete Paiva e Sandra Barros Produção Gráfica Susana Sousa Comunicação Bruno Barreto Marta Ferreira

Design Atelier Martino&Jaña Textos de António Matos Carla Veloso e Igor Gandra Fernando Giestas e Rafaela Santos Inês Barahona e Miguel Fragata Madalena Wallenstein Samuel J. M. Silva Sandra Barros Susana Menezes

Laboratório LURA Inês Barahona e Miguel Fragata Teatro de Ferro Distribuição Andreia Abreu Andreia Novais Carlos Rego Hugo Dias Paulo Covas Pedro Silva Sofia Leite Susana Pinheiro

servicoeducativo@ aoficina.pt ISSN 1646-5652 Tiragem 3000 exemplares

“ A CULTURA NÃO É O LUGAR DE REVELAÇÃO ALGUMA, É APENAS O LUGAR ONDE TODAS AS REVELAÇÕES SÃO EXAMINADAS E DISCUTIDAS SEM FIM. PARA QUE CADA UM DE NÓS POSSA VIVER DESSA DISCUSSÃO INFINITA DO MUNDO E DE SI MESMO. ” EDUARDO LOURENÇO

JORNAL DE ARTES E EDUCAÇÃO

EDITORIAL

A MONTANTE

Aventura. Morte. Pensamento. Coração. Poesia. Medo. Esquecimento. Viagem. Cidade. Diferença. Causas comuns. Corpos comuns. Nascendo, crescendo, envelhecendo, morrendo. Horrendo é não ter coração. Não se aventurar com medo de ser esquecido numa viagem falhada. Horrendo é não ter poesia para o dia de morrer, que é o mesmo que dizer para hoje. Todos os dias se morre, seja nas cidades ou nos campos. Falheiro é pensar que não se é diferente. Todos os dias morrem ao mesmo tempo pessoas excecionais e pessoas comuns, todos os dias morrem pessoas ao mesmo tempo comuns e excecionais. Todos os dias

temos medo e coragem. Falheiro é esquecermo-nos de pensar pela própria cabeça medida própria do corpo crescente e pensante. Aventureiro é não esquecer que é: > preciso tempo, mais tempo. > possível crescer com causas comuns. Há mais pessoas do que se pensa nas cidades e nos campos dispostas a aventurar-se em causas comuns pela diferença que cada

* O LURA PASSARÁ, A PARTIR DO SEU NÚMERO 26, A SER SEMESTRAL, NA EXPECTATIVA DE QUE HAVERÁ MAIS TEMPO PARA O PREPARAR E MAIS TEMPO PARA O LER.

A MONTANTE

O meu território é o meu pensamento Madalena Wallenstein pág. 6

um é. Os projetos que temos podido partilhar através deste jornal testemunham causas, pensamentos, desejos e viagens possíveis. Sem aqueles que graciosamente o escrevem e aqueles que desejosamente o leem haveria menos espaço para projetarmos um tempo melhor. Bem-hajam. Elisabete Paiva

Um elogio ao saber de cor Samuel J. M. Silva pág. 8

PISTAS

A Caminhada dos Elefantes Inês Barahona e Miguel Fragata pág. 4


PISTAS CAMINHOS PARA FAZER JUNTOS © Susana Neves

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Carla Veloso e Igor Gandra*

UMA AVENTURA NO ESPAÇO SOBRE O PROCESSO DE PESQUISA E CRIAÇÃO

Quando éramos miúdos a questão da conquista do espaço estava ainda na ordem do dia. A corrida entre soviéticos e americanos animava, a nível mundial, os sonhos e os anseios nesta matéria - que para nós era muito mais feita de ficção do que ciência. A ficção científica (norte americana) que nos chegava em doses semanais pela televisão foi o pretexto para muitas brincadeiras em que a viagem e a descoberta de planetas distantes eram os motes principais.

Quando começámos a trabalhar neste projecto tínhamos em mente a ideia de retomar esta figura de uma viajante do espaço, uma menina cosmonauta, para nos colocarmos na condição de fazer algumas investigações sobre as múltiplas acepções da palavra espaço. Como já tínhamos feito um espectáculo sobre as aventuras de outra criança exploradora do espaço noutros planetas (Blurp, em 2001), decidimos que nos iríamos dedicar um pouco mais ao planeta Terra. Esta peça começa com o regresso à Terra e a aventura não termina aqui. Iniciámos este processo com uma residência de criação no CCC [Centro de Criação de Candoso]. Durante cinco dias e cinco noites a equipa do TdF [Teatro de Ferro] habitou o espaço da antiga escola de Candoso. Dormimos, cozinhámos e trabalhámos como se estivéssemos num navio ou numa nave. Se por um lado nos

parecia que o nosso veículo se movia autonomamente, ora lentamente no oceano, ora a velocidades inimagináveis pelo cosmos, por outro tínhamos a certeza que era o que acontecia no seu interior que nos punha em movimento. Na caixa negra do porão, na casa das máquinas, no dormitório ou no refeitório fomos descobrindo e construindo os espaços com que se fez esta aventura. A leitura e o estudo, ou não estivéssemos numa escola, foram uma constante ao longo dessa jornada e foi essencialmente através desta prática que chegámos às propostas que apresentámos no último dia da residência. No último dia, o navio-escola foi visitado por um grupo de meninos. Organizámos uma visita guiada às nossas aventuras e ao próprio espaço do edifício. Para além dos meninos que se tinham feito deslocar num autocarro, fomos também

acompanhados pela equipa de um outro espectáculo com quem partilhávamos o espaço-veículo, mas que viajava para outras paragens. Foi muito interessante, mas não conseguimos mostrar tudo o que tínhamos feito, tinham que se ir embora, não havia tempo. Ficámos a pensar sobre isso também - quem é que manda no nosso tempo de vida? Como se organiza o tempo? Que relações podemos ter com este elemento? E intimidade entre o Espaço e o Tempo? Ainda estávamos no início de Uma Aventura no Espaço mas assumimos logo ali, entre nós, o compromisso de vir um dia a fazer Uma Aventura no Tempo. Nota: por vontade dos autores, este texto apresenta-se na antiga ortografia.

* Teatro de Ferro

10X10

* Elisabete Paiva

UM PROJETO DE COOPERAÇÃO E INVESTIGAÇÃO Em 2012, o DESCOBRIR Programa Gulbenkian Educação para a Cultura e Ciência iniciou o 10 X 10: projeto que “promove a colaboração entre professores do ensino secundário e artistas de várias disciplinas para desenvolver estratégias de comunicação e de construção do conhecimento eficazes na captação da atenção, motivação e envolvimento dos alunos em contexto de sala de aula, a partir da matéria curricular.” DEZ VEZES DEZ, ou DEZ POR DEZ, é uma experiência original de investigação e trabalho cooperativo na procura de uma melhor escola, onde o centro da atenção e da atividade sejam as aprendizagens e as pessoas (as pessoas são FUNDAMENTAIS! sim M., obrigada), uma escola que seja de facto para TODOS, 10 x 10 x 10 x … É portanto um projeto para os alunos, para os professores, para os artistas, para a escola, para a sociedade. O projeto desenvolve-se em três passos fundamentais: 1. Residência – por um período intensivo de 6 dias, tempo e espaço para que artistas e professores desenvolvam uma

relação forte de partilha de saberes e experiências em ambiente informal; 2. Trabalho ao longo do primeiro período letivo – conceção de um projeto pedagógico singular, por uma dupla professor/artista, para desenvolver em sala de aula e no contexto da disciplina; 3. Cada artista ajuda o seu parceiro professor a idealizar uma forma de partilhar a experiência com a comunidade educativa – professores, artistas, alunos, educadores, investigadores, pais – através de uma ‘aula pública’. Na 1a edição do projeto, 2012/13, dez professores do ensino secundário inscreveram-se voluntariamente e formaram dupla com dez artistas selecionados pela equipa do Descobrir. Na 2a edição, 2013/14, que agora termina, fruto da avaliação que o projeto contempla, foram introduzidas alterações: convidaram-se duas escolas como parceiras, mobilizando os seus professores para participar e dando-lhes retaguarda; as turmas foram apenas de 10° ano e as disciplinas circunscritas a Português, Matemática, Biologia e Filosofia; as aulas públicas foram objeto de debates moderados por personalidades tão diversas como Eduardo Marçal Grilo

(FCG), Stella Barbieri (Bienal de São Paulo), Elisabete Xavier Gomes (Univ. Nova de Lisboa) e Fernando Hernandéz (Univ. de Barcelona). É uma seleção destas aulas que apresentaremos no próximo dia 22 de fevereiro, na Black Box da Plataforma das Artes da Criatividade, seguidas de um debate moderado por Magda Henriques. A atividade é informal e incluirá aulas muito distintas, representando as disciplinas de português e de filosofia, integrando em dois dos casos a participação dos alunos. Após um ano experimental, com um envolvimento apenas parcial no projeto, A Oficina inicia agora o caminho para a concretização do 10 X 10 em Guimarães. Porque 10 X 10 é Dez Por Dez e aprofunda e multiplica valores simples mas essenciais para a escola e para a educação: estar juntos e aprender.

* Coordenadora do Serviço Educativo


LABORATÓRIO PARA METER AS MÃOS NA MASSA

NESTA FOLHA EM BRANCO PROPOMOS QUE TE AVENTURES NO ESPAÇO. 1• Imagina a tua mão como se fosse um corpo – os dedos indicador e médio, bem alongados, são a parte mais evidente desse corpo e fazem-no deslocarse, como se fossem umas perninhas. Os restantes dedos estão, para já, recolhidos na palma da mão. Passeia a tua mão-corpo no espaço vazio da folha e experimenta trajetos diferentes – percursos circulares, lineares, contínuos, interrompidos, passadas grandes, passinhos curtos e por aí fora… Depois podes acrescentar a outra mão e fazer uma passeata a dois, uma perseguição, um encontro, uma dança, etc. Se dobrares a folha uma vez ficas com dois planos, um horizontal e outro vertical. 2 • Agora que já exploraste o espaço em branco pinta a ponta dos dedos caminhantes com tinta guache um bocadinho diluída, ou outra tinta de água e inscreve, agora de forma permanente, na folha em branco a presença, o trajeto no espaço da tua mão-corpo. Podes usar os outros dedos também, claro. 3• Podes convidar mais alguém para experimentar. A dois (ou a quatro mãos) é diferente, vais ver. No final ficam com o registo da vossa aventura! Podes também experimentar reproduzir com o teu corpo todo o trajeto inscrito na folha. Precisas talvez de uma superfície maior! *Sabias que as primeiras tentativas de notação da dança aconteceram mais ou menos no séc. XV com os ballets de corte e consistiam, essencialmente, no registo do trajeto dos apoios, pés, no espaço – uma espécie de pegadas de bailarino que se deslocavam no espaço num determinado tempo/ritmo? Por outro lado, no século XX desenvolveramse correntes na pintura que funcionavam como uma espécie de 'dança com tinta', houve até pintores que pintavam com o corpo, o seu e o de outros.

* Conceção Carla Veloso e Igor Gandra Teatro de Ferro


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PISTAS CAMINHOS PARA FAZER JUNTOS

A Caminhada dos Elefantes Gostamos de projetos transversais. Acreditamos que uma boa proposta artística pode criar o espaço que por vezes não existe para o diálogo. Inês Barahona e Miguel Fragata*

Créditos fotográficos UVA Atelier

É uma questão [a morte] que nos deixa a nós, adultos, muito desconfortáveis e inseguros. E essa insegurança é pressentida à distância pelas crianças. que as crianças pensam acerca do tema e trabalhar sobre o hiato que existe entre as duas realidades: a das crianças e a dos adultos. Este trabalho foi acompanhado de perto pela psicóloga Madalena Paiva Gomes, que ajudou a balizar a intervenção de um trabalho artístico num campo que é sensível, sem no entanto haver qualquer pretensão terapêutica. Gostamos de projetos transversais. Acreditamos que uma boa proposta artística pode criar o espaço que por vezes não existe para o diálogo. Acreditamos que um bom espetáculo pode ser visto por todos, apesar de

Quisemos criar um espetáculo sobre a morte para crianças e famílias. Não porque tenhamos uma qualquer obsessão mórbida pelo tema, mas antes porque sentimos que era um assunto sobre o qual ninguém queria falar, muito menos com as crianças. A morte é talvez o último grande tabu dos nossos tempos. A ignorância perante a morte é universal. É uma questão que nos deixa a nós, adultos, muito desconfortáveis e inseguros. E essa insegurança é pressentida à distância pelas crianças. Elas também têm questões. Mas têm poucos ou nenhuns interlocutores

para conversar sobre o assunto e normalmente compreendem que é um tema proibido. Depois de um longo trabalho de criação, que passou por ouvir as crianças, receber as suas ideias, perceber quais eram as suas questões, dúvidas, medos, etc., em oficinas realizadas nos diferentes territórios dos coprodutores, chegámos ao espetáculo. Também ouvimos os adultos, a quem pedimos que dessem resposta a apenas uma pergunta: “Como explicaria a morte a uma criança de 8 anos?” Interessava-nos compreender o que os adultos pensam

construído para um público específico, neste caso crianças dos 7 aos 12 anos. Procuramos com o nosso trabalho chegar a todo o público, com diferentes camadas de leitura que vão ao encontro de interesses e compreensões diversas. Neste espetáculo criámos um jogo de proibição de utilização da palavra “morte” que devolve em espelho aos adultos o que as crianças leem do seu comportamento. É uma pequena provocação para os adultos, um jogo eficaz para as crianças. O resultado a que chegámos é um espetáculo que, seguindo uma história verídica – a história do conservacionista sul-africano Lawrence Anthony e da sua relação de amizade com uma manada de elefantes –, abre de vez em quando espaço para refletir sobre as grandes questões em torno da morte: para onde

se vai, o que acontece, que rituais fazem os vivos, que crenças acerca da vida depois da morte, ou porque é que a morte existe. Estas reflexões são feitas com recurso a imagens e a objetos que pertencem ao imaginário das crianças e que são manipulados por vezes com humor, mas sempre com a naturalidade

que é própria do tema. Porque afinal, como as crianças nos disseram muitas vezes, “a morte faz parte da vida”, mesmo que não se fale sobre isso.

* criadores de A Caminhada dos Elefantes


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LABORATÓRIO PARA METER AS MÃOS NA MASSA

A TUA VIDA É COMO UMA CAMINHADA COM PARAGENS. LIGA OS PONTOS NA IMAGEM.

Cada ponto é uma estação na caminhada da vida. Se esta fosse a caminhada da tua vida, quais seriam as estações? O primeiro ponto é o teu nascimento, o ponto 12 é o dia de hoje. O que aconteceu entretanto? O que acontecerá depois? Imagina quais serão os acontecimentos mais especiais da tua vida. E quais as estações mais importantes da tua caminhada.

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4 • O MOMENTO EM QUE FOSTE À ESCOLA PELA PRIMEIRA VEZ.

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16 • O DIA EM QUE TE APAIXONASTE

20 • O DIA EM QUE FIZESTE OU FARÁS UMA DESCOBERTA IMPORTANTE

* Conceção Inês Barahona e Miguel Fragata

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A MONTANTE AS NOSSAS REFERÊNCIAS

O meu território é o meu pensamento

Madalena Wallenstein*

Se a filosofia não espera pela escola para nascer nas crianças onde ir vê-la nascer então? Nos territórios dos seus pensamentos?

* Programadora e coordenadora do CCB [Fábrica das Artes – projecto Educativo]

© Direitos Reservados

A consciência de que é necessário contribuir para ultrapassar a dimensão redutora do “fazer“, a que uma determinada pedagogia tem remetido a educação estética e artística, levamnos também a querer aprofundar contextos favoráveis à reflexão.

À programadora de um projecto educativo como a Fábrica das Artes importa criar circunstâncias multidimensionais que se desdobrem tanto para a pesquisa dos criadores, como para a diversidade dos públicos. Circunstâncias que potenciem a procura de novos modos de experimentação artística e novos

processos de trabalho na qual a própria programação é parte integrante e interessada, na medida em que aí busca a afirmação da sua identidade e encontra pistas para continuar um caminho renovado, próspero e criativo. Entendendo a construção da programação como um “voo” sobre um território no qual se

estabelecem relações entre a Arte, as Instituições Culturais, a Sociedade e as suas urgências, podemos encontrar nos espaços vazios um potencial único de zonas a ocupar: O que é que falta? Em Março de 2014 o CCB [Fábrica das Artes – Projecto Educativo] irá lançar a publicação de um Caderno de trabalho e reflexão. Propusemo-nos registar o processo de trabalho que teve lugar no âmbito do laboratório de pesquisa “Pensamento, Filosofia e Contemplação Artística” que resultou do encontro entre programadora, equipa, artistas, fi lósofos e públicos, que se desenvolveu entre Junho de 2012, com o lançamento da primeira reunião de trabalho e reflexão, e Novembro de 2013, momento da produção escrita e gráfica deste caderno, e cuja programação habitou a Fábrica das Artes do CCB no trimestre de Janeiro a Março de 2013. A programação debruçou-se sobre o espanto, o impulso, a pergunta, como chaves da interpretação e reflexão artística. Ofereceu um espectáculo, uma instalação/performance e oficinas dirigidas a escolas, famílias e graúdos, assim como espaços de formação para educadores e artistas e um Encontro – debate em que os artistas partilharam esta experiência. Este laboratório de pesquisa reúne três projectos distintos. Do Teatro do Silêncio, que se propôs criar uma instalação/oficina concebida por uma equipa transdisciplinar ( Maria Gil, encenadora e actriz; Pedro Silva, cenógrafo; Gil Dionísio, músico ) que, partindo da premissa autobiográfica em que a companhia fundamenta o seu trabalho, explorasse temas transversais à condição humana e conduzisse crianças, jovens e adultos num percurso do pensamen-


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a

A MONTANTE AS NOSSAS REFERÊNCIAS

uma leitura do mundo.

to que levasse ao reconhecimento da importância do questionamento. Este percurso começa num espaço branco no qual “se acorda o espanto e se aguça a curiosidade pelo mundo e pelas coisas”, o sítio onde o pensamento se inicia e a pergunta se fabrica e que leva a um outro espaço, preto, preenchido de

Comecei por imprimir uma regularidade nas sessões de trabalho e quis garantir um espaço que estivesse preenchido por um tempo longo, por tranquilidade, segurança, efervescência e liberdade. Interessa-me trazer para a Filosofia com Crianças a exploração de um outro espaço físico (um espaço cénico), da comunicação não-verbal e do movimento, a partir de jogos de aproximação ou distanciamento, como forma de estabelecer nuances relacionais. Numa outra perspectiva, tinha quase a certeza que o recurso aos elementos artísticos iriam permitir testar estas hipóteses. Propusemo-nos criar um campo comum de pesquisa e experimentação, reflexão e contaminação que, convocando estas identidades artísticas e experiências prévias, pudesse permitir uma transversalidade lançada a partir de corpus de conhecimento específicos para poderem ser cruzados. Pretendeu-se, a partir de semelhanças e dissemelhanças entre estes campos, clarificar e aprofundar conceitos implícitos, confrontar processos e metodologias usadas e a natureza

objectos significantes, pertença desta instalação, a materialização de enigmas fi losóficos com os quais os participantes se confrontam e exploram. O segundo projecto, é a reposição da “Biblioteca Mínima” de Ana Silvestre, uma estrutura de madeira com diversos

dos processos mentais e criativos. Nos seis meses que antecederam a chegada do público, fomos defi nindo o nosso campo e metodologia de trabalho, encontrando dinâmicas de relação e aproximação para os espaços de troca, e antevimos a estrutura do processo e as dimensões espaciais e temporais. Discutimos e clarificámos pressupostos, intencionalidades e pertinência. Problematizou-se e foram lançadas provocações e desafios. Surgiram confl itos criativos e encontraram-se soluções. Estabeleceu-se uma metodologia assente na acção/reflexão que convocou espaços de investigação e experimentação, de percepção, de eco e de encaixe. Comecei por imprimir uma regularidade nas sessões de trabalho e quis garantir um espaço que estivesse preenchido por um tempo longo, por tranquilidade, segurança, efervescência e liberdade. Para os artistas e para a fi lósofa a aproximação levou a uma tradução de uma linguagem para outra. Neste espaço de convergência disciplinar a tradução catalisou facilitadores de olhares e reforçou elementos mediadores. Desafiámos o fi losofo José Gil a visitar a nossa programação e a pensar connosco esta ideia. Inspirou-nos e ofereceu-nos os textos do seu livro “Ao meio dia, os pássaros”, no qual a infância é protagonista. Os seus textos foram interpretados pelos artistas no contexto deste programa e editados no âmbito deste caderno. O José Gil ofereceu-nos ainda o prefácio desta edição. Desafiámos todos a reflectir sobre a experiência a partir de duas perguntas: “O que me contaminou? O que contaminei?”

compartimentos, um objecto que guarda “preciosidades da vida e a imensidão do desconhecido” e que, na sua exploração performativa e interactiva, recorre a uma linguagem e olhar poéticos, a coisas pequenas e invisíveis, apelando a uma “micro-escuta”, a uma dimensão sensível e delicada, à vivência estética, a

Estes testemunhos são resultado de um exercício proposto por mim à equipa, já na fase de preparação do caderno de trabalho: “A fi losofia entrou na arte como ar, como uma nuvem, silenciosamente; um nevoeiro, que insufla zonas, que valoriza interstícios, que suspende acção e conquista espaço para reflectir e dialogar”. (Ana Silvestre) “Contaminei os artistas de forma a poderem reconhecer a existência dum território fi losófico intrínseco ao pensamento das crianças e identificar a pertinência de algumas questões e teorias por parte das crianças”. (Rita Pedro) ... “A alegria do encontro com o que nos é diferente e o que nos identifica. De criar e pensar em conjunto com experiências diferentes, formas de pensar diferentes... e encontros semelhantes.” (Ana Silvestre) ... “As conversas – sessões de trabalho e reflexão contaminaram-me. Ter um período para conversarmos. Tão simples e tão difícil de conseguir nos tempos que correm em que temos de estar sempre a “fazer”, a “dar”, a “responder”. Estas conversas ao longo do tempo foram coerentes, ou seja, não foram apenas para começar, mas foram acontecendo ao longo do processo, no fim e agora para a construção do caderno de trabalho.” (Maria Gil) A Oficina é o sítio em que se trabalha. A Filosofia é um trabalho. Fez-se na sequência do jogo e do lúdico. Fez-se a partir do impulso dado pela performance dos artistas, pela instalação artística, pelo espaço cénico, por um trans-

A certeza de que estamos perante um campo que liga os domínios da arte, da fi losofia e da infância, levam-me a propor aos artistas Maria Gil, Pedro Silva, Gil Dionísio e Ana Silvestre a participação neste Laboratório de pesquisa e a convidar a fi lósofa Rita Pedro, que desenvolve o seu trabalho na área da fi losofia com crianças, a juntar-se a este grupo de trabalho. Interessava-me trazer a Filosofia com Crianças para o campo da criação artística. A consciência de que é necessário contribuir para ultrapassar a dimensão redutora do “fazer“, a que uma determinada pedagogia tem remetido a educação estética e artística, levam-nos também a querer aprofundar contextos favoráveis à reflexão. É justamente neste âmbito que penso que a fi losofia com crianças pode oferecer, tanto à educação artística, como à educação em geral, uma potencialidade que se mostra ainda tímida e que falta explorar. Convidei a actriz Tânia Guerreiro, que integra a equipa da Fábrica das Artes do CCB, para fazer parte, em conjunto comigo e com a Rita, do grupo de trabalho que iria conceber uma Oficina e para a realizar com a Rita Pedro. Interessava-me também experimentar a hipótese de aceder, num tempo fulminante, ao pensamento fi losófico, recorrendo a elementos artísticos para realizar este transporte.

porte do papel de público para o papel de protagonista. É facilitado o impulso para a dimensão artística e explorada a dimensão do pensamento, da fi losofia, no plano metafísico e sobretudo ontológico do ser, do “eu”, do outro, das coisas e do mundo. Este é um terreno fértil para emergência da criatividade. Está aqui assumido o esforço que exige a formulação da pergunta e a procura da resposta. O esforço da clarificação, que surge na sua inevitável urgência logo que o sujeito se reconhece no deslumbramento perante ela. O esforço é esclarecedor e admiravelmente artístico. Este projecto, ao mesmo tempo que assume o que há de misterioso na criação artística, abre a oportunidade de desencadear a reflexão fi losófica. É a dimensão artística e a dimensão fi losófica que vivem em ciclo nas crianças e que se alimentam uma à outra. Isto não quer dizer que qualquer uma delas possa existir sem um esforço de procura, e quem diz um esforço diz um trabalho. Nem uma nem outra podem existir sem a oficina. Nota: por vontade da autora, este texto apresenta-se na antiga ortografia.


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A MONTANTE AS NOSSAS REFERÊNCIAS

Samuel J. M. Silva*

“(…) Quanto mais o ouvinte se esquece de si próprio, tanto mais profundamente se grava nele aquilo que ouve.” Talvez importe no presente preocuparmonos com a afinação das palavras, cada vez mais desapossadas do seu significado original. Etimologicamente Cor — deriva

do Latim Cor (cordis) que significa do coração, lugar do sentimento e espírito; do grego: καρδιά; do francês: cœur; tendo como família etimológica exemplos como: concordar [com

o coração], cordial [grato ao coração]; recordar [voltar ao coração], etc. Esta investigação surge de uma recolha livre a partir de vários dicionários etimológicos mas tomando

como referência o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 2 Steiner, George — No Castelo do Barba Azul. Relógio D´água, Lisboa, 1992. P.111 3 Benjamin, Walter — Sobre arte, técnica, linguagem e política. Relógio D´água, Lisboa, 1992. P. 36 4 Estereótipo — chapa de metal sólida e inteiriça

gravada fotomecanicamente em relevo destinada à impressão de imagens e textos em prensa tipográfica. Estéreo — do grego stereós,á,ón; sólido, pode dizer-se tridimensional, em compostos da terminologia técnica e científica do século XIX em diante. Tipo — do grego túpos, marca feita a

golpe, marca impressa, figura, símbolo etc., do latim typus, figura, imagem, estátua; representação; objecto ou coisa que serve ou se usa para produzir outro igual ou semelhante; modelo. 5 Idem, p.56

1

Escreve ou desenha alguma forma que saibas de cor.

Um elogio ao saber de cor Recentemente enrodilhou-se um assunto na minha cabeça, o qual se pode desfiar nas seguintes palavras-chave: saber de cor, provérbios, estereótipos e gaivotas. Gostaria de fazer um elogio ao saber de cor1 ou pelo menos esvaziar toda a negatividade entranhada nesta palavra quase desde que me conheço (deve ser mais ou menos coincidente com o meu primeiro dia de aulas). Sobre este assunto vale a pena trazer à tona duas passagens: 1• George Steiner: “As práticas da comunicação cultural e do ensino assentavam (no passado), de forma muito direta, na mobilização da memória. Aprendia-se em grande medida de cor (do coração) – termo que se adequa magnificamente à presença íntima, orgânica, da palavra e do seu

sem nenhuma problematização associada. Os estereótipos são nocivos (qual erva daninha?) e nada se faz para compreender esse repertório gráfico (resultado de todo um lento processo histórico de sedimentação e assimilação cultural) nem para pensar qual a sua origem e o seu papel na construção da nossa identidade e memória coletiva. No dia em que desenhei uma gaivota igual à que a minha avó alguma vez desenhou tornou-se claro, na minha consciência, de que aquele símbolo repetente (comum) mais que um estereótipo era uma marca transgeracional cristalizada

sentido no espírito individual.”2

afirmar: Os desenhos estereotipados empobrecem a perceção e a imaginação da criança, inibem a sua necessidade expressiva; bloqueiam os seus processos mentais, não permitem que desenvolvam naturalmente as suas potencialidades.

2• W. Benjamin: “Narrar histórias é sempre a arte de as voltar a contar e essa arte perder-se-á se não se conservarem as histórias. Perder-se-á porque já ninguém tece ou fia enquanto as escuta. Quanto mais o ouvinte se Preconizar a abolição do estereótipo esquece de si próprio, tanto mais profundamente se grava nele aquilo que em nome da inventividade será manifestamente uma injúria à tra ouve.”3 dição, ao reconhecimento identitário de uma comunidade e aos seus sistemas Existe indubitavelmente uma de comunicação. Nenhuma centelha insurreição contemporânea contra de criação acontece a partir do nada. uma certa ideia de memorização, A tabula rasa será sempre uma utopia aquela coisa de saber a tabuada de cor e nem mesmo os espíritos mais e salteado, a ladainha ou se quisermos libertários e progressistas do passado alargar o assunto, o estereótipo4. conseguiram romper de forma absoluta Amiúde assistimos a perseguições com a milenar herança vérbico-visual. impiedosas aos estereótipos no Deseja-se a destruição das formas fixas, desenho, em particular o infantil. Eis repetitivas e de aparência absurda uma frase ilustrativa do que acabo de

que sofreu um efeito migratório espaço-temporal e que garante a consolidação de todo um espectro de representações perfeitamente identificadas e compreendidas por uma comunidade permitindo a sua própria sobrevivência. O mesmo acontece com os provérbios que mais não serão que pequenos ideogramas de narrativas mais extensas e que condensam em si, de forma sintética, toda uma sabedoria ancestral. “Poderíamos dizer que os provérbios são ruínas que ficam no lugar das velhas histórias, e que neles a moral abraça um gesto tal como a hera trepa e abraça um muro”5 tornando-o

mais robusto. A apologia do estereótipo que arrisco defender alicerça-se na ideia de que ao invés da sua irradiação será de vital importância um movimento de interiorização através de processos que escapam à consciência —o saber de cor, pois serão estas formas simples, invariáveis e estagnadas que animam e sustentam todo o espírito livre e criativo que deseja a reinvenção do mundo. * Artista visual


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PISTAS CAMINHOS PARA FAZER JUNTOS

Poemas para Bocas Pequenas Entre 30 de maio e 1 de junho, o Serviço Educativo d’A Oficina apresenta um espetáculo de poesia para crianças entre os 3 e os 5 anos, de seu nome Poemas Para Bocas Pequenas, de Margarida Mestre e António-Pedro. Tendo estreado no dia 14 de janeiro deste ano no Teatro Maria Matos, apresentamos aqui uma pequena entrevista, pertencente à folha de sala do espetáculo. A entrevista é conduzida por Susana Menezes, programadora do Serviço Educativo daquele teatro. Susana Menezes: Para que achas que serve a poesia? Margarida Mestre: A poesia é um local em que se cruza a beleza das coisas com a linguagem que as diz. Susana: Achas que há poemas do tamanho da boca e poemas do tamanho do corpo inteiro? Margarida: Sim, há poemas que precisam de poucas palavras para nos deixarem uma enorme paisagem de pensamento, outros que precisam de muitas

palavras para chegarmos a senti-los no corpo todo. Além disso, precisam de tempo para as palavras se instalarem no nosso corpo e começarem a produzir a sua música. Susana: Qual foi o critério que utilizaste para a escolha dos poemas que entram no espetáculo? Margarida: Escolher poemas que me encantassem, que com eles vibrasse ou me emocionasse e encontrar um leque de temas que verdadeiramente tocasse no pensamento e no corpo das crianças desta faixa etária. Ou, pelo menos, naquilo que eu acho que é o pensamento e sensibilidade delas. Depois, lancei-me também eu na escrita de poemas a partir das conversas que fizemos com a Dina Mendonça (especialista em Filosofia para crianças) e um grupo de crianças do jardim de Infância da Voz do Operário. Susana: Quais são as tuas principais preocupações quando fazes um espetáculo para crianças? Margarida: Quero sempre fazer um espetáculo que interesse a todos. Exijo

a qualidade de conteúdos e de interpretação igual a qualquer outro e privilegio a experiência musical e sensorial da linguagem e dos temas. A experiência do corpo, dos sentidos. Procuro também encontrar momentos de encantamento com recursos simples, ao nível da capacidade de descodificação, promovendo a surpresa e tentando ir para além daquilo que esperam. Preocupo-me em escolher temas que lhes interessem e (espero) alargar esse horizonte! Susana: Dizes poesia ao teu filho? Margarida: Muito. Ensaio com ele! Susana: Dizes poesia no banho? Margarida: Não. Não sei se conseguiria depois secar as palavras todas para que voassem à sua vontade.


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TRILHOS MARCAS QUE FICARAM E QUEREMOS PARTILHAR

Quando passar por mim na rua, diga-me qualquer coisa Sandra Barros*

Quando passar por mim na rua, diga-me qualquer coisa. Mesmo que não a reconheça. O receio da Joaquina prende-se com a memória. O corpo que sabe de cor o que tem de fazer em palco dali a duas horas e a cabeça que tantas pistas deu aos mais “novos” durante os ensaios, receiam perder-se nos meandros do quotidiano. O aspeto cuidado e o batom nos lábios não denunciam os seus 89 anos. Mas eles estão lá e ela sabe-o. Encontro a Joaquina junto do restante elenco d’O Tempo do Corpo – espetáculo no qual participam. São 17 pessoas, entre os 63 e os 89 anos. Estão neste momento no jantar volante que antecede o espetáculo. Entusiasmados, relembram histórias enquanto comem. Umas, a maioria, memórias alegres. Outras tristes, das que geram o silêncio de quem procura na memória mais do

que a sucessão dos factos, a emoção do momento rememorado. Mas logo alguém interrompe – E lembram-se quando…? E o som estala de novo em risos. São mestres de cerimónia e convidados da sua própria festa. Pergunto, brincando, se não vão gastar as energias todas no jantar. Riem. Oh menina, eu sinto-me melhor do que nunca, diz um. E logo outro – por mim, depois [do espetáculo] ainda podemos ir bailar à antiga. (façamos uma pausa no jantar e falemos um pouco sobre O TEMPO DO CORPO. Este é um projeto de dança contemporânea com direção de Sofia Silva. Destina-se a ser interpretado por pessoas com mais de 60 anos e desenvolve-se a partir das características do corpo de cada participante, revelando a maturidade

de cada movimento e assumindo o corpo como um documento que regista a passagem do tempo. Com apenas duas semanas de trabalho, se bem que intensivas, o espetáculo apresentou-se no Pequeno Auditório do CCVF, a 12 de outubro de 2013) De volta ao jantar…divirto-me muito na companhia destas pessoas. É contagiante a sua alegria. A alegria de estarem ali, de fazerem parte do projeto, de terem quebrada a sua rotina. Quando o Miguel me confessa que na noite anterior dormiu maravilhosamente, como há muito não lhe acontecia, retorqui que os ensaios e o cansaço tinham esse efeito. Emocionome quando ele diz nada disso!, sinto-me é muito bem!. É por isso que lhe é mais fácil adormecer; por isso a canadiana que usa habitualmente há já uns dias que funciona como simples adereço

o público com a mesma serenidade com que diz bom dia quando chega a qualquer lado. No seu tempo, sem pressa, sem ansiedade e um sorriso que, não estando lá, podemos todos senti-lo na plateia. E o tempo voa e o espetáculo termina. Cá fora, mais um brinde, desta vez com toda a equipa. Fica-se assim um bocadinho. Trocam-se sorrisos e alguém diz e pronto! Já está! Trocam-se abraços e dão-se as despedidas. Até à próxima! E que não demore… Quem acompanha um grupo de participantes como este fica com um misto de sensações no final. Por um lado, a satisfação de ver concluído um projeto que, paralelamente à dimensão artística tem uma importante dimensão social. Permite a integração das ditas comunidades na criação artística, dando-lhes não o lugar dos artistas mas o seu próprio lugar na manifestação artística, respeitando e, diria, honrando, quem são e quanto podem contribuir. Por outro lado, e há que admiti-lo, uma certa tristeza porque sabemos que aquelas pessoas, amanhã, sentirão um certo vazio. Mas passará… (sim… e as experiências valem por si só e pelo tempo que duram). © Paulo Pacheco

* integra a equipa do Serviço Educativo

e não como auxílio de locomoção. E o “adereço” não entrará no espetáculo. Só tenho pena é que isto…acaba hoje. Mas é mesmo assim, não é? Tem de acabar... (É, Miguel, é mesmo assim, tem de ter um fim como tem um início. Desculpe…) O jantar segue animado. Cantam, dançam. Brincam como devíamos todos até ao fim da vida. Mas alguém dá as horas e um brinde dita o fim do jantar. Responsabilidade maior: preparar para entrar em palco. Rumam aos respetivos camarins. E eu…fico a sorrir. O espetáculo. Os que o perderam, perderam também uma magistral aula de saber estar – simples, e contudo

complexo. Gestos que vão até onde os músculos permitem, corpos que denunciam o tempo mas também a dignidade de quem não se esconde, de quem não pede desculpa por décadas vividas. Corpos que contrariam o preconceito e que por isso também correm, se entregam ao chão e ousam a procura do desequilíbrio. Movimentos que refletem as vidas, com uma grande parte passada em fábricas ou debaixo do sol que queima o rosto mas não cega a alma. E a Margarida! Que faz, quanto a mim, uma das coisas mais difíceis em cena – simplesmente ESTÁ, à boca de cena, imóvel porém viva, encarando


11 | LURA Direitos Reservados

NA LURA ESPAÇO DE TODOS PARA TODOS

MIGRAR

Fernando Giestas e Rafaela Santos*

Do cais 33 à casa da Helena, passando por Guimarães

Fascina-nos o que diz Merleau-Ponty: “Só vemos aquilo para que olhamos”. Então, partimos e chegamos à mesma cidade e olhamos muito. Para ver. Para nos ver. E depois há perguntas: Que cidades somos nós? As cidades também morrem? Mais, mais perguntas. Quando olhamos muito, ficamos com fome de perguntas. A 7 de Setembro deste ano 13 aconteceu

partir e chegar à mesma cidade de Guimarães. Chegámos ao Cais 33. Central de camionagem. À nossa frente, toda a cidade que conhecíamos e desconhecíamos como a palma da nossa mão. E logo naquele instante da chegada, partimos. A mala na mão, claro. Tudo o que eu tenho trago comigo1 . Partimos do Cais 33. Os pés no chão, a pele debaixo do sol. A mala na mão, claro. Migrantes a caminho. Enquanto viajas ainda não chegaste1 . Quanto mais cidades deixávamos para trás, mais cidades tínhamos pela frente. A cidade betão, a cidade campo, a cidade ruína, a cidade rio, a cidade pessoas, a cidade tanque, a cidade comunidade, a cidade labirinto, a cidade ruína humana, a cidade postal, a cidade Património, a cidade pulmão, a cidade trabalho, a cidade fábrica, a cidade

couros, a cidade papão, a cidade casa. Olhámos para o relógio: a solidão nos passos contados. 2 horas a pé. Da nossa boca, silêncio. A cidade a entrar-nos pelos olhos, pelo nariz, pelos ouvidos, a colar-se-nos à pele. Que cidade queremos para nós? Quem é que a cidade quer para ela? Chegámos a casa da Helena. Rua da Rainha. Sejam bem-vindos. A casa era, afinal, nossa. Fazes falta aqui. E fizemos chá e pusemos bolachas na mesa e olhámo-nos nos olhos. Chegámos. E só não descalçámos os sapatos para calçar os chinelos porque estávamos prestes a partir para chegar, novamente. Eu sei que voltas. Uma frase destas mantém uma pessoa viva1. E voltámos. Cada qual à sua cidade casa. E, quando nos olhámos ao espelho, éramos outra cidade, porque partimos para chegar ali.

TODOS POR UMA CAUSA Todos pela Deficiência O “Todos por uma causa – Todos pela deficiência” é um evento cuja primeira ação datou 19 de julho de 2013, na Pista Gémeos Castro, em Guimarães. Surgiu da necessidade da Santa Casa da Misericórdia de Guimarães levar à comunidade, com o auxílio de variadíssimos parceiros, a realidade que podemos encontrar na valência ALECRIM – Lar Residencial e Centro de Atividades Ocupacionais para a Deficiência. Contámos com mais de 100 participantes portadores de deficiência que puderam participar em dois dos seis ateliês preparados (dança, pintura, boot camp, sentidos, relaxamento ativo e ioga) e mais de 20 voluntários distribuídos por elementos da Santa Casa da Misericórdia de Guimarães, elementos independentes e da Cruz Vermelha Portuguesa. Terminámos a manhã com uma atuação verdadeiramente surpreendente das “Rodas Dançantes” e seguimos

para um almoço piquenique de confraternização. Durante a parte da tarde, os técnicos, os utentes, os familiares e o pessoal auxiliar teve o privilégio de participar na conferência “Diferença Feliz” ministrada pelo Professor Álvaro Cidrais, seguida de uma tertúlia que abriu espaço a partilhas entre os presentes. Este grande dia, o primeiro de muitos que contamos organizar, terminou com uma largada de balões e o agradecimento a todas as pessoas, instituições e parceiros que tornaram este dia possível. Tendo em conta as repercussões positivas deste evento, tencionamos repetilo e alargá-lo a outras populações, às escolas, a toda a população, massificando a participação neste evento e, por isso, chegou a hora de qualquer cidadão participar de forma ativa e ajudar à repetição deste evento. Nos dias 7 e 8 de Dezembro, entre as

10h e as 19h, realizou-se nas instalações do nosso parceiro “Arrecadações da Quintã” uma ação de angariação de ajudas para a realização da 2a edição do “Todos por uma causa – Todos pela deficiência”. Trocámos lindíssimos objetos de decoração por generosidade e o montante recolhido reverteu para toda a organização da 2a edição do “Todos por uma causa – Todos pela deficiência”. Toda a ajuda é um degrau que ultrapassamos e que nos aproxima do grande objetivo que passa por organizarmos um dia que visa a partilha de emoções, aprendizagens, saberes e vivências ricas, alargado a todos os que queiram fazer parte, sem rótulos, diferenças ou limitações. Contamos consigo! Contamos com a sua luta por esta causa!

Aceitam-se Colaborações, Sugestões, Ideias e Outras Coisas… para publicação neste Jornal servicoeducativo@aoficina.pt

© Direitos Reservados

A performance comunitária Migrar foi construída a partir de um desafio da associação cultural La Fin Terrible, de Ovar, dirigida, entre outros, por Fátima Alçada e Rafael Polónia. Ambos, nós e eles, Amarelo Silvestre e La Fin Terrible, queríamos muito pensar a cidade, pensar as pessoas na cidade. Imaginámo-nos, então, a partir para chegar como se fosse pela primeira vez. A fazer um percurso. Pensámos fazer isso em silêncio, para que a cidade se fizesse ouvir.

* Criadores e intérpretes de Migrar – Performance Comunitária; fundadores da Associação Amarelo Silvestre

1

frases do livro Tudo o que eu

tenho trago comigo, de Herta Müller, inscritas ao longo do percurso de Migrar.

António Matos*

* Animador Sociocultural da valência CAO/Alecrim da Santa Casa da Misericórdia de Guimarães


Espetáculo "Tempo do Corpo" © Paulo Pacheco

MAPA DE BOLSO A nossa agenda do trimestre

M/ 4 ANOS Visita Exposição 02 JANEIRO A 02 FEVEREIRO

Flor na Pele Visitas/ Oficinas 11 JAN., 08 FEV., 01 MAR, 08 MAR

Sábados em Família Visita Exposição 25 JANEIRO A 13 ABRIL

A composição do Ar Provas de Contacto José de Guimarães Estrela negra Jarosław Fliciňski Preto no branco Oficina ARARA

M/ 6 ANOS

JOVENS E ADULTOS

Visita Exposição 25 JANEIRO A 06 ABRIL

Teatro

Oficinas Artes JANEIRO A MARÇO

Coração e Cinzas Arlindo Silva

Uma aventura Atelier Aberto no espaço CIAJG

31 JANEIRO E 01 FEVEREIRO

Teatro

09 A 11 MARÇO

Oficinas Artes JANEIRO A MARÇO

A Caminhada dos Elefantes

Vai e Vem Visita CCVF JANEIRO A MARÇO

Visita PAC

Um teatro por dentro e por fora

Do Mercado à Plataforma

JANEIRO A MARÇO

Oficinas Arte Pedagogia 29 E 30 JAN | 19 E 20 FEV 19 E 20 MAR

Corpo comum Aulas Públicas 22 FEVEREIRO

10 X 10

M/ 12 ANOS

Oficinas JANEIRO A JULHO

Oficinas de artes tradicionais

Teatro 28 E 29 MARÇO

MIMA-FATÁXA Audiowalk TODO O ANO

Atabicar o caminho

Preços_Consultar condições específicas em www.ccvf.pt Reservas para espetáculos Tlf 253 424 700 / Fax 253 424 710 bilheteira@ccvf.pt Informações e reservas para outras atividades Tlf 253 424 700 servicoeducativo@aoficina.pt

Organização

Apoios

Centro Cultural Vila Flor Av. D. Afonso Henriques, 701 4810 431 Guimarães Tel 253 424 700 geral@ccvf.pt www.ccvf.pt


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