
Copyright @ 2022
EDIÇÃO: Conselho Editorial Daissen
DIAGRAMAÇÃO: Guilherme de Quadra
CAPA: Guilherme de Quadra
TRADUÇÃO: Conselho Editorial Daissen
REVISÃO TEXTUAL: Conselho Editorial Daissen
Nesta edição, respeitou-se o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
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MONGE GENSHŌ
Muitas pessoas, por meio de seus pedidos de continuação da odisséia de Ido, inspiraram esta continuação da descrição de sua trajetória. A eles sou muito agradecido, mas quero ressaltar a grande ajuda representada por Thomás Muryo e Tamara Kakuji, ambos revisaram, sugeriram, auxiliaram de todas as formas a finalização deste trabalho, também Guilherme de Quadra providenciou capa, ilustrações, diagramação. Cristiane Shudô colaborou com o anexo sobre a prática do zazen, Sensei Enjo Stahel escreveu o prefácio, a todos e ao conselho editorial Daissen meus mais sinceros agradecimentos e reverências.
Agradecimentos
Prefácio
No início da década de 80, quando pela primeira vez ficou claro para mim que um dia eu seguiria o caminho do monge, praticamente não havia literatura sobre o Zen budismo em língua portuguesa, muito menos autênticos mestres que ensinassem aqui no Brasil. Hoje, mais de quarenta anos depois, o Zen aqui em terras brasileiras, graças ao trabalho de muitos novos mestres, deixou de ser algo exótico e misterioso, restrito a um pequeno grupo de curiosos, para definitivamente ser conhecido e acessível a um público cada vez mais amplo de buscadores e praticantes do caminho. É muito gratificante observar essa transformação e ver como ela tem se mantido fiel às suas origens na terra do sol nascente.
Elivro.mforma de diálogo entre um aluno e seu professor, a escolha
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Passam-se os anos e quando os recordo, percebo o quanto já caminhamos ...
Dentro dessas novas lideranças do Zen budismo em solo brasileiro, não posso deixar de destacar o nome do venerável Genshō Sensei. O conheci mais de perto a partir de 2016 quando se tornou missionário da escola Soto Zen Shu aqui na América do Sul. De lá para cá, pudemos nos encontrar com bastante frequência nas reuniões de missionários e em diversos encontros Zen latino-americanos. Venho, então, acompanhando seu sério e incansável trabalho de divulgar os ensinamentos do Zen budismo, que agora se manifesta na publicação de um novo
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Como já dizia o grande mestre zen Eihei Dogen no seu clássico texto Eihei Hotsuganmon: “Buddhas e ancestrais de antigamente eram assim como nós, assim como nós um dia seremos como os Buddhas e ancestrais de antigamente”.
do tema deste livro, que tem como base a famosa alegoria clássica do Zen chinês dos “dez quadros do pastoreio do touro”, foi muito feliz. Essa estória, cuja origem remonta à dinastia Sung, foi elaborada pelo famoso mestre Rinzai Kakuan Shien do século XII. Ela ilustra bem todas as fases da jornada espiritual de um Buddha, ou seja, a nossa própria jornada. De uma forma simbólica, podemos representar assim este caminho de volta à nossa natureza original, ao qual precisamos nos manter sinceros, uma vez que as distrações e os desvios são muitos. Somente com perseverança e coragem, permaneceremos firmes no propósito de nossa jornada, seguindo os passos dos antigos mestres do Dharma.
MONGE ZENGETSU TEMPLO TAIKANJI
Prefácio
Pedra Bela, SP, 18 de julho 2022
CAP
CAP III CAP IV CAP V CAP VI CAP
Sumário
CAP I II VII
CAP VIII CAP IX CAP NOTA:EPÍLOGOX A Origem do Nome do Personagem POSFÁCIO: Como Praticar Zazen GLOSSÁRIO 105491531658195125137145153157161171
IDO CHEGA À OUTRA MARGEM.
Além do Pico da Montanha:

Desolado através das florestas e aterrorizado nas selvas, ele procura um Boi que não encontra. Acima e abaixo, rios escuros, sem nome, espraiados; em matas espessas ele percorre muitas trilhas.
CAP I
Ao entardecer, escuta cigarras gorjeando nas árvores.
Cansado até os ossos, com o coração pesado, continua a buscar algo que não pode encontrar.
17 Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
Sonho. Estou muito velho e deitado em um leito levemente soerguido. O ambiente é muito branco, nada se vê nas paredes, é como se sequer existissem. Estou morrendo e não há qualquer dor. Na verdade, uma grande paz. À minha esquerda, o vulto de meu pai sorridente, contente, segura minha mão. Está sentado como se sua cadeira, que não vejo, estivesse na altura do leito. À minha direita, minha mãe segura minha outra mão, e também sorri feliz. Ambos têm a idade que tinham em minha infância. Entendo que me esperam quase eufóricos para me receber depois de tantos anos.
Sou um monge Zen budista. Depois de décadas de trabalho
Sei com clareza que os entes queridos não são mais que representações de minha própria mente, espelhando ali toda minha ancestralidade. Em última análise, são eu mesmo, ondas do mesmo oceano, surgindo e desaparecendo através dos tempos.
Uma enorme felicidade me invade e desejo muito passar para onde estão. Não quero ficar, quero ir. Percebo que vou acordar e resisto, porque não quero sair daquele momento perfeito, daquele delicioso estar com eles. Mas aquele ambiente luminoso começa a se afastar de mim e acordo. Por um lado, estou feliz com o reencontro, por outro, sinto pena de não ter ficado naquele estado de gloriosa felicidade. Retorno para a vida normal, levanto-me e lavo o rosto. Um homem idoso me olha do outro lado do espelho. Mais uma vez, sinto que morrer é tão bom e belo que, se soubéssemos, não quereríamos permanecer aqui.
Penso em descrever o caminho espiritual detalhadamente, usando como base o célebre poema “Os dez passos do boi”. Mas preciso de um personagem que os protagonize, e cogito em fazer Ido, a voz do “Pico da montanha é onde estão os meus pés”, me ajudar. Para tanto, recrio o personagem em cartas imaginárias:
com empresas, de cargos executivos, de muitas viagens, escolhi ter uma atividade na maturidade, uma outra, a atividade de monge. Os túmulos dos monges têm sobre eles um pilar esférico, sem arestas. É muito difícil ter uma vida sem arestas, todas as existências têm cantos e irregularidades.Minha
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rotina agora é responder a perguntas, fazer palestras, que no momento em que escrevo, durante uma pandemia, são predominantemente virtuais. Recebo muitas cartas e respondo-as como se fossem minha razão de viver. Sei que os anos que restam não podem ser muitos e há uma certa pressa de completar a tarefa de espalhar o Dharma. Para isso, temos agora uma instituição, temos os meios de comunicação e muitas dedicadas pessoas que fazem o trabalho. Tudo que desejo é que estejam tão fortes que prossigam quando não mais estiver aqui. Como o sonho me ensina, minha mente quase anseia por partir para planos mais elevados. Mesmo que saiba que este “eu” é só desta vida, sei também que tudo é continuidade, e meu karma estará ainda durante vasto tempo se manifestando e encontrando seres amados em muitas existências durante inconcebíveis vidas.
19 Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
Espero que se lembre de mim, sou o Ido. Há anos o encontrei em um retiro em um monastério, o senhor me falou do mundo do trabalho, e, ao que me lembro, osenhor mantinha uma empresa de consultoria. Mas não é sobre nada disso que desejo falar. Depois de nosso encontro, mergulhei no mundo da prática do Zen e tive até recentemente o acompanhamento de um mestre qualificado que o senhor conhece, Hirano Sensei. Infelizmente, após sua morte, ainda tenho coisas a resolver e é neste momento que preciso de sua ajuda. Pretendo relatar pausadamente minha história para que o senhor me conheça melhor. Pergunto se estaria disposto a lê-la. Se puder fazê-lo, passarei a enviá-la parte por parte, porque a venho redigindo há algum tempo.
Prezado Sensei,
Adianto a dúvida que me assalta. Tenho consciência do trajeto que segui e do ponto que alcancei. Meu mestre foi bem-sucedido ao me guiar passo a passo, apesar das minhas naturais dificuldades e resistências obtusas. Cheguei a um ponto que o senhor entenderá claramente. Atravessei o rio. Da margem da ignorância, aportei à outra margem; cansado de remar, mãos sangrando. O barco é perfeitamente inútil no território vasto e aprazível à minha frente.
Mas lá atrás, na margem que deixei, há décadas, multidões de perdidos vagam sem rumo, mergulhados
Me alegra que haja permanecido no caminho. Sim, me daria prazer receber seus textos, e o que lhe direi depois é um assunto que teremos tempo para explorar. Mas
Meu voto é não negar ajuda a quem a pede. Fico profundamente espantado em estar face a um relato que parece provir de alguém que trilhou todo o caminho e chegou à fonte original. Minha primeira reação é de ceticismo, mas seu guia me foi conhecido e estava no topo das mais altas considerações, assim, respondo imediatamente.
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Peço-lheinsanidade.queme
Prezado Ido San,
em sofrimentos, como eu mesmo quando parti. Voltar lá e inspirá-los a tomar um barco é ao que me impulsiona a compaixão. Porém, à minha frente, tudo é tranquilo e belo e não há homens enlouquecidos a murmurar paixões avassaladoras, ferindo a si mesmos e aos outros em sua
incentive a partir em frente, abandonando o barco nesta margem ou me dê motivos claros para retornar – eu que recentemente desembarquei, indiferente às dores que os remos me causam, para com minhas palavras, sempre tão magras traduções da realidade, tentar trazer mais seres perdidos a esta margem onde a luz dissolve as ilusões.
Com profundas reverências, Ido
Gasshō
Além do Pico da Montanha: CHEGA À OUTRA MARGEM
MongeGasshōGenshō
Com nove prostrações, Ido Ido LereiSan,seus
gostaria de saber algo importante, você tem um outro mestre? Nossa relação será muito diversa dependendo de sua resposta.
Genshō Sensei,
textos primeiro. Por favor, os envie.
Obrigado por tão rápida resposta. Tive somente um mestre durante muitos anos, narro tudo ao longo de minha história, infelizmente, ele, Hirano Sensei, como mencionei anteriormente, faleceu há alguns meses e não tenho com quem falar, nem procurei um outro que o substituísse. Lembrei-me do senhor e gostaria de ouvir seus conselhos, se isso for possível.
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IDO
GenshōGasshō
Respondo: “A percepção foi até certo ponto, mas temos que ir mais longe, todos os nossos ancestrais continuam conosco; olhe para suas mãos e eles estão ali. A ideia de que vamos nos reencontrar como indivíduos é falha, porque nunca estivemos realmente separados e nunca estaremos distantes. A individualidade é um evento fugaz. Nascimento e morte, olhados do ponto de vista de tempos vastos, são como fagulhas. É preciso mergulhar mais fundo no conceito de anattā (não há um eu inerente em um ser) e perceber que a ilusão de separação é que criou a saudade e a vontade do reencontro. Se somos um, não estamos separados e estamos mergulhados na identidade una de tudo.
Sento-me tranquilamente à frente do computador e volto a minhas atividades normais. Uma mensagem sobre perdas e uma pergunta de uma aluna chama minha atenção:
As festas orientais em que rememoramos os antepassados estão a meio caminho também, são consolo, ensinamento provisório para os que ainda não despertaram para a unicidade de todos os seres e a ausência de um eu inerente em tudo. Aqueles que despertam da ilusão sentem-se
“É estranho perceber que consigo abrir mão de um Pai maior ou um Salvador, mas sofro com a ideia de ter que abrir mão dos meus familiares que já não estão comigo nesta manifestação. É como se tivesse que passar por novos lutos. Renunciar à ideia de que eles continuam comigo, e que em outro momento iremos nos encontrar, gera muito sofrimento. Hoje pela manhã, vi um vídeo que falava das festas ocorridas no Japão nos meses de julho dedicadas aos ancestrais. E um monge consegue ver sua mãe sorrindo... puxa! Fiquei tão confusa!”
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Além do Pico da Montanha:
Penso que a resposta possa ter sido de difícil compreensão, mas como é uma aluna que está lendo os textos já disponíveis sobre “não-eu”, creio, poderá refletir e decodificar o ensinamento.
Sensei,Tudocomeçou
instantaneamente rodeados de todos os seres queridos, caminhando com eles, respirando com eles e usufruindo de sua presença em si mesmos”.
IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
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como uma profunda inquietação… um desconforto com todas as crenças, uma falta de confiança no que os pregadores ensinavam em seus púlpitos, processo que se iniciou na infância mesmo. Em plena adolescência, já estava bem instalada a dúvida. Iniciei a contestar veementemente uma divindade castigadora ou premiadora a quem os homens temiam ou de quem esperavam socorro.
Minha imaginação voava por múltiplas possibilidades no futuro. Diferentes modelos de vida. Infladas as ideias por romances e livros de aventuras que entremeados aos roteiros dos filmes povoavam a mente sonhadora. Por mais que criasse caminhos oníricos, não conseguia saber oque realmente desejaria para o futuro.
L evanto-me para tomar um café. Quando retorno, já chegou um texto de Ido, que certamente já o tinha pronto há algum tempo.
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Sim, ideais de grandeza surgiam. Ou então de pureza e santidade. De ter um papel até então oculto. Sem saber quem era e o que se poderia esperar da vida. Em qualquer rumo imaginado, abria-se uma multidão de caminhos disponíveis, um labirinto de grandes conexões e encruzilhadas. Cada uma levando a um destino diferente.Àmedida que ia crescendo e penetrava na idade adulta, uma sensação de falta me assolava. É neste instante que as pessoas ficam suscetíveis à religiosidade. Ela lhes dá um sentido, quem sabe uma missão, uma resposta qualquer definitiva, firme e insofismável. Se você consegue crer, tudo parece resolvido.
Sentia que a rede da vida era insuficiente para me dar respostas e esta inquietação existencial me levava a uma busca aleatória, como quem por serendipidade espera encontrar algo inesperado, sem saber realmente o que procura.
Porém, se você tem uma mente crítica, como a que eu carregava, nada parece suficientemente sólido e as crenças mostram-se como uma renda cheia de buracos, de falhas, e as respostas parecem se esvair como fumaça em uma nuvem de desilusões.
Conheço bem o problema, afinal é o tema da busca espiritual, da busca de sentido, sem a qual se vive sem saber por que e para que. Já
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C omo se diz no Rio Grande do Sul, para as “bandas de Canguçu”, saindo de Pelotas, há uma região bela com cascatas. Próximo a esse local, a uns 300 m de altura, meu pai houve por bem comprar um sítio de 5 hectares e construir uma casa. É a casa remota de minha infância; fontes de água, uma floresta intocada ao fundo onde as brincadeiras de Tarzan eram possíveis para minha mente inebriada de leituras juvenis. Nem me passavam pensamentos da terrível atuação do homem branco nas selvasUafricanas.manoite, não sei por que, acordei em plena madrugada, levantei-me e passo a passo, silenciosamente, fui até a cozinha, evitando fazer qualquer bulha na noite quieta. Meu irmão dormia no mesmo quarto, teríamos ao redor dos dez anos de idade e guardávamos a rivalidade natural dos irmãos próximos. Saí pela porta dos fundos, atravessei um trecho do terreno atrás da casa e, subindo uma breve escada ao lado da garagem, cheguei a um muro de contenção do terreno que, baixo e muito largo, se inclinava no comprimento, suavemente, em direção à floresta preservada do terreno de nosso vizinho. Deitei-me ali mesmo sobre a estrutura. Olhando o céu.
Um dossel de estrelas estendia-se de horizonte a horizonte. Os animais silvestres estavam mudos. Havia algo dentro mim, uma interrogação não respondida, a noção de que não poderia falar do que me habitava aos meus colegas, tão ocupados em atirar pedras, correr e chutar bolas. Seria tido como delirante leitor inveterado, alheio às brincadeiras, um estranho de quem os professores gostavam, mas que não tinha interesse no mundo das brincadeiras. Tampouco os adultos,
IDO
Além do Pico da Montanha: CHEGA OUTRA MARGEM desde cedo, quando criança, esse tema surgiu.
À
debaixo dos astros, a mente viajava encantada. Tudo era muito belo, mas sem respostas. O planeta, sólido embaixo de mim, sem nenhuma vibração perceptível, viajava por um cosmos incomensurável. A imensidão girava lentamente; o que seria esse tempo que nunca para? E este corpo que ganhei, não sei como, e que se inquieta sem saber seu sentido? Ficarei velho e continuarei questionando? A noite nada respondia, sequer as estrelas tinham uma mensagem, nenhum ser sobrenatural jamais se levantou das sombras e entregou uma mensagem vagamente compreensível. Ansiava por respostas, mas só havia aquele mistério, a noite escura, as estrelas impávidas, o menino cheio de interrogações, embora maravilhado pelo espetáculo sideral. Voltei sorrateiramente ao meu quarto, pés descalços, e depois de esfregá-los do pó da rua, deitei-me novamente com minhas questões não resolvidas.
Respondi: “Sim, fazem muito sentido no Zen budismo”.
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Em certa ocasião, recebi uma pergunta assim: “Uma vez eu li um trecho, se não me engano em um livro chamado ‘Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido’, no qual Ouspensky, citando Gurdjieff, dizia que ‘A vida começa a fazer sentido quando descobrimos que ela não faz sentido algum.’ Assim como vi em um livro de Victor Frankl – um trecho que me parece maravilhoso –, em que ele diz que ‘O homem não é quem pergunta o sentido da vida, mas sim aquele a quem essa pergunta é feita, e à qual ele responde com a própria vida.’ Essas ideias estão de acordo com oZen?”
Masfacilmente.ali,sozinho,
com exceção de meu pai, queriam especular sobre questões não respondidas
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Terminando a leitura do e-mail de Ido, identifico que é a alegoria do boi, famosa no Zen, que ele parece relatar. Mais especificamente, seu primeiro quadro.
Gasshō Nove prostrações Ido
Escrevi há tempos:
A questão das crenças é um importante obstáculo para a liberação da mente. Toda vez que um homem coloca sua confiança em algo que é imaginado, mas que não pode ser averiguado, ele se afasta da posição de Buddha de não discutir assuntos não verificáveis. Esse é um dos pontos que coloca o Zen budismo em uma posição tão diversa à da religiosidade normal, que tenta dar promessas ao homem para que ele supere seu sentimento de desamparo. Tenta dar-lhe deuses para que se apoie ou promessas que o livrem da morte do seu “eu” a que tanto se agarra.
A s buscas se assemelham. O buscador, neste momento, percorre os caminhos, procurando rastros de verdade e, quando os encontra, segue ansioso para descobrir aquele que os imprimiu.
Ido: E foi depois desse momento, empurrado por circunstâncias da vida, que tomei a iniciativa de ir àquele retiro, no qual encontrei o senhor. Amanhã escrevo mais para não ocupar demais seu tempo.
Estamos apegados às nossas crenças, identidade, amizades etc. Quando pensamos em abandonar qualquer dessas coisas a que nos prendemos, surge imediatamente um temor. Esse medo e aflição são produtos do mecanismo de autoproteção do ego. O ego está agarrado àquilo tudo e parece que ele equivale àquelas coisas, visões de mundo, afetos, pessoas.Nosso
A nossa verdadeira identidade está muito acima desse sonho de peça escolar. Ela é luminosa, abrangente, percebe a inseparabilidade de todas as coisas. É ilimitada, não condicionada pela existência cíclica, pelas identidades individuais, compreendendo tudo, percebendo com nitidez sua eternidade não sujeita à mutabilidade de um mundo submerso em condições.
No entanto, aquele que salta descobre-se subitamente liberto de inúmeras amarras e condicionamentos que eram nossos donos. Acreditávamos que nós éramos exatamente aquele conjunto de apegos. Como as pessoas que dizem: “eu sou assim”. Como se esse “assim” criasse algo que ele chama pelo nome.
“eu” sempre está querendo se ampliar, somar coisas a sua identidade, suas memórias, seus amigos, seus prazeres; quer ser eterno, não abre mão de uma permanência impossível, quer continuar o sonho, como um louco abraçado à sua fantasia. É preciso coragem para largar todo esse apego. É saltar em um precipício sem nada saber sobre oque está lá embaixo.
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Mesmo as gargantas mais profundas das mais altas montanhas não podem esconder o focinho desse Boi que toca diretamente o céu.
Viu pegadas sem número na floresta e à margem das águas.
Em que distâncias vê ele a relva pisada?
CAP II
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À m inha frente, a parede de madeira de minha casa ganha lentamente mais cor à medida que o sol se levanta e sua luz invade a janela. Um espaço fácil, de calma e presença, fica comigo enquanto ali
O manto de Buddha foi no início fonte de uma grande aflição, quando enfim o recebi e o vi estendido à minha frente sobre uma cama, senti-me tomado pelo medo de que ele destruísse a vida profissional que eu construíra em muitos anos de esforço. O que diriam todos? Era como mudar-se para um outro país. Mas o caminho foi se desdobrando aos poucos, e ele, sim, acabou encobrindo tudo com sua força. Feito de retalhos, símbolo de mendicantes, transformou a vida comum em irrelevância e fez do caminho dos Buddhas o grande caminho. Em 20 anos, inseriu-se em cada espaço, expulsando a identidade anterior e fazendo de mim um homem que nem se reconhece em seu passado, como se realmente houvesse nascido de novo.
Novo dia, levanto-me às 5h40, visto o koromo negro de monge e sento-me em zazen, recito o verso do okesa, Oh! Grande manto da libertação/ além da forma e do vazio/ Uso os ensinamentos do Tathagata para libertar todos os seres… e visto o manto amarelo. Às 6h, inicia o zazen; meditação do Zen acompanhada por pessoas de muitos lugares, até de outros países. Sempre tenho preguiça, mas como a sangha me espera, aqui estou eu, mais uma vez sentado com minha mente. Acender a vela e o incenso à frente da estátua de Buddha me inspira. A indolência passa assim que visto o manto.
Quando toca o sino é sempre um pouco difícil voltar a me mover. Mãos em gasshō, e recitamos o refúgio, Tomo refúgio no Buddha, Tomo refúgio no Dharma, Tomo refúgio na Sangha…, o dia se inicia agora. Giro lentamente para colocar a almofada em seu formato certo, arredondado. Assim fica pronta para a próxima sessão de zazen. Minha esposa faz reverências ao mesmo tempo em que eu, mas é sempre mais rápida, cheia de atividade, uma bênção, uma companheira que se senta ao meu lado ano após ano.
estou imóvel. Pássaros cantam lá fora. Um avião passa. Um cão late. O mundo é cheio de vida. A mente recém-desperta tem pouco material a que se agarrar e apenas esparsos pensamentos passam, tão leves que não me recordo deles segundos depois de seu surgimento.
Faço o café, dou ração à Shanti, uma rottweiler tão pacífica que a dizemos budista. Ponho comida para pássaros nas bandejas penduradas na árvore Boddhi do quintal. Dezenas de pássaros em breve estarão aqui, acostumados que são com esta oferta. Sento-me à mesa, vendo através da porta envidraçada a sua festa. Comemos com eles. Acomodo-me diante do computador. Há uma janela à minha frente, pequenos arbustos do jardim. A luz clara da manhã incide no muro. Seus limites são nítidos. Não há vento e as folhas estão imóveis contra um céu azul. Tudo é muito belo. Um caminhão passa pela rua. Uma grande calma. Um frescor habita em mim, uma felicidade que não pode ser chamada de alegria, tão serena ela é. É a mesma mente do zazen que continua
Umcomigo.e-mail
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é a primeira coisa que abro.
“Estimado Sensei,
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Este mês foi muito difícil. Havia perdido quase todos os resultados da prática. Lutei com as mais diversas manifestações do ego, da raiva à inveja.
Compreendi a fundo o papel do Mestre e percebi que somente eu mesmo posso conduzir a minha existência, ele somente orienta, mas eu mesmo devo caminhar. A seguir, senti-me sozinho e desamparado demais; seria ótimo se houvesse um Deus ocupado em confortar a minha existência. Não me dou ao trabalho de solicitar auxílio: ele não vai atender. Vendo todas as possibilidades egoicas que estava abandonando, sentime pequeno, solitário, sem relevância (e percebi que realmente sou sem qualquer importância). Apenas a senda, as coisas que o senhor me ensinou trouxeram-me o conforto. O caminho surge como alguma coisa inadiável e nada mais parece necessário.
A ansiedade e a depressão teimaram em assomar durante quase todo o mês. Elas não me deixaram dormir muito na primeira metade de agosto. 3 ou 4 horas no máximo. Mas consegui derrotá-las completamente, dispensando os medicamentos. Tornei-me um observador das manifestações físicas e psíquicas da depressão. Com esta não me identifiquei. E ela desapareceu. Aceitei de bom grado o fato de que posso morrer amanhã e a ansiedade sumiu também. Não há incômodo em perder nada, quando nada mais há para Minhaperder.mente está cada vez melhor e durmo muito bem, atualmente. Minha prática já recomeça a mostrar resultados e visões internas. Em
Todos os dias sou acossado pelas manifestações egoicas. Elas são cada vez mais visíveis e incomodam… são desconfortáveis como espinhos. A compreensão dos preceitos está ali como filtro – para o que é bom e para oque não é. Observo os meus sentimentos: ora sou bondoso, compassivo com os seres, ora sou mau, raivoso, invejoso, cobiçoso etc. Refutar as más manifestações é um exercício intenso e exaustivo.
Sinto-me cada dia mais revigorado física e mentalmente. Este vigor traz perigos para a prática. Preciso redobrar a vigilância. A batalha é significativamente maior.
Mas tudo é incerto e subsiste a partir de um embasamento perecível. Deveria me apegar a isso? Acho que não.
Gasshō, Sensei.”
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minhas caminhadas, observo, por acaso, cadáveres de animais, vacas e cavalos que foram belos um dia. Surgiram espontaneamente fora do zazen alguns insights sobre a natureza repulsiva da carne... sangue, vísceras, graxas, líquidos e humores fedorentos... eis a carne... construímos toda uma empáfia em cima dessas coisas tão perecíveis. Afinal, a carne é uma experiência terrivelmente intensa e ilusória. Não quero me tornar um detrator da experiência da carne, como o são os cristãos, já que tudo o que sou ocorre dentro dela. Começo a duvidar de que minha carne alcance algum despertar.
Há coisas agradáveis também. As experiências extáticas e o contentamento retornaram. Algumas manhãs foram muito luminosas, nestes últimos dias. Nesses momentos, há perfeita equanimidade.
Respondo: “Sua descrição está muito boa e plena de novas descobertas; afinal, sente você que encontrou algo e, enfim, pode começar a dispensar os medicamentos que foram tão importantes durante este tempo até agora. Fico muito satisfeito com isto. Você agora inicia o segundo passo. Tanta coisa a descobrir, não é verdade? Abandonar os deuses e as fantasias de um socorro sobrenatural já é uma grande vitória. Continue sem desalentar, o caminho da libertação não é fácil, mas é altamente compensador.
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A seguir, um novo texto de Ido. Suas mensagens são de profundo interesse para mim. Sim, ele está percorrendo os “passos do boi”. Na famosa alegoria Zen, “boi” é uma metáfora para a mente que ohomem descobre, e precisa enfrentá-la, e dominá-la. Tornar-se senhor de sua mente é o que Buddha recomenda. Quantos são arrastados por seus desejos e impulsos? Ser senhor de sua mente é uma tarefa difícil. Mergulhados em um sonho, os homens correm atrás de ambições e realizações, e elas se mostram com o tempo vazias de significado. O primeiro passo é estar consciente de uma busca, uma insatisfação com tudo que lhe foi apresentado, com tudo que foi construído para consolar e não enfrentar a realidade tal como é. Os que sentem isso podem empreender o início do caminho, mas é fácil perder-se em trilhas obscuras, deixar-se levar por eloquentes guias – eles mesmos perdidos em meio às brumas da existência:
Genshō.”Gasshō
Sabia que havia algo a alcançar, mas a sensação de nenhum avanço estava sempre presente, embora o mestre insistisse que deveríamos nos sentar sem metas, sem objetivos. Estava já bem estabelecido em meu íntimo que havia achado um lugar de prática espiritual, um caminho que tinha algo a ver comigo. Me sentia confiante de que havia encontrado minha casa.
A partir daquele retiro em que ocorreu nosso primeiro encontro, senti que havia visto as pegadas que levavam a um caminho possível para mim. Encontrei um mestre profundo, o que foi inspirador. Envolvi-me emocionalmente com uma pessoa especial, Jane, uma violinista dedicada e praticante do Zen que muito me ajudou com suas palavras. Um relacionamento cheio de Praticandopaz.
o zazen, lendo os abundantes livros disponíveis, frequentando uma comunidade zen budista – pequena, mas sob a guia de um antigo monge acolhedor, meu saudoso mestre, Sensei Hirano –, fui ouvindo suas parcas palavras e sentando-me regularmente junto aos seus alunos. Ele era pequeno e magro, sentava-se muito direito e ganhava a vida fazendo shiatsu e acupuntura em clientes regulares.
Genshō Sensei,
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Sentia que tudo me impressionava; o som do sino parecia nítido e brilhante ao fim do zazen. Quando me coube tocá-lo, ao longo de uma sessão de meditação, percebi como era difícil tocar três vezes seguidas em um intervalo perfeito e com intensidade igual a como o mestre fazia.
Minha mente estava límpida a este tempo, os companheiros me pareciam puros em seus propósitos, calados, imitando o mestre tão lacônico este era. Às vezes após o zazen, tomava chá mudo como um peixe, se alguém fazia uma pergunta respondia com uma simples frase. Lembro de um aluno que perguntou: “Mestre, e Deus?”. E ele respondeu: “Assunto não verificável, se você acredita em um deus, está bem, se não acredita está bem também”. A sala ficou em silêncio estupefato.
Cada gesto seu me parecia uma lição, quando falava, suas mãos pareciam gerar mudras no ar perfumado de incenso do zendō. Meu íntimo parecia ser purificado pelo som do sino e pela atmosfera da sala, como um mundo elevado e distinto daquele em que eu vivia mergulhado em competições e invejas veladas.
À
Além do Pico da Montanha: CHEGA OUTRA MARGEM
IDO
Mais tarde, aprendi que assim era a mente de principiante, tão louvada dentro do Zen pela seriedade que o recém-chegado dá às coisas. Pela sua capacidade de aceitar com devoção. Mente que se vê ser perdida facilmente por alguns que obtêm alguma experiência e, então, ficam encantados consigo mesmos e começam a
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“Na madrugada do terceiro para o quarto dia, às 2h30 da manhã, despertei abruptamente. Eu estava em choque com o sonho que tinha acabado de
Ido tem razão. É frequente alguém com pouca experiência achar que “já sabe”. Aí a vaidade tem grande papel e a mente de principiante se perde. O praticante aprende algo, então quer mostrar seu saber, mostrarse para os novatos, para o professor, quer mostrar que aprendeu alguma coisa. Não se pode lhe ensinar nada sem que ele acrescente algo para demonstrar seu conhecimento: “Ah, isso eu já sei”. Isso é ter perdido sua inocência. Ele se sente um veterano.
se dar importância. Sentem-se como se fossem mestres, falta-lhes o receio de serem fraudes, impostores. Lamentavelmente não duvidam de si mesmos.
Os retiros atraem muitos participantes e, lá, temos a oportunidade de testemunhar exemplos da abertura da mente de principiante que busca, até em sonhos, vivenciar os primórdios das experiências que surgirão no futuro. Uma carta que demonstra isso, chega a mim logo após um sesshin. O praticante, conta-me seu sonho:
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Por essa razão, desenvolver a humildade, uma mente de não saber, de se calar, é essencial. Ao iniciante no Zen, pede-se que abandone a religião das glórias, para entrar em uma de nenhum mérito pessoal. Isso pode ser percebido na prática. Um principiante, quando realiza uma tarefa ou cerimônia e erra, não se importa muito com isso, porque ele sabe que pode errar; ao passo que quem perdeu a inocência envergonhase por ter errado, ou justifica-se, ou fica triste pela falha.
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Além do Pico da Montanha: CHEGA MARGEM
Contudo, o ponto alto dessa descoberta foi a lembrança do sonho que tinha me acordado naquela madrugada. Sonhei que um pequeno sino que era tocado por um monge. No sonho, eu corria para não perder nada, e, de repente, em uma das dependências do centro de meditação, formava-se uma fila de praticantes. Todos de preto – com seus samuês e suas mãos em shashu. Era uma cena cinematográfica, com frio, silêncio e uma bruma. Parecia um filme de Akira Kurosawa, algo de medieval naquilo tudo. O silêncio das pessoas e o barulho do sino marcavam o sonho. Cada toque correspondia a um passo, e assim a fila avançava. Eu não sabia para onde estávamos indo, só sei que havia uma porta, e a fila de praticantes
Umavançava.monge
ter. Comecei a chorar compulsivamente, tentando fazer o menos barulho possível, para não acordar meu companheiro de quarto. Eu estava emocionado e profundamente tocado, com um forte sentimento de abertura para os outros colegas de sesshin, a sangha. Me sentia conectado com as pessoas que estavam partilhando comigo aquela experiência incrível. De uma só vez, passava em minha mente os rostos de todos, monges ou não, que faziam o retiro. Parecia que aquele acontecimento singular era uma grande pintura, em que cada pessoa ali presente dava o contorno à beleza do quadro. Ninguém, absolutamente ninguém, era dispensável.
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nos conduzia, e as badaladas eram um chamado. Do fim da fila eu podia ver a porta com uma luz clara saindo dela. Eu não sabia o que havia dentro, apenas seguia o andar da fila. Em pouco tempo, era a minha vez. Olhei o monge em seus olhos fundos e depois a porta à minha esquerda que dava para uma escadaria. Ela conduzia todos nós para o alto, como se subíssemos aos céus. Uma luz forte não me permitia ver o que tinha
À OUTRA
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Daí tive uma compreensão: não se tratava apenas em pacificar e concentrar minha mente, trava-se de esquecer de mim mesmo e fazer pelos outros. Os senseis, os monges, os praticantes mais antigos e os novatos; enfim as pessoas e os seres eram mais importantes do que a minha vontade de despertar. Ou melhor, despertar sem compaixão parecia uma contradição. Senti-me como um garoto tolo que só pensava em si mesmo e não conseguia ver as pessoas em seu entorno. A mente da compaixão, uma coisa que me parecia tão distante, passou a fazer algum sentido após aquela experiência. Compaixão, me parece, é se sentir fortemente conectado com todos a sua volta.”
A prática do zazen começou a pacificar minha mente. Meu estado mental era agitado, sempre tomado por raciocínios e expectativas. Mesmo meu treinamento em aulas de karatê, que havia iniciado, estava cheio de medos remotos, infantis, e de espírito competitivo. Sentado em frente à parede, via surgir, um após o outro,
Ido prossegue:
lá em cima. Porém, na parte debaixo, tudo era muito nítido: os degraus da escadaria. Tais degraus, no entanto, não eram de madeira, pedra ou cimento, eram formados pelos monges que se curvavam um após o outro para que subíssemos em suas costas em direção ao alto. Cada monge era um degrau que nos permitia ascender. A escadaria do meu sonho era um portal, onde éramos encaminhados para realizar o caminho do Desperto, ocaminho do Buddha. Quando vi isso, chorei muito e o sonho acabou. Acordei em prantos.
E xiste um problema em olhar o kenshō, (ken “ver” e shō “verdadeira natureza”) como um objetivo. Ao ambicioná-lo, a simples tensão ocasionada pelo desejo de chegar lá é suficiente para torná-lo
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os pensamentos que retratavam meu estado mental.
Percebi que o zazen me libertava da turbulência da mente, que ela se aquietava progressivamente – não sempre. Às vezes, sentar-se para meditar era frustrante, mas o acúmulo da prática causava um efeito cada vez mais profundo. Muitas vezes tinha que usar o processo inicial de contar as respirações, perdendo-me em meio ao caminho até o dez. Não era fácil, mas fui ficando mais hábil em colocar rédeas em minha própria mente. Outras ocasiões, chegava a uma nova dimensão, um contentamento em estar com uma nova mente se instalava. A luz parecia mais brilhante, as formas mais nítidas, como que renovadas. Porém era só isso. As palestras do mestre que tocavam na possibilidade de ver minha própria natureza, obter uma experiência de kenshō, longe das ilusões de um eu particular, pareciamme algo inalcançável.
Além do Pico da Montanha: CHEGA OUTRA MARGEM
Eu sofrera a vida inteira dessa inquietação e de um sentimento de falta de sentido que me obrigava a permanecer sempre buscando uma felicidade. Ela me escapava como um pássaro que se tem na mão e subitamente alça voo sem que esperássemos.
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impossível. Por essa razão, ele costuma ocorrer sem que sequer o estejamos buscando, de surpresa, sem planejamento algum. Uma boa explicação é o termo experiência mística. Realmente não tem ego, existe uma sensação de unidade com todas as coisas, que subitamente são diferentes do que eram até agora. Na primeira consideração, no primeiro pensamento, o kenshō se esvanece. Ao pensar em contar sua experiência, pronto, já se foi. “Não posso perder essa sensação”, ela some. É frágil e não muda sua vida. Você continua o mesmo, só tem a memória da experiência. Na realidade, é um momento de iluminação. Só que você não é proprietário dele. Assim como veio, foi. Ao passo que no satori , você pode recuperar essa sensação a qualquer instante. Você é o proprietário.Édiferente de qualquer outro estado. As drogas, por exemplo, dão sensações que duram um tempo limitado e a pessoa não é a proprietária delas – e, ainda, há inúmeros problemas a elas associados, como o vício e a própria destruição. Elas não são a solução. É o oposto do que estamos falando. Estamos falando de libertação. Nós podemos até dizer que as pessoas que têm algum tipo de experiência no Zen sentem uma espécie de vício no zazen. É tão bom o que você começa a obter, que você não pode mais parar de praticar. Se parar, você se sente entristecido. Mas mesmo chegar a tais benefícios dá trabalho, você tem que se sentar, não é como tomar uma droga. Então, é bem diferente.
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Quando começamos no zazen, esse segundo estágio que Ido está narrando acima, pode demorar muito tempo a ser alcançado. Isso porque basta que nos sentemos e nos acostumemos a nos distrair, a pensar, a viajar para trás e para frente. Muitos, assim, continuam a
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fazer isso durante anos: sentar-se em zazen para se acalmar, mas com a mente viajando para o futuro e o passado. Deixamos isso acontecer e não conseguimos ficar no momento presente, só ouvindo os sons, só entrando em samadhi , desligando-se de si mesmo em concentração. É por isso que a primeira prática é conseguir um estado de samadhi: sentar-se e ficar naquele momento, pegar a mente viajante e a cada instante trazê-la de volta; isso é muito difícil. Então, não basta sentar quieto, é necessário esse esforço mental, uma luta real para trazer a mente de volta; estar presente, não se deixar distrair. O sesshin, um longo retiro, é o melhor momento para isso, pois repetimos um zazen após outro.
Além do Pico da Montanha: CHEGA À OUTRA MARGEM
Recebo outra mensagem que interrompe minha leitura de Ido. Ela expressa bem o início do caminho, me é inspiradora. É de um aluno recente, cujo contato ocorre a distância:
“Mestre, estou lhe escrevendo hoje apenas para agradecer por tudo que já me ensinou; apesar de nem sequer nos vermos pessoalmente, sua presença está em tudo que faço hoje. Li seu livro, achei impressionante, mas não foram as palavras, foram as pausas, os silêncios na narrativa, tão humano, tanta luz nos ensinamentos e na vida.
O Zen tem me ensinado que não vamos até a iluminação, mas que ela é oencontro com todos os seres, iluminamo-nos juntos; sentados em zazen, podemos perceber isso. Sempre fui um homem de estudar, de falar, de lutar, de discutir e de debater devido a minhas formações acadêmica e marcial, mas hoje aprendi o quanto o silêncio e a gentileza podem ensinar, não só as palavras silenciadas, mas os conceitos, a mente.
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Escrevo isso chorando, e nem mesmo sei por que meu coração se enche de felicidade, mas de uma felicidade que eu não consigo nem expressar, é como se a vida inteira chorasse em mim, de êxtase, de alegria.
Que estar aos seus pés, aprendendo o caminho de Buddha, seja o meu Obrigadocaminho. por tudo, Sensei. Gasshō”
Acho emocionante receber isso, mas é apenas o Dharma influindo. Os ensinamentos têm tal força que superam muito o papel daquele que os transmite. Não penso que o monge em mim tenha mérito. O mérito é do Dharma, dos mestres que me antecederam. Sintome pequeno diante dos resultados e das modificações, em tantas vidas, produzidos por simples palavras.
Tudo que Ido narra está mergulhado nesse mesmo conceito. Ele procurava um caminho e o encontrou. A cada passo sua mente vai se transformando. Suponho que esses mesmos sentimentos narrados pelo meu aluno distante sejam comuns aos praticantes que começam a descortinar os primeiros resultados de se sentar em zazen.

Um rouxinol gorjeia num ramo,
O Sol brilha nos salgueiros ondulantes.
CAP III
Ali está o Boi, onde poderia esconder-se?
Essa esplêndida cabeça, esses cornos majestosos, que artista poderia retratá-lo?
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coisa aconteceu há pouco... Estava sentado lendo um livro de John Daido Loori sobre liturgia Zen quando, em certo trecho, um ‘estalo’ aconteceu e o coração acelerou.
Voltei-me para dentro de casa e, ao andar pelos cômodos, deu-me vontade de rir... que lugar é esse que sempre esteve aqui? As impressões estão arrefecendo, mas ainda não voltei ao estado anterior. Senti todo o mundo ao meu redor como minha mente, e acho que essa foi a razão do riso quando andei pela casa: estava andando em mim...”
Uma experiência de kenshō me chega relatada por e-mail de outro aluno:
Comecei a olhar ao meu redor e era para mim mesmo que estava olhando... a planta à minha frente parecia saltar em minha direção cheia de vida... me levantei e fui olhar a paisagem da varanda... minha sensação era que havia rompido o véu do santo dos santos e adentrado o sagrado... o mar que vi à minha frente não era o mar que estava acostumado a ver... os telhados das casas todos me pareciam perfeitos (e sempre achei todos feios)... uma empilhadeira lá longe me parecia fazer movimentos perfeitos... a garça que voava sobre o mar e os carros que circulavam nas ruas, todos cheios de movimentos perfeitos e em perfeita harmonia.
Muitos creem que as experiências de iluminação são coisas do
Alguma“Sensei,
Essa experiência, embora significativa, não costuma representar uma revolução na vida. Tudo continua como antes, mas se sabe que aquilo existe, que é possível outra mente. Porém se não se prossegue, a visão se torna uma lembrança apenas. Uma memória de um momento extraordinário. Por isso, o mestre costuma dizer que agora é que começa ocaminho.O
Mas crer que tais experiências iniciais são uma iluminação profunda é um grande engano. São somente um vislumbre do que é a nossa verdadeira natureza. São como levantar um véu e ver que há luz do outro lado, que há outro mundo completamente diverso do mundo do samsara. Do mundo da perambulação e das ilusões em que vivemos. Um outro que está logo ali além do sonho desta vida.
passado ou de sábios misteriosos do oriente retirados em montanhas remotas. Não é verdade. A iluminação é possível aqui e agora. Basta treinar a mente em um processo regular e dedicado, e ouvir os ensinamentos que o terreno preparado pela prática permite o brotar da experiência de kenshō.
que o praticante precisa fazer é, agora que não depende de confiança ou fé no caminho, prosseguir tentando ir mais fundo. Repetir experiências de kenshō mais fortes e mais longas tantas vezes quanto conseguir. Praticando sem cessar, como fizera antes, embora se se tornar ambicioso, jogará tudo fora. Se sair dizendo aos outros que obteve algo, será como quem coleciona cascalhos achando ter joias nas mãos. Como a princípio elas só surgem de inopino, inesperadas e fugazes, o praticante não tem ideia da mente que deve ter para desencadeá-las; tal domínio
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UmSensei,dia, estava em um Sesshin com mestre Hirano, e, no retiro, a repetição dos períodos de meditação me arrastava cada vez mais fundo dentro de mim mesmo. Um samadhi fácil começou a ficar frequente. Mal me sentava nos períodos de zazen, já entrava em uma calma profunda e surgia uma mente em que a única percepção era o todo à minha volta. Os sons eram percebidos como presentes dos céus. Mesmo quando caminhava para a sala de prática, em plena madrugada, meus passos pareciam flutuar sobre uma terra abençoada.
Um texto de Dogen estava presente, como se inscrito nas pedras do caminho. Ele fala na imersão total dentro do ser cósmico, que isso seria alcançado por meio da prática do zazen. E hora após hora, eu mergulhava em contentamento, ouvindo o canto dos pássaros, sentindo a dor nas pernas imóveis há demasiado tempo. Repleto de agradecimento por aquele lugar de paz.
Houve uma chuva leve. Do beiral do telhado surgiu um gotejar. Sem nenhum motivo, tudo pareceu diferente. Todas as coisas estavam como antes, mas um campo
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surgirá só muito mais tarde.
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Além do Pico da Montanha: CHEGA OUTRA MARGEM
Ido aparece em minha caixa postal com mais relatos:
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Não havia mais fim nem começo. Era tão maravilhoso e feliz que, de repente, tive medo, medo que acabasse. E pronto, estava ali de novo, a parede à minha frente, a claridade no céu crescendo, anunciando a alvorada. Uma dor nas costas. Um aroma de incenso, meus companheiros sentados na penumbra. Os segundos correndo sempre para a frente, como se dissessem que este momento não volta. Repetida e incansavelmente. Pedi um dokusan, uma entrevista com o mestre. O encarregado, sem palavras, anotou meu nome na lista da tarde. Quando chegou minha vez, fui até a sala do mestre que me recebeu afável, como sempre. Vi como envelhecia nas rugas de seu rosto, mas como dedicadamente ficava ali, ouvindo aluno atrás de aluno sem parecer se entediar. Ouviu meu relato, cuidadosamente e disse: “foi um breve kenshō, fico muito feliz com isto”. Agora podemos dizer que você inicia o caminho. Até então, foi simples busca cheia de dúvidas, mas com isso você sabe, além de qualquer dúvida, que a iluminação existe. Você teve um vislumbre dela. Temos que trabalhar mais, você precisa ir mais fundo. Repetir, aprofundar, mais vezes levantar este véu, até que saiba como fazer surgir essa experiência.
infinito de manifestação transfigurava o mundo. O gotejar era nítido e brilhante, pura felicidade, nada lhe poderia ser tirado nem acrescentado. Uma luz dourada parecia envolver o universo, e meu corpo nada mais era que uma partícula luminosa pairando em meio a tudo.
Si m, Ido, naquela altura de seus relatos, havia visto apenas o rastro e aEcauda.lecomplementa:
Além do Pico da Montanha: CHEGA OUTRA MARGEM
Este momento foi muito marcante, porém o mestre tratou de colocá-lo em uma perspectiva menor. Um mero vislumbre, uma visão fugaz. Sem que houvesse domínio e controle. Estava no começo. Mas, por outro lado, uma felicidade por ter chegado a algum ponto ficou comigo.
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Isso é o terceiro passo, conhecido como “vislumbrando o boi”. Enfim o aluno teve uma visão, mesmo rápida e evanescente, da chamada verdadeira natureza. O universo tal como é, quando a ilusão da identidade foi suficientemente enfraquecida. Ela só pode ser chancelada, na escola Soto, por um mestre que, por sua vez, tenha sido reconhecido por outro. O grande mestre Dogen Zenji escreveu um texto explicando que só um Buddha pode reconhecer um Buddha. Tentava explicar que é preciso conhecer a experiência para reconhecer quando outro teve algo similar. Mestre Hirano fez isso para Ido, reconhece que sua visão foi legítima e não uma fantasia. Não é somente a narrativa, que, afinal, pode ser imitada, mas também algo mais nos olhos e atitude gerais do aluno.
Na minha vida, na realidade, nada mudou. Continuei amando e partilhando as coisas boas com Jane e seu caminho artístico focado na sensibilidade. Sua prática
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Ido continua:
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Buddha também havia trilhado caminho similar ao que se nos apresenta. Seis anos estudou com mestres yogues, indo cada
A prática de um instrumento musical, como acontece em muitas artes, não surge sem um esforço, muitas vezes invisível. Quem ouve um concerto, com suas milhares de notas decoradas por um solista, não vê as incontáveis horas de treino solitário. O padrão nos países em que se leva isso a sério é esperar do aluno ao menos 6 horas diárias com o instrumento. O talento não basta. Exercícios e a repetição sem fim de cada trecho, até que esteja automatizado em seu dedilhado e permita ao artista concentrar-se apenas na interpretação, são o alicerce do grande intérprete.Shakyamuni
disciplinada da arte, a repetição em busca da perfeição a um ponto obsessivo, era como uma lição de como se faz para alcançar a excelência.
Vejo ali em Jane o exemplo. E a prática do caminho Zen da espiritualidade é idêntica em seu esforço constante, em seu foco que não se desvia. Horas sem fim nem medida se acumulam com progressos que parecem insignificantes. Até que, enfim, a luz começa a surgir e expulsa as sombras como se fora fácil. Ao que ouve a execução de uma peça ou ao que olha um comportamento perfeitamente natural e despretensioso, com nada de grandiosidade ou empáfia, de um bom mestre Zen, não suspeita as dores e lutas privadas que ambos enfrentaram para chegar àquele resultado.
C omo se uma luz o invadisse, Buddha viu dissolverem-se todas as suas inquietações. Os sacrifícios e o longo treinamento haviam valido a pena. Então Buddha havia passado pelo sétimo e oitavo passos, em que o satori já se apresenta, e chegado ao nono, quando o seu kenshō de mais alto grau se converteu em uma iluminação completa e perfeita. Ido, apenas chegou ao terceiro. Esses passos são como uma escala logarítmica, cada passo é dez vezes mais que o passo anterior. Uma escala exponencial.DesdeBuddha, muitos monges Zen têm completado seus treinamentos monásticos antes de ter uma experiência de kenshō. Muitos demoram 20 anos, porque não trabalharam o suficiente para tanto. Mesmo assim, por múltiplas razões institucionais, podem receber mantos de mestre e lhes ser permitido fazer cerimônias. Em toda a história, durante séculos, grandes mestres têm lamentado tais fatos, de acordo com eles, indicadores de decadência. Mas aqui e ali, luzes brilhantes surgem e a lâmpada permanece acesa nas mãos de alguém. O problema de achar um verdadeiro mestre continua tão agudo como o foi para Dogen Zenji, peregrinando sem desistir até encontrar Tendo Nyojo. Aos praticantes de hoje, dizemos que há algo como o kenshō. Uma
vez mais fundo, mas sem ficar satisfeito. Evidentemente, teve muitos kenshō durante esse tempo. O satori , o salto para dentro da experiência de modo que ela passou a ser seu estado normal, ocorreu ao ver a estrela da manhã, ao fim de sete dias de esforço denodado. A partir de então, podia estar em kenshō, vendo sua verdadeira natureza e a verdadeira natureza de todas as coisas sempre que desejava. Por essa razão, é como se uma luz dourada sempre o envolvesse.
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Há alguns anos, meu mestre, Saikawa Roshi, presidia o sesshin no grande zendō de piso de granito no Morro da Vargem. Trabalhava para ele como tradutor de suas palestras em inglês. Ele queria obter respostas dos alunos, respostas que lhe mostrassem realização espiritual. Há época, eu era apenas um noviço, embora tivesse sido chamado para o cargo de Shuso – aquele que vai se graduar como monge aprendiz e atua como cabeça dos monges em treinamento, orientando-os.
experiência mística que pode ser alcançada. Muitos se contentam com os primeiros frutos de se sentar em meditação: calma e serenidade. Acham tão valoroso esse alvo, que a meditação, em seus aspectos mais básicos, tornou-se mercantilizável, pode ser vendida como uma técnica a mais; os objetivos espirituais e elevados foram descartados para se ter algo simples. Há um bom lado nisso, no entanto, porque alguém que assim inicia pode se sentir tentado a procurar algo mais profundo; terá sido uma porta de entrada.
Mas para o praticante sério do Zen, nada menos que chegar ao kenshō pode importar. E, para isso, deverá investir em se tornar senhor de sua mente. Aí surge outra armadilha. Quando cruzam o terceiro estágio, alguns ficam fascinados, pensam que atingiram a experiência de Buddha. Como se tivessem subido a mais alta montanha, desejando ver a paisagem, e sem cogitar que haja uma verdadeira cordilheira à sua frente, pensam haver chegado. Tudo o mais lhes está oculto pela neblina, subiram meramente um contraforte. Sentem-se certos e capazes de prosseguir sozinhos, orgulhosos que estão. Descem e dizem aos outros que chegaram ao fim do caminho. Mas há uma grande distância entre sua visão e a de Buddha em conteúdo, beleza, perfeição e completitude.
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Além do Pico da Montanha: CHEGA OUTRA MARGEM
Adiantei-me e sentei-me no zafu à frente da mesa. Ele me olhou sem nada dizer, apenas sorrindo, encorajador. Iniciei minha história
No início da noite, o Roshi se levantou do zazen e disse: “venham até mim e me mostrem sua realização!”. Saiu do zendō, e se dirigiu a um prédio vizinho onde uma sala havia sido preparada para as entrevistas. Mergulhava na sucessão de experiências meditativas, sessão após sessão, influenciado pela presença do mestre ao meu lado. Sua energia e amorosidade ímpares em um corpo miúdo e frágil. Resolvi levantar-me e aceitar seu desafio. Ao sair, achei uma pequena fila de candidatos do lado de fora do prédio vizinho, onde se davam as entrevistas. Após mim, monja Sodō, minha mais antiga aluna, a quem o Roshi havia ordenado, dado que eu não poderia fazê-lo porque não tinha graduação de mestre.
O zendō é amplo e o monastério, uma obra magnífica, fruto do trabalho de 40 anos de um monge esforçado. Já narrei em um livro anterior seu ambiente tropical e descrevi os macacos pulando de galho em galho, visíveis das janelas do templo em plenas cerimônias.
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A lguns entraram e saíram, conduzidos pelo monge encarregado. Víamos distante a janela da sala de entrevistas no meio da noite perfumada pela floresta atlântica. Chegou minha vez. Subi as escadas de madeira à minha frente. No patamar superior, logo após os degraus, um zabuton indicava onde deveria fazer prostrações para o mestre – três prostrações até o chão tocando o solo com a cabeça, as mãos com as palmas para cima, ao lado das orelhas, prontas para receber os passos de Buddha. O mestre aguardava sentado a uma mesa baixa, sorridente como costumava ser.
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Não percebia como ele sabia isso, tão verdadeiro era, com um método tão surpreendente. Sentou-se novamente, feliz, e disse-me que apenas agora começava o caminho.
— Dê-me seu ombro! – E, levantando-se, bateu com força em minhas costas.—Apesar de tudo, ainda há um “eu” aí dentro – observou, depois de estalar o bastão duas vezes em meus ombros inclinados.
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— Então, que me diz do som de uma só palma? – certamente referindose a um famoso kōan Zen: “Duas mãos fazem o som de palmas, qual o som de uma só mão?”.
Falei imediatamente, revelando meu entendimento e, para enfatizar, bati a mão aberta, na mesa à minha frente. Seus olhos se encheram de lágrimas.—Nada pode fazer o professor mais feliz do que ver seu aluno chegar a esse ponto – observou. E tomando o kyosaku (longo bastão para bater nas costas do aluno), disse-me:
— Me teste! – Vi que ele apreciou a atitude desafiadora e ripostou imediatamente:—Quemévocê?Respondiimediatamente, mas percebi que não era suficiente, essa pergunta tão comum podia ter uma resposta adrede pensada.
falando sobre o canto dos pássaros e como os ouvia no zazen. Ele respondeu que isso era comum e nada demais. Senti que tinha que ir bem mais longe para corresponder a suas expectativas e, olhando firmemente para ele, disse:
Depois de novas prostrações desci as escadas como se nas
Na viagem de volta para S. Paulo, coube-nos assentos distantes. Mas Saikawa Roshi pediu a quem estava a meu lado que cedesse o lugar e sentou-se comigo. Conversamos, como pai e filho. Senti o privilégio e o carinho. Naquele ano fiz meu Hossenshiki (combate do Dharma) e assim ele foi meu mestre de ordenação monástica, meu mestre de Hossenshiki e depois, meu mestre de transmissão. Tornei-me, então, seu sucessor na linhagem, uma responsabilidade imensa na qual sempre me sinto insuficiente perante as qualidades superiores de meu mestre.
Não soube exatamente o que responder, mas nada havia sido quebrado, um “eu” tinha ficado rachado, se tanto…
— Parecia que iam quebrar tudo lá dentro! Ouvia daqui!
Ido acrescenta uma observação:
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nuvens. Mal podia conter a alegria de, embora com restrições, haver obtido alguma aprovação. No trajeto de volta, monja Sodō me sorriu e falou intrigada:
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Ficou claro para mim que experimentar um kenshō nada mais era do que o que Hirano Sensei esperava dos alunos. Pacientemente ele ficava nos sesshins ouvindo as histórias de vida, os pequenos problemas de relacionamento, as dúvidas e perguntas infindavelmente repetidas dos alunos. Respondia a cada um sem se alterar, esperando que alguém atravessasse a porta com alguma experiência mais avançada. Aguardava por anos o amadurecimento de um aluno. Às vezes os via
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Além do Pico da Montanha: CHEGA OUTRA MARGEM
Os mestres são diferentes em sua forma de ensinar. Normalmente oaluno se sente encorajado para prosseguir, afinal teve um vislumbre do que pode alcançar. Pode imaginar como seria estar do outro lado do véu e usufruir daquela visão permanentemente. Isto seria o satori , odomínio do kenshō, a possibilidade de retornar a ele quando quiser, a verdadeira iluminação. No entanto, há muitos relatos de praticantes que demoraram muitos anos para chegar à primeira experiência e mais ainda ao satori , se é que a ele chegaram. Pode ser que isso ocorra em rápida sucessão, e um despertar genuíno sobrevenha repentinamente, mas normalmente esses eventos ocorrem depois de uma exaustiva busca ou de um evento traumático e esgotador. Na verdade, o relato de Buddha até chegar a uma iluminação tão profunda que nada deixou atrás de si é
se perderem, ora porque, em uma repreensão ou mera correção, se sentissem diminuídos ou humilhados, ora por se verem tomados por uma confiança em suas pobres realizações iniciais, por terem sentido emoções, transes e tratassem de seguir algum caminho próprio adornado com os louros da vaidade.
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Experimentava samadhis com certa facilidade, aquele sentimento de presença plena esquecida de si mesmo, de percepção pura do momento, cheia de contentamento calmo e paz. Mas ele era instável, frequentemente rápido, evanescente. O mestre me encorajava silenciosamente com uma atitude de aprovação, sem o mais leve elogio, pelo contrário, me instava a ir mais fundo, como se estivesse insatisfeito com minha pobre realização.
Além do Pico da Montanha: CHEGA À OUTRA MARGEM
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de um esforço quase à morte durante seis anos sem descanso. Tanto uma abordagem gradual quanto uma que se dê em um salto estão sempre ligadas a uma grande determinação e persistência. É preciso um esforço, acúmulo de muitas vidas de busca, para alcançar um despertar genuíno.
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CAP IV
Ele precisa agarrar o laço com firmeza e não o deixar escapar porque o Boi tem ainda tendências doentias. Ora se precipita para as montanhas, ora vagueia numa garganta nevoenta.
“Chegamos para uma visita a uma paisagem montanhosa (é um lugar de tirar o fôlego... coloquei uma imagem em anexo). Saí da van e me sentei sobre o muro de pedras que fica em um mirante, de onde se vê toda aquela imensidão. De imediato, um silêncio sem explicação tomou conta, aquele mesmo silêncio, que mais parece um vácuo, que sentimos no zazen. Instantaneamente, foi como se um zoom fosse dado e a paisagem deixou de ser paisagem, ela perdeu sua forma, na verdade... e por alguns segundos não tinha eu nem paisagem... uma (não encontro as palavras) fusão leve, profunda, intensa e delicada ao mesmo tempo... tão comovente que me emociono agora ao lhe relatar. Durou poucos segundos e deixou em mim uma espécie de emoção... No momento não avaliei ‘ah, foi isso ou foi aquilo’...na verdade nem pensei em nada.
67 Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
Uma aluna me escreve um relato significativo:
Nos dias que seguiram, senti essa mesma emoção profunda, intensa, delicada e leve mais duas vezes... dentro da van, olhando para a paisagem, mas, desta vez, não houve aquela fusão, apenas sentia a paisagem bem no meio do peito, não sei se é bem isso e nem sei como explicar, Sensei... Enfim, é isso. De lá pra cá, nunca mais tive nada parecido. Minha prática é instável, portanto, os zazen também são. Em alguns períodos, sento-me e faço zazens tranquilos, em outros, é um esforço sem tamanho trazer a mente de volta. Estranhamente, apesar disso, percebo que estes quase 10 anos de Dharma me transformaram, ou melhor, me ajudaram a encontrar, bem lá no fundo, uma essência que nasceu comigo, mas que era enevoada
68 Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
Há uma identidade subjacente a todos os relatos desse tipo, mas eles são enormemente diferentes de pessoa para pessoa. Mesmo o lugar onde ocorrem, às vezes em zazen, outras, muito mais frequentemente, em momentos completamente inesperados. Depois que os experimentamos, é relativamente fácil distinguir entre experiências legítimas e meras fantasias ou Vivenciarautossugestões.taiscoisas
Como lhe relatei ao telefone, não me preocupo com a evolução espiritual, mas não é por descaso. Não tenho aqueles anseios de atingir isso ou aquilo, parece-me tudo tão distante face à minha condição...
por comportamentos impulsivos.
Bem, é isso, Sensei.”
não é um privilégio do Zen budismo. Visões similares abundam nos diferentes caminhos espirituais. É claro que as interpretações do que se sente na experiência mística recebe as mais variadas explicações. Frequentemente, por exemplo, são descritas como ser tocado por um deus, ter uma teofania, sempre revolucionária para quem a experiencia. Distinguir de mera alucinação, coisa que ocorre com muitas pessoas, é tarefa do mestre. Makyo, no Zen, é o termo para as ilusões, enganos autoalucinatórios provocados também pela prática da meditação. Os relatos que estou agregando a este texto são de percepções legítimas. Tenho, com isso, a intenção de mostrar que não são “coisas que só ocorriam no passado”, mas que o kenshō é alcançável hoje; basta que a determinação de praticar o Zen esteja presente e seja persistente.
Acedi, sem perceber o enorme privilégio que havia recebido: em meio àquele grande grupo, ser convidado a ir ao monastério e sentarme ao seu lado no refeitório de altíssimas janelas. Passei a ir ao mosteiro, partilhar com os monges um pouco de suas vidas. Sentar-me no capítulo, a sala de reunião da assembleia. Aventurar-me no canto gregoriano com
Supor que se pode imitar as palavras e inventar experiências, com o fito de ter o que supostamente alcançou reconhecido por um mestre, é menosprezar as realizações místicas. Não basta um relato, é preciso algo mais que é extremamente difícil imitar, um algo que aparece no olhar e em cada detalhe dos gestos. E, além de tudo, esse esforço teatral em que alguns caem, desejando desesperadamente ser reconhecidos, é de uma inutilidade gritante. De que serve copiar a realização alheia se o mestre vai lhe pedir que traduza isso em sua vida? O imitador vai fracassar miseravelmente e não conseguirá iludir a si mesmo, navegando em mares de dúvida cujas ondas acabarão por encobri-lo.O
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primeiro homem em que vi uma realização espiritual foi Dom Timóteo, uma lenda hoje. O encontrei ao fim de uma missa na apinhada igreja do Mosteiro de São Bento em Salvador, em 1972. Em uma rápida roda de conversa em que ele falava com alguns fiéis, um amigo o apresentou a mim. Eu era um jovem de 23 anos, perdido entre as muitas trilhas da juventude. Rodeados por uma verdadeira multidão, todos demandando atenção da pequena e magra figura plena de brilho do abade, cercados por paredes que carregavam séculos de história, ele se inclinou levemente para meu lado e, sorrindo, perguntou-me: “Você gostaria de vir almoçar comigo e com os monges?”.
eles. Percorrer lentamente os corredores, pisando nos túmulos dos monges que nos antecederam – lápides sob nossos pés, para ter sempre a morte sob nossos olhos. Dom Timóteo foi o primeiro a me propor o caminho monástico, mas eu era jovem e recém-casado e, para mim, era impossível imaginar tal radicalismo naquele momento. Mas ele deixou sua marca.Com
Dom Timóteo aprendi uma única e grande coisa. Ele me disse que havia escolhido o caminho do monge quando sua esposa falecera. Tornara-se um erudito, um homem manso, também um herói que enfrentara a tropa que invadira o mosteiro após uma desordem em uma passeata de estudantes durante a ditadura. Mas quando a morte se aproximava, ele morreu em 1995, em mais uma conversa que tivemos, quando lhe fiz uma visita – eu vivia longe, então, no Rio Grande do Sul –, ele me falou que aprendera que a essência era estar profundamente presente no que quer que se fizesse. Esta lição da presença absoluta em um momento era a mesma do Zen que havia se tornado meu caminho. Ela permeou meu caminho à procura de um treinamento que me fizesse apreciar meu trabalho e dar a ele uma percepção espiritual. Se a espiritualidade não puder ser levada à vida diária, ela não tem sentido. Dom Timóteo, seguindo o monasticismo de S. Bento, havia atingido uma realização espiritual palpável que hoje entendo melhor.
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Ido compartilha mais uma de suas percepções:
Passei a entender “O céu, a terra e eu somos a mesma raiz; todas as coisas e eu mesmo somos da mesma fonte”. Muitas vezes, entretanto, parecia-me que meu
Ido compreendeu, teve um kenshō, seu mestre reconheceu isso: “Ah! você teve uma experiência genuína, você enxergou!”. Vimos, porém, oque acontece com o principiante, com aquele que começa a se sentar, que começa a praticar, e sabe que existe a experiência mística, e que pode vislumbrá-la. Ele pode facilmente perder sua inocência e se iludir com sonhos de grandeza, seguindo um caminho próprio. Afasta-se, assim, da escola, da senda, do mestre, e passa a ver defeitos em todas as coisas que, outrora, com a mente de principiante não enxergava. Ver a dualidade, bem e mal, é tomar de um fruto que leva à perda do paraíso.
Compreendi que não era um “eu” separado, mas, sim, uno com todas as coisas. Parecia, entretanto, que só momentaneamente isso tivera estado claro. Em todo otempo normal, era como se fosse tudo o mesmo, diferença alguma na minha visão comum. Frustrante. Cotidianamente minha mente se movia como sempre, sentia raiva dos vizinhos mal-educados. Era tomado pelos mais variados tipos de desejos e cobiçava vidas
À
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Ido reflete:
entendimento estava apenas em minha cabeça e não havia tomado meu ser. Os ensinamentos pareciam claros, poderia explicá-los sem hesitar, porém, verdadeiramente, não conseguia que eles estivessem presentes em minhas palavras e atos, muito menos em meus pensamentos.
Além do Pico da Montanha: CHEGA OUTRA MARGEM
IDO
um mundo luminoso, mesmo que de relance, fazia-me querer pertencer a ele, habitar aquela luminosidade e perfeição. Um mundo sem desejos, elevado à mais alta pureza. Porém me via sendo tão diferente dele que isso me afligia com decepção. Minha boca e meu corpo agiam de maneira a me envergonhar, por mais que desejasse me controlar, minha rebeldia inata estava sempre a vencer. Minhas forças eram insuficientes para me alçar àquele mundo que havia vislumbrado.
E, então, um kenshō, mais profundo que os vislumbres
abundantes mostradas nas telas onipresentes de nosso mundo. Me sentia vil como antes, habitando um mundo de sensualidades, pelo qual minha mente vagava
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O praticante que descortinou as primeiras fugazes visões da luminosidade tem ainda um longo caminho pela frente. Por essa razão, omestre lhe diz que agora é que começa o caminho. Mas o quarto passo exige mais. No zazen, ele perde a noção de tempo muitas vezes. Quando se dá conta, parece vir de remotas profundidades, de um pélago oceânico. Uma força visceral vem desabrochando e sua mente está límpida e desperta. Parece-lhe que nada pode atingi-lo, está de tudo protegido. Não há euforia nem penas, como se fosse ele mesmo uma antiquíssima rocha batida por ventos em uma montanha majestosa, inquebrantável, pacífica e imóvel.
Terambiciosamente.vistoeexperimentado
Uma outra carta, esta pós- sesshin, vem me ajudar a ilustrar esse ponto:
IDO
Além do Pico da Montanha: CHEGA À OUTRA MARGEM
Resolvi lhe escrever para compartilhar com o senhor a felicidade sem igual que estou sentindo. Nunca senti nada parecido em toda a minha vida. Talvez porque eu não conhecesse realmente o que era felicidade. Minha felicidade – assim como minha tristeza – esteve sempre ligada a sentimentos e emoções produzidos por uma mente mergulhada no apego; não que minha mente não esteja mais nessa situação, longe disso, mas agora pude ter um vislumbre do que realmente é felicidade sem que seja motivada pelo apego, aversão e pelo desejo.
anteriores, vem a emergir. Vendo as folhas balançarem com o vento em uma árvore. Olhando um fio de incenso leve e translúcido, ondulando no ar do zendō. Ouvindo uma palavra do mestre ou o som de seu bastão ao bater no solo, explicando o agora. Sentindo com a mão uma ligeira aspereza na madeira de uma balaustrada. O mundo todo e a existência tornam-se outros; tudo igual ao de sempre, mas completamente diferente. Como uma figura reversível, conforme se olha, uma vez é uma coisa, outra vez é outra; nada mudou, apenas sua mente. E quando se vê uma forma, a outra fica oculta.
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“Sensei, espero que esteja bem.
Hoje tudo estava diferente, nada mudou, mas tudo mudou, minha mente está, enfim, silenciosa, em harmonia. As cores da vida, os sons, por mais barulhentos que sejam, são agradáveis. Como eu não conhecia a paz, a felicidade era um sentimento eufórico, explosivo, mas não é assim que
O sesshin foi muito difícil, mas ele precisa ser assim, não é mesmo? Somente por meio da prática intensa podemos ver essas formas como são e sentir esse vazio que ao mesmo tempo completa tudo e preenche tudo, faz parte de tudo, é tudo e nada. Só que o nada não tem uma definição aqui, como diz na letra da música ‘nada é uma palavra esperando tradução’.
Sou imensamente grata por sua existência e pela existência de todos da comunidade, sou imensamente grata por toda dificuldade do sesshin, pelas dores, dúvidas, e também pela minha mente agitada, que sempre
Não percebo cogitações ou julgamentos da minha mente, eu simplesmente percebo o momento presente, cada segundo dele, mas não penso sobre esse segundo, só vivo este tempo. Sinto uma imensa gratidão e um amor pacificador por todos os seres, ‘conhecidos e desconhecidos’ (que não são desconhecidos, conheço a todos agora, como se me pertencessem e eu a eles), uma compaixão sem igual, não há desafetos ou diferenças. Meu ego não está à frente das minhas ações, só existem as ações. E existe o silêncio, um silêncio que vem de dentro, um silêncio que parece tão natural que é como se ele estivesse comigo desde o princípio, não só desta manifestação, desde sempre, desde quando um ‘eu’ não me fazia pensar que era separada.
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é felicidade verdadeira, essa era a felicidade produzida na delusão... Enxergo, agora, que a felicidade é o equilíbrio das coisas, como se o mundo estivesse alinhado em suas tão desalinhadas linhas. Hoje não percebi mais a separação entre o ‘outro’ e o ‘eu’, o ‘lá fora’ ou o ‘aqui dentro’, tudo fez parte de um todo que se encaixa perfeitamente, um todo com seus começos e fins, perdas e ganhos, porque isso são só percepções, são só palavras, hoje tudo continuou, tudo foi fluxo.
Essas experiências surgem inopinadamente, são nítidas e claras, conquanto diferentes para cada pessoa. O que as desencadeia pode ser qualquer coisa, algo corriqueiro como um raio de sol. Um som. Um movimento de uma cortina. Algo perfeitamente comum que, porém, surge como radicalmente diverso. Não distorcido como em uma alucinação, é como sempre; porém não é, senão, extraordinário. Os objetos e você se interpenetram e é como se você estivesse com eles como irmãos íntimos a rirem da mesma situação.
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‘gritou’ muito alto, se não fosse ela, talvez, não teria procurado algo que a Seisilenciasse.queesse sentimento não é durável, mas ele será o motivador para que minha prática seja mais diligente e séria, porque agora eu sei o que me espera. Hoje percebo que tudo que eu achava sobre o Zen, sobre Buddha, Dharma e Sangha era concebido por meio da minha mente racional, isso me levou até uma parte do Caminho, mas, agora, entendo, na prática, que nenhuma dessas coisas é para ser pensada e sim sentida; se quiser avançar preciso sentir e não pensar. Entendo quando o senhor diz que não pode levar o aluno pela mão ou dizer que as coisas são de um jeito ou de outro, porque não é possível mostrar isso a ninguém, só ensinar como se faz para Seichegar.também que o que estou sentindo é uma ínfima gota nesse oceano dhármico, mas se a gota é assim quero muito alcançar o mar, não importa quanto tempo demore para isso.”
Em texto autobiográfico meu mestre, Dōshō Saikawa Roshi,
narra sua primeira experiência de kenshō que ocorrera quando era ainda muito jovem:
“Certa vez em que fiquei doente durante minha juventude, fui passar um mês num dojo para me tratar. Dojos são lugares de tratamento com base no jejum, e eu fiquei sem comer alimentos sólidos durante dez dias, só consumindo líquidos. À noite, como não conseguia dormir, fazia meditação, e assim passei vários dias. Foi então que minha mente chegou a um estado antes do pensamento, um estado não baseado em eu, meu, mim, e eu realmente gostei dessa sensação.
Depois que o tratamento terminou, saí caminhando e desci uma montanha até uma estrada. Ao longo dessa estrada, encontrei uma cabana de palha e percebi ali uma gota de orvalho que cintilava sob o sol da manhã. Parei para observá-la, achando aquilo maravilhoso. Logo em seguida, o mundo inteiro passou a brilhar desse mesmo jeito tão cheio de beleza. Olhei a paisagem ao meu redor e me senti dentro dela. Eu não conseguia me separar do mundo externo, e essa era uma sensação muito estranha para mim. Me sentia como se fosse todo o universo e sabia que era essa a experiência de um mestre Zen. Foi aí que decidi ser não só um estudioso do budismo como também seguir o mesmo caminho de meu avô”.
Distanciamo-nos da experiência pura como as percebíamos quando crianças. A maravilha se foi junto à inocência com o uso da linguagem. Com nossa mania de colocar gosto/não gosto como uma etiqueta em tudo. E, assim, nossa capacidade de sentir com pureza se perdeu. Mas agora ela foi subitamente recuperada, aprendemos a esvaziar nossa mente. Nosso eu onipresente nos deu um pequeno espaço e, por
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Como muito viajava profissionalmente, pensava ter medo zero de voos e aviões, contudo ocorriam-me sonhos de acidentes. Um avião caía comigo e eu via osolo se aproximar, não gritava ou sentia como um pesadelo, mas o medo de morrer estava presente, uma perspectiva de fim. Um dia depois das primeiras experiências místicas, eu sonhei novamente que estava voando e o avião começava a cair. Eu estava de pé no corredor, uma pessoa amada também. Olhei para ela com uma sensação de secreta alegria, estendi-lhe a mão para um último aperto carinhoso acompanhado de um sorriso. Ela entendeu perfeitamente e, sem medo, ali ficamos sorrindo. Acordei com um sentimento feliz de libertação daquele medo fundamental da morte. Fiquei muito contente, porque o treinamento havia chegado ao mais recôndito do meu ser. Estava instalada a percepção da continuidade e o medo de morrer havia desaparecido mesmo nos sonhos. Nunca mais, a partir de então, tive sonhos angustiantes de morte.
À
meio dele, pudemos voltar a abrir os olhos com inocência. A maravilha nos apanha de surpresa com sua luminosidade inconsútil.
Ido continua:
Porém, ainda frequentemente, sentia-me decepcionado comigo mesmo. Tristezas, desilusões, problemas e mesmo meras frases ouvidas de pessoas próximas me
IDO
Um observador poderia dizer que há uma autossugestão em oque narra Ido, mas quando nos libertamos da maneira comum de consciência, começamos a operar de uma forma tão diferente que temos certeza da nova modalidade. Você vê e sente que você e tudo que o cerca estão unificados, sabendo que não se trata de uma sugestão.
No momento do kenshō, seus óculos escuros são afastados e você se vê em um novo mundo. Isso é um dos primeiros passos no caminho da iluminação, do despertar. Já que é esse momento em que, de fato, o termo é mais bem compreendido. Como já dito anteriormente, “Ken” significa “ver em algo” e “shō” significa “a verdadeira natureza”; ou seja, “ver em algo a verdadeira natureza”. Ido viu sua verdadeira
perturbavam, ocupando meus pensamentos durante muitos dias. Como se perdesse a faculdade de raciocinar perante demandas emocionais. Sabia que esses impulsos, como tantas vezes no passado, poderiam me levar a dizer coisas insensatas, ou agir de modo a me arrepender no futuro. É como se a realização espiritual, que havia alcançado, se limitasse aos momentos especiais, a condições ideais, fora das quais não havia me transformado verdadeiramente.
Muito diferente das percepções alteradas proporcionadas pelas drogas, em que o sujeito das sensações compreende, mesmo que remotamente dentro de si, que está assolado por alucinações. Depois da experiência, ele sabe que só pode retornar àquele estado com outra dose. A vivência não é sua, mas sim induzida.
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natureza dentro de si mesmo e, ao mesmo tempo, no mundo exterior.
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CAP V
Ele deve segurar com firmeza o cabresto e não permitir ao Boi vaguear, para que não se extravie por lugares lamacentos. Devidamente cuidado, torna-se limpo e gentil. Solto, segue de bom grado a seu dono.
O texto que me sai como que da pena de Ido é inspirador. Tocado por ele, começo a meditar sobre minha aproximação ao Zen, e a aventura interna que isso desencadeou. Guardados em uma gaveta, há cadernos com registros de minha aventura como monge, minha esposa os alcança. Nunca os lera antes e começo a lê-los espantado de quanto nossa memória nos trai esquecendo detalhes.
Depois de uma longa viagem até Atlanta, com seus ansiosos
No final de 2010, por insistência de Saikawa Roshi, fui indicado para um período formal de treinamento em monastério. Ainda em São Paulo, pude falar com Akiba Roshi, superintendente do Zen Soto na América do Norte, que seria o abade do treinamento, na Califórnia, em YokoJi – sede preparada pela Sotoshu para receber os monges para fazer angō (retiro monástico) de formação de professores do Zen. Levado por Nambara San, instrutor chefe, sentei-me ao lado de um senhor muito acolhedor e sorridente, calmo e amável como devem ser os mestres do Zen.
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Fui apresentado como um candidato ao angō, e Akiba Roshi me disse apenas que o importante nesse treinamento era saber preservar a harmonia com os outros; nada disse sobre instruções, nem fez perguntas a mim. Na etiqueta japonesa, todo o respeito que se tem pelo mestre que lhe apresenta um aluno, a este último lhe é transferido. Senti a tranquilidade do acolhimento.
Eu objetei que não gostava muito de cerimônias e não pretendia voltar a ser um monge Zen, como fora por algum tempo, em uma
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No meio de uma reserva florestal, cercado por montanhas escarpadas, o monastério era em um local isolado sem comunicações fáceis, com uma paisagem de cartão-postal.
Parei para pensar como cheguei àquele lugar tão longe do meu ensolarado e quente Brasil. O grande responsável foi meu mestre, Saikawa Roshi. Sentados em um avião, indo de Porto Alegre para Florianópolis, ele me disse que eu deveria ser um monge. Há alguns dias eu o acompanhava em visitas a comunidades budistas do Sul. Estava muito impressionado com ele e suas qualidades de professor. A primeira vez em que o ouvi ensinar, eu soube que ali estava um grande mestre.
e pouco amistosos funcionários de aeroporto, cheguei a Los Angeles. Alcancei o escritório da Soto Zen encarregado de nos reunir e de transportar os monges para as montanhas onde se localiza YokoJi.
Pensei se naquele local tão estranho às minhas paisagens conhecidas, tão distante do meu mundo normal, um aprofundamento espiritual viria a me ocorrer. A 2000m de altura, esforços físicos fortes são mais difíceis, afinal moro à beira-mar, com seu ar denso e voluptuoso. Lembro de sofrer para arrastar minha mala escada acima até o alojamento dos monges. Escolhi um colchão no chão como todos; omeu junto a uma parede baixa. Éramos de diferentes países, norteamericanos, italianos, alemães, franceses, colombianos, peruanos, e a língua oficial era o inglês.
IDO
À
ordenação particular de meu professor anterior. Mas o mestre insistiu, “você está enganado”, disse ele, “as cerimônias criam uma energia que consolida a comunidade, você devia ser monge”. Sabia do longo tempo de preparação dos postulantes e de quanto os mestres esperam antes de uma ordenação monástica. Então, perguntei como seria isso – preparado para que ele me descrevesse os longos e demorados passos. Saikawa Roshi, porém, somente respondeu: “hoje à noite, quando chegarmos a Florianópolis eu o ordenarei”.
Do próprio aeroporto, liguei para minha esposa e disse o que aconteceria. Pedi que reunisse nossa pequena sangha de praticantes, e no zendō de minha própria casa, apinhado de amigos, ocorreu a ordenação. A partir daí o mestre passou a me instruir e a me encorajar às graduações sucessivas do caminho monástico no Zen. Agora, ali estava, nas montanhas da Califórnia, rodeado de monges como eu, de instrutores japoneses, da reprodução minuciosa de um monastério tradicional, em um angō de formação de professores.
A nos antes, servindo de tradutor para o mestre em um Sesshin no Templo Busshinji em São Paulo, Saikawa Roshi bateu com o bastão no chão à sua frente, querendo mostrar o momento presente, o “somente isto” de que falava. O som me impactou de forma tal que fiquei emudecido e emocionado, não conseguia falar. O mestre percebeu o repentino lapso da tradução e levantou os olhos. Esforçando-me, retornei com a voz algo embargada. Voltamos ao zazen, e logo o sino tocou para a meditação andando (kinhin). Levantei-me, e no silêncio da sala, postado na fila dos praticantes, caminhando lentamente, 15 cm a cada passo, acompanhando a respiração, lágrimas me escorriam pelo rosto sem que
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Quandoloucura.
Fiz oferta de incenso, apaguei a luz e deixei apenas a claridade do fim do dia entrar pela janela.
“Sensei, permita-me relatar algo muito forte que eu tive agora no fim da Hojetarde.trabalhei normalmente, foi um dia, porém, de muitos atendimentos, acabei ficando sem almoço, um paciente atrás do outro, enfim foi uma
cheguei em casa, estava muito cansado, com fome e sono. Tomei banho, comi e fui deitar-me para descansar.
pudesse dizer o Voltamosmotivo.anos
sentar e queria saber o que ocorrera, que diferença havia. A única coisa que pude localizar é que o medo de morrer se evaporara, como se este momento e todos os momentos futuros fossem eternos; vivo ou morto, fosse a mesma coisa – algo pleno, luminoso, calmo, insofismável, sem nada a ser debatido nem explicado.
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Não sou o único a ter experiências assim, elas são mais frequentes do que se imagina, recebo outra carta de aluno:
Momentos depois, começou uma chuva agradável e pensei: ‘Que chuva Nesseboa’. instante, tudo começou a ficar diferente. A sensação que eu tinha é
Quando eu me sentei, percebi que não era o mesmo. A sensação do corpo é como se, este, tivesse uma película de vidro translúcida. Quando o guia tocou o sino, o vibrar do som saiu do celular passou pelo meu corpo e
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Ouvia o barulho da chuva, e ela me preenchia. Sentia o cheiro do incenso, e ele também me preenchia. A textura da cama, igualmente. A música que coloquei no celular parecia que era a melodia do paraíso.
A sensação foi simplesmente maravilhosa. Minha mente queria dançar com a chuva e todos os fenômenos que estavam acontecendo, e acabei Quandodormindo.acordei, a sensação de samadhi continuava, mas percebi que eu estava diferente, arrumei meu zafu para a prática noturna.
O que havia ao meu redor me preenchia, senti meus sentidos aguçados de uma forma muito forte, e isso começou a me conectar com o que estava Pareceacontecendo.quealgo precisou ficar vazio para as coisas em volta me preencherem.
Então, audição, tato, cheiro, paladar e consciência estavam muito presentes e muito ativos.
de que meu corpo era um vaso, porém não tinha nada dentro.
Por dentro, eu estava um vazio, mas isso não era ruim, porque, ao mesmo tempo, fui preenchido por tudo que estava à minha volta.
No início da prática, estava muito emocionado, olhos cheios de lágrimas. Mas não tinha motivo, simplesmente estava muito comovido e feliz.
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A resposta saiu imediata ‘não há quem ouça o sino, pois eu sou o sino’.
Meu corpo vibrou de um modo que eu não sabia mais quem era, mas sentia tudo. Como se eu estivesse morto, mas minha ‘alma’ ficasse conectada com tudo. Como uma diluição de consciência, aquele foco que normalmente fica em mim, no ‘eu’, não estava mais. A consciência diluiu-se com os fenômenos do ambiente, misturando-se.
A impressão é a de que, com o fato de ter um dia cansativo, eu tinha esquecido de mim; quando cheguei em casa, não tinha cognição suficiente para me irritar ou dar opinião. Só queria tomar banho, comer e descansar. Eu não sei, na verdade, se é essa a explicação ou se foi o Sesshin do Rohatsu, pelo fato de estarmos fazendo vários zazens por dia.
encontrou o butsudan.
Outra coisa que eu percebi, no início, era que parecia que meu corpo tinha se adaptado perfeitamente ao zafu, dando a leve sensação de que não tinha forma, por isso se encaixou tão bem.
E veio-me uma pergunta súbita ‘quem ouve o sino?’.
Em vários momentos do zazen de hoje, parecia que o samadhi estava me rodeando, bastava eu ter um pouquinho mais de concentração, acontecia novamente, a mente estava muito calma e consciente no presente.
Depois de muito praticar, de longos dias em Sesshin, que às vezes pareciam se estender por vidas, enfim senti que minha mente mudava em direção a uma paz constante.
O trabalho passou a ser a maneira pela qual sustentava a prática e as necessidades da vida, não mais o lugar onde me realizava, mas a fonte com a qual sustentava uma
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À
Do quinto ao sétimo dia, você já passou pelos desafios, obstáculos e persistiu, chega ao pico da montanha. Você olha toda aquela maravilha e pode sentir a experiência de estar ‘acima das nuvens’. Percebe que foi duro até chegar ali, porém vale a pena e, sim, é possível.
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A impressão que me passou é a de que o Rohatsu é como subir uma montanha, até conversei sobre isso com minha companheira.
O primeiro e o segundo dia são o início da montanha, estamos motivados, queremos fazer, estamos determinados.
No terceiro e quarto dia, seria o meio da montanha, parece que não tem fim, perde sentido a caminhada, se pensa em desistir e voltar o caminho para casa.
Seu aluno. Prostrações.”
Escreve-me Ido:
IDO
Basicamente isso, sensei. Não sei o que significa, só sei que aconteceu e não sei como.
No entanto, apesar de minha convicção, trazida por ver minha verdadeira natureza, minha conduta geral continuava cheia de falhas. Perdia a paciência, sentia aversão por pessoas que manifestavam ideias que me revoltavam. As visões espirituais, tão diversas do espetacular que se esperaria, mesmo assim relevantes em sua simplicidade, não pareciam ter a força de reformar meu eu cheio de imperfeições.
Porémerrante. não desistia. Porque os bons momentos, os samadhis, cheios de contentamento e maravilha, estavam em minha memória. Não havia o que fazer
busca espiritual que se tornara a parte mais relevante do meu existir. Me parecia que havia dominado a mente, já sabia o que era a experiência de kenshō e minhas entrevistas com o mestre se aliavam às descrições das experiências de percepção.
Às vezes, mal me sentava em zazen, surgia um samadhi brilhante, a concentração era perfeita e todas as coisas chegavam puras e livres de considerações, bailavam como se estivessem no paraíso. Outras vezes, o sentar-se em meditação nada mais era do que uma luta com uma mente, incessantemente perturbada por pensamentos invasivos, e nem um momento de samadhi, já por si curtos, chegava a emergir. O corpo quieto, mas a mente
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Estava consciente do fato de que os kenshōs já experimentados não garantiam suas repetições. Que ter uma experiência espiritual é a colheita correspondente ao trabalho de mergulhar em samadhi copiosas vezes, e que, se abandonado esse esforço, eles podem não se repetir mais; podem se tornar meras lembranças, magníficas, mas perdidas. Havia chegado a algo; há até quem confunda isso com iluminação. Ter visto a luz não é possuí-la, é ter verificado sua existência, como alguém que viu um cometa não é mais que sua testemunha.
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senão repetidamente tentar, deixando a rotina se instalar como um hábito. Levei o problema ao mestre e ele sorriu, dizendo que eu estava tentando comprar, adquirir, o samadhi, que tinha uma mente aquisitiva, que queria possuir uma habilidade a mais entre as que já tinha. Que essa ambição era como qualquer outra, “você trocou um carro novo por um samadhi”, disse, “é só uma aquisição a mais. Abandone isso”.
Mesmo que soubesse tudo isso, queria agarrar o samadhi. Mas me perdia em luta constante, tentando obtê-lo. Era como pegar fumaça, o mero querer servia para fazê-lo se dissolver em minha frente. Minhas entrevistas com o mestre pareciam, agora, como um lamento que ele ouvia pacientemente. Às vezes, eu pensava em simplesmente desistir e ele observava que depois de ter feito o boi me seguir, de tê-lo amansado, era preciso dar mais passos,
IDO
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era necessário ser capaz de montá-lo, não apenas ter com ele uma relação de amizade. E me dizia que eu não deveria desistir facilmente.

CAP VI
Cavalgando livre como o ar, ele volta animadamente para casa através da bruma da tarde, de capa e amplo chapéu de palha. Aonde quer que vá, produz uma brisa fresca enquanto profunda tranquilidade domina seu coração. Esse Boi não precisa nem de uma folha de relva.
Chegamos lá no início do inverno, e aquele ano nevou muito. Às vezes, tínhamos que ter equipes de madrugada para abrir o caminho com pás, para que os monges pudessem alcançar o edifício do zendō onde se praticava zazen às 4h20 da manhã. O clima frio que chegou até a 15 graus negativos era um tal desafio que o encarávamos como uma alegria, como um momento esportivo na madrugada gelada. “Quebrem o gelo abaixo da neve”, diziam os instrutores, “cheguem ao solo, senão todos escorregarão na superfície deslizante que se esconde embaixo da neve, junto ao chão”. Sentia pena ao ver a pá pegar a terra escura agarrada ao
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O monastério de Yokoji tinha várias pessoas interessantes. Um cozinheiro galês, com um inglês difícil de entender, exigente, mas amável. Contou-me que era muito gordo, mas, com a cozinha vegana daquele lugar, foi adelgaçando a forma, ficara forte e tranquilo. Uma monja italiana, Myoren San, era a admiração nossa, seus gestos sempre certos e límpidos, seu sorriso cativante, uma monja como pensamos que monges devem ser. A vice abadessa era DaiEn Bennage Roshi; com o tempo, vim a conhecê-la mais profundamente e um grande afeto surgiu entre nós. Já idosa, transmitia uma espiritualidade elevada, uma pureza de sentimentos encantadora. Quando ia servi-la nas refeições, quando acaso a minha tarefa era de monge servidor, minha reverência era tal que tinha vontade de beijar suas mãos, tão suaves eram seus gestos ao estender as tigelas como se recebesse o néctar dos céus. Anos mais tarde, ela veio visitar-me no Brasil. Sempre a mesma presença transformadora, onde quer que pisasse.
Emilusões.um
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O monastério é um lugar propício a experiências espirituais, naturalmente. Um dia estava encarregado de tocar o Bonshō, o grande sino pendurado embaixo de uma armação coberta e sem paredes. Localizado em uma pequena elevação, o Bonshō é fustigado pelos ventos e percutido com um balouçante tronco pesado que precisa ser embalado para bater fortemente. É soado em certos períodos do dia, em intervalos de dois minutos, durante os quais o monge encarregado recita um verso desejando que o som ajude a acordar todos os seres que dormem em seus sonhos de
gelo e jogá-la sobre a neve imaculadamente branca da superfície.
dos intervalos, olhei para o edifício do zendō a distância. Os altos pinheiros estavam brancos pela neve. O caminho passava por sobre um riacho ornado por uma ponte, tudo congelado pelo frio intenso. De súbito, vi que duas árvores formavam uma ogiva de 30 metros de altura, como duas mãos postas em oração, bordadas pela neve pura, silenciosamente emolduravam o prédio onde nos sentávamos em zazen, a partir da madrugada. E vi, que, muito mais do que isso, aquela moldura era sólida e gélida em sua beleza invernal, um portal do Dharma, ali diante de mim, invisível a tantos olhares, mas agora repentinamente revelado. Uma avassaladora emoção me tomou, e as lágrimas começaram a correr enquanto segurava as cordas do badalo horizontal para bater o sino no tempo correto.
Acabada a tarefa, fiquei ali imóvel, olhando o portal à minha frente no meio da esplêndida cercadura das montanhas que rodeavam o monastério. Vendo-me ali, Myoren san subiu a colina e chegou ao meu
No mesmo dia, encontrei Dai Enn Benage a meio caminho, sobre a ponte coberta de gelo. Ela me olhou carinhosamente, porque vivíamos uma partilha de prática silenciosa de que ambos sabíamos a doçura. Estacou. Eu lhe mostrei a ogiva à nossa frente, de novo emocionado ao explicar que era o portal do Dharma. Sem nenhuma palavra, ela entendeu tudo e, por sua vez, começou a chorar, tomou minhas mãos –ela, a anciã. Num impulso, me inclinei para beijar seus dedos, e então ela fez o mesmo. E, me olhando nos olhos, disse: “Me prometa que você vai mostrar este portal a todos que puder”. Nada mais recordo deste dia.
Ido volta a me escrever:
De repente, um belo dia, andando sob a luz do sol, percebi que algo mudara, minha mente não flutuava para lá e para cá. Eu podia trazê-la ali para aqueles passos, a luz do sol tépida sobre meu rosto, o solo paternalmente sustentando meus pés. Sem esforço, estava mantendo o samadhi nas atividades cotidianas. Entrava em samadhi no processo do zazen de uma forma fácil.
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lado, estranhando minha imobilidade naquela temperatura. Ao meu lado, viu meu rosto que não podia esconder uma emoção tão grande e perguntou: “O que foi?”. Não sei mais que língua misturávamos para nos entender. Mostrei a imensa ogiva arbórea e disse que era o portal do Dharma, um dos incontáveis de que fala um voto todos os dias repetido pelos monges. Não podendo me abraçar, ela apenas tocou meu ombro com seu ombro, lado a lado, olhando a visão à nossa frente, de que ela instantaneamente partilhava. Guardei o momento com grande gratidão.
Além do Pico da Montanha: CHEGA OUTRA MARGEM
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Há uma grande paz e um contentamento que nos fazem desejar retornar sempre a tal estado, no entanto, sendo prazerosos, eles contêm a armadilha de sermos levados a querer chegar a eles e assim permanecermos. Os que têm dificuldades com pensamentos recorrentes sempre podem usar as numerosas âncoras disponíveis para se acalmarem; como respirar profundamente e expirar contando, ou interromper a respiração a cada invasão mental (nen: um impulso que traz um pensamento associado). Um samadhi luminoso pode surgir rapidamente com essas técnicas, mas assim que ele se estabelece, se permanecermos na técnica de acesso, ele se esvai, porque a vontade e o “eu” se fazem presentes com seus objetivos.
Os músculos estão sempre em alguma atividade, tensionando ou relaxando, e isso faz com que tenhamos consciência do corpo e sua forma. É frequente os iniciantes na meditação Zen relatarem que perderam a noção do tamanho de seu corpo e que ele parece se expandir incomensuravelmente. O que ocorre é que o zazen frustra essa noção ao propor uma imobilidade próxima da perfeição. Alguns narrarão sensações de abandono do corpo com uma corrente de emoção brotando do interior mais recôndito, como estar tomado por uma melodia linda e comovente. Mas essas sensações, algo físicas, desaparecem em poucos minutos de permanência. O praticante experiente não chega a passar por esses estados intermediários e entra em samadhi com certa facilidade, logo após se sentar e esvaziar a mente de cogitações.
Sabemos que o corpo produz constantemente toda classe de compostos químicos. A verdadeira questão é que mesmo que se durante o samadhi tais substâncias sejam produzidas, esse é só um aspecto do
samadhi , e não ele em si.
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Ido prossegue:
IDO
Nos acostumamos a ver o mundo a partir do olhar científico, que é muito útil para diversos fatores, mas que possui também limitações. A ciência precisa trabalhar com medidas, sendo os componentes químicos mensuráveis, tendemos a crer que ao detectarmos e medirmos essas substâncias, estaríamos definindo o samadhi e, assim, criando a possibilidade de reproduzi-lo. O samadhi , entretanto, é mais complexo do que as questões químicas que o envolvem. Ele está ligado a prajna (sabedoria), a sila (moralidade), dentro de uma prática e esforço constantes de sati (atenção) – dia após dia. Nada disso pode ser imitado pela simples reprodução dos processos químicos internos do corpo que acontecem quando se está em tão alto estado meditativo. Por isso, embora eventualmente uma droga possa provocar uma sensação semelhante à do samadhi, pelo seu efeito alucinógeno, não chega perto do que, de fato, ele é.
Sentia que estava “Cavalgando o boi de volta para casa”; usufruía de uma liberdade de corpo e mente, e gozava de uma felicidade tranquila. Não precisava mais me esforçar tanto, quando me sentava em zazen, o samadhi se produzia com rapidez e a prática parecia se transportar para todos os aspectos da vida. Jane observou que a expressão de meu rosto havia mudado, que a rigidez e autoridade do executivo davam lugar a um olhar mais aberto e tranquilo, as rugas de expressão pareciam mais
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suaves e o sorriso mais fácil. Mostrou-me isso em retratos, ofato de ela estar sempre acompanhando o que sucedia e sentando-se ao meu lado em zazen tornava fácil que entendêssemos o que ocorria com o outro.
Amigos também observaram que eu parecia imperturbável nos acontecimentos mais prementes, mesmo que internamente eu soubesse que não era verdade, que as emoções me tocavam – a observação deles era mais sobre a reação, muito menos evidente agora, não traduzida nos gestos.

Somente no Boi poderia chegar à casa. Mas eis que agora o boi desapareceu e o homem se senta, sozinho e tranquilo.
O rubro sol anda alto no céu enquanto ele sonha placidamente. Ao longe, sob o telhado de palha jazem seu chicote inútil e seu inútil laço.
CAP VII
Seria muito bom que revisássemos os vários passos de dhyana. À medida que começamos a meditar, há múltiplos estágios que, com diferentes tempos para cada pessoa, acontecem quando há esforço genuíno. Afinal, como Ido pôde chegar às experiências sucessivas do caminho?Trata-se
Óctuplo tem três partes: a primeira parte é a sabedoria; a segunda parte é a moralidade; e a terceira parte é a realização espiritual propriamente dita.
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A s primeiras partes, então, são, na prática, pré-requisitos para alcançar a iluminação.
De que se trata o primeiro passo apresentado por Buddha? Ele diz respeito a uma profunda compreensão das Quatro Nobres Verdades, ou seja, de que a vida é cheia de altos e baixos – alegria, tristeza, riqueza,
de uma via muito bem descrita sob diferentes formas; vou tentar unificar essa descrição para que ela faça um sentido progressivo. Tudo começa com um aperfeiçoamento de nossa conduta pessoal, uma purificação descrita cuidadosamente por Buddha no Nobre Caminho Óctuplo. Ele trata de dizer que para andarmos, precisamos de uma compreensão ideal dos princípios fundamentais: impermanência, não existência de um eu inerente (em coisa ou ser algum) e a característica cíclica daOvida.Caminho
Ele, então, afirma que não só existe uma causa para dukkha, mas que ela pode ser removida. Portanto, os sofrimentos com a insatisfatoriedade da vida podem ser eliminados com uma Compreensão Correta de como eles funcionam. Então, nós temos que entender com clareza que tudo é impermanente, que nada será estável. Temos que saber que nós somos jovens em um dia e velhos no outro; que se nós nascemos, nós morremos, e que todos os nossos entes queridos vão um dia
Essa Visão Correta, essa visão que não cede às ilusões, é uma tremenda desconstrução que faz que muitas pessoas fiquem atônitas quando conhecem o Zen budismo. O choque existe porque você está acostumado a ter bengalas para apoiar a fé, as crenças. Quando você vem até o budismo, as suas bengalas são retiradas e, de repente, você não tem em que se agarrar. E mesmo se você tente se agarrar no professor, ou em
morrer.Énecessária uma visão clara de que não existe “um algo” com uma eternidade ou uma alma que nos permite sobreviver com nosso “eu”, tão amado, a qualquer circunstância; que não existem deuses lá fora para nos socorrerem, que não adianta fazer orações pedindo coisas para ninguém, nem para Buddha, porque Buddha morreu também. Está extinto.
pobreza, amor, abandono, desilusão. Isso é característica da própria vida. Por isso a vida é chamada de dukkha, que não quer dizer “sofrimento”, mas, sim, ser insatisfatória, sempre. E isso tem uma causa, e essa causa é oapego – o agarramento, a ignorância – que, por sua vez, nos faz querer que as coisas sejam permanentes em um mundo impermanente.
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A segunda parte da Sabedoria seria a Intenção Correta ou Pensamento Correto, que significa atingir um estado de consciência em que não há obstruções ao processo de pensar. Tal processo conduz à Fala e à Ação Corretas, e é essencial que uma pessoa tenha um domínio das condições de seus pensamentos.
um mestre, ele recusa isso, diz que não, diz que não tem as respostas que você quer e que quem pode resolver seus problemas é você. O máximo que ele pode falar é sobre um método para que você tenha clareza e se livre das crenças, das superstições e ilusões.
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A Fala Correta é, portanto, uma prática bastante difícil, que significa falar e escrever diferentemente de todos os outros, da maioria das pessoas, a fim de produzir o bem a todo o momento. Não significa não dizer coisas exatas ou eventualmente duras quando é necessário corrigir alguém, um filho por exemplo, ou mesmo em um diálogo com
A Fala Correta trata-se de uma fala impregnada de compaixão, sabedoria e bondade. Nela, não existe espaço para enganar ou para dizer a verdade em horas impróprias. Não existe uma liberdade para você usar a sua boca para produzir ou se focar em energias que trazem tudo que é baixo ou mau para perto de você. O praticante budista, na verdade, tem que ter uma fala límpida que procura não ofender, procura ajudar sem insultar nem usar palavras de baixo calão. Ele deve evitar todas as referências a coisas baixas; buscar ouvir e se aproximar de pessoas que têm falas elevadas. Ler e assistir a programas que conduzam a uma elevação da consciência, e não ao rebaixamento dela. Tenta não se comprazer com o mal, com o sofrimento de qualquer ser.
haver muito cuidado no falar. A defesa da opinião própria é uma coisa delicada. Existe um termo para isso: ditthi (defeito de querer impor sua opinião). Um assunto candente no Brasil de hoje, talvez no mundo hodierno, é que as pessoas têm opiniões radicais, não importando qual lado dos argumentos estejam defendendo, e, ainda, aqueles que não compartilhem de sua opinião são vistos com desprezo, às vezes até ódio. Então, esse radicalismo produz coisas muito ruins, e a prática budista é avessa a esse tipo de comportamento.
Por isso, a prática central do Zen é o zazen. Você se senta em zazen porque lá não tem terapeuta, não tem psiquiatra, não tem amigos a quem você possa enganar. Você está de frente para a parede e você vê sua mente funcionando. Este é você de verdade. Não é a figura
um amigo; deve-se fazer isso com a intenção de realmente ajudar, e não a de ganhar uma discussão ou coisa semelhante.
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Falar corretamente, ainda, é não incorrer no erro, tão constante, de querer impor sua opinião aos outros, como se fosse sempre ocerto, o perfeito, o correto, mas, sim, ser capaz de ouvir e aprender constantemente. Por isso, Buddha fala em se ter uma língua de mel que procure dizer coisas que produzam harmonia. Na própria disciplina da sangha, nos encontros, a instrução é “a harmonia está em primeiro lugar”. Se alguém disser uma coisa com a qual você não concorda, você deve se calar e esperar, porque as pessoas tendem a não aceitar correções ou orientações, quando feitas individualmente por uma pessoa que não tem autoridade para isso. Elas aceitam bem só aquilo que não as machuca.Deve
ideal que você quer mostrar para os outros; não é nem a mente que você gostaria de mostrar para você mesmo. Aquele é você. Se a sua mente não para e é turbulenta, é porque você é assim. Se você pensa sem cessar em prazeres, é porque você está agarrado aos prazeres. Se você pensa obstinadamente em medos, é porque você é uma pessoa medrosa. Se você fica sonhando com futuros maravilhosos, é porque você é um iludido, sonhador, sem um pé na realidade e quer fantasiar coisas que provavelmente não se realizarão. Então, você vê a verdade da sua mente, a verdade do seu pensamento.
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A ssim, ao observar a sua mente, ao perceber como ela é, você tem a oportunidade de construir uma nova maneira de ver as coisas, de perceber o mundo. Mas isso não é feito por intermédio de um processo discursivo ou raciocinado, senão por uma limpeza extensa. Você se senta em zazen para formatar sua mente, para se esquecer dos passados que foram construídos e das suas expectativas que tanto ama a respeito do futuro. Você se senta e volta para a realidade tal como ela é. E a única realidade verdadeira é este momento presente, as coisas tais como são agora.
Fazendo uso desse processo de limpeza radical, você tem a chance de construir uma nova mente e uma nova maneira de perceber as coisas. Não é raciocinando, nem elaborando, nem reestruturando seu ego sob uma forma ainda mais elaborada, mais construída do que a anterior. Então, como é um processo de certa maneira radical, ele exige que você tenha um certo grau de equilíbrio para poder se sentar e enfrentar a si mesmo. Não é um processo recomendado para quem estiver perturbado, deprimido, ou com alucinações. É um processo para ser realizado por
A primeira fase, quando nos sentamos em zazen e corrigimos nossa postura, é dharana (em sânscrito), que significa concentração. Dharana é feita quando conseguimos deixar nossa mente focada, mas é algo difícil, pois ela se comporta de forma instável e todas as pessoas
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uma pessoa que está saudável. Ela é levada a uma crise que é causada pelo próprio processo meditativo. Então, por meio de uma reconstrução das nossas percepções e das nossas concepções, nós podemos construir uma mente nova, que não é uma mente que um guru vai dar a você. Na realidade, essa mente nova surge mediante uma procura da percepção da sua verdadeira natureza, além dessa natureza que nasce e morre, além desse “eu” de agora. Torna-se perceptível que este ser que nasceu, que está vivendo e que vai morrer, não é a profunda realidade. Você está além disso. Então, você precisa enxergar sua verdadeira natureza, ver oabsoluto por trás de todas as manifestações temporais. E esse evento chama-se “alcançar o kenshō”, que é o fim do caminho óctuplo.
Revisando: o treinamento começa pela compreensão e entendimento de pontos importantes como a impermanência, o “nãoeu” e o aspecto cíclico da vida, cujos nomes em sânscrito são: anicca, anattā e dukkha. Se temos uma boa compreensão, partimos para uma prática virtuosa de moralidade, que inclui: pensamento, fala, ação e meio de vida, que são práticas ligadas a um comportamento que purifica a nossa mente, o nosso corpo, a nossa maneira de agir no mundo e a maneira como lidamos com nossa mente. Já a terceira parte do caminho óctuplo refere-se ao cultivo da meditação e da concentração. Então vamos explicar detalhadamente o que acontece com a mente no processo meditativo que experimentamos na prática do zazen.
que começam a praticar se queixam da sensação de que a mente não para. No Zen, há muitas comparações a esse respeito, sendo bem famosa a que fala da mente como um macaco bêbado pulando de galho em galho, como quem pula de pensamento em pensamento, sem conseguir sossegar. Nós tentamos usar várias técnicas para aquietar a mente, e essas técnicas não são o zazen, propriamente dito, e, sim, meios de solucionar essa fase de agitação da mente. A característica principal dessas técnicas é a observação da mente. Então, há um observador que olha algum ato ou acontecimento e o trata como uma âncora. É o que fazemos com a respiração, quando pedimos a alunos agitados que contêm suas respirações, ou observem o ar entrando e saindo do nariz, ou escaneiem seus corpos, começando pelos dedos dos pés, pés, pernas e subindo até chegar ao couro cabeludo. Tais práticas, genericamente chamadas de práticas vipassana, são técnicas de observação e não são zazen; uma vez que há um “eu-observador” que está presente nelas. No entanto, são usadas para ancorar a mente, focá-la, e, assim, conseguir uma concentração mais profunda.
A essa mente que pula de galho em galho, de pensamento em pensamento, damos instruções como: está tudo bem se os pensamentos se apresentam, mas deixe que eles se vão, não faça associações, não se compraza com eles. A cada momento que você se pega se distraindo, volte para este local, este momento e fique aqui. Se conseguirmos ultrapassar a parte das técnicas preparatórias e conseguirmos ficar realmente aqui, neste lugar, aí temos a percepção do que se passa ao nosso redor. Os pensamentos se apresentam e requerem certa determinação para serem afastados. Dizemos: não viaje para o passado, não viaje para o futuro, não fique preso aos pensamentos, mas também não lute contra
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eles. A instrução, assim, é: retorne para este local, permaneça com os olhos abertos, vendo o que está aqui neste momento. Ouça os sons do momento. Os sons são talvez a porta mais fácil, não coloque músicas ou coisas assim, mas simplesmente ouça os sons que já existem, que se fazem presentes: pássaros, cães, ruídos de tráfego, vento, ouça e não tente discernir: “isto é uma moto”, “isto é um carro”. Simplesmente esteja ali, deixando que os sons atravessem você.
.Se
nós conseguirmos praticar isso com determinação, persistência e vigor, vai começar a se instalar uma calma e os pensamentos vão ficar mais lentos em sua apresentação. Diminuirá o ritmo da agitação da mente e essa é a primeira conquista: a da concentração no momento presente. Aqui vamos distinguir uma segunda fase chamada dhyana, que seria um foco contínuo. Dhyana é o termo sânscrito que originou a palavra Zen. Depois de sofrer modificações, dhyana se tornou jhana, em pali, depois chana em chinês, em seguida chan – também em chinês –, posteriormente zhan e, finalmente, Zen no Japão, pronúncia que se manteve até chegar a nós no ocidente. Na realidade, tudo é dhyana, embora a modificação tenha sido tão grande que parece não haver nada da língua original naquilo que estamos dizendo agora.
Meditações guiadas tendem a ser um grande engano, porque você fica pendurado na voz de alguém que dá instruções. Isso impede a visualização da própria mente e tem o grande perigo da indução, da sugestão, não há aí liberdade para visualizar seu próprio processo mental. Esta, então, é a primeira fase de concentração que chamamos dharana
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Dhyana ainda pode ser subdividida em várias etapas diferentes como contentamento, depois maravilhamento e, logo em seguida, êxtase. No contentamento, há uma sensação de não se querer mais sair de tal estado, de não se querer viver outra vida além daquele momento. Você olha o ladrilho à sua frente e o acha maravilhoso, vê os raios de sol e os acha lindos. Já o êxtase toma todo o corpo. Essas sensações são tão prazerosas que algumas pessoas querem ficar nelas, acreditando se tratar da iluminação. Mas ainda aqui é dhyana, é apenas um dos estágios da meditação. Não é iluminação. Este aqui é um estágio que pode ser aprisionador, que lhe faça querer ficar onde está, mas se ele se aprofundar e você perder a sensação de identidade pessoal, então você
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A fase de dhyana é a de foco contínuo, quando a concentração se alonga e os momentos de calma se tornam tão intensos que não surgem pensamentos, eles deixam de aparecer. Quando os pensamentos não invadem a mente, nós temos um fluxo não agitado, não como o de uma correnteza de um rio, mas sim um fluxo contínuo que corre sem interferências. Uma espécie de fluir sem ondas ou irregularidades, como um fio de azeite correndo de uma vasilha para a outra. Esse transcorrer sem agitação é o transcorrer de dhyana. Pode ser que esta fase se manifeste com a sensação de se ser um com a postura; algo que muitos já experimentaram. Tais pessoas relatam que sentem que perderam a sensação de limites do corpo, porque ficaram tanto tempo imóveis que não têm mais a noção de onde seu corpo termina. Dhyana, então, é essa sensação de se ser um com a postura somada à da mente profundamente pacificada, sem correr de um lugar para o outro, nem para lembranças nem para expectativas futuras, estável no presente, sem agitação, sem inquietação.
terá passado de dhyana para samadhi .
o estágio de samadhi , a nossa mente se torna como um lago sem ondulações, em um dia sem vento. Embora seja algo bem difícil de realizar na nossa prática, não é impossível; tanto que muitas vezes alunos vêm narrar experiências que vão se aproximando dos estágios que estamos descrevendo. Eles, entretanto, não são o fim do que estamos tratando aqui.
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Quandofugazes.cultivamos
Todas essas fases podem ocorrer fora do zazen também. O zazen é o treinamento para que você seja capaz de perceber esses estados e de neles viver. Então, samadhi , essa sensação de unicidade que está além de dhyana, pode ocorrer olhando uma paisagem magnífica, ou quando se tem uma sensação tão profunda de amor e comunhão com outra pessoa, que deixamos de saber quem somos. É comum as pessoas terem experiências de samadhi em suas vidas, mas são muito breves e efêmeras, muitas vezes com qualidades muito baixas. A diferença que o treinamento faz nesses estados é a qualidade das experiências, que, por serem profundas, podem nos transformar de verdade, podem trazer sabedoria, clareza, luminosidade dentro delas. Não são apenas experiências
Em samadhi , aquilo que percebe e aquilo que é percebido tornam-se uma coisa só. Como esses exemplos que dei, você não distingue entre o raio de luz e você, é como se você e o raio de luz fossem um só. Não há distinção entre você e o sino que bate; você também é o sino. Quando chegamos ao estágio em que não estamos sequer distinguindo as coisas fora de nós, esta percepção é samadhi .
Asão.gora,
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E xiste um estágio superior, porque esses estágios de dharana, dhyana e samadhi ainda são preparatórios. Queremos uma outra coisa que está além. Imagine que você é um lago já quase completamente acalmado que se tornou um com tudo, e estamos procurando um reflexo de luz da própria vacuidade no espelho desse lago. As perturbações não permitem que você veja o absoluto ao qual nós pertencemos, que é nossa verdadeira natureza, um “resplendor profundo e imutável”. Nós só não vemos isso, porque a superfície de nossos lagos, na analogia que usamos, não é, ainda, perfeitamente límpida e capaz de refletir as coisas tais como
imagine que esse lago se acalmou tão completamente que reflete o universo; essa é situação de espelho que representa o estágio seguinte, chamado Ananda Samadhi. Em tal estágio, mesmo os aspectos mais sutis contemplados se dissolvem em uma situação mental além da percepção e da não-percepção, o estágio mais alto de samadhi .
Q uando nossas considerações se apagarem e realmente virmos ouniverso além de nós mesmos, indo além da sensação do um, então teremos o reflexo perfeito. O reflexo perfeito, absoluto, é o kenshō. Isso significa que a mente infinita, a verdadeira natureza, é vazia de todas as identidades, não é uma divindade e não existe independente de nós, mas nós somos isso, o reflexo e o espelho. É algo além da percepção ou da não-percepção, não há a sensação de se estar percebendo algo. Não há um objeto focal no qual você se concentra, mas, tudo, a matéria e a própria sabedoria, é transcendido. É muito difícil falar disso, falar do kenshō, porque é como tentar entender mediante o intelecto algo que vai além dele.
Nossa identificação com a própria mente é muito forte, e é impossível para esta última conceber um estado em que todas as suas formas de se expressar, de dizer e tudo mais estejam ausentes. Agora, a nossa prática deve penetrar as 24 horas em todos os múltiplos aspectos da vida. A prática do Zen é uma prática constante e sem interrupções, nós não podemos limitá-la a um espaço ou tempo. Não pode ser: “estou aqui e agora, sim, tenho tempo, e vou praticar”. Não pode ser assim, na realidade ela tem que ser todo o tempo e, desse modo, todas relações amorosas, desafios e obstáculos diários, nossa autodisciplina, valores, forma como nos cuidamos, nutrimos nosso corpo e nossa mente, como interagimos com o ambiente, tudo e todas as coisas são oportunidades para chegarmos mais perto de nossa essência; purificando, assim, uma mente que só se for límpida é que pode dar a oportunidade de se ter essas experiências que estamos narrando.
Se você atinge o kenshō – ou aquilo que você acha que pode ter sido um kenshō –, deve falar com um professor que vai chancelar ou não a experiência a que você chegou, e vai lhe dizer para prosseguir e ir
Mas, então, estamos fazendo zazen para quê? Para passarmos por dharana, para atingirmos dhyana, irmos para samadhi e, cultivando samadhi , criarmos as condições para termos a experiência de kenshō. Ela, assim como a de samadhi , é inicialmente fugaz e efêmera, mas lhe permite enxergar, ter um lampejo de como são as coisas. É como levantar a ponta de um véu e ter uma breve visão, e, assim, não precisará mais acreditar em o que os mestres dizem, porque já terá visto que estamos falando de realidades experimentáveis, e que, se praticar corretamente, vivenciará tais eventos.
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C omo vocês têm acompanhado aqui, um após o outro, “os dez passos do boi”, tal como narrados por Ido, saberão que a experiência de dharana e dhyana já estão presentes desde o segundo passo. A experiência de kenshō já pode ter surgido e se apresentado fugazmente no terceiro passo, mas é nas etapas seguintes que o kenshō vai se tornando cada vez mais profundo e frequente, que passa, de fato, a influir na vida. Quando chegamos ao sexto passo, vemos que a pessoa tem kenshō, mas não o domina completamente, e, vez ou outra, ela falha em sua vida. Isso acontece porque apesar de ela saber, ainda não consegue incorporar todo o comportamento que seria esperável de alguém vivendo essa qualidade de realização espiritual. Tal qualidade só vai ser descrita como presente continuamente, a ponto de transformar a pessoa completamente, no sétimo passo; lembrando que o oitavo passo é o satori , a presença constante da realização. Quando chegamos ao satori , osímbolo não é mais um boi e um homem tentando controlá-lo, mas, sim, um ensō, um círculo vazio. Não existem mais boi nem homem.
mais fundo. Isso porque, mesmo que você tenha tido alguma experiência real, existe um outro estágio superior chamado no Zen de satori . Aqui, encontramos a capacidade de se ter kenshō a qualquer momento que se queira, ou seja, de dominar essa experiência, de incorporá-la de tal maneira que você possa idealmente chegar a viver constantemente dentro dessa perspectiva. Este é o nível mais alto.
Ido avança em seu caminhar. Escreve-me:
Há tempos o mestre havia reconhecido minhas experiências de kenshō. E à medida que elas iam se
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As sensações de estar elevado a um nível superior e os estados maravilhosos de êxtase passaram a ser um peso se deles tomava consciência. As experiências de kenshō, de perfeita presença e equanimidade, não pareciam mais excepcionais, estavam sempre comigo. Todo tempo havia aquele estado já além da percepção de felicidade que, anteriormente, me acompanhava, mas sempre em contraste com a vida comum. A vida comum tinha se tornado o kenshō, ele havia se tornado meu estado Osnatural.eventos
da vida transcorriam e simplesmente eu os deixava fluir; surgissem ou desaparecessem, era simplesmente tão natural como as nuvens correndo no céu. Nada olhava mais como se fosse imutável ou sólido, pessoas e coisas fluíam cambiando cores e formas como um pôr do sol. Minha mente não mais residia em parte alguma, ela também fluía como um regato marulhante. O verso sobre a transmissão do Dharma do primeiro dos sete Buddhas passados, diz: “Vício e virtude, pecado e bendição, tudo é vão, mora no nada”. Não sentia mais como se existisse um estado fora do kenshō, ele estava
aprofundando e se tornavam cada vez mais frequentes, ele me observava sem nada dizer. E de alguma forma, tudo foi se unificando e a questão da iluminação, do kenshō, foi deixada para trás e mesmo os temas caros ao Zen foram sendo esquecidos.
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Além do Pico da Montanha: CHEGA MARGEM
À OUTRA
Anteriormente, o samadhi era uma coisa a alcançar – às vezes, o conseguia, às vezes, não. Agora, o samadhi era minha própria natureza e o estado de estar perdido em pensamentos, ansiedades ou tristezas é que era uma coisa estranha e doentia. Precisava de esforço para chegar ao samadhi, mas agora ele e meu estar natural eram um só estado. Havia perdido o boi e restava somente a mim mesmo, a mente não operava mais distante de mim, demandando comando e controle. Tudo se havia unificado.
Está bem narrado por Ido. No primeiro passo, o praticante
Shikantaza passou a ser muito natural, não prestava mais atenção aos detalhes de postura e respiração, mesmo deitado, sentado, escrevendo. Bastava um pequeno movimento de consciência ou um mero levantar de olhos, para estar em samadhi, e um imperceptível esforço de consciência, para um kenshō calmo estar ali.
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comigo, e qualquer outro estado parecia ilusório, como se fosse uma loucura. Nem percebia mais que havia uma mente a ser controlada ou que andasse indo para todos os lados inquieta. Tudo apenas fluía. Agia de acordo com as necessidades e os compromissos, e os acontecimentos do mundo não conseguiam mais me alterar. Algumas pessoas, notando tal estado, começaram a me considerar como fora do mundo, excentricamente desligado.
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procura algo que faça sentido, mas está perdido em numerosas opções. Depois, ele encontra as pegadas do boi e começa a praticar o zazen, mas ainda não experimentou um despertar. No terceiro passo, “Vislumbrando oBoi”, ele já teve certas experiências místicas, mesmo que fracas, de alguma emoção e percepção clara das coisas. No quarto passo, ele segura o boi, mas o boi é rebelde e ele se sente desanimado pelo fato de, apesar de compreender o Dharma e apesar de ter tido experiências místicas, ver-se sempre caindo de novo em angústias, desespero, raiva, cólera, ciúmes e, ainda, ver-se reagindo à vida como um homem comum. No quinto passo, ele domina o boi, e este se torna um pouco mais manso, oque leva o domador a julgar que, agora, pode dominar a mente por completo. Algumas pessoas têm a sensação de que no passado estavam melhores no Zen, quando tinham tido as primeiras experiências que lhes pareciam muito brilhantes, maravilhosas, como o primeiro sesshin. A explicação para isso é que nós estamos saindo do zero e o primeiro progresso parece um passo importante. Depois, fica mais difícil de subir, cada ganho é mais trabalhoso e a pessoa pode ter a sensação de estar descendo a ladeira. De ter alcançado no passado um determinado nível, e, agora, o perdeu. Ela se critica por não conseguir um bom samadhi . Senta-se em zazen e a mente viaja todo o tempo, surgem coisas do passado que ela percebe não controlar.
Esse é um momento importante, porque é necessário não desanimar. Já houve grandes ganhos, só que a pessoa não os percebe com clareza. No sexto passo, o boi não só é manso, mas também muito obediente. O domador monta tranquilamente sobre sua garupa. Os acontecimentos normais da vida não o perturbam mais. Quando acontecem, ele lida com eles com naturalidade. Aquilo que parecia
terrível no passado, agora não é mais. No sétimo passo, kenshō, iluminação e o Zen são esquecidos, ele não mora em lugar algum e deixa que sua mente flutue.
Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
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CAP VIII
O chicote, o laço, o boi e o homem pertencem igualmente ao Vazio. Tão vasto e infinito é o céu azul, que não pode atingi-lo. Conceito de nenhuma espécie.
Sobre um fogo ardente, um floco de neve não pode subsistir. Quando a mente atinge esse estado, Chega finalmente a compreensão Do espírito dos antigos ancestrais.
127 Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
Aquele era o dia de tarefas pessoais. Durante a tarde, saí do alojamento e desci o caminho que levava à lavanderia. Durante um trecho, a trilha passava ao longo de coníferas altas; atrás os quartos e à frente uma paisagem aberta que permitia ver a reserva florestal. As montanhas velavam sobre nós, de tempos em tempos, tremiam com terremotos leves. “Tremores”, diziam os monges andinos, “nada demais, terremoto é outra coisa!”. Eu levava um guarda-chuva, porque a neve não cessava de cair.
Em Yokoji, na Califórnia, o frio reinava soberano. Ao acordar de manhã, olhávamos pelas vidraças para ver a quantidade de neve que se pendurava nos galhos dos pinheiros; sua espessura revelava oquanto nevara na noite passada.
De súbito, fui apanhado por uma tempestade de neve. Ela começou a engrossar rápido. Achei levemente divertido. As botas pisavam um caminho macio e gelado, o vento tornou-se forte e rodopiava à minha volta. A paisagem desapareceu. Minha mente, depois de meses de monastério, fazendo vários zazens duplos por dia, andava desligada de tudo. Uma cortina completamente branca me cercou, a neve rodopiava em torno de mim e do guarda-chuva. Nem uma nesga de paisagem se via além do redemoinho do qual era o centro. Uma enorme alegria me tomou e comecei a rir. Ninguém podia ouvir meu riso. Era, de repente, o centro de um universo alvo e com uma única cor. Tentei continuar caminhando tomado por aquela felicidade e, pouco a pouco, a tempestade cessou.
Procurei o proprietário do samuê no quarto dos monges. Ele agradeceu surpreso e, levando-o ao rosto, disse: “Está perfumado!”. Eu sorri e procurei uma nova tarefa a fazer, guardando comigo a magia que havia experimentado na tempestade como um tesouro secreto, que agora relato a leitores escolhidos.
3) O daquele que é só consciente, sem turbulência alguma.
Alcancei a lavanderia, alguém havia esquecido, pendurado em uma corda, um samuê – a roupa de trabalho negra dos monges. Peguei-a, parecia uma tábua; estava congelada. Entrei e peguei minhas roupas lavadas, coloquei-as na secadora com o samuê. Liguei-a. Assim que ela começou a funcionar, fazia um ruído como se houvesse um pedaço de lenha dentro do cilindro rotativo. Aguardei que o barulho parasse, tomei oconjunto nas mãos e retornei pelo caminho, há pouco mágico, agora, com as roupas aquecidas nas mãos.
Temos diferentes níveis de consciência:
À medida que diminui a consciência, sobe o nível. Logo, um nível mais baixo de consciência é mais elevado em realização. No nível que antecede o mais alto, o terceiro, aparecerão, em algumas ocasiões, rastros de ação reflexiva da consciência que iluminarão, de forma momentânea, o cenário da mente constante. No nível quatro, no grau mais
2) O do que compreende, mas que não forma ideias.
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1) O do iniciante, em que os pensamentos e as ideias vão e vêm.
4) O daquele que queremos atingir no kenshō, um grau que simplesmente reflete os objetos internos e externos como faz um espelho.
Nós praticamos zazen para treinar o samadhi , a concentração,
Nessa altura, varre-se o modo habitual da consciência, desaparece o refletor e o refletido, um mundo de nuances pelágicas profundas. Esse estágio de samadhi sem pensamentos é idêntico ao samādhi absoluto. É o estado em que podemos dizer “nem bois, nem homens”. Se, no entanto, recordações emergem, perturbam de tal modo o samadhi que anulam esse estágio mais profundo. No início, ele ocorre por momentos fugazes, porque cada vez que a memória penetra, anula o samadhi que poderia ter sido cultivado. Demanda tempo ampliar a frequência e a duração dessas experiências.
No samadhi sem pensamentos, a atividade cerebral fica reduzida ao mínimo. Muitos praticantes que jamais foram a fundo na atividade meditativa, ou pertencem a escolas que não a praticam, acham que é impossível se chegar a esse estado. Alegam que o cérebro produz sem parar pensamentos, que atingir esse estado seria como estar morto. Na verdade, trata-se de ignorância das profundidades a que pode chegar a prática meditativa. Falam limitados a experiências pobres, que apenas arranharam esse treinamento levado tão a fundo no Zen. Não é raro encontrar mesmo Zen budistas ou monges que jamais penetraram tais estados mais profundos.
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profundo, não penetra nem a mais tênue ação reflexiva da consciência. Surgem certas sombras de memória, como lembranças remotas de vidas anteriores que desejam vir à nossa consciência e, mesmo que não lhes seja permitido se expressar, tocam a nossa disposição, influenciando as atividades da consciência.
omomento presente. Todas as instruções iniciais podem ser reduzidas a uma única: “fique no momento presente”. Não quer dizer realmente não ter atividade mental, mas é uma forma muito sutil de pensamento, que é mera percepção das coisas em volta. É a sensação de: “estou aqui nesta sala, ouço este som, percebo”. Há percepção, mas não há julgamento, considerações, estimativas, planejamentos, intenções. Há só o treinar o samādhi . “Estou em samadhi, plenamente presente”. Aí surgem memórias e, quando elas ocorrem, elas nos tiram do samadhi . Os pensamentos despontam sucessivamente, um após outro; não existem dois pensamentos simultâneos, não existe um pensamento sempre presente. O que acontece é que um pensamento expulsa o precedente, normalmente de forma encadeada, como um hyperlink em um texto do computador. Você clica, acessa aquele substrato da memória, acessa aquele arquivo. É como na tela do computador, você não vê duas imagens ao mesmo tempo, sempre que surge uma imagem ela expulsa a anterior. Pode até haver um alerta avisando que você tem um arquivo, mas você precisa clicar nele para abri-lo; sempre um arquivo expulsa ooutro. Na tela da nossa consciência, só surge uma coisa de cada vez, e, normalmente, elas chamam outras, assim, nós ficamos fazendo essa sucessão de pensamentos. Essa é a atividade mais baixa, é o nível de realização mais baixo, ou seja, realização zero. É uma mente que vive de encadeamentos de pensamentos ou presa à memória e às emoções, sempre invasivas. Significa controle zero do boi, pois ele vai para onde quer.
Já a obtenção do samadhi absoluto, ou sem pensamentos, equivale ao desaparecimento tanto do boi quanto do homem.
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O fenômeno de nossa existência nos faz distanciarmo-nos do absoluto de todas as coisas, porque nos dá a consciência de uma unidade separada por meio de nossos sentidos. É como se fôssemos terminais do universo cheios de sensores que nos fazem pensar que somos separados
Todas as coisas são contingentes, dependem umas das outras para existir, segundo a doutrina da Originação Dependente; ou seja, eu e o outro somos uma coisa só e o fato de nos vermos separados é a nossa ilusão mais fundamental e a mais difícil de se dissipar.
Realizo à noite, mais uma palestra para meus alunos de zazen e alguém pergunta sobre o absoluto e o relativo no Zen. Respondolhe que nos últimos 2.500 anos, discutiu-se muito sobre isso. Muitos filósofos debruçaram-se sobre a questão do absoluto, descrevendo nossa capacidade de chegar a compreendê-lo, dizendo ser como inserir um polígono dentro de uma circunferência; por mais que multipliquemos os lados do polígono, podemos nos aproximar da circunferência, mas jamais seremos idênticos a ela.
O budismo, entretanto, tem um entendimento diverso dessas ideias apresentadas. Propõe a identidade entre relativo e absoluto e não a sua distinção. A ideia de absoluto foi sempre colocada por todos esses filósofos como alguma coisa fora de nós. O budismo tem uma outra visão: nós e o absoluto somos uma coisa só.
E ele, então, permaneceu como uma ideia de tudo aquilo que não fosse contingente, que não dependesse de nada para existir, e essa ideia confundiu-se com a de uma divindade.
Assim, a concepção budista é abandonar a ideia de um absoluto separado de nós, que nós investigamos e não conseguimos compreender. E que, sim, é possível a nós vermos a nossa verdadeira natureza: nossa verdadeira natureza é o absoluto. Ele não está sujeito a tempo, nem a nascimento e morte. Se o compreendermos, nos libertaremos de todo ir e vir.
Algumas raras vezes fiquei sozinho em Sojiji Soin, como guardião solitário, encarregado de bater os sinos nas horas certas, enquanto todos saíam para um evento em algum templo a menos de
Praticamos zazen para acordarmos do nosso sonho de separação, de nossa noção de relatividade e, enfim, mergulharmos no absoluto. Assim, ao mesmo tempo, podemos ser terminais sensíveis e sabermos o que somos realmente no fundo, ao que realmente pertencemos. Sem as distinções enganosas de sermos separados.
do próprio universo, e que somos dele, e entre si, independentes. Quando, na verdade, somos parte do universo e surgimos e desaparecemos com ele. Se acaba o mar, acabam as ondas. Se não há mar, não há ondas. Isto existe, porque aquilo existe. Surgimos como terminais sensíveis com autoconsciência.Asomade
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todos os relativos é o próprio absoluto para o budismo, e este se manifesta em todas as coisas relativas. É ele que chamamos de vazio – vazio de identidades separadas –, é todas as formas. Então, o vazio é forma e a forma é o vazio. Todas as coisas relativas são o absoluto e o ele se manifesta mediante e através de todas as coisas relativas.
Além do Pico da Montanha:
IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
Sentei-me em um montículo à guisa de zafu. Rapidamente um samadhi brilhante se estabeleceu, ajudado pelas condições favoráveis. Uma exaltação brotou em meu peito e, atingido por ela, levantei os olhos. Tudo continuava igual, a mesma clareira, as mesmas cores. Mas todas as coisas haviam ganhado uma beleza que só poderia existir em um paraíso. Esquecera de mim e é como se não houvesse mais ninguém ali. Não percebia corpo, mas estava consciente de que enxergava, então havia olhos, mas onde estava aquele “eu”, mesmo? Dissolvera-se na paisagem da clareira e, quando recordo o momento, é como se sobre
um dia de viagem. Sojiji Soin foi fundado pelo célebre Keizan Zenji (1268 - 1325), o maior organizador e difusor do Zen Soto no Japão. Sua casa original ainda está lá de pé. Conta-se que, no fim da vida, pediu a um aluno que chamasse a todos. Disse-lhes, então, que acreditava que morreria naquela noite; o que realmente sucedeu. Trabalhei em seu jardim ancestral, à frente da casa onde creio que isso aconteceu. Grande realização ser capaz de prever e anunciar a sua passagem final.
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Solitário, fazia as tarefas do dia e sobrava tempo para mim mesmo – coisa muito rara nos dias normais, já que nos templos Zen não há fim de semana e a regra é a de Pai-Chang, em japonês Hyakujō Ekai (720814), “dia sem trabalho, dia sem comida”. Consciente da oportunidade, aproveitei para subir a trilha da montanha atrás do monastério. Cheguei facilmente a um trecho que se abria em uma clareira, sombreada pelas grandes árvores e coberta junto ao solo por uma vegetação baixa. As cores eram do verde suave ao intenso das folhas dos troncos maiores. Um enorme silêncio de atividades humanas. Nenhum compromisso durante um bom tempo. Nenhuma notícia chegava do mundo exterior.
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Sentia-me normal e comum, mas todos os traços de ansiedade e preocupações haviam se dissolvido como se eu não estivesse mais neste mundo. Junto ao mestre, nada tinha a dizer e, ao lado de minha companheira, cada momento era mergulhado em uma amorosidade
omontículo não houvesse ninguém. Vejo a cena de um ponto externo. Pude permanecer um tempo não medido naquela situação de integração plena.
Ido, então, volta com seus relatos, apresentando-me o oitavo passo:
De repente, tudo em volta ficou envolto em uma luminosidade dourada. Não identificava mais uma mente a que controlar, dominar ou conduzir. Estava agindo simplesmente sem estar movido por cogitações. Nada mais me pesava, agia naturalmente e parecia que meus pés ora beijavam o chão sagrado debaixo de mim, ora como que flutuavam milímetros acima dele.
Senti repentinamente que me restavam obrigações no monastério, sinos a tanger que toda a aldeia ouvia. Instantaneamente, voltei a mim mesmo, trazido ao mundo normal. Desci a trilha, sabendo que, mesmo no monastério, não havia alguém a quem pudesse narrar tal experiência, teria que aguardar um dokusan com meu próprio mestre. Fiquei, então, silencioso e as tarefas comuns me trouxeram rapidamente a esse mundo, como sempre.
todo o trabalho, visto que tinha renda para sobreviver sem ele. Sabia que um destino desconhecido me esperava e inscrevi-me em trabalhos voluntários, em que não houvesse perda nem ganho, apenas o sorridente auxílio a pessoas sofredoras; estava fora do mundo e nem meu próprio corpo me parecia mais do que um instrumento que tinha por empréstimo para transitar em um planeta em que estava de visita.
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Abandoneisilenciosa.
O oitavo passo tem como símbolo o círculo vazio. Nem boi, nem homem. No estágio anterior, perdeu-se o boi. Restou o homem, e pode-se pensar que o caminho chegou a um fim. Na verdade, em outras representações do caminho, os passos se limitavam a esses primeiros oito, foi no Zen, graças a Kakuan Shien (Kuo-na Shih-juan), um mestre Zen chinês do século XII, que mais dois passos foram acrescentados. Assim, agora, aparece outro estágio no qual tanto o boi como o homem são esquecidos.

Ele voltou à Origem, retornou à Fonte, mas foi em vão que tomou suas providências.
Os riachos serpenteiam por si mesmos, as flores vermelhas desabrocham naturalmente vermelhas.
É como se estivesse agora cego e surdo.
CAP IX
Sentado em sua cabana, não almeja as coisas que estão fora.
Desde então, quando sinto saudade, basta-me ir a uma réstia de sol, levantar o rosto e apreciar seu afeto materno, incansável e sempre pronto. Instantaneamente sua presença me mostra a universalidade e unidade de todas as coisas. A ilusão de um tempo em flecha é desfeita. O tempo se mostra circular, voltando sempre ao ponto de partida, sem fim nem começo. Percebo que ela permanece sempre junto a mim, assim como todos os entes queridos. E juntos, todos, todos os seres, fazem-se presentes quando os recordamos no enorme universo de unicidade de
Em 2008 minha nonagenária mãe faleceu. Fui buscar suas cinzas no crematório de Camboriú, o único que funcionava nas proximidades, àquela época.Mederam
Era inverno, porém o sol brilhava em um dia lindo. Passei a porta e ganhei o caminho da praia. O sol bateu em meu rosto e ergui um pouco a face para recebê-lo. A carícia de seu calor eram as mãos de minha mãe, tantas vezes sentida no passado. Fiquei profundamente agradecido que ela estivesse ali comigo. Que não tivesse desaparecido para sempre. Que não fosse verdade a frase tão doída das perdas: “Nunca mais…”
uma urna, não parecia que ela pudesse estar ali, naquele invólucro tão limitado. Paramos em Porto Belo, no apartamento de um parente. Estava naturalmente triste, mas, contida dentro mim, essa tristeza se traduzia em uma saudade profunda.
139 Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
140 Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM que participamos.Ido:
Um dia como que um relâmpago passou em frente aos meus olhos, estava andando mergulhado em um estado de samadhi sem pensamentos, quando vi o sol, as nuvens, os pássaros, a gente que passava, era o mesmo mundo de momentos atrás, porém havia se tornado completamente diferente. Parecia que todas as coisas falavam comigo, as colinas tinham seu ser, as cores tinham voz. Tudo tinha a natureza de Buddha. O vento mesmo era pura carícia e as mãos do sol me tocavam o rosto com amor. Se havia oparaíso, a Terra Pura dos Buddhas, ali ela estava, sem nada que pudesse ser reprovado, tudo era maravilha. Minha mente anterior havia desaparecido e eu havia retornado à essência. Nem o mal nem o bem podiam mais ser discernidos, mergulhados numa mutabilidade que tudo equilibrava em pura luminosidade e perfume.
Antes desse ponto, ele precisou realizar o “Nem boi, nem homem”. Dentro de si, foi derrubando item por item as construções de seu “eu”. Ao fim, nada mais restava a que se agarrar, nem identidade, nem deuses, nem fantasias infantis como as crenças que a humanidade construiu para si. Isso é o samadhi absoluto. Agora o ponto é outro, voltamos a ter uma consciência ativa, porém completamente transformada sem as sombras e perspectivas egoicas do passado. É, de certa maneira, como a descoberta do terceiro estágio, das primeiras experiências espirituais de
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Zazen. Para os alunos do zendō, deixo as palavras saírem de minha boca sem cogitar:
kenshō; a diferença é que a profundidade é muitíssimo maior.
O que se diz do Tathāgata será certo para você, verá o rosto de Buddha para onde quer que dirija seu olhar. Até ontem, necessitava de um grande esforço para desenvolver o estado de samadhi absoluto e um controle firme de toda a atividade da consciência. Agora, ela se abre alegremente em toda sua plenitude. Porque a consciência tornou-se límpida, o kenshō é permanente e a isso chamamos satori . Assim, satori é kenshō constante, tudo o que olhamos é perfeito, tudo o que ouvimos é lindo, não existe mais nem bem nem mal, certo ou errado. Todas essas coisas são tão transitórias que o que parece mau é bom.
Para um observador externo, há, de novo, uma certa inocência, como ocorre com o principiante, e isso se expressa na face que se torna tranquila e sem malícia.
IDO CHEGA À OUTRA
Além do Pico da Montanha: MARGEM
K atsuki Sekida (1893-1987), sobre isso, comenta que, no estado anterior, “nem boi, nem homem”, foi realizada uma total e decisiva purificação da consciência e se dragaram os resíduos acumulados ao longo de incontáveis éons. No estado presente de “Voltando à fonte”, permite-se, assim, que a consciência comece a funcionar de novo, em um estado mental tomado por limpidez. É como pintar sobre uma tela em branco: cada cor se destaca com nitidez. Se escutamos música, nos soa como incrivelmente linda. É um estado de samadhi positivo, em que o kenshō tornou-se permanente.
Para aquele que está praticando, as mínimas e insignificantes coisas ganham relevância e sentido, à medida que mergulha dentro de si mesmo e desperta para uma realidade que estava oculta.
que em um nível ainda menor, ínfimo, mesmo que por alguns segundos, nos faz perceber essa maravilha. Para sermos capazes de enxergar, precisamos esvaziar nossa mente do redemoinho, da poeira, das nossas contínuas cogitações, dos medos, das ansiedades e dos apegos às memórias. Só quando tudo isso se acalma, nossa mente fica suficientemente límpida e, por meio dessa transparência, toda maravilha surge.
Um pequeno inseto voando no ar, um musgo crescendo sobre a casca de uma árvore, um raio de sol entrando pela janela, a chama da vela tremeluzindo no altar, a fumaça do incenso azulada subindo reta e depois se enrolando. Tudo, absolutamente tudo, é maravilha.
Nós somos pura continuidade. A cada dia temos um “eu”, a cada respiração temos um “eu”, um desaparece e outro surge. À medida que tomamos consciência, e quando vemos as pequenas coisas, essa maravilha transforma nosso “eu” cada vez mais, sutilmente. Percebemos que surgimentos e desaparecimentos nada são senão eventos em uma longa continuidade, em que vamos manifestando “eus” levados pelo fio de nosso karma, modificando nossos impulsos e a nós mesmos, devagar em direção à Despertar,budeidade.mesmo
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Permaneçam calmos e atentos.

CAP X
Com o peito descoberto e descalço, ele entra na praça do mercado. Enlameado e empoeirado, como sorri mostrando os dentes! Sem recorrer a místicos poderes, faz árvores secas florescerem de repente.
Ido:
Retornei ao mundo despreocupadamente, tanto fazia oque vestia, se sentava nas reuniões de negócios, os rostos pareciam transparentes e adivinhava suas motivações mais secretas. Podia me vestir de andrajos ou com as vestes de um milionário de acordo com as circunstâncias. Tudo que me importava era ajudar outros a vislumbrarem o despertar. Com um sorriso e um olhar compreensivo, via a alegria brotar nos olhos dos que estavam perdidos em angústias. Desejava servir-lhes o vinho da vida e da alegria. O mundo do certo e errado havia se dissolvido, a maneira de pensar comum havia desaparecido. Não importava mais ser monge ou leigo, ser qualquer coisa que os outros esperassem. Mesmo a morte possível era enfim uma visitante bem-vinda, a mais libertadora e abridora de portais. Pensamentos brotavam como flores e feneciam como estas. A perfeita liberdade sem obscuridades estava à minha frente. Sentia-me de volta ao mundo dos homens comuns, liberto de qualquer ambição de santidade. Meu desaparecimento seria como a passagem de uma nuvem, uma sombra refrescante e uma dissolução sem traços no puro céu azul.
147 Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
Este manto que nos cobre e protege, também nos identifica como seguidores dos ensinamentos do grande mestre que foi Shakyamuni Buddha. Somos seguidores dos desenvolvimentos, aprofundamentos, detalhamentos feitos por seus grandes sucessores, nossos ancestrais, através de 2.500 anos de esforço para diminuir os sofrimentos dos homens. A fim de lhes dar lucidez para enxergar a si mesmos, as suas mentes agitadas e turbulentas, sensíveis aos azares da sorte, às perdas, aos sofrimentos afetivos, aos receios e aos Sentamos,medos. agora, juntos aos nossos companheiros, ombro a ombro. Criando hábito, disciplina, fortalecendo-nos com a energia trazida pela presença dos que aqui estão. Nossos parceiros de prática esperam por nós, então nós viemos e nos sentamos.
Eu agradeço a energia que vocês me dão, que faz de mim monge, que me faz sentar e tentar corresponder a tão altas expectativas. Todos nós, muitas vezes, nos sentimos despreparados e inadequados para tarefas tão grandes, assim só nos resta imitar os mestres do passado, fingir que somos como
Pensativo, sento-me em zazen com os participantes da Daissen Virtual, todos espalhados pelo mundo com seus celulares e câmaras que nos unem através de um mágico espaço. Falo do manto que visto, querendo secretamente que um Ido se materialize com sua realização:
Para nós todos aqui, o mais importante são os passos iniciais. A prática do samadhi , a experiência de kenshō, o futuro satori , para quem chegar lá. Samadhi é com esforço, kenshō acontece, não adianta querer que ele aconteça, ele irá acontecer sozinho.
148 Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
Além do Pico da Montanha: MARGEM
Ao emular a postura de Buddha, ao imitar o comportamento de nossos ancestrais, nós construímos esse edifício que é a sangha, um edifício que não tem tijolos, nem ferro ou concreto. Mas que é feito por nossas mentes, nossos corpos, nosso propósito e nossa solidariedade.
IDO CHEGA À OUTRA
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eles, mesmo duvidando de nós mesmos, podemos imitar.
Às vezes, seremos atingidos pela vida e choraremos, nos sentiremos angustiados e com dor no peito, no entanto, é reconfortante sabermos que temos companheiros que sentem o mesmo e que são capazes de determinadamente praticar para ganhar mentes livres, para esquecer os sofrimentos, olhar para o céu azul e o sol que nasce. Ver a luz que nos ilumina e clareia tudo. Isso é uma grande demonstração de que dentro de nós também a luz do Dharma pode tudo clarear e espantar toda dor e Osofrimento.Sutrado
Coração diz que quando o Bodhisattva vê claramente o vazio dos agregados, liberta-se instantaneamente de toda dor e sofrimento. Significa que quando não vemos mais um “eu” nas coisas, compreendemos ogrande fluxo de manifestações, a nossa verdadeira natureza una com todos os seres; toda abrangente, sem limites, sem bordas, sem fronteiras. Percebemos que todo o tempo se dissolve, e nós somos a própria eternidade. Neste dia, queria recordar também a grande tragédia vivida na pandemia, a quantidade imensa de sofrimento criado pelas perdas afetivas. É realmente uma grande tragédia. Nós temos companheiros de sangha que perderam, em uma única semana, o pai e a mãe. Neste momento, voltamos também nossos olhos para eles, com o consolo do Dharma: não há ir e nem vir; todos estamos sempre juntos.
150 Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
Eu me congratulo com todos por serem capazes de estarem aqui e agora sentados como Buddhas. Vocês todos são os queridos bodhisattvas do Zen, e um grande amor nos une. Essa sensação nos dá força e conforto. Mergulhamos profundamente nesse sentimento de unidade e de eternidade. Nós, todos os ancestrais, o próprio Buddha, cada um de nós, uma fagulha brilhante nesta grande tempestade de luz que nos envolve e faz com que cada um seja maior do que um indivíduo. Somos participantes dessa inundação luminosa que perpassa os tempos, a qual pertencemos e que, se a cultivarmos, continuará nos envolvendo também sem limites. Porque nós, e todos os outros seres, pertencemos a esse grande oceano, o oceano de existência e apenas borbulhamos como espuma vez ou outra, mas estamos aqui, juntos.
Nada é esquecido no universo, nada desaparece, nós e nossos entes queridos estamos juntos. Eles estão presentes em nós mesmos e em todas as coisas que nos rodeiam, na luz que nos ilumina, no vento que balança as árvores.
Essa unidade e apoio é o que a sangha significa, o lugar da harmonia.
153 Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
outro lado, mesmo que os seres tenham sofrimentos ilusórios, sonhando pesadelos de existência, tais sonhos irreais produzem, sim, sofrimentos. E os que estão despertos, com as palavras do Dharma, tentam acordar aqueles que se agitam em seus sonhos angustiantes. Querem despertá-los, porque sabem que só aí verão, instantaneamente, que seus sonhos eram falsos e seus sofrimentos a mais pura ilusão. Assim, os sonhos são ilusões, mas o sofrimento é real.
Isso quer dizer sem exceções, até o último, você sabe bem. Quero encorajá-lo com o voto, ele dará sentido mais profundo a uma
Epílogo
Ido, sim, teoricamente podemos mesmo escolher entre abandonar o barco dos ensinamentos e prosseguir em uma trajetória outra; quem sabe planos de manifestação mais elevados, descritos como mundo dos deuses, ou da não forma. Desde que, claro, abandonemos a noção da existência de outros seres e completamente nos livremos da compaixão, essa que nos exige que percebamos que há alguém de quem nos compadecermos. Isso é a extinção completa da noção de existência separada.De
Há tempos, o budismo Mahayana, optou pelo caminho do Bodhisattva, querendo extinguir o sofrimento, despertando os seres e espantando os sonhos. A escolha é inteiramente sua, mas lembre-se de nosso voto, tantas vezes repetido: “Os seres são inumeráveis, faço o voto de libertá-los todos”.
154 Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
existência como a sua, mesmo que seja apenas uma manifestação nas páginas de um livro.
Shien, Kakuan. As dez figuras do apascentar do boi com comentário e versos.
In: Kapleau, Philip. O s Três Pilares do Zen. Coleção Corpo e Alma. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1978. Pág. 313-323.)
Nota:
157 Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
Mas o que quer dizer GYATE GYATE HARA GYATE HARA SO GYATE BODHI SOWA KA?
Todos os Budas, dos três mundos, devido à sabedoria completa, obtém a Correção: “anuttara-samyak-sambodhi”, que quer dizer “a iluminação completa, perfeita e universal”. Nessa situação, desapareceram todos os ventos das paixões e entrou-se no Nirvana ou atravessou-se o rio e chegou-se à outra margem, a margem da sabedoria.
A ORIGEM DO NOME DO PERSONAGEM.
“Saiba que a sabedoria completa, expressão de grande divindade, grande claridade, expressão insuperável, inigualável, com capacidade de remover todo o sofrimento. Isso determina, invoque e repita: GATE GATE, PARAGATE, PARASAMGATE (em japonês GYATE GYATE HARA GYATE HARA SO GYATE BODHI SOWA KA)” e repete-se o nome do sutra – sutra da sabedoria completa.
Chegados ou idos, todos juntos, para a outra margem, à iluminação, salve.
É isso que quer dizer. É por causa disso que dei o nome ao personagem de “IDO”. Quem conhecer o mantra, e souber o significado
Sobre o nome do personagem, Ido, ele foi inspirado pelo Prajnaparamita Sutra (Maka Hannya Haramita Shingyo, em japonês).
Este é o Sutra do Coração. Mas a essência mesmo, porém, é: “vazio é forma, forma é vazio”. Se você conseguir entender isso, resolveu overdadeiro KOAN que é o Sutra do Coração.
158 Além do Pico da Montanha: IDO CHEGA À OUTRA MARGEM
do mantra, pode chegar à outra margem.
Monge Genshō
Posfácio:
zafu banco de zazen zabuton



Escolher lugar tranquilo, limpo e organizado. Para praticar, você vai precisar de um zafu ou banco de zazen e um zabuton. Caso não os possua, provisoriamente, podem ser utilizados um colchonete e uma almofada alta e firme ou mesmo uma cadeira.
Não pense. Apenas faça. Não fique considerando “vou fazer, não vou fazer”. Marque a hora e simplesmente faça ozazen. Se funciona para mim, vai funcionar para você também.
LOCAL E MATERIAIS DE PRÁTICA
COMO PRATICAR ZAZEN
161
Dobre o polegar da mão esquerda para dentro da palma e feche os dedos da mão à volta dele (faça um punho). Posicione a mão em frente ao peito. Cubra a mão esquerda com
POSTURA de MÃOS
Essa é uma expressão de respeito, fé e devoção. Porque as duas mãos (dualidade) estão unidas, o Gasshō. exprime “Mente Una”. Mantenha as palmas e os dedos de ambas as mãos juntos. Seus braços devem ficar ligeiramente afastados do peito, um palmo da ponta do nariz, seus cotovelos devem apontar para fora, formando uma linha reta, paralela ao chão, com seus braços. As pontas dos dedos médios devem ficar alinhadas com a ponta do nariz.
GASSH Ō
Instruções de acordo com a Escola Sotoshu
Praticando Zazen
SASHU

162 Posfácio: COMO PRATICAR ZAZEN

Coloque a sua mão direita, com a palma voltada para cima, sobre seu pé esquerdo, e sua mão esquerda, com a palma voltada para cima, sobre seu pé esquerdo. As pontas dos polegares devem estar se tocando levemente. Coloque as pontas dos seus polegares em frente ao seu umbigo e seus braços levemente afastados de seu corpo. Não force os polegares um contra o outro, nem os deixe se separarem.
HOKKAI–JOIN (Mudra Cósmico)



POSTURA de MÃOS (Continuação)
SASHU (Continuação) a mão direita. O polegar descansa sobre a mão esquerda (encaixa na depressão da mão esquerda) e as articulações das duas mãos se encaixam perfeitamente. Mantenha os cotovelos longe do corpo formando uma linha reta com os braços.
163 Posfácio: COMO PRATICAR ZAZEN
SENTANDO-SE
Em frente ao seu assento, de pé, faça uma reverência direcionada ao lugar em que vai se sentar, em Gasshō. Em seguida, ainda em pé, gire no sentido horário, até que o seu assento fique atrás de você e, então, faça mais uma reverência em pé e em Gasshō.
164 Posfácio: COMO PRATICAR ZAZEN
Almofada (zafu), banquinho ou cadeira




POSIÇÃO de SENTAR
MEIO–LÓTUS
Simplesmente, coloque o pé esquerdo sobre a coxa direita, ou ao contrário.
Coloque seu pé direito sobre a coxa esquerda, e, então, seu pé esquerdo sobre a coxa direita. Cruze as pernas de forma que as pontas dos pés e a borda externa das coxas formem uma única linha.
165 Posfácio: COMO PRATICAR ZAZEN
LÓTUS COMPLETO
BIRMANESA


Se você não conseguir se sentar em meio lótus, cruze as pernas, uma em frente à outra, de forma que ambos os joelhos consigam se apoiar no chão.

166 Posfácio: COMO PRATICAR ZAZEN
Sente-se ereto em uma cadeira, da mesma forma que faria em um zafu. Não se incline para trás. Use uma almofada de suporte quadrada no assento e/ou embaixo de seus pés, de acordo com a necessidade, a fim de encontrar uma postura ereta confortável. Posicione suas mãos sobre seu colo na posição de Mudra Cósmico (hokkai-join).
BANCO DE MEDITAÇÃO (Zazen)
Apoie os ísquios em seu assento inclinado, e os joelhos no chão, passando os pés por baixo do banquinho.
POSIÇÃO de SENTAR (Continuação)
SEIZA



CADEIRA
Apoie os ísquios em seu zafu virado ao contário, e os joelhos no chão, deixando os pés ao lado do zafu.
Encaixe o queixo para dentro e alongue o seu pescoço como se estivesse tentando tocar o teto. Suas orelhas devem estar em linha paralela aos ombros, e seu nariz deve estar alinhado com o seu umbigo. Depois de endireitar as costas, relaxe os ombros, costas e abdômen, sem mudar a postura. Sente-se na posição ereta, sem se inclinar para a esquerda ou direita, nem para a frente ou para Balancetrás.
POSTURA
a parte superior do corpo da esquerda à direita por algumas vezes como um pêndulo. Esse movimento de balanço começa com movimentos maiores, gradativamente se tornando menores. Estabilize-se, por fim, na postura correta ereta, sem inclinações para a direita ou esquerda.
167 Posfácio: COMO PRATICAR ZAZEN


(Continuação)
A BOCA E A RESPIRAÇÃO
168 Posfácio: COMO PRATICAR ZAZEN
Mantenha os olhos entreabertos. Direcione a sua vista para baixo, em um ângulo de 45 graus, aproximadamente a um metro de distância. Sem focar em nada, não tente dar atenção especial a nada que esteja em seu campo de visão, simplesmente esteja presente. Se seus olhos estiverem cerrados, será fácil desviar para a sonolência ou Quandodevaneios
OS OLHOS


Mantenha a boca fechada, colocando a ponta da língua no céu da boca, logo atrás dos dentes. Não deixe o ar ficar preso dentro da boca.
POSTURA
acomodar-se na postura de zazen, inspire e expire profundamente, com calma, por três vezes. Em seguida, respire lenta e calmamente pelo nariz, entregandose ao movimento natural da respiração.
169 Posfácio: COMO PRATICAR ZAZEN
Em pé, com as mãos em shashu, dê oprimeiro passo com o pé direito. Avance dando somente meio-passo para cada respiração completa (inspiração e expiração). Quando o kinhin terminar, o sino tocará uma vez. Alinhe os pés e faça uma reverência com as mãos ainda na posição de shashu. Em seguida, retorne ao seu assento em um passo normal.
KINHIN


POSTURA (Continuação)

(s.) – sânscrito (p.) – pali (j.) – japonês ABHIDHARMA
LEGENDA
ANGŌ (j.): Período de treinamento monástico em mosteiro de formação oficial, cada período tem a duração de 3 meses.
(p.): Conceito budista do “não-eu”. Nada tem um “eu” inerente, todos os “eus” são construções mentais. Não há almas eternas ou qualquer coisa equivalente.
171
(s.): Ensinamentos da Sabedoria. Comentários filosóficos estruturados sobre o Dharma, de autoria incerta pois aquele tempo os autores evitavam colocar seus nomes atribuindo tudo ao próprio Buddha. O Abhidharma consiste de 7 livros: Dhammasangani, Vibhanga, Dhatukatha, Puggalapaññatti, Kathavatthu, Yamaka e Patthana, cada um deles com o seu respectivo comentário: Atthasalini, (do Dhammasangani), Sammoha-vinodani, (do Vibhanga), e Pañcappakarana-atthakattha, (os demais cinco livros).
Glossário
ANATTĀ
BODHISATTVA
(p.): Termo para se referir aos monges (para as monjas, bhikkuni).
ARHAT
(s., j. Bosatsu): No budismo Theravada, este termo faz referência às vidas de Shakyamuni antes de converter-se em Buddha, relatadas na coleção de histórias Jataka. Para o budismo Mahayana, representa o ideal da prática e faz referência a alguém que embarcou na busca da iluminação e fez o voto de salvar os demais antes de salvar-se a si mesmo.
ANICCA
172 Glossário
(p.): Vide impermanência.
(s.: “merecedor, digno, honrado e valioso; p.: Arahant); aquele que atingiu a meta da iluminação ou despertar (bodhi). Essencialmente, oestado de Arhat consiste na erradicação do influxo (ashrava) e na destruição das impurezas (kleshas). O Arhat também está livre dos dez grilhões (samyojana) e com a morte deixa de renascer. A diferença entre um Arhat e Buddha é que o Buddha alcança a iluminação por si mesmo, enquanto o Arhat atinge-a por seguir os ensinamentos de outrem. Como ensinado no budismo primitivo, o Arhat cumpre exatamente a mesma meta que o Buddha. De modo geral, Arhat é alguém que se devota alcançar a iluminação, em contraste com o caminho do Bodhisattva, que busca a liberação para todos os seres. FONTE: Buda Shakyamuni - a Vida do Iluminado - Venerável Mestre HSING YUN
BHIKKHUS
(j.): Grande sino dos templos colocado em estrutura própria e normalmente externa.
BONSHŌ
(s., j.): Do sânscrito, da raiz dhri. Um dos três tesouros (ver Buddha e Sangha). Possui três significados: o ensinamento do Buddha Shakyamuni, a lei universal (a ordem cósmica) e a verdade última; com “d” (minúsculo) significa todas e cada uma das existências.
DHARMA
BUDDHA (s., j. Butsu, Hotoke): Título que procede da raiz sânscrita budh, “despertar”. É “aquele que despertou”. Esse termo designa o Buddha histórico Shakyamuni (Siddhārtha Gautama), que nasceu há mais de 2.500 anos atrás, no século VI a.C. (c. 563/480 - c. 483/400 a.C.). Filho do rei Suddhodana e da princesa Maya, soberanos de Kapilavastu, pequeno reino localizado no atual Nepal, à idade de 29 anos, deixou o palácio do seu pai, sua esposa e filho, para ir em busca de uma resposta para o sofrimento. Em uma manhã, na cidade de Bodhgaya (Índia), quando tinha 35 anos, realizou a iluminação enquanto praticava zazen sentado ao pé da árvore chamada bodhi. Dedicou os 45 anos seguintes, até sua morte, a expor o ensinamento do Caminho do Meio e das Quatro Verdades Nobres, com o propósito de ajudar todos os seres a atingir a iluminação e a libertar-se do sofrimento. Com um “b” minúsculo, representa qualquer ser que tenha experimentado o Despertar.
BUTSUDAN
(j.): Altar doméstico em forma de pequeno armário.
173 Glossário
(s.): Termo que significa uma canção ou um verso. Atualmente, diz respeito a um pequeno verso para ser recitado em sincronia com a respiração, como parte de uma prática de atenção plena.
(p. s. duhkha): Insatisfatoriedade, cíclica, instável, incerta, característica da vida que produz insatisfação.
DIPANKARA
(p.; s.: drsti): Desejo de impor sua opinião.
174 Glossário
ENSO
DOKUSAN
DITTHI
(j.): Símbolo do vazio, é traçado como um círculo.
(p.): Um dos Buddhas do passado, anterior ao Buddha Shakyamuni.
(j.): Entrevista pessoal e formal com o mestre.
“Templo da Paz Eterna”, onde Dōgen instalou-se em 1244. Inicialmente ochamou Daibursuji. Está localizado na atual prefeitura de Fukui e foi inaugurado por Dōgen no ano de 1246. Junto com Sōjiji é um dos templos principais (Daihonzan) da escola Soto Zen do Japão.
DUKKHA
GATHA
EIHEIJI
Cerimônia de combate do Dharma. O monge noviço é provado com questões aleatórias a que deve responder satisfatoriamente sem hesitar. Após ele é reconhecido como monge aprendiz (Zagen), ainda em treinamento, mas agora um veterano no meio dos noviços.
(j.): Pensar sem pensar. Por intermédio do zazen, os desejos, deixam de perturbar-nos, diminuem por si mesmos, naturalmente. Não se deve lutar com eles nem fazer associações de ideias a partir deles. Isso é Hishiryō.
KALPA
HISHIRYŌ
(s.) Termo que designa um período de tempo muito longo na cosmologia hindu.
(s.): Literalmente, ação. O karma constitui todas as ações do ser humano que têm uma intenção. É preciso diferenciá-lo dos frutos do karma (vipaka), que são as consequências dos nossos atos. De acordo com a escola Yogacara, as sementes das nossas ações se guardam em alaya até que as condições estejam dadas e as causas mostrem seus frutos. Buddha disse: “Se queres conhecer o passado (causa), olha teu presente (efeito). Se queres saber o futuro (efeito), olha teu presente (causa).”
KARMA
Uma das condições da existência. Tudo está em transformação contínua e tudo que nasce morre.
IMPERMANÊNCIA
175 Glossário
HOSSENSHIKI
(j.): Experiência mística. Ver sua própria natureza. Experiência muito variada na forma mas facilmente distinguível por quem já a experimentou quando é narrada. Caracteriza-se por uma nova forma de ver, se a prática cessa torna-se uma mera lembrança de um momento marcante, como um sonho. Se repetida muitas vezes e aprofundada pode vir a se transformar em Satori, uma realização espiritual profunda.
KŌAN
(j.): O vocábulo japonês kōan significa, originalmente, “documento público”, o que lhe dá uma conotação de “precedente”, no sentido jurídico, e no Zen usa-se para verificar uma possível aprovação da compreensão do aluno. Tradicionalmente, refere-se a histórias curtas que
KESA (j., s. kasaya): Símbolo da transmissão de mestre a discípulo. O hábito de Buddha e do monge. Conta a história que o rei Bimbisara sugeriu a Buddha que desenhasse um hábito que diferenciasse os bhikkhus dos renunciantes de outras correntes. Inspirado nos padrões dos campos de arroz de Magadha, Buddha escolheu alguns sudários e tecidos de rejeito, os lavou na correnteza, os tingiu com terra ocre (kasaya significa ocre ou cor da terra) e os costurou seguindo o modelo dos cultivos. O significado do kesa é a evocação do trabalho e simboliza como um tecido comum pode transformar-se no mais belo e sagrado. Ver Rakusu.
KINHIN
(j.): Meditação andando a passos curtos e muito lentos para manter a mente de zazen entre períodos sentados.
176 Glossário
KENSHŌ
(s.): Palavra que corresponde ao maior número no antigo sistema numérico: dez milhões.
Foi discípulo de Shakyamuni Buddha, tendo recebido a transmissão histórica da luz, é tradicionalmente tomado como o primeiro patriarca das linhagens do Zen.
KYOSAKU
KOROMO
(j.): Longo e leve bastão de madeira, com empunhadura e corpo achatado, usado para bater nos ombros dos monges na altura do trapézio, a fim de obter um efeito relaxante nas costas tensas ou despertar os que se encontram sonolentos.
relatam pequenos diálogos entre mestre e discípulo, e cujo significado está além do aparente absurdo da linguagem.
(j.): Veste ampla com mangas longas privativa dos monges. Fica sobre um kimono e sobre ela é colocado o manto monástico.
KOTIS
177 Glossário
MAHAKASYAPA
MAHASANGHIKA
Do sânscrito mahasangha “grande ordem de monges” escola precursora do Mahayana na Índia em sua visão da natureza de Buddha. A outra escola importante à época foi a Sthaviravada.
MAKYO
(s., j. Daijo): Grande Veículo ou Escola do norte, uma das duas principais linhas do budismo, que se estendeu do Norte da Índia ao Tibete, à Mongolia, à China, ao Vietnã, à Coréia e ao Japão. É considerada mais ampla e progressiva que a tradição Theravada. O seguidor da escola Mahayana busca a iluminação para poder ajudar melhor os demais e, com esse fim, se desenvolveram diversas formas para adequar os ensinamentos budistas às necessidades culturais, sociais e individuais em particular.
MAHAYANA
NEN
MUSHŌTOKU
(j.): Impulso mental que precede o surgimento de um pensamento; antes que ele se forme completamente.
(s., j. Nehan): Literalmente, extinção. Originalmente, refere-se ao estado de iluminação do Buddha Shakyamuni pelo qual alcança a extinção das ilusões e a superação do karma que causam os renascimentos. No budismo Mahayana, indica o estado pelo qual se está além do nascimento e da morte. Quer dizer, a sabedoria e a verdade últimas depois que a ignorância e o desejo tenham sido extintos.
NIRVANA
(j.) Ilusão. Fantasia enganadora dos sentidos ou da própria mente.
(j.): Sem meta, sem proveito.
178 Glossário
179 Glossário
(j.) Retiro de 7 dias realizado em dezembro e que comemora o despertar de Buddha Shakyamuni.
NIYUTA
(s.): Palavra que significa um número grande, cem mil, um milhão ou números ainda maiores.
(j): Kesa de cinco faixas que se veste no pescoço. O Rakusu é uma versão pequena do hábito de Buddha, criado na China para facilitar aos monges trabalhar e viajar sem ter que tirar o hábito. Quando um discípulo leigo recebe os preceitos budistas, também recebe um Rakusu.
ORYOKI
(j.): Termo que significa “apenas o necessário”. Refere-se à prática ritual de servir o alimento e de se alimentar, utilizada em mosteiros e também nos sesshins.
SAMADHI
PRAJNAPARAMITA
(s.): Significa literalmente a “Perfeição da Sabedoria”. O termo é utilizado para se referir ao um conjunto de sutras da escola Mahayana, entre os quais está o Sutra do Diamante e o Sutra do Coração.
RAKUSU
ROHATSU
(j): Concentração correta. Estado meditativo em que os pensamentos elaborados são abandonados e permanece um estado de atenção ao momento presente não discursivo. Caracteriza-se por sentimentos de
SAMU (j.): Prática do trabalho comunitário segundo um espírito de serviço. Concentração no trabalho manual.
SATORI
(j.) Roupa de trabalho dos monges e leigos, constituída de calça e casaco amplos e confortáveis. Os leigos podem usá-la para a meditação. A cor deve ser uniforme em toda a comunidade para igualar a todos. Na Daissen é sempre preta. Os mestres usam outras cores acompanhando seus rakusus.
(s.): O ciclo incessante de nascimento e morte no qual todos os fenômenos estão em transformação contínua; o mundo do sofrimento. O budismo Mahayana considera o Samsara como o outro lado do Nirvana ou da iluminação.
(s.): Inicialmente, a ordem monástica budista, porém, mais geralmente, a comunidade de pessoas que praticam o caminho de Buddha. A Sangha é um dos três tesouros ou joias do budismo, junto com o Buddha e o Dharma.
SANGHA
SAMSARA
SAMUÊ
180 Glossário
(j.): Estado em que o kenshõ passa a ser natural e pode ser experimentado a qualquer momento por uma mera volição. Domínio da experiência
paz e contentamento sem exames intelectuais ou raciocínios.
181 Glossário
espiritual. Iluminação ou despertar verdadeiro.
SESSHIN
Ver Buddha. SHARIPUTRA
SHAKYA
Shariputra foi um dos dois principais discípulos do Buddha. Famoso por sua sabedoria, é personagem dos sutras Prajna Paramita.
SHAKYAMUNI
(j.): Literalmente, simplesmente ficar sentados, é sinônimo de zazen, sem fugir de nada, sem buscar o satori, sem propósito nenhum.
Tribo a qual pertencia o Buddha histórico.
SHUSO
(j.): Período de treinamento intensivo de zazen. Muitos dias de vida coletiva, de concentração e silêncio. Realizam-se várias horas de zazen diárias, alternadas com conferências, mundos, trabalho manual (samu) e alimentação frugal e vegetariana.
SHIKANTAZA
(j.) Monge líder dos noviços durante um angō. Ao final deste é realizado oseu Hossenshiki, cada templo pode realizar duas destas cerimônias a cada ano.
TATHAGATA
VAJRACCHEDIKA
TRIPITAKA
TRISHNA
(s.): Literalmente “sede” significa a paixão desmesurada por algo, o apego que acompanha os desejos levando ao sofrimento.
(s.): A denominação original do Sutra do Diamante é Vajracchedika Prajnaparamita Sutra. O título faz referência a uma arma mitológica da cultura indiana, a Vajra, que reúne simbolicamente as propriedades do diamante e do raio. Originalmente, portanto, queria significar que osutra era indestrutível e irresistível como Vajra, cortando fora toda ilusão e revelando prajñāpāramitā
(s.): Literalmente “três cestos”. São as coleções dos ensinamentos mais antigos de Buddha e seus comentaristas, agrupados em três categorias Sutras (ensinamentos do Buddha), Vinaya (regras monásticas) e Abydharma (Comentários sobre os ensinamentos do Buddha).
(p.): Palavra de significado incerto, habitualmente interpretada como “aquele que está além de todo ir e vir”. É o título mais usado para se referir ao Buddha.
182 Glossário
SUTRA
(s.): Literalmente, fio. Refere-se aos ensinamentos oferecidos por Buddha à maneira de sermão e também aos ensinamentos dos Mestres segundo as palavras de Buddha.
VINAYA
ZAZEN
(s. p.): Ver Triptaka.
ZABUTON
(j.): É um retiro curto e intensivo de prática e estudo do Zen Budismo. É uma reunião de praticantes leigos, aberta a todos, inclusive iniciantes que queiram conhecer e praticar o cerne do Zen.
ZAFU
(j.) Almofada plana e quadrada sobre a qual se coloca o zafu para melhor conforto dos tornozelos e joelhos.
ZAZENKAI
(j.): Meditação Zen em postura sentada, que não inclui nenhuma Visualização nem colocar nenhum conceito, nenhuma ideia ou nenhum tema na mente. Durante o zazen profundo, a mente está perfeitamente afiada, estabilizada e vazia de todo tipo de pensamentos casuais e estranhos. O zazen não está limitado a ficarmos sentados, mas continua na medida em que desenvolvemos qualquer atividade.
ZEN (j. ch. Chan, s. Dhyana): Escola do budismo Mahayana que se desenvolveu na China e estendeu-se à Coréia, ao Vietnã e ao Japão. Literalmente,
(j.) Almofada redonda e firme sobre a qual se senta para meditar. Deve ser alta o suficiente para que a coluna fique vertical e os joelhos se apoiem no chão.
183 Glossário
184
Glossário significa “meditação” e atualmente associa-se a um estado no qual o pensamento discriminatório cessou e a realidade é experimentada diretamente.
ZENDŌ
(j.): Literalmente, “Via do Zen”. E, também, o lugar onde se pratica zazen de maneira mais informal do que em um sodo.
