Os brasileiros tomaram Monte Castello. De novo.

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Os brasileiros tomaram Monte Castello, De Novo, Por Guilherme Mendes

Quando umas 300 cabeças se esgueiravam pelas janelas da Câmara Municipal, sitiados por uma potente vaia, por sete policiais – um sem colete - e um comandante; quando a ponta de uma cabeça do protesto bradava “vereador, presta atenção/ano que vem é ano de eleição”; quando o Viaduto Jacareí começava a ser tomado por uma massa humana, ela passou e quase me derrubou com um encontrão. E saiu correndo. Parecia exaltada. Olhava para todos os cantos, aqueles estranhos olhos serelepes aqui e ali, orientando os caras da primeira placa, como uma harmonista de uma grande escola de samba: “Calma, calma”. E então saía correndo. Entre os ônibus. Entre as motos, em cima do Opel Tigra que parou em cima da faixa. Quis até tirar satisfação com o motorista, mas havia algo a ser feito. Ele que fique com as mãos pra fora gesticulando. Ela já se jogou nas calçadas da Brigadeiro. Correndo ainda, zatopeque, de tênis Mizuno branco e – meu deus, que pique! Enquanto mexe nos cabelos morenos, a ligação Leste-Oeste vai virando passado. O Perola Byington vai virando passado, Os teatros idem. Os olhos ligeiramente espaçados dela buscam alguma coisa que eu ainda não sei o que é. O suor começa a cair na testa do gordinho, mas ele não pode parar. Enquanto você morre aí com sua mochila, ô espertão, ela está correndo, com as mãos na nuca, fazendo um esquerda-direita com a nuca que se transformam em um volumoso coque. Mas o coque se desfaz. E ela faz de novo, uma mão segura o cabelo, a outra o elástico e zlapt- ainda mais rápido. E o asfalto também passa. E ela lá, já na porta da FMU da Brigadeiro, com aquele monte de gente olhando pela janela, no conforto de uma sala, sem sair para dizer que é a favor ou contra, apenas piscando a luz da sala. Provavelmente acreditando que estão na época do Datena. Quando ela passa sob uma janela com duas mulheres batendo numa frigideira, resolve também bater palmas. Esse gesto é flagrado por uma fileira imbatível até então: uns 5 iPhones apontados simultaneamente. Cinco iPhones, quatro helicópteros, um país em dúvida da própria força: todos apontados na sua cara, Agora ela já não corre mais. Debaixo do viaduto do Armandinho do Bixiga, a causa é meio que projetada na penetrante feição dela: ela correu pois,


como uma pessoa para harmonizar a passeata, ela queria estar na ponta e talvez ir com um “calma, segura, agora vai”. O problema era que, mesmo correndo os últimos três quilômetros, ela estava longe, mas muito longe, do começo. Se é que, na Avenida Paulista, havia começo. * São quase vinte horas. Alguém fofoca ao lado de Ewerton e Silvio, dois projetistas na entrada de um prédio que, na prefeitura, o carro da Rede Record estaria sendo balançado e deixado em chamas. Há alguns poucos quilômetros dali, uma van semelhante, mas do SBT, subia suas antenas na Praça do Ciclista, a ponta oeste da avenida Paulista. Esperava não ter a mesma sorte. Nesses dias de protestos, pacíficos ou não, a mais paulista das avenidas virou a versão moderna do Monte Castello, a montanha italiana tomada pelos pracinhas na segunda guerra, em 1945. Os humildes, parcos soldados brasileiros – apoiados, diga-se, pela 10ª Divisão de Marinha americana passaram quatro meses de embate contra o exército nazista, tomando o local, no sul da Itália, que contribuiria crucialmente para a queda dos regimes italiano e alemão, poucos meses depois. O nosso Monte Castello é diferente. É no alto também, mas é iluminada como o cão. E registrou cenas, na morna noite de 18 de junho, que difeririam de um clima totalitarista e amedrontador. Aquela maré de corpos, um ao lado do outro, emendando alguns versos do hino nacional, não conseguiram se conter quando viram o prédio da FIESP, aquele que parece um ralador de queijo, com uma projeção da verde-e-amarela tremulando. A antena da Gazeta, com seus 85 metros, nas mesmas cores. Se há cinco dias aquele mesmo lugar era um buffet preparado pelo Batalhão de Choque, dessa vez a festa realmente ia ser bonita. Pessoas se abraçam. Pessoas dividem as bandeiras. O comércio fechou, mas quem tá lá dentro olha pra fora com olhos brilhantes de fé. Vejam o caso do Willian e do Leandro, respectivamente vendedor e segurança de uma loja de roupas masculinas. Por detrás daquela porta de ferro eles estavam bem, felizes por saber que era pacífico – e pela estação não ter sido fechada -. Uma garota apareceu do meio dos ternos e concordou com tudo, mas “sou a favor em partes, mas contra a depedração”. Para o Ícaro, o livro “O Iluminado” de Stephen King, que ele levava embaixo do braço, é “bem melhor que o filme”. Advogado em Higienópolis, quis voltar a pé pra casa e está ali, na marquise de um banco, apoiando tudo, dizendo que “demorou pra sair”, mas que “Hoje em dia eu tô só de olho


mesmo”. Não precisaria ser um sinesteta pra ver o som, com suas notas , sambando pelo vão livre do MASP, ali perto, num “Ih/fodeu/ o povo apareceu”. O movimento tomou as duas vias, as oito faixas, o túnel que liga com a Dr. Arnaldo; a Praça do Ciclista, o vão livre e a rua Augusta também estavam, na gíria paulistana, estrumbados de gente. As patricinhas da Cásper Líbero, a tradicional faculdade de comunicação dali, resolvem sair pra rua com os smartphones levantados. O movimento não era mais um protesto, era um vulto. Estranhamente colorido e comunicativo, pacífico até. Mas ainda um vulto sem cara, sem líder, partido. Um vulto que era do apoio total de dois consultores, Rodrigo e Rubia, totalmente despreocupados com o Hyundai preto estar em cima da faixa, ou com a quantidade de pessoas expondo faixas sobre o capô. Ele com as mãos no celular, ela no banco do passageiro vendo alguma mensagem, o rádio silenciado, dando lugar ao hino nacional ambiente. Também a favor, disse que não se importava com o trânsito, o que gerou uma careta da esposa. Careta, quem ficou mesmo, foi o repórter. Primeiro devido a umas três garotas que saíram do pequeno edifício Sorbonne, no fim da Brigadeiro, e se juntaram aos protestos – apesar dos gritos vindos do asfalto, essa cena foi de toda raríssima. Mais pra frente, ao tomar um ar ao lado da parati da polícia, o insólito acontece. O policial, Nextel na mão, conversa com alguém: “Vocês tão certos. Tem que também protestar para desmilitarizar a polícia”. Mais uns segundos e o rádio toca. O diálogo resume bem como a polícia mudou a face de quinta pra cá. “Oi...Chico... depois eu falo com você... Oi Chico...Tô na Paulista aqui. É, tô na Paulista aqui com a...com a... (dá um tapão no braço do repórter) Qual é essa rua aqui chapa? (O repórter responde que é a Rua Augusta). Mas tá tranquilo...tô bloqueado aqui mas tô tranquilo”. Dá outro tapa o braço do jornalista e agradece. “Vai lá com deus, boa sorte”.

* Monte Castello original era um vale, um descampado com umas árvores pontuais. Esse monte é batido no concreto, sem forma definida. Por isso aquela horda humana parece estar tão bonita ali. Tão bonita que serve de pano de fundo pra umas fotos. Click – e Maria Clarete, 50 e tantos, volta pra ver o resultado. Regina, com o celular na mão, foca o fundo para mostrar pro Leonardo, o netinho de 13 anos. As duas, junto com suas irmãs Rute e Márcia, formam um quarteto notável à distância – na


porta de um hotel cercado de gente com carrinhos de bebês e cartazes e mais cartazes, era engraçado o rodízio das quatro senhoras fazendo umas caras e bocas.Click – Maria, cê tá linda. Para as quatro irmãs, que vieram pra São Paulo de Santa Catarina segunda e já vão embora na quarta, o que surpreendeu foi a solicitude de todos em torno da causa. “Ficamos presas no shopping Morumbi até 0h30” explica Rute- “e os seguranças explicando direitinho, os taxistas mostrando e falando o que tem que se fazer pra se proteger, como é que tem que ser. Muito legal“. Por isso, enquanto três falavam ao mesmo tempo sobre como São Paulo é bela e seus habitantes, meio que de súbito, acordaram pra vida, Regina ainda focava os skatistas. A única viagem que as irmãs fazem junto no ano e já tem tudo isso acontecendo. Leonardo provavelmente vai amar. *

A repórter...

A repórter do SBT, clamada pelos populares como sendo “Silvana”, se prepara para entrar ao vivo, no alto da van do SBT. Foco, concentração, quando se está no teto de uma perua e com uma câmera a uns 40 cm de você, é essencial. Ela parece começar a falar algo. Gesticula, vira pra trás – e o erro: não, não foi cair. Foi simplesmente virar e encarar o mar, deixando a luz


vermelha da Câmera aos olhos de um grupo que, antes do espírito brasileiro, tinha o de porco ainda mais calibrado. Em instantes nasce o jingle: “Hey/SBT/vamos mandar a Globo se foder”. Ela olha pra baixo, encara o iPhone na própria mão e parece não conseguir controlar o riso. Ao que parece o link acabou, então a liberdade poética dela permite que ria, que acene para os passantes e que, principalmente, aponte o microfone para eles. Agora sim temos uma horda antiglobal, que não sabe fazer nada além de elogiar os “atributos” da repórter: elogiar a camisa vermelha, o legging se esticando para fora das botas enquanto ela desce a escada e vai pra dentro do furgão. Ainda rindo. Ainda sem entender se o link foi ao ar com tamanha gafe, dessas que a gente conta na redação.

...e um de seus inúmeros admiradores secretos.

*

Agora estou de volta na esquina da Brigadeiro. Ali está ela, a corredora, a Forrest Gump deste sexto grande ato contra as passagens abusivas, contra Dilma, contra os padrões FIFA e contra o preço do Kinder Ovo. Ela, a


incansável que me fez subir e anotar cada passo, cada ação dela em tempo recorde – nunca subi uma rua tão íngreme e tão longa em tão pouco tempo. Agora ela, que não é lá aquilo de bonita mas, ali perto da rua dos Ingleses, tomou a cantada mais podre do universo – um “você não é rebelião de cadeia mas faz meu colchão pegar fogo” – de um rapaz escondido atrás de um óculos Oakley. Agora ela está ali, também beijando, também abraçando os amigos. São eles Vinícius, do Ipiranga, e Gabriel, de Guarulhos. Ela gesticula, mostra, aponta para um ônibus que está atravessado no canteiro da paulista dando meia volta. Puxa aquele ar pra repor o oxigênio perdido. E então descobrimos que seu nome é Camilla –vamos chamá-la assim, ela não parecia muito afim de dar entrevistas- e que sua ação vinha desde o primórdio do protesto, na Praça da Sé, quase uma hora antes, e uns 5 quilômetros atrás. Ela rodou pelo centro velho. Pela prefeitura. Pelo Theatro municipal, pela Praça da República e pela Câmara antes de quase me dar um ippon sem os braços. E sempre acenando, chamando, batendo no peito e gritando quando necessário. Ou ela leu “O monge e o executivo” ou aquele andar decidido, os braços retos correndo retos paralelo ao tronco demonstrariam uma verdadeira líder. Não tinha nenhuma identificação, mas perguntar não ofende: “Você faz parte do Movimento Passe Livre?” “Não. Não faço por questões de divergência mesmo.” É. Até as tropas aliadas não se entendiam em terras italianas.

18/06/2013


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