Marcha a ré

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então a terra começou a tremer. Eu estava comendo meu Beirute no Habib’s da avenida Ipiranga quando todos nós, clientes e atendentes, nos entreolhamos e vimos o teto balançar como o chão. Achamos, por um instante, que o prédio ia cair e saímos correndo pra rua. E qual não foi nossa surpresa e eles estavam lá: cruzando a esquina da Ipiranga com a São João, num rugido estrondoso, uma fileira de tanques Urutu, à toda velocidade. O barulho, ensurdecedor. No terceiro tanque, o único deles branco e com as inscrições UN na lateral esquerda , estava ele, General Augusto Heleno, fardado impecavelmente,o rosto com a tez tranquila de alguém se preparando para ser saudado fenomenalmente, batendo continência com a mão esquerda. A fileira de tanques passa seguida de cavalos da tropa. No canhão do tanque do general estão duas bandeiras – a do Brasil e a do estado de São Paulo, amarradas e dependuradas lado a lado. Agora que resolvo correr vejo que, no tanque à minha frente, está a presidente do país, algemada e cabisbaixa. Ao seu lado, bastante machucados e sangrando, estavam Lula, Dirceu Genoíno e Haddad – esse estava com o nariz torto, de dar dó mesmo. O tanque estaciona, devagar na Praça da República. Mal o comandante desce, se apoia no cano do canhão e, com a calçada já tomada grita “vencemos”. Então se joga, no braço de uma montanha de idosos que o carregam aos gritos de “Heleno! Heleno! Heleno!”. Essa cena, obviamente, não aconteceu. Mas não deixaria de estar no sonho daquelas mais ou menos 500 pessoas presentes na “marcha com deus pela família contra o comunismo” – 399 sonhando com a entrada triunfal do militar; uns cem jornalistas e eu, ainda com o Beirute do Habib’s.

/Marcha a Re Por Guilherme Mendes


I. “Não manchem nossa generoso para os “líderes” “quero meu país de volta” e bre isso, o que o óculos não bandeira de vermelho!” da proposta (a mítica en- “Fora PT / Fora Dilma / Fora deixou confirmar). E, no fi-

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baixo teríamos uma longa reportagem, baseada em diversas entrevistas e apurações, sobre a “Marcha com Deus Pela Família e Contra o Comunismo”. Mas o repórter já adiante que uma série de fatores não permitiu que isso ocorresse. Vamos explicar um por um. Pra começar: não há como se apurar, racionalmente, a natureza de um protesto como esse. Estamos falando de um grupo de pessoas, reunidas em um lugar predeterminado e disseminado (para que mais pessoas pudessem aparecer) que utilizam—se do sobrenatural (todo-poderoso) para uma causa um tanto defasada. Queria ter gritado “Fora URSS”, mas senti que o território não estava lá pra esse tipo de coisa.

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hove? Não chove? No caso, vamos dizer que sim, choveu enquanto chegava na Praça da República, pouco depois das 14:30, para tentar cobrir a manifestação. O caráter desta reunião é claro: pela primeira vez em muito tempo, a fatia conservadora da sociedade iria mostrar as caras, demonstrar sua infelicidade com o governo federal e o municipal – o estadual, ao menos em São Paulo, vai muito bem obrigado. Estariam todos ali prontos para não dar a outra face, o que poderia ser um espetáculo democrático ou simplesmente o motivo de piada. São mais de 200 cidades com protestos agendados, e a mídia deu até espaço

trevista de Bruno Toscano já está nos anais da imprensa contemporânea). E, noventa minutos antes do protesto ter início, sou saudado pela dona Silvia Donizete. Cabelos na altura do ombro, aí uns 40 anos e uma blusinha amarelo-bandeira (vamos ouvir muito esse termo “bandeira” por aqui). Se a primeira impressão é a que fica, ela logo me entrega um sulfite A4, com a letra de “Eu te amo meu Brasil”. Posso escolher entre o verde, amarelo ou azul. A julgar pelos olhares vizinhos, me senti desconfortável a não saber a letra de um dos clássicos ufanistas na época da ditadura. Enquanto isso, um trio elétrico – na verdade um velho Mercedes 1113 pintado de preto - era dominado por vozes que imitavam timbres de políticos populistas, bradando com as mãos pra frente, como se martelasse uma foice em alguma coisa. Os discursos eram alternados com uma irritante versão do hino nacional na Sanfona e do Hino da Bandeira, que alguns mais saudosos ousavam cantar. Pra não ficar pra trás, alguns emendavam o “recebe o afeto que se encerra em nosso pei-to ju-venil” e paravam por aí. Silvia também levava um cartaz, feito naquele estilo psicopata de letras recortadas, com os dizeres: “Intervenção militar já”, (1) Aliás, interessante notar o trio que compunha à Vice: a repórter gostosa, o câmera tatuado e o sonoplasta, que mais parecia o fã de Weezer mais na dele. Eu posso ser leviano com tais fundamentos, mas...bem, era isso que parecia mesmo. (2) Ver reductio ad hitlerum.

Lula”, que ela chamou de “dono de tudo”. Ainda tinha um pedido para Augusto Heleno ser o presidente eleito do Brasil em 2014 (ele nem dá pistas de que fará isso). Silvia não está sozinha no fã clube do militar. Várias faixas pedem a ajuda da FFAA – uma estranha sigla, que representa o “FA” de força armada, mas no plura –, que elas sejam restauradas, que elas são a única salvação do país, junto com a polícia militar, os bombeiros, o Chips e o Vigilante Rodoviário. Quem ergue as placas é, em sua maioria, de meia-idade pra cima. Dos cerca de 1500 presentes, incluindo os policiais fazendo a segurança, não encontrei nenhum negro. Os discursos seguem, em terra e no alto do trio elétrico, como uma sucessão de falas umas sem nexo com as anteriores e as seguintes. Acompanhei o caso de um senhor, com a camisa azul marinha bordada “Jesus é o caminho”, que deu entrevista à Vice . O seu discurso foi vazio e prolixo. E não porque era um discurso puramente conservador mas sim porque era vazio e prolixo. Durante uns sete minutos ele ficou à frente da câmera, explicando como Comunismo era ruim para, em instantes, emendar uma referência entre Comunismo e Hitler e falar sobre o mal que Marx, Engels, Hess e Hegel fizeram. Ergueu uma cartaz, dupla-face, com um longo texto citando as batalhas sangrentas do comunismo, sobre os norte-coreanos (ele parecia chorar em frente às câmeras falando so-

nal, quando a repórter disse obrigado e ele seguiu de costas para o centro de outra discussão, esta parecia estar saindo de um instante de nirvana, onde estava dormindo de olhos abertos. Em cima do palanque o discurso era semelhante. O que começou com adjetivos mais comedidos, do tipo “estamos realmente muito chateados com este governo” foi ganhando verborragia, como se um comentário do G1 ganhasse vida atrás do microfone. No começo, as críticas diretas ao governo atual e à Dilma Rousseff deram espaço a outros posicionamentos. Um certo Marcelo, de uma ONG chamada OPEN, foi mais além e deu os reais tons do comício: “Quem tem facebook aqui ou acompanha na Internet...no Rio de Janeiro teve uma deputada que quer sentar o pau nos paulista. Aqui pra ela”. Ele puxa um bandeira paulista, balança no ar e se delicia com um trovão de aplausos e urras. E ele vai engrossando “aqui é sangue na veia, porra” A bandeira enrola-se em si mesma e para de tremular, virando um pano retorcido. Outro exorta contra os médicos cubanos, e mostra uma solução para o problema de médicos no país: “sou a favor de médicos estrangeiros sim, mas sem ajudar este comunismo. Sou a favor de médicos europeus, médicos inglês (sic)”. Não convém pressupor o porquê do fetiche de deixar os médicos de uma das potências do setor no planeta para fora e troca de meia dúzia de loiros. Uma senhora chega mais próximo do cami-


nhão, olha pra cima e grita, como que para os deuses, “não, vocês não vão manchar! Não manchem nossa bandeira de vermelho”. Há um quê de raiva na face dessa senhora, mas há também um quê orgásmico, como se ela estivesse retirando um grande peso de si. Ao gritar para que tirassem a mão vermelha do seu estandarte sagrado, ela lembrava aos cidadãos da Oceânia, do clássico 1984, que tinham ataques brutais e coléricos contra Emmanuel Goldstein. Dá quase pra vera teletela se refletindo na lente dos seus óculos. Loiros. Eles devem ser a maioria dos presentes. Devem, pois mais da metade está calva ou com cabelos brancos. Da outra metade, um quarto ao menos é careca. Alguns são viris, camisas Fred Perry agarradinhas, suspensórios e uns coturnos bem polidos, com cadarços brancos ou pretos. Uns levantam bandeiras brasileiras, outros a flâmula bandeirante e outros estranhas bandeiras azuis. Os policiais que estão ali aos montes conhecem a maioria- um cinegrafista que estava se esgueirando me contou ter encontrado, atrás de um terno -e-gravata, um skinhead acusado de obrigar dois punks a pular de um trem da CPTM em 2002 . A maioria já assinou algum boletim. Mas hoje é quase certo que eles estarão protegidos por uma causa nobilis.

tados, ou a protestos de jovens esquerdinhas, a corporação deve ter se sentido lisonjeada com os gritos de “Fica PM” feitos pelos revoltosos. Um mais distraído não aguentou e agradeceu, erguendo o polegar e dando um sorrisinho malicioso. Todo mundo ali ama a Polícia. Quando o coronel da PM fala (ele toma o microfone de dez em dez minutos) é uma alegria só. As palmas dirigidas à PM só são menores que as palmas para o general Augusto Heleno e ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa.

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marcha está agora pronta para sair. Ao contrário daquelas que balançaram o país em junho, essa vai ter um trajeto bem definido, passando pelo Viaduto do Chá, pela prefeitura de São Paulo e seguindo, via Largo São Francisco, para a Praça da Sé. Na hora que este sai da República, da Sé sai o ato conhecido como “Ditadura nunca mais” que reuniu estudantes, membros de partidos de esquerda e outros seres de dreads justamente para a República. Os grupos não se encontraram , não houve brigas e, por um sábado, São Paulo sentiu um cheiro de real democracia no ar.

II. “Isso é um samba do milico doido”

PM essa que nunca se sentiu tão feliz de bater ica até difícil componto num sábado. Acos- parar as duas marchas por tumada às reintegrações diversos aspectos. Sociais, de posse em bairros afas- políticos, econômicos. Sabe-se que a única coisa que (3) Um morreu. O outro perdeu o as unem é a Constituição e braço

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um tema central: a ditadura. Pois enquanto a marcha dita “de esquerda” tinha o apoio de partidos, a marcha com Deus parecia poder contar só com ele. Pois nem um partido existente é capaz de compactuar tantas ideias díspares. Um exemplo estava na concentração da passeata: apesar de todos ali estarem unidos por exigirem a queda do governo socialista , uns estão vestidos com roupas militares e querem Augusto Heleno no poder. Outros, com seus filhos no colo e mulheres ao lado, querem Joaquim Barbosa mandando os corruptos pra cadeia como o Alienista metia os loucos para o tratamento. Os maçons, que lá estavam com uns aventais caprichados, também queriam algo. Os dois seminaristas que encontrei lá, Gabriel e Saulo, vieram do interior do Rio Grande do Sul para estudar em São Paulo e, vestido como dois penteados e baixinhos exemplares de Neo do Matrix, me explicaram a necessidade de um governo eleito democraticamente (coisa que, para eles, o atual não parece ser muito não). A marcha vai andando e Deus ainda não deu o ar da presença, mas Nossa Senhora estava lá, sendo segurada pelo padre que, microfone na mão esquerda e a réplica na mão direita, excomungava esse (4) Se aquilo for socialista eu talvez volte para as aulas de história da 8ª série, pois aprendi algo errado. (5) A reação de um deles foi de uma frieza sensacional. Ao dar entrevistas para a imprensa, foi aBordado com um grito sólido de “Vai pra Cuba”. Ao passo que ele apenas respondeu “então paga a passagem”. Risos entre os jornalistas.

governo prejudicial. Em outra placa ela está junto dos dizeres: “Nossa Senhora de Fátima / Livrai o Brasil do Comunismo”. Seu olhar é de súplica – parece que quer que a tirem dali.

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ntes do início do protesto, um cidadão foi agredido pois saiu inadvertidamente da estação direto no protesto, trajando uma camisa vermelha. Outros dois, João e Pedro, que se fantasiaram de empregada e andaram ao lado do trio, tiveram o cartaz rasgado e jogado no chão . Uma senhora que gritou (ou não gritou) palavras contrárias (contrárias, não hostis) aos bravos defensores de bem desta nação não foi poupada de vaias fortíssimas, de gritos de “Vai pra Cuba que os pariu” e, especialmente, de um senhor que, quase às raias da histeria, a acusava de alguma coisa. Ele parecia estar a ponto de queimar as Bruxas de Salem. Seus gritos eram incompreensíveis, como quem grita


sem dominar o dom da fala. Seu tom de voz passava do rouco. Grunhidos eram incompreensíveis. “olha aqui, olha aqui” – e então um papel cujo título era “o Brasil pede socorro” foi jogado por ele na direção da senhora. Foram precisos outros manifestantes para apartá-lo (sabe-se lá por quais razões um policial não interveio).

Se eles tem o direito da manifestação, outras pessoas também têm. Premissa constitucional que todo mundo gosta de lembrar – quem nunca falou “eu tenho liberdade de expressão” para alguém? Se este país fosse a tão pregada ditadura cubana ou norte-coreana, forças mi-

litares onipresentes, provavelmente chamadas de “dilmilícia” estariam escondidas nos prédios perto do fim da passeata, limpando calmamente metralhadoras e as baiontetas. Tudo para manter o bem estar da população. Mas, sabemos, não é isso o que ocorreu. Mas, dito pelo não dito, melhor ficarmos de olho nes-

sa ditadura socialista aí. III. “Por que não eles de novo?”

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esde antes do início das manifestações uma das propostas surgiu como aquele gancho para que alguém na discussão emendasse um “não é pos-


sível”: diziam, à boca miúda, que alguns deles queriam a volta da ditadura militar no país. No começo era fofoca, eu ri. Custei a acreditar até ver as seis senhores de meia idade, com o biótipo de contadores ou funcionários públicos, sustentando uma faixa amarela, com um “Intervenção militar” em verde.

É difícil descer à natureza de uma posição como essa, por mais passível de respeito que ela seja. Mas 21 anos de torturas, destruição política, econômica e social para eles são “fruto de especulação”; Tortura? Era tempo de guerra e eles fizeram bem menos que os comunistas. Comissão da Verda-


de? “Comissão da mentira” bradou um senhor simpático de cima do palanque. Provavelmente existe alguém que, como eu, acha que deputados e senadores a defender tal causa sejam apenas meros empreendedores, espaldando-se no novo nicho de mercado: os ultra-reaças. Dá até pra imaginar uma matéria na Exame dizendo que: O investimento do deputado Jair Bolsonaro foi de cerca de R$120 mil. Ele investiu em roupas de farda, uma fonoaudióloga para que o ajudasse a encorpar a voz de macho e também em brindes de approach com seu público alvo. “Investimos muito em bandeirinhas, também em legalização às armas e endeusamento do General Newton Cruz”, explica [...]6

IV.Terminologia Técnica

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termo usado pelos mais ativos na passeata é “contrarrevolução”. Não golpe (mas nunca que foi) nem revolução, pois pega mal. Pelo menos foi assim que o Daniel, um cearense-paulistano, me fez entender. Branco, cabelos lisos, orgulhoso portador de uma aliança no anelar esquerdo e de uma bela garotinha no colo, tentou me explicar. “havia uma revolução comunista no Brasil e os militares não permitiram isso. Eles são heróis”, argumentou. Peço que ele me explique o porquê de tantas perorações contra o mesmo alvo. A explicação não difere da cantilena dos outros grupinhos. Dilma corrupta, PT corrupto, socialistas corruptos, ladrões e tudo de novo. Um engenheiro pede (6) Caso uma cópia caia em mãos do Grupo Abril S/A, um aviso.Pelo amor de deus, essa é uma nota fictícia, como explicado antes. Não digam que não avisei.

para dar entrevista à Vice e passa cinco minutos acusando o PT de romper o contrato social. Em tese, ele e Daniel não estão errados. O PT domina há 12 anos a política brasileira. O tom do governo, dizem que de social, hoje é algo como uma centro-esquerda que, já com todos estes anos expertise de um governo federal, corre o risco de “instrumentalizar” o poder, como um jornalista amigo meu disse, em uma roda de discussão recentemente. Os mesmos nomes, com relações tão fortes em tantos setores por tanto tempo são realmente estratégias arriscadas para uma nação tão multicultural como o Brasil, que se vê transtornada por questões complexas a todo o momento7. Mas isso não ocorre no Brasil, e Dilma Rousseff está a poucos passos de uma tranquila reeleição. Visto isso, nasce a celeuma, a intranquilidade, a necessidade de uma intervenção militar “nos moldes de 1964”, como pediam as placas. “São nossa última esperança”, diz uma. “Nos salve do comunismo”, diz outra. Nos salve do comunismo?

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or um momento nos desfaçamos das vestes da realidade e demos uma de Descartes para que pensemos um pouco sobre a vagueza da frase “Nos sal(7) Aqui um parênteses: o poder instrumentalizado cabe às nações mais tradicionalistas e homogêneas, como a Rússia. Vejamos o exemplo de Putin, que é o presidente do país há 15 anos. É difícil acreditar mas, por detrás de toda a manipulação e de suas propostas polêmicas e agressivas, ele realmente têm o apoio da população. A chamada “lei anti-gay”, uma das diversas ações russas capaz de causar polêmica no mundo inteiro, causou um frissom dentro da comunidade LGBT de lá, mas

ve do comunismo”. Como alguém vivendo no país da desigualdade social tão pregada por gente como Rachel Sheherazade, passei parte da adolescência e juventude com a pergunta: “se estamos todos na merda, a solução é que eu fique rico?”. As aulas de história e a vida real, infelizmente, não me dão uma resposta positiva para isso. Mas dão pistas: faça como eu e ande, no mesmo dia, por Carapicuíba e pelos Jardins. Ou por dois bairros tão díspares nas cidades onde você more. Apenas no segundo – e mais rico – a ameaça do comunismo e do Stalinismo e do totalitarismo vermelho e dos ateus comendo criancinhas é mais latente, mais paranoica. Mas eles nunca estiveram tão ricos. Nunca antes na história deste país tiveram tantos prédios com varanda gourmet. Muito menos tantos SUVs rodando. Num país que herdou duas décadas de desigualdade social fortíssima da época de regime, a reposta talvez não seja cada um ficar rico à sua maneira, comprando bugigangas lá fora e mostrando nas fotos como é bom andar pelo metrô de Londres (“ai amiga lá tudo funciona”). No Brasil, a chance da mudança existe, mas parece que o comunismo tá aí e não vai deixar não. Ok então, anotado isso a primeira questão nasce: se a mão vermelha nos impede de sermos felizes e livres com os nossos filhos, que pouco abalou a população. Se eles realmente pensam assim, quem somos nós, não-russos, a achar que eles estão errados? A imobilidade e tradição da sociedade russa permitem a um governante reine sobre o Kremlin por anos e anos. O que, sabemos, é muito diferente do Brasil. Findo este devaneio, voltemos ao texto principal.

de termos uma vida como na Suíça, quem poderá tomar este lugar nos altos do Planalto e nos levar para o caminho correto? A resposta emergindo, vejamos são eles, os bons moços das forças armadas. Bons moços estes que, em um passado não muito longínquo, derrubaram um presidente eleito constitucionalmente; que deram início a uma era de 21 anos regada por doses cavalares de censura, perseguição política e ideológica; que tornaram esse país bonito e lucrativo para si próprios e apadrinhados, aumentado a já alta desigualdade social neste país. Mas tortura? Já falamos: eles pediram. Censurar jornais e programas de TV? Ossos do ofício. Desigualdade social? Ou é apenas “a lei do mais forte no capitalismo”? A direita no país está abatida, pagando o preço de anos de uma oposição inoperante. É saudável que um governo tenha oposição, que opiniões conservadoras sejam levadas em consideração. Mas quem consegue levar gente como o ex-governador de São Paulo José Serra a sério? Aécio Neves há muito caiu em descrédito no cenário nacional; Geraldo Alckmin não consegue sair de seu próprio feudo – São Paulo; e nem Marina Silva empolga mais. Jair Bolsonaro, Marco Feliciano e outros nomes são relegados ao status de piada ou de pena, inclusive membros dos próprios partidos Mesmo com nomes suficientemente poderosos para disputar o governo, os “anti-petralhas” não conseguem se afirmar, e 2014 parece ser apenas uma repetição deste cenário. O


motivo? Antes do motivo, peço para que, se os senhores já riram o suficiente, vão ali fora tomar uma água, exercitar as mandíbulas, este tipo de coisa. Pois bem: a culpada sempre foi e sempre será ela, a urna eletrônica. Durante repetidos discursos oradores inflamadíssimos, quase que em chamas, propuseram ela como a causa da perpetuação do PT no poder. Já citaram bolsa-família, alienação, mas a grande estrela mesmo é a urna. “Os Estados Unidos são a maior potência do mundo”, iniciou a fala ao microfone um senhor, “e eles são o país mais democrático do planeta”, continuou, deixando de lado

que o resultado lá é decidido por delegados, e não pelo povo, e também se esquecendo do escândalo ocorrido em 2000, na eleição de George W. Bush, “e vê lá, se com aquela riqueza toda, eles querem sair do voto em papel” (palmas estrondosas e assobios) Realmente o orador está de parabéns. Representando aquelas pessoas lá embaixo, ele se portava como uma criança mimada que, ao errar o terceiro arremesso no jogo de basquete, começa a culpar o aro, a bola, o próprio tênis. A urna eletrônica entrou em 1996, durante o governo FHC, e desde então é um modelo para todo o planeta. Nove relatórios já foram feitos sobre a qualidade e

transparência da urna, e outros países copiam seu modelo. Alguns destes relatórios alguns destacam chances de falha no projeto. Mas é de se esperar, no mínimo, que tais opiniões sejam levadas a cabo e analisadas. Não é difícil pensar em falhas em um sistema cujos dados são guardados em disquetes e transferidos via telefone – no jogo do poder tudo pode ser manipulável. Mas creditar isso como motivo de suas derrocadas ao invés de anos de pensamento retrógrado que não vai de encontro às necessidades de grande parte da população brasileira é como não olhar para a própria culpa. E é isso a

que os conservadores se prestam: protestar pela falta da própria mobilidade.

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stou de rua Libero Badaró, numa abafada tarde de 1972. O clima ordeiro nas ruas. A polícia sendo aplaudida, um ônibus preto e um carro de som toca, interminavelmente, a tal canção de Dom e Ravel. O chão onde país se elevou (lá lá lá lá) A mão de Deus abençoou Mulher que nasce aqui Tem muito mais amor

As pessoas estão felizes na rua e... espera, tem alguém com um iPhone 5s na mão. Outro ali na frente grita, a plenos pulmões: “fora PT”, mas este grupo só


nasce em 1980. E o simulacro cai como uma máscara. O que era para ser vendido como “Comando de caça aos Corruptos”, tal como na faixa do caminhão, é uma reedição do CCC, o “Comando Caça Comunista” dos jovens militares; as placas pedindo a volta da FFAA na verdade querem derrubar – derrubar não, palavra muito forte, vamos dizer “intervir” – em governos democráticos. Não parece, mas é sim Março. De 2014 mesmo. No final das contas, se eles passaram de 1000, seriam muitos. No ponto final da concentração, a vitória dos idosos nas escadarias da Praça da Sé, houve mias peroração, mais discurso prolixo, mais exortação

contra o governo. O cartel/ quadrilha do metrô foi poupado por hoje. Mensalão Mineiro também estava em folga. Sarney, curiosamente, não passa por este discurso (Justiça seja feita: também não passou pelo outro protesto). Sobrou mesmo para os ladrões da pátria, que agora eram acudidos por um ou outro skinhead em alguma calçada ali perto – um deles foi preso acusado de ata(8) Cabe aqui uma nota final sobre o papel e ação da imprensa no ato: se você confia na qualidade do produto noticioso brasileiro, saiba que, ao ocorrer o tal ataque na região, tal a imprecisão de tantos jornalistas, que a informação saiu apenas após uma “reunião de campo” entre os presentes. Sim, cada jornalista se juntou num círculo, disse o que viu e, baseado nesse telefone sem fio de informações, se pautaram em coisas que mais ou menos seguiam o bom senso. E estavam nascidas, assim, as manchetes de sites e jornais do dia seguinte.

car um dito “black bloc”8 . A pergunta continua sem resposta: o que eles querem? É demonstrar que sentem falta de uma repressãozinha nas costas? Daquele cargo na repartição que fazia sua família ser influente? Ou era mesmo de arrancar a unha de comuna? Seja qual foi o nível de sadismo de um dos presentes, padres ou skinheads ou ambientalistas de araque, as demandas egocêntricas de cada um dos setores ali representados felizmente não eram a vontade de todos.

Uma última prova? No final, subo à pedra do marco zero de São Paulo e guardo uma foto de recordação. Revendo a foto um tempo depois, noto os

detalhes: todos de branco, com esforço, lotando a escadaria da Igreja. Os mendigos que foram expulsos dali causavam mais volume. E, atrás das placas, atrás dos pedidos de intervenção e de blitzkrieg no congresso (sim, eles são da época dessa gíria), as portas da igreja. Fechadas. Pois é. Talvez nem Deus tenha aguentado ver sua imagem associada dessa forma em vão. guilherme mendes, 20, é estudante de jornalismo e transeunte pela capital paulista. facebook.com/mendes.guilerme Instagram.com/pirulits (+5511)985-224-714


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