Sobre flores e balas de borracha

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Sobre flores e balas de borracha Por Guilherme Mendes Fotos por Erick Ferreira e Guilherme Mendes

Inspire. Respire. Inspire. Respire. Mas não agora, tem gás lacrimogênio na rua. Erick Ferreira

I. Inspire. Respire. Agora sim tudo bem. Agora sim inspire, encha os pulmões do ar enevoado do centro de São Paulo. Ninguém pode negar: é uma outra quinta-feira qualquer. Tudo é igual, como sempre foi igual, como se os dias tivessem saído de uma máquina de xerox. Tá tudo constrangedoramente igual: as pessoas não olham umas na cara das outras, a estação República ainda está em obras, as empresas de telemarketing da Sete de Abril com seu tradicional vaivém de jovens e mendigos em sua portas duplas. Na frente do antigo Mappin – hoje uma Casas Bahia – os clássicos do sertanejo universitário eram ainda mais maltratados na voz de Alex Leone, “A voz de ouro do Brasil”. Mais pra frente, colado a uma banca de jornal, um cover de Michael Jackson erguia as mãos, gritando “thrileeeeeeeeeeeeeeer”, com a roda de curiosos habituais. Sim. Um dia ordinário.


Ordinário? Aos finos olhos da multidão sim, outra tarde chatíssima, modorrenta, um clima calorento que prenunciava o frio costumeiro das noites de junho. Mas se eras tão ordinária a quinta, por que o cochicho? Por que as vendedoras ostentavam um estranho sorriso de “expediente que vai acabar mais cedo”. A UNIESP, no centro da cidade, mandou fechar os campi. Os motoristas de ônibus já davam maliciosos sorrisinhos de canto de boca. Aí, na esquina do viaduto do Chá, ali onde fica o shopping Light, uma van da TV Cultura está em cima da calçada, uma parati da Redetv! está ali, todos destoando no cenário, em cima da calçada. Um mictório de Duchamp no museu não seria tão gritante quanto isso. Guilherme Mendes

Uma outra tarde normal.

Ao primeiro olhar, um outro dia. Mas, nas entrelinhas, ah...nas entrelinhas...a guerra se prenuncia. O tambor começa a bater. E policiais do capacete branco revistando as bolsas das pessoas. São dezesseis horas, três minutos. O dia é treze de junho de dois mil e treze. O mundo vai cair em três horas. Meu chefe, na segunda-feira, me criticou que eu dizia muito “eu acho”, e que jornalistas devem apurar e ter certeza. Então me enfiei no olho do furacão para saber o que estava acontecendo. A partir de agora vamos apurar essas três horas.


II. Até às 15h50 da terça-feira, mais ou menos 22.500 pessoas confirmaram presença no do Facebook conhecido como “quarto grande ato contra o aumento das passagens”. Quando marcado pela rede social não significa um RSVP, ou seja, nem todos vão. E quando o relógio do prédio do Mappin conclui 16 horas, faltando 60 minutos para o horário marcado para o dateline, os (penso que) treze degraus do Theatro Municipal, local marcado no evento, já estão com espaços tomados. São jovens, alguns uniformizados, outros à paisana, mas todos ali concisos, conscientes que todos estão ali pelo “você-sabe-o-que”. Enquanto eu sento na escadaria, dois jovens atrás de mim mexem num cartaz laranja-mecânico. A garota abre um guache gigante preto, puxa um pincel e vai aos poucos:

“SUFOCO POR R$3,20 NÃO!” Os guardas na porta pedem pra ver. Pedem pra ver a bolsa. Pedem para não sujar o piso recém-reformado. O engraçado é que o próprio guarda não demonstrava maldade. Eram só ordens. O primeiro paradigma de tantos que vão cair nos próximos momentos. Mesmo assim é o suficiente pra irritar o Wesley (nome fictício). Ele, que você não daria nada, que a polícia teria prioridade em enquadrar na rua: blusa do Corinthians, um Nike Shox de 12 molas, boné pra trás. 16 anos e morador de São Matheus, levando “1 hora, 1 hora e meia, se vier de trólebus”, não quis ficar em casa. Foi protestar, foi dizer que não aguenta mais. Não aguenta mais o quê? Para os não-paulistanos, a história é conhecida: a tarifa de transporte na cidade foi reajustada, para cima, de acordo com a inflação. Porém, mesmo com corte de impostos e aumento abaixo do esperado, subir de R$3,00 para R$3,20, para uma sensível parte da cidade, formado por gente tão forte quanto aqueles cafeeiros dos quadros de Portinari, provoca um desequilíbrio fundamental. De cada quatro reais de um salário mínimo, um vai para transporte, em média. Dos outros três você toma banho, come, vive. Por você e por mais dois, três, por uma família. Junte isso a trens, metrôs e ônibus lotados; a um trânsito infernal e a uma decepção generalizada (que falaremos depois) e você tem o Theatro Municipal, tombado pelo Patrimônio Histórico Estadual desde 1981, com um número crescente de pessoas chegando. E as faixas vão se estendendo no chão. Os guaches aumentando. As frases de ordem nascem aqui e ali. As pessoas já começam a se perguntar o


que seria aquilo, pois afinal de contas quem não se conecta, neste caso, está alheio. As lojas das ruas adjacentes agora, às 16h25, já começam a descer as portas. O que causa estranheza aos passantes: será por causa daquilo ali? Ah, que se dane, vou ali dar uma olhada. Guilherme Mendes

Wesley e garota desconhecida.

E quem olhou foi ficando. O movimento, liderado pelo até pouco tempo escuso “Movimento Passe Livre” perdeu o status de “estudantil esquerdista e desocupado” com a velocidade de um byte – mesmo que ainda bandeiras do PSTU e do PSOL dominem por ali. Agora você tem senhores, rapazes em fim de expediente, com camisa social e gravata. Você tem vendedoras, de calça legging e bota. Tem emos. Ao que parece, eles não estão tão empolgados ainda – mas também não demonstram pressa em se enfiar em trens lotados ou mesmo no próximo expresso. É dia de greve em alguns pontos da CPTM, voltar pra casa vai ser mais complicado para alguns do que normalmente já é. Ali, de frente a entrada principal, conheci um desses que já tinham perdido a pressa. Danilo, 18, já tinha terminado o dia no escritório da Sete de Abril. Headset na cabeça e uma meta a bater: era uma coisa já passada no seu dia. Ele, que poderia levar mais 1h10 pra chegar em casa, no extremo norte da


cidade, resolveu ficar ali, e pregar a palavra. O jardim Brasil que ficasse lá. Ele ficaria aqui, não arredaria pé, e iria mostrar que era possível mudar as coisas. E explicava sobre as “Diretas Já” que ele não viveu. E explicou dos caras-pintadas que ele nem era nascido. Atentos, seu José, um senhor na casa dos cinquenta e morador do Jaraguá e Thiago, um porteiro de um prédio na Nove de Julho que mora em Cotia (“cara, R$4,70 pra vir pro Butantã, só na Raposo Tavares eu fico 40 minutos parado. E depois metrô”). A decepção nas caras deles três – e de todos – era visível. Os iPhones, de praxe, levantam-se pouco a pouco. As meninas que tentavam animar os passantes, vestidas de camisa verde, davam o seu depoimento. “Porque eu pego ônibus e isso” “é uma exploração e assim assim assado...” e por aí segue. Quando elas tiram um tempo pra descansar, surgem os jingles. Sério: eles dariam um simpático CD Eis um deles: “Se a passagem não baixar, olé olé olá (2x) São Paulo vai parar”

Gente que mora no aeroporto considera justo. Gente que mora em Moema e que estava lá também demonstrava simpatia. Porém o quarto ato agora conta com um agravante: Não são só as passagens que iram os rebeldes de Zion. É o fato do protesto não poder existir de maneira pacífica. Hoje não vai ser diferente. O homem com o tambor, no centro dos agora mil manifestantes, faz uma batida lenta, grave, extremamente ritmada – Tum...tum...tum. É o chamado dos manifestantes para o ideal: “Vem, vem, vem pra rua, vem contra o aumento”

III.

A Polícia Militar brasileira é única no planeta. Enquanto todas as nações contam com algo que se assemelham à nossa polícia civil, a PM é a instituição que, em tese, contém atos de violência, reprime crimes na rua, resolve as “desinteligências”, ao estilo da Polícia 24h. Mas não precisa ser jornalista, ou vestir o manto da imparcialidade, para sabermos que os exageros dos “de farda” são costumeiros. Qualquer levante de violência, civil ou criminal, a polícia reprime, como manda o seu trabalho. Mas cada vez mais se ouvem relatos de “era só um inocente, era trabalhador, foi PM! Foi PM!”, chorados sobre o corpo de alguém estendido no chão, quase sempre de alguma


periferia. Para uns, ossos do ofício. Para outros, símbolo de uma sociedade que ama a violência. Aos olhos a sociedade paulista, os tiras são amados. A classe média se apoia neles como seu cão-de-guarda, ligando para o 190 a cada emergência. Para eles tem programas no período da tarde que mostram exclusivamente suas ações. E, para eles, temos agora, cinco e quinze da tarde, três helicópteros rodando o quarteirão do protesto. Para os agora três, quatro mil manifestantes que gritam, balançam bandeiras, erguem cartazes, a polícia é uma marionete de um governo dito “fascista” e isso fica claro nos gritos de guerra. Mais uma do Greatest Hits dos jovens:

“Dança Haddad, dança até o chão Aqui é o povo unido contra o aumento do busão”

Os helicópteros são dois modelos Robinson e um Águia. Os dois primeiros são prateado e dourado, provavelmente da Band e Record, respectivamente. O terceiro, um portentoso branco, preto e vermelho, voa baixinho, para. Vai e volta. É o da polícia, observando os dedos do meio apontados para si. O que eles veem de lá de cima? Baderna? Um repórter ser preso por porte de vinagre e dois manifestantes por portar isso, máscaras e guache? O trânsito da 23 de Maio já dando sinais de caos? O que viam aqueles três comandantes? Nunca saberemos, mas visto na altura dos olhos, a calmaria ainda reina. É só mais um espaço público cheio. Poderia ser a entrada de uma opera no teatro, uns jovens fazendo flashmob.

* No inverno é assim: cinco e meia e as luminárias centenárias do centro de Sampa já são acesas. E elas aquecem ainda mais a turba – que não para de crescer. Não me arrisco, pela próxima hora, a chutar um número. São eles a quem as capas de jornais se referem como “baderneiros” i. Mas quem é baderneiro? Quem está instalando o clima de caos no centro de São Paulo? Quem está chegando agora para manifestar, mesmo depois de um dia de trabalho?


Guilherme Mendes

O maníaco das flores.

Com certeza: não é o Danilo Gusmão. Ele, entrevistado pela TVT, pelas rádios, pelos populares, levava um cacho de flores na mão. Dessas bem simplezinhas, de mercado. Ele explica: “é pra parar de ter medo da violência. (...) [a violência] se vier, que não venha da gente.” E tuc, foiçava uma flor. Colocou uma na alça da minha bolsa. O cabelo de um companheiro seu, com cabelos cacheados, já cheio delas. Tuc, outra flor. São baderneiros? Até agora não foram vistos assaltos, tretas gerais e um amigo meu disse que sentiu cheiro de maconha uma vez. Ali no núcleo pesado da coisa, nada. Não consegui entrar na brisa de nada. Só um Marlboro aqui ou ali. Com a banda completa, o que era protesto vira uma animada festa. O novo single agora é:

“Ô Ô Haddad / Que papelão


Abraça o Maluf e aumenta o busão”

É isso: um toca uma clarineta, outro toca o tema da festa junina numa escaleta azul-clara. A galera grita algo e a banda toca outra. Não estamos nos EUA, não são homens e mulheres balançando placas penduradas em paus, girando em círculos na porta de uma instituição. Aqui é Brasil, aqui o negócio é ser ouvido. Seja lá o que se diga. Guilherme Mendes

Plínio de Arruda, 82, não ficou no sofá.

“JOGRAL”, alguém grita. “JOGRAL”, todos repetem. E então alguém diz “senta”. E quando todos se sentam, ele está lá de pé Plínio de Arruda Sampaio, 83 anos mês que vem, com um megafone na mão, toma uma onda de aplausos. O velho lobo saiu de casa. Novamente os “baderneiros” são espertos: Alguém grita, todos repetem “jogral” e assim a comunicação prevalece entre todos. Seis e tanto agora. E Plínio, em cinco minutos, mais fez que muito socialista de redes sociais. E então o mágico: alguns manifestantes romperam o trato, se levantaram e protestaram. Protestaram dentro do protesto. Eram contra o partidarismo dentro do que julgavam ser “uma causa apartidária”. Baderneiros


contra baderneiros e o que acontece: sim, o que os baderneiros fazem: respeitam e esperam eles sentarem novamente. Quando sentam, o discurso continua. E passam caixas com máscaras descartáveis. Um cara de dreadlocks deixou na minha mão um pequeno papel, onde diz: AVISO: Caso a polícia jogue bombas de gás lacrimogêneo, mantenha a calma. Evite correr enquanto estiver em meio a (sic) fumaça, pois ao realizarmos um esforço físico maior, a respiração fica mais intensa e a quantidade de gás inalado aumenta. Pergunte aos manifestantes próximos se algum deles possui vinagre. Passe em um pano e respire através dele. O vinagre serve pra neutralizar a ardência causada pelo gás. A mesma dica de não correr serve para bombas de efeito moral, já que o objetivo da polícia é dispersar os manifestantes, separando-os do grupo. Com isso, a chance de se tornar um alvo de agressão física ou prisão só aumenta. Portanto, FIQUE CALMO e mantenha-se ao lado do grupo. A SEGURANÇA É A PRINCIPAL ARMA DE UMA MANIFESTAÇÃO.

Seriam os manifestantes suecos? Dinamarqueses? Não, tem negros aqui. Mas olha essa organização, essa volúpia, gente, máscaras dessas custam grana. Alguém roubou de um hospital? Ou vocês tiveram a pachorra de comprar mesmo? A tensão aumenta. O povo grita “Ô/São Paulo acordou” e “vamo pra rua”, e a tensão permanece. A tensão é uma massa mole, que você pode pegar um pouco no ar frio. Os olhos estão preocupados. Sim, quem faz parte do protesto, quem realmente protesta, têm medo dos polícias, tem medo das três, quatro helicópteros rodando. Se sentem como dentro de um Coliseu, ou caindo ao lado de Winston Smith em alguma página de 1984. Todos olham para o Viaduto do Chá: a última vez seguiu por ali, por aqueles meandros de ruas sem carros, para um confronto na praça da Sé. Dizem que a polícia já armou bloqueios em ruas como a Direita, a poucos metros da Praça da Sé. Todos querem ir pra lá. Mas aí, quase que como um velório, um senhor, boné é bigode branco, surge com ramalhetes de flores gigantes, dezenas e dezenas delas. Ele atravessa a multidão. E segue pela Barão de Itapetininga. A banda pede passagem e segue. O povo segue atrás. Ainda dia treze de junho de dois mil e treze. Dezoito horas e dezessete minutos. Vinte centavos vão parar São Paulo.


IV. O centro da maior cidade ao sul do Equador, durante a noite, é depressivo. Muito concreto e asfalto traz calor de dia e um frio amargo ao crepúsculo. Os mendigos, agindo como morcegos, acordam. E as lanchonetes de esquina, tão melancólicas quanto um samba de Adoniran, não fazem barulho: das ruas a gente mesmo ouve as TVs, que em uníssono transmitem a voz nasalada e brevemente aguda de Marcelo Rezende: “agora corta pro protesto. Hamilton” E Hamilton está ali, onipotente, acima de nossas cabeças. Filmando tudo, chamando de “confronto”, de “distúrbios no centro de SP” – sem explicar necessariamente o motivo da passeataii. Mas o zoom da câmera, por mais potente que seja, é só uma câmera. Antes de tudo, uma câmera. Do alto, como uma máquina dependurada do lado de fora de uma máquina, não tem um fator humano. Não tem, como, lá de cima (e, consequentemente, do lado de lá da TV), ver as coisas com olhos humanos: quando cortei Conselheiro Crispiniano, dobrei a Sete de Abril e caí na Praça da República, em três minutos, vi cenas que não lembravam as da TV: a de policiais mandando carros avançarem no sinal vermelho na República e manifestantes, passando pela porta da estação, portando flores. Pareciam ter sido desviadas de algum túmulo do cemitério da Quarta Parada, mas eram flores. Não balas, não sprays, não pedras. Flores, aos ramos, em dúzias. Para policiais que também não demonstravam a raiva de minutos antes, quando enfiaram litros e litros de spray de pimenta na cara de jornalistas acusados de portar vinagre, ou de jovens, como os dois de Campinas. Flores para policiais, agora simpáticos. * Não que todos os ali gritando fossem os bons homens brasileiros. Na linha de frente, mais na frente que a linha de frente, estavam eles: os 0.01% dos mascarados, Anonymous e anarquistas que dão nome aos bois. Os “pingos no is” da passeata. Segurando skates, sprays, eles vão avançando, voando abaixo do radar. A frente da linha de imprensa. Imprensa, dessa vez, maior que nunca: de fotógrafos, mais de 300; Fábio Turci da Globo estava lá; Marcelo Mattos, a Jovem Pan, idem; o corpo de imprensa estava ali, como uma cúpula: uns em cima dos outros, em andares. Todos para pegar a faixa principal: “VIOLÊNCIA É A TARIFA”. Um preto com letras brancas rimando com as máscaras.


Ninguém quer perder o bonde da história. Erick Ferreira

Rua Barão de Itapetininga com Praça da República.

(aqui agora entra a titia Arminda, quarenta anos e fã absoluta da VEJA: “Mas são mascarados, malfeitores, uns crápulas que só pensam na destruição”. E sim, parabéns tia, acertou de novo. Porém esses mascarados não marcavam mais de um em cada 200 ali. Até as seis da tarde não tinham, na dita escadaria, mais de 15 deles. E eles que aparecem na frente dos fotógrafos. Entendeu tia? Agora me traz um pedaço desse bolo...) Ok. A polícia foi boazinha até agora. Mas e agora? Agora a praça Roosevelt está fechada por uma fileira de choque da guarda Civil Metropolitana. Ou então esses milhares se esgueiram pelas ruas minúsculas que circundam a praça – sem entrar nela -, ou sobem a rua da Consolação. Consolação essa que agora está com uma barreira de carros da polícia, o trânsito fechado. Uma típica cena do jogo GTA. O grupo avança. Para na frente dos policiais. Distribuem mais flores. Essas parecem estar chegando ao fim. Assim como a paciência dos mascarados, como a paciência daqueles dois jovens de 17 anos, moradores de Interlagos, que dizem que é “o aumento do abuso” e que demonstravam estar


pronto pro que viesse. Aparece o primeiro “R$3.20 é o caralho” na lateral de um ônibus laranja. O grupo chega a poucos passos da barreira policial. E param. E encaram. Apenas encaram. E recuam. Milagrosamente recuam. O chefe da polícia, com o sugestivo nome de capitão Ben-Hur, todo pimpão, se entrincheira atrás de uma montanha de microfones, e defronte a um cartaz de protesto. Estado de Direito é isso mesmo, e tem câmeras demais pra ele descer o cassetete no espertinho. Segunda tentativa: há um cordão agora. Homens mulheres, braços dados ou não. Novamente frente a frente, polícia e manifestantes. Policiais treinados juntos no batalhão frente a pessoas que se conheceram pela internet, ou nem isso. A Consolação está vazia de carros, apenas repórteres e fotógrafos e curiosos e gente que saiu do bar para um “é agora”. Estou de costas e, quando ouço o primeiro grito, quero me recusar a virar e ver. É alguém caindo. Algo como uma cassetada, mas a vista embaça com a adrenalina pingando. E assim veio a primeira corrida, a primeira pedrada. E a primeira bomba moral. Estão abertos os trabalhos.

V. Erick Ferreira

Imaginamos que você tivesse uma máquina do tempo e parasse aquela cena. Se voltasse 45 anos, veria que aquela cena, ali, não era novidade pra ninguém. Como lembrou Elio Gaspari em um texto para a Folha no dia seguinteiii, ali é a esquina da rua Consolação com a Maria Antônia. Ali, em


1968, estudantes da Universidade Presbiteriana Mackenzie (ditos “de direita”) enfrentaram a paus e pedras os estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (ditos “esquerdinhas”) e um estudante secundarista, José Carlos Guimarães, 20, acabou morto. Sim, chegamos bem perto disso. As bombas começam a explodir e todo mundo nada faz além de correr. Transeuntes correm, imprensa corre. Mas motoristas de ônibus apenas bocejam. Um caminhoneiro que eu interpelei, quando perguntei se estava com medo, deu um arrastado “naaaaaaaaaaaaada”. Os “baderneiros” agora não poupam esforços: voam pedras, e eu vi um rojão desses caseiros pipocar na horizontal, como que se tivesse sido apontado para a cara do policial. Mais pra cima, uma prova de que a polícia, dessa vez, agiu como uma criança mimada que não consegue aceitar a provocação: perdida, agia com truculência – não, não é mentira: truculência é o verbete correto – em cima de gente nada fazia além de recuar e gritar “sem violência”, Mais pra cima um grupo, mais eficiente que uma brigada dos escoteiros, cumpria um trabalho em equipe que deixaria qualquer escritório envergonhado. Os mascarados atacam de novo. Erick Ferreira

Como começa.

Um abre a lata de lixo (mas não a depreda, o porquê talvez deva ser examinado), enquanto outros dois, no canteiro central da rua, arrancam galhos


secos de uma árvore qualquer. Quando ambos se encontram no meio da rua, alguém puxa um isqueiro e um Rexona. No plástico, a dupla é fatal. Em cinco minutos, já são três as barricadas – montadas atrás da barreira policial. Parece que eles deixam acontecer de propósito. (Pausa para ver o primeiro e único vidro de ônibus quebrado durante a noite. Ao menos que eu vi). O Mackenzie desce as portas. Quem entrou, entrou, quem não entrou que se prepare pois a polícia está atirando como que num modo random. Jornalistas da Folha acertados foram seteiv. Um deles, que estava com capacete de bicicleta e uma pose tão ameaçadora quanto a de um velho, cruzou minha frente com uma marca na cara. Desmoralizado e cabisbaixo, como quem foi humilhado em praça pública. Agora o único refúgio, para mim e para uns outros cem, é a rua Piauí. Enquanto lá embaixo, no início do foco, a polícia cometeu a gafe de conseguir dividir o grupo em três grandes focos, indo alguns pela Avenida Angélica, outros pela rua Augusta e outros tantos sofrendo uma saraivada da guarda civil na praça Roosevelt, estava ali, naquela rua típica de um bairro como Higienópolis. Porta de faculdade de playba, carros parados dos dois lados. Agora teremos calma. E agora temos a companhia de Sakura – outro nome falso, uma assessora simpática, de Perdizes. Mesmo de lá de um bairro rico, a vida não é fácil pra quem precisa de transporte público. Ou ela estaria aqui, apoiando o JUNTOS – uma das promotoras da marcha – e ainda tendo a companhia de mais duas amigas? Aí duas fichas caem simultaneamente: a primeira é que a marcha, a destruição, a opressão, tudo contribui para mostrar que não é (apenas) a esquerda quem comanda o levante. Ele é dos jovens, de gente com 16,18,25, 35 anos, que se cansou da vida. Cansaram-se de ver tanto esforço não dar fruto. Se cansaram, ao mesmo tempo, de tucanos e estrelas. Um fenômeno que pode marcar a “geração decepcionada” de hoje. Se Hemingway e Fitzgerald faziam parte da Geração Perdida devido à guerra e a Depressão, essa se decepciona com toda a conjuntura nacional. Com o quadro todo. A segunda ficha é mais complexa. Todos veem o ímpeto de pacifismo de grande parte dos manifestantes. Vê que a maioria nada faz e que, nenhum dos jovens ali tem posse para armas não-letais. Então só sobra um lado pra chamar de culpado. Apenas um lado pode reivindicar esse título. Então de onde viriam aqueles gases, aqueles trecos brancos pesados explodindo sobre nossos pés?


Quando o primeiro apareceu, restou a mim e a Erick – o meu amigo fotógrafo e Sancho Pança – correr pra onde dava entrada. E a entrada era a porta da Faculdade de Jornalismo da Mackenzie. Que agora, vejam só, está fechada. Eu, Erick, umas dez pessoas, uma senhora quase chorando em meus braços, dizendo que “só queria ir pra casa” – ela estava na porta do prédio quando a bomba veio. A todos nós – e a uma cativa audiência nos prédios sobrou a missão de apenas encarar aquela rodela prateada, soltando uma incrível fumaça roxa. * Erick Ferreira

As garotas do Mackenzie inspiram o gás lacrimogêneo. Tem a primeira vez pra tudo.

Lembranças da infância. Quando puxei o ar, pela primeira vez, fui jogado a um churrasco de família, quando devia ser bem pivete. Me senti como comendo uma calabresa que meu pai fazia. Só que me volto à realidade, e essa tal calabresa parece estar mais ardida que em 2001. A respiração para. A garganta seca. Olhos inundam em lágrimas. E máscara sem vinagre nada mais é que enfeite. Corro pra cá. Pra lá. Pra cá e pra lá com as garotas de jornalismo do Mackenzie, tossindo na minha cara. Cospem no chão. Clamam por socorro. Os


olhos vacilantes E dizem que é a primeira vez que isso acontece. Garotas, polícia. Polícia, garotas. A cápsula, que eu guardei de lembrança, foi jogada a uma distância de uns 100,110 metros, quicou na roda do carro e ali ficou. A anatomia da rua também ajudou: o impacto fica no meio da rua que parece uma concha côncava Ao menos, disso tudo, restou um orgulho: armas brasileiras contra cidadãos brasileiros dão a sensação que um “eu te amo, meu Brasil, eu te amo! Meu coração é verde, branco, amarelo, azul e anil!”v vai sair tocando ao longe. De volta à Consolação, a palavra agora é de Amanda e Felipe. Ela de publicidade e ele deve ter falado o curso, mas não lembro. Ambos bonitos, dentes certos, estudando numa faculdade de renome. E mesmo assim apoiando a causa. Claro, com suas restrições, com a coisa de “ah, mas não pode depredar” e a cantilena que já passamos a noite ouvindo. Ela é de Osasco, sofre pra chegar e volta de carona. Estudando em São Paulo e trabalhando em Barueri, o deslocamento por vias cada vez mais débeis e sem infraestrutura básica parece impossível. E ela considera justa a revolta (placar da noite até agora: 27 sim, nenhum não). De súbito, os olhares distraídos dos estudantes – já não haviam manifestantes ali- tomam a seriedade de um grupo de suricatas; E então, enquanto discutíamos a legalidade ou não de se tomar as ruas, quem tomou a rua de assalto, novamente, foi a tropa fardada. Esses rapazes, nos píncaros da glória que a TV proporcionava vi, voltaram pra mais. Voltaram para mais meia dúzia de balas de borracha - a qual guardei também um souvenir- e mais lacrimogêneo. Amanda tossia, Felipe corria pra dentro do prédio do Mackenzie, e eu e Erick já estávamos tão acostumados que oferecemos nossas máscaras e continuamos discutindo algo inútil. As bombas, que antes eram só na rua, tomaram de surpresa uns rapazes batendo um fut na quadra do campus. Dessa vez, dava pra falar que bombas foram jogadas num reduto de ensino – e um reduto privado. “Foram os polícia! Foram os polícia!”. Sim, a gente entende. Sim, a gente sabe. Sim, eles já perderam as linhas.

VI. O alvo dos alpinistas é o Everest. O alvo do Rubinho era passar o Schumacher. E o alvo do Passe Livre, como sempre, é a avenida Paulista. Paulista, a mais paulista das avenidas, tem vivido dias estranhos. Só a estação Trianon- Masp já teve madeirite no lugar de vidro duasvii vezes esse mês. Batalhas campais têm saído aos montes. Protesto? Ih, quase todo dia.


Médicos, guardas, professores, eles ok. Mas jovens? Rebeldinhos do cabelo grande sem causa? Não. Apenas não. Lá, segundo o que apurei, tudo estava pronto como uma festa no bufê infantil. Antes de todo mundo pensar em escapar das forças policiais, a tropa de choque já armava o bolo, bexigas e um ônibus lotado de (cães de) guardas, prontos para os aniversariantes. Afinal, já são 11 dias, uma data que os policiais querem comemorar com bolos de pimenta, brigadeiros morais e, por que não, uma ou outra cassetada maneira. Quando os nossos amigos da turba chegam ao portentoso e quadrado prédio do Safra, na esquina da Augusta com a avenida, começa o show. Tiros desnecessários. Prisões desnecessárias (na noite toda, mais de 200viii). Uso de força desnecessária. Uma ação desnecessária? Desnecessária? Ok, pra mim já deu. Não preciso – não posso - mais vestir o véu sagrado da imparcialidade que guiam os jornalistas. Temos heróis e vilões suficientes nessa história. Não dá pra compactuar com o que a PMSP, essa instituição que, em cinco anos, matou mais que as polícias americanas juntasix. Não dá para acreditar que não haja motivo para impedir jovens de se reunir onde sempre se reúnem, apenas por pensar que eles podem causar baderna em um lugar que, por um acaso, também é onde se concentram hotéis e turistas. Se eu pudesse dar uma dica aos líderes do movimento, seria: marca no Grajaú. No Campo Limpo. Em Diadema. Lá turistas não têm, eles vos deixariam em paz. * Infelizmente, a minha missão foi abortada. Um dia de trabalho aliado a esta pequena epopeia já cobra seus preços. Agora é só ir embora. Mas por onde? Na porta do cemitério da Consolação, a umas quadras da estação Paulista, o que vejo são bombas, bombas, bombas. Mais bombas. O foco era ali, na porta da estação, e eu iria ficar onde? Dormir ali? Nem pensar. O segredo é ir em direção oposta, e ir pra estação República, no centro da cidade. Descendo a rua e a vendo agora mais calma e lânguida, o estrago é visível: enquanto os amarelinhos da CET correm pra varrer as faixas, nota-se uma quantidade pequena de pedras. Comparado com as cinco cápsulas de gás que eu encontrei ao acaso, fora outras balas de borracha que estavam ali “ao acaso”. Foi desumano. Covarde. E isso não é interpretativo, é tangível em forma de cápsulas escrito “CONDOR – INDÚSTRIA BRASILEIRA” escorridos no meio fio ainda aos montes. Por fim, fica aqui o depoimento de um fotógrafo da Abril, que desde 1965 trabalha e, para meu desgosto, tem carteirinha de jornalista mesmo sem

Guilherme Mendes


formação. “Eu tô feliz pois é agora que a casa vai cair. Haddad, Alckmin, todo mundo junto. Eu apoio”

Como nunca passou uma bala de borracha na TV, eis um retrato dela.

Epílogo Enquanto digito esse texto, leio textos da Vice, Folha, Estadão, R7, Diário de S. Paulo. Vejo vídeos de todos os canais. Leio comentários e posts e mais posts do Facebook. De quinta pra cá a sociedade brasileira mudou numa


curva nunca antes vista. E com isso tomamos baldes e baldes de informação. Morremos afogados nela. E dessa vez, a imprensa não perdoou: a Folha não deixou barato seus sete jornalistas feridos – assim como a bela Giuliana Vallone, que tomou um tiro no rostox-; a Carta Capital repudiou rapidamente a prisão de um repórter pelo inédito crime de “Porte de Vinagre”xi. A Globo, cujo repórter Fábio Turci eu encontrei quase antes de ir embora, fez uma cobertura, no mínimo honesta. E a discreta TV Câmara – não porque eu trabalho lá - proporcionou um debate de mais de 40 minutos sobre o tema, com dois vereadores de opiniões diferentes e um repórter que viu tudo in loco – Fabrizio Glória chegou a ser assaltado durante a transmissão. A passagem ainda custa R$3,20. Haddad foi à TV e deu mil desculpas, mas que “não dá”. Alckmin foi mais além e legitimou a ação, clamando por vieses políticos. Deu crédito às balas, ao que todos viram e que ninguém podia negar. E a Record, ainda movida por uma razão desconhecida, também tentou dar uma forcinha, chamando apenas de “confrontos”, sem citar a causa. Os vídeos pipocam. São muitos, são incríveis, são violentos. Homens atirando contra pessoas que pediam pazxii. Balas voando a esmo. E um incrível – se é que há outro adjetivo - em que o policial quebra o próprio vidro da viatura, para provavelmente culpar alguém da massa.xiii Quando viu ao vivo na TV Câmara, o Coronel Camilo, vereador por São Paulo e ex-PM, não soube responder. Enrolou a resposta. A assessoria da PM se limitou a dizer que a prática “não era recomendável”. xiv E eu? Em linhas curtas, digo que nunca me senti com tanto orgulho de ser brasileiro. De dar a cara a tapa – e a outra face, por que não – contra aquilo que é abusivo, errado, injusto. Não fui a favor ou contra ninguém, mas se a TV me dizia que eram vândalos e a internet me dizia que eram os “novos ares”, eu sabia que alguém ali estaria mentindo. Nem que fosse na marra, mas eu descobriria quem. Essa bala de borracha...esse gás... as placas, as flores, as pedras e a revolta. Tudo é um só. Tudo é uma revolução. Tudo junto é uma salada. (Para Fred Ghedini, meu chefe que citei no início da matéria.)

Guilherme Mendes, 19, é assessor na Câmara Municipal de São Paulo. Erick Ferreira, 21, é professor de música e fotógrafo nas horas vagas. NOTAS:


i

(O Diário de S. Paulo, 13/6/2013, página 1) Para a vergonhosa cobertura da Rede Record, recomendo dois vídeos: http://videos.r7.com/policiateria-pedido-para-comerciantes-baixarem-as-portas-no-centro-de-saopaulo/idmedia/51ba3be80cf27179ea090137.html e http://videos.r7.com/reporter-relata-a-confusaono-centro-de-sao-paulo/idmedia/51ba3b4f0cf27179ea090135.html iii http://www1.folha.uol.com.br/colunas/eliogaspari/2013/06/1294837-a-pm-comecou-a-batalha-namaria-antonia.shtml iv http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1294799-em-protesto-seis-reporteres-da-folhasao-atingidos-2-levam-tiro-no-rosto.shtml v Refrão de uma antiga canção da época da ditadura militar. vi http://videos.r7.com/confronto-em-sao-paulo-policiais-ficam-cercados-por-multidao-demanifestantes/idmedia/51ba4d9a0cf2b93b75940808.html vii http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1293914-metro-estima-prejuizo-de-mais-de-r-100mil-apos-protestos-em-sp.shtml viii http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1294960-dos-235-detidos-em-protesto-231-saoliberados-apos-prestar-depoimento.shtml ix http://noticias.r7.com/sao-paulo/noticias/em-cinco-anos-pm-de-sao-paulo-mata-mais-que-todas-aspolicias-dos-eua-juntas-20110607.html x http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1295166-disparo-que-feriu-jornalista-da-folha-norosto-tinha-como-destino-manifestantes-diz-pm.shtml xi http://www.cartacapital.com.br/politica/em-sao-paulo-vinagre-da-cadeia-4469.html xii http://www.youtube.com/watch?v=u3-PWM9uuGI xiii http://www.youtube.com/watch?v=kxPNQDFcR0U xiv http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/06/pm-apura-video-que-mostra-policial-quebrandovidro-de-viatura.html ii


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