Uma festa de aniversário em seis atos

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Uma festa de aniversário em seis atos | Focas no Foco

Focas no Foco

Uma festa de aniversário em seis atos 26/10/2013 por walterdisneyjr I.

A musa Uma deusa grega moderna, flutuando como uma pétala, os olhos acinzentados lânguidos, como uma robô. Mas não, ela não era uma robô, era só uma black bloc, o all star com estampa de onça, a calça jeans colada, a camisa preta na cara, uma máscara dessas usadas por pintores e um óculos de proteção. Nas costas, o cabelo vermelho nos fazia pensar: essa vândala (jornalisticamente falando) estava pegando fogo. Do lado direito dela, três mil pessoas, uma banda dita “Fanfarra do Mal”, a Casas Bahia da Praça Ramos aberta, as pessoas passando e muitas parando pra ver aquela multidão protestar pela tarifa zero. Do outro, alguns homens de uma fileira de 36 policiais protegendo o Theatro Municipal, impávidos, faces serenas em um momento de extrema tensão. Acima um céu com um São Pedro prestes a jogar uma garoa fina sobre o ímpeto de todos. A frente e atrás dela, câmeras e mais câmeras flagram como ela flutua, como ela dança com uma bandeira preta. Ela a tremula lentamente, passa nos peitos de alguns policiais atrás dos seus escudos do batalhão de Choque. Éris era uma deusa grega que ficou nos livros graças ao seu pomo da discórdia no Olimpo. A nossa Éris em pleno 2013, instalava era o caos na festinha do Passe Livre. II. A semana de 26 de outubro é semana de “festa” pro Passe Livre. Nesse dia o Movimento Passe Livre começou a se articular para conter o aumento das passagens em Florianópolis (SC) e iniciar um debate sobre a tarifa zero. Durante oito anos e oito meses o grupo foi relegado ao quaseanonimato. Aí, quando ele encontrou a causa (20 centavos) e o local corretos para um protesto (o centro da maior cidade da América Latina) para termos uma das principais revoltas nesse país nos últimos 60 anos. focasnofoco.wordpress.com/2013/10/26/uma-festa-de-aniversario-em-seis-atos/

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Então os 20 centavos se foram. O gigante tinha acordado, deu uma caminhada na orla da praia, comprou pães, mortadela, ganhou um desconto de 20 centavos, voltou pra casa, deitou e voltou a pegar no sono pesado. Mas a semana do dia 26 chegou e uma série de festinhas lembraram os nove aninhos do movimento: Grajaú, M’boi Mirim e Campo Limpo tiveram manifestações durante a semana. Nesta sexta, 25 de outubro, era dia da festa principal. Voltaríamos ao início de tudo. A porta do Theatro Municipal. O início de tudo foi uma quinta, 13 de junho. Alguém tinha cochichado “hoje é dia de batalha”. Outros “ah, são aqueles baderneiros da tarifa”. E eu, achando estranho a polícia ser boazinha demais pela TV (vista a quantidade de abusos mostrados pelas redes sociais), estava escorado no poste na praça Ramos, pronto pra acompanhá-los e ver onde isso dava. Naquelas cinco horas eu vi balas de borracha, truculência dos dois lados, muita gente na rua e assunto suficiente para este relato, capaz de me faz lembrar sempre de um estranho dia na qual o Brasil saiu do seu próprio umbigo um pouquinho diferente. Nem eu saberia explicar tudo pela qual passamos nesses quatro meses e 12 dias. Tanta, mas tanta coisa que dois textos desse não dariam uma análise correta. Então vamos fechar os olhos e imaginar: quase nada aconteceu. Mesmo assim, se abrirmos os olhos estará lá na placa: Semana de Luta por transporte público. Por isso alguns daqueles 100 mil de junho estavam de volta ali. Os objetivos de antes – “por uma vida sem catracas”, dizia a faixa abre-alas– os inimigos de antes (Haddad era, de longe, o mais visado; mas sobrava também para Alckmin, a polícia fascista, a mídia mentirosa, deus e o mundo) e 3% do público de antes. Mas um público animado no meio da garoa fraca, com uma fanfarra animadíssima (puxados por um trombone tocado por um punk) e panfletos muito mais bem-feitos, se comparados com os de junho (ainda na minha carteira). Isolados num canto da festa estavam os blocs. Sempre tem um grupinho mais isolados em festas, conversando entre si e dividindo um prato de salgados. No começo eram só 8, depois 10,12 e, em uma hora, 17 mascarados vândalos antissemitas ateus assassinos de beagles (até o fim da noite, mais de 100). A cada cinco ou dez minutos eles se fechavam numa rodinha, discutiam uma preleção e voltavam pra lá e pra cá. Muitos usavam balaclavas, outros apenas enrolavam uma camiseta preta na cara – e não havia blocs fumando, por falta de lugares de onde enfiar o cigarro. E o tempo passa e mais faixas chegam e mais policiais – 55 na Casas Bahia; 19 no Viaduto do Chá e 36 fechando as entradas do Theatro. O coronel Vecchi usava um cinto a qual prendia uma câmera GoPro no peito, filmando tudo e todos em HD. Apenas dois policiais estavam sem capacete – um deles, subindo as escadas enquanto eu as descia, o Coronel Rossi, vai aparecer de novo aqui a qualquer hora. Como em junho, com o fim da tarde a tensão cresce. E aparece o primeiro helicóptero Robinson da imprensa. (Pausa pra reflexão sobre o tema “dá pra confiar em cobertura de helicóptero mediada por gente como Datena e Marcelo Rezende?”). E alguém puxa o jogral avisando: “hoje ninguém paga tarifa”. E lembram-se, no meio de muitos cânticos chochos, de puxar um “vem….vem…vem pra rua, vem contra a tarifa”. É tão hipnótico quanto um canto de sereia e, antes da frase acabar, pessoas já aparecem na janela do edifício em frente para sentir aquele clima de protesto de novo. Quando estendem a faixa abre-alas e os black blocs já se colocam de prontidão, eles estão completamente integrado na festa, já são da casa, já até cantam pra eles: “Ih, que maneiro, black bloc é meu parceiro”. E, exatamente às 18h20, quase 18h21, uma mão me empurra gentilmente. focasnofoco.wordpress.com/2013/10/26/uma-festa-de-aniversario-em-seis-atos/

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“Dá licença, a gente vai sair agora com a passeata” e essa mesma mão indica o caminho pra quem empunha a faixa e começa a dar os primeiros passos, em um corredor formado por paredes de incontáveis policiais em capacete branco e coletes verdes fluorescentes. É a mão direita de Mayara Vivian, conhecida por ser o rosto do MPL. III. O andar é lépido de quem tem de manter a harmonia de uma escola de samba. Mas Mayara parece ter muito mais idade do que realmente tem. Em junho, na flor dos seus 23 anos, recusava o título de “porta-voz do movimento” quando esse estava no topo da agenda social e política. Mesmo assim, o movimento que ela representa sentou em uma das duas cadeiras reservadas na noite de 17 de junho no programa Roda Viva da TV Cultura, mostrou ao pais quem era o movimento responsável por queimar catracas em vias públicas e conseguiu até desconcertar um coronel da PM ali presente. Mas quando a poeira baixou, ela tinha sumido no meio das cinzas de catracas queimadas. Quando ela reaparece, a repentina fama capaz de fazê-la ser reconhecida por alguns membros da imprensa ali presentes, já na porta da galeria do rock, dava sinais de que não subiu à cabeça. Ela estava vestida de maneira simples, pronta para a batalha: uma malha lilás, sobreposta por uma camisa rasgada em forma de regata com a estampa do movimento, calça justa e tênis no modelo Timbaland. O rosto, levemente moreno, parecia demonstrar uma ou outra marca de cansaço. Quando ela precisa ver as horas, puxa um celular antigo, sem grandes tecnologias (tela colorida e olhe lá), da alça da sua mochila transversal. Decorada com dois pequenos broches. E só. O cabelo, há muito parecendo pedir algum carinho, segue solto, num pra-cima-pra-baixo enquanto ela desce a rua José Bonifácio em direção à Praça do Correio. Aqui ela age como a mãe, que passa na festa com o prato cheio de coxinhas de frango, ou lanches de carne louca, perguntando se tá tudo bem, enquanto corre pra afastar as crianças do bolo. Por falar em bolo, quem tá louco esperando pelo bolo é a base móvel M-07178, de propriedade da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Estacionada debaixo do Viaduto Santa Ifigênia, ela aguarda louca por essa parte da festa junto com o caminhão blindado 93211, de posse da mesma corporação. Dentro de ambos, dezenas de homens do Batalhão de Choque, capacetes pretos, praticamente irreconhecíveis no breu da cabine, ansiosíssimos pra botar a cara pra fora. Ansiosos pelo bolo

Mas agora não. Ainda não.

IV. O protesto-festa de aniversário segue um caminho estranho, umas ruas do bairro da Luz onde predominam o comércio de alimentos, hotéis decadentes e lojas de materiais elétricos. Pelo menos até agora, com mais de um quilômetro andado, não havia bancos no caminho. Para os blocs isso é um acréscimo na ansiedade, é como deixar crianças sentadas na sala com o videogame… desligado.

Como um paulistano emotivo, sou grato ao MPL, não apenas pelos vinte centavos a menos, mas

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Como um paulistano emotivo, sou grato ao MPL, não apenas pelos vinte centavos a menos, mas por outro motivo: o turístico. Graças a eles, conheci minha cidade favorita na galáxia andando a pé pelas suas principais vias. Nunca passou pela cabeça andar, numa segunda a noite, pela pista expressa da marginal Pinheiros. E nessa noite de sexta me vejo entrando no túnel Papa João Paulo II, ligação da avenida 23 de maio à zona norte, cortando pelo meio meio do Vale do Anhangabaú. Sempre andando a passos curtos, com um medo até irracional pois, em condições normais de temperatura e pressão, deveriam passar uma boiada de 100 carros por minuto naquele ponto. E isso me devolve força. Olha o tamanho daquelas vias colossais para carros demais com pessoas de menos. Cada vez mais relegados à periferia, a trens, metrôs e ônibus mais lotados; relegados a baldeações e a ter de pagar por qualidade de vida, bate um orgulho ver seu sapato social, com salto de madeira, fazendo um toc toc toc no chão de concreto, ecoando por toda a acústica de um túnel de 582 metros, criado em 88 e antigo ponto de passagem de milhões de pessoas por dia. Esse toc toc de meu sapato ia se encontrar com o grito de milhares de pessoas às minhas costas, gritando e em igual êxtase. Ao sair do túnel, a festinha de aniversário chega ao seu ápice: uma dezena de membros do Passe Livre sobe a saída do túnel correndo. Em instantes, eles montam um catraca gigante, de papelão e madeirite: primeiro encaixam as asas da catraca e a prendem na base. E a levantem, criando uma estátua de 3 metros. Alguém joga cola no chão e vai escrevendo com uma vassoura “Tarifa Zero”. Enchem a catraca de gasolina e pedem espaço, pois alguém vem vindo com duas tochas na mão. Abre se o espaço. A tocha vai girando no braço do rapa, chegando mais e mis perto do combustível na madeira, até o ponto inevitável onde uma labareda nasce. É a vela de aniversário acesa. A catraca em chamas. De alguma janela do sétimo andar do edifício Matarazzo, sede da prefeitura Municipal e em frente ao local da “tocha”, Fernando Haddad poderia ver o fogo surgindo. Poderia pensar também em seus dez meses de governo, marcado por abandono da base aliada, sucessivas derrotas, uma revolta popular inesperada e uma tentativa de aumentar o IPTU capaz de enfurecer uniformemente uma população toda. Mas ele realmente veria é que, em instantes, o fogo da estátua esmorece e a chama vai apagando, deixando o objeto quase intacto. Os organizadores, preocupados, cochicham entre si: - Traz a gasolina lá. - Mas acabou a gasolina, cara. - Então traz a querosene da catraca mesmo. Jogaram mais querosene. Em vão. Como cantar parabéns, na frente do trabalho do prefeito Haddad, se a vela se recusa em acender? Sem se fazerem de rogados, restou a 10 ou 15 homens colocarem a velha catraca, ainda com alguns pontos em chamas, no ombro, e saírem vitoriosos 23 de Maio afora.

V.

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Sobre como fechar uma avenida de 100 mil carros por dia Se ela estivesse dentro de uma loja da C&A naquele momento, eu não acharia errado. Uma calça preta justíssima (como manifestante gosta de calça justa), um coturno com tachinhas e uma regata preta. E uma camisa preta na cara. Ela, uma black bloc ou aspirante a, conversando com um mais tarimbado: mostrou a unha da mão (ou só metade dela, a outra alegadamente tirada por um policial durante os protestos contra o Instituto Royal semana passada, em São Roque). Mostrou a marca de tiro de bala real na canela. Não ergueu a máscara, mas parecia sádico ao contar sobre o choque de teaser que tomou no queixo de “um coxinha”. E não entrou em detalhes, mas explicou sobre o plano da polícia em instalar delatores no grupo, sendo ele um dos sondado para isso, mas negou colaboração, assim como negou dizer seu nome. - E eles me chamaram lá e falaram: a decisão é sua. – Te chamaram pra ser P2?(gíria no ramo para “infiltrados”) - Chamara. E falaram: “a gente sabe de todo mundo. Esse é do PT, esse trabalha pra não sei quem e a gente sabe quem é você. A polícia quer que acaba o quebra-quebra. Cabe a você”. - E você? - Eu falei “joinha” e fui embora.

VI. mesmo.

“A polícia quer que acaba o quebra-quebra”. Quer, mas não consegue. Ou não quer

Uma polícia, treinada para situações de exceção (sim, ela é treinada da mesma forma desde sua criação, na época da ditadura), sofrendo merecidas críticas por ser truculenta e ainda existir em tempos de democracia. Com um contingente imenso, sistemas de inteligência útil na derrubada de traficantes. Mas inútil ao parar o ímpeto de gente como esses dois, de gente como a musa citada lá no começo. Quando a passeata chegou no Terminal Pedro II, ainda no centro da cidade, a confusão começou. A polícia, capaz de produzir um cordão de isolamento durante todo o caminho, estranhamente agora não movia um dedo. Ou movia, baseado nas imagens mostrando balas de borracha sendo atiradas na região. focasnofoco.wordpress.com/2013/10/26/uma-festa-de-aniversario-em-seis-atos/

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Como deixaram os blocs sozinhos, era o início da festa deles. Como se, depois o bolo, apagassem as luzes e começasse o batidão. Caixas eletrônicos destruídos, ônibus queimados. Trabalhadores correndo desesperados de uma batalha bastante nova e estranha: A Polícia Militar institucional contra a desafiante, a “Polícia Militar dos Trabalhadores”, conforme dizia uma faixa compondo o protesto. Lembram-se do Coronel Rossi? O do começo? Então, ele apareceu agorinha mesmo, numa entrevista emocionada ao repórter José Roberto Burnier, como matéria de abertura do Jornal Nacional de hoje, o sábado 26. Ao efetuar uma prisão, uma prisão qualquer, como as tantas efetuadas pela polícia, dia e noite, na periferia ou como as 92 feitas aquela noite durante a passeata, o Coronel foi atacado. As duas omoplatas, perna, barriga e cabeça do policial foram feridas, mas ele sobreviveu Sentado no sofá de casa, uma tipoia amarrada no braço esquerdo e voz rouca, ele recorda os fatos pela qual Burnier narrou, em 7 minutos e 50 segundos de matéria (uma matéria comum costuma durar até dois minutos). O repórter conta como ele foi vítima de 21 segundos de agressão gratuita, com chapas e pedaços de madeira, chutes e socos. De como ele foi “salvo” pelo seu motorista que, para afugentar os agressores, apontou uma arma em direção a estes (ele era policial e apontou a própria arma; o revólver do coronel sumiu para a eternidade). E como “mesmo com vários ferimentos, o coronel conseguiu dar uma última orientação para a tropa”. O comandante, ensanguentado, farda amarrotada, carregado por dois policiais, pedindo “não deixa a tropa perder a cabeça” e produzindo gestos diante das câmeras, independentemente da posição pró ou contra a PM, é digna de ser cena de Platoon, O resgate do soldado Ryan e similares. Os relatos dos internautas no dia de hoje falam em um coronel agressivo contra cidadãos com e sem máscaras durante toda a operação. Como dizem os grandes barões da mídia, “Não podemos garantir a veracidade destes fatos”. Eles, com arsenal e pessoal para poder garanti-las, simplesmente não o fizeram, talvez pois era hora de editar o jornal de fim de noite, ou porque as rotativas iam começar a imprimir a edição de sábado, ou porque estava tarde, ou simplesmente porque não quisessem. E foi isso. Uma festa de arromba – catracas foram todas as do terminal; bancos arrombados, uma dezena, vidros então a gente nem conta. Mas reveja a matéria do Jornal Nacional: o ufanismo todo, o heroísmo do coronel, o vandalismo gratuito, a passeata resumida em “num panfleto, criticavam o governo de Geraldo Alckmin, do PSDB”, e a cobertura da manifestação por uma vida sem catraca. A festinha de aniversário de nove anos do Movimento Passe Livre, capazes de preencher todos os 7:50 da reportagem, não tem mais do que quarenta segundos para isso – e ainda não foram encontrados para dar sua opinião. Dentro desse texto, corrido em quase cinco horas de fatos, você deve ter perdido uns quinze, vinte minutos lendo. Já é mais do dobro da matéria da Globo. E aqui, ao menos, você não vai ver a frase mais manjada de 2013: A manifestação começou pacífica, mas um grupo de vândalos infiltrados… É bom pra começar a ter segundas opiniões. Categoria : Política

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