anorama P Porto Alegre, quinta-feira, 5 de junho de 2014 - Nº 8
GILMAR LUÍS/JC
Qorpo Santo é tema de montagem dirigida por Inês Marocco
TEATRO
Bufão do século XIX
Michele Rolim
Dramaturgo, poeta, jornalista, tipógrafo, gramático, louco... Essas são apenas algumas das atribuições dirigidas a José Joaquim de Campos Leão, vulgo Qorpo Santo (1829 - 1883), como ele mesmo se intitulava. Para a diretora Inês Marocco (de O sobrado e Incidente em Antares), ele pode ser definido como um bufão, “figura visionária, que fica à margem da sociedade, exatamente como ele vivia em uma Porto Alegre do século XIX”, relata ela. Inês dirige o espetáculo Santo Qorpo ou o louqo da província, que estreia hoje, às 20h, no Teatro Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mario Quintana (Andradas, 736). A peça é livremente inspirada no livro Cães da província, de Luiz Antonio Assis Brasil e no volume Enciclopédia de Q.S. Há, ainda, trechos de seis peças teatrais do escritor, entre elas, Um assovio e Eu sou vida não sou morte. A dramaturgia leva as assinaturas de Áquila Mattos, Jeferson
Cabral, Juçara Gaspar e Naomi Luana. Vítima de um processo de interdição por loucura, a peça mostra Qorpo Santo como um personagem incompreendido por seus contemporâneos. Ao mesmo tempo em que sua vida transcorre no palco, a encenação tem como pano de fundo histórias fantásticas, adultérios, crueldades e crimes, como aquela que transpassa toda a trama: os míticos crimes da Rua do Arvoredo. Aos poucos, a encenação revela um Qorpo Santo mais radical em suas ideias. Mostra os anos que ele exerceu o cargo de professor, o casamento com Inácia de Campos Leão, a obrigação que ele mesmo se impôs de viver afastado das mulheres para manter a santidade de seu corpo, bem como a pretensão de simplificar a gramática vigente fazendo coincidir uma letra para cada som pronunciado (daí que vem a escrita do seu nome com q), entre outras facetas do dramaturgo. “Quando lemos sobre a vida
dele, ficamos impressionados com a injustiça de que foi vítima. Hoje Qorpo Santo não seria considerado louco. Ele fazia denúncias que ainda são válidas, e isso incomodava os moradores da cidade”, comenta Inês. Ela também indica que ele era um homem de vanguarda: seu texto A separação de dois esposos revela, talvez, o primeiro casal homossexual da dramaturgia brasileira. Qorpo Santo nunca montou suas peças, consideradas pela especialista “muito difíceis, cruas, com um linguajar da época muito complicado”. O dramaturgo, natural de Triunfo, ganhou sua primeira montagem apenas em 1966, quando foram encenados três textos de sua autoria, descobertos pelo professor Aníbal Damasceno Ferreira (falecido em 2013) e sob direção de Antônio Carlos de Sena. Mas foi apenas quando a montagem viajou para o Rio de Janeiro, em 1968, para participar do Festival Nacional de Teatros de Estudantes, que Qorpo Santo
Santo Qorpo ou o louqo da província
• No Teatro Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mário Quintana (Andradas, 736), de quintas-feiras a domingos, às 20h, até o dia 15 de junho. • Ingressos a R$ 20,00 (com desconto para classe artística, estudantes e idosos).
ganhou fama nacional, sendo considerado precursor do teatro do absurdo. Contudo, parte desta teoria é contestada por alguns pesquisadores que, inclusive, apontam outros caminhos, como o de que ele era “um surrealista”. Inês se refere à teoria do pesquisador Eudinyr Fraga, que publicou o livro Qorpo-Santo - Surrealismo ou Absurdo (editora Perspectiva). Nele, Fraga contesta as correntes na atualidade e mostra que se há afinidades com a vanguarda teatral (e elas
de fato existem) o parentesco mais orgânico seria com o surrealismo. Teorias à parte, o fato é que ele pode ser considerado o dramaturgo brasileiro mais controverso. “A literatura de Qorpo Santo era revolucionaria para a época, só podia ser considerado louco”, declara Inês, também professora da Ufrgs. Na peça, quatro atores se revezam para interpretar Qorpo Santo: Áquila Mattos, Eduardo Schmidt, Jeferson Cabral e Rodolfo Ruscheinsky. Também integram o elenco Gabriela Boccardi, Juçara Gaspar, Ketti Maria, Magda Schiavon, Naomi Luana e Renata Cieslak. A trilha sonora é executada ao vivo pelos atores, todos eles alunos do DAD/Ufrgs. Além do espetáculo, o grupo Santo Qoletivo está produzindo um seminário sobre o escritor, que inclui um roteiro pelo Centro Histórico, percorrendo lugares onde o dramaturgo esteve. A atividade deve ocorrer no fim de julho, no Aquecendo em cena, programação que antecede o Festival Porto Alegre em Cena.