Anjo ou Patife Angel Rogue
Mary Jo Putney
SÉRIE OS ANJOS CAÍDOS 4 Disponibilização/Tradução/Pesquisa: Yuna, Gisa, Mare e Rosie Revisão: Irany Revisão Final: Danyela Formatação: Gisa PROJETO REVISORAS TRADUÇÕES Não era uma tarefa fácil, no século XIX, andar nos caminhos da velha Inglaterra rural de Durham até Londres; cinco dias de aventura, de aldeia em aldeia, por bosques fechados e áreas desertas, o viajante sempre pendente de salteadores e da traição que se escondia em lugares inesperados. E menos fácil devia ser para uma mulher. Embora fosse jovem e se vestisse como um moço; embora soubesse defender-se e fosse ágil como um gamo; embora pelas veias de seu corpo mestiço corresse sangue mohawk e se chamasse Kanawiosta, 'a água que flui'. E depois da guerra...? Waterloo ficou para trás; também, as difíceis negociações no continente para restabelecer uma frágil paz. Mas ao lorde Robert Andreville o retorno ao lar de Wolverhampton, à vida dada de presente e ociosa depois dos dias de dor e privações, nada conseguia lhe serenar o ânimo. Sentia falta das aventuras e dos perigos para sossegar a inquietação interior que o atormentava. Possivelmente por essa razão, quando aquela jovem pequena e morena, formosa como uma lua cheia, tropeça com ele no caminho, decide acompanhá-la até Londres, para protegê-la e possivelmente para seduzi-la... Uma americana em londres Máxima Collins é o seu nome; soa a rançosa estirpe, a nobreza latifundiária inglesa. Também a chamam de Kanawiosta, entre os mohawks, lá na América. Aqui e lá tem família; a de lá, a que pertenceu sua mãe; a daqui a do seu pai. Ela morreu faz tempo; ele há poucos dias, e em estranhas circunstâncias. Máxima se sente mais só que nunca, rejeitada como nunca. Mas não é essa a única razão da sua fuga: ouviu falar da partilha de uma herança e de que queriam desfazer-se da intrusa. A casa de seu tio, Lorde Collingwood, já não é segura para ela.
PREFÁCIO Desde os fins do século XVII, a magnífica casa senhorial do Wolverhampton adornava com sua plácida majestade o vale dos York como uma coroa real. Fora construída pelo primeiro marquês do Wolverton, cujo gosto pela grandiosidade arquitetônica igualava ao seu bom olho para as herdeiras; em sua longa vida se casou com três delas e enterrou as três. No século e médio transcorrido desde sua terminação, a mansão recebera as visitas dos grandes e famosos de cada geração, oferecendo um esplendoroso cenário para uma sucessão de lordes e afins. Os Andreville eram a principal família do norte da Inglaterra, e seus membros eram famosos por sua honra sem mancha, sua administração conscienciosa e seu comportamento cabal. Pelo menos, alguns membros da família eram. Teria sido muito mais sensato alugar um carruagem, mas depois de tantos anos de ausência, Robin preferiu fazer a cavalo o comprido percurso pelo campo inglês. O ar estava seco e a temperatura era relativamente quente para começo de dezembro, embora cheirasse a neve e a quietude; o silêncio pressagiava uma tormenta iminente. O ancião porteiro de Wolverhampton o reconheceu em seguida e correu a abrir as portas, e quase caiu pela pressa. Robin o saudou com um breve sorriso, mas não se deteve para conversar com ele. Percorreu os seiscentos metros do caminho de entrada rodeado por olmos e, ao chegar ao final, atirou das rédeas detendo-se contemplar a fachada de granito da mansão. Wolverhampton não era o que ele chamaria de seu lar, embora o fora, e era ali onde seu cansado espírito lhe exigiu voltar uma vez acabada suas obrigações em Paris. Um lacaio o divisou e se apressou a sair da casa. Robin desmontou e, sem dizer uma palavra, entregou-lhe as rédeas e subiu os degraus para a maciça porta dupla de três metros de altura. Deveria ter notificado sua chegada o seu irmão, mas preferiu não fazê-lo; desse modo não lhe deixava nenhuma possibilidade de dizer que não era bem-vindo. O lacaio que se aproximou pelo vestíbulo de mármore era jovem e não o reconheceu. Quando leu seu cartão de visita, abriu os olhos assombrado. - Lorde Robert Andreville? - Em pessoa, respondeu Robin, amavelmente. Esta de volta a ovelha negra. Está ocupado Lorde Wolverton? - Perguntarei, respondeu o lacaio, recuperada sua expressão impassível. Importar-seia em esperar no salão, milorde? - Sei chegar ali sozinho, comentou Robin ao ver que o lacaio começava a guiá-lo. Afinal nasci aqui. Prometo não roubar a prataria. O lacaio se ruborizou, fez-lhe uma inclinação e desapareceu nas profundidades da casa. Robin entrou no salão a longas pernadas. Sua máscara de despreocupação era exagerada; qualquer um que o conhecesse bem se daria conta de que estava nervoso. Mas havia motivo; fazia tempo que não via seu irmão mais velho. Como o receberia Giles? Apesar de ter temperamentos tão diferentes, foram amigos. 2
Foi Giles quem lhe ensinou a cavalgar e a disparar, e o que tentava, sem muito êxito, manter a paz entre seu formidável pai e o rebelde irmão mais novo. Inclusive depois que ele partiu da Inglaterra, conseguiram manter um leve contato. Mas já transcorreram quinze anos desde que viveram sob o mesmo teto, e três do último e breve encontro em Londres; esse encontro fora agridoce, o prazer quebrado pela tensão que acabou em uma discussão curta e acalorada justo antes do momento em que ele tinha que partir. Giles dificilmente se enfurecia e jamais antes se enfureceu com ele, o que fez mais penoso ainda o incidente. Embora dessa vez fizessem as pazes e se separaram amigavelmente, Robin ainda sentia um doloroso pesar. Passeou a vista pelo salão; estava mais luminoso e atraente que antes: Versalhes suavizado por um toque acolhedor inglês. Isso era obra de Giles provavelmente, que gostara de ostentação. Ou talvez a redecoração fosse obra da mulher que foi sua esposa durante um curto período. Ele não a conheceu, nem sequer recordava seu nome. Pensou na possibilidade de tomar assento, mas estava impossível relaxar quando quase ouvia os ecos das brigas com seu pai ricocheteando nas paredes revestidas de seda. Preferiu passear pela sala, flexionando a mão esquerda que ainda lhe doía. Não curou bem depois daquele incidente em que um desagradável nobre lhe rompeu conscienciosamente os ossos, um a um; a má sorte para o nobre foi que ele era canhoto. Os retratos de erguidos e sérios Andreville que adornavam uma das paredes, seguiam com seus olhares cheios de recriminações o seu indigno descendente. Teriam respeitado os objetivos para os quais trabalhou, mas certamente não teriam aprovado seus métodos. O lugar de honra em cima do suporte da chaminé era ocupado por um retrato dos irmãos Andreville, pintado dois anos antes que ele partisse do Wolverhampton para sempre. Deteve-se para olhar o quadro. Um desconhecido não teria sabido que esses dois jovens eram irmãos sem ler a placa. Inclusive seus olhos eram de diferentes tons de azul. Giles era alto, fornido e seus abundantes cabelos eram castanhos; aos vinte e um anos já tinha o ar sério de um homem que leva sobre seus ombros enormes responsabilidades. Ele, pelo contrário, não passava de uma estatura corrente, era de constituição magra, e cabelos muito loiros; o pintor fez um bom retrato ao captar o brilho travesso em seus olhos de cor azul profunda. Sabia que seu aspecto havia mudado muito pouco, embora já tivesse trinta e dois anos, não dezesseis. Era irônico que conservasse essa expressão infantil quando se sentia muito mais velho que sua idade por ter visto e feito coisas que estavam melhor se fossem esquecidas. Dirigiu-se à janela a olhar os ondulantes e aveludados campos verdes, imaculados inclusive em fins do outono. Estavam começando a cair os primeiros flocos de neve. Que fazia ele ali? Wolverhampton não era o lar do filho mais novo e patife dos Andreville. Mas Lorde Robert Andreville não tinha nenhum outro lar. Ouviu abrir a porta e se voltou a olhar. O marquês de Wolverton estava ali, esquadrinhando a sala com seus olhos azul ardósia como se duvidasse do anúncio do lacaio. Ao ver seu irmão, Robin reprimiu um estremecimento, porque o formoso rosto severo 3
do Giles lhe recordava muito o seu defunto e não lamentado pai. A semelhança sempre esteve ali, e os anos de autoridade a reforçaram. Os receosos olhos azul profundos e os controlados olhos azul ardósia se olharam durante um bom momento. - O filho pródigo voltou, disse Robin com seu tom mais festivo. A cara do marquês se iluminou com um sorriso, e avançou com a mão estendida. - Faz meses que acabaram as guerras, Robin. Que demônios te fez demorar tanto? Robin estreitou a mão de seu irmão entre as suas, quase enjoado de alívio. - As batalhas terminaram em Waterloo, mas minha classe especial de tortuosidade foi útil durante as negociações do tratado. - Não me cabe dúvida, disse Giles com ironia. Mas o que vai fazer agora que estalou a paz? - Que me pendurem se sei, respondeu Robin encolhendo os ombros. Por isso vim a sua porta assim, como por surpresa. - É sua porta também. Estava desejando que viesse. Depois de tantos anos de enganos, Robin sentiu a urgente necessidade de ser sincero. - Não sabia se seria bem recebido - disse em tom abatido. Giles arqueou as sobrancelhas. - E por que não seria? - Esqueceu a acalorada discussão que tivemos na última vez que nos vimos? Giles desviou o olhar. - Não a esqueci... nem deixei que lamentá-la. Não deveria ter dito o que disse, mas estava preocupado. Parecia estar a ponto de afundar; temia que se voltasse para o Continente cometesse um engano fatal. Que perspicaz era Giles; esse fora um período difícil. Olhou a mão esquerda lesada e pensou em Maggie. - Quase teve razão. - Alegra-me não tê-la tido. Giles lhe pôs a mão no ombro e a deixou ali um momento. Foi uma viagem comprida. Quer descansar e se refrescar um pouco antes do jantar? Robin assentiu. Tentou falar em tom despreocupado: - É agradável estar de volta. Falaram durante o jantar e até bem entrada a noite. Fora ia se acumulando a neve silenciosa. Enquanto baixava e baixava o nível de conhaque no decantador, o marquês observava ao seu irmão. Os sinais de esgotamento que o preocuparam há três anos se intensificaram até tal ponto que suspeitou que Robin estivesse ao ponto de um colapso mental e físico. Desejou que houvesse algo que pudesse fazer ou dizer, mas percebeu que nem sequer sabia que perguntas fazer. No seguinte silêncio na conversação, decidiu-se por dizer: - Sei que isto é prematuro, mas tem algum plano para o futuro? - Já quer se liberar de mim? - disse Robin com um sorriso que não chegou aos olhos. - Não, absolutamente, mas creio que depois de todas suas aventuras vai achar York bastante aborrecida. O irmão mais novo apoiou sua dourada cabeça em uma orelha da poltrona. À luz 4
piscante dos candelabros, via-se frágil, não de todo deste mundo. - Achei terrivelmente exaustivas as aventuras; e isso sem dizer como eram perigosas e desagradáveis. - Lamenta o que tem feito? - Não, era necessário fazê-lo. Tamborilou com os dedos sobre um desenho irregular do braço da poltrona. Mas não quero passar a segunda metade de minha vida como passei à primeira. - Está em posição de fazer tudo que desejar, se dedicar a ser estudioso, esportista, político, homem da cidade. É mais liberdade que jamais terá a maioria das pessoas. - Sim, suspirou Robin, fechando os olhos. O problema não é a liberdade e sim o desejo. Depois de um incômodo silêncio, Giles lhe disse: - Dado que estava ocupado no Continente e as comunicações eram arriscadas, não lhe notifiquei isso, mas nosso pai te deixou Ruxton. - O que? - exclamou Robin abrindo bruscamente os olhos. Pensava que teria sorte se me deixasse um xelim para comprar velas. Ruxton é a melhor propriedade da família depois de Wolverhampton. Porque demônios me deixou isso? - Admirava-te porque nunca conseguiu te obrigar a fazer nada que não queria fazer. - E isso era admiração? - perguntou Robin com a voz entrecortada. Que maneira mais condenadamente estranha de demonstrá-la. Não podíamos estar dez minutos no mesmo quarto sem brigar, e não sempre era por minha culpa. - Entretanto, era de você de quem alardeava com seus amigos - disse Giles, com um meio sorriso irônico. Estava acostumado a dizer que por mim corria pouco sangue, e que era uma lástima que seu herdeiro fosse um tipo tão aborrecido. Robin franziu o cenho. - Nunca entenderei como podia ter tanta paciência com o velho casca grossa. Giles encolheu de ombros. - Tinha paciência porque a única outra opção teria sido partir de Wolverhampton, e isso eu não o teria feito jamais, fosse qual fosse à provocação. Robin soltou uma maldição em voz baixa, levantou-se e foi até a lareira para remover as brasas sem muito afã. Depois de sair de Oxford, Giles assumiu a responsabilidade de administrar as imensas propriedades Andreville. Sempre fora o filho de confiança, que realizava as tarefas difíceis com pouco reconhecimento ou recompensa. - Típico de meu pai te insultar quando lhe fazia a vida muito mais fácil. - Não era um insulto - respondeu Giles tranquilamente. - É verdade que sou uma pessoa aborrecida. Acho muito mais interessantes os cultivos e as colheitas que a caça, o campo mais gratificante que Londres, os livros mais entretidos que a fofoca. Nosso pai deve ter encontrado certa satisfação em saber que seu herdeiro era uma pessoa de confiança, mas isso não significava que eu lhe caísse particularmente bem. Robin lhe observou a cara, pensando se de verdade seu irmão era indiferente a esses dolorosos conhecimentos. Mas não podia perguntar-lhe, a amizade entre eles tinha limites muito claramente definidos. Conformou-se em dizer: - As pessoas são interessantes pelo que são, não pelo que fazem. Você nunca foi 5
aborrecido. Com expressão nada convencida, Giles trocou de tema: - Imagino que quererá visitar Ruxton. Ocupei-me da propriedade e tudo vai bem. - Obrigado. Robin observou as faíscas que voaram até o sino da chaminé ao romper um tronco. - Entre Ruxton e a herança de tio Rawson, tenho mais dinheiro de que posso imaginar como empregar. - Se case. As esposas são excelentes para gastar o excesso de ganhos. Pela primeira vez, Robin notou amargura no tom do Giles. Depois de um breve silêncio, este continuou com voz mais normal. - Além disso, Wolverhampton necessita de um herdeiro. - Ah não - exclamou Robin, com uma deixa de diversão. Isso é teu trabalho, não meu. - Provei o matrimônio uma vez e fracassei. Agora toca a ti. Talvez você tenha mais êxito. O cortante comentário fez pensar ao Robin como teria sido a defunta marquesa, mas a expressão de seu irmão não admitia perguntas. - Sinto muito, mas só conheci uma mulher com a qual pensava que poderia conviver e ela teve a sensatez de não me aceitar. - Refere-te à nova duquesa do Candover? Robin olhou fixamente ao seu irmão. - Pelo visto não sou o único da família que tem dotes para a espionagem. - Não foi espionagem. Candover é um velho amigo meu e quando retornou a Inglaterra sabia que me interessaria saber de você. Não foi difícil deduzir que havia algo mais na história que o que ele me disse. Conheci a nova duquesa, acrescentou em tom mais quente. É uma mulher extraordinária. - Certamente é, concordou Robin em tom algo cortante. Suspirou e passou a mão pelo cabelo. Embora nunca fossem amigos tão íntimos como ele teria querido, sabia que podia confiar totalmente na discrição do Giles. - Se conheceu Maggie, seguro que entenderá por que me resulta tão pouco atraente a ideia de me casar com uma inglesa insípida. - Entendo. Não pode haver outra como ela. Esboçou um sorriso. - Se nenhum dos dois está disposto a cumprir seu dever para com a família, sempre resta o primo Gerald. Já tem toda uma série de pequenos Andreville. Robin recordou de Gerald e supôs que qualquer um de seus filhos seria aborrecido, mas digno. Se Maggie tivesse filhos, certamente não seriam aborrecidos. Sentiu uma dor familiar e se obrigou a ignorá-la antes que piorasse. O passado era um lugar condenadamente insalubre para viver. - Pensa em ficar muito tempo no Wolverhampton? - perguntou-lhe Giles, interrompendo seus pensamentos. - Bom - respondeu com cautela, temendo que dizer as palavras em voz alta convidasse a uma rejeição. - Pensei em ficar até passar o Natal e talvez mais. Se não te importar. - Pode passar o resto de sua vida aqui se quiser - disse Giles, docemente. Lorde Robert Andreville, o filho mais novo, o rebelde, o espião consumado, a ovelha negra e o sobrevivente, fechou os olhos. Não queria que se notasse o muito que o 6
emocionava as boas-vindas de seu irmão. Depois voltou a instalar-se na poltrona; a paz de Wolverhampton já começava a lhe dissolver tensões tão antigas que pensou que formavam parte dele. Giles tinha razão ao dizer que era improvável que se passasse o resto de seus dias na rústica vida de Yorkshire. Só Deus sabia o que ia fazer. Mas, no momento, era agradável estar em casa.
CAPÍTULO 1
Os campos do Durham diferiam muitíssimo dos bosques e granjas dos Estados Unidos, mas também tinham seu próprio tipo de beleza. Desde a morte de seu pai há dois meses, Máxima Collins saía a caminhar a cada dia pelas colinas, inspirando o ar, o sol e a chuva com inconsciente gratidão. Sentiria falta desses campos áridos mais que qualquer das outras coisas que encontrou neste lado do Atlântico. Depois de duas horas vagando, Maxie se sentou em uma ladeira com as pernas cruzadas, mordiscando distraidamente um caule tenro de erva silvestre. Ao que parece, o brilhante sol da primavera lhe dissipava a neblina de aflição em que esteve mergulhado desde a morte de seu pai. Via com muita clareza que era hora de retornar aos Estados Unidos. Seu tio, Lorde Collingwood, era amável de um modo distante, mas o resto da família a olhava com sentimentos que em seu melhor aspecto eram duvidosos. Ela entendia essa atitude, posto que todos a consideravam uma raridade que não deveria jamais ter colocado os pés em uma casa senhorial do campo inglês. Suspeitava que o mundo elegante da cidade fosse ainda menos acolhedor. Mas não lhe importava, não tinha o menor desejo de entrar nesse mundo. Em seu país havia mais liberdade para ser diferente. O principal impedimento para retornar ao seu país era que tinha menos de cinco libras em seu poder. Entretanto, estava segura de que seu tio Collingwood lhe emprestaria o dinheiro para comprar a passagem além de um pequeno extra para manter-se até que se estabelecesse. Provavelmente sua senhoria resistiria a princípio, preocupado se por acaso cumpria seu dever para com a única filha de seu defunto irmão. As garotas inglesas decentes não viviam por sua conta, sozinhas; o correto era viver da caridade de alguém. Em todo caso, ela não era nem decente e nem inglesa. Isso é o que lhe deram a entender claramente de centenas de modos sutis e não tão sutis nos quatro meses transcorridos da chegada de seu pai e ela a Durham. E tampouco queria converterse em uma das mulheres que dependiam de seu tio. Até no caso de que sua senhoria resistisse a deixá-la partir, não poderia impedi-la. Acabava de completar os vinte e cinco anos e estava há anos cuidando de si mesma e de seu pai. Se fosse necessário, procuraria trabalho e ganharia o dinheiro para comprar sua 7
passagem. Cristalizada sua decisão, ficou de pé com uma agilidade imprópria de uma senhorita e limpou as ervas da saia de seu vestido negro de luto. O vestido negro era uma concessão à sensibilidade de seus parentes ingleses. Ela teria preferido não usar nenhum distintivo externo de seu duelo. Bom, não seria por muito tempo. Meia hora de caminhada enérgica a levou de volta à magnífica casa chamada Chanleigh Court. Por desgraça lhe ocorreu passar pelos jardins e se encontrou com suas duas primas languidamente dedicadas à prática do tiro ao arco. Portia, a mais velha, atirou e conseguiu errar totalmente o alvo por uma distância não menor que dez passos. Maxie estava a ponto de continuar seu caminho quando Portia levantou a cabeça e a viu. - Máxima, que sorte que tenha passado por aqui, disse-lhe em tom malévolo. Talvez você possa nos ajudar a melhorar nossa destreza. Ou é o tiro ao alvo uma das diversões elegantes das quais se viu privada? Portia tinha dezoito anos, era bonita e petulante. Já desde o começo não se mostrou amistosa com sua prima, mas depois de ter sido necessário adiar sua apresentação em sociedade por causa da morte do seu tio Maximus, sua atitude se converteu em francamente hostil, como se ela fosse pessoalmente responsável por sua decepção. Maxie titubeou, mas se aproximou a contra gosto. - Pratiquei um pouco o tiro ao alvo. Como ocorre com todas as coisas, é a prática que aperfeiçoa a destreza. - Então deveria praticar seu penteado - disse Portia com um olhar intencional. Maxie progredira muitíssimo em não fazer caso das mofas. - Tem razão - respondeu amavelmente - minha aparência é desastrosa. Minha intenção era entrar na casa sem ser vista. Inclusive nas melhores das circunstâncias, seus cabelos eram muito compridos, lisos e negros para estar na moda, e nesse momento os tinha totalmente desordenados pelo vento. Portia e Rosalind, em troca, estavam tão bem polidas como quando recebiam visitas no salão de sua mãe. Também eram muito altas comparadas com sua prima norte-americana. Quase todos eram mais altos. Rosalind, de dezesseis anos, que era mais amistosa, parecia incômoda pela grosseria de Portia. - Quer usar meu arco, Máxima? - ofereceu, em uma tímida tentativa de suavizar a atmosfera. Maxie aceitou o arco e o esticou destramente várias vezes para lhe agarrar o tino. Embora fizesse tempo que não usava um, seus músculos recordaram a habilidade. - Deveria ter recordado que o arco era uma habilidade dos selvagens muito antes que ficasse na moda - murmurou Portia. Por algum motivo, aquele comentário penetrou sua serenidade como nenhuma outra coisa. Girou a cabeça e olhou a sua prima com tal expressão em seus olhos castanhos que esta retrocedeu uns passos involuntariamente. - Tem razão, respondeu em tom perigosamente suave, é uma habilidade para selvagens. Se afaste para o lado. Enquanto suas primas se afastavam a toda pressa, agarrou um punhado de flechas e 8
retrocedeu até aumentar em quatro vezes a distância do alvo. Colocou as flechas, menos uma, com as pontas cravadas na terra, a sua direita, e encaixou a outra no arco. Esticando o arco, concentrou-se não só no ato de apontar, mas também em sentir como era ser uma flecha em busca de um alvo. Essa fora a primeira e a mais importante de todas as lições de tiro ao alvo que aprendeu. Então soltou a flecha; imediatamente a seguinte, esta se enterrou no centro exato do alvo. Enquanto a flecha ainda se agitava no alvo, atirou à segunda. Em menos de um minuto havia cinco flechas cravadas no centro do alvo, tão juntas que se tocavam. Colocando a última flecha, voltou o arco para suas primas, que a olharam horrorizadas quando a deixou voar. A flecha cortou limpamente um ramo do arbusto sob o qual estavam as irmãs. Portia soltou um chiado quando o ramo lhe caiu no cabelo, lhe deixando o penteado menos arrumado. Maxie caminhou energicamente até suas primas e devolveu o arco a Rosalind. - Posto que sou uma selvagem - disse a Portia, - como tanto você gosta de assinalar, tenho talento para o alvoroço e a violência. Faria bem em recordar isso. Dito isso se girou sobre seus pés e continuou seu caminho para casa, com a cabeça erguida e a expressão decidida. Fora tolo se enfurecer com Portia, mas não podia negar que encontrou satisfação nisso. Uma vez dentro de casa, deteve-se o final do corredor que passava pelo estúdio de seu tio, pensando se lhe fazia a visita nesse momento ou primeiro ficaria apresentável. Acabou o tempo para decidir quando ao final do corredor apareceu um lacaio acompanhando de um homem corpulento de rosto virado para a porta do estúdio do senhor. Posto que nenhum dos dois a viu, afastou-se silenciosamente para seu dormitório. Ter esse quarto indecentemente cômodo todo para ela era o único bom aspecto da vida em Chanleigh. Também sentiria falta dos deliciosos banhos quentes e da biblioteca que continha mais de mil volumes, a maioria deles tristemente sem ler. Mas sentiria falta de muito pouco mais, e muito menos da sua prima Portia. Uma hora depois, Maxie estava sentada na poltrona da janela, com o vestido escovado e os cabelos penteados em um decoroso coque na nuca. Menos decorosos, seus joelhos estavam levantados, rodeados por seus braços, enquanto contemplava a paisagem. Chamou-lhe a atenção uma figura que saía pela porta lateral. Era o homem rude que foi visitar seu tio Cletus. Que assuntos o trariam para Chanleigh? Não tinha aspecto de ser um sócio de seu tio. Desprezou o pensamento e foi se olhar no espelho. Estava muito melhor que quando voltou do passeio, embora sua aparência seguisse sendo não-inglesa, sem remédio. Mas sua expressão recuperou sua determinação depois de dois meses de andar perdida. Com a esperança de que seu tio lhe concedesse o empréstimo que ia solicitar-lhe, endireitou os ombros e desceu a escada. Quando levantou a cabeça para golpear a porta do estudo, ouviu a voz de sua tia Althea dentro. Deteve-se, e depois de um momento de reflexão decidiu que seria uma vantagem fazer seu pedido diante de lady Collingwood. Embora sua senhoria sempre tivesse sido cortês com a sobrinha de seu marido, Maxie nunca viu nela nem um indício de verdadeiro carinho ou acolhida. Certamente apoiaria 9
seu pedido com o fim de livrar-se de uma próxima indesejável. Tinha a mão posta na porta para golpear quando a voz aguda de lady Collingwood disse: - E esse homem horrendo valeu o que lhe pagou? - Sim. Pode ser que ao Simmons falte refinamento, mas levou muito bem o desagradável assunto de Max. - Depois de várias palavras ininteligíveis, seu tio acabou: -... certamente não posso permitir que a forma em que morreu meu irmão seja de conhecimento público. Maxie ficou paralisada. Seu pai tivera dores de peito no passado, de modo que não a surpreendeu que tivesse morrido repentinamente em Londres. Trouxeram seu corpo a Durham, onde o enterraram no panteão familiar com toda a devida solenidade. Não houve nenhum motivo para acreditar que sua morte não tivesse sido natural, até esse momento. Com o coração desbocado, olhou a seu redor para assegurar-se de que não a observava ninguém, e apoiou o ouvido na porta de carvalho. - Típico de seu irmão causar tantos problemas em sua morte como os causou em vida. Lástima que não ficasse nos Estados Unidos, resmungou sua tia. O assunto da herança está resultando ser uma enorme moléstia e o que faremos se Máxima descobrir como morreu realmente seu pai? - O assunto da herança está quase resolvido e ela não saberá a verdade sobre a morte de seu pai. Já me encarreguei disso. - Vale mais que tenha razão, porque se se inteirar vai se armar uma confusão, disse sua senhoria em tom mordaz: - A pagãzinha não é tola. - Seria tão grosseira com a garota se nossas filhas fossem tão formosas como ela? perguntou-lhe seu marido em tom afiado. - O que pergunta! - exclamou ela depois de um horrorizado silêncio. - Como se quisesse que minhas filhas se parecessem com ela. Minhas filhas são damas inglesas de boa criação, não selvagens de pele morena. - De boa criação poderão ser, mas ninguém se fixará nelas se sua prima estiver no mesmo quarto. - Claro que os homens se fixam nela, como os garanhões se fixam em uma égua no cio - respondeu lady Collingwood com maldade. - Nenhuma dama deseja atrair esse tipo de atenção. Jamais entenderei como seu irmão pôde casar-se com uma pele-vermelha, quer dizer, se é que se casou com a criatura. E que audácia em trazer aqui a sua filha mestiça. - Basta, Althea - bramou seu marido. - Pode ser que Max tenha sido um esbanjador e um perdido, mas era um Collins, e Máxima é sua filha. Não vi nenhuma deficiência nem em suas maneiras nem em seu entendimento. A verdade é que se comportou muito mais como uma dama que você e Portia em sua forma de tratá-la. - Não faz uma hora que ameaçou a Portia com um arco e uma flecha. Vivo aterrada de que fique louca e nos assassine enquanto dormimos. Se não se livrar dela, fá-lo-ei eu. - Simplesmente tenha paciência. Podemos apresentá-la em Londres na próxima primavera, quando acabar o luto por seu pai. Então Rosalind terá idade também, e poderemos apresentar às três juntas. Com sua beleza, Máxima não terá nenhum problema para encontrar um marido conveniente. 10
A repugnância que sentiu Maxie diante da ideia de uma temporada em Londres foi profunda, mas a manifestada reação da sua tia a superou em muito. - De maneira nenhuma pode esperar que a apresente junto com minhas filhas! exclamou. - É impensável. - Posso esperar e espero - disse ele. Não tem nada de impensável apresentar às primas juntas. - Não podemos tê-la aqui todo um ano - continuou sua esposa com uma voz que teria gretado um cristal. - Marcus voltará logo de sua grande viagem, e sabe quão sensível é. Está preparado para o risco de que seu filho se apaixone por sua prima? Aceitaria por nora a selvagenzinha? Passado um bom momento de silêncio, seu marido disse com voz trêmula: - Não é o matrimônio que desejaria para ele. Lady Collingwood respondeu, mas sua voz soou imprecisa, como se tivesse se afastado da porta. Não importava, porque Maxie já ouvira mais que suficiente. Enojada tomou o caminho para seu quarto, obrigando-se a caminhar com lentidão. Depois de fechar a porta se deixou cair na cama e se acomodou formando uma bola trêmula, refletindo para encontrar lógica ao que ouvira. Em primeiro lugar, estava clara a alusão a que a morte de seu pai não fora por causas naturais. Teria morrido em um acidente ou pela mãos de ladrões? Mas nesse caso não haveria nenhum motivo para que seu tio lhe ocultasse a verdade. Teria morrido na cama de uma prostituta? Não só era improvável, mas também tampouco era algo tão escandaloso que exigisse tais esforços para silenciá-lo. Por muito que o tentasse, a melhor interpretação que conseguia encontrar era que alguém assassinou o seu pai. Mas para que ia alguém querer matar o encantador e cabeçade-vento Max? Os motivos de assassinato mais frequentes eram o dinheiro e a paixão, e posto que Max Collins escassamente tivesse um centavo, ninguém o teria assassinado por dinheiro. Um ciúme mortal eram ainda menos provável. Seu pai jamais fora mulherengo e esteve tanto tempo longe da Inglaterra que era improvável que ainda ficassem rescaldos de antigas inimizades. Lady Collins falou de uma herança. Maximus fora deserdado por seu pai, mas talvez fosse herdeiro de algum parente longínquo e o assassinaram para impedir que reclamasse a herança. Se fosse assim, estaria em perigo ela por ser a herdeira de seu pai? Maxie negou com a cabeça, incrédula. Essas coisas só cabiam nas novelas melodramáticas, não na vida real. Talvez Max ganhasse dinheiro por algum projeto desatinado e o mataram por isso? A noite anterior a sua partida por volta de Londres lhe disse alegremente que seus problemas financeiros acabariam muito em breve; sua queridíssima filha seria uma dama e teria a vida e o fabuloso marido que merecia. Não era a primeira vez que o dizia, de modo que ela se limitou a rir, lhe dizendo que se sentia muito contente tal como estava. Era difícil imaginar alguma forma legal de que Max pudesse ter ganhado uma grande soma de dinheiro. Por desgraça, não era inconcebível que tivesse provado algum método ilegal. Amara muitíssimo o seu pai, mas conhecia muito bem suas debilidades. Talvez 11
tivesse alguma informação escandalosa sobre um antigo companheiro de colégio e ameaçou revelá-la; então sua vítima teria decidido que era mais fácil eliminar ao chantagista que pagar. Não teria sido um grande risco posto que ninguém sentisse falta de um réprobo indigente. À exceção, claro, de sua filha. Se seu pai havia tentando a chantagem, teria estado dirigido ao seu irmão? Não seria difícil descobrir segredos familiares. Maxie apertou tão forte os punhos que lhe cravaram as unhas nas palmas. Devia considerar a possibilidade de que o próprio Lorde Collingwood fizesse assassinar o seu irmão. Talvez o homem de aspecto vilão de Londres era o assassino contratado. Seria capaz seu tio de um crime tão monstruoso? Desejou poder tirar a ideia da cabeça, mas não pôde. Embora lhe parecesse que seu tio queria ao Max, o afeto fraternal poderia ter desaparecido diante de uma tentativa de chantagem. Uma coisa que compreendeu nos últimos meses era que os ingleses sentem paixão pelas aparências. A ameaça de revelar um escândalo particularmente desagradável poderia ter sido a causa do assassinato de Max. Seu tio teria tomado com pesar essa medida extrema, mas não lhe cabia dúvida de que faria o que considerasse necessário. Tudo isso era horrorosamente rebuscado, mas claro, assim era o assassinato. Fechou os olhos, pensando se não estaria louca. Segundo seu pai, sempre tivera uma imaginação muito viva, fantasiosa, e essa imaginação estava transbordando. Talvez houvesse uma explicação singela, não criminal, para o que ouvira. Se fosse assim, não conseguia adivinhar qual era. O lógico seria perguntar a seu tio o que quis dizer nessa maldita conversa, mas não parecia prudente. Era improvável que revelasse o que se esforçou tanto para ocultar. Pior ainda, se fosse culpado de um delito, poderia ser uma ameaça para ela. Não acreditava que queria fazer mal a ela, mas se tivesse ordenado a morte de seu próprio irmão, dificilmente teria escrúpulos em fazer o mesmo a sua sobrinha. Mordeu o lábio, com a mente repleta de pena e confusão. Só tinha duas coisas seguras: seu pai não morreu de modo natural e ela não era pessoa grata na casa. Já sabia que não caía bem a lady Collingwood, mas ainda assim, consternou-a a profundidade da hostilidade revelada nessa conversação. «Pagã... selvagem de pele morena... mestiça». Devia partir de Chanleigh essa mesma noite, depois de que todos se retirassem aos seus quartos. Mas não voltaria mansamente para Boston; não voltaria sem antes ir a Londres e descobrir a verdade sobre a morte de seu pai. Levantou-se; a necessidade de fazer planos acalmou suas caóticas emoções. Tinha o endereço da estalagem onde se alojou Max e também os nomes de vários amigos aos quais pensava visitar. O suficiente para iniciar uma investigação. O único problema era como chegar a Londres. Embora tivesse umas poucas libras, não eram suficientes para uma passagem num carro postal, de modo que teria que caminhar. A distância era facilmente de uns quatrocentos quilômetros, mas essa não era uma dificuldade terrível para ela, que havia passado a metade de sua vida percorrendo de ida e volta os caminhos de Nova Inglaterra. 12
Entretanto, desta vez não contaria com o amparo de seu pai, e viajar sozinha seria estúpido para uma mulher. Jamais se disfarçou deliberadamente de homem, mas os perigosos caminhos dos Estados Unidos faziam aconselhável vestir-se de homem na maior parte do tempo. Felizmente trouxe seu traje masculino. Com os peitos bem rodeados com uma bandagem de tecido, os cabelos colocados sob um chapéu, camisa, colete e jaqueta folgados, pareceria um moço desclassificado. E se alguém desejasse investigar mais de perto, tinha sua faca. Empacotar foi tarefa fácil, posto que acumulasse muito pouco em seu quarto século de vida. Além de sua roupa masculina, necessitaria de uma roupa feminina para Londres, e uma capa que lhe servisse também de manta. Sua preciosa bolsa com ervas norte-americanas lhe seria um útil amparo para uma viagem assim. O crucifixo de prata de sua mãe que pendurou ao pescoço, e o relógio de seu pai, seus singelos brincos de ouro e sua gaita estariam a salvo no bolso interior da jaqueta. Os utensílios para cozinhar e comer poderia comprar de um mercador. Tudo coube facilmente em sua pequena e maltratada mochila. Depois só era questão de esperar a que todos se fossem à cama. Não se sentiu capaz de estar na presença de seus tios no jantar, de modo que enviou uma mensagem dizendo que tinha dor de cabeça e que, por favor, levassem a comida ao seu quarto. O mais difícil resultou ser escrever uma nota. Seria muito grosseiro desaparecer sem dizer uma palavra depois de ter sido hóspede na casa durante meses. Era curioso como continuassem imperando as boas maneiras até tendo profundas suspeitas de seu anfitrião e sua anfitriã. Mais importante ainda, não queria que descobrissem que ouvira a inquietante e enigmática conversa. Mordiscou a pluma durante um momento até que lhe chegou à inspiração. Só o que tinha que fazer era dizer que decidiu ir a Londres visitar sua outra tia. Desdêmona Ross era a irmã muitíssimo mais nova do Cletus e Maximus, viúva sabichona de opiniões ferozes e descomedidas. Dado que lady Collingwood a odiava cordialmente, dificilmente visitava a sede familiar. Maxie não a conhecia em pessoa, mas se escreveram. De fato, justamente no dia anterior lhe chegou uma carta dela, por isso podia dizer que Desdêmona a convidara a Londres. Satisfeita, se inclinou sobre o papel de escrever. Era uma grosseria e uma excentricidade partir de noite e sem avisar, mas assim ninguém a seguiria, que era só o que lhe importava. Duvidava que alguém se incomodasse em pensar onde conseguiu passagem em uma carruagem. Em realidade, sim visitaria sua tia, cujas cartas sempre eram amáveis e inteligentes. Seria um prazer descobrir a um familiar de seu pai por quem sentia simpatia. Sair de Chanleigh Court foi fácil. Maxie adorou voltar a usar sua roupa de moço depois de tantos meses com saias; na tribo de sua mãe as mulheres usavam calças rodeadas, e ela se sentia tão cômoda com elas como com a roupa dos brancos. Deixou a nota de despedida em seu quarto. Com sorte, não a encontrariam até bem avançado o dia seguinte. Fez uma parada na cozinha, para abastecer-se de queijo, pão, chá e uma parte de presunto, mantimentos que lhe evitariam gastar seus limitados recursos pelo menos até o 13
Yorkshire. Depois de duvidar por um momento, também agarrou um velho mapa de caminhos a Londres do estúdio de seu tio. Saiu por uma porta lateral. Pareceu-lhe um bom presságio que o ceu se limpasse depois de um entardecer de chuva intermitente. O ar noturno estava úmido e meio frio, mas o inspirou para seus pulmões com entusiasmo, já se sentindo mais feliz e livre. Com ágeis passos percorreu rapidamente o caminho de entrada, ao final do qual se deteve a olhar pela última vez a mansão. Maximus se havia sentido muito feliz de voltar para a casa de sua família, e onde quer que estivesse seu espírito nesses momentos, devia sentir sentido prazer de que seus ossos repousassem ali. Mas embora Chanleigh tivesse sido o lar de seu pai, não era o dela, e não considerava provável que voltasse ali alguma vez. Só fora uma onda discordante na superfície do profundo lago e como uma onda, sua lembrança se desvaneceria muito em breve. Percorreu entre oito e nove quilômetros antes que aparecesse a lua. Divisou a silhueta de uma pequena estrutura recortada contra a luz das estrelas; sem dúvida era um abrigo ou pequeno celeiro. Internou-se por um campo de erva molhada até chegar a ele. Em seu interior estavam guardados os restos do feno da colheita do ano anterior, que formavam um fragrante ninho. Deitou-se ali, fazendo a mochila de travesseiro e cobrindo-se com a capa. Não era a primeira noite que passava em um celeiro e não seria a última. Mas sim era a primeira vez que estava totalmente sozinha. No passado, sempre estava seu pai deitado ao seu lado à distância de um braço. Pensar nisso lhe produziu uma dor no mais profundo de seu ser, uma dor que era de uma só vez aflição pela perda de seu pai e pena por sua solidão. A ponto de estalar em soluços, apertou entre seus dedos o crucifixo de prata de sua mãe. Era uma mohawk, uma norte-americana e uma Collins, e não sentiria pena de si mesmo. Mas quando estava conciliando o sonho, seu último pensamento consciente foi a triste pergunta de se a morte de seu pai significava que passaria o resto de sua vida sozinha.
CAPÍTULO 2
Os irmãos estavam tomando o café da manhã em silêncio, um silêncio que só era interrompido de tempos em tempos pelo rangido do papel ao passar uma página do periódico. Mas o Times era de vários dias atrás e as notícias não eram nada interessantes, de modo que o marquês do Wolverton começou a observar o seu irmão por cima do periódico. Os cinco anos que os separavam em idade foram uma diferença importante quando eram meninos, e Giles sempre se havia sentido um irmão muito mais velho. Albergou a esperança de que durante o inverno recém passado tivessem por fim a oportunidade de fazerem-se amigos, como adultos e iguais. Mas isso não ocorreu. Durante sua primeira noite em Wolverhampton, Robin se 14
revelou um pouco, mas depois se fechou em si mesmo. Era o hóspede perfeito, sempre bem disposto a conversar, a acompanhar em silêncio ou a participar das visitas e reuniões sociais pela vizinhança quando era necessário; mas seus pensamentos e sentimentos estavam ocultos detrás da formidável barreira de seu bom humor e seu encanto. Em realidade, Giles não lhe teria dado nenhuma importância se não soubesse que algo ia muito, muito mal. A característica mais clara de Robin, seu entusiasmo pela vida, desvanecia-se. Com muita frequência o encontrava sentado em silêncio, contemplando o vazio. Seria por culpa da mulher que agora era a duquesa do Candover ou haveria motivos mais profundos e menos fáceis de definir? Fosse qual fosse a causa, Giles pensava que algo se havia rompido em seu irmão, talvez sem remédio. Isso o preocupava e lhe doía, tanto pelo bem de si mesmo como pelo de Robin, mas não tinha ideia o que podia fazer para ajudá-lo. Deixou de lado o Times com um suspiro. - Tem algum plano para o dia? Robin titubeou. - Talvez saia a caminhar pelo bosque do oeste. Ainda não visitei essa parte da propriedade. - Custa-me acreditar que esteja levando uma vida tão insípida - disse Giles, sabendo que seu tom era exageradamente animado. - Vivo pensando que de repente vai desaparecer. - Se ocorrer isso - sorriu Robin - não se preocupe. Só quer dizer que encontrei algo interessante ou divertido, por exemplo, um grupo de ciganos e não pude resistir a tentação de partir com eles. Giles pensou que adoraria que Robin encontrasse algo o suficientemente interessante que o induzisse a fazer coisas imprevisíveis. - Tenho uma sessão no tribunal que me vai ocupar todo o dia - disse levantando-se. Veremo-nos no jantar a não ser que encontre uns ciganos. Giles partiu e Robin se encaminhou à cozinha, para pedir comida para sua expedição. A cozinheira lhe deu provisões para quatro homens, que ele certamente não poderia comer; mas ela estava decidida a fazê-lo engordar. Lástima que seu apetite não tivesse melhorado. Depois saiu e se dirigiu ao bosque através das suaves colinas. A vegetação dessa zona era muito densa para cavalgar, era melhor percorrê-la a pé, e se sentia com ânimo de caminhar. Esperou que a paz e a familiaridade do Wolverhampton sarariam o que quer que o afligisse; e até certo ponto sim, sarou. Estava mais forte fisicamente e tinha menos pesadelos. Não havia nenhum lugar onde preferisse estar, e isso em si apontava ao que ia mal. Antes, seu problema habitual era decidir que atividade fascinante empreender a seguir. Estava submerso em uma melancolia cinza diferente a tudo o que experimentou em sua vida, um aborrecimento da alma mais que do corpo. Além de uma breve visita obrigatória a Ruxton, durante os seis meses passados não fez outra coisa que dormir, cavalgar, percorrer o campo e por em dia em suas leituras e correspondência. Sua atividade mais enérgica fora evitar os chamarizes das donzelas de linhagem da 15
localidade. Os dois Andreville solteiros foram de grande demanda nas reuniões sociais de inverno. Embora Giles tivesse o título e a maior fortuna, em geral se supunha que não voltaria a se casar, pelo que os ardis femininos estiveram dirigidos ao lorde Robert. Ao atrativo de sua beleza loira, seu passado misterioso e seus bens mais que adequados se somava a possibilidade de que herdasse o título. Soltou um suspiro e pôs sobre o ombro a bolsa com provisões. Não poria objeções a apaixonar-se apaixonadamente, mas lhe resultava impossível imaginar-se casado com uma dessas insípidas inocentes que conheceu nas casas senhoriais do Yorkshire. Não conheceu Maggie quando era uma jovenzinha, mas inclusive aos dezessete anos não teria sido tão insípida. Fazia calor e foi agradável chegar ao sombrio bosque. Usava uma roupa velha, de modo que não lhe preocupou que lhe enganchassem raminhos ou ervas enquanto explorava os serpenteantes atalhos feitos por cervos e outros animais selvagens. O sol já estava alto no firmamento quando chegou a um pequeno claro junto ao riacho que discorria pelo meio do bosque. Sorriu ao ver o círculo de cogumelos chamado anel de elfos. O jardineiro lhe havia dito que um anel desse tamanho devia ter séculos de Antiguidade. Quando era menino considerava mágico esse lugar; tombava-se sob a árvore, sonhava com o mundo que havia além do Wolverhampton e esperava que lhe aparecesse um elfo. Talvez voltasse a encontrar magia ali. Depositou a bolsa de provisões no chão e se estirou sobre a erva, à sombra, entre uma árvore e um arbusto. Com os braços cruzados sob a cabeça, ficou a contemplar ociosamente as taças das árvores. Mas era um engano esvaziar assim a mente, porque muito em breve começava a enroscá-la o fio negro do desespero. Decidido, tratou de rechaçá-la; à luz do dia era possível expulsar aos demônios, embora soubesse por experiência que voltariam de noite em forma de pesadelos. Cada pesadelo era pior que o anterior, e às vezes chegava a pensar que de repente cairia pelo lado da prudência; só era questão de tempo. Mas ainda não estava ali. Obrigou-se a pensar em seu futuro. Mesmo com a generosidade de Giles, não podia passar o resto de sua vida no Wolverhampton. Podia viajar; embora conhecesse a Europa como uma mãe conhece a cara de seu filho, nunca esteve no Oriente nem no Novo Mundo. Mas estava cansado de viajar. Giles lhe sugeriu o Parlamento; um dos bancos controlados pelos Andreville ia ficar vago dentro de pouco, e isso poderia lhe dar a oportunidade para expressar suas opiniões e intervir nos assuntos públicos. Outra possibilidade, mais conforme com seu temperamento era o jornalismo político. Os jornalistas eram um grupo ruidoso e descarado. Faria bons miolos ali, se recuperasse seu caráter revoltoso e sua irreverência. Ao que parece, esse claro do bosque perdeu sua magia, porque seus pensamentos giravam em círculos pelos mesmos caminhos vagos em que giraram durante meses, sem fazer saltar faíscas de entusiasmo. Posto que o sol esquentasse e as ervas cheiravam bem, era mais fácil ficar adormecido e esperar que os pesadelos aguardassem até a noite. Maxie achou agradabilíssimo o frescor do caminho do bosque depois do calor do sol de meio-dia. O granjeiro que a levou durante um trecho em sua carreta essa manhã fez bem em lhe recomendar esse caminho. Evitou os caminhos principais em favor de outros 16
mais tranquilos, onde um moço só atraíra pouca atenção. Esse caminho era tão pouco transitado que não viu casas nem pessoas há horas. O único problema era que no dia anterior lhe acabaram as provisões, e seu estômago estava se queixando. Pelo que lhe disse o granjeiro, não encontraria um lugar para aprovisionar-se até a última hora do dia. Nos Estados Unidos teria podido alimentar-se da terra, mas as rígidas leis inglesas sobre a caça e a propriedade a faziam receosa de fazer o mesmo ali. Embora se a fome a acossasse o suficiente, trocariam as coisas. Deteve-se a olhar para trás para ouvir ruído de cascos e rodas. Aproximava-se um veículo pesado pelo caminho, e preferia não encontrar-se com ninguém nesse lugar tão isolado. Apressou-se a subir por entre os arbustos baixos da colina que rodeava o caminho e se desviou por um atalho que se internava no bosque se afastando do caminho. Evitar as barreiras de pedágio para economizar dinheiro lhe deu muita prática em tomar atalhos. Nos três dias que estava de viagem não tivera a mais mínima dificuldade. Em realidade, além das duas vezes que a recolheram uns granjeiros taciturnos, não falara com ninguém. Passou a carruagem com seus tinidos e o ruído dos cascos do cavalo e se afastou. Estava ponto de retroceder o atalho para voltar para caminho quando ouviu um «huit, huit, huit». Deteve-se, sorrindo de orelha a orelha; descobrir novos bichinhos e plantas era um dos prazeres de viajar. Esses gorjeios pareciam ser de um dos famosos rouxinóis ingleses. No mês anterior acreditou ouvir cantar a um, mas suas primas não puderam confirmar-lhe já que os únicos pássaros que reconheciam estavam assados e servidos em molho. Avançou sigilosamente por entre as ervas e arbustos do bosque; sua busca foi recompensada por uma breve visão de umas asas castanhas entre os ramos de um matagal. Continuou avançando, com os olhos fixos na abóbada formada pelas taças das árvores e espessura. A distração teve suas consequências, pois de repente tropeçou com um obstáculo inesperado. Soltando uma maldição tentou recuperar o equilíbrio, mas o peso da mochila pôde com ela, e caiu com humilhante estupidez, de lado, golpeando o primeiro ombro. No instante seguinte se deu conta de que em lugar de cair sobre o chão frio e duro do bosque, estava estendida em todo o comprimento sobre um objeto mais quente e mais brando. Morno, brando e vestido! Quando se esforçava para recuperar o fôlego, percebeu que estava deitada de corpo inteiro em cima de um homem. Ao parecer, este estava dormindo a sesta e despertou sobressaltado, levantou bruscamente as mãos, por reflexo, apalpou-lhe o corpo e logo lhe agarrou firmemente os braços. Os dois estavam no chão, peito contra peito, com o olhar fixo um no outro. Pelas profundidades de uns olhos azuis intenso passou um brilho de surpreendido alarme, que foi substituído imediatamente por outro de diversão. Durante um momento estiveram assim, com os corpos apertados, desconhecidos em um abraço de amantes. A boca do homem se curvou em um sorriso. - Minhas desculpas por me interpor em seu caminho. - Perdão - respondeu ela, mal-humorada. Afastou-se, agradecendo que o chapéu ainda estivesse em sua cabeça lhe escurecendo parte da cara. Não ia olhando onde pisava. 17
Ficou de pé e se afastou uns passos, pronta para desaparecer no bosque; então, como a mulher do Ló, cometeu o engano de olhar para trás. Sua primeira impressão do homem fora fragmentada: olhos formosos, tez branca, cabelos loiros, boa figura, boca expressiva. Mas quando o olhou desde certa distância percebeu que era o homem mais bonito que viu em sua vida. Seus cabelos um pouco compridos brilhavam com todos os tons de louro imagináveis, desde o amarelo trigo até o dourado escuro, e a estrutura óssea de sua cara faria chorar de inveja aos anjos. Um anel de elfos no centro do espaço circular lhe inspirou a louca ideia de que acabava de tropeçar com o Oberón, o legendário rei dos elfos. Não, era muito jovem, e seguramente um elfo não usaria essa roupa tão vulgar. O jovem se sentou e apoiou as costas no tronco da árvore. - Uma ou outra vez uma mulher se jogou nos meus braços, mas normalmente não com tanta força - disse, com umas risonhas ruguinhas nas comissuras dos olhos. - De todos os modos, seguro que poderíamos decidir algum tipo de atividade se fizer uma petição educada. Maxie se esticou. - Ainda não despertou de todo - disse bruscamente, tentando fazer ainda mais rouca sua voz. - Meu nome é Jack, e não sou uma mulher, e muito menos uma interessada em me jogar em seus braços. Ele arqueou as sobrancelhas. - A certa distância pode passar por moço, mas aterrissou com considerável força e eu estava bastante acordado para saber o que me golpeou. Com um olhar conhecedor a percorreu da cabeça aos pés. - Permita-me um conselho; se quer ser convincente procure ter a jaqueta e o colete em seu lugar, ou busque outras calças. Jamais na vida vi um moço com formas como as tuas. Maxie se ruborizou e estirou a enrugada jaqueta. Estava a ponto de dar meia volta e pôr-se a correr quando ele levantou uma mão em gesto conciliador. - Não é necessário que fuja. Sou um tipo inofensivo. Recorde que foi você quem me assaltou, não eu a ti. Estirou-se para agarrar uma bolsa avultada que tinha perto. É hora de comer e aqui tenho mais comida que a que necessita uma pessoa. Acompanha-me? Maxie pensou que em realidade teria que pôr distância entre ela e esse homem tão bonito, mas sua atitude era amistosa e não ameaçadora; além disso, seria agradável conversar um pouco. Já tomou a decisão quando ele tirou uma dessas empanadas de carne de estranha forma chamadas de Cornualles. Ao seu nariz chegou um aroma fresco e delicioso. Seu estômago não lhe perdoaria jamais se rejeitasse esse convite. - Se estiver seguro de que tem o suficiente, eu adoraria comer com você. - Deixou a mochila no chão, sentou-se a uma distância prudente se por acaso o jovem Apolo resultasse ser mais perigoso do que parecia, e cruzou as pernas. O jovem loiro lhe passou a empanada. Depois voltou a pinçar em sua bolsa e tirou outra empanada, frango assado, vários pãezinhos e uma jarra pequena. Destampou a jarra e a colocou no meio, entre os dois. 18
- Teremos que beber a cerveja da mesma jarra. - Não bebo cerveja. Mas, sim, comia empanadas. Teve que fazer um esforço para não devorá-la rapidamente. A massa rangente e as partes bem condimentadas de carne e verduras estavam deliciosas. Ele mastigou e engoliu um bocado de sua empanada e depois disse pensativo: - Em muitos círculos se considera de má educação comer com o chapéu colocado. Maxie não queria expor-se a seu olhar, mas não podia fazer caso omisso a essa chamada as boas maneiras. A aceitação da hospitalidade impunha suas obrigações. Levantou a mão e tirou o disforme chapéu, sem deixar de observar, receosa, o seu acompanhante. Durante um momento ele a olhou fixamente com o rosto tenso. Ela já viu reações similares, de modo que pôs a mão perto da faca para poder agarrála rapidamente em caso de necessidade. Por sorte, ele se absteve de fazer comentários vulgares ou tolos. Limitou-se a tragar saliva. - Gostaria de um pouco de frango? - perguntou-lhe depois. Ela relaxou. - Sim, por favor - disse aceitando uma coxa de frango. Ele agarrou uma peça para ele. - Como é que entraste ilegalmente no bosque do marquês de Wolverton? - Ia por um caminho quando ouvi se aproximar uma carruagem, e decidi que o melhor era evitar ser vista; depois me distraiu o canto de um rouxinol. E qual é o seu pretexto? É um caçador furtivo? Ele a olhou com expressão ofendida. - É que tenho cara de caçador furtivo? - Não, ou ao menos não de um com êxito. - Acabou a coxa de frango e lambeu delicadamente os dedos. - Agora bem, tampouco tem cara de ser o marquês. - Acreditar-me-ia se te dissesse que sou o marquês? Ela passeou um desrespeitoso olhar por suas roupas, que tinham bom corte mas distavam muito de ser novas. - Não - respondeu. - Uma jovem de excelente julgamento - disse ele, aprovador. - Ocorre que tem razão. Não sou o marquês do Wolverton, como você não é britânica. - O que te faz dizer isso? - perguntou ela, pensando que seu anfitrião era muito perspicaz. - As diferentes formas de pronunciar são minha especialidade. A tua é a da aristocracia britânica, mas não de todo. - Fechou os olhos, pensativo. - Eu diria que é norteamericana, provavelmente de Nova Inglaterra. Sim, ele era perspicaz. - Hipótese bastante razoável - respondeu, sem concretizar nada. - Segue te chamando Jack? Ela Fechou as pálpebras. 19
- Você faz muitas perguntas. - Perguntar é o método mais fácil que conheço para satisfazer a curiosidade - explicou ele com perfeita lógica. - E costuma dar resultados. - Argumento irrefutável. - Titubeou um momento mais, mas não viu nenhum motivo para não dizer-lhe. - Normalmente me chamam de Maxie, mas na realidade meu nome é Máxima. - Parece-me mais uma Mínima - disse ele observando sua pequena estatura. - E você não é precisamente um Hércules - riu ela. - De acordo, mas não me chamo Hércules, portanto não engano a ninguém. - Meu pai se chamava Maximus e me puseram Máxima por ele. A ninguém lhe ocorreu pensar se cresceria para fazer honra ao nome até que já era muito tarde. Terminou de comer seu pãozinho. Se seu nome não for Hércules, qual é? - Não é muitas coisas. Bebeu um gole de cerveja enquanto pensava o que dizer. Certamente era um patife viajante com tantos nomes e identidades que já não recordava como o batizaram. - Nestes últimos tempos - disse finalmente, estive usando lorde Robert Andreville. - Seriamente é um nobre? -perguntou ela sobressaltada. Apesar de sua roupa velha, sim tinha certo ar. Depois franziu o cenho: Está-me tirando o sarro? Uma vez meu pai me explicou os títulos. Um verdadeiro nobre não usa o lorde com seu nome de batismo. Figuro-me que lorde Robert é um título falso que inventou para impressionar às pessoas. - E eu que pensava que poderia enganar a alguém das colônias. Em seus olhos apareceu um brilho de picardia. - Tem toda a razão, sou um plebeu, não tenho nenhum pingo de nobre. Meus amigos me chamam de Robin. Fosse qual fora seu nome, o jovem tinha um rosto maravilhosamente expressivo. Talvez fosse um ator, não um vigarista; embora claro, podia ser ambas as coisas. De todos os modos, Maxie se surpreendeu sorrindo: - Nesse caso, deveria dar algo ao seu xará, para a sorte. Indicou com um gesto ao robin inglês de olhos brilhantes que aterrissou no meio do anel de elfos e ia aproximando de pulinhos. Menor e mais enérgico que o robin norte-americano, o pássaro se parecia bastante com o seu acompanhante. - Boa ideia, disse ele e atirou uma parte de pão ao pássaro, que o agarrou e empreendeu o vôo. - Sempre deveríamos oferecer algo aos deuses, para a sorte. Voltou a pinçar em sua bolsa. Gostaria de um bolo folhado? - Seria um prazer. Agarrou a porção tentando não parecer muito ávida. O jovem tinha um sorriso maravilhosamente simpático, com o encanto de um homem capaz de vender a alguém uma dúzia de coisas que não necessita. Em suas viagens com seu pai conheceram muitos patifes simpáticos, e o auto proclamado lorde Robert pertencia a essa classe. Em realidade, Max também poderia ser considerado um. Talvez por isso que sua filha tinha debilidade pelos malandros sedutores. Comeu com prazer o bolo folhado abundante em manteiga, pensando que essa era a melhor comida que provaram há muito tempo. Quando terminou, foi ao riacho lavar as 20
mãos e beber um pouco de água fresca. Robin observou sua hóspede, pensativo. Embora estivesse muito bem disfarçada com essa roupa, suas palmas recordavam as formas das curvas ocultas. Quando voltou, perguntou-lhe: - Vive perto daqui? - Não, vou a caminho de Londres. Agarrou seu chapéu e sua mochila. - Obrigado pela comida. - Eu também vou para protegê-la. - Não convenceria nem a um bebê. Além disso, embora não trabalhe, não pode se jogar ao caminho por simples impulso. - Pois claro que posso. Em realidade já o tenho feito. Ela o observou. Sua estatura não passava da comum, e embora isso, o fizesse mais alto que ela por uma cabeça, sua figura elegante não parecia feita para pendências. - Vê-te não só inofensivo, mas também claramente ineficaz - disse-lhe, reatando a marcha. - É mais provável que eu tenha que te proteger a ti que não você a mim. Tenho passado a maior parte de minha vida nos caminhos e sei cuidar de mim mesma. Não necessito e nem desejo acompanhante, por muito honrada que sejam suas intenções. Ao vê-lo sorrir, acrescentou em tom mordaz: - Por tudo o que sei, deveria me proteger de você mais que de qualquer bandoleiro hipotético. - A dama não confia em mim - disse ele com expressão ofendida. - Não me ocorre nenhum bom motivo para confiar. - Inclinou a cabeça e o olhou. - É ator? Está sempre atuando e os atores revistam estar sem trabalho. - Representei muitos papéis - reconheceu ele - mas nunca em um cenário. Isso ela deveria ter se dado conta sozinha; se ele tivesse tentado trabalhar no teatro teria tido um êxito clamoroso, embora só fosse pelas mulheres que pagariam pelo privilégio de olhá-lo. - Fez algum tipo de trabalho útil? Ou é simplesmente um lírio do vale? - O trabalho me fascina - protestou ele. - Poderia estar horas olhando-a trabalhar. Ela se encolheu de ombros e tratou de manter a cara séria, sem muito êxito. - Vejo que não há maneira de te tirar algo sensato. Decidindo-se por outra tática, acrescentou: Poderia reconsiderar se tivesse dinheiro suficiente para nos pagar as passagens a Londres, mas não posso me permitir o luxo de alimentar duas pessoas. É possível que não tenha suficiente para mim. Isso deixou calado ao Robin um momento. De repente lhe iluminou a cara. - Nestes momentos não tenho recursos e, infelizmente, meu banqueiro está em Londres. Entretanto, sou capaz de tirar dinheiro do ar com um conjuro se for necessário. Antes que ela pudesse retroceder, colocou-lhe a mão debaixo do chapéu, lhe roçando a orelha com as pontas dos dedos. Embora o roçar fosse ligeiro, ela sentiu um formigamento na pele e reteve o fôlego. Acovardada. Então ele pôs a mão diante de sua cara para lhe mostrar o xelim que se materializou em sua mão. - Não está mau - reconheceu, mas a ligeireza de mão não está na mesma categoria que converter o chumbo em ouro. - Ligeireza de mão! - exclamou ele, ofendido. - Estamos falando de magia, não de 21
simples truques. Dê-me sua mão. Divertida, ela se deteve e obedeceu. Colocou-lhe o xelim na palma direita e lhe fechou os dedos, com suas mãos cálidas e fortes. - Faz dois punhos e por arte de magia vou passar o xelim a sua mão esquerda. Ela fez obedientemente o que lhe pedia. Ele descreveu vários e elegantes passes no ar, murmurando palavras ininteligíveis. Acabando com um floreio triunfal, disse: - Já está, o xelim há mudado de mão. - Necessita de prática - lorde Robert - porque o xelim continua em minha mão direita. Abriu a mão para demonstrar-lhe e afogou uma exclamação de surpresa. Na palma não só estava a moeda que colocaram, havia duas. - Como fez? - Muito bem - sorriu ele, abandonando suas maneiras de mago de espetáculo. - É certo que só é ligeireza de mão, mas sou bastante bom para estas coisas. Muitas vezes tenho feito conjuros para ganhar a comida e o alojamento em caso de apuro. Sem dúvida seu acompanhante era um vagabundo folgazão, embora simpático e entretido. Devolveu-lhe os dois xelins. - Tudo isto foi muito agradável - lorde Robert - mas por que não volta para sua sesta no bosque e me deixa em paz? - Os caminhos são públicos. Guardou as moedas no bolso. Posto que decidi ir a Londres, não me pode impedir isso. Ela abriu a boca e voltou a fechá-la. Era certo. A menos que seu indesejado acompanhante a atacasse, o que não parecia iminente, tinha tanto direito como ela a usar o caminho. E se decidisse caminhar pelo mesmo caminho e ao mesmo passo, o que podia fazer ela para impedi-lo? Recordou os cães que às vezes seguiam a seu pai e ela. Igual a um cão, Robin se aborreceria logo e ficaria para trás. Além disso, os patifes encantadores tinham um campo de atenção mais estreito que o cão guia de ruas corrente. Só precisava de paciência.
CAPÍTULO 3
O salão de café da manhã de Chanleigh Court estava cheio de deliciosos objetos de arte, mas depois de uma viagem de quase quinhentos quilômetros, Desdêmona Ross não perdeu o tempo em admirá-los. - O que quer dizer? Máxima foi a Londres me visitar? - perguntou, elevando as sobrancelhas castanho avermelhadas. - Não estou em Londres, estou aqui, em Durham, e contra o que me aconselhava meu julgamento, poderia acrescentar. Lady Collingwood dirigiu um olhar glacial a sua cunhada. - Leu a nota. Agarrou uma folha dobrada de seu escritório e a passou. A muito ingrata fugiu a meia noite a três dias. Desdêmona leu a nota e franziu o cenho. 22
- Diz que a convidei a me fazer uma visita longa, e isso não é certo. Vim ao norte para conhecê-la, com a ideia de convidá-la a ir-se comigo na minha volta se nos déssemos bem, mas não o sugeri em minhas cartas. - Máxima é uma moça inexplicável, nada civilizada e nem de boa criação. Dizendo isso, lady Collingwood encolheu de ombros com expressão de aborrecimento, enquanto avaliava a roupa de sua cunhada. Desdêmona tinha tal talento para a falta de elegância que já chegava a gênio. Ver-se atraente devia ser contra seus princípios intelectuais. Mas claro, talvez fosse prudente ao ir envolta em capas escuras que a ocultavam e levar os cabelos presos. Certamente seus chamejantes cabelos avermelhados não eram de bom tom, e se mereciam que os tivesse estirados sem piedade para trás. E sua figura... bom, não havia maneira de que essa figura fosse elegante tampouco. Presumida, pensando em sua inegável elegância, continuou: - Partir a meia-noite para agarrar um carro postal é exatamente o tipo de comportamento que alguém esperaria dela; e mentir também. Bocejou delicadamente tampando a boca com a mão. A verdade, Desdêmona, é uma sorte que não a tenha encontrado. Surpreende-me que Maximus se atrevesse a trazê-la a Chanleigh. Seu lugar é no bosque com seus selvagens parentes pele vermelha. - Melhor que estar com seus selvagens parentes ingleses? - perguntou Desdêmona com doçura letal. - Pode ser que sua mãe tenha sido uma pele-vermelha, mas ao menos sua família não vivia do comércio. Althea Collins se ruborizou diante da mofa, porque havia passado anos tentando esquecer como seu pai conseguiu sua grande fortuna. A entrada de seu marido lhe impediu de fazer sua furiosa réplica. - Dizzy! - exclamou lorde Collingwood, sua longa cara iluminada por agradada surpresa. - Deveria ter escrito nos avisando que vinha. Faz muitíssimo tempo que não nos visitava. Apesar dos vinte anos de diferença em idade e da inexistente semelhança física, Desdêmona e seu irmão se queriam muitíssimo. Ela se levantou e lhe deu um forte abraço, e notou que ele se encolhia diante dessa amostra de afeto. Sabia que ia se encolher, tal como ele sabia que ela o ia abraçar de todo modo; era uma tradição familiar estabelecida há muito tempo. - Pelo visto, deveria ter chegado há três dias, Clete. Sua senhoria pareceu causar pena; não gostava desse apelido, tal como não gostava que a chamassem de Dizzy. Cumpridas as formalidades, Desdêmona olhou zangada ao seu irmão. - Vim ver como ia a minha sobrinha e me inteiro de que partiu contando uma história de que ia visitar-me. Ele franziu o cenho ao compreender o que significava a presença de sua irmã ali. - Como é que não está em Londres esperando a Máxima? - Porque não a convidei - bramou ela. - Pelo visto a pobre garota se sentia tão desgraçada aqui que fugiu com a esperança de que eu a tratasse melhor. Que tipo de cuidado deu à única filha de seu irmão? 23
- Máxima não é uma menina, é uma mulher adulta, só uns poucos anos mais nova que você - respondeu seu irmão em atitude defensiva. - Não consultou meus desejos antes de desaparecer. - Surpreende-me que tivesse dinheiro para a passagem em carro postal - comentou Desdêmona. - Pensei que Max estava virtualmente sem um centavo quando morreu. Fez-se um repentino silêncio enquanto os Collingwood se olhavam. - Tem razão, tinha pouco dinheiro - disse lady Collingwood, com uma ruguinha entre as sobrancelhas. - Tive que lhe pagar a roupa de luto quando morreu Maximus. Preocupamo-nos com ela, embora tenha manifestado uma magnífica ingratidão. - Se tanto esperava que manifestasse gratidão, não estranho que tenha partido. Desdêmona se voltou novamente para seu irmão. - Pode ser que seja uma mulher adulta, mas não conhece a Inglaterra. Poderia lhe ocorrer algo, sobretudo se for a Londres a pé. - Deus santo, não creio que lhe tenha ocorrido fazer uma coisa assim. - Lorde Collingwood se interrompeu e sua cara refletiu inquietação. - Esta manhã, percebi que meu velho mapa de caminhos a Londres não estava em meu escritório. Supus que alguém o tomou. - E imagino que isso foi exatamente o que ocorreu. Posto que ela e Max passavam grande parte do ano percorrendo os campos de Nova a Inglaterra, uma viagem caminhando a Londres deve ter lhe parecido igualmente fácil. - Desdêmona renunciou a continuar controlando sua ira. - Deveria lhes dar vergonha! Certamente Max tinha direito a acreditar que sua filha estaria segura aqui em Chanleigh. E o que fizeram? Expulsaramna. Collingwood se ruborizou. - Pensei que Máxima era feliz aqui. Meu plano era apresentá-la em Londres com minhas filhas, mas nunca lhe falei do tema. Não me pareceu correto lhe falar de seu futuro enquanto não se recuperasse um pouco mais da perda de seu pai. Desdêmona perfurou a sua cunhada com o olhar. - Você também a tratou bem, Althea? Nenhum comentário depreciativo sobre sua família de lá? Deu-lhe um guarda-roupa adequado, apresentou-a aos jovens da vizinhança? - Se se preocupava tanto com o bem-estar da selvagem, por que não fez algo você? disse lady Collingwood com a raiva do culpado. - Poderia ter vindo em qualquer momento destes quatro meses passados, mas o único que fez foi lhe escrever umas quantas cartas. - Estive trabalhando em um projeto de lei para proteger aos aprendizes, e como por fim estávamos fazendo certos progressos, não podia partir de Londres -explicou Desdêmona, incômoda - mas tem razão, deveria ter feito mais. Pensei que estaria bem aqui até que eu pudesse encontrar o tempo para vir ao norte. - Não têm nenhum sentido as recriminações - disse Collingwood em tom apaziguador com o fim de evitar uma briga maiúscula. - O importante é que Máxima volte aqui sã e salva. - Como pensa consegui-lo? Seu irmão refletiu um momento e logo assentiu aliviado. 24
- Conheço um homem a quem posso encarregar de buscá-la. Simmons está em Newcastle nestes momentos. Enviá-lo-ei a procurar e lhe explicarei o que terá que fazer. Com sorte, Máxima estará aqui muito em breve. - Envia o seu homem se quiser, mas eu vou atrás dela pessoalmente - disse Desdêmona com os lábios apertados. - Alguém da família deve se preocupar o suficiente para tentar. Como é? Lorde Collingwood abriu a boca para lhe dizer que isso era absurdo, que essas coisas eram melhor serem deixadas às pessoas com experiência. Mas um olhar à cara resolvida da Desdêmona o fez decidir que era melhor deixá-la ir. Afinal sua irmã era uma viúva independente e mundana, atendida por seus criados. Que dificuldades poderia ter? Os quilômetros e a tarde foram passando, e o indesejado acompanhante de Maxie não dava sinais de aborrecimento. Não fraquejava diante do passo enérgico que impunha ela tampouco. De tanto em tão fazia algum comentário simpático sobre os lugares por onde passavam, e conversavam um pouco. Às vezes ficava a assobiar, com muito sentido musical. Maxie teve que reconhecer que sua companhia fazia passar mais rápidos os quilômetros. Saíram do bosque e entraram em um caminho mais largo com mais tráfego. Já se aproximava a hora do jantar quando chegaram a um povoado aprazível de casas de pedra cinza. Robin indicou com um gesto uma estalagem chamada King Richard. - Aceita que te pague o jantar? Pode comer o que quiser sempre que custar menos de dois xelins. - Pode parar para jantar se quiser - respondeu ela, olhando-o friamente. - Eu vou continuar. Que tenha uma agradável viagem, senhor Anderson. - Andreville - disse ele, insensível a rejeição. - Anderson é muito comum para impressionar a alguém. Seguro que não quer jantar? Embora tenha provisões para outro dia, uma comida quente iria bem para passarmos uma noite fria. - Não há nenhum nós, senhor Andreville - respondeu ela, resolvida a manter a formalidade. - Somos duas pessoas que por acaso caminham pelos mesmos caminhos durante umas horas. - Ainda não me leva sério, não é? - disse ele, parecendo não incomodado pela observação. - Dificilmente me levam a sério, de modo que está em boa companhia. Muito bem, comida fria então. - Pelo amor de Deus - murmurou Maxie no momento que passavam diante da estalagem e Robin continuou ao seu lado. O homem estava se convertendo em uma maldita chateação. Então lhe ocorreu uma ideia. Se aceitasse parar para jantar, seguro que conseguiria encontrar a oportunidade para livrar-se dele. Saindo uns quantos minutos antes, poderia desaparecer em uma das ruelas. No dia seguinte procuraria um atalho para outro caminho ao sul e ele não a encontraria jamais. - Tem razão, uma comida quente iria bem, mas eu pagarei minha parte. Dançaram-lhe os olhos, e ela teve a perturbadora sensação de que ele adivinhara suas intenções. Teria que relaxar e comportar-se como se se resignasse a continuar em sua companhia. 25
Entraram na estalagem e encontraram assento em um rincão afastado do boteco cheio de fumaça. Estava tão escuro que ninguém se fixaria se ela não se tirasse o chapéu. Não havia carta; pediram a especialidade do dia e lhes serviram um prato chamado griskin com batatas. Diante do seu olhar interrogante, Robin lhe explicou: - É uma chuleta de porco intercalada. Não está mau. Maxie tomou um bocado e o mastigou pensativa. - Tem razão. Não está mau, mas tampouco está bom. - Certo, mas está quente, e sabe melhor que o que alguém imaginaria de algo chamado griskin. Ela ocultou seu sorriso depois de uma garfada cheia. - Comi pior. O porco-espinho, por exemplo, só é bom se alguém estiver morto de fome. Enquanto comiam, ela se esforçou por mostrar-se amistosa. Não lhe resultou difícil, mas o êxito resultou ser traiçoeiro. Havia muita intimidade em rir e compartilhar mesa com um homem atraente que lhe dedicava toda sua atenção; a escuridão do boteco fazia parecer que estivessem os dois sozinhos. Nem sequer comer um humilde griskin podia destruir o efeito romântico. Esse pensamento lhe reforçou a decisão. Quão último precisava era atar-se com um patife sedutor. Concentrou sua atenção em seu prato e esperou a oportunidade de escapar. Robin terminou de comer antes que ela. Seu olhar despreocupado se posou na parede em que penduravam uns artefatos feitos de peças entrelaçadas de ferro martelado. - Têm este tipo de quebra-cabeças na América do Norte? Trata-se de separar as peças e logo recordar a maneira de armá-las de novo. - Agarrou um dos artefatos. Já é difícil resolvê-los estando sóbrio... Sabe-se de bêbados frustrados que usaram alavancas para separar as peças. - Conheço esses quebra-cabeças de botequins. Provavelmente existem em qualquer lugar que haja ferreiros para forjá-los e botequins onde às pessoas gosta de divertir-se. Tragou o último bocado de batata. Imagino que é bom para resolvê-los. - Diz apoiando-se em que sou excelente para as habilidades inúteis? Ela teve que sorrir. - Exatamente. Ele olhou o quebra-cabeça, carrancudo. O contorno tinha uma vaga forma de sino, com círculos e triângulos entrelaçados. - Suponho que não estive muito em botequins estes últimos tempos. Nem sequer sei que peças se podem tirar. Enquanto ela olhava também o aparelho, viu que Robin tinha o pulso e os dedos da mão esquerda sutilmente deformados, certamente por causa de numerosas fraturas de ossos. Tinha mãos elegantes, que usava com muita expressividade, mais como um europeu que como um inglês. Era uma pena que tivesse sofrido tantas lesões na esquerda, já que era canhoto. Observou mais atentamente os contornos irregulares; a forma das gravuras era estranha; eram todas tão iguais que pareciam consequência de um ato deliberado. Tortura? 26
Um calafrio lhe percorreu a coluna. Talvez um marido furioso elegesse essa maneira de vingar sua honra manchada. Estirou a mão e agarrou o quebra-cabeça. - Este me recorda um artefato chamado estribo do diabo, mas esta é uma versão mais complicada. Creio que estas são as peças que devem separar-se. Depois de um minuto de observação, fez vários giros rápidos e o aparelho se separou em três partes. - Quem dos dois tem as habilidades inúteis? - riu ele. - Desarmá-lo é só a metade da batalha. Voltar a armá-lo é igualmente difícil. Arrastou as peças pela mesa para ele. Aposto seis tostões que quando voltar do privado ainda não o terá armado. - Adiante - disse ele e começou a tarefa agarrando um triângulo e um aro para tratar de enlaçá-los. Chegou o momento. Nenhum homem admitiria que uma mulher fosse capaz de superá-lo em algo assim. Estaria tão absorto resolvendo o estúpido quebra-cabeça que não sentiria falta dela em uma hora. Levantou-se, levando discretamente sua mochila a um lado. Pagaram a comida quando a pediram, de modo que podia partir com a consciência tranquila. Atravessou o boteco até a porta que dava ao pátio de trás. Uma vez fora, dirigiu-se rapidamente para a rua que discorria paralela a principal, pela parte de trás das casas. Sua sensação de satisfação foi breve. A rua tinha o comprimento de doze casas e não tinha saída. Quando voltava para a rua principal quase se chocou com Robin, que estava apoiado contra uma parede de jardim, com os braços cruzados sobre o peito, esperando-a. - Sua opinião sobre minha inteligência é francamente pobre se acreditou que ia me evitar com tanta facilidade - disse-lhe com sua amabilidade de costume. Ela o olhou furiosa, e pela primeira vez acreditou que o imbecil se propunha a sério em acompanhá-la até Londres. - Não se trata de sua inteligência, mas sim de sua presunção. Não desejo sua companhia nem suas comidas grátis e agora, me deixe em paz. Voltou-se e pôs-se a caminhar pela rua. Robin continuou ao seu lado. Girou-se furiosa e lhe gritou: - Já lhe disse. Acredite-me. Sou muito capaz de me defender sozinha. Ia continuar quando ele a fez calar com um enérgico gesto de advertência. - Vem gente. Se deseja continuar sua comédia, não arme uma cena aqui. Várias pessoas do povoado os estavam olhando com curiosidade, mas mesmo assim, ela teria explodido de fúria se não ficasse apanhada no olhar de Robin. Seus olhos azuis tinham profundidades incomensuráveis, eram os olhos de um homem que viu mais sombras que luz do sol. Também era mais velho do que ela pensou. Supôs que era quase de sua mesma idade, mas teve que reconsiderar essa hipótese; passava dos trinta. Ficou o olhando com a sensação de estar em presença de um desconhecido perigoso. Antes que pudesse reagir, ele a agarrou pelo braço com firmeza e começou a levá-la para o campo aberto. Quando passaram junto ao grupo de aldeãos interessados, uma 27
mulher mais velha disse com seu vasto acento do Yorkshire: - Ouça, Daisy, esse cavalheiro não é...? - Não - interrompeu-a Robin com muita clareza. Acompanhou a interrupção com um deslumbrante sorriso que deixou à mulher boquiaberta de admiração. Deixando atrás um murmúrio de vozes, apressou-se a fazer avançar a Maxie pela rua antes que alguém pudesse dizer nada mais. Furiosa, ela pensou na possibilidade de pedir auxílio aos aldeãos, mas isso exigiria intermináveis explicações, e estava segura de que Robin seria capaz de livrar-se de qualquer acusação com sua lábia. Além disso, não se sentia ameaçada por ele. Pelo contrário, ela representava um maior perigo para ele que ele para ela. Guardou silêncio até que passaram uma curva e já não os via ninguém da aldeia. Então se deteve e soltou o braço. - Se tinha alguma dúvida a respeito de viajar com você, já está resolvida -disse-lhe, furiosa. - É um arrogante, um egoísta. .. - Tem toda a razão, sou um presunçoso - respondeu ele com voz incisiva. - Mas será melhor que aceite que tenho a intenção de me encarregar de que chegue sã e salva ao seu destino. Ela moveu a mão para tirar sua faca, mas ele lhe agarrou o pulso. Embora a pressão fosse ligeira, foi impossível escapar. - Não o faça, Maxie - disse-lhe ele lhe sustentando o olhar com olhos tão implacáveis como sua mão. - É uma das duas mulheres mais formidáveis que conheci em minha vida, mas é uma estrangeira que percorre um país infestado de conflitos. Além dos bandoleiros comuns há soldados famintos liberados do exército e que não conseguem encontrar trabalho, radicais furiosos que desejam destruir o governo e só Deus sabe que mais. Poderia ter sorte em todo o trajeto até Londres, mas não é o mais provável. Asseguro-te que estará mais segura comigo que sozinha. Poderia ter lutado com ele, mas nos últimos minutos havia mudado sua opinião sobre sua incompetência. Seu desejo de protegê-la parecia sincero. Possivelmente tinha outros motivos menos honrosos também, mas ela tinha experiência em resistir à sedução e não acreditava provável que ele tentasse violá-la. Se sua fraudulenta senhoria desejasse uma mulher, quão único tinha que fazer era esboçar um desses irresistíveis sorrisos em uma aldeia e as mulheres o seguiriam pela rua como ratos atrás de queijo. Reservando-se o direito de decidir escapar dele mais adiante, disse-lhe tranquilamente: - Muito bem, senhor Andreville, aceito a inevitabilidade de sua companhia, ao menos no momento. Simplesmente não se esqueça de reservar as mãos para você, ou as encontrará separadas dos pulsos. - Antes incomodaria a um tigre - disse ele. Desaparecido todo rastro de preocupação, Robin voltava a ser o indolente encantador que conheceu no bosque. Mas ela não esqueceria o que revelou de si mesmo. Quando lhe soltou o pulso, surpreendeu-se lhe perguntando: - Quem é a outra das duas mulheres formidáveis? 28
- Uma velha amiga - disse ele sorrindo. - Você a adoraria. - Duvido. Voltou-se e reatou a marcha pelo caminho. Haveria luz durante outra hora, de modo que bem podiam avançar outro pouco. - Espero que seu traseiro aristocrático possa sobreviver dormindo sob uma sebe quando não houver celeiro. - Há lugares piores que uma sebe para dormir - respondeu ele, pondo-se a andar junto a ela. - Quase qualquer prisão, por exemplo. - Dormiu em muitas prisões? Suspeitava que sim, e esperava que os motivos não fossem outros que vacância, embora sem dúvida fosse culpado de coisas muito piores. - Em umas quantas. A melhor foi a masmorra de um castelo da França, com comida e vinho bastante passáveis e um duque por companhia. Pelo brilho que viu em seus olhos, ela supôs que ele inventou essa história, e que não ignorava que ela sabia. - Um lugar agradável ao parecer. E se essa foi a melhor, qual foi a pior? Ele pensou um momento. - Talvez fosse a prisão de Constantinopla. Eu não falava muito turco e nem sequer conhecia os jogos de azar populares lá. Uma triste situação. Mas ali conheci um chinês mais interessante. Entraram em um trecho do campo, a suave voz de tenor do Robin urdindo uma história escandalosamente inverossímil e entretida de subversão e fuga. Não se podia negar que era um pícaro. Mas enquanto falava, Maxie conseguiu esquecer temporariamente sua pena pela perda de seu pai.
CAPÍTULO 4
Pouco antes que morresse o sol se encontraram com uma família de tropeiros ciganos que viajavam em direção norte. Quando já estavam perto, Robin lhes fez um gesto com a mão e gritou algo em um idioma que Maxie não ouvira jamais. - Fala cigano? - perguntou-lhe, surpreendida. - O idioma se chama romani, e sei muito pouco. - A expressão risonha lhe fez aparecer ruguinhas nas comissuras dos olhos. Mas preciso comprar algumas coisas, e quando às pessoas falam em seu idioma, não põem tanto empenho em te enganar. A carruagem se deteve e o cocheiro desceu da boléia. Maxie comprovou que face ao que havia dito, Robin falava bastante bem o idioma; ele e o chefe da família começaram a falar energicamente, gesticulando muito com as mãos. Até com sua tez branca e cabelo loiro, seu companheiro não tinha aspecto inglês. Vários meninos desceram da carruagem, seguidos por uma mulher bonita, vestida com cores muito vistosas, com um bebê no quadril. A mulher se aproximou de Maxie e lhe 29
disse algo em romani. - Sinto muito - respondeu ela movendo a cabeça. - Não conheço seu idioma. -Não? A mulher inclinou a cabeça e lhe disse em inglês: Pensei que era didikois, ou seja cigana mestiça, e que você ensinara o idioma ao moço. - Não, sou dos Estados Unidos. A mulher aumentou os olhos, surpreendida - e você já viu algum desses índios sanguinários? Desde sua chegada a Inglaterra Maxie ouvira comentários igualmente estúpidos. - Senhora, eu sou um desses índios sanguinários - disse-lhe em tom mordaz. - Tal como você é uma cigana ladra. Os olhos negros da mulher flamejaram de fúria, e a menina que esteve dando voltas ao redor de sua mãe se escondeu detrás de suas saias. Então, compreendendo, a mulher pôs-se a rir. - Às vezes a gente tem ideias estúpidas sobre os que são diferentes, não é? - Sim - respondeu Maxie. Embora a alegrasse ter feito compreender isso à cigana, lamentava ter falado diante de Robin. Não desejava falar de seu passado com um homem que era um enigma. Felizmente, ele seguia absorto no regateio e não a ouviu. Contemplou-o admirada; seus dotes para regatear eram dignos de um mercador. Em um momento crítico, Robin tirou uma brilhante moeda de seis tostões da orelha da menina que tinha mais perto, e a pequena começou a rir sem poder conter-se. Seu amoroso pai levantou as mãos em sinal de rendição e pôs fim à negociação, dando ao Robin uma navalha de barbear, alguns maltratados utensílios de cozinha para comer e uma pequena manta puída em troca da principesca soma de dois xelins. Robin também permutou sua bem feita bolsa por uma mochila puída e suficientemente grande para levar ali suas novas posses. Depois de uma amistosa despedida, reataram a marcha. - Onde aprendeu romani? - perguntou-lhe ela quando a carruagem já se afastou um bom trecho. Ele encolheu de ombros. - Viajei com ciganos uma outra vez. Uma vez que lhe aceitam são pessoas muito hospitalares. Antes que ela pudesse fazer outra pergunta, continuou: - Rom Gregor me disse que há um bom lugar para acampar a mais ou menos um quilômetro e meio daqui. Ela contemplou os campos desertos. - Espero que não tenha se equivocado. Faz mais ou menos uma hora que não vemos nem um só celeiro nem abrigo. Continuaram caminhando e de repente ele assinalou uma pequena pirâmide de pedras ao lado direito do caminho. - Essa é uma marca de rota cigana. O acampamento está para lá. Uma caminhada de dez minutos por um atalho com sutis marca de rota os levou até uma depressão no terreno que ficava oculta do caminho. Várias árvores pequenas protegiam do vento, um riacho provia de água para beber, e havia uma fossa para fazer fogo, circundado por pedras. Maxie não teria encontrado jamais esse lugar ela sozinha. 30
O ar já se estava esfriando, de modo que enquanto escurecendo o firmamento, recolheram lenha. Maxie usou sua pederneira com o aço para acender o fogo e logo pôs um ramo afirmado sobre as pedras para pendurar nela um bule com água. Quando a água começava a ferver, Robin saiu da penumbra carregado de largos e moles ramos de samambaia. - Samambaias - explicou, deixando no chão sua carga. - Servem para fazer uma cama bastante decente. - Suponho que quererá dizer para fazer duas camas bastante decentes -disse ela em tom glacial, enquanto vertia água fervendo sobre umas quantas folhas de chá. - É obvio - respondeu ele muito sério, embora com os olhos risonhos, por sua desconfiança. Fez outras três viagens e foi amontoando as samambaias até formar dois colchões um a cada lado do fogo, tudo muito decoroso. Eram surpreendentemente cômodos, tal como descobriu ela quando provou o seu. Quando as camas ficaram brancas, o chá também. Maxie passou uma taça cheia ao Robin e se sentou com as pernas cruzadas no outro lado da pequena fogueira. - Está totalmente louco, sabe? Seguro que em qualquer lugar que dormiu ontem à noite era mais cômodo que isto. - Correto, mas fora de propósito - respondeu ele. Fazia muitíssimo tempo que não desfrutava tanto. - Total, totalmente louco - repetiu ela. «Mas um louco inofensivo.» Beberam o chá em amistoso silêncio. Embora tivesse sentido temores por essa estranha associação, a atitude serena do Robin fazia tudo fácil. Havendo se resignado a sua presença, sentia-se notavelmente mais cômoda com ele. Era difícil acreditar que se conheceram só umas horas antes. Pôs a ferver mais água, e quando acabou de beber seu chá, preparou uma taça com sua mistura especial de ervas. Robin enrugou o nariz quando lhe chegou o aroma daquelas ervas em molho. - O que está preparando agora? - É uma infusão para mulheres - explicou ela. - O que a faz particularmente feminina? Maxie sentiu a travessa tentação de desconcertá-lo. - Acautela a concepção. Quando empreendi esta viagem sabia que cabia a possibilidade de que me violassem sem poder eu evitá-lo, mas ao menos posso me proteger das piores consequências. Ele esteve um momento com o rosto sem expressão. Depois de um comprido silencio comentou: - Que extraordinário sangue-frio o teu. Ela bebeu um gole do líquido quente e amargo. - Nunca tive o luxo de poder evitar as realidades desagradáveis. - Violaram-lhe alguma vez? - perguntou-lhe ele em voz muito, muito suave. - Não. 31
- Me alegro - disse ele contemplando sua taça. - Vi as consequências. Isso não é algo que deseje a nenhuma mulher. Ela observou que seu rosto e sua voz estavam escurecidos pela preocupação ou angústia que vislumbrou nele antes. Sentiu-se incômoda e trocou de posição. Sua intenção fora desconcertá-lo, não desencadear más lembranças. De todos os modos, suas palavras lhe deram a absoluta segurança de que ocorresse o que ocorresse, nunca teria por que temer que ele a violasse. Desejosa de melhorar o humor, procurou no bolsinho de sua jaqueta, tirou a gaita e começou a tocá-la. Robin relaxou a expressão e se deitou com os braços cruzados atrás da cabeça. Enquanto tocava as chorosas notas de uma balada fronteiriça, dedicou-se a observálo. Sua forma de falar e sua evidente educação o situavam na categoria dos privilegiados. O que o baniu ao mundo dos mortais comuns que devem lutar para subsistir? Recordou o seu pai; seus pecados foram os óbvios da juventude, o jogo e as mulheres, mas em Robin notava algo que a fazia duvidar de que sua queda se devesse a esses vícios comuns. A luz do fogo fazia brilhar os cabelos com matizes dourados, e seu rosto de perfil era tão reservado como perfeito. Talvez não tivesse sido expulso por seus pecados, mas sim provinha de uma família que caiu em apuros econômicos. Ou talvez fosse filho ilegítimo, educado com certas vantagens e depois jogado ao mundo para fazer seu próprio caminho. Provavelmente nunca saberia a verdade a respeito dele. Sua música passou das baladas tradicionais a temas de compositores europeus famosos. Por último, quando do fogo só ficavam os rescaldos, começou a tocar a música dos iroqueses. As primeiras canções que ouvira eram a canções de ninar que lhe cantava sua mãe. Depois aprendeu muitas das melodias rituais e de trabalho dos mohawk. Embora não houvesse nenhum instrumento índio parecido à gaita, praticando conseguiu tocar um pouco aproximado dos intervalos lastimosos e os estranhos ritmos sempre mutáveis. Pensava que Robin adormecera, mas quando trocou a música, ele girou a cabeça para ela, com seus olhos sombrios, impossíveis de ler. Tocou um momento mais e depois guardou sua gaita e tirou a capa da mochila. - Boa noite - disse Robin, em um sussurro escassamente mais forte que o murmúrio da brisa sobre as ervas do campo. Obrigado pelo concerto. -Não há de que. Quando estava se envolvendo na capa para deitar-se na cama de samambaias, silenciosamente reconheceu que dormiria muito melhor por tê-lo perto. Um som estranho a despertou, e imediatamente estirou a mão para agarrar sua faca. Ao princípio pensou que o ruído, parecido com um fôlego, provindo de um animal. Quando voltou a ouvi-lo se deu conta de que provinha do outro colchão. Pensando que Robin talvez tivesse uma espécie de ataque de asma, levantou-se e foi se ajoelhar ao seu lado. Sua cara era uma larga branca imprecisa à luz das estrelas, sua respiração entrecortada, resfolegante e superficial, como estertores, e se agitava inquieto fazendo ranger os ramos de samambaia. Pôs-lhe uma mão no ombro. 32
- Robin? Notou que lhe esticavam os músculos do ombro. Cessaram os fôlegos e abriu os olhos, embora estivesse muito escuro para lhe ver a expressão. - Tive um pesadelo? - perguntou ele com voz rouca. - Creio que sim. Recorda como era? - A verdade é que não; poderia ter sido qualquer uma de muitas coisas. - Inspirou com dificuldade. - É o preço de uma consciência intranquila. - Tem pesadelos com frequência? - Com regularidade, não exatamente com frequência. Passou a mão pela cara. Lamento ter interrompido seu sono. Ela estava a ponto de lhe fazer mais pergunta quando viu um ligeiro brilho de umidade em suas bochechas. Com razão se esforçava muito para parecer despreocupado. Cobriu com a sua a mão que descansava perto de seu joelho. - Isso não é nenhum problema. Tenho o sono leve. Notou que ele tinha os dedos frios, e certamente isso não se devia ao ar frio da noite. É melhor que você me desperte que um lobo faminto. - Por aqui são mais comuns as ovelhas que os lobos - disse ele, lhe apertando brevemente a mão. - E não é que não confie em sua habilidade para proteger o meu inútil ser dos perigos da natureza selvagem. - Se nos atacasse algum lobo, estou segura de que seria capaz de lhe falar até matá-lo com sua eloqüência - disse ela alegremente. - Boa noite. Voltou para seu colchão para aproveitar o que restava da noite. Mas lhe custou conciliar o sonho, embora muito em breve a respiração de Robin se fez tranquila e uniforme. Os iroqueses tomavam muito a sério os sonhos, consideravam-nos desejos da alma que devem satisfazer-se. Sua mãe ia um pouco mais longe, dizendo que os pesadelos eram ferimentos da alma que terão que curar. Quando estava ficando adormecida, Maxie se perguntou o que seria que atormentava as noites de Robin. Se Desdêmona Ross tivesse sabido quão difícil seria encontrar a uma fugitiva teria deixado o trabalho ao homem que seu irmão ia contratar. Mas tendo começado, não estava disposta a reconhecer que não era apta para a tarefa. A busca lhe pareceu um singelo exercício de lógica. Conhecendo o passado de sua sobrinha, calculou que distância percorreria uma caminhante em passo enérgico no tempo transcorrido do desaparecimento de Máxima. Depois elegeu as três rotas mais prováveis e começado a fazer indagações nos botequins e casas desses caminhos. Perguntava por um moço, segura de que sua sobrinha era muito sensata para ir vestida de mulher. Suas perguntas produziam ou uma longa lista de moços vistos ou nenhum, mas nunca nada útil. Depois de três dias de busca infrutífera, estava absolutamente farta do assunto. Só sua considerável tenacidade a fazia continuar. Já fez todo o caminho até o Yorkshire quando trocou sua sorte em uma estalagem chamada King Richard. Era meio-dia, e quando entrou no boteco, havia uns quantos 33
paroquianos dispersados bebendo cerveja. Dirigiu-se diretamente à mulher que estava detrás do balcão. - Perdoe, senhora. Ando procurando o meu sobrinho. O moço fugiu do colégio e é possível que haja passado por aqui. - Sim? - disse a senhora com profundo desinteresse. - É mais ou menos desta estatura - continuou Desdêmona, indicando a altura com a mão, moreno e de cabelo negro, mas é provável que leve um chapéu para que não o reconheçam facilmente. - Havia um moço assim aqui o outro dia. A resposta não saiu da senhora, mas sim de uma anciã desdentada que estava em um grupo no outro extremo da sala. A anciã se levantou e se aproximou da Desdêmona. - Mas encontrou um amigo - acrescentou. - Sim? - perguntou Desdêmona em tom alentador. Então chegou até elas outra mulher, bastante corpulenta, com uma pipa de argila na boca. - Sim, se era seu sobrinho está muito bem. Lorde Robert Andreville estava com ele. Talvez você conheça sua senhoria, já que todos os aristocratas estão aparentados. Lorde Robert deve ter reconhecido o moço e o levou a sua casa para devolvê-lo a sua família. - O cavalheiro disse que não era lorde Robert - alegou a anciã. - Não tenho nenhum problema nos olhos, avó - disse a fumante de pipa. - Esse era lorde Robert, haja dito o que haja dito. Vi-o em Yorkshire justamente antes de Natal. Aquela cabeça amarela não podia ser de nenhum outro. - O que ocorreu? - perguntou Desdêmona antes que a anciã pudesse alegar outra coisa. - O moço e sua senhoria estiveram comendo aqui - contribuiu a senhora, demonstrando mais interesse no debate. - Se sentaram nesse rincão, e por isso ninguém reconheceu lorde Robert. Depois que comeram, o moço saiu pela porta de atrás. - Sim, tentou escapar outra vez - continuou a fumante de pipa. - Por isso pensei que devia ser o moço que anda procurando. Sua senhoria lhe alcançou lá fora e o levou com ele. Desdêmona franziu o cenho. - Quer dizer que o obrigou a ir com ele? A mulher assentiu. - Agarrou-o pelo braço e o tirou do povoado. Devia ter uma carruagem esperando. Não creio que um lorde seja capaz de caminhar muito. Desdêmona ouvira falar dos Andreville, é obvio, e sabia que sua casa principal estava perto. Mas ninguém dessa família conhecia Máxima, que só estava há uns meses na Inglaterra. Ao menos, ninguém a teria reconhecido como uma fugitiva de boa família. - Eu gostaria de saber algo sobre esse lorde Robert. Um entusiasmado coro lhe explicou que lorde Robert era o irmão mais novo do marquês de Wolverton, que durante as guerras fez coisas terríveis e perigosas, que era tão formoso como um anjo caído e que era um demônio com as mulheres. O entusiasmo com que lhe descreveram suas façanhas demonstrava o orgulho que sentiam da ovelha negra 34
de sua vizinhança. Se só a metade das histórias eram certas, o retrato que saía delas era francamente alarmante. Lorde e lady Collingwood lhe haviam dito que Máxima era extraordinariamente atraente, justamente do tipo idôneo para atrair os importunos cuidados de um descarado. Dava toda a impressão de que o dissoluto lorde Robert descobriu o disfarce da garota e a forçou a acompanhá-lo com fins nada bons. - Como se chega a Wolverhampton? - perguntou com expressão resolvida. Uma vez que lhe deram todas as indicações, procurou em seu bolso e pôs um guinéu de ouro sobre o mostrador. - Obrigado pela ajuda, senhoras. A cerveja desta tarde corre por minha conta. Dito isso se apressou a sair à rua onde a esperava sua carruagem, sem fazer caso dos brindes a sua continuada boa saúde. Já estava muito ocupada planejando o que lhe faria ao depravado aristocrata que desonrasse a uma jovem inocente.
CAPÍTULO 5
O marquês do Wolverton reservara essa tarde para responder sua correspondência. Seu secretário Charles lia a carta, ele ditava a resposta e passavam a seguinte. Tudo perfeita e aborrecidamente normal. Mas a normalidade se fez em migalhas quando irrompeu uma furiosa amazona na biblioteca. - Não me importa quão ocupado esteja lorde Wolverton, gritou ao entrar. Receberme-á agora. Detrás dela entrou quase correndo um lacaio, muito sobressaltado com a cara vermelha. - Sinto muito, senhoria, lady Ross insistiu em lhe ver - explicou em tom de desculpa. Veio perguntar por lorde Robert. Giles levantou a cabeça imediatamente. Robin se esfumara fazia três dias, e embora lhe houvesse dito que não se alarmasse se algum dia desaparecesse, estava-lhe resultando bastante difícil não sentir preocupação. Pestanejou surpreso ao ver a recém chegada. Lady Ross avançava para ele como um navio a toda vela, sua capa e seu chapéu agitando-se ao seu redor e um guarda-sol em uma mão, empunhado como uma arma. Alta e majestosa, com uma expressão mais feliz teria estado bonita, mas nesse momento sua fúria não era uma visão apropriada para os fracos de coração. Pensando que demônios teria a ver com o Robin, Giles ficou de pé educadamente. - Sou Wolverton. Tem notícias de meu irmão? - Ou seja, você tampouco sabe onde ele está - disse ela carrancuda. - Está fora há vários dias. Não sei muito bem quando retornará - disse Giles, tentando 35
recordar o que ouvira sobre lady Ross. Embora lhe reconhecesse o nome não conseguia recordar em qual contexto. - Que assuntos têm a tratar com meu irmão? - Não se trata de nenhum assunto meu com ele, mas sim do que tem feito com minha sobrinha - respondeu a dama olhando furiosa ao marquês. - As provas sugerem que seu irmão a raptou. - Mas o que demônios diz! - exclamou Giles com as mandíbulas tensas. - Quem propagou essa absurda calúnia? A ponta do guarda-sol se agitou como a cauda de um gato raivoso. - Alguns de seus inquilinos viram lorde Robert obrigando uma pessoa a ir com ele. Pela descrição que me deram, estou segura de que era minha sobrinha, Máxima Collins, uma jovem norte-americana. O marquês perfurou a sua visitante com um olhar irado. - Como e quando foi raptada essa jovem? Resulta-me impossível acreditar que meu irmão tenha raptado a uma jovem inocente, afastando-a de sua família. Os olhos de lady Ross se desviaram inquietos. - Não sei como ocorreram as coisas exatamente. Máxima estava vivendo com meu irmão, lorde Collingwood. Seu pai morreu pouco tempo depois que chegaram a Inglaterra e a garota estava causando pena. Faz ao redor de uma semana partiu impulsivamente de casa, deixando uma nota em que dizia que ia a Londres ver-me. Em realidade eu fui visitar a ela em Durham. Desde o momento em que me inteirei de seu desaparecimento estou procurando-a. - Fechou seus olhos cinzas. - Faz três dias os aldeãos viram lorde Robert com seu mal disposto acompanhante. Giles manteve a cara impassível, mas grunhiu por dentro. Robin não ia raptar a uma inocente, mas poderia ter partido com uma fugitiva bem disposta? Isso dependeria de quão jovem fosse e do quão bem disposta estivesse a garota. - Que idade tem sua sobrinha? Lady Ross titubeou um momento. - Vinte e cinco anos. - Vinte e cinco! Por sua forma de falar supus que teria quinze ou dezesseis. Dificilmente é uma garota inocente; na sua idade a maioria das mulheres já são esposas e mães. Se ela se foi com meu irmão tem que tê-lo feito voluntariamente. - Máxima só estava há quatro meses na Inglaterra, e ficou órfã quase imediatamente disse lady Ross jogando faíscas pelos olhos. - É uma menina inocente, e está sozinha em um país estrangeiro. Um homem que se aproveite disso seria menos que desprezível. Giles dominou firmemente sua ira. - Ainda não esclarecemos o que ocorreu, se é que ocorreu algo. - Se lorde Robert não fugiu com ela, onde está então? Pelo que disse quando cheguei, você não sabe onde está. Segundo os aldeãos, tem fama de descarado, exatamente do tipo de homem que rapta uma garota inocente. - Isso é uma absoluta tolice - replicou Giles. - Robin esteve muitos anos fora da Inglaterra. Nos seis meses transcorridos desde sua volta viveu aqui sossegadamente, sem meter-se em nada com mulheres inglesas. 36
- Ao que parece seus inquilinos não estão de acordo com isso. - As pessoas gostam de inventar histórias fantásticas sobre a aristocracia local. Eu não lhes ofereço muito pasto para fofocas, mas lorde Robert é uma figura atraente e romântica. Basta que sorria a uma jovem para que se imaginem que é um mulherengo exímio. Refletiu um momento. - Embora meu irmão estivesse acompanhado por uma jovem, está segura de que era sua sobrinha? Sendo fugitiva, poderia estar em qualquer parte. - Estou segura de que Máxima tem que estar nesta zona, e a descrição que fizeram os aldeãos calça exatamente com ela - insistiu lady Ross, não disposta a ceder. - Temo o pior. O marquês fez uma inspiração profunda. - Não me deu nenhuma prova de que Robin se comportou mal e nem sequer de que ele e sua sobrinha se conheçam. Embora compreenda e respeite sua preocupação, aconselho-a que não faça nenhuma acusação infundada contra meu irmão. Bom dia, lady Ross. Meu lacaio a acompanhará à porta. Voltou a sentar-se e simulou estar lendo atentamente uma carta. Sua visitante deveria partir, aceitando a despedida. Mas nesse momento seu lacaio emitiu uma exclamação de consternação. Pela extremidade do olho conseguiu ver um movimento rápido; levantou a cabeça bem a tempo de ver o guarda-sol de lady Ross cortando o ar. Antes que alcançasse se por a um lado, o guarda-sol caiu com estrondo sobre a mesa, passando a poucos centímetros de sua cara, e com o impacto caíram quase todos os papéis esparramados sobre o tapete. - Não creia que me vai despedir como a um de seus criados, Wolverton -ladrou ela, enquanto ele a contemplava pasmo, incrédulo e com a boca aberta. - Conheço sua reputação. Em lugar de assistir às sessões do Parlamento, fica aqui em Yorkshire, sentado como um sapo, fazendo caso omisso de suas responsabilidades. Com esse exemplo, não é estranho que seu irmão se convertesse em um descarado. Seus grossos lábios se curvaram em um sorriso zombador. - Embora talvez seja melhor que não aproveite seu banco na Câmara dos Lordes. Sem dúvida suas opiniões fariam parecer compassivo a Atila, o Huno. Em toda sua vida Giles não fora nunca grosseiro com uma mulher, mas uns poucos minutos com lady Ross mudaram as coisas. Ficou de pé de um salto e se inclinou para ela com os punhos apoiados na mesa. - Compareço às sessões dos lordes sempre que se debate um assunto importante, mas a maior parte de minhas responsabilidades estão aqui. Não há melhor abono para a terra que o peso dos pés do proprietário, e administrar minha propriedade é um melhor emprego de meu tempo que jogar farol e assassinar reputações em Londres. Compreendendo tardiamente o imaturo de seu comportamento, acrescentou em um tom mais moderado: e não é que isto seja assunto seu. O guarda-sol se moveu e por um instante imaginou que ela ia usá-lo como um bastão de críquete. Mas não foi assim. - Perdoe-me - disse ela entre dentes. - Suas propriedades são famosas como modelos de cultivo progressista. Não deveria ter falado assim. E como se a desculpa houvesse a meio matado, continuou: - Sem dúvida seu irmão adquiriu seus horríveis vícios sem sua ajuda. - Sugiro-lhe que parta - respondeu Giles sem abrandar-se - antes que suas infundadas 37
acusações façam-me esquecer que sou um cavalheiro. Lamento o desaparecimento de sua sobrinha, mas não posso fazer nada para ajudá-la. - Fui uma estúpida ao esperar colaboração - disse ela em tom aborrecido. - Os homens de sua classe desonrariam a uma jovenzinha com a mesma despreocupação com que desprezam uma esposa. Vim aqui com a esperança de que lorde Robert tivesse encontrado a minha sobrinha em necessidade de amparo e se comportasse como um cavalheiro devolvendo-a a sua família. Em troca a levou com ele contra sua vontade e você encobre seu delito. Mas Máxima não carece de família e lhe juro que se lorde Robert tiver feito mal a ela ou a sua reputação, pagará. Uma horrorizada compreensão descendeu sobre o marquês. - Ou seja, é que disso se trata! Sua sobrinha sai resolvida a seduzir a lorde Robert. Logo vem você aqui a chorar e gritar dizendo que ele desonrou a uma inocente e que deve fazer-se justiça, com a esperança de que eu obrigue meu irmão a casar-se com ela. Bom, isso não vai resultar, senhora, nem comigo nem com meu irmão. Se ele partiu com ela foi porque ela estava bem disposta. - Inclinou-se com os largos ombros tensos de fúria. Escute bem, lady Ross, garanto-lhe pessoalmente que meu irmão nunca vai se casar com uma empregada fácil que tenha tentado caçá-lo. Se o guarda-sol de lady Ross tivesse sido uma espada, teria se produzido um assassinato. Seus olhos cinza jogaram faíscas. - Asseguro-lhe que não tenho a menor intenção de obrigar à garota a casar-se com um descarado degenerado, e que me oporei ao cabeça de família e a qualquer um que pudesse tentar obrigá-la. O que desejo é ver seu irmão em Newgate. Recorde, Wolverton: o sequestro é um delito que se castiga com a pena capital. Não creia que poderá comprar sua liberdade com sua influência. Eu também tenho minhas influências. Se ele cometeu um delito, encarregar-me-ei de que lorde Robert seja condenado com todo o peso da lei. Girou sobre seus pés e se dirigiu à porta com passos enérgicos, o guarda-sol empunhado como um pau. - Se seu irmão voltar aqui, dizendo que não sabe de nada disto, tenha a prudência de lhe aconselhar que parta da Inglaterra, imediatamente e para sempre. Quando lady Ross chegou à porta, o marquês recordou repentinamente quem ela era; uma reformista sabichona que contava com o favor de alguns dos políticos mais proeminentes de ambas os partidos. Ouvira falar dela durante anos e supôs, vagamente, que era muito mais velha. E resultava que a famosa e revoltosa reformista era vários anos mais nova que ele; provavelmente não passava muito dos trinta anos. Maldição, certamente podia ter a influência para causar considerável aflição à família Andreville, inclusive se Robin não tivesse feito nada ilegal. Soltou várias maldições em voz baixa e depois disse: - Lady Ross, espere um momento, por favor. - Sim? - disse ela em tom ameaçador, voltando-se para olhá-lo. Giles atravessou a sala para ela, dizendo com seu tom mais conciliador: - Não deveríamos nos ter deixado dominar pelo mau gênio. É natural que você esteja preocupada com sua sobrinha, mas de verdade, creio que está equivocada em suas afirmações. O que importa é localizá-la, e duvido que a encontre com meu irmão. Embora 38
existam certos homens cujo comportamento com as mulheres é censurável, Robin não é um deles. Arquearam-se as sobrancelhas castanho avermelhadas. - Está absolutamente seguro disso? Giles abriu a boca para dizer que sim, mas hesitou. De quantas coisas se pode estar absolutamente seguro na vida? - Isso não é uma confirmação convincente da honra de seu irmão - disse ela, irônica. - Não me cabe a menor dúvida a respeito da honra de meu irmão. - O calmo e honrado Giles se surpreendeu acrescentando: - Entretanto, algum de seus atos poderiam considerar-se pouco ortodoxos. - Quanto mais fala da honra de seu irmão, mais duvidas me entram a respeito. - Confiaria nele como confio em mim mesmo. Por um momento a cara de lady Ross se suavizou e Giles pensou que conseguiria convencê-la. Mas em seguida voltou para suas mandíbulas o trejeito de teimosia. - Você tem fama de homem justo e sua lealdade para com seu irmão é elogiável. Por desgraça, os homens podem ser honrados entre eles e, entretanto não dar nenhuma importância ao mau trato às mulheres. Se lorde Robert esteve fora da Inglaterra tantos anos, seriamente sabe do que ele é capaz? A condenada mulher tinha razão. Efetivamente ele acreditava em seu irmão e, entretanto sabia, e isso o perturbava, que Robin não teria podido sobreviver a doze anos de espionagem no centro do império napoleônico se não tivesse certa capacidade para a crueldade. - Robin foi formado por forças diferentes às que formam o mundo elegante inglês, mas estou seguro de que jamais faria mal a uma inocente. - Isso veremos - disse lady Ross com um encolhimento de ombros e se voltou para partir. - Não retrocederei em minha busca até encontrar a minha sobrinha. E se seu irmão lhe fez mal, que Deus o ampare. Dito isso saiu da sala. Giles ficou um comprido momento olhando a porta fechada; sentia-se como se lhe tivesse caído em cima o campanário da igreja. Nunca ninguém o fez enfurecer-se tanto, mas mesmo assim, não se sentia orgulhoso de como falara com lady Ross. Voltou para sua mesa agitando a cabeça. - O que pensa de tudo isto, Charles? - perguntou ao seu secretário, que esteve observando com horrorizada fascinação. Depois de uma breve vacilação, o secretário disse, com tato: - Creio que eu não gostaria que lady Ross se zangasse comigo. - E que se Robin andar tonteando com sua sobrinha poderia encontrar-se metido em água fervendo até o pescoço? - Isso eu temo, milorde - respondeu Charles com um pesaroso sorriso. O marquês se afundou em sua poltrona estofada em pele e ficou refletindo. Por absurda que parecesse a ideia, a desaparecida Máxima devia ir viajando a Londres a pé. Se não, lady Ross não estaria tão segura de que sua sobrinha se encontrava no sul de Yorkshire uma semana depois de ter saído de Durham. 39
Custava-lhe imaginar-se que uma jovem de boa criação empreendesse uma viagem assim; a moça devia estar desesperada ou louca ou era uma depravada. Ou talvez se tratasse simplesmente de que era norte-americana. O dia em que desapareceu, Robin planejava dar um passeio pelo bosque do oeste. Uma pessoa com rumo ao sul desde Durham poderia escolher o caminho que passava por em meio desse bosque. Robin estava à deriva emocionalmente; se tivesse se encontrado com uma jovem atraente e amalucada, poderia ter decidido impulsivamente ir com ela. Embora não fosse um descarado, tampouco era um santo, e não podia saber as possibilidades de escândalo que haveria ao acompanhar a essa jovem em particular. Robin teria pouco ou nenhum dinheiro em cima; Máxima Collins tampouco devia ter recursos, porque se não, teria pegado uma carruagem de aluguel para viajar. A Giles parecia tremendamente incômodo um interlúdio romântico sem ter plumas para voar, mas claro, ele era um conservador insípido. Poderia Robin ter decidido acompanhar à garota a Londres para protegê-la? Aferrouse à ideia aliviado; isso era exatamente o tipo de atitude quixotesca que seu irmão poderia ter. Entretanto, se a moça tinha vinte e cinco anos e estava bem disposta, muito em breve poderiam cercar uma relação muito mais íntima do que aprovaria a tia da garota. Lady Ross parecia mais agitada que o que merecia a situação. Talvez na história houvesse algo mais do que ela dizia. Mas claro, também cabia a possibilidade de que simplesmente fosse uma fera que adorava andar rugindo como uma tormenta de março. Recordando sua fúria, desculpou-a quando ele a acusou de conspirar com sua sobrinha para apanhar ao Robin, mas isso não queria dizer necessariamente que a jovem fosse inocente dessas intenções. Entre sua fortuna e seus atrativos pessoais, Robin era muito bom partido na realidade. Era possível que a moça se desse conta e decidisse aproveitar-se da situação. O marquês franziu o cenho e repassou seus pensamentos. Os fatos eram que Robin estava desaparecido e a senhorita Collins também, e que foram identificados juntos. A hipótese era que estavam viajando ao sul, rumo a Londres. Se encontrassem com algum problema no caminho, Robin estaria impedido por falta de dinheiro e identificação. Lady Ross ia em perseguição dos fugitivos, jorrando fogo e enxofre pelo nariz. Se os encontrasse, as consequências seriam condenadamente desagradáveis. Um escândalo machucaria a jovem muito mais que ao Robin, mas uma lady Ross vingativa poderia estar muito furiosa para dar importância a isso. Talvez ao Robin fosse indiferente a perspectiva de um escândalo; mas a ele, certamente não. Embora ele fizesse frente às fofocas em caso de necessidade, seria muito melhor manter todo o assunto em segredo se fosse possível. O que significava que deveria ir atrás dos fugitivos em pessoa. Com sorte, encontrá-los-ia antes que lady Ross, a tempo de evitar o desastre. Se a Inocente Resguardada insistisse que só o matrimônio a salvaria da desonra, bom, ele teria algo que dizer sobre isso. Além de motivar a felicidade pessoal de seu irmão, sua esposa seria provavelmente a mãe do futuro marquês de Wolverton, e ele nunca permitiria que o sangue de uma vulgar e intrigante desavergonhada manchasse sua linhagem. 40
Melancolicamente pensou no muito que lhe chateava viajar: longas horas metido em uma carruagem desconfortável, lençóis úmidos, comidas escassamente comestíveis. E nem sequer tinha um bom ajudante de câmara nesses momentos, posto que o anterior partiu e ainda não encontrou substituto. Além dos desconfortos de rotina, ia se sentir como um condenado idiota seguindo por todo o campo a uma desavergonhada norte-americana, um espião aposentado e uma reformista soltando faíscas. Enquanto considerasse as perspectivas de seu futuro imediato, o marquês do Wolverton percebeu que estava sorrindo.
CAPÍTULO 6
Maxie acomodou o chapéu de forma que a protegesse do sol, aproveitando o movimento do braço para olhar dissimuladamente de lado o seu acompanhante. E voltou a sentir-se apanhada em um desses estranhos momentos de inexplicável emoção, que estavam acostumados a produzir-se quando olhava Robin. Era muito formoso, muito enigmático para ser real. E na realidade não era difícil falar com ele. Pelo contrário, Robin era o único homem que conheceu com quem lhe resultava tão fácil conversar como com seu pai. Quando Robin se cansava do silêncio, emanavam dele as palavras engenhosas como um rio borbulhante. Arrastava-a a conversar sobre a paisagem, sobre o bom tempo, as lamentáveis guerras entre seus países e, entretanto jamais dizia nenhuma maldita coisa sobre si mesmo que ela pudesse acreditar. Deus santo, ela ainda não sabia nem seu verdadeiro nome. Jamais voltaria a supor que misterioso significava silencioso. Mais estranho ainda era o fato de que se comportasse como um perfeito cavalheiro, tão perfeito que estava começando a pensar se a estranha não seria ela. E não era que desejasse que ele tentasse seduzi-la, mas pelo menos esse era um comportamento que compreendia. O assunto era que tinha um companheiro encantador absolutamente incompreensível. Todo isso lhe resultava bastante desconcertante; além disso era muito fácil esquecer devido ao seu encanto, que Robin era fundamentalmente um patife indigno de confiança. Quando, passaram uma curva e o caminho entrou em um bosque, Robin rompeu o silêncio. - Contei-te a vez que trabalhei em um circo na Áustria? Ela sorriu, pensando o que inventaria desta vez. - Ainda não. Parece que seu repertório de histórias entretidas e absolutamente incríveis é ilimitado. Conte-me do circo. Sem dúvida foi a estrela da corda bamba. - Não, isso não - respondeu ele amavelmente. - Os cavalos são muito mais fáceis, de modo que me limitei a fazer temerárias piruetas cavalgando. Meu número cossaco foi 41
muito admirado. - Robin, alguma vez diz a verdade? Ele a olhou com expressão ofendida. - Qualquer parvo pode dizer a verdade. Necessita-se de verdadeiro talento para ser um bom mentiroso. Ela estava rindo quando da espessura saíram dois cavaleiros em meio de um clamor de gritos e ruídos de cascos de cavalo. Os cavaleiros se separaram; um parou bruscamente diante deles e o outro ficou detrás, enquanto os rodeavam nuvens de pó pedregoso levantadas pelos cascos dos cavalos. Os dois usavam máscara e sustentavam pistolas nas mãos. - Mãos acima! - gritou o chefe. - A bolsa ou a vida! Era um homem musculoso e loiro, com olhos de furão, que brilhavam nos buracos da máscara. O coração de Maxie doeu de medo. Embora estivesse disposta a enfrentar os perigos do caminho, em realidade não esperou encontrar-se com bandoleiros armados. Esses dois pareciam muito nervosos e muito, muito perigosos. Ao seu lado, Robin levantou as mãos. - Têm que estar muito mal para roubar a gente como nós - disse tranquilamente - com o modo de falar de um lavrador. Não levamos nada digno de roubar. Iria melhor no Grande Caminho do Norte, com as carruagens elegantes. - Muito tráfego lá - grunhiu o homem que estava detrás. Corpulento e de cabelo negro, tinha a pistola apontada ao peito do Robin. - Seria fácil nos matar. - Os tempos são difíceis - acrescentou o homem loiro. É melhor um par de xelins que nada. Jem, revista-os. Jem desmontou e revistou os bolsos do Robin, onde encontrou um punhado de moedas. Depois de pinçar a mochila, disse irritado: - Não mentia nisso de que não tinha muito. O loiro fez um gesto com a pistola. - Reviste o moço. Talvez ele leve os objetos de valor porque parece o menos provável. Maxie se manteve rígida enquanto Jem a revistava, rogando que não lhe apalpasse as curvas nada masculinas ocultas sob suas folgadas roupas. Embora mentalmente aceitasse a possibilidade de violação, essa objetividade lhe resultava impossível quando um delinquente lhe estava passando as mãos pelo corpo e lhe jogando o pestilento fôlego de cerveja na cara. Felizmente as tiras com que se esmagava os peitos impediram o homem descobrir o sexo de sua vítima. Tampouco encontrou a faca em sua bota. Mas sim localizou rapidamente os bolsos interiores de sua jaqueta. Tirou a gaita. - O que é isto, Ned? - Uma espécie de instrumento que se toca com a boca - respondeu Ned. - Poderíamos lhe tirar um ou dois xelins. Maxie tragou o protesto mordendo-a língua. Pelo menos o homem não encontrou os brincos que estavam no mesmo bolso. Resultou-lhe mais difícil sossegar o protesto quando 42
Jem encontrou o relógio de seu pai. Soltou um assobio quando o tirou. - Tinha, razão, o moço tinha os objetos de valor. Isto é ouro, e vale um bonito centavo. - Dê-me isso. Jem lhe entregou o relógio. Depois de examiná-lo, Ned assentiu agradado e o meteu no bolso interior da jaqueta. - Agora reviste o pescoço. Usa uma corrente de prata. Maxie foi para trás aterrada quando Jem colocou seu sujo dedo debaixo da corrente e agarrou o crucifixo. - Bom, que me pendurem se este não foi nosso dia de sorte. Abriu o fecho, tirou-lhe a corrente do pescoço e a colocou com o crucifixo no bolso. - Não! - suplicou ela. - Não me tirem isso. Era de minha mãe; é o único que tenho dela. - Lastimo - disse Jem com uma desagradável risada, e começou a mexer na mochila. Cega de raiva, estava a ponto de agachar-se a agarrar sua faca quando Robin lhe agarrou o cotovelo. - Não vale sua vida - sussurrou-lhe em tom brusco. Ao ver seu olhar enfurecido, acrescentou. - Pensa, caramba! Quereria sua mãe que morresse por uma corrente de metal? Essas palavras lhe limparam a mente. Elevou a vista e viu o canhão da pistola do Ned apontando-a. - Dá um passo para o Jem e será morto, moço - disse-lhe com um sorriso ruim. Acariciou o gatilho de sua pistola. - Talvez mate aos dois, antes que vão informar ao magistrado. Maxie sentiu como se esticava a mão do Robin em seu braço, mas quando falou o fez com voz tranquila: - Deixem dois cadáveres no caminho e lhes vão procurar até lhes encontrar. Será mais fácil se nos deixarem vivos. Não ou creio que consigamos chegar à cidade com a rapidez suficiente para lhes criar problemas. - Suponho que tem razão - disse Ned, com um indício de pesar. Maxie soltou um suspiro de alívio. Ao ver que estava controlada, Robin lhe soltou o cotovelo. - Este foi um roubo condenadamente bom - disse Jem dando-se tapinhas no bolso. Teremos que roubar com mais regularidade os caminhantes. - Jem - chamou Ned - agarrou tudo de valor? - O que te parece a jaqueta deste tio? Te assentaria muito bem. Ned olhou a jaqueta azul de Robin, usada mas de bom corte. - Tem razão, deve tê-la comprado de segunda mão, porque não a fez nenhum alfaiate de povoado. A esse tio Brummel não envergonharia usar uma jaqueta assim. Fez um gesto ao Robin com a pistola. – Tire isso. Parecia que havia ficado teimoso. - Roubar roupas a um homem é uma baixeza. Se quiserem minha jaqueta terão que me tirar isso. - Robin, tenha mais juízo - exclamou Maxie horrorizada. - Se me dispararem, os buracos e o sangue a danificarão - respondeu ele 43
tranquilamente. Aceitando o argumento, Ned ordenou: - Tire-a. Jem sorriu de orelha a orelha e esfregou o punho direito contra a palma esquerda, saboreando de antemão a perspectiva. Depois, com repentina selvageria, enterrou seu maciço punho no abdômen do Robin, e imediatamente lhe deu outro murro no peito. Afogando uma exclamação de dor, Robin se dobrou para diante caindo sobre seu assaltante, ficando meio pendurado nele. Com um grunhido, Jem o separou de um empurrão e lhe tirou a jaqueta. Robin se submeteu mansamente, com o rosto lívido e os ombros trêmulos, tentando recuperar o fôlego. Maxie sentiu desejos de golpeá-lo por sua estúpida obstinação. Jem lançou a jaqueta ao seu companheiro. Ned assentiu agradado e lhes indicou o caminho com a pistola. - Ponham-se a andar enquanto me sinto misericordioso. Maxie recolheu as duas mochilas do chão poeirento, agarrou o braço ao Robin e puxou, levando-o a reboque pelo caminho. Ele continuava dobrado e respirando com dificuldade. - Idiota! - gritou ela. - Como te ocorre armar problemas por uma jaqueta? Ao menos o crucifixo de minha mãe significava algo. Já quase chegaram na curva seguinte quando soou um disparo e imediatamente saltou pó mais ou menos a meio metro dos pés de Robin. Pelo rugido de risada que soltaram os bandoleiros, Maxie compreendeu que o disparo era mais para chatear que para matar, mas de todos os modos se apressou a puxar seu companheiro pela curva para que os perdessem de vista. Tão logo dobraram a curva, Robin se endireitou, desaparecido todo rastro de lesão ou dor. - Tomemos este atalho. Temos que desaparecer rápido, antes que se dêem conta do ocorrido - disse em tom cortante, agarrando sua mochila das mãos do Maxie. - Que demônios diz? -perguntou ela olhando-o furiosa. Ele sorriu e lhe mostrou as mãos abertas. Na esquerda tinha o crucifixo de sua mãe e um maço de notas, e na direita sua gaita. Ela olhou os objetos boquiaberta. - Como os recuperou ? - Limpei-lhe os bolsos, é obvio. - Entregou-lhe o crucifixo e a gaita e colocou o dinheiro em sua mochila. Entrou no atalho a trote rápido. - Vamos, não temos tempo a perder. - Limpou-lhe os bolsos? Depois de um momento de assombro, Maxie guardou nos bolsos interiores da jaqueta suas posses e pôs-se a correr atrás dele. - Robin, é uma vergonha. - Deus me perdoará - disse ele, olhando-a risonho, esse é seu ofício. - Só lamento não ter recuperado o relógio - acrescentou mais sério, mas não me ocorreu nenhuma maneira para me aproximar de Ned sem que suspeitasse. - Santo ceu, procurou deliberadamente os golpes para recuperar o crucifixo. E ela o 44
considerou estúpido. Como ladrão de carteira era de primeira classe; ela estava ali e não viu nada. Desprezou a pergunta de onde aprendeu essa habilidade tão horrorosa. - Não importa - disse em troca. Te deixar golpear ultrapassa em muito a chamada do dever. Enquanto subia uma escada para pular uma cerca, lhe disse: - Jem não me golpeou tão forte como imaginou. Ela o seguiu pela escada e saltou agilmente ao outro lado. - O que quer dizer? - Assim como há formas de golpear há formas de receber os golpes - explicou ele vagamente. - De todos os modos tem que te ter doído. Obrigado por correr esse risco. O crucifixo significa muitíssimo para mim. - Emitiu um som mesclado de diversão e de exasperação. Tem os instintos de um cavalheiro, de um gravemente torcido. - Há muitos que estariam de acordo com você - sorriu ele. Ela lamentou o comentário, mas antes que pudesse desculpar-se, ele continuou: - Boa coisa que esta zona seja um labirinto de campos e bosques; tem que ser fácil desaparecer. Creio que deveríamos virar para o norte. Se nos seguirem, o mais provável é que suponham que continuamos para o sul, posto que é para lá íamos. Aos seus ouvidos chegou um grito de fúria proveniente do caminho. Maxie fez um gesto de preocupação. - É hora de deixar de falar e começar a correr. Durante as duas horas seguintes serpentearam pelos silenciosos campos em um passo exaustivo, a momentos correndo, a momentos caminhando. O sol estava caindo para o horizonte ocidental quando chegaram ao topo de uma colina da qual se via um caminho importante. Nele viram duas carretas, um homem, um burro e várias vacas a passo lento. Isso significava que essa rota tinha mais tráfego e, portanto era mais segura que os caminhos tranquilos que vieram seguindo. Os dois se detiveram. A Maxie tremiam todos os músculos do corpo. Deixou a mochila no chão e rodeou a cintura de Robin com o braço esquerdo para apoiar-se. Quando sentiu o braço dele sobre seus ombros, lhe ocorreu que talvez seu gesto fora meio atrevido. Mas o achou natural, porque compartilhar o perigo criou camaradagem entre eles. Depois de uns deliciosos momentos de relaxamento, perguntou em um suspiro: - Acredita que agora estamos a salvo? - Duvido que tenham podido nos seguir até aqui - respondeu ele com o peito agitado. - Talvez preferissem economizar forças para os seguintes viajantes. - Deveríamos denunciá-lo às autoridades - disse ela carrancuda. - E lhes dizer o que? Têm que saber que há bandoleiros no distrito. Quando conseguirmos dar a informação, Jem e Ned já estarão muito longe. Pôs-se a rir. Creio que lhes surrupiamos quase dez libras. Se não fosse pelo relógio, eu diria que tiramos a melhor parte do encontro. Maxie começou a rir deixando cair a cabeça no ombro dele. - Imagina a expressão da cara do Jem quando descobriu que tinha os bolsos vazios? 45
Enganou-o como a um parvo! - O Criador me modelou para fazer isso. Ela riu a gargalhadas. Ele também começou a rir, aumentando a pressão sobre seus ombros quando os dois se entregaram à desinibida hilaridade do alívio que sentiam. Ela levantou a cabeça para falar no mesmo momento em que ele inclinava a sua para olhá-la. A camisa lhe abrira no pescoço, deixando a descoberto uma pequena extensão de peito nu, e na frente lhe aderiram várias mechas de brilhantes cabelos um pouco frisados. Era formoso e cheio de vida e Maxie o desejou como jamais desejou a nenhum homem em sua vida. - Seu senso de humor é blasfemo - comentou com voz débil desejando desviar a atenção. - A blasfêmia é uma de minhas especialidades - respondeu ele sorrindo. Levantou a mão livre e lhe roçou brandamente os lábios com os dedos. Ela os tocou com a ponta da língua; teve a impressão de que o sabor salgado o fazia parecer mais real, menos enigmático. Ele fez uma inspiração entrecortada e lhe rodeou a nuca com a mão, lhe inclinando a cabeça para beijá-la. Sua boca era quente, sua língua, uma deliciosa tortura; com a mesma naturalidade com que respirava, ela abriu a boca. O beijo se fez mais profundo e o desejo lhe percorreu o corpo como uma espiral, lhe fazendo fraquejar as pernas. Fechou os olhos e lhe acariciou a nuca, enrolando os sedosos cabelos nas pontas de seus dedos. Ele sussurrou seu nome, com um som saído do fundo de sua garganta. Deslizou a mão direita por suas costas, lhe esquentando a coluna e apertando-a mais contra ele. Acariciou-lhe o torso, abrindo e fechando as mãos, lhe pressionando sobre a fina camisa de linho. Pensou que era frio, mas não havia nada frio em sua boca nem em suas mãos e nem seu premente corpo. Maxie ficou nas pontas dos pés e lhe rodeou o pescoço com ambos os braços; ao jogar a cabeça para trás lhe caiu o chapéu, e sentiu o ar frio na cabeça desprotegida e em sua pele, que quase não era capaz de conter seu ensurdecedor sangue. Ele introduziu a mão dentro de sua jaqueta e lhe acariciou a curva do quadril. O relincho de um cavalo a fez recuperar o juízo; em uma quebra de onda de incredulidade, caiu na conta de que estava beijando a um ladrão de carteira, a um patife que talvez nem sequer recordava qual era seu verdadeiro nome. E não só o estava beijando, estava-o devorando, saboreando, como a primeira parte de açúcar de arce na primavera depois de um comprido e frio inverno. Abriu os olhos e retrocedeu um passo, empurrando-o pelos braços, ao tempo que inspirava para recuperar o fôlego. Olharam-se aos olhos e ela viu nos dele essa espécie de escura preocupação que viu já uma ou duas vezes antes. Pressentindo perigo, instintivamente se retirou a terreno mas seguro. - Vê-te muito chamativo sem jaqueta. Quanto acreditas que demoraremos para chegar a uma cidade onde possa comprar outra? Ele fez uma funda inspiração e lhe arrumou a expressão. - Creio que esse caminho leva a Rotherham - disse com sua voz habitual. - Ali haverá uma loja de roupas usada, se não antes. 46
Ela se agachou a recolher a mochila e o chapéu e o pôs bem inclinado para ter os olhos à sombra. - O assalto e termos tido que voltar para o norte nos atrasou facilmente meio-dia. - Poderia nos ter custado muitíssimo mais - disse ele recolhendo sua mochila. Ela pensou no beijo; sim que lhes havia custado muitíssimo. Por muita energia que pusessem os dois em simular que não ocorreu nada, as coisas haviam mudado entre eles e não para melhor. A descida pela ladeira da colina para o caminho, dedicou-o a refletir se seria prudente arriscar-se a continuarem a viagem juntos. Desdêmona olhou pelo guichê da carruagem sem nenhum entusiasmo. Estava francamente farta das paisagens, mas logo acabaria sua busca. Na última aldeia lhe deram descrições exatas de Máxima e de seu libertino acompanhante. Não podiam estar a mais de duas horas de caminho. Se continuassem por essa rota, ela lhes daria alcance ao final da tarde. Boa coisa que não soubessem que os seguiam. Esperava que lorde Robert não ficasse violento quando ela arrancasse a Máxima de suas garras. Embora isso não importasse; seu cocheiro e seu guarda eram ex-soldados e seriam capazes de dar boa conta do patife que não fez nem um só trabalho honrado em sua vida. Desdêmona tentou não considerar a possibilidade de que Máxima desejasse continuar nas garras do homem. Certamente ela não podia raptar a sua sobrinha, nem que fosse por seu bem. Mas se tinha que abandoná-la ao seu destino, pelo menos teria a satisfação de saber que a garota atuava por livre vontade. Suas elucubrações foram interrompidas por um estrondo de cascos de cavalos e um rouco grito: - Alto! A bolsa ou a vida! Sua criada Sally, que esteve dormindo uma cabeçada em um canto, despertou soltando um chiado. - Ao chão! - ladrou-lhe Desdêmona. Depois se lançou ao compartimento onde levava as pistolas, essenciais em uma carruagem de viagem e agarrou uma. Fora soou um disparo e a carruagem se deteve com uma sacudida; os cavalos começaram a relincharem nervosos. Tremeram-lhe os dedos enquanto carregava e martelava a arma. Mas, ocorresse o que ocorresse, estaria preparada. Reclinado no cômodo assento de sua carruagem, o marquês do Wolverton ia meio adormecido, pensando que pelo menos essa ridícula perseguição se desenvolvia quando o tempo era bom e os caminhos estavam em boas condições. Bocejou, cobrindo automaticamente a boca embora ia sozinho, já que deixou Charles em Wolverhampton a cargo dos assuntos de rotina. Não sabia muito bem se ia bem encaminhado na perseguição dos fugitivos, mas sim sabia que estava muito perto de lady Ross; uma carruagem com lados amarelos era muito mais fácil de seguir que dois caminhantes poeirentos. Pela mente lhe passou a pergunta de 47
como reagiria ela quando se inteirasse de que ele se uniu à perseguição; oxalá não tivesse nenhum objeto bicudo à mão se isso ocorresse. Estava a ponto de ficar dormindo quando uma estrondosa saraivada de disparos rompeu o silêncio. Alerta imediatamente, abriu o guichê e perguntou. - Consegue ver o que ocorre? - gritou ao seu cocheiro. - Parece que mais adiante há uma tentativa de roubo, milorde - gritou o cocheiro. Suponho que não deseja que voltemos para evitar a refrega. - Supõe bem. Se prepare para intervir se for necessário. Giles tirou de sua capa uma das pistolas da carruagem. Enquanto a carregava pensou se não seria lady Ross a vítima. Seguro que não. Entretanto, ela não ia muito mais adiante que ele, e uma carruagem como o seu seria um objetivo importante. Deus santo, era provável que começasse a repreender aos bandoleiros e a matassem pelo sermão. A carruagem deu um giro brusco e se deteve para evitar se chocar com outro que estava atravessado no caminho. Giles abriu a porta e saltou ao chão. Um instante depois lhe uniu seu guarda, que levava uma carabina colhida com ambas as mãos. Por diante deles passou correndo um cavalo sem cavaleiro que se internou no bosque. Sim, era uma carruagem com lados amarelos, mas não era necessária sua ajuda. Lady Ross estava olhando um corpo esparramado no chão enquanto seu guarda examinava outro corpo um pouco mais à frente. O ar estava impregnado do aroma metálico do sangue, e os dois cocheiros tinham trabalho em manter controlados os cavalos nervosos. Foi um alívio para Giles encontrar sã e salva a lady Ross. Teria sido uma terrível perda que essa esplêndida fera tivesse morrido de modo tão inútil. Ela levantou a vista e o reconheceu. Face à hostilidade de seu primeiro encontro, pareceu contente de ver uma cara conhecida. Ele desceu sua pistola e se aproximou. - Estão bem você e sua gente? Ela assentiu e tratou de responder, mas não lhe saiu nenhuma palavra. Tragou saliva audivelmente. - Os bandoleiros não esperavam encontrar muita resistência. Eram um par de amadores. Levantou a mão para arrumar o chapéu e de repente deteve o movimento e olhou fixamente a pistola que tinha na mão. - Santo Deus - exclamou Giles. - Matou? - Por sorte não chegou a isso. - Sorriu, embora o sorriso era mais uma careta. - Meus homens são veteranos da Península. Tinham dificuldades para encontrar trabalho e pensei que lhes faria um favor contratando-os. Nunca imaginei que minha boa obra seria recompensada de modo tão dramático. - Esse é um bom argumento para fazer caridade. Olhou o corpo que estava junto a carruagem. Os dois ladrões estão mortos? - Creio que sim. Giles observou ao bandoleiro caído e de repente o coração lhe deu um tombo; tinha o cabelo muito loiro, um pouco mais comprido que o normal. Não, não podia ser... Olhou-o 48
fixamente, com o pulso acelerado. - Essa jaqueta... - disse entre dentes. - É igual a que levava Robin no dia que desapareceu. E o cabelo se parece o bastante. A longas pernadas se aproximou do cadáver. Desdêmona afogou uma exclamação. O morto não podia ser lorde Robert, não é? Embora não era insólito que alguns jovens nobres amalucados brincassem de ser bandoleiros; além disso, estes não lhe pareceram muito destros em seu ofício. Horrorizada, deu um olhar ao outro cadáver, mas viu que de maneira nenhuma podia ser Máxima. Isso não significava que o homem loiro não fosse lorde Robert. Enfureceu-a a ideia de que se o patife pudesse ter cometido esse ato tão frio e irresponsável, não se parecia em nada ao seu irmão. O marquês se ajoelhou junto ao cadáver do bandoleiro e lhe deu a volta para lhe ver a cara. Então soltou o fôlego, desceu a cabeça e se cobriu a cara com uma mão. A raiva da Desdêmona se desvaneceu, substituída por compaixão. Ela também viu essa cara destroçada e ensanguentada e sabia que apareceria em seus pesadelos. Aproximou-se do marquês e lhe pôs brandamente uma mão no ombro. - Sinto muito, Wolverton. É seu irmão? - Não. - Giles levantou a cabeça, fazendo um esforço visível para recuperar a serenidade. - Mas por um momento pensei que poderia ser ele. Senti-me aliviado quando vi que estava equivocado. Ou seja que o marquês defendia ao seu irmão não só por lealdade familiar mas também por carinho. O que teria feito o caprichoso lorde Robert para merecer esse carinho? - Acreditou seu irmão ser capaz de um ataque no caminho? - É obvio que não - respondeu Wolverton, com um gesto de impaciência. - Essa hipótese foi absurda. Olhou a jaqueta do homem e tocou a manga. Mas estou disposto a apostar que esta jaqueta é do Robin. Pelo corte se vê que é francesa, não inglesa. - Eu gostaria de saber como demônios a usa este homem. - Talvez seu irmão a ofereceu em venda e este vilão a comprou. - Não sei se acredito nesse tipo de coincidências. Com expressão resolvida, o marquês começou a revistar os bolsos do morto. Encontrou várias moedas, uma navalha dobradiça e um relógio de ouro, mas nada com o poder de identificar o bandoleiro. Desdêmona viu o relógio e franziu o cenho. - Deixe-me ver esse relógio, por favor. O marquês o passou e ela abriu a tampa com uma unha. No interior da tampa estava gravado o nome «Maximus Benedict Collins». Em silêncio o mostrou ao marquês, que ao vê-lo emitiu um suave assobio. - Este relógio era de seu irmão? Ela assentiu. - Foi um presente de aniversário, creio que, quando completou os dezoito. Quando morreu deve ter passado a Máxima. - Olhou preocupada ao marquês. - Não suporá que... que... roubaram-lhes e logo os mataram, não é? 49
Os olhos azul ardósia do marquês se obscureceram até quase parecer negros. - Duvido - disse ficando de pé. - Não havia nenhuma necessidade de matar duas pessoas desarmadas. Além disso, na última aldeia viram vivos Robin e sua sobrinha. Qualquer assalto com assassinato teria que ter ocorrido nos últimos quilômetros, e não vi nenhum sinal disso. Provavelmente houve roubo, e a jaqueta e o relógio formam parte do saque. Ela apertou na mão o relógio de seu defunto irmão. - Os homens cruéis não necessitam de nenhum motivo, e disparar em duas pessoas e esconder seus corpos não deixaria muitos rastros. O marquês franziu o cenho. Sabia isso tão bem como ela, e teria preferido que não o houvesse dito. - É possível, mas improvável. Robin é bom para escapar dos problemas. Não creio que se deixou assassinar com tanta facilidade nem que tenha deixado de proteger a uma jovem que está ao seu cargo. - Ou seja, lorde Robert tem uma grande experiência em escapar dos problemas. Os homens honrados não necessitam dessas habilidades - comentou Desdêmona com desavença. - O dinheiro e a influência salvaram a muitos peixes soltos da água quente, mas desta vez não vão salvar ao seu irmão. O marquês devia estar igualmente nervoso, porque replicou: - Se sua sobrinha chegar a Londres sã e salva, se deverá ao amparo de meu irmão, porque ao que parece ela carece de sensatez e moralidade. Que tipo de jovem de boa criação lhe ocorreria atravessar a pé toda a Inglaterra? Embora ao menos tivesse o juízo de fazer-se amiga de um homem capaz de ajudá-la a chegar ali. - Não se tem feito amiga dele, ele a obrigou! - rebateu Desdêmona. - Você deve estar preocupado pelo comportamento de lorde Robert, se não, não iria me seguir. - É você que me preocupa não meu irmão - replicou ele elevando a voz. - Depois de sair de Wolverhampton feito furacão, decidi que devia tentar proteger a mulher mais teimosa e vingativa que conheci em toda minha vida. É evidente que você já decidiu o que ocorreu, sem um pingo de provas reais. - A quem chama de mulher teimosa e vingativa? Ao dizer isso, Desdêmona levantou bruscamente a mão, tentando resistir ao desejo instintivo de puxar a orelha de Wolverton. Mas esqueceu a pistola. Quando apertou os dedos, a pistola disparou com um estrondo e a bala passou quase roçando ao marquês. Um dos cocheiros lançou um grito, e os dois guardas deixaram o que estavam fazendo e correram para eles. - Meu Deus! - exclamou o marquês, fazendo um movimento instintivo para se esquivar do impacto. - Ficou louca? Ela soltou a pistola, seu chapéu e apertou as têmporas com as mãos, tremendo violentamente, toda inteira. - N-não...não quis fazer isso - gemeu, a ponto de desmaiar. - Esqueci que tinha a pistola. Olhou a pistola, que estava no chão, meio coberta no pó e ainda fumegante. - Juro diante Deus que foi um acidente. Wolverton fez um gesto aos guardas para que se afastassem, agarrou-a pelo braço e a 50
ajudou a caminhar até a carruagem. Ela pensou que ele ia lhe dar uma surra, mas ele a fez sentar no degrau superior do estribo e lhe empurrou a cabeça para baixo até apoiar-lhe nos joelhos. - Leva conhaque na carruagem lady Ross? -perguntou olhando para o interior da carruagem. A criada respondeu que sim. Um minuto depois, Wolverton lhe pôs na mão a garrafinha. - Beba isto. Ela levantou a cabeça, bebeu um gole e tossiu, mas lhe limpou a cabeça. - Tenho um gênio horroroso - disse-lhe lamentando, olhando-o à cara - e com muita frequência digo coisas que depois lamento, mas jamais tentaria fazer mal a ninguém. - Acredito - respondeu ele em tom tranquilizador. - Se tivesse sido sua intenção me disparar, eu agora estaria no pó sangrando. - Por favor, não diga isso - disse ela, estremecendo ao imaginar a cena. - Sinto muito. - Giles agarrou a garrafinha, bebeu um bom gole e a devolveu. - Nós dois estamos alterados, e é compreensível. Mas, de verdade, estou seguro de que nossos fugitivos estão bem. Ela esboçou um débil sorriso. - Espero que tenha razão. Suponho que devo levar os cadáveres dos ladrões à cidade mais próxima e informar do incidente ao magistrado. Com sorte, no caminho encontrarei Máxima e lorde Robert. É possível que já estejam fartos de aventuras, se lhes acabarem de roubar todos os objetos de valor. - É possível. - Wolverton se endireitou. - Também é possível que tenham tomado um atalho no campo através de um caminho mais transitado, de modo que vou buscá-los em uma rota paralela. Desdêmona assentiu, sabendo que ela e o marquês não eram aliados, mesmo que se tratassem com cortesia no momento. - Se os localizar, poderia enviar a um mensageiro para me buscar? Para saber se Máxima está bem. - De acordo. Agradecer-lhe-ia que você fizesse o mesmo. -É obvio - respondeu ela, levantando-se. - E... Obrigado, Wolverton, por estar disposto a ajudar a uma viajante que podia estar em dificuldades, e por ser tão tolerante com o que poderia ter sido um engano fatal da minha parte. Ele sorriu e ela comprovou que na realidade ele era muito bonito, quando não o tirava de gonzo. - Lady Ross, minha vida se tem voltado imensamente mais emocionante desde que conheci você. Deu meia volta e caminhou para a sua carruagem, recolhendo seus criados com um olhar. Ela o observou partir com sentimentos desencontrados. Sua busca complicava a dela, mas não lhe desagradava a ideia de que pudesse voltar a vê-lo.
51
CAPÍTULO 7
Duas horas depois de ter iniciado a marcha rumo ao sul pelo caminho do Rotherham, um granjeiro taciturno se ofereceu a levá-los em sua carruagem. Robin aceitou pelos dois, posto que acordaram que quanto menos ela falasse, melhor. Maxie se apressou a subir sem agarrar-se da mão que lhe oferecia Robin, e se acomodou no oco formado por dois sacos de grãos de milho. Depois cobriu a cara com o chapéu e, com excelente representação, fez como que ficava adormecida. Robin se acomodou também, usando a mochila por travesseiro, e olhando-a com o cenho franzido. Maxie não o olhara nos olhos nenhuma só vez desde que se beijaram. Compreendia que estivesse acovardada, porque ele também estava. O que começou sendo um abraço impulsivo e afetuoso se converteu em um beijo abrasador. Emoções adormecidas tanto tempo que até lhes esqueceu o nome estavam despertando à vida, e lhe resultavam condenadamente incômodas. Quanto tempo fazia que não desejava verdadeiramente a alguém, ou algo? Muito. Observou a sua companheira. Pobre Maxie; nenhuma mulher tão decidida e prática como ela pensaria numa relação amorosa com um vagabundo. Entretanto, participou entusiasmadamente nesse beijo e o lamentava. Sem dúvida não era o tipo de pessoa que perdesse tempo em sentir-se culpada; o mais provável era que tivesse medo de que ele a acossasse com cuidados. Teria que convencê-la da nobreza da sua natureza. Essa ideia o fez sorrir irônico. Nobre não era, mas em seu próprio interesse se proibia de qualquer intento de seduzi-la. Certamente, tentar levá-la a cama destruiria essa camaradagem que o fazia sentir-se mais feliz do que se sentia há muito, muitíssimo tempo. E não era que não a desejasse; desde o começo ela o fascinou e a partir desse beijo sua percepção de toda ela era obsessiva: o ritmo de sua respiração, as bem formadas pernas, marcadas pelas calças, suas miúdas mãos morenas, tão fortes como delicadas e ágeis. Era tão consciente de sua feminilidade sedutora que lhe custava recordar que o mundo a via como a um menino. Mas era seu espírito o que mais o atraía; sua radiante clareza o fazia sentir-se mais jovem, menos estragado. Tratou de não pensar no que ocorreria quando a viagem terminasse. Era evidente que Maxie tinha um objetivo em sua cabeça, e este não o incluía. Mas ia resistir muitíssimo a não vê-la nunca mais. Mas o que podia lhe oferecer? Ela o acreditava um vagabundo inútil, e preferia que o considerasse assim, já que seu verdadeiro passado era muito mais feio do que ela imaginava. Sendo norte-americana não a impressionaria muito o berço aristocrático nem a fortuna que tanto significavam para as jovens inglesas. Mas bem seria o contrário, suspeitava. Era melhor que o considerasse um mau partido sem remédio; sua pobre opinião dele a salvaria de fazer alguma tolice se lhe falhasse a força de vontade e tentasse voltar a beijála. De repente se deu conta de que estava observando o movimento de seu peito ao respirar. Como seriam sem a atadura que lhe esmagava os peitos? Maldição! Obrigou-se a desviar a vista ao notar como reagia seu corpo a suas 52
especulações. Embora era um prazer voltar a sentir desejo, se não tomasse cuidado este aumentaria até o extremo de lhe doer. Suspirando se reclinou nos sacos de milho e começou a pensar em como poderia restabelecer a boa relação com sua receosa companheira. No povoado seguinte havia uma loja onde encontraram uma jaqueta decente e um chapéu para Robin. Depois de tomar uma comida quente no botequim do povoado, continuaram seu caminho em direção ao sul. Pouco antes do pôr-do-sol, Robin lhe assinalou um pequeno celeiro no extremo mais afastado de um campo. - Procuremos refúgio ali para passar a noite. Vê-se convenientemente isolado. - De acordo. Imediatamente ela pôs-se a andar através do campo, perguntando-se, bastante nervosa, o que ocorreria a seguir. Embora Robin continuou comportando-se com sua habitual naturalidade, ela não conseguia esquecer esse desconcertante beijo, nem a vergonhosa forma como ela respondeu. O celeiro resultou ser bastante cômodo; havia uns poucos buracos por onde entrava o ar, e um cheiroso feno. - Ocorreu-me a ideia de escrever uma guia para viajantes pobres - disse Robin enquanto examinavam o lugar, avaliando os relativos méritos dos diversos celeiros e sebes. - Acredita que haveria compradores? Ela deixou sua mochila junto à parede oposta à porta, o mais longe possível de onde ele deixou suas coisas. - Os que necessitassem dessa guia não poderiam se permitir o luxo de comprá-lo respondeu. - Mmm, eu já sabia que tinha que haver algum defeito. E aí me afunda outro plano para fazer fortuna. Ela quase sorriu, mas recordou que estava tentando parecer severa, para que ele não interpretasse como convite sua debilidade dessa tarde. - Irei recolher lenha - disse passando ao seu lado. Robin foi procurar água em um riacho próximo, enquanto ela recolhia raminhos secos que ardessem com o mínimo de fumaça. Quando teve o suficiente, dispô-los sobre um lugar pedregoso e protegido perto do celeiro e acendeu o fogo. O crepúsculo deu passo à escuridão da noite. Robin se sentou junto ao fogo a certa distância dela e começou a tirar a casca de um ramo curto que encontrou. - Não tem por que pensar que vou tentar te seduzir, Máxima. Ela levantou bruscamente a cabeça e o olhou. - Não serve de nada simular que não nos beijamos - continuou ele. - Ocorreu. Eu o desfrutei. Pareceu-me que você também. Isso não significa que eu te considere uma prisioneira. - É muito franco. - A franqueza não é minha especialidade, como o é a tua, mas tampouco me resulta impossível. - Com sua navalha começou a recortar um extremo do pau, arredondando-o. Decidi-me a falar porque não quero que durante o resto do caminho a Londres continue 53
atuando como um coelho atordoado. - Um coelho? - repetiu ela, ofendida. - Sabia que isso captaria sua atenção - disse ele sorrindo. - Se preocupa muito por esse beijo. Foi um acidente, que ocorreu porque nos sentíamos aliviados e felizes. Ela se sentou sobre os pés, sabendo que devia ser tão sincera como ele. - Pode ser que tenha sido um acidente, mas desde que nos conhecemos notei que... que me acha atraente. Ele elevou as sobrancelhas expressivamente. - Mas é obvio, que homem não te acharia atraente? É muito formosa. - Não procurava cumprimentos - disse ela sobressaltada. - Sei. Provavelmente lhe hão dito isso dito tantas vezes que o tema já te resulta tedioso. - O que ouvi normalmente é que sou boa para levar a cama, o que não é o mesmo que formosa - respondeu ela em tom sarcástico. - Não, não é o mesmo, concordou ele. - Mas é ambas as coisas. Não estranho que tenha aprendido a desconfiar dos cuidados masculinos. - Com o fio da navalha começou a alisar a superfície que esculpiu. Talvez seja minha imaginação, mas tive a impressão de que você também me acha atraente. Ela se ruborizou; tentara ocultar essa realidade. Decidiu lhe responder com suas mesmas palavras. - Que mulher não te encontraria atraente? -disse em tom risonho. - É muito formoso. Em lugar de desconcertar-se, ele se pôs a rir. - Isso eu ouvi tantas vezes quando era menino que cheguei a detestar. Ansiava ter o cabelo negro, cicatrizes de sabre e um emplastro no olho como um pirata. - Agradeça que te pareça com um anjo, lhe aconselhou ela. - Provavelmente isso te salvou de infinidade de bem merecidas surras. - Não o suficiente. Fez voar trocinhos de madeira com um sopro. - Voltando ao tema, a atração é algo perfeitamente normal entre dois adultos sãos. Elevou a vista e a olhou com seus penetrantes olhos azuis. - Mas sentir atração não significa necessariamente atuar segundo ela. Considere nossa atração mútua como um condimento que enriquece nosso companheirismo. Ela o observou atentamente. Que sensato era. Mas não podia deixar de pensar em que pouco sabia dele. - Ainda parece duvidosa. Deixe-me que te faça uma pequena demonstração. Deixou a um lado a faca e o pau e foi sentar se junto a ela. Ela estava a ponto de afastar-se quando cometeu o engano de olhá-lo e ver a preguiçosa sensualidade de seus olhos. Ficou quieta, com os olhos muito abertos e impotente, como um coelho atordoado, tal como a chamou ele. Ele a atraiu aos seus braços e inclinou a cabeça. Ela estremeceu quando seus lábios tocaram os seus, mas o beijo foi ligeiro e doce. Sentiu sua boca mover-se meigamente contra a dela, quente e firme, enquanto lhe acariciava lentamente as costas. Sua tensão começou a desvanecer-se. Antes que se desvanecesse muito, girou a cabeça e soltou brandamente o fôlego sobre sua garganta. 54
- Foi agradável, mas o que queria demonstrar? - Que um beijo não tem por que ser alarmante. Acariciou-lhe a curva da orelha com a língua, lhe produzindo agradáveis sensações que lhe percorreram as veias. - Então teve êxito - disse-lhe com a voz um pouco entrecortada. - Não estou alarmada... ainda. Ele se pôs a rir e se afastou um pouco. - Está muito bem com calças, roçou-lhe o joelho com as pontas dos dedos, - mas algum dia eu gostaria de ver-te com um vestido de seda. Ela apoiou as palmas em seu peito, apalpando seus músculos tensos sob a camisa. - Falando de roupa, sabe que lhe assenta muito bem a jaqueta medíocre que comprou hoje e está tão elegante como a que lhe roubaram? - Esse é um dom - disse ele modestamente. - Uma vez um amigo me disse que sou um cavalheiro dos pés a cabeça. Enquanto ela ria, lhe tirou uma presilha do cabelo; uma grossa mecha lhe caiu sobre os ombros e lhe desceu pelas costas. Olhou-o nos olhos e acabou o riso. Seu olhar era ardente como uma chama pura, embora controlada, não ameaçadora. Presilha por presilha foi soltando o cabelo, que cobriu os peitos e as costas dela como uma carícia. Depois lhe atraiu a cabeça contra seu ombro e começou a pentear-lhe os cabelos com as pontas dos dedos, espalhando-o sobre os ombros como um manto. - Seda negra, sussurrou. - É a mais óbvia das metáforas mas não me ocorre nenhuma melhor. Sentiu-o quente, tenro, forte, inclusive inofensivo, embora seu sentido comum sabia que isso era uma ilusão enganosa. Fechou os olhos e desfrutou de do desejo que lhe percorria todo o corpo. Ardilosa a demonstração; com lhe revelava seu desejo, produzia desejo nela e ao mesmo tempo demonstrava que a paixão não tinha porque ser descontrolada. Eram adultos; podiam estar juntos sem agarrarem-se como visons. Devia afastar-se, mas não desejava fazê-lo. Era sedutoramente agradável não estar sozinha. Tão logo se formaram essas palavras em sua mente, recordou por que devia tomar cuidado com o Robin. Eram simples companheiros de viagem em um trajeto que terminaria muito em breve. Não devia afeiçoar-se muito a ele. - Convenceu-me - disse, afastando-se. - Deixarei de me comportar como um coelhinho atordoado. Robin voltou para seu lugar anterior. O seu peito subia e baixava com mais rapidez que de costume, mas quando falou, seu tom era de brincadeira: - Se voltar a se alarmar no futuro, poderíamos organizar outra demonstração. Uma mecha de cabelos dourados caiu sobre a testa dele. Maxie tragou saliva e desviou a vista. - Uma vez foi suficiente. Este tipo de demonstração poderia fomentar o comportamento que pretende acautelar, sobretudo se a faz um personagem ardiloso como você. 55
- Tolices, sorriu ele. - Suponho que terá notado que sou muito indolente para planejar uma campanha séria de sedução. - Nunca teve que seduzir a uma mulher. A única coisa que tem de fazer é sorrir e esperar que caiam derretidas aos seus pés. Ele deixou de sorrir. - Na realidade, não. Voltou a agarrar sua navalha e o pau e começou a tirar ponta ao extremo oposto ao arredondado. Maxie achou excessiva a seriedade. - O que está fazendo dessa parte da madeira? - Simplesmente um palito para entreter as mãos. O passou para que o examinasse. O pau teria uns quinze centímetros de comprimento por um e meio de grossura, e fazia uma curva natural que calçou perfeitamente na palma. - Uma espécie de brinquedo para adultos? - perguntou ao devolver-lhe. - Exatamente. Levarei-o no bolso e jogarei com ele quando a paisagem ficar aborrecida. Passou o polegar pelo extremo arredondado. É conveniente ser tão simples que estas coisas divirtam. Ela pôs mais lenha no fogo e pendurou um bule com água em cima. - É muitas coisas, Robin, mas simples não é uma delas. Ele fez uma careta. - Talvez não, mas estou tentando. - Esse é o seu problema; a simplicidade não se trabalha. Impulsivamente se sentou ao seu lado com as pernas cruzadas e lhe agarrou a mão esquerda deformada e a apoiou junto com a dela sobre a erva no espaço que os separava. - Feche os olhos, Robin. Não fale, não pense, simplesmente respire. Ele não resistiu, mas lhe notou tensão nos dedos. - Escute a brisa, disse-lhe docemente, - ouça as pedras, saboreie a luz da lua. Sinta os espíritos das árvores, das flores e dos bichinhos que compartilham a noite conosco. Eram as mesmas palavras que lhe dizia sua mãe quando era menina para lhe ensinar a perceber e valorizar o mundo. No princípio ele resistiu. Sua energia era turbulenta, estava cheia de ângulos desiguais. Tentou lhe enviar paz, mas não pôde porque não estava em paz consigo mesma. Sobressaltou-se ao recordar que não se sentava a meditar assim desde que se inteirou da morte de seu pai. Embora havia passado horas e horas cavalgando e caminhando pelos campos do Durham, o nó de aflição lhe impediu de chegar à fonte de equilíbrio que nunca lhe falhou. Deliberadamente abriu seus sentidos físicos e interiores à noite. Um mocho emitiu seu grito solitário caçando no bosque, suas asas rápidas e silenciosas. Embaixo dela estava a terra viva, com seus movimentos exatamente iguais aos da sua terra. A terra fértil, as antiquíssimas rochas e os seres pequenos e decididos. A brisa que agitava as folhas lhe era conhecida, embora soprasse por firmamentos que nunca conheceria. A serenidade da terra entrou nela, fluindo por suas extremidades e veias até que lhe encheu o coração. Se não tivesse sido pela tenra lição ao Robin, que lhe limou as bordas 56
trincadas pela aflição com sua sensualidade, não teria podido encontrar essa paz. Desejando corresponder a esse presente, aproximou-se dele emocionalmente, fazendo passar a quietude da sua mão à dele. Ele era como um potro nervoso, tenso e preparado para desbocar-se. Suave como uma sombra lhe sussurrou: - Deve reconhecer que é parte da natureza, não um ser separado. Pouco a pouco ele relaxou e desapareceu a tensão de seus dedos. Sua respiração se fez mais lenta e uniforme, e no espaço de uns dez segundos estavam em harmonia. Embora desejasse lhe ensinar simplicidade, reconhecia que ele era naturalmente um ser de enorme complexidade. Seu espírito era um matagal de contradições, acompanhadas por um brilhante engenho e uma tranquila aceitação, brilhos de alegria e curiosidade, uma profunda inclinação à bondade... e escuridão, uma escuridão que superava a sua imaginação. Com o instintivo desejo de consolá-lo, avançou em volta de um dos poços de atormentado pesar. No espaço de um batimento do coração se rompeu a harmonia. Notou que Robin se afastava bruscamente dela no plano emocional. Então lhe soltou a mão e fez uma respiração estremecida. - Que interessante, disse depois em tom tranquilo. - Não sabia que se podiam ouvir as pedras. É uma bruxa, jovenzinha? Pesarosa, ela compreendeu que o sobressaltou tanto como ele a alarmou essa tarde. Seria melhor para os dois que a relação fosse superficial e sem riscos. - Bruxa não, respondeu no mesmo tom ligeiro. - Nem sequer sou uma dama. - Isso são tolices. Olhou-a dos cabelos revoltos às pontas das poeirentas botas. – Para mim é uma dama da cabeça aos pés. Ela sorriu enquanto preparava duas taças de infusão, uma de chá para ele e a outra de ervas para ela. Robin podia ser um ladrão de carteira, um vagabundo e só o ceu sabia que mais, mas enquanto seus caminhos fossem juntos, seria seu amigo. Com isso teria que conformar-se.
CAPÍTULO 8
Em sinal de reconciliação, Maxie agarrou seu montão de palha do rincão onde armou seu colchão e o mudou para mais perto de Robin. O único que deviam fazer era evitar os beijos e as meditações juntos para que houvesse equilíbrio na viagem, e então não teriam nenhum problema. Depois de uma noite de agradáveis sonhos, despertou sobressaltada pelo rangido da porta do celeiro. Entrou a luz na penumbra interior, seguida imediatamente por furiosos latidos. Abriu os olhos e viu, a menos de dois metros, dois enormes e ameaçadores mastins, com focinhos vermelhos, presas brancas e latidos ensurdecedores. Ficou imóvel, porque sabia que qualquer movimento poderia precipitar um ataque letal. Tinha a faca na mochila, a meio metro dela, e os cães estariam sobre ela antes que 57
conseguisse agarrá-la. Sem mover a cabeça, olhou ao Robin. Este estava tão quieto como ela, refletindo friamente enquanto observava os histéricos mastins. - Basta! - gritou uma voz. Os cães deixaram de ladrar, mas seus olhos brilhantes e furiosos, e seus fôlegos caninos, indicavam seu entusiasmo para destroçar aos intrusos com seus dentes. Atrás deles apareceu um granjeiro enfurecido, sua silhueta recortada contra a luz da manhã. - Vagabundos asquerosos, grunhiu. - Deveria lhes entregar ao magistrado. - Poderia, claro, mas não fizemos nenhum desastre - disse Robin calmamente. Por sua forma de falar, ninguém haveria dito que não era um camponês do Yorkshire; aos ouvidos estrangeiros de Maxie, Robin adquiriu repentinamente a pronúncia perfeita. - Nos desculpe a intrusão, senhor - continuou Robin, sentando-se cautelosamente. Pensávamos em partir cedo para não incomodar a ninguém, mas ontem caminhamos um trajeto muito comprido, e minha mulher está em, mmm, um estado delicado. Maxie também se sentou, lhe dirigindo um indignado olhar. Com os cabelos soltos não podia passar por um menino, mas era necessário convertê-la em uma esposa grávida? Devolveu-lhe o olhar com uma expressão suspeitosamente querúbica enquanto ficava de pé e logo a ajudou a levantar-se com tenro cuidado. O granjeiro, um homem corpulento de média idade, não se impressionou ao mínimo e os olhou carrancudo. - Isso não é meu problema, mas os vagabundos em minha propriedade, sim, o são. Fora daqui antes que solte os cães. - Se tiver algum trabalho que possamos fazer - ofereceu Robin, - estaríamos felizes de assim pagar o alojamento desta noite. Enquanto seu companheiro representava o papel de correto inocente, Maxie começou a falar com os mastins, lhes sussurrando em iroquês que eram uns meninos muito formosos e valentes e que estava encantada de conhecê-los. Ao princípio eles lhe grunhiram, mas ela sempre se deu muito bem com os cães. Muito em breve o cão maior começou a mover a cauda e aplanou as orelhas. Ofereceu-lhe a mão, e se apresentou com seu nome mohawk, Kanawiosta. O mastim lhe aproximou timidamente e depois lhe lambeu a mão com sua língua áspera. Ela sorriu e começou a lhe arranhar detrás das orelhas. Recompensou-lhe com um sorriso de cão estirando a língua. O outro mastim emitiu um gemido de ciúmes e se aproximou também, reclamando igual atenção. O granjeiro estava na metade de outra argumentação sobre os vagabundos inúteis e ladrões quando viu seus mastins junto a Maxie e quase a fazendo cair com seu peso. - Que demônios...? - Minha mulher tem um dom para ganhar aos animais - explicou Robin. - Já se vê - balbuciou o granjeiro, impressionado ao seu pesar. - Qualquer um dos dois pesa mais que ela. Sua mulher, você disse? Onde está o anel de núpcias? Maxie levantou a vista e se surpreendeu ao ver a transformação que experimentou Robin. Normalmente parecia um aristocrata voluntarioso, mas sua despreocupada elegância desapareceu; nesse momento era um homem de humilde berço e modestos meios que caiu em apuros econômicos. Olhou-o pensando que seria uma condenada 58
estúpida se chegasse a lhe acreditar numa palavra do que dissesse; com seus dotes de ator era impossível saber se alguma vez dizia a verdade. - Tivemos que vender seu anel, explicou Robin tristemente. - Os tempos estão difíceis agora que terminou a guerra. Vamos a caminho de Londres, onde tenho esperança de encontrar um trabalho. - Foi soldado? - perguntou o granjeiro, sem prestar atenção à última frase. - Meu filho mais novo estava no regimento de infantaria cinquenta e dois. Robin assentiu muito sério. - Um dos melhores regimentos do exército. Eu estive na península; tive a sorte de estar uma vez na presença de sir John Moore, poucos meses antes que o matassem em La Coruña. O granjeiro esteve um momento movendo seus magros lábios. - Meu filho morreu em Aclama. Estava acostumado a dizer que Moore era o melhor, incomparável. Sua hostilidade desapareceu. A diferença de Maxie, ele não se fixou em que Robin não havia dito que tivesse estado no exército. - A morte do general foi uma terrível perda, disse Robin assentindo. O granjeiro tirou o chapéu e passou os dedos por seus escassos cabelos. - Meu nome é Harrison, disse. - Espera-lhes uma comprida viagem. Se tiverem fome podem comer um pouco antes de partir. Uma caminhada de quinze minutos os levou a casa, e um só sorriso do Robin enfeitiçou à esposa do granjeiro até o extremo de cega adoração. Enquanto tomavam um impressionante café da manhã com ovos, salsichas, pães-doces quentes com geléia de morangos e chá, ele falou da campanha na Península e da vida de um soldado. Era absolutamente convincente; se Maxie não o tivesse conhecido melhor, teria acreditado em tudo. Depois selou sua aceitação reparando o querido relógio de parede da senhora Harrison, que estava há anos parado. A Maxie trataram com atenção muito, contaram-lhe horripilantes histórias sobre as dores do parto, sobretudo para uma «pessoinha tão miúda» como ela, e a despediram com comida extra e a recomendação de que se cuidasse pelo bem do bebê. A senhora Harrison agitou a mão para se despedir dos viajantes e os mastins os acompanharam até os limites da propriedade de seu amo, detendo-se ali com evidente relutância. Maxie esperou até que tivessem percorrido uma distância suficiente para que não a ouvissem da granja, para dizer ao Robin com voz glacial: - Alguma vez se envergonha de si mesmo, lorde Robert? - Porque vou me envergonhar? - perguntou ele, em tom de inocência. - Não tem nenhum respeito pela verdade - respondeu ela olhando-o exasperada. - Pelo contrário, valorizo enormemente a verdade. Por isso a uso com muito cuidado. - Robin - disse ela em tom perigoso. - Nossos anfitriões têm a satisfação de ter feito uma boa obra, nós comemos um café da manhã excelente, os cães fizeram amigos e o relógio da senhora Harrison agora funciona. Onde está o mal em tudo isso? - Mas, tantas mentiras! - exclamou ela. 59
- Só umas poucas. É verdade que estive um tempo na Península e que estive uma vez com sir John Moore. Em nenhum momento disse que fora um de seus soldados nem que fora seu amigo íntimo. Pôs uma expressão preocupada. -Já sei que porque se sente mal, deve-se ao seu embaraço. - É... é tremendo! - exclamou ela, com uma mescla de irritação e de risada. - Como se atreveu a lhes dizer que eu era sua esposa grávida? Ele a olhou pensativo. - Se você não gostar da falsidade, poderíamos corrigir isso com bastante facilidade, ou pelo menos uma parte. Ela sorveu pelo nariz, desgostosa, ficando a um lado do caminho para deixar passar uma carreta puxada por um pônei. - Já me fizeram muitas ofertas desonrosas em minha vida, mas esta tem que ser a menos aduladora. Até no caso de que estivesse interessada, o que não estou, seria uma moléstia ficar grávida enquanto percorremos a Grã-Bretanha de cabo a rabo. - Eu pensava na outra parte. Claro que teríamos que ir a Gretna Green, porque estamos muito longe de Doutor's Commons para obter uma licença especial. Inclusive uma norte-americana sabia o que significava isso. - Suas brincadeiras estão cada vez piores lorde Robert - disse mordaz. - Teria bem merecido que eu aceitasse essa idiota oferta e te encadeasse para o resto de sua vida. - Há destinos piores. Ela parou em seco para olhá-lo. A ilusória sensação de intimidade da noite anterior já havia passado, e ele voltava a ser o brilhante e enigmático Robin que a desconcertava. Entretanto havia algo sério e impossível de se ler no fundo dos seus olhos azuis. Sobressaltou-se ao compreender que se ela aceitasse, ele daria meia volta, a acompanharia do norte até a Gretna Green e se casaria com ela. - Porque me sugeriu isso, Robin? - perguntou-lhe brandamente. - Não sei, respondeu ele com aflita sinceridade. - Só que me pareceu uma boa ideia. A última coisa que ela precisava era um patife encantador. O que a horrorizou foi que não achava a ideia carente de atrativo. Robin podia ser temperamentalmente inepto para um trabalho lucrativo, e informal de palavra e de obra, e, entretanto era também amável, simpático, e tão atraente que se se permitisse pensar, pegaria-se a ele como um marisco. Mas seguia sendo um malandro. Se alguma vez se casasse, escolheria um homem que fosse capaz de manter um teto sobre sua cabeça. Desviou a vista desses olhos desconcertantes e reatou a marcha. - Suponho que já tem três ou quatro esposas repartidas pela Europa, ou seja, adquirir uma a mais seria uma ninharia. Por desgraça, detesto as multidões, de modo que declino a honra. - Não tenho nenhuma outra esposa. Como terá observado, não sou perito em fazer ofertas. A única vez que fiz uma... - interrompeu-se bruscamente. - O que ocorreu? - animou-o ela ao ver que seguia calado. - A dama recusou, é obvio. - Uma mulher muito sensata. Não diferente de você. Sorriu. Não sei se desejaria me casar com uma mulher que tenha a insensatez de me 60
aceitar. Novamente Robin estava no plano da fantasia impenetrável, embora ela pensasse que em suas palavras se escondia alguma verdade dolorosa. Moveu a cabeça, resignada e continuou caminhando. Poderiam ser amigos, mas jamais o entenderia verdadeiramente. Seguir o rastro da sobrinha de lorde Collingwood não era um trabalho difícil para um homem das habilidades de Simmons. Posto que a moça não sabia que a seguiam, caminhou como um pato à espera de que o depenasse. Vestida como ia, a princípio era fácil que passasse despercebida, porque não muitas pessoas se recordavam de ter visto um mocinho com um chapéu grande. A coisa ficou mais fácil quando se juntou a um cavalheiro loiro; todas as mulheres ao longo da rota o recordavam bem. Com um indício de maliciosa diversão, Simmons pensou o que diria Collingwood quando se inteirasse de que sua sobrinha não se comportava como devia. Talvez a sua senhoria não importaria; sua principal preocupação era lhe impedir que chegasse a Londres, onde poderia descobrir sobre seu pai. E Simmons compreendia que Collingwood desejasse ocultar esse assunto tão feio. Embora lhes perdesse o rastro quando eles decidiram atravessar o campo até outro caminho, ao sul do Sheffield voltou a agarrá-lo. Não estavam a mais de um par de horas diante dele. Provavelmente a garota e seu amante dormiriam em um celeiro ou um acampamento a não mais de um ou dois quilômetros. Com um pouco de sorte, encontraria-os nessa mesma noite. Soltou uma risada áspera. Talvez a moça não quereria deixar o seu homem para voltar para o Durham, mas não importava. Ele poderia com os dois.
CAPÍTULO 9
Feliz por ter encontrado um lugar conveniente para acampar, Maxie deixou a mochila no chão e foi recolher lenha. Quando voltou com seu carregamento, Robin já preparou o lugar e estava raspando a pederneira com o aço. Ao ouvi-la, levantou a cabeça. - Quando o tiver acendido, você pode ficar a vigiá-lo enquanto eu vou procurar água para o chá. Ela deixou no chão a lenha e moveu os ombros cansados. - Eu irei procurar a água. Considerará um insulto mortal se sugerir que se sente e descanse um momento? Está cansada e o riacho está um pouco afastado daqui. A ideia de sentar-se resultou tremendamente tentadora. De todos os modos... - Não pedi considerações especiais. - Já sei. Os raminhos queimaram; depois de soprar um pouco até ter uma boa chama crepitando alegremente, Robin se levantou, olhando-a com olhos risonhos. - Mas se tomarmos em conta a diferença de longitude de nossos passos, você 61
caminhou um terço a mais que eu. Portanto, posto que eu tive um dia mais fácil, devo ir eu a procurar a água. Ela riu e se sentiu menos cansada. - Engenhoso argumento. Seria capaz de vender soga a um enforcado. Deixou-se cair sobre a erva e se tirou as botas. Ou, se o trabalho honrado não fosse contra sua filosofia, poderia ter sido um bom advogado, atuando como defensor e fiscal ao mesmo tempo. Tirou o chapéu, tirou as presilhas do cabelo, e lançou um suspiro de prazer quando este lhe caiu sobre os ombros. Já estava mais que farta das botas, do cabelo recolhido e dos peitos atados. A só ideia de uma banheira com água quente a fez gemer de desejos de banhar-se. -Por certo, estudou leis? Às vezes fala como um advogado. Robin a olhou horrorizado. – Deus santo, não. Pode ser que tenha feito um bom número de coisas repreensíveis em minha vida, mas tenho certos valores. Rindo, ela se recostou na erva, juntando as mãos sob a cabeça. - Fala sério alguma vez? Houve um comprido silêncio até que finalmente ela o olhou e o viu observando-a com uma expressão indefinível em seus olhos. Quando se deu conta de que o estava olhando, lhe sorriu. - As menos vezes possível - respondeu com seu tom alegre habitual. Depois tirou da sua mochila as chaleiras e entrou no bosque em direção ao riacho. Maxie fechou os olhos, meio adormecida. Depois do encontro com os bandoleiros, tinham entrado em uma rotina superficial, sem riscos. Robin não lhe fez mais demonstrações com beijos, e ela voltou a lhe sugerir que escutasse a brisa. Isso deu bom resultado; não houve mais intimidade real entre eles, mas tampouco houve conflitos. Voltou a atenção de seus sentidos ao bosque que a rodeava: gorjeios de pássaros, o sussurro do roce de uma folha contra outra, a doçura da madressilva. Plenitude, integridade, satisfação. Escutando a brisa, dormiu. Quando Robin chegou ao riacho decidiu fazer uma lavagem completa. Pensou em sua companheira enquanto se banhava com água fria. Desde o começo soube que possuía uma cara exoticamente formosa e uma mente afiada como uma navalha de barbear. Mas fora uma surpresa saber que tinha um pouco de bruxa. Ou talvez era um pouco da santa. Nenhuma outra coisa podia explicar o estranho episódio de quando quis lhe ensinar simplicidade. Ele se deixou guiar por ela de boa vontade, curioso por descobrir que era possível perceber o mundo que o rodeava de um modo não experimentado nunca antes. Assim, relaxou-se e se sentiu muito perto dela. Inclusive considerou a possibilidade de voltar a beijá-la, de um modo totalmente formal, é obvio. Então algo o arrancou de seu estado depravado e o introduziu em um instante de pânico puro, parecido ao despertar de um pesadelo. Talvez não fosse feito para a simplicidade; esse fora um episódio interessante, mas não um que desejasse repetir. Serialhe mais fácil seguir o impulso hora a hora, desfrutar da companhia do Maxie e viver o momento como não fazia há mais de uma década. 62
Secou-se, encheu as chaleiras e voltou pelo atalho para o acampamento. Na borda do claro se deteve detrás de uns arbustos. Sua companheira adormecida era uma visão deliciosa; estava estendida de costas junto ao fogo, com a cabeça apoiada em um braço e a cara coberta parcialmente por seus brilhantes cabelos negros. Sua figura miúda e curvilínea lhe inspirou uma perturbadora mescla de ternura e desejo. Queria protegê-la de todo o mundo, à exceção de si mesmo, claro. Seu conhecimento mundano de infusões anticoncepcionais indicava que era uma mulher de experiência, e ao mesmo tempo, havia nela uma espécie de inocência. Provavelmente isso era consequência de sua franqueza natural. Fosse qual fosse seu passado, lhe convinha considerá-la virgem. Isso lhe reforçava o autodomínio, que certamente necessitava toda ajuda possível. O rangido de raminhos sob uns pés pesados interrompeu seus pensamentos. Olhou para o outro lado do claro e viu aparecer a um homem alto e corpulento. Um amplo sorriso de satisfação cruzou pela cara do homem quando viu Maxie. - Por fim a encontro, senhorita Collins. É hora de voltar para casa. O intruso falava o dialeto cockney de Londres, e sua alegria superficial não disfarçava um ar ameaçador. Maxie despertou e se sentou bruscamente; olhou ao homem com os olhos cerrados. - Vi-o em casa de meu tio - disse com admirável serenidade. - Quem é você? - Meu nome é Ned Simmons, e seu tio me enviou a procurá-la para levá-la de volta a casa - disse ele - avançando para sua prisioneira. Com os lábios apertados, Robin deixou sua carga no chão e começou a caminhar sigilosamente pela borda do riacho com o fim de situar-se atrás do londrino se resultasse ser necessário agir. Sem deixar de olhar atentamente o que ocorria no centro do claro, tirou do bolso seu «palito para entreter as mãos» e o acomodou na mão esquerda de modo que um centímetro do extremo arredondado se sobressaísse de seu punho. Maxie ficou de pé e olhou ao Simmons com expressão receosa, como um terrier diante de um touro. - Não tem nenhum direito a me obrigar a voltar para casa de meu tio -disse-lhe, retrocedendo pela erva, os pés só com as meias. - Ele não é meu tutor e não cometi nenhum delito. - Vamos, senhorita, não me faça isso difícil - disse Simmons sem abandonar o tom de estranha afabilidade, - ou terei que levá-la ao magistrado e explicar que roubou um mapa e um pouco de comida também. Na Inglaterra podem prender a alguém por um delito como esse. E não é que seu tio vá se zangar com você se vier comigo como uma boa garota. Se aproximou e lhe pôs uma mão no ombro. - Onde está seu amante? Ele já a abandonou? Pôr a mão no ombro ao Maxie resultou ser um engano. Ela se soltou violentamente e ao mesmo tempo lhe atirou uma patada com perversa intenção. Robin fez um gesto, imaginando a dor; Simmons teve a sorte de que Maxie não usasse botas, porque sua pontaria e rapidez foram letais. O homem começou a mover-se, mas não se esquivou totalmente do golpe. Dobrou-se com um uivo. O palavrão que seguiu a isso era tão sujo que Robin se alegrou de que o homem 63
falasse no jargão dos delinquentes, que certamente Maxie não entenderia. Sem deixar de amaldiçoar, o londrino colocou a mão no interior da jaqueta e tirou uma pistola. Antes que pudesse apontar, Maxie saltou sobre ele e lhe tirou a arma, usando seu peso para liberá-la. O impulso a levou a fazer uma cambalhota controlada sobre a erva. Depois ficou de pé de um salto enquanto Simmons continuava boquiaberto pela surpresa. No claro do bosque ressonou um feio clique quando ela martelou a pistola. - Preferiria não usar esta pistola, senhor Simmons - disse-lhe com voz pausada e perigosa, - mas prefiro fazê-lo antes que ir com você. Agora, dê meia volta e parta. Simmons a olhou com pasma incredulidade. - Baixe essa arma, fedelha, ou a farei lamentar ter nascido. O homem estava cometendo o engano potencialmente fatal de desvalorizar Maxie. Sabendo que se não interviesse, ela poderia matá-lo, Robin pôs-se a correr pelo claro no momento em que Maxie levantava a pistola e apontava. Como estava justamente atrás do enorme londrino, não podia saber se ela o viu aproximar-se. Com a esperança de que disparasse alto, equilibrou-se sobre as pernas do Simmons. Quando caíram juntos ao chão, soou um disparo e uma bala passou muito perto de ambos. - Bastardo, covarde, rasteiro! - bramou Simmons, começando a lutar com esse novo competidor. - Eu ensinarei a não lhe saltar a um homem pelas costas. O cockney lutava com destreza e força bruta, mas Robin tinha a vantagem da surpresa. Também tinha o pau arredondado no punho, que dava uma feroz potência aos seus golpes. Um forte murro na mandíbula lançou Simmons para trás, cambaleando-se, mas em seguida enterrou seu punho no ombro do Robin, e com a astúcia de um lutador de rua agarrou-lhe o pescoço da camisa e tratou de aproximá-lo dele para lhe atirar o golpe final. Robin se esquivou do golpe, e a força do movimento lhe rasgou a camisa quase até a cintura. Fez uma finta à cara com a direita e aproveitou o instintivo movimento de bloqueio do outro para lhe atirar um atordoante direto no plexo solar com a esquerda. Com os olhos abertos, mas com os músculos impotentes, Simmons se desabou no chão de costas. Robin se apressou a pô-lo de barriga para baixo e lhe torceu o braço direito para as costas, fazendo-o subir até o doloroso ponto em que só faltava lhe romper a articulação. - O amante não partiu - ofegou. - Deveria ter tido mais cuidado. Simmons possuía uma teimosa valentia e uma enorme tolerância à dor. Começou a agitar-se com tanta violência que estava a ponto de liberar-se. Robin se inclinou sobre ele e lhe aplicou uma intensa pressão em certos pontos precisos debaixo da mandíbula. Isto cortou a provisão de sangue ao cérebro; Simmons emitiu um estranho som, fez um último movimento convulsivo e perdeu o conhecimento. Maxie desceu a pistola. - Esse é um truque impressionante - comentou, com voz trêmula. - Ensinar-me-á isso? - Certamente que não. É perigoso fazê-lo porque pode causar a morte ou uma lesão permanente se se mantiver muito tempo. - Deu a volta ao Simmons para pô-lo de costas, tirou-lhe o lenço do bolso e com lhe 64
atou os pulsos. Além disso, poderia usar o truque comigo na próxima vez que eu fizesse algo que te irritasse. - Talvez seja prudente por sua parte não me ensinar isso - concordou ela. Apesar de suas despreocupadas palavras, sua tez morena tinha uma tintura cinzenta. - Quando perco os estribos pode ocorrer tudo. - Isso eu observei, disse Robin com ironia. - Disparou-lhe para matar? - Não, embora estive tentada. Agarrou suas botas e as pôs. Apontei para lhe roçar o braço com a esperança de que isso o detivesse. Tinha outra bala se por acaso isso não resultasse. Jogou terra ao fogo com mãos trementes. - Estamos de acordo em que devemos partir quanto antes, não é? - Sim. Robin revistou os bolsos de Simmons. - Despertará logo. Não lhe atei com muita firmeza os pulsos, de modo que não vai levar muito tempo liberar-se. Tirou-lhe a bolsa de munições que levava oculta e a meteu no bolso interior da jaqueta. Continuou a revista e descobriu que Simmons tinha muito pouco no aspecto de identificação, mas em troca tinha a carteira bem provida. Olhou o dinheiro pensativo. Havia mais que suficiente para comprar passagens para Londres em carruagem de aluguel, mas a verdade é que não tinha nenhuma pressa para deixar Maxie em seu destino. - Vai roubar? - perguntou ela, desaprovadora. - Só a pistola, respondeu ele e colocou a carteira no bolso do Simmons. - Já estará bastante furioso quando despertar. Ou seja, sua honradez é consequência de pragmatismo e não de escrúpulos morais? - perguntou Maxie, começando a prender o cabelo com as presilhas. - Exatamente. Os escrúpulos morais são luxos caros. O bocejo dela foi um comentário eloquente sobre sua duvidosa lógica. Ele sorriu. - O roubo é uma reação bastante benigna a uma tentativa de assalto. É você a que estava disposta a lhe voar os miolos. - Só se fosse necessário. Fitou o maltratado chapéu. Como ia saber que você viria me resgatar? Ele a olhou com os olhos cerrados enquanto ficava de pé. - De verdade acreditou que ia abandona-la ao seu destino? Olharam-se aos olhos um momento e logo ela se girou a recolher sua mochila. - Não havia muito tempo para pensar - disse. E Maxie não era o tipo de mulher que ficaria sentada esperando que a resgatassem, pensou ele. Foi procurar as chaleiras com água que deixou à borda do rio antes de atacar Simmons. Ofereceu água a Maxie, que ela aceitou agradecida; ainda estava tremendo. Ele também bebeu, depois atirou o resto da água e guardou as chaleiras. Quando abandonaram o claro para voltar para caminho, o único rastro de sua estadia ali era Simmons, convexo calmamente com as mãos atadas sobre sua barriga. - Seu palito para jogar é uma arma? - perguntou ela ao cabo de um momento. - Sim. Depois de nosso encontro com os bandoleiros, pensei que poderia nos ser útil ter alguma forma de autodefesa. Afastou um ramo para que ela passasse. Um pau no 65
punho aumenta a potência dos golpes. - É um manancial infinito de habilidades alarmantes - comentou ela, embora ao seu sarcasmo faltasse sua habitual mordacidade. - Sempre usado em favor das forças do bem - disse ele piedosamente. Esse comentário a fez sorrir, mas continuava muito mais alterada que o que ele teria esperado. Supôs que o que a preocupava não era o ataque em si e sim o que representava. Teria que insistir em que lhe explicasse algo sobre seu passado e sua misteriosa missão em Londres. Perto do caminho estava amarrado um cavalo de aspecto deprimido. Robin se deteve e o contemplou em atitude avaliadora. - Suponho que este cavalo é do seu amigo que deixamos ali. - Não é meu amigo, mas creio que sim; este é seu cavalo. Eu o vi em... vi-o uma vez. - Bem. Desatou as rédeas e saltou à sela. - Não o irás roubar? - exclamou ela. - O que ocorreu ao seu pragmatismo? - De todos os modos o teria solto para fazer mais lenta a perseguição, ou seja, bem podemos usá-lo e pôr uns quantos quilômetros entre nós e Simmons. Ofereceu-lhe a mão. O pobre animal não está em forma para levar muito longe a duas pessoas, mas nos dará uma pequena vantagem. - Não é outra coisa que prático, lorde Robert. Ela tinha a mão gelada quando a subiu detrás dele, e seus braços ao redor de sua cintura o apertavam com mais força do que fazia necessário o passo tranquilo do cavalo. Esperaria até que tivesse recuperado algo de sua serenidade para lhe fazer perguntas. Vários quilômetros mais adiante, quando desaparecia a última luz do firmamento, Robin deteve o cavalo em uma bifurcação. - É hora de devolver nosso brioso corcel ao seu proprietário. Desmontaram e ele fez girar ao cavalo; com uma palmada na anca o enviou de volta por onde vieram. - Se formos para o oeste, nos afastando da rota direta, possivelmente Simmons nos perderia a pista. Isso eu espero. Não parece o tipo de homem que renuncia facilmente. Estirou a mão. Dê-me a pistola. Ela a entregou e logo gritou horrorizada quando lhe tirou a bala que ficava e a jogou dentro de um denso matagal. - Maldito seja, Robin! Porque fez isso? Uma pistola poderia nos ser útil. - As armas são coisas terríveis. Jogou a bolsa com munições depois da pistola. Quando estão presentes, morre gente desnecessariamente. - Poderia ser necessário matar ao Simmons! - Matou a alguém alguma vez? - Não - reconheceu ela. - Eu sim. Não é uma experiência que alguém deseje repetir. Ela se ruborizou diante a frieza de sua voz. A maioria das histórias que lhe contou eram puras fantasias, mas não duvidava de que dizia a verdade sobre ter matado. - Em realidade não o disse a sério. Sobre matá-lo, quero dizer. 66
- Sei - disse ele com voz mais suave. Rodeou-lhe os ombros com o braço para tranquilizá-la, e assim continuaram seu caminho em silencio através da escuridão. O marquês do Wolverton ia meio adormecido pensando que devia ter parado em Blyth para passar a noite quando sua carruagem se deteve bruscamente com um rangido. Apareceu pelo guichê e viu o cocheiro falando com um homem corpulento, de aspecto esmurrado e a roupa amassada. Desceu do carruagem. - Mais problemas? - perguntou. - Roubaram-me e levaram meu cavalo - grunhiu o homem. Ao ver o brasão na porta da carruagem, acrescentou, adotando um tom humilde: - Seria tão amável sua senhoria de me levar até a próxima cidade? - Não faltaria mais - respondeu Giles. Indicou-lhe que subisse e subiu ele atrás, pensando que havia mais ataques nos caminhos do que imaginou. Acendeu os dois abajures interiores e depois tirou uma garrafinha de conhaque de um compartimento. - Deixaram-lhe o olho pintado, comentou amavelmente enquanto servia uma generosa medida para sua hóspede. - Não será a primeira vez. Giles observou sua corpulência. - Não o teria imaginado. É boxeador? - Era. Meu nome é Ned Simmons, mas brigava com o apelido de Cockney Killer. Com expressão agradada bebeu o licor de um gole. Assistiu a algum de meus combates? - Sinto muito, não sou aficionado ao boxe, mas uma vez meu amigo ganhou uma boa soma apostando em você. Giles fechou os olhos para recordar. Você derrotou ao Game Chicken em dezenove assaltos, creio. - Vinte e um. Sim, esse foi o melhor combate de minha vida. - Deveram ser vários os homens que o assaltaram esta noite para havê-lo derrotado. O comentário resultou ser um engano. Simmons se lançou a explicar sua aventura entre maldições e justificações; a essência do assunto era que seu competidor o derrotou com jogo sujo. Giles o esteve escutando só com moderado interesse quando de repente as palavras «o amante loiro» captaram sua atenção. - Esse homem loiro tem que ter sido muito forte. Simmons titubeou, visivelmente duvidoso de admitir uma verdade nada lisonjeira. - Era um tipo bastante fraco, na realidade, - disse a contragosto, - e falava como uma pessoa elegante. Não teria imaginado que fosse capaz de lutar como o fez. Mas inclusive assim, não teria me derrotado se não me tivesse atacado por trás e se sua moça não me tivesse estado apontando com uma pistola. Giles reprimiu um sorriso. Era evidente que Robin e a Inocente Resguardada haviam passado por esse caminho não fazia muito tempo, e dava a impressão de que a garota tinha uma certa semelhança com sua formidável tia. - Porque foi que o atacaram? A expressão do Simmons se fechou como uma ostra. 67
- Não posso dizer mais. É um assunto confidencial. Giles estava debatendo-se entre oferecer ou não um suborno para obter mais informação quando se ouviu um relincho fora. Simmons olhou pelo guichê. - Esse é meu cavalo! Provavelmente o maldito bastardo não sabia montar. Oxalá tenha rompido o cangote quando o cavalo o jogou dos arreios. O marquês não viu jamais um cavalo capaz de jogar seu irmão da sela; e muito menos o ia jogar um pangaré tão cansado como esse. Não cabia dúvida de que Robin o deixou solto para que voltasse; graças a Deus, não ia acrescentar o roubo de um cavalo aos seus outros delitos. Em que demônios estaria metido seu irmão? Simmons agarrou seu cavalo, amarrou-o à parte de atrás da carruagem e reataram a marcha para a próxima cidade, Workshop. Simmons guardou silêncio durante o resto do trajeto, o que permitiu a Giles entregar-se a suas especulações. O londrino tinha que ser o homem enviado por lorde Collingwood a procurar a sua sobrinha; era um tipo bem rude para encarregar-se de escoltar a uma jovem de boa criação, embora quanto mais sabia sobre Máxima Collins mais duvidava que fosse de boa criação. Era evidente que lady Ross ainda não encontrou os fugitivos. Com sorte, ele os encontraria primeiro. E então, seu rebelde irmão mais novo teria que responder a muitíssimas perguntas. A pedido de Simmons, Giles o deixou em uma estalagem que era um pouquinho melhor que uma taberna. Ele se alojou na melhor estalagem do Workhop. Era bastante inferior ao que ele consideraria boa, mas pelo menos os lençóis estavam limpos. Quando dormiu, não sonhou com os fugitivos nem com os possíveis escândalos e sim com lady Ross; que na realidade era uma amazona francamente esplêndida. Simmons trabalhou antes nessa zona do país, assim em menos de uma hora depois de ter chegado ao Workhop já comprara outra pistola e contratado vários homens para que o ajudassem em sua tarefa. Mais tarde essa noite, sustentando uma parte de carne crua sobre o olho machucado e bebendo litros de cerveja, dedicou-se a pensar no loiro elegante que lhe atacara por trás. Lorde Collingwood não gostaria que sua preciosa sobrinha sofresse algum dano, mas nada lhe impedia de partir em dois o seu amante. Bebendo e refletindo, planejou o que faria quando se enfrentasse o ardiloso bastardo em um combate limpo.
CAPÍTULO 10
Levavam quase meia hora caminhando quando por fim encontraram um abrigo suficientemente isolado. Se tivessem podido ficar no claro do bosque, Maxie teria preparado um guisado de verduras com presunto, mas dadas as circunstâncias, decidiram conformar-se com pão e queijo. Terminada a comida e ordenadas as coisas, Robin se recostou no feno. Por uma fresta 68
no alto de uma das paredes entrava a luz da lua, que iluminava seus cabelos loiros lhe dando um brilho prateado. - Creio que é hora de que me explique o que acontece - disse-lhe. - O caminho a Londres vai estar infestado de cavalheiros maciços que desejam te raptar? Maxie não tinha por costume falar de suas coisas com ninguém, mas pensou que devia uma explicação ao Robin. Ele era um perito nas mentiras e roubos de pouca monta, ela ainda não sabia seu verdadeiro nome, e quase estava segura de que era algum tipo de estelionatário, mas a ajudou quando necessitou. Começou a tirar as presilhas para soltar o cabelo pela segunda vez nessa noite. - Não sei muito bem o que acontece. Nem sequer sei por onde começar. O que quer saber? - O que esteja disposta a me contar - respondeu ele docemente. De repente ela desejou lhe revelar tudo, sobre seu curioso passado e sobre como chegou a converter-se em forasteira na Inglaterra. - Meu pai, Maximus Collins, era o filho mais novo do que se chama uma «boa família». Não era muito o que podia esperar a respeito da herança, e rapidamente danificou suas expectativas com o jogo e a dissipação. Sorriu com ironia. - Meu avô pensou que Max era uma moléstia inútil e cara, o que provavelmente era certo. Ofereceu-se para lhe pagar todas suas dívidas com a condição de que partisse da Inglaterra. Max teve que aceitar, não tinha outra alternativa; Suponho que as autoridades estavam a ponto de apanhá-lo. Decidiu partir a América do Norte. A chuva estava começando a golpear o teto. Afundou-se mais em seu oco no feno, cobriu-se com feno e envolveu os ombros com a capa, desejando que fosse mais grossa. Meu pai não era um mau homem, simplesmente era um pouco despreocupado em coisas como o dinheiro e as convenções sociais. Gostou muitíssimo do Novo Mundo, porque é menos rígido em seus costumes. Viveu na Virginia um tempo e depois partiu ao norte. Esteve uma temporada em Nova Iorque, e estando ali cometeu o engano de empreender uma viagem de Albany a Montreal no inverno. Quase morreu em uma tormenta de neve, mas o resgatou um índio, um caçador mohawk, que o levou ao seu acampamento. Ali passou o resto do inverno, e ali conheceu minha mãe. Ficou calada, pensando qual seria a reação de Robin ao saber que era mestiça. Que palavra mais horrível, mestiça. - Os mohawks são um dos povoados iroqueses que formam a Liga dos Seis? comentou Robin, sem um indício de repugnância, manifestando só interesse. - Sim - respondeu ela surpreendida e agradada por seu conhecimento. - Os mohawks eram os Guardiães da Porta Oriental, que defendiam à Liga dos ataques dos algonquinos de Nova a Inglaterra. Quatro dos seis povoados vivem principalmente no Canadá agora, porque foram leais aos ingleses durante a revolução pela independência dos Estados Unidos. Mas as tribos do povoado de minha mãe ao menos, sobrevivem com seu orgulho e tradições, não como os índios da Nova Inglaterra, que foram virtualmente arrasados pela enfermidade e a guerra. - Essa não é uma história muito bonita, comentou Robin. - Pelo que tenho lido, os índios eram pessoas fortes, sãos e generosas quando chegaram os europeus. Eles nos 69
deram milho, remédios e terra. Nós lhes demos varíola, tifo, sarampo, cólera e só Deus sabe o que mais. Às vezes, balas. Titubeou um momento e logo lhe perguntou: - Odeia-nos muito? Ninguém lhe perguntou jamais isso, nem adivinhado a raiva soterrada que sentia pelo povo de sua mãe. Curiosamente, essa percepção do Robin lhe aliviou um pouco essa raiva. - Como poderia lhes odiar sem odiar a mim mesma? Afinal sou meio inglesa. Mais que meio, Suponho, porque vivi menos tempo com minha família mohawk. Eles me aceitaram com mais carinho que meus parentes ingleses. Um calafrio interior a fez estremecer-se. No clã de sua mãe tampouco se havia sentido verdadeiramente em seu lar. Ao ouvir o suave toco castanholas de dentes, Robin se aproximou e a rodeou com seus braços. Não desejando paixão, ela ficou rígida, mas ao compreender que ele só queria lhe oferecer consolo, logo relaxou. - As famílias podem ser infernais, disse ele lhe massageando as costas. - É verdade. Apoiou a cabeça em seu ombro e pouco a pouco seu calor e proximidade lhe dissiparam o frio. Que cômoda se sentia nos braços de Robin. Muito cômoda. Dizendo-se que o último que precisava era um homem tão encantador e descuidado como seu pai, levantou a cabeça e reatou a narração. - Minha mãe era jovem e inquieta, interessava-lhe conhecer o mundo que havia mais à frente do acampamento. Face às enormes diferenças entre eles, ela e meu pai se apaixonaram. - Os dois se rebelaram contra as vidas em que nasceram, observou Robin. - Isso deve ter sido um laço muito forte. - Creio que tem razão. E não contribuiu pouco que minha mãe fosse muito formosa e meu pai muito viril. Quando chegou a primavera, meu pai lhe pediu que se fosse com ele, e ela o fez. Eu nasci um ano depois. Vivíamos a maior parte do ano em Massachusetts, mas no verão íamos visitar a tribo. Minha mãe queria que eu conhecesse o idioma e os costumes de sua gente. - Ia seu pai com vocês? - Sim; dava-se às mil maravilhas com a família de minha mãe. Os índios são pessoas muito poéticas e adoram ouvir histórias, jogar e rir. Meu pai era capaz de recitar poemas um após o outro, a centenas, em inglês, em francês e em grego. Também falava bem o mohawk. Sorriu. - Meu Deus, como sabia falar esse homem. Lembro-me da extraordinária capacidade que tinha para manter enfeitiçados a todos escutando-o recitar A odisséia. Agora que a li, sei que fazia uma tradução bastante livre, mas de todos os modos era um magnífico relato. Desvaneceu-se o sorriso. Houve dois bebês que morreram ao nascer. Minha mãe morreu quando eu tinha dez anos. Sua família se ofereceu a me acolher, mas meu pai não aceitou. Nunca encontrou um trabalho estável em que fosse bem, de modo que depois da morte de minha mãe se converteu em vendedor de livros ambulante e me levava com ele em suas viagens. 70
- Ou seja, cresceu viajando. Você gostava dessa vida? - A maior parte do tempo. Maxie se girou até ficar com as costas apoiada no peito do Robin. Os livros e a educação são venerados nos Estados Unidos. Dado que muitas granjas e aldeias estão muito isoladas, sempre nos recebiam bem em qualquer lugar que fôssemos. Muito bem recebidos às vezes, comentou em tom sarcástico. Os costumes sociais índios são muito diferentes dos europeus; as mulheres solteiras gozam de um grau de liberdade que a moralidade européia está acostumada a considerar libertinagem. Sempre havia homens interessados em pôr a prova a virtude de uma mestiça como eu. Ele aumentou protetoramente a pressão de seu abraço. - Não estranho que tenha aprendido a ser receosa. - Era necessário; se tivesse contado essas coisas ao Max, ele poderia ter matado a alguém. Ou o mais provável, teria resultado morto ele; era um orador, não um lutador. Antes desse dia, haveria dito o mesmo do Robin, mas já sabia que isso não era certo. - Não me envergonho dos costumes do povo de minha mãe, continuou. Porque as mulheres não vão ter a mesma liberdade que os homens antes de casarem-se? Mas tinha que ser eu quem decidisse fazê-lo, e não que fosse um pouco forçado por um caipira bêbado que supunha que eu era uma mulher fácil. - Só um estúpido acreditaria nisso - disse Robin docemente. Ela se alegrou de que ele compreendesse. - Tínhamos uma rota regular em que percorríamos toda Nova a Inglaterra e o norte de Nova Iorque. Além disso, do sortimento normal de livros, também levávamos alguns especiais que nos encarregavam. - Que fascinante - murmurou Robin, lhe rodeando a cintura com seus braços. - Que livros compunham seu sortimento habitual? - Principalmente o Novo Testamento, livros baratos de sermões e canções e edições piratas de livros ingleses. Mas também havia outro tipo de livros. Um granjeiro de Vermont encomendava um livro diferente de filosofia a cada ano. Em nosso seguinte visita, ele e meu pai comentavam o livro do ano anterior. Sempre nos alojávamos dois dias em casa do senhor Johnson. Creio que eram os dois dias mais interessantes do seu ano. Sorriu. Os vendedores ambulantes como meu pai faziam um bom negócio, tanto que os editores publicavam livros só para esse tipo de venda; livros como A filha do Pródigo, por exemplo, que censurava piedosamente o comportamento imoral. - Com muitos detalhes, sem dúvida - disse Robin, em tom risonho. - Exatamente. Como as pessoas iam saber o quão perverso era esse comportamento se não o descrevessem? Vendemos muitíssimos exemplares disso - acrescentou rindo. Esta história fez compreender ao Robin porque Maxie era essa extraordinária mistura de maturidade e inocência. Que vida mais estranha tivera, criada entre duas culturas, sem pertencer totalmente a nenhuma das duas, sem criar raízes nunca. Estava claro que seu pai fora um homem bem educado e encantador e que ela o adorava. Igualmente claro ficava que Max fora descuidado até o excesso. Apostaria que Maxie cresceu cuidando das contas e do seu despreocupado pai. E essa estranha vida produziu a essa jovem independente que se ajustava à perfeição entre seus braços. Tê-la assim abraçada certamente dissipou o frio úmido da noite. Robin sentia um calor que não tinha nada que ver com a temperatura. 71
Obrigando-se a recordar que o último que ela necessitava nesses momentos era que ele ficasse amoroso, comentou: - Era uma vida interessante, mas instável. - Eu estava acostumada a pensar que não havia nada que desejasse mais que um verdadeiro lar - disse ela com certa tristeza. - Passávamos os invernos em Boston, alojados em casa de uma viúva cujos filhos já eram adultos. Sempre me alegrava voltar ali, e saber que dormiria sob o mesmo teto uns quantos meses. Mas em geral, era uma forma agradável de viver. Sempre tínhamos suficiente para comer, muitíssimos livros e pessoas com quem falar. Ser mascate calhava bem ao meu pai; tinha os pés inquietos. Ao Robin não surpreendeu ouvir isso. Mas ao menos, dava a impressão de que Maximus Collins fora um pai afetuoso, muito mais que o que fora o importante marquês de Wolverton, seu defunto pai. Embora o mundo não estivesse de acordo, ele pensava que Maxie tivera mais sorte que ele com seus pais. - O que lhes trouxe para a Inglaterra? - Max desejava voltar a ver sua família, e queria que eu a conhecesse também. Robin notou que se esticava. Já insinuara com bastante clareza que seus parentes se mostraram menos que amáveis. Conhecendo a aristocracia inglesa, isso não o surpreendia ao mínimo. - Seu pai morreu aqui? - Em Londres, faz dois meses. Não estava bem de saúde. Em realidade, creio que esse era seu principal motivo para voltar, ver uma vez mais a Inglaterra antes de morrer. Baixou a voz e demorou um momento para continuar: Enterraram-no na propriedade da família no Durham. Depois, justamente quando decidiu que era o momento de voltar para os Estados Unidos, por acaso ouvi uma conversa entre meu tio e minha tia. Contou-lhe o que ouvira, e como decidiu ir a Londres investigar. Inclusive lhe contou seus temores de que seu pai pudesse ter tentado chantagear a algum aristocrata. Disse tudo sem deixar aparecer emoção a sua voz; de maneira nenhuma queria que ele se compadecesse. - E isso nos traz para o presente, concluiu. - Ainda me custa acreditar que tenha havido algum tipo de intervenção sinistra na morte de meu pai. Mas o fato de que meu tio tenha enviado um homem como Simmons em minha busca, apóia meus piores suspeitas. Poderia ser solicitude por sua parte, mas me parece mais provável que esteja resolvido a impedir que eu me inteire da verdade. O que pensa você? - É evidente que seu tio oculta algo - disse Robin, especulando sobre os possíveis motivos que poderia ter o tio. Pelo menos havia um que não implicava comportamento delitivo por parte de ninguém, mas preferiu não comentar a Maxie essa possibilidade. Estou de acordo em que em Londres está sua melhor oportunidade para saber o que ocorreu, mas poderia ser perigoso, e nada do que descubra ali vai devolver o seu pai. Vale a pena correr esse risco? - Devo saber a verdade - disse ela com voz firme. - Não tente me convencer do contrário. - Nem sonharia, respondeu amavelmente. - Enquanto isso, está tarde e nós dois estamos cansados. Amanhã haverá tempo para decidir a maneira de evitar ao Simmons e 72
chegar a Londres. - Ajudará? - perguntou ela insegura. - Sim, queira ou não. Não tenho nada melhor a fazer, e esta me parece uma tarefa digna. Dito isso se deitou, atraindo Maxie para ele. Ela tentou afastar-se. - Foi um comprido dia e na realidade não quero acabar brigando com você para que me solte. - Segue desvalorizando minha inteligência, disse ele em tom tranquilizador. - Além do meu instinto de conservação. Sei muito bem que seria capaz de me cravar uma faca em alguma querida parte de minha anatomia se chegasse a me descontrolar. Mas faz frio, e estaremos mais abrigados se estivermos juntos. De acordo? - De acordo, suspirou ela e deixou de lutar. - Lamento ser tão desconfiada, Robin. - Agora entendo por que é. Roçou-lhe muito brandamente a têmpora com os lábios e acomodou a manta sobre os dois. O feno fazia uma cama confortável. Maxie relaxou a parte posterior de seu corpo embalada na parte dianteira do dele. - Como repetia uma e outra vez a senhora Harrison, é uma pessoinha muito miúda, disse ele. Dobrando um braço ao redor de sua cintura, apertou-a mais contra ele, e ficaram enroscados como duas colheres. - Eu acreditava que os índios eram altos. - Cada raça tem suas exceções, respondeu ela. - Minha mãe era baixa, e eu acabei sendo a pessoa mais baixa dos dois lados de minha família. - Mais feroz para compensar, disse ele como se estivesse sorrindo. - Tem um nome índio além do inglês? Ela duvidou um momento, e finalmente respondeu: - Para a família de minha mãe, sou Kanawiosta. - Kanawiosta, o repetiu. O nome se deslizou vibrante por sua língua. À exceção de seu pai, Robin era o único homem branco que o pronunciou. - Tem algum significado especial? - perguntou ele. - Nenhum que se possa definir facilmente. Contém o sentido de água corrente, e também de progresso, de fazer algo melhor. - Água corrente, disse ele, pensativo. Reflete-te bem. Ela se pôs a rir. - Não acrescente romantismo ao meu nome. Facilmente poderia traduzir-se por «embelezador aquoso». Como sabem os ingleses o significado original de seus nomes? - Robert significa «fama que brilha» - apressou-se a responder ele. - Mas você prefere Robin, como Robin Hood. Conhecer o significado do Robert significaria que esse era seu verdadeiro nome? Dado seu grande sortimento de conhecimentos, provavelmente isso não significava nada. O frio estava partindo de seus ossos, dissolvido pelo calor de seu abraço. Era como uma manta maravilhosa. - Isto se parece com o trangallo, disse meio adormecida. - Trangallo? 73
- Chama-se assim a um costume fronteiriço para os casais que estão se cortejando. A distância entre as casas provoca que às vezes um jovem deva ficar a passar a noite em casa de sua noiva. Não é comum ter habitações para hóspedes, por isso os dois compartilham uma cama, cada um vestido com muita roupa para evitar que as coisas se desandem. Geralmente fica uma madeira divisória no meio da cama, com o lado que fica acima dentado. - Isso me parece um costume que poderia praticar-se na Inglaterra com muito benefício. Aqui, surpreender a um menino beijando a uma garota em um jardim pode levar a um casamento rápido e indesejado. Sorriu na escuridão. - Estou seguro de que seus patrícios sabem muito bem que nem a roupa nem a madeira vão ser um impedimento para pessoas resolvidas. - Não é incomum saltar a madeiro, reconheceu ela. Há muitas baladas que dizem que as coisas como as roupas «trangallo» não são nenhuma defesa. «Os cavalos descontrolados derrubam a cerca», citou. Robin riu e ela também. Sua risada era tão quente como seus braços. -Às vezes as bodas se celebram antes do esperado. Voltou a bocejar. - Mas as granjas necessitam de meninos, de modo que a maioria do povo não considera isso um pecado muito grave. Depois, quente e segura pela primeira vez há muito tempo, ficou adormecida, escutando o vento, a chuva e os batimentos do coração uniformes do coração do Robin.
CAPÍTULO 11
Maxie despertou inundada em um prazenteiro calor. O aroma do feno lhe enchia o nariz, e o corpo adormecido de Robin a protegia do úmido ar do amanhecer. Ele tinha uma mão apoiada em seu peito. A sensação era agradável, muito agradável na realidade, mas não convinha que despertasse assim e pensasse que se abriu um precedente. Brandamente lhe agarrou a mão e a colocou em território neutro. O movimento o despertou. Pesarosamente ficou de costas e se estirou e ela notou como lhe esticavam os músculos. Incorporou-se e apoiou a cabeça no braço, admirando seus despenteados cabelos dourados. Assim devia ver-se quando era menino e desejava ter um emplastro no olho como um pirata e cicatrizes de sabre. Sorriu-lhe. - Bom dia. Eu dormi bem, e você? Sorriu-lhe também, com um sorriso tão bonito que o único que lhe ocorreu pensar foi quão maravilhoso seria vê-lo assim cada manhã todos os dias de sua vida. - Dormi muito bem, disse ele com sua voz rouca matinal. Colocou-lhe uma mão no ombro com naturalidade e voltou a acomodar-se no feno. 74
Ao menos começou com naturalidade. Encontraram-se seus olhos e houve um comprido momento de intensa percepção mútua. Lentamente, como contra sua vontade, ele começou a baixar a mão por sua manga. Sob o tecido, sua pele vibrou de vida ao sentir sua quente palma. Ao notar que lhe acelerava a respiração, ela recordou a letra da canção do trangallo, e pensou como a roupa não era barreira para os casais resolvidos. Os olhos dele se obscureceram e deteve a mão para lhe acariciar a sensível pele do interior do cotovelo com o polegar. Ela reteve o fôlego, surpreendida pela sensação que havia ali. Ele lhe acariciou o antebraço até chegar ao pulso e a apertou. Ali estava a pele nua e sentiu vibrar o pulso na ponta de seus dedos. O rasgão da camisa de Robin lhe deixava a descoberto o oco da clavícula. Maxie desejou lamber-lhe, desejou lhe rasgar o resto da camisa para ver e tocar esse corpo esbelto e musculoso que a embalou toda a noite. Desejou ser uma mulher mohawk, capaz de entregar-se sem vergonha e nem dúvidas. Mas uma coisa que tinha em abundância eram dúvidas. Em sua cara devia refletirem-se seus pensamentos, porque ele fez uma expiração precipitada e se afastou bruscamente. - Uma maravilhosa maneira de passar a noite, disse com a respiração entrecortada enquanto ficava de pé, à exceção da parte em que nos separamos ao despertar. Ela se passou as mãos pelo cabelo, inquieta. - Talvez foi um engano dormir assim. Ele pôs cara ofendida. - Jamais cometi um engano em toda minha vida. Pelo menos, nenhum que não saiba justificar convincentemente depois. Ela riu e de repente tudo esteve bem. - Na próxima vez procurarei me levantar tão logo desperte. - Alegra-me que vá haver uma próxima vez. Necessitamos de prática. Ainda rindo, ela se levantou e se preparou para enfrentar o dia. Estava nublado e fazia frio, mas deixou de chover. A noite anterior Robin deixou lenha dentro do abrigo, por isso estava seca e foi fácil acender uma pequena fogueira do lado de fora da porta. Em uma pilha de pedra havia bastante água de chuva e com ela preparou chá enquanto Robin torrava pão pondo-o ao fogo inserido em um pau bicudo. Isso, acompanhado com o que restava do presunto em rodelas da senhora Harrison, seria um café da manhã suculento. - Importa-te que hoje me barbeie aqui dentro? - perguntou-lhe ele quando ela estava pondo o chá a esfriar. Está um pouco frio lá fora. - Adiante. Olhou-lhe a camisa rota tentando não ver o peito nu. Teremos que te buscar outra camisa. Creio que essa não tem conserto. - Estou mais que um pouco farto dela - respondeu ele com um gesto. Depois tirou sua navalha dobradiça e uma parte de sabão e se ajoelhou junto à chaleira que continha o resto da água quente. 75
Robin era tão pontual para barbear-se como ela era para beber sua infusão de ervas, mas nunca se barbeou diante dela. Supôs que essa manhã também o teria feito assim, se não fosse pela especial familiaridade que surgiu entre eles. - Não te ocorreu não de barbear? - disse-lhe. - Minha aparência é tão indeterminável que ninguém se fixa em mim; em troca você é muito mais fácil de se reconhecer. Uma barba te daria outro aspecto e isso faria mais difícil ao Simmons nos seguir a pista. Ele formou espuma na palma e a estendeu por suas bochechas e queixo. - A barba me cresce avermelhada, o que chama ainda mais a atenção que minha aparência normal. Mas tem razão em que temos que fazer algumas mudanças. Assaltaramnos bandoleiros e nos persegue Simmons. É hora de adotar outra estratégia. Ela o observou por cima do lado de sua taça. Havia algo muito íntimo em ver um homem barbear-se. Embora viu barbear-se o seu pai centenas de vezes, nunca pensou na profunda masculinidade de uma barba incipiente. - O que planeja? Ainda não temos dinheiro suficiente para comprar passagens em carruagem de aluguel. A não ser que pense que poderia ganhar suficiente realizando espetáculos de magia. - Tenho uma ideia. Não seria a rota mais rápida, mas seria muito difícil nos seguir. Ouviu falar dos boiadeiros? Passou várias vezes a navalha por uma curta tira de couro, estirou-se a pele da bochecha e raspou a barba nascente que lhe formava uma sombra loiro avermelhada na cara. Essa barba, pensou Maxie, era a que lhe raspou brandamente a nuca a noite anterior, pensou ela. Encolheram-lhe os dedos dos pés e tragou saliva. - Quer dizer os homens que conduzem gado nas cidades? - Correto. Todas as cidades precisam abastecer-se de carne, e Londres é tão grande que atrai ganho de toda Grã-Bretanha. Com um pouco de feno limpou o sabão e pelo da navalha e iniciou o trabalho na outra bochecha. - A maior parte da carne que se come na cidade é de gado levado de Gales e Escócia. - E fazem todo o caminho desde a Escócia? - perguntou ela com as sobrancelhas arqueadas. - A carne deve estar muito dura quando chegam os animais. - Geralmente os engorda em pastos do sul antes de levá-los ao mercado, explicou ele. - E não só é gado vacinado o que trazem de tão longe. Os boiadeiros também conduzem ovelhas, gansos, porcos e inclusive perus, embora estes últimos não de tão longe. - E como podem conduzir perus? - perguntou ela divertida. - Com muita dificuldade, respondeu ele com uma piscada. - É todo um espetáculo. Ao final do dia, os perus pousam a centenas nos ramos das árvores para passar a noite. Ela esteve um delicioso momento imaginando-as ramos inclinados, carregadas de perus dormindo. Isso a distraiu de pensar nos cinzelados traços de Robin, rodeados de espuma. - E o que tem que ver todo isso conosco? - As rotas do gado passam pelas zonas altas do país e evitam os caminhos de pedágio. Estão acostumados a levar viajantes que acompanham aos pastores, às vezes para economizar, ter companhia e segurança e outras vezes simplesmente pelo desejo de aventura. Tendo terminado a cara, levantou o queixo para continuar barbeando o pescoço. Ela 76
observou, fascinada, uma gota de água que lhe desceu até o oco da clavícula e continuou pelo peito, lhe molhando o pêlo encaracolado. - Passa algo? - perguntou ele ao notar seu olhar fixo. - Puros nervos femininos, apressou-se a dizer ela. - Põe-me nervosa ver uma navalha tão perto da garganta. - Até agora nunca me fiz uma ferida grave - sorriu ele. Em três suaves movimentos terminou o barbeado; depois limpou a navalha e a guardou dentro de sua bolsa de couro. Maxie agradeceu que terminasse antes que ela se achasse convertida em um maço de nervos e suor. Bem podia não haver nenhum dano, mas certamente lhe destroçou a paz mental. - Vejo as vantagens. Passam boiadeiros por aqui perto? - Uma rota passa ao oeste do Nottingham, a alguns dias de caminho daqui. Nesta estação há boas probabilidades de encontrar boiadeiros dentro de um ou dois dias. - Viajou com boiadeiros antes? - Sim, por isso conheço essa rota. Molhou sua toalha em água quente, espremeu-a e a passou pela cara e o pescoço. - Uma vez me uni a um grupo de boiadeiros quando fugi de casa. Sobre a fuga, sim, soava a verdade. - Tem que lhe haver causado muitas dores de cabeça a sua mãe. Ele permaneceu em silêncio uns momentos. - Pois não, disse finalmente. - Depois de me dar a luz, bastou-lhe me olhar uma só vez para morrer de emoção. Era impossível não ver a dor que se ocultava baixo esse tom de despreocupação. - Lamento, disse docemente. - Nunca tanto como o lamentou meu pai, respondeu ele saindo à porta para atirar a água do barbeado. - Sou igual a ela, segundo os retratos. Ele não podia olhar-me sem sofrer o seu coração. Ela desejou chorar de pena pelo menino que fora Robin. Mas se controlou. - Por que me conta isto? - perguntou-lhe. Ele esteve calado a duração de doze segundos, seu perfil tão tranquilo e remoto como o ceu cinza. - Não sei, Kanawiosta. Talvez porque às vezes me canso de ser tão misterioso. A ela lhe arrepiou na nuca ao ouvi-lo chamá-la por seu nome secreto. Era a primeira vez que revelava voluntariamente algo do que havia sob seu radiante e impenetrável exterior. Talvez isso se devesse que a noite anterior ela expôs tanto de si mesmo. Ou talvez dormir abraçados derrubou algumas das barreiras que os separavam. Pensou nos traços de caráter que percebeu aquela vez que tentou lhe ensinar a escutar a brisa, e na mulher que rejeitou sua proposta de matrimônio. Igual a um monte de feno, ele era feito de um matagal de fios de humor e evasão, inteligência e astúcia, consideração e tranquila indiferença. Acabava de lhe passar um cabo solto do matagal para que a desenredasse se ela quisesse. Se o fizesse, o que encontraria no centro de seu mistério, quando tivessem sido 77
desenredadas tudo os complicadas fios? Tão logo se formou a pergunta em sua mente soube a resposta. No centro de todo esse engenho e encanto natural havia solidão. Foi um alívio para a Desdêmona que lorde Wolverton lhe enviasse uma mensagem depois de ter notícias dos fugitivos no caminho do Rotherham; pelo menos já sabia que estavam a salvo. Mas o marquês não lhe dava nenhuma outra pista, e não voltou a vê-lo. Teria que localizar a sua prisioneira do modo difícil. Com um suspiro de exasperação, desceu de sua carruagem à poeirenta rua principal de outro povoado mais. Tinha a impressão de que estava uma eternidade percorrendo em ziguezague a região central, em busca de pistas de sua sobrinha e do patife libertino que se estava aproveitando dela. O fato de que o par continuasse viajando a pé não melhorava sua opinião de lorde Robert Andreville; qualquer um pensaria que um descarado que se respeitasse pelo menos alugaria uma carruagem; o homem não tinha estilo. Já era uma perita em fazer perguntas. Os povoados pequenos, onde chamavam a atenção todos os forasteiros, eram os melhores lugares para obter notícias, e as melhores pessoas a quem perguntar eram os anciões, que se reuniam nos botequins locais. Os lojistas também eram boas fontes de informação. Pela terceira vez esse dia, Desdêmona entrou na única loja do povoado, chamado Wingerford. Como sempre, a loja era uma confusão de artigos soltos como agulhas, fio, cilindros de tecidos singelos, cintas, jarros de cerâmica, mantimentos básicos como sal e açúcar, e frascos com doces para os meninos. Sobre um amontoamento de roupa usada roncava um gato cor mel, com o nariz coberto pela cauda. À entrada da Desdêmona, a volumosa proprietária correu a saudá-la, aguçando a vista diante a qualidade de sua roupa. - No que posso servi-la, milady? - Quereria saber se por acaso viu por este caminho a minha sobrinha com seu marido estes últimos dias, respondeu Desdêmona. - Ela é morena e muito baixa, medirá pouco mais de um metro e meio, e vai vestida de menino. Ele é de altura normal, loiro e muito de aparência agradável. - Sim, ontem estiveram nesta loja. Um brilho de admiração passou pelos olhos da mulher. - O cavalheiro havia rasgado a camisa e necessitava de uma nova. Tossiu. Também comprou um chapéu e alguns objetos de roupa interior. Eu não tinha nada tão fino como o que ele usava, mas me pareceu que ficou satisfeito. - Isto é uma tremenda tolice - disse Desdêmona, lançando-se a explicar a história que preparou. - O marido de minha sobrinha fez a estúpida aposta de ir a Londres a pé, e ela decidiu acompanhá-lo. Não levam muito tempo casados e pensou que uma viagem assim seria muita divertida. Eu não estava de acordo, como é lógico, mas não podia proibir-los. Lançou um suspiro lastimoso. - Tudo estaria muito bem, mas resulta que o pai da garota tem caído gravemente doente. Temos saímos para buscá-los com a esperança de que ela veja seu pai antes de que seja muito tarde, continuou com a voz meio quebrada. Se contasse a história umas quantas vezes mais chegaria a acreditar nela. - Disseram algo sobre a rota que seguiriam daqui? - Vá - comentou a proprietária com as sobrancelhas arqueadas, insinuando 78
delicadamente que tinha sérias dúvidas sobre a veracidade da história, embora nem em sonhos chamaria mentirosa a seu distinta visitante. A Desdêmona tocava dar o seguinte passo. Uma mulher respeitável como ela poderia ofender-se se tentasse suborná-la francamente; era necessário um pouco mais sutil. Passeou o olhar pela abarrotada loja até que encontrou um artigo apropriado. - Ui, que fita mais preciosa. Levo tempo procurando justamente esse tom de azul. Agarrou uma bobina de fita de um amontoamento. Venderia-me isto por cinco libras? O brilho de ironia dos olhos da tendera não deixava lugar a dúvidas de que sabia muito bem do que ia o transação. - Cinco guinéus e é seu, disse. - Esplêndido - exclamou Desdêmona, encantada, como se não soubesse que a fita valia menos de uma libra. A senhora envolveu a bobina em uma parte de papel enrugado. - Eu estava ali ao fundo da loja e lhes ouvi dizer algo sobre os boiadeiros. - Boiadeiros? - repetiu Desdêmona, perplexa. - Sim, ao oeste daqui há uma grande rota para transporte de gado. - Talvez tentem viajar junto com os pastores. Não seria a primeira vez que gente da aristocracia decide viajar assim como aventura. Desdêmona franziu os lábios. Isso tinha lógica, embora lhe complicasse ainda mais a busca. - Poderia me indicar a forma de chegar a essa rota? O olhar da proprietária se pousou na mão de seu cliente. Desdêmona lhe passou o dinheiro e recebeu detalhadas instruções. Antes de sair da loja, fez uma última pergunta: - Davam-se bem minha sobrinha e seu marido? A senhora encolheu de ombros. - Pareceu-me que sim. Pelo menos riam muitíssimo. - Quanto me alegra ouvir isso, disse Desdêmona, com um falso sorriso. - Temia que os rigores dessa viagem tão primitiva pudessem causar rugas desagradáveis entre eles. Isso seria uma lástima, porque estão recém-casados. Quando a carruagem de lady Ross já se afastava em meio de uma nuvem de pó, a senhora se permitiu um largo sorriso de satisfação, mostrando alguns buracos em sua dentadura. Esse casal de malandros eram os clientes mais lucrativos que já tivera em sua vida. O cockney corpulento, que assegurou que andava procurando dois ladrões, desembolsou duas libras, mas foi o nobre com brasão na carruagem o que a induziu a pensar que ocorria algo estranho; ele procurava dois primos jovens que andavam de farra, e em seu caso era uma avó a que estava a ponto de morrer, não um pai; sua senhoria desembolsou cinco libras. E logo a dama que procurava a sua sobrinha e seu sobrinho político. Deveria ter pedido dez libras. Enquanto guardava o dinheiro em uma bolsa que pendurou sob a saia, pensou se apareceria mais outro buscador. E mais importante ainda, o que ocorreria aos fugitivos quando os alcançassem seus seguidores? Soltou uma gargalhada. Apostaria pelo cavalheiro loiro; esse jovem seria capaz de 79
escapar de tudo usando esse pico de ouro tão brilhante como seus cabelos.
CAPÍTULO 12
Ouviram os mugidos antes de ver a pequena casa de pedra açoitada pelo vento. A estalagem, apropriadamente chamada Drover1, elevava-se sobre o topo de uma colina da que se dominava uma grande extensão de ondulantes colinas verdes. Ao aproximar-se um pouco mais viram um muito numeroso rebanho de cabeças de gado negras pastando em uma pradaria ao outro lado da estalagem. - Estamos com sorte, disse Robin. - É boa coisa que seja domingo. - Por quê? - perguntou ela olhando-o de soslaio. - Essas são cabeças de gado negras do Gales. Os boiadeiros gauleses, que são bons metodistas, não viajam de domingo, e por isso estão aqui e não a quilômetros de distância. - Compreendo. - Maxie olhou a estalagem com olhos esperançados. Robin, acredita que o dinheiro daria para um quarto com banho quente incluído? - Felizmente estamos os dois no mesmo caso, mas sei o que quer dizer. Lutaria com o Simmons com uma mão atada à costas por um banho. Pensou um momento. - Talvez seja o momento para um espetáculo de magia. Depois de um tranquilo domingo, a gente se sentirá com ânimos para um pouco de diversão. Deteve-se para colocar moedas e um lenço em lugares apropriados para sua magia. Da borda do caminho agarrou uma preciosa margarida, a fez desaparecer, e reataram a marcha. Os boiadeiros e outras diversas pessoas estavam sentados fora da estalagem, conversando, fumando e desfrutando de do sol de última hora da tarde. Nenhum olhou com especial atenção aos recém chegados. Maxie entrou detrás do Robin no boteco da estalagem, onde as figuras principais eram o proprietário e sua esposa. Ali observou como Robin experimentava um sutil e rapidíssimo troco; embora seus traços não trocaram nem um ápice, adotou uma personalidade diferente. Apresentou-se como o Extraordinário Lorde Robert e começou a fazer desaparecer moedas para logo as encontrar nos lugares mais incríveis. Foi acolhido com risadas e gargalhadas. Alguém pôs ao seu serviço um maço de cartas; depois explicou engenhosas piadas e fez malabarismos com jarras vazias. Acabou o espetáculo tirando uma margarida de seu lenço e entregando-a à proprietária com uma reverência. Sua atuação foi magistral, acompanhada por um fluido bate-papo muito divertido, mas sem nada que pudesse incomodar ou pôr receosos aos camponeses conservadores. Maxie o observou com certa tristeza, pensando que Robin voltava a ser um desconhecido. A intimidade da noite em que lhe contou sua história e da manhã seguinte se desvaneceu tão logo se puseram a caminhar. Aquele dia fora agradavelmente tranquilo, 1
Em inglês, Drover significa «boiadeiro».
80
com risadas e brincadeiras. De noite tinham voltado a dormir como duas pessoas amigas, e despertado sem paixões descontroladas por parte de nenhum dos dois. Tudo muito agradável e inofensivo. Entretanto, ela teria gostado de ver mais do homem profundo e complicado que era o verdadeiro Robin. Desejava saber mais sobre os caminhos difíceis pelos quais viajou antes que se conhecessem. Acabado o espetáculo, Robin foi ao canto onde ela estava sentada esperando-o. - Êxito, anunciou-lhe. - Há um quarto dobro livre sob o beiral. Os donos também nos dão o jantar, o café da manhã, banhos quentes para os dois com água para lavar pela principesca soma de quatro tostões. - Fabuloso. O que tem que fazer em troca? - Outros dois espetáculos aqui no boteco de noite, depois dos quais -acrescentou com voz reverente, - dar-me-ei um banho quente. - A vida é boa - disse ela solenemente. - É. Por um momento ela acreditou ver um brilho do Robin mais profundo em seu olhar, mas ele se limitou a continuar: - Agora vamos procurar ao boiadeiro chefe para lhe pedir permissão para viajar com o grupo. A partida é as sete em ponto da manhã. -Ui, vamos ter pouco tempo para nos cansar da vida civilizada. - Um canto rodado não agarra mofo - sorriu ele, - mas sim adquire certo brilho. Ela o seguiu para fora rindo. A risada era quase suficiente. Maxie se inundou na fumegante banheira de latão com um estremecimento de prazer tão intenso que um pastor puritano a teria enviado direito ao inferno. Depois de dias de lavagens parciais em riachos frios, um verdadeiro banho era uma sorte sem limites. Quando a pele começou a enrugar, tirou a espuma do cabelo e saiu a contra gosto. A banheira estava instalada detrás de um biombo, mas de todos os modos preferia estar seca e vestida antes que Robin voltasse de sua segunda atuação. Pela mente lhe passou uma imagem dele surpreendendo-a na banheira, seguida por uma erótica cena do que ocorreria depois. Com as bochechas acesas se secou energicamente com a toalha. Não era em Robin que devia cravar uma faca, e sim nela. Depois de ver o primeiro espetáculo, rindo com todos outros, escapou ao quarto para lavar toda sua roupa e a dele que não levava limpa. Nesse momento tudo estava pendurado em uma cadeira diante da lareira. Tiveram que pagar dois tostões extras pelo carvão, mas valeu a pena porque teriam roupa limpa e seca para o dia seguinte. Ficou com a única anágua que usava como camisola para dormir. Que maravilhoso sentir o sussurro da suave musselina ao lhe roçar a pele, ter o corpo livre de roupas rodeadas. Por essa única noite, dormiria como uma verdadeira mulher, embora pela manhã teria que voltar a por botas e calças. Depois de meio secar o cabelo tom a toalha, sentou-se com as pernas cruzadas diante da lareira e começou a longa tarefa de pentear-se e terminar de secar os longos cabelos. O agradável silêncio só era interrompido de tanto em tanto por rugidos de risadas provenientes do boteco e os mugidos do inquieto gado. Desde que conheceu Robin, era a primeira vez que estava sozinha, e a solidão lhe resultava agradável. Tristemente 81
reconheceu que não seria nem a metade de agradável se não soubesse que ele ia voltar logo. Sua mente voltou para Londres já as especulações sobre o que descobriria ali. Os dias não tinham diminuído sua resolução de saber a verdade sobre a morte de seu pai, e de encarregar-se de que se fizesse justiça se na realidade o assassinaram. Entretanto, uma parte dela temia inteirar-se do ocorrido. Amara ao seu pai com todos os seus defeitos, mas não lhe faria nenhuma graça enfrentar novas provas de suas debilidades. E se lorde Collingwood era o vilão, dar-lhe-ia pena fazer justiça, embora não o suficiente para desviála do seu dever. Era mais fácil viver no momento, nessa viagem que adquiriu a estranha dimensão de estar suspensa no tempo. No passado estava a dor pela perda, no futuro as decisões difíceis, não só em relação à morte de seu pai, mas também a respeito ao resto de sua vida. Seus pensamentos voltaram para Robin; deixou de escovar o cabelo e relaxou as mãos no regaço. Embora ao princípio lhe incomodou sua presença, sua ajuda fora impagável. Tinha-lhe dado muitíssimo, e seu sentido de justiça lhe dizia que devia fazer algo por ele em compensação. Entregar-lhe seu corpo era uma solução óbvia. Seria algo muito prazeroso, e sua infusão de ervas a protegeria de consequências inoportunas. Mas temia que sua complexa mescla de sentimentos por ele se convertesse em amor com uma relação tão íntima. Não fazia nenhuma falta acrescentar esse tipo de sofrimento à dor por seu pai. Também estava a clara possibilidade de que esse presente não fosse bem recebido. Era evidente que ele se sentia atraído por ela, mas ao parecer compartilhava suas dúvidas em relação à prudência de converter-se em amantes. Sorriu com ironia e reatou a tarefa de escovar e cavar no ar quente seus cabelos negros e lisos. Teve a sensação de que era como o gato que está sempre no lado equivocado da porta. Nunca gostara de ser objeto de desejo, e de repente descobria que tampouco se sentia totalmente feliz sendo um objeto de amizade sem desejo. Subir uma escada balançando uma pesada caldeira de cobre com água quente teria sido difícil nas melhores circunstâncias; ainda dificultava mais a tarefa a quantidade de cerveja que bebeu. Com o maior cuidado possível, Robin conseguiu chegar acima sem contratempos. Golpeou a porta do quarto para avisar ao Maxie de sua chegada, esperou uns quantos segundos, e entrou. Ela estava sentada diante da lareira com as pernas cruzadas, escovando-os cabelos que lhe caíam como uma cascata negra e lustrosa até quase a cintura. - Como foi o segundo espetáculo? - perguntou-lhe ela, sorridente. Ele se deteve, momentaneamente pasmo. Embora sempre era formosa, pela primeira vez desde que se conheceram, estava também perfeita e esquisitamente feminina. As móveis chamas da lareira envolviam seu corpo em uma suave e quente luz que fazia quase translúcida o tecido de sua anágua. Ele já sabia que a roupa de moço que usava ocultavam uma figura esbelta, mas a realidade ultrapassava em muito a sua imaginação. Toda ela era belamente proporcionada, as curvas de seus quadris, a estreita cintura e uns peitos que caberiam à perfeição em suas 82
palmas cavadas. Ressecou-lhe a boca e seu autodomínio esteve perigosamente a ponto de quebrar quando viu os círculos escuros de seus mamilos brandamente visíveis sob a musselina. Foi difícil não cravar a vista no amplo decote da anágua, onde a reluzente cadeia de prata complementava a lisa pele cor mármore escuro. Mais difícil ainda lhe resultou não atravessar o quarto, agarrá-la em seus braços e descobrir se sua paixão era capaz de acender a dela. - O espetáculo foi bem - disse, recordando que lhe fez a pergunta. - Por desgraça todos queriam me convidar a uma cerveja depois, e não pude evitar aceitar várias. O sorriso dela se desvaneceu e lhe observou a cara com um indício de receio. - Ou seja, está bêbado? Ele pensou um momento. - Não, só a metade. Com sorte, não terei ressaca, mas vou dormir como um urso em hibernação e despertarei de muita má vontade. Você fica a cargo de me jogar água fria na cara para que saia da cama amanhã. - Isso vai ser divertido, riu ela. - Suponho que teremos que nos levantar ao redor das seis se formos partir para as sete. - Isso eu temo. Liberado de sua paralisia, levou a caldeira ao setor isolado pelo biombo e acrescentou a água quente à banheira. Ali não compartilhavam a opinião dos estabelecimentos elegantes de que uma água perfeitamente boa deve atirar-se simplesmente porque a usaram uma vez. Acrescentar água quente era suficientemente bom para os clientes da estalagem Drover. Tirou a jaqueta marrom e a deixou em cima do biombo. - Espera-nos um dia comprido. Os boiadeiros avançam lentamente, mas viajam umas doze horas mais ou menos. Maxie se levantou agilmente e começou a fazer uma grossa tranca. - Então será melhor que me deite. Robin percebeu nervosismo em sua voz e adivinhou por que. - É curioso quão diferente é estar em um dormitório, disse-lhe. - Tem razão. Estas últimas noites, dormimos juntos muito calmamente, mas não sei por que compartilhar uma cama em um verdadeiro dormitório é diferente. Pensativa, mordeu o lábio inferior, seu exuberante e sensual lábio cor rosa escuro. - Não é decoroso, em um sentido que não senti antes. Se lhe tivesse dado o menor fôlego, qualquer dúvida honorável que tivesse tido sobre a prudência de deitar-se com ela teria saído voando pela janela. Mas era evidente que ela não estava tremendo de uma paixão incontrolável. - É uma lástima que não tenhamos um madeira trangallo, comentou ele. - Tirou a camisa e a pendurou no biombo. Eu dormirei no chão. Olhou os ombros nus e a parte do peito visível por cima do biombo e desviou rapidamente a vista. - Isso é uma tolice. Temos este quarto graças a sua habilidade para o espetáculo, e eu seria muito má pessoa se te condenasse ao chão duro por ser uma senhorita moderada. Até 83
o momento se comportou e confio em que seguirá fazendo-o. Além disso, é uma cama grande. Se ela soubesse o que ele estava pensando não se confiaria tanto, pensou ele. Por um lado era uma bênção que as mulheres confiassem nele, porque isso o atava com tanta firmeza como travas de aço. - Não te posso imaginar como uma senhorita moderada. Ela se meteu embaixo da puída colcha e fechou os olhos. - Creio que a moderação é um luxo que só podem se permitir mulheres que têm dinheiro e tempo para sentir prazer nela. Uma mulher que tem que abrir caminho no mundo não tem tempo para essas coisas. Ele terminou de despir-se e se meteu na banheira com um suspiro de felicidade. Quanto mais velho se fazia, mais apreciava as comodidades singelas. Surpreendia-o recordar alguns dos desconfortos que suportou em sua época de aventuras. A juventude tem as mais condenadas ideias sobre o que é divertido. Depois do banho, quando terminou de secar-se e pôs a cueca que Maxie lhe lavou e secou, ela já estava dormindo, com sua respiração tranquila e uniforme. A lhe pisquem luz do fogo se via muito jovem, seu rosto tenso e inocente. Mas inclusive adormecida conservava esse ar de feroz independência que era tão característico dela. Ele passou uns quantos minutos lavando o resto de sua roupa e pendurando-a junto ao fogo. Depois se meteu na cama, ocupando escrupulosamente seu lado, bem afastado dela. Resultava-lhe difícil imaginar como os norte-americanos conseguiam dormir juntos com o trangallo. Nem todas as capas de roupa que usavam os esquimós teriam sido suficientes para proteger a virtude de Maxie; o que a protegia era uma coisa chamada confiança. Teria gostado de aproximar-se e rodeá-la com seus braços como fez nas duas últimas noites, mas ela tinha razão: estar em uma cama era diferente de dormir sob o ceu e também muito mais perigoso. As camas eram para fazer amor, de um modo que os celeiros não, mesmo que um montão de feno bem pudesse ser um lugar delicioso para uma ocasional queda. Obrigou-se a relaxar, a não fazer caso do conhecimento de que um sedutor corpo feminino estava a só uns quantos centímetros de distância. Em resumo: teria resultado muito mais fácil dormir com um escorpião.
CAPÍTULO 13
Quando Maxie despertou não se surpreendeu ao encontrar-se acomodada contra Robin. O quarto esfriou ao consumir-se o fogo, e o calor do corpo dele a atraiu como uma pedra ímã. Em suas viagens às isoladas granjas de Nova a Inglaterra, às vezes lhe tocava compartilhar cama com meninos ou solteironas da família. Nessas noites passadas disputando com cotovelos, joelhos e os esforços semi-conscientes para monopolizar as 84
mantas, aprendeu que com muitas pessoas é difícil dormir. Curiosamente, ela e Robert eram companheiros de cama naturais, no sentido mais estrito da expressão. Durante a noite trocavam facilmente de posição, adaptavam-se mutuamente aos movimentos, sempre perto, sempre cômodos. E mais ainda, ela sempre despertava feliz e bem descansada, inclusive naquela noite em que tiveram que dormir na terra dura e fria. Ao que parece, Robin dormia igualmente bem. Eram as primeiras luzes da alvorada, o sol ainda não aparecia pelo horizonte. Muito em breve teriam que levantar-se, mas podia dormir uns minutos a mais com a cabeça apoiada no ombro do Robin e seu braço sobre seu abdômen nu. Ele pôs a cueca, o mínimo permissível para o trangallo. Em realidade, pensou, meio adormecida, era menos que o mínimo. Jogou atrás a trança e desceu brandamente a mão por seu peito. Sentiu na palma o agradável roçar contra seu pêlo claro e encaracolado. Embora Robin desse a impressão de ter uma constituição muito leve, era surpreendentemente musculoso. Ou talvez não fosse surpreendente, pensou ao recordar com que eficiência lutou com o Simmons. Por debaixo da manta, no flanco esquerdo, seus dedos encontraram a marca sobressalente de uma velha cicatriz. Apalpou-a, pensativa; pela forma e irregularidade de sua superfície, parecia ser a cicatriz de uma ferida de bala. O que teria estado fazendo para que lhe disparassem? Algo indevido, o mais seguro. Tinha sorte de ter sobrevivido. Devia ter múltiplas vidas, como um gato. Graças a Deus. Na palma sentiu o ritmo forte e uniforme dos batimentos do coração de seu coração. O quarto já estava iluminado o suficiente para ver o perfil perfeitamente cinzelado, que a perolada luz da aurora se via depravado e quase infantil; seu rosto a fazia pensar em um anjo, um ser de outro plano da existência, brilhante e terrível em sua formosura. Pensou se na sociedade de anjos haveria alguns poucos patifes. Não as entidades diabólicas e arrogantes como Lúcifer, que se rebelaram contra Deus e se converteram em demônios, e sim anjos simplesmente diferentes, muito volúveis e originais para contentar-se em cantar nos coros celestiais. Talvez um desses anjos patifes caiu à Terra e vendo uma mulher necessitada de amparo em uma comprida viagem, baixou a ajudá-la. Sorriu, pensando o que teria Robin para inspirar essa fantasia. Quando se encontraram no claro com o anel de elfos, ela pensou em Oberón. Mas era absolutamente humano, o que o fazia ainda mais atraente. Movida por puro afeto, elevou a cabeça e lhe roçou os lábios com os dela. Robin se moveu e se voltou para ela, procurando seus lábios para corresponder a carícia. Parecia que se cumpriu sua predição sobre a ressaca por ter bebido tanta cerveja na noite anterior, porque estava mais adormecido que ela. Essa ideia lhe produziu uma deliciosa e travessa sensação; poderia beijá-lo e simular que isso não contava porque ele não o recordaria. Quando a língua de lhe tocou os lábios, ela os abriu. O beijo se fez mais profundo, adquirindo o lânguido aprimoramento das rosas assando-se ao sol do verão. Acariciou-lhe as costas, baixando até o quadril, com uma mão tão destra para acariciar como para fazer 85
conjuros. A fina musselina da anágua era uma barreira insignificante, de modo que sentiu a lenta e sensual pressão de cada dedo. Se soubesse fazê-lo, ronronaria como um gato agradado. Quando sua mão se moveu como por vontade própria para lhe rodear o pescoço, soube que era o momento de acabar o beijo. O simples prazer da proximidade se estava convertendo em desejo sério; não convinha continuar o que tinham começado. Logo ele despertaria e seria injusto que repentinamente ela se voltasse afetada quando esteve cooperando com tanto entusiasmo. Infundiu-se de coragem para afastar-se, mas no momento em que tomava a resolução, ele levantou a mão e a cavou em seu peito. Teve que afogar uma exclamação diante da sensação de fogo líquido que lhe percorreu as pernas e braços. Necessitava de mais ar, mas não conseguia decidir-se a pôr fim a esse beijo infinito, embriagador. Estava meio enjoada quando ele afastou a cabeça. - Que formosa é, sussurrou. Já lhe havia dito que era formosa antes, mas isso não significava nada comparado com a rouca paixão que ouviu em sua voz. Enquanto inspirava ar, trêmula, lhe beijou a garganta. A ligeira aspereza de seu queixo era um claro contraste com sua aveludada língua e a carícia íntima de seu fôlego. Ele encontrou com seus lábios o oco da base da garganta, e dali os deslizou para baixo até deter-se em seu peito. Era como o sol, quente e poderoso, que leva exuberante vida a tudo o que touca. Sumida na sensualidade, só se deu conta de que lhe baixou com os dentes o tirante da anágua quando sentiu seu mamilo em sua boca. Reteve o fôlego, eletrizada. Ele lhe lambeu o mamilo até endurecê-lo, movendo a língua com um ritmo que fazia vibrar o sangue, excitando-a, embriagando-a, seduzindo-a. - Robin, Robin... A última e débil resistência cedeu, porque já não recordava por que tinha dúvidas. Acariciou-lhe as costas nuas, apalpando e apertando impaciente, pelas costelas e sob a cintura de suas calças. Ele estava meio em cima dela, e no joelho sentia o calor de seu membro vibrante de excitação. Moveu a perna, esfregando-lhe deliberadamente. Ele emitiu um rouco gemido de desejo. Com a mão esquerda lhe agarrou a beira da anágua e a subiu até os quadris. Com a palma lhe acariciou o sensível interior das coxas com fricções suaves e longas. Depois lhe tocou as partes íntimas, explorando com seus dedos de mago suas dobras lisas e quentes. Quebras de onda de sensações caóticas lhe percorreram o corpo e gemeu, todo seu ser aceso de necessidade. Com a respiração ofegante, lhe sussurrou ao ouvido. - Oh, meu Deus, Maggie, faz tanto, tantíssimo tempo... O desejo se fez em lascas; aturdida e se desesperada, Maxie tentou acreditar que ouvira mau, mas nem sequer em meio da tempestade da paixão, podia mentir-se a si mesmo em algo que lhe importava tanto. - Não sou Maggie, disse-lhe com fria precisão bordada de gelo. - Sou Maxie. Os olhos de Robin se abriram bruscamente, tão perto que ela viu uma emoção um pouco parecido ao terror em suas profundidades azuis. 86
Depois de um momento de paralisia, ele se separou dela e jogando atrás a manta desceu as pernas da cama; ao ficar em pé cambaleou e quase caiu ao chão. Com uma estupidez nada característica nele, sentou-se no lado da cama, apoiou os cotovelos nos joelhos e cobriu a cara com as mãos. - Meu Deus, sinto muito, disse-lhe com voz rouca.- Não era minha intenção que ocorresse isto. Estava tremendo violentamente. Só Deus sabia que tormenta enchia sua mente, mas ela pressentiu que era muito mais que desejo frustrado. Fria e aturdida, Maxie se sentou na cama, tentando encontrar serenidade em meio de um caos de confusão e paixão truncada. Deus santo, que estúpida fora. Quando conseguiu dominar a raiva instintiva e irracional, conseguiu dizer: - Não foi tua culpa. Culpa à cama. Detestando-se pelo ciúme que sentia, acrescentou em tom mordaz: - Quereria que eu fosse essa Maggie? Os músculos das costas do Robin ficaram rígidos de tensão, as omoplatas definidas claramente sob sua pele branca. Depois de um doloroso silêncio, respondeu-lhe sem olhála e com a cara ainda coberta pelas mãos: - Há perguntas que não devem fazer-se. E se as fazem não se devem responder. Lentamente lhe subiu um calor humilhante à cara, ao dar-se conta que voltou a ser estúpida. Mas não pôde deixar de perguntar: - Não se devem ou não se podem responder? Ele tirou as mãos da cara. Desapareceu toda sua máscara de deslumbrante frivolidade, deixando só a angústia nua. - Não se podem, suponho. Robin se levantou e foi olhar à janela contemplar as colinas cobertas de névoa. Embora fosse magro, sob sua pele branca se moviam brandamente seus avultados músculos, como um leão da montanha Adirondack. Se tivesse estado o suficientemente acordado para saber quem era ela, se era a ela a quem desejou realmente, toda essa beleza masculina estaria em seus braços nesse momento. Estariam nus fazendo o amor à calada luz da alvorada. Tratou de enterrar a dolorosa sensação de perda. - É Maggie a mulher com a que desejava se casar? - Sim. Inspirou cansativamente. - Durante muitos anos fomos amigos, amantes e companheiros de maldades. Companheiros de maldades? Não desejava pensar nisso nesse momento. - Ela morreu? - Não, nada disso. Está muito feliz casada com um homem que pode lhe dar muito mais do que eu podia lhe dar. Maxie sentiu um acesso de raiva contra essa ausente Maggie. Uma mulher capaz de abandonar Robin por outro com mais fortuna não valia esse sofrimento. Teria lhe dito isso se as palavras pudessem o curar de sua aflição, mas a lógica não tem influência nas coisas do coração. Além disso, a escolha de Maggie poderia haver-se devido mais a desejo de segurança que de riqueza. Sendo ela uma mulher que ansiava estabilidade, compreendia isso. A vida com o Robin poderia ser estimulante, mas 87
certamente careceria de segurança. Já havia mais luz e viu que ele tinha as costas atravessadas por suaves linhas paralelas. Levou-lhe um momento compreender que eram cicatrizes de vergões produzidos por selvagens açoites. Deu-lhe um tombo o coração ao pensar que história não contada havia detrás dessas terríveis cicatrizes. Não podia fazer nada por essas antigas cicatrizes, mas sim podia fazer algo pela carne de galinha produzida pelo ar frio. Foi agarrar a camisa da cadeira onde a colocaram a secar e a levou. - Sua Maggie é uma condenada estúpida, disse-lhe enquanto lhe punha a camisa sobre os ombros. Robin voltou a cabeça e a olhou com um débil sorriso na cara. Seus cabelos loiros pareciam mais prata que ouro à meia luz. Pôs a camisa e depois lhe rodeou os ombros com um braço, atraindo-a mais perto. - Não tem nada de estúpida, mas te agradeço a solidariedade. Posto que sua anágua a protegia muito pouco do frio, passou um braço pela cintura do Robin e se apoiou contra ele. Em qualquer lugar que se tocassem havia calor. Já se desvaneceu a paixão acidental da cama, mas de todos os modos havia uma faísca de atração física entre eles. Supôs que sempre haveria, embora não se deixassem arrastar por ela. Também havia uma estranha sensação de intimidade. Devia ser um pouco parecido ao sentimento de quão soldados sobreviveram a uma batalha juntos. - Como é Maggie? - perguntou-lhe, pensando que poderia lhe convir falar. Ele titubeou, pesando sua resposta. - Forte, inteligente, valente, íntegra até a medula dos ossos. Parece-se com você, Kanawiosta, embora não há nenhuma semelhança física. Aumentou a pressão do braço sobre seus ombros. - Além de que as duas são formosas. Ficaram em silêncio, contemplando o sol que se ia elevando centímetro a centímetro sobre o horizonte. Maxie supôs que deveria sentir-se honrada pela comparação, embora isso não era suficiente para erradicar a dor de saber que ele a havia acariciando por acidente, sua mente adormecida cheia de sonhos com outra mulher. Com razão se mostrou ambivalente respeito ao desejo que sentia por ela. Pensou na complicada paisagem mental que percebeu vagamente naquela vez que tentou lhe ensinar a escutar a brisa. Alguns dos lugares negros de sua alma deviam estar formados pela dor sentida por um homem que não entregava seu amor com frequência, mas que se o fazia, era com todo o coração. Também recordou seu sólido sentido da honra. Embora amasse a outra mulher, também queria sinceramente a ela, ao menos o suficiente para não desejar lhe fazer mal. Isso explicava seu autodomínio para refrear-se; uma aventura em que seu coração era acessível e o dele não certamente causaria sofrimento. Tampouco diminuiu sua própria ambivalência. Sentiu uma repentina e debilitadora quebra de onda de amargura pela forma como estava presa entre duas culturas diferentes, compreendendo as duas, mas sem pertencer a nenhuma. Entre o povo de sua mãe, uma mulher solteira podia deitar-se com um homem sem ser censurada. Se ela fosse uma verdadeira filha da Liga das Seis Nações, e vivesse em sua própria casa entre seus 88
parentes, teria se sentido orgulhosa de ter um amante. Mas ela não era sua mãe, era uma mestiça. Certo que não era uma senhorita inglesa resguardada, educada para entregar seu corpo somente a um homem que pagasse o preço do matrimônio pelo privilégio de deitarse com ela. Mas também era um produto da cultura de seu pai, que temia expressar livremente o desejo. A sociedade branca a consideraria lasciva se deitasse com um homem sem estar casada. Entretanto, não havia nenhuma perspectiva de matrimônio com Robin. A vida com seu pai lhe ensinara que é impossível obrigar um homem a sentar cabeça, e um engano inclusive tentá-lo. Até no caso de que, movido pela solidão, fizesse-lhe outra oferta quixotesca, como quando lhe sugeriu ir a Gretna Green, suas culturas e passados eram muito diferentes para que a união fosse permanente. Seria uma estúpida se esperasse promessas de amor eterno, e o mesmo se se conformasse com menos. Isso não queria dizer que não houvesse nada de sincero e autêntico entre eles, mas ceder à paixão danificaria o coração e o futuro, possivelmente sem remédio. Tragou o desejo de chorar e apoiou a cara no ombro do Robin. Ele a rodeou com o outro braço. - Talvez lamente que nos tenhamos conhecido, disse-lhe muito sério. - Parece que causo mais problemas dos que sou capaz de evitar. - Não o lamento se você não o lamentar, respondeu ela com a voz afogada pela camisa dele, que cheirava a limpeza. Ele apertou a bochecha contra seus cabelos. - Não, Kanawiosta, não o lamento. Ela sentiu uma opressão na garganta. Sim, havia algo muito real entre eles, mas nunca seria amor. Resolveu que a partir desse momento, até que se separassem em Londres, comportaria-se com lógica. Aceitaria e desfrutaria com seu engenho e amizade, e não se permitiria desejar mais intimidade. Entretanto, no mais profundo de sua mente, reconhecia que essa lógica lhe deixaria lembranças frias quando Robin já não estivesse ao seu lado.
CAPÍTULO 14
A carruagem saltava e se balançava no caminho cheio de buracos. Cansativamente, Desdêmona Ross se firmou no assento, evitando olhar a expressão de sofrimento de sua criada, e imaginando que o veículo romperia um eixo antes de chegar a seu destino, uma isolada estalagem chamada Drover. Essa era uma parada habitual dos gados viajantes, e se chegava mais facilmente a cavalo que em carruagem. Com um último salto, a carruagem se deteve. Desdêmona saiu sem esperar que o cocheiro lhe abrisse a porta. Ficou ali um momento sob o sol da tarde, saboreando a 89
ausência de balanço. O vento soprava turbulento sobre o topo árido, acamando as ervas e fazendo girar as nuvens acima. A julgar pelo aroma, não fazia muito que havia passado um rebanho. Face às instruções recebidas, tinha-lhe levado tempo encontrar um passo acessível pela rota das cristas. Teriam estado ali Máxima e lorde Robert? Bom, logo saberia. Pôs-se a andar para a estalagem de pedra, erodida pelo vento e que servia aos boiadeiros fazia séculos. Quando deu a volta a sua carruagem, viu outro veículo com um conhecido brasão na porta. Sorriu satisfeita. Parecia que fora o suficientemente rápida para dar alcance ao marquês do Wolverton, que do incidente com os bandoleiros foi diante dela. Falando do demônio. Abriu-se a porta da estalagem e nela apareceu o marquês em pessoa. A figura alta e imponente se deteve na porta um momento. Depois lhe dirigiu um sorriso tão agradável que por um momento, ela se sentiu desconcertada. - Bom dia, lorde Wolverton - disse, recordando que eram adversários, não amigos. Suponho que não encontrou nossos fugitivos. - Ainda não. Quer que lhe conte o que tenho descoberto? Desdêmona titubeou; olhou para a estalagem e depois ao marquês. - Pode interrogar ao hospedeiro depois - disse-lhe ele, adivinhando sua tácita objeção, para descobrir se ocultei informação, mas creio que não iria mal que falássemos. Deus santo, tão transparente era? Sim, era, reconheceu Desdêmona, com um suspiro. Jamais ninguém tinha nenhuma dificuldade para saber o que pensava, o que era um inconveniente para uma mulher com interesses políticos. - Muito bem - respondeu, sabendo que seu tom não era cortês. O marquês lhe ofereceu o braço como se estivessem no parque St. James, e a afastou da estalagem. Embora ela fosse alta, ao seu lado se via baixa. - Espero que não tenha sofrido nenhuma contrariedade pela tentativa de roubo, disse ele. - Nenhum absolutamente. Olhou-o pela extremidade do olho. - Em realidade era um homem de fina imagem. Espero que você não tenha sofrido nenhuma contrariedade pelo meu disparo. - Ao contrário, disse ele com uma piscada travessa. - Minha milagrosa escapada me fez avaliar mais a vida do que a valorizei em anos. - Se quiser que lhe dê um disparo louco alguma vez no futuro, estarei encantada em agradá-lo. Ele riu. - Não creio que escape uma segunda vez. - Quando já estavam a salvo de ouvidos indiscretos, disse-lhe mais sério. - Faz dois dias passou por aqui um grupo de boiadeiros gauleses. Meu irmão e a Inocente Resguardada se uniram a eles neste lugar. - Seu irmão e quem? - Perdoe. Adquiri o hábito de pensar na senhorita Collins com o apelido de Inocente Resguardada, explicou ele sem parecer muito arrependido. O descaramento a fez entrecerrar os olhos, mas mordeu a língua. Reservaria qualquer comentário mordaz até ter ouvido o que lhe ia dizer. 90
- Nestes momentos já estarão perto de Leicester, continuou ele - Não estou seguro sobre a identificação da senhorita Collins, ela tem um dom especial para passar despercebida, mas alguém divertiu aos boiadeiros com um espetáculo de malabarismo e jogos de magia em troca de alojamento e comida. Tem que ser Robin. Quando era menino lhe fascinava a prestidigitação, e praticou até ser bastante perito. Isso fazia bastante simpático o patife. Resistindo a inclinação a abrandar-se, Desdêmona perguntou: - Onde estava minha sobrinha enquanto lorde Robert brincava de saltimbanco? - Vamos, ela estava tomando um banho. O marquês a olhou avaliador. - A senhorita Collins teve ampla oportunidade de escapar e não a aproveitou, o que respalda a conclusão de que viaja com o Robin por sua livre vontade. Desdêmona fez uma espécie de grunhido do fundo da garganta. Depois de um momento de surpresa, Wolverton franziu os lábios para reprimir um sorriso. - Creio muito provável que meu irmão se tenha oferecido à senhorita Collins acompanhá-la até Londres para protegê-la. Isso é exatamente o tipo de comportamento excêntrico e honrado próprio dele, e significaria que ela não corre nenhum perigo. Justamente o contrário. Também explica por que a jovenzinha não tem nenhum desejo de escapar dele. Embora em seu interior Desdêmona reconhecesse que o marquês podia ter razão, não estava disposta a fazê-lo em voz alta. - Sua imaginação lhe honra, mas não estou convencida. Chegaram a uma rocha ao lado do topo. O pendente era muito levantado para continuar caminhando, de modo que Desdêmona se sentou, sem esquecer de envolver-se toda inteira em sua volumosa capa. - Poderia Máxima estar encerrada acima no quarto e não banhando-se, continuou. Também é certo que quando a mulher foi bastante ameaçada, intimida-se muito para atrever-se a fugir. Não estarei satisfeita enquanto não falar com ela em pessoa. - Não sei por que, mas não me surpreende ouvir isso, murmurou ele, sentando-se ao seu lado e cruzando uma perna sobre a outra. Dirigiu-lhe um olhar glacial. - O que pensa em fazer se os encontrar antes que eu? Pagar para salvar do escândalo seu sobrenome, seja qual for o preço? - Essa é uma possibilidade - disse ele, seus olhos cor ardósia muito sérios. - Só saberei quando chegar o momento. - Se se vê obrigado a escolher entre a justiça e seu irmão, o que fará? O marquês suspirou e olhou para as ondulantes colinas. - Sinceramente espero que não se apresente essa situação. Você conhece a garota, lady Ross. É tão virtuosa que seja impensável que possa comportar-se com decoro menos que perfeito? Sua sobrinha não é uma menina inocente, e ouvi dizer que os norte-americanos são menos rígidos em seus costumes que nós. Apanhada justamente pela pergunta, Desdêmona sentiu que lhe acendia a cara. Wolverton a olhou perplexo, e ela viu o momento em que ele compreendeu tudo. - Quanto a conhece? - perguntou-lhe, aguçando o olhar. - A senhorita Collins só 91
esteve uns meses neste país, e você me disse que foi ao Durham a visitá-la. Ela olhou seu guarda-sol, e ficou a brincar com a manga. - Não nos conhecemos em pessoa, disse com voz sufocada. - Mas nos temos escrito muitas cartas, e creio que a conheço bastante bem. Tem uma mente educada e reflexiva. Nunca vi nenhum sinal de ordinarismo nem de imoralidade. - Deus santo, alguma vez viu à garota? Com heróico autodomínio, continuou em tom mais moderado: É possível que sua inquietação por ela seja excessiva. Pelo que averiguei, tenho a impressão de que é uma jovem muito independente e enérgica. Se, além disso, é uma inocente virtuosa, não corre nenhum perigo com meu irmão. Talvez lhe conviesse esperá-la em Londres. Estou seguro de que chegará lá muito em breve e você se economizaria desta tediosa busca. Lady Ross se incorporou e o olhou fixamente. - É possível que você tenha razão e que Máxima chegue sã e salva a Londres. Mas me falta sua comovedora fé na integridade de seu irmão, de modo que vou continuar a busca até que me tenha assegurado pessoalmente de que está bem. Para Giles teria sido uma decepção se ela se deixasse dissuadir. Também se levantou e lhe observou atentamente a cara, que lhe interessava muitíssimo mais que a sorte da Inocente Resguardada. Sob a sombra de um chapéu de palha com larga viseira, seus traços eram mais enérgicos do que estava de moda, mas bem formados e muito atraentes. Além disso, um raio de sol extraviado que penetrava a sombra, revelou-lhe que as sobrancelhas, que ele supôs que eram castanhas, na realidade eram castanho avermelhadas. - Que cor de cabelo oculta embaixo desse chapéu tão decoroso? Ela o olhou com seus olhos cinzas muito abertos e desconcertados. Embora normalmente Giles era um modelo de correção, cedeu ao irresistível desejo de comportar-se mal. Com uma lentidão que lhe permitiria impedir-lhe se quisesse, desatou-lhe a fita e o tirou da cabeça. Reteve o fôlego ao ver os chamejantes cabelos leoninos que lhe rodeavam a cabeça em grossas tranças. Umas quantas mechas escaparam e lhe caíam enroscados no comprido pescoço. Já não parecia uma reformista altruísta. Se soltasse esses cabelos, era como uma deusa pagã das montanhas. - Agora compreende por que tampo isso, disse lady Ross com expressão vulnerável; não é um cabelo decente. Os homens o admiram ou o detestam, mas jamais o respeitam. Minha cunhada, lady Collingwood, estava desesperada quando me apresentou em sociedade. Disse-me que minha aparência era mais própria de uma cortesã que de uma dama. Giles nunca se fixou muito nessa cor de cabelo, não tinha opinião nem em favor e nem contra, mas descobriu que sentia um desejo quase avassalador de lhe soltar os cabelos e colocar as mãos neles. Desejou sentir entre seus dedos esses cachos reluzentes à luz do sol e enrolar-lhe nos pulsos. Desejou enterrar a cara nessa sedosa massa para não poder ver nem saborear outra coisa que essas jubas brilhantes. Deus santo, no que estava pensando? Já estava perto dos quarenta, era um modelo de sobriedade e conduta responsável. Havia passado da idade em que a excitação sexual lhe 92
fizesse estragos na mente. Fez uma funda inspiração. - No cabelo não há nada que seja inerentemente moral ou imoral, disse em tom leve. Roçou-lhe uma das lustrosas tranças, e meio se surpreendeu de que não lhe queimasse os dedos. - O seu é muito formoso, e não tem absolutamente nada de indecente. - Eu não estou tão segura, respondeu ela com ironia. - Tenho descoberto que se quiser que tomem a sério devo tampar isso Ele decidiu confirmar uma suspeita. - Todo este tempo pensei que sua preocupação por sua sobrinha é maior que o que se merece a situação. Por que desconfia tanto dos homens? Ela olhou para outro lado. Sua pele tinha a transparência leitosa de uma verdadeira ruiva. - Não desconfio de todos. Os pais e os irmãos, e alguns outros, são bastante dignos de confiança. Isso explicava muitíssimo. - Lembro ter ouvido dizer que seu defunto marido, sir Gilbert, era meio instável. Ela voltou bruscamente a cabeça e o olhou com expressão endurecida. - É você um presunçoso, milorde. Se um homem com sua fama de retidão pode ser tão impertinente, não estranho que seu irmão seja um patife consumado. Arrancou-lhe o chapéu das mãos e o meteu na cabeça, cobrindo o chamejante cabelo, e com ele seu momento de vulnerabilidade. Logo se afastou com as costas muita erguida sob as máscaras dobras de sua capa. Giles pensou que nunca a viu sem estar envolta como um esquimó. Como seria sem tudo esses envoltórios? Embora fosse um tanto volumosa, dava a impressão de ter abundantes e agradáveis curvas femininas. Gostava que uma mulher estivesse bem formada. Lástima que sua senhoria fora tão suscetível. Os sapatos ligeiros e a necessidade de escolher cuidadosamente os lugares para pisar em meio da erva diminuíam a velocidade da retirada de lady Ross. Ele não teve a menor dificuldade para lhe alcançar. - Dentro de dois dias os boiadeiros vão passar pela cidade de Market Harborough. Pode chegar ali a tempo para interceptá-los. - Estará você aí, lorde Wolverton? - perguntou ela com voz glacial, sua cara bem escondida detrás da viseira de seu chapéu. - É obvio. Creio que é o melhor lugar possível para encontrar nossos fugitivos. Apesar de suas palavras otimistas, Giles duvidava muito que Robin se deixasse interceptar, a menos que quisesse. A habilidade para fugir era muito importante em um espião, e seu irmão não teria sobrevivido tantos anos no Continente se não fosse um perito em evitar ser descoberto e evitar os seus perseguidores. O marquês decidiu não revelar algo tão importante. Se Robin continuasse por sua atual rota, passaria perto de Ruxton, sua propriedade. Era muito possível que ele e a Inocente Resguardada decidissem passar ali uns dias, sobretudo se suspeitassem que os perseguiam. Se não os encontrasse antes, buscaria-os em Ruxton. Dada a natureza desconfiada de 93
lady Ross, seria muito melhor para todos os envolvidos fosse ele quem localizasse aos fugitivos.
CAPÍTULO 15
Maxie afundou os dentes no sanduíche, formado por uma fatia de presunto entre duas grossas fatias de pão fresco, e mastigou o bocado com satisfação, apoiada no muro de pedra esquentado pelo sol. - Viajar com os boiadeiros só tem dois inconvenientes - comentou. Robin terminou de tragar seu bocado e o regou com um bom gole de cerveja. - Ou seja? - O ruído que fazem vários milhares de animais mais o sortido de pessoas e cães. E o aroma, sobre tudo o aroma. Ele pôs-se a rir. - Ao final não o notará. - Vivo dessa esperança. Tragou o último pedacinho de presunto. Mas eu gosto dos boiadeiros. Recordam os granjeiros da Nova a Inglaterra. Têm a solidez e a autenticidade dos que vivem perto da terra. - Dado que lhes confia o dinheiro de seus próximos, têm que ser homens bons e formais. Creio que entre os requisitos para lhes conceder licencia estão o ter no mínimo trinta anos, estarem casados e terem casa. Ela enrugou o nariz. - Pelo visto na Inglaterra são muitas as coisas que exigem licença e regulamentações. - O preço da civilização, disse ele com uma piscada travessa. - Um inglês que ache pesado isso sempre pode ir a América do Norte para encontrar vida, liberdade e felicidade. - Nos Estados Unidos há mais liberdade - disse ela, pensativa, - mas a felicidade se pode encontrar em qualquer parte. Por desgraça nenhuma lei pode assegurar que alguém a encontre. Ela olhou com irônica admiração e voltou à atenção ao seu sanduíche. Os animais estavam se acomodando para a noite e a maioria dos boiadeiros estava desfrutando de sua comida do entardecer no interior da diminuta estalagem. Eles tinham ficado fora, em parte para desfrutar do bom tempo e principalmente porque o êxito de seu disfarce dependia de que não a olhassem muito de perto; já estava farta, mais que farta de seu infernal chapéu. Um sutil movimento lhe captou a atenção. Levantou a vista e viu uma semente de arce caindo lentamente ao chão em espiral. O sol iluminava sua forma de asa fazendo-a parecer ouro translúcido. Sustentada pela suave brisa, a semente girou e girou, quase contra a gravidade durante compridos, segundos compridos até que, fazendo uma curva, aterrissou a pouca distância de sua mão. Ela soltou o fôlego retido e sorriu de prazer. Só se inteirou de que a tinham observado quando Robin lhe disse em voz baixa: 94
- Enquanto observava cair essa semente sua expressão era a de uma pessoa que teve uma experiência religiosa. Ela abriu a boca para responder com frivolidade, mas mudou de opinião. Talvez Robin não a entendesse totalmente, mas a aceitaria: - Em certo sentido, tive. Para o povo de minha mãe, a natureza é grande em tudo. Uma semente de arce é um aspecto do espírito tal como o é uma nuvem, o ar, o vento ou uma alma humana. Se a gente roubar de um esquilo os frutos secos que armazenou para alimentar-se no inverno, deve lhe deixar o suficiente para que sobrevivam o esquilo e sua família, porque têm o mesmo direito que os seres humanos aos dons da terra. Ele franziu o cenho com a atenção total que prestava aos temas que lhe interessavam. - Esse conceito da natureza é absolutamente distinto ao dos europeus, para quem a natureza é um inimigo ao que terá que dominar, ou um servidor que deve fazer o que ordena o homem. - Francamente, creio que o conceito índio é melhor e mais são, disse ela. Fechou os olhos e desfocou o olhar, tentando definir conceitos difíceis de explicar em inglês. - Minha mãe era capaz de experimentar a unicidade da natureza simplesmente olhando uma flor ou uma nuvem. Vê-la nesse estado era compreender a sorte. - Praticava uma espécie de meditação? Maxie encolheu de ombros. - Provavelmente essa é a melhor palavra inglesa para defini-la, embora não tem os tons corretos. Eu diria que se convertia em parte do fluxo da natureza, como uma gota de chuva em um rio. - Pode você fazer o mesmo? - Podia, até certo ponto, quando era pequena. Creio que a maioria das crianças têm essa capacidade, precisamente disso tratam muitos dos poemas do Wordsworth. Novamente ficou em silêncio, procurando as palavras. - Inclusive agora, às vezes quando estou contemplando o mundo natural, sinto-me como se a energia da terra estivesse a ponto de elevar-se em mim. Se o fizesse, converteria-me em parte do fluxo da natureza. Suspirou - Mas isso não me ocorreu nunca. Suponho que li muitos livros e passei muito tempo na cultura do homem branco para estar em total harmonia com a terra. É muito frustrante ter a integridade quase ao meu alcance e não consegui-la. Talvez algum dia. - Integridade, esse é um conceito atraente, disse ele. Acrescentou com um careta: Talvez me atraia porque sou naturalmente fragmentado. - Em realidade não, só acredita nisso porque vive muito em sua cabeça. Observa isto e tente imaginar como é ser esta semente. Use seu espírito, não sua mente. Esteve a ponto de lhe agarrar a mão, mas se refreou, ao recordar o que ocorreu antes. Agarrou a semente de arce e a lançou ao ar. Levada pela brisa, esta se afastou voando, brilhando como uma mariposa. Seu espírito foi com ela, gozando da liberdade de estar no ar, da alegria de deslizar-se por um raio de sol. Debaixo da radiante energia estava o desejo de encontrar um lugar fértil onde fosse possível afundar raízes profundas na terra, jogar ramos para o ceu, converter-se em uma imensa árvore e dar origem a uma nova vida. Depois de que a semente voltou a cair ao chão, ela recuperou a objetividade suficiente 95
para pensar se o desejo de ter lar e raízes seria da semente ou dela. Das duas, provavelmente, se não, o espírito da semente não teria ressonado tão profundamente em seu interior. - Creio que eu entendo um pouco, Kanawiosta - disse Robin, tirando-a de seu pensamento. - Tentar ser um com a natureza não é um ato religioso a não ser uma maneira de ser. - Ainda há esperanças para você, lorde Robert. Embora a alegrava que ele entendesse, não queria falar mais sobre algo tão essencialmente íntimo. Apontou para uma misteriosa operação que tinha lugar a uns cem metros deles. O que está fazendo Dafydd Jones? Robin olhou ao boiadeiro largo e de cara corada. - Está instalando uma forja portátil. Talvez não tenha notado, mas aos animais são ferrados para que não fiquem coxos com a viagem. Trazer uma forja lhes evita ter que procurar um ferreiro local. - Como se ferram animais com duas pernas? - Lhes põem duas espécies de ferraduras, uma em cada pata, explicou ele. Creio que se chamam calos. O mais provável é que o ferreiro tenha trazido calos já forjados e lhes ponha esses em lugar de forjar outros novos. Assim só necessita de muito pouco trabalho com ferro quente. Curiosa, ela se incorporou. - Creio que vou olhar. Dafydd Jones era um dos poucos boiadeiros que falavam inglês, por isso de vez em quando ela conversava com ele enquanto seguiam ao gado. Seu acento gaulês era tão fechado que não sempre lhe entendia o que dizia, mas adorava escutar sua voz melosa de barítono. - Gostaria de me ajudar, moço? - disse-lhe ele quando já estava perto. Ela olhou duvidosa ao grupo de novilhos que pastavam placidamente perto deles. - Não sei se serei de muita utilidade, senhor. Nunca trabalhei em uma forja, nem ferrei a um boi, e você necessitaria de alguém maior que eu. - O único preciso é que me passe os calos e as ferramentas quando eu lhe pedir isso disse o senhor Jones, lhe assinalando os instrumentos. Ato seguido enrolou uma corda e a lançou para um animal ao que um cão de patas curtas separou-se do resto. Quando o laço quase tocava o chão, o gaulês puxou energicamente o laço, e quando se apertou ao redor das patas do novilho, deu outro forte puxão. O pesado animal caiu lançando um mugido, mais de surpresa que de irritação. Maxie lhe aconteceu uma peça de metal. Rapidamente ele colocou o calo em seu lugar com prego e martelo, dobrando o lado da pata sobre ele, e ao mesmo tempo controlando ao animal que se agitava para soltar-se. Esse novilho só necessitava de um calo, de modo que em seguida o soltou, o animal se levantou e se afastou para o prado movendo o rabo indignado. O resto dos novilhos que esperavam no grupo foram ferrados com a mesma facilidade. Da estalagem chegava o som de vozes entoando uma canção gaulesa, a modo de acompanhamento musical para o pôr-do-sol. Maxie continuou passando calos, pregos e o martelo conforme os necessitava o senhor Jones, enquanto pensava no quão compridos 96
eram os dias na Inglaterra. Ali estava muito mais ao norte que em sua terra natal, mesmo que os invernos ingleses eram muito menos curtos. Acabada seu jantar, Robin se aproximou lentamente a olhar. Embora se colocasse detrás dela, ela sentiu um formigamento que lhe advertiu sua presença. Ela sentiria falta dele quando se separassem, muitíssimo ao menos. O último animal, que fazia o número treze, resultou tão desafortunado como seu número. Era um animal nervoso, com círculos brancos ao redor dos olhos negros. Só os lhes mordisque dos cães impediram que escapasse. O senhor Jones jogou o laço; tão logo o novilho caiu com um mugido furioso, se aproximou e começou a ferrá-lo. De repente, com muita rapidez para segui-lo com a vista, o animal se soltou do laço e ficou bruscamente de pé, agitando sua enorme cabeça e mugindo furioso. Um bicudo chifre golpeou o gaulês nas costelas, lhe rasgando o guarda-pó e jogando-o no chão, sob as patas ferradas. Maxie ficou paralisada de horror, sem saber o que fazer. Outros boiadeiros estavam na estalagem e não ouviriam um grito no meio do canto animado pela cerveja. Se tentasse tirar dali o senhor Jones, o novilho a esmagaria no chão como uma erva. Esqueceu de Robin. Assim que abrira a boca de espanto, ele passou junto a ela como um raio e se agarrou aos chifres ao animal, por trás da cabeça. Com toda sua musculosa força começou a torcer a cabeça ao animal por de um e outro lado, com o fim de atirá-lo ao chão. - Maxie, tire dali o senhor Jones! - gritou quando conseguiu fazer cair ao animal. Ela se inclinou para agarrar ao gaulês por debaixo dos ombros, e uma das patas do agitado animal lhe fez voar o chapéu e lhe arranhou o ombro. O homem a dobrava em tamanho, mas o medo lhe deu forças e conseguiu arrastá-lo pelo áspero chão. Não deixou de arrastá-lo até ter a forja entre eles e o enfurecido novilho. Quando levantou a vista, viu uma perigosa cena. Robin tinha fortemente empunhados os chifres retos do novilho e os braços rígidos pelo esforço de manter no chão o furioso animal, que não deixava de mugir e agitar-se contra ele, mas sem conseguir fazer bom uso de sua força bruta. Impressionou-a a força e domínio visíveis nos músculos tensos de Robin. Mas esse controle seria temporário, era como ter pego pela cauda a um tigre. Só Deus sabia como conseguiria escapar sem lesões graves. Estava a ponto de pôr-se a correr para a estalagem a pedir ajuda, quando Robin conseguiu fôlego para dar uma série de agudos assobios. Imediatamente apareceram vários cães pastores correndo. Robin esperou que estivessem perto e então soltou o novilho. Quando os dois estiveram de pé, o enfurecido novilho tentou chifrar o fraco humano que lhe causara tanta moléstia. Robin se esquivou escassamente a tempo, um dos chifres lhe passou quase roçando o peito. Antes que o animal voltasse para novo ataque, os cães o rodearam, e por serem tão baixos, por suas patas curtas, conseguiam se esquivar seus coices. Mordendo-lhe os pés, conduziram-no de volta ao rebanho principal. Ali, com surpreendente rapidez, o animal esqueceu sua raiva e começou a pastar outra vez. 97
Ofegante e com o cabelo e a roupa revoltos, Robin caminhou para onde estava Maxie ajoelhada junto ao boiadeiro caído. - Como está o senhor Jones? Antes que ela pudesse responder, o gaulês se sentou, resmungando palavras que pareciam ser maldições gaulesas. Nas calças tinha as marcas lamacentas das patas que o pisaram. - Não lamentarei ver esse animal convertido em assado, disse em inglês. - Talvez no futuro me dedique a ferrar gansos. Ficou de pé com a ajuda do Robin e Maxie; fez um gesto de dor e se explorou cuidadosamente as costelas. - Não há nada rompido, graças a vocês. Robin agarrou a corda que usou o boiadeiro, examinou-a e de repente levantou um extremo rompido. - A corda estava desgastada e se rompeu quando o animal começou a lutar. O senhor Jones também examinou a corda. - Sim, é fácil ser descuidado, mas um descuido assim pode ser fatal. Devo-lhes dois goles de cerveja e muito mais. Olhou a Maxie e abriu mais os olhos, surpreso. Depois sorriu. Será melhor que te volte a pôr o chapéu, moça. Maxie se ruborizou. Esqueceu o chapéu. Apressou-se a recolhê-lo. - Pareceu-me mais seguro viajar como menino. - Não revelarei seu segredo, assegurou-lhe o boiadeiro. - Convido-lhes a uma cerveja agora? - Talvez para o Robin - disse ela, limpando-se de ervas os joelhos da calça. - Não me viria mal uma taça de chá. - Vir-me-á bem uma cerveja - disse Robin, - mas creio que nós dois preferiríamos que ninguém mais se inteirasse disto. Depois de tudo foi um acidente sem importância. - Eu não o teria considerado sem importância se o animal tivesse me matado, disse o senhor Jones com ironia. - Nem minha mulher e nem meus filhos. Mas se não querem atrair atenção, não contarei a outros. Colocou a mão no bolso, tirou duas moedas e as passou a Maxie. Ela tentou devolverlhe e ele pôs-se a rir. - Isso não é por me salvar, essas coisas não se podem pagar, e se pudessem, eu valorizaria minha vida em algo mais que dois xelins. Isto é o que ia lhe dar por me ajudar a pôr os calos. - Então, obrigado. Foi... educativo. . Enquanto Robin e Maxie caminhavam para seu alojamento particular junto a uma sebe, onde tinham estendido suas mantas, o boiadeiro desapareceu na buliçosa estalagem. Passados uns minutos, se aproximou uma garçonete com uma jarra de cerveja e um fumegante jarro de chá. Depois de lhes entregar as bebidas, desejou-lhes uma agradável noite e partiu. Maxie se sentou sobre a manta a beber seu chá, ao qual tinham acrescentado uma liberal quantidade de açúcar e leite. - Lutou com novilhos muitas vezes? 98
- Não, mas o vi fazer a outros, respondeu Robin. - Também compreendi a uma tenra idade que nunca seria suficientemente corpulento para vencer a ninguém pela força, e que teria que aprender a lutar com inteligência. O truque está em não permitir que o competidor use sua própria força contra um. Terá que fazê-lo perder o equilíbrio e, se for possível, voltar seu poder contra ele. - Quer dizer, aplicou esses mesmos princípios com o novilho e com o Simmons. - Havia uma certa semelhança entre eles. Recordando os volumosos pescoço e ombros do Simmons, ela teve que estar de acordo. Distraidamente passou a mão pelo machucado que lhe deixou a pata do novilho no ombro. - Quando o senhor Jones disse que se dedicaria a ferrar gansos, disse-o em sentido literal ou metafórico? Robin sorriu. Embora a escuridão já era quase absoluta, a luz da lua era suficiente para ver o brilho claro de seus cabelos. - Creia ou não, disse-o em sentido literal. - Quando tem que se transportar gansos uma distância longa, fazem-nos pisar em alcatrão e depois algo assim como serragem ou conchas de ostras moídas. Formam-se umas almofadinhas duras e assim as patas protegidas não se desgastam antes de chegar ao seu destino. - Isso é menos perigoso que ferrar novilhos. Bebeu um pouco de chá. Robin, é uma verdadeira mina de ouro de informação inútil. Como faz para que não te mescle tudo? - Mas isso não é inútil, protestou ele. - Como se sabe quando vai precisar ferrar um ganso? - Ou chamar um cão pastor. Apoiou a taça no joelho, rodeando-a com a mão para que não caísse. Se Robin levava uma vida de delinquência, talvez fosse a observação constante o que o conservou vivo e livre. - Suponho que aprendeu os assobios se por acaso os necessitasse algum dia. - Este algum dia chegou bastante rápido neste caso, respondeu ele. Bebeu um pouco de cerveja. - Alguma vez bebe algo que contenha álcool? - Nunca. Pensando que isso era muito lacônico, acrescentou: - Quando tinha doze anos decidi que beber era um hábito sem o qual estaria melhor. No povoado de minha mãe se costuma haver problemas terríveis por causa do álcool. De fato, o alcoolismo serve para inspirar um novo movimento religioso entre os iroqueses. - Como ocorreu isso? - Ganeodiyo do Seneca, Seneca significa «Lago Belo», era um ancião que estava morrendo por causa do alcoolismo. Ele um dia teve uma visão; na visão lhe disseram que essa água ardente era para o homem branco e que o Grande Espírito proibia o seu povo que a bebesse. Ganeodiyo renunciou ao álcool e no dia seguinte estava são de sua enfermidade. Começou a pregar suas revelações, sobre a fidelidade no matrimônio, o amor na família, a obediência dos meninos aos seus mais velhos. Há elementos cristãos, mas a essência é a Índia. - Guardou silêncio um momento, ouvindo as recordadas vozes de sua mãe e seus parentes. Ganeodiyo dizia: «A vida é incerta, portanto, enquanto vivamos, nos amemos os 99
uns aos outros. Soframos sempre com que os que sofrem e os que estão necessitados. Nos alegremos sempre com os que estão contentes». Morreu no ano passado, a uma idade muito avançada. Fez-lhe um nó na garganta e ficou calada. Nunca falara dessas coisas a um homem branco, jamais sonhou que alguma vez o faria. Mas claro, nunca se imaginou com um homem como Robin. - Certamente. Ganeodiyo seguiu o mesmo caminho dos outros grandes professores espirituais do mundo, disse Robin, pronunciando o nome do Seneca tal como o havia dito ela. Diz que o crucifixo era de sua mãe, acrescentou depois com certa deixa de interrogação na voz. - Era cristã, mas acreditava que isso não invalidava as crenças de seu povo. Tocou o crucifixo por cima da desgastada camisa. - Estava acostumada a dizer que a sobrevivência está em combinar o melhor da sabedoria de seu povo com o melhor da sabedoria do homem branco. A isso chamava «caminho do meio». - Deve ter sido uma mulher extraordinária. - Era. Continuou em tom mais ligeiro: - Meu pai sempre dizia que não podia voltar a casar-se porque nunca encontraria outra mulher que fosse tão boa para escutar. Geralmente dizia isso quando eu estava lhe ganhando em uma discussão. - Pelo menos falava com você, disse Robin com certa amargura. - Meu pai se limitava a promulgar decretos. - E você os desobedecia todos. - Isso eu temo. Emitiu um afetado suspiro. - Tenho uma incapacidade constitucional para obedecer ordens. Talvez essa rebeldia não lhe serviu bem na vida, pensou ela, mas certamente o fez interessante. Sorrindo deixou de um lado o jarro, envolveu-se na manta e se deitou. - É uma pena que não tenha conhecido ao Max. É o único homem que conheço que poderia ter derrotado sua mente de urraca. - De urraca? Robin também se envolveu na manta e se deitou. Que insulto! Terei que atirar as pedrinhas brilhantes que estava colecionando para te dar de presente. Rindo, ela se acomodou na mochila como travesseiro. Havendo outras pessoas dormindo por ali, tinham que manter uma distância prudente entre eles. Sentia falta do agrado e da comodidade de dormir nos braços do Robin. Tal como estavam, tinha-o muito perto para ser sem risco e muito longe para ser agradável. Meio adormecida estirou a mão e a pôs entre eles; tratando-se dele, ela não tinha a menor sensatez. Com enorme prazer sentiu sua mão quente sobre a sua e entrelaçaram os dedos. Relaxou, sabendo que dormiria melhor porque estavam se tocando. Quando Robin despertou à alvorada, estava fresca e havia neblina. Divertiu-lhe e não o surpreendeu comprovar que durante a noite os dois se aproximaram. Nesse momento ela estava acomodada contra ele, com sua cara exoticamente formosa meio oculta na camisa dele. Adorava essa pele morena que tinha uma calidez sensual que fazia parecer pálidas e só meio viva à maioria das outras mulheres. Ela tinha um joelho colocado entre suas coxas, e ele tinha a mão apoiada na deliciosa curva de suas nádegas. Embora os separavam capas de roupa, sentiu a inconfundível 100
agitação do desejo. Mas despertava algo mais que simples desejo. Tinha um tipo especial de sensualidade inocente, um saber sentir-se cômoda com seu corpo que ele não viu nunca em nenhuma mulher européia. Também tinha inteligência, humor e valentia. O que não tinha era um interesse visível em adquirir um par. Sua inicial desconfiança dele se converteu em simpatia, inclusive em ocasional aprovação, mas ele suspeitava que tão logo tivesse investigado a morte de seu pai, afastaria-se dele como uma gata, sem voltar a vista atrás. Aumentou mais a pressão do braço ao compreender o muito que lhe custaria vê-la partir. Maxie o revitalizara; sentia-se como se despojasse de várias capas de aborrecimento no tempo que estavam juntos. Pela primeira vez se perguntou francamente o que desejava dela. Se lhe interessava uma simples paquera e achava muito limitadora uma amizade platônica. E embora o enfeitiçasse seu corpo miúdo e perfeito, uma aventura passageira não seria suficiente. Não, o que desejava era uma companheira com quem poderia rir, jogar e fazer o amor. Com Maggie desfrutou desse tipo de relação, até que, por causa de uma fatal carência dela, ela se separou do seu lado. Era mais que injusto fazer comparações entre Maggie e a jovem que tinha em seus braços; era impossível. Entretanto as duas tinham espíritos generosos e valentes, e talvez com o tempo conseguiria encontrar com Maxie a intimidade que alcançou com Maggie. Levaria tempo desenvolver essa abertura, porque ele e Maxie se ocultavam detrás de umas defesas muito treinadas. Mas dia a dia cada um revelava mais de si mesmo ao outro. Era prometedor que lhe tivesse falado de coisas sagradas para o povo de sua mãe. Quanto a ele, mais de uma vez se surpreendeu dizendo coisas que não tivera a intenção de dizer, coisas que o faziam sentir-se vulnerável de modos muito incômodos. Sorriu tristemente. Estava disposto a suportar o desconforto com a esperança de que disso resultasse algo duradouro, mas temia que ela não tivesse nenhum interesse em um resultado assim. Ela desejava um verdadeiro lar e um homem a quem pudesse respeitar. Ele podia lhe dar um lar, mas não fez condenadamente nada que fosse digno de respeito. Entretanto, sucumbiu à tentação e lhe beijou brandamente a ponta de seu elegante narizinho. Levantaram-se as longas pestanas negras e ela o olhou sem pestanejar com seus olhos castanhos. - Qual dos dois se moveu durante a noite? - Creio que os dois. Ela sopesou isso, pensativa. - As pessoas vão despertar logo. Deveríamos nos levantar, ou pelo menos nos separar um bom pouco. - Tem muita razão, disse ele. Mas não a soltou, e ela tampouco fez ameaça de separar-se. Em lugar de afastar-se, passou o braço por entre o braço e as costelas e a aproximou mais ainda. Boa coisa que estivessem vestidos, se não, ele esqueceria quão público era o lugar onde estavam. 101
Felizmente muito em breve começaram a ouvir-se murmúrios de vozes através da névoa. A contra gosto ele retirou o braço. - Se alguém notar que é mulher, isso não fará nenhum bem a sua reputação. Ela se sentou, sorrindo perversa. - E se acreditarem que sou homem, isso fará ainda menos bem as nossas reputações. Ele se incorporou rindo e estirou os músculos duros. Preocuparia-se no futuro quando chegassem a Londres. No momento, não conseguia recordar quando os dias lhe pareceram tão cheios de promessas.
CAPÍTULO 16
Desdêmona Ross não imaginou que na Inglaterra houvesse tantas cabeças de gado como as que viu essa manhã nas ruas do Market Harborough. Sem tirar a vista do espetáculo, acabou sua terceira taça de chá. Esse quarto da estalagem Three Swans em que se achava alojada, no segundo andar e com vistas à rua, já estava reservado na noite anterior quando chegou, mas o conseguiu empregando uma convincente combinação de dinheiro e intimidação. Quando começaram a desfilar as cabeças de gado negras gaulesas, ela estava tensa de espera contemplando desde sua estupenda situação, mas depois desse tempo já estava cansada e aborrecida, e temia que sua busca estivesse condenada ao fracasso. Viu muitos novilhos negros, um montão de boiadeiros gauleses com seus guarda-pós, calças e meias três-quartos largos de lã, cães pastores de patas ridiculamente curtas e um bom número de camponeses que viajavam com eles. De tanto em tanto viu também a dois homens corpulentos em uma das ruas laterais que saíam ao outro lado da rua principal. Davam a impressão de estar observando com a mesma atenção que ela. Talvez um deles fosse o homem que Cletus enviou atrás Máxima. O que não viu era a ninguém que tivesse alguma similitude com a descrição que tinha de Máxima Collins. Tampouco viu o famoso lorde Robert. Deixando a taça no prato, pensou onde estaria o marquês do Wolverton. Seguro que estava perto e observando com a mesma atenção que ela. Isso se não tivesse interceptado já a sua presa em comum, o qual explicaria por que ela não tivera êxito. Seus sentimentos eram contraditórios em relação à ausência do Wolverton. Esse homem tinha o dom de meter-se o sob sua pele, e sempre que isso ocorria ela se comportava como uma idiota. Entretanto, tinha boa lembrança de seus encontros com ele. Por fim estava à vista o final da longa coluna de gado. Fechando a marcha vinham três pessoas poeirentas e um par de cães pastores ao trote. Afogando uma exclamação, Desdêmona tirou a cabeça pela janela, entrecerrando os olhos para confirmar o que acabava de ver. Um dos três era um boiadeiro, outro um homem de andar ágil de estatura média, e o outro era uma figura muito baixa com roupas de moço e um chapéu como o que lhe haviam descrito uma e outra vez. 102
Enquanto ela olhava, o do meio disse algo que fez rir aos outros dois. Transbordante de entusiasmo, Desdêmona saiu correndo do quarto para a escada. O passo de gado por um caminho de campo não era silencioso, mas era muito mais buliçoso quando o ruído dos cascos, os mugidos afligidos e os latidos dos cães soavam encerrados entre a multidão de casas de uma cidade. Maxie e Robin vinham atrás da desordenada ruma de cabeças de gado negras junto com o Dafydd Jones e um grupo de animais que por lhes faltar calos nas patas faziam mais lenta a marcha. O senhor Jones estava a cargo dos novilhos atrasados, com dois cães cujo trabalho era impedir que os animais se metessem nas ruas laterais. A maioria dos residentes da cidade se retiravam prudentemente a suas casas esperando que passasse o rebanho. O passo ocupou boa parte da manhã e estava deixando a rua principal em terrível necessidade de limpeza. As rotas pecuárias normalmente não passavam pelas cidades, mas o passo por essa cidade era essencial para chegar a um importante mercado boiadeiro. Depois das rotas de cristas a campo aberto, Maxie temia o perigo ao entrar na cidade. Mas não tinham visto sinais do Simmons depois do encontro no claro do bosque. Era possível que tivesse renunciado à perseguição. Esse foi um pensamento desafortunado. Estavam chegando à praça do mercado quando soou um grito dado por uma voz conhecida: - Ali estão! A menos de quinze metros, saiu Simmons de uma porta, com uma expressão de selvagem prazer em sua esmurrada cara. Junto a ele saiu outro homem com aspecto de boxeador, igualmente corpulento e com expressão ainda mais brutal. - Maldição! - exclamou Robin entre dentes. Os dois se giraram, e viram outros dois rufiões avançando para eles pelo outro lado. Estavam apanhados. Um agudo assobio partiu o ar quando Dafydd Jones compreendeu a situação e atuou com uma tremenda velocidade que desmentia sua aparente lentidão. Seu assobio ordenava aos cães que fizessem girar o último grupo de novilhos e conduze-os a maior velocidade possível pela rua. Um cão pastor bem treinado não põe em julgamento uma ordem, por muito contrária que seja ao costume. Em segundos a rua estava bloqueada por animais confusos e nervosos. Açulados pelas agudas mordidas dos cães, alguns se giraram rapidamente e galoparam a toda velocidade pelos paralelepípedos. Outros se agruparam mugindo confusos. Era uma cena tirada diretamente do manicômio. - Muito obrigado! - gritou Robin, agarrando Maxie pelo braço. - Boa sorte! - gritou o senhor Jones, agitando uma mão em sinal de despedida. Maxie conseguiu ver a cara furiosa do Simmons. Ele e seus homens tentavam abrir passo por no meio do estrépito de animais, mas sem êxito. Teriam sorte se não ficassem pisoteados na rua. Depois se concentrou na fuga, seguindo ao Robin para a seguinte rua lateral. Os animais avançavam deixando um estreito espaço entre eles e as fachadas das casas, por isso era possível avançar por essa espécie de passadiço. Sentia-se pequena e horrorosamente frágil sacudida pelo passo dos animais, mas enquanto os dois se 103
mantivessem junto às paredes estariam a salvo. Depois da caótica batalha por avançar, chegaram à rua lateral e puseram-se a correr por ela. Robin diminuiu um pouco o passo e lhe tocou o cotovelo. - Como está? - perguntou-lhe alegremente. - Machucada, mas em pé. Passou a poeirenta mão pela testa, - Sabe se orientar no Market Harborough? - Não, mas vamos aprender - respondeu ele com um radiante sorriso. Ela sentiu uma quebra de onda de exuberância irracional. Robin podia ser um patife, mas nessas circunstâncias não podia imaginar um companheiro melhor. A verdade seja dita, não conseguia imaginar um melhor companheiro para qualquer circunstância. Desdêmona chegou ao andar baixo e abriu a porta da estalagem no preciso momento em que o tranquilo desfile de animais se desintegrava em um caos. Horrorizada ficou olhando a alvoroçada massa mugente. Os novilhos eram muito maiores de perto do que pareciam de acima, e seus chifres eram muitíssimo mais bicudos. Os gritos furiosos perfuraram o clamor geral. Olhou para esse lado da rua e viu dois homens de aspecto rude abrindo caminho por meio dos animais. Resolutamente decidiu que se eles podiam fazê-lo, ela também. Saiu à rua. Atrás dela ouviu o grito horrorizado do dono da estalagem; sem fazer caso do grito, esmagou-se contra a parede da fachada e começou a avançar. Deveria ter trazido seu cocheiro; não, melhor o seu guarda, que era maior e mais forte, embora provavelmente ele também fosse muito sensato para fazer essa estupidez. Sem retroceder em seu empenho, continuou avançando para o lugar onde viu Máxima. De repente viu os dois rufiões desaparecerem por uma rua lateral. Na distância viu outros dois homens de similar estampa, mas nenhum sinal de sua esquiva sobrinha. Furiosa e exasperada, ficou nas pontas dos pés e fez viseira com a mão para ver o que ocorria ali. Esse ato foi um engano desastroso. Um chifre de um dos novilhos se introduziu na abertura da manga de sua capa, puxando. Ao tentar recuperar o equilíbrio, enredou-se nas saias, a capa se rasgou totalmente e ela caiu ao chão escancarada sobre os asquerosos paralelepípedos. Ao levantar a cabeça viu descer sobre ela as patas ferradas de um novilho e soube que ia morrer. Maxie e Robin seguiram pelo beco lateral até que acabou em uma ruela estreita paralela a principal. Quando deram a volta à esquina, ouviram ressoar um grito atrás deles, que lhes indicou que Simmons e seus companheiros os seguiam de perto. Por essa rua discorria nesses momentos todo o tráfego desviado da rua principal, e tiveram que avançar em zig-zag, sorteando cidadãos pouco curiosos. De repente encontraram bloqueado o caminho por uma imensa carroça pesada que estava descarregando mercadorias no portão posterior de uma loja; imediatamente Maxie se jogou ao chão e passou por debaixo, seguida pelo Robin em seus pés. Quando ficaram de pé do outro lado da carroça se encontraram diante da porta de 104
um armarinho. Depois de sacudir o pó dos joelhos, Robin entrou na loja e dirigiu um sorriso encantador à mulher que estava atrás do balcão. - Perdoe a moléstia, senhora, mas temos urgente necessidade de sua porta de trás. Enquanto a deslumbrada mulher emitia confusos sons, ele atravessou a sala de vendas e abriu a única outra porta. Maxie correu atrás dele, meio esperando que a mulher lhe arrojasse um cilindro de tecido. Um estreito corredor os levou a cozinha, na parte de trás da casa. Robin dirigiu outro encantador sorriso à sobressaltada cozinheira, atravessaram a cozinha e saíram ao jardim. A porta de ferro do fundo estava sem chave e dava a outra ruela. Como muitas cidades antigas, Market Harborough se estendeu seguindo um plano de serpenteantes becos medievais. Por pura má sorte, em uma dessas voltas se encontraram à vista de um dos homens do Simmons, que imediatamente chamou os seus companheiros. Nem o ruído de fundo da passagem do gado afogou o som dos pesados pés que corriam a unir-se à perseguição. Maxie e Robin giraram sobre seus pés e puseram-se a correr a toda velocidade por um labirinto de ruelas e becos. Se tivesse estado escuro teriam podido escapulir-se facilmente de seus perseguidores, mas a plena luz do dia a vantagem era do Simmons, e as opções de rotas, limitadas. A seguinte volta de esquina os levou por uma rua de levantado pendente ao final da qual havia um montão de barris vazios empilhados na parte de atrás de um botequim, dos que emanava um forte aroma de lúpulo. Ao vê-los, Maxie teve uma inspiração. - Espera, Robin - resfolegou. Inclinou um barril até deixar o de lado no chão, e esperou a que aparecessem os perseguidores na travessa. Aos poucos segundos os quatro deram volta a esquina e começaram a subir. Alegremente ela empurrou com o pé o barril, que começou a rodar rua abaixo, e imediatamente agarrou outro. Rindo ofegante, Robin se aplicou também à tarefa, e entre os dois enviaram rodando uns seis barris, em um estrondo de saltos, rangidos e de choque com as paredes e entre eles. Sujas maldições e chiados de protesto sossegados bruscamente seguiram aos fugitivos quando reataram a fuga. Embora os poucos segundos de descanso lhe tinham ido bem, os pulmões de Maxie seguiam ardendo pelo esforço. Mas continuou correndo, agradecendo que sua ativa vida lhe tivesse dado essa energia. Robin fazia um elogio ao supô-la apta para o que fosse necessário, e de maneira nenhuma podia desfalecer. A seguinte ruela fazia um giro abrupto à direita. Quando deram a volta, Maxie sufocou uma exclamação de consternação. A rua terminava em um muro de tijolos bastante mais alto que um homem, e não havia outra saída. O golpe rasante das patas do novilho fez rodar a Desdêmona até ficar de lado, sem fôlego. Embora tentasse se levantar, sabia que não o obteria; em uns instantes entraria no estado em que já não lhe importaria nada. Nesse momento umas mãos fortes a levantaram e de um puxão a tiraram da rua até 105
deixá-la na relativa segurança de um vão pouco fundo de uma porta, onde ficou com a cara enterrada no ombro de uma jaqueta de lã. Sem sequer lhe haver visto a cara a seu salvador, sabia que era Wolverton. Ele a fez girar até deixá-la com as costas apoiada na porta e ficou diante, de costas ao tumulto, para protegê-la dos golpes dos animais. Com os dedos agarrados às lapelas, ela teve um ataque de tosse, pelo pó que inspirou. Com resignada brincadeira de si mesmo, pensou que dificilmente uma mulher podia ter pior aspecto de que tinha ela nesse momento. Era a primeira vez, desde seus dezoito anos, que desejava que um homem a admirasse. O pensamento lhe pareceu horroroso e desafortunado, mas não se afastou. O abraço do Wolverton era muito agradável. - Alguém já lhe disse alguma vez que sua coragem supera com acréscimo o seu juízo? - disse-lhe ao ouvido uma risonha voz de barítono. A ela lhe escapou um fervo de risada. - Sim, com frequência. Na rua estava diminuindo o alvoroço de cabeças de gado. A seu pesar, Desdêmona se separou de seu salvador. Imediatamente, seus joelhos a traíram, mas antes que caísse ele voltou a agarrá-la do braço. - Estou tremendo como um pudim. - É uma reação totalmente normal. Escapou por um cabelo. Ela voltou a apoiar-se na porta, ordenando ao seu corpo que se comportasse. - Tenho uma enorme dívida com você, Wolverton. Os animais poderiam tê-lo pisoteado. Ele se encolheu de ombros para lhe subtrair importância. - Passo bastante tempo com gado vacinado; conheço bem seus costumes. Embora a fortuna da maioria dos aristocratas britânicos provinha da terra, poucos homens dos que ela conhecia em Londres o reconheceriam com tanta naturalidade. Talvez passasse muito tempo em Londres. Com uma mão trêmula jogou para trás o cabelo desordenado. Seu vestido e sua capa estavam destroçados, e seu chapéu estava esmagado na rua. - Se tivesse sabido que ia participar de uma revolta de gado, teria me vestido de outra maneira. Nesse momento a última parte do rebanho ia avançando lenta e ordenadamente pela rua caminho do mercado. O boiadeiro que fechava a marcha se aproximou com expressão preocupada em sua curtida cara. - Espero que não tenha sofrido nenhum dano, senhora - disse a Desdêmona com seu marcado acento gaulês. - Não me perdoaria se lhe houvesse passado algo. - Estou bem - disse ela, e para demonstrar se afastou um passo da porta. Desta vez os joelhos a sustentaram. - Foi minha estupidez sair à rua quando ia passando o gado. O boiadeiro começava a afastar-se quando Wolverton lhe perguntou: - Por que fez virar assim ao gado? Isso foi muito perigoso. O boiadeiro se deteve com uma expressão sombria nos olhos. - Foi um engano, senhor. Os cães entenderam mal a ordem. 106
- Ouvi dizer que quando acaba o traslado de gado - disse o marquês em tom agradável mas resistente, - os cães pastores fazem todo o caminho sozinhos do sul do país a Gales ou a Escócia enquanto seus donos voltam de carruagem. Custa-me acreditar que esses cães tão inteligentes tenham interpretado mal um assobio. - Pilhou-me, senhor - respondeu o boiadeiro em um tom abatido mas com um brilho de humor nos olhos. - O problema não foi a falta de inteligência dos cães, e sim a minha. Eu dei o sinal equivocado e os cães obedeceram. Por sorte, não ocorreu nada mal. - Estou seguro de que me dirá que fazer girar ao gado não teve nada a ver com as duas pessoas que estavam com você, nem com os quatro homens que foram atrás delas, disse Wolverton com ironia. - Não, nada a ver. O boiadeiro tocou a asa de seu chapéu com dois dedos. - Agora devo vigiar a meus animais. Bom dia a você já a senhora. Desdêmona ficou olhando as largas costas do gaulês. - Quer dizer que fez isso de propósito para ajudar a escapar Máxima e lorde Robert? - Não me cabe a menor dúvida. Certamente esse era Robin, embora não vi muito de seu acompanhante embaixo desse horrível chapéu. Esboçou um sorriso. Meu irmão tem talento para fazer aliados. Desdêmona franziu o cenho, perplexa. - E por que os seguem esses quatro homens ? O marquês lhe agarrou a mão, pô-la sob seu braço e pôs-se a andar para a estalagem Three Swans. - Podemos falar disso enquanto comemos. Desdêmona abriu a boca para protestar por princípio, e voltou a fechá-la. Em realidade não desejava protestar.
CAPÍTULO 17
- Espere aqui - ordenou Robin, imperturbável ao ver o muro. Pôs-se a correr pelo beco. Quando estava a um passado do muro, deu um salto. Elevou-se o justo para agarrar o lado com os dedos. Com facilidade, fez oscilar o corpo e com o impulso passou uma perna e ficou montado em cima. Rapidamente tirou a mochila e deixou cair um extremo da correia. Maxie se agarrou da correia; esta se estirou com seu peso, mas resistiu. Robin puxou e ela foi para cima. Sorrindo, lhe agarrou a mão e a ajudou a ficar junto a ele. - Está claro que não desperdiçou a infância em coisas inúteis como o bordado. Ela sorriu também. - Era uma questão de amor próprio para mim vencer todos meus primos mohawk em correr, nadar e subir. Seus perseguidores já estavam quase chegando ao pé do muro. Robin lhes fez um gracioso gesto de despedida antes que dois deles se desabassem junto ao outro extremo do 107
muro. Saltou primeiro chão e logo levantou os braços para agarrá-la pelos quadris e amortecer sua chegada ao chão. Ela sentiu intensamente a força de suas mãos e também a involuntária reação de seu corpo. Menos mal que foram fugindo a toda pressa. Estavam no bem cuidado jardim atrás de uma casa bastante grande. Frente a eles havia um alvo e sobre a grama estavam o arco e várias flechas, como se alguém tivesse entrado na casa para tomar uma taça de chá e fosse voltar em seguida. - Espere um momento Robin - disse ela ao ver que ele começava a atravessar o jardim. Recolheu o arco e o esticou umas quantas vezes para lhe agarrar o tino. Depois agarrou uma flecha, colocou-a e esperou. Ao cabo de uns momentos de resmungos, grunhidos e bocejos do outro lado do muro, apareceu um perseguidor, em situação meio instável sobre os ombros de um de seus companheiros. Tranquilamente Maxie apontou, disparou e a flecha atravessou o chapéu do homem. Este uivou como uma fada agoureira e desapareceu depois do muro. - Excelente! - exclamou Robin com a voz impregnada de admiração e risada. Ela deixou o arco sobre a grama, não sem certo orgulho. Ser uma selvagem tinha suas vantagens. - Deus todo-poderoso, viu o que fez essa fedelha? O sócio de Simmons recolheu seu chapéu furado, com a cara pálida sob sua sujeira habitual. Poderia ter me matado. - Se tivesse querido lhe matar o teria feito - disse bruscamente Simmons. Inclusive enquanto soltava uma fileira de insultos que teriam queimado a cal das paredes do beco, ele teve que reconhecer para seus botões que os dois fugitivos eram competidores dignos. - Não vou saltar essa parede para segui-los, grunhiu outro dos homens. Simmons parou de soltar maldições. Conhecia Market Harborough e deveria estar empregando esse conhecimento em lugar de perder o tempo. - Não é necessário, disse. Há outro caminho. Se formos depressa conseguiríamos agarrá-los. E agora mexam esses malditos traseiros! Quando Maxie e Robin foram correndo pelo jardim, de uma janela da casa saiu um irado grito. - Procure não pisar em nenhuma flor, advertiu Robin. - O inferno não tem fúria igual à de um jardineiro inglês quando lhe profanam as rosas. Rapidamente chegaram a um muro coberto por um encosto feito de árvores frutíferas; os ramos tenros das árvores jovens se escoraram em forma de grade, e já crescidas constituíam um soberbo encosto. Entre as folhas se viam diminutos pêssegos verdes. - Está permitido profanar as árvores frutíferas? - ofegou Maxie. - É um delito grave, mas não tanto como danificar roseiras - assegurou-lhe subindo rapidamente. O encosto de árvores era uma excelente escada. Antes que alguém saísse da casa para persegui-los, eles já saltaram o muro e estavam correndo pela rua tranquila do outro lado. Detiveram-se um momento a analisar sua situação. - A perseguição é incrivelmente tenaz, disse Robin muito sério. - Está claro que seu tio deseja muitíssimo ver-te de volta em casa. - Isso parece - disse ela com expressão resolvida, tentando imaginar o que seria que 108
ocultava Collingwood. Mas quando olhou ao Robin, a voz lhe saiu embargada pela emoção: - Sinto muito te haver metido nisto. É muito mais que o que pensava quando me ofereceu amparo. - Não te ofereci meu amparo, impus-lhe isso - respondeu ele, sorrindo com um olhar quente e íntimo. - E não o lamento absolutamente. Assinalou com o braço para a esquerda. Ao norte do Market Harborough passa um canal que vai até o Leicester. Creio que deveríamos seguir o caminho de sirga. Poderia estar menos vigiado que um dos caminhos carreteiros. - A sério acredita que todos os caminhos carreteiros estão vigiados? -perguntou ela, alarmada. - Para isso Simmons necessitaria um pequeno exército. Robin encolheu de ombros. - É possível que os caminhos por terra sejam seguros, mas em caso de dúvida, suponho o pior. Sim, isso tinha lógica. Sem lugar a dúvidas a experiência dele superava em muito à sua no que se referia a perseguições. Ele reatou a marcha e ela trotou ao seu lado o mais rápido que lhe permitiam suas cansadas pernas. Nessa parte da cidade não havia movimento de tráfego, mas a meia distância havia várias construções grandes que tinham aspecto de armazéns. Provavelmente o canal estava do outro lado. Ainda não chegavam aos armazéns quando de uma rua saiu correndo Simmons, com um sorriso de perversa satisfação em sua cara e um de seus ajudantes colado aos seus pés. Angustiada, Maxie olhou para trás e viu sair aos outros dois por outra rua. Estavam presos, e esta vez não estava Dafydd Jones com um gado de novilhos. Detiveram-se em frente a Simmons. Este fez um gesto com a mão e seus homens formaram um semicírculo atrás deles, em silêncio. - Desta vez não há escapatória, grunhiu ele. - A moça vai voltar para a casa do seu tio, e você, meu belo moço, vai aprender uma lição por me atacar por trás. - Deveria estar contente de que lutasse assim, dei-te uma justificativa para perder respondeu Robin e passou tranquilamente sua mochila a Maxie. - Pelo amor de Deus, Robin - gritou ela consternada. - Não vai lutar com ele, não é? Dobra-te em tamanho. Ele tirou a jaqueta sorrindo. - Pode-se rejeitar o convite de um homem para jantar ou jogar uma partida de cartas, mas se desejar lutar, terá que agradá-lo. - E sim, você vai me agradar, exclamou o londrino ao ouvi-lo. - E não me importa sua destreza. Um destro grande sempre vai vencer a um destro pequeno. - Isso depende de quão destro seja o pequeno, não é? Enquanto sorria alegremente, Robin sussurrou a Maxie: - Os homens do Simmons vão estar absortos em ver a briga. Aproveite para escapar. Ao ver que ela ia protestar, acrescentou: - Sem discussão. Não se preocupe, não me vai matar; isso lhe criaria mais problemas que os que valem a pena. Antes que pudesse dizer mais, Simmons se aproximou e começou a revistá-lo, apalpando com suas grandes mãos os bolsos e por dentro das botas. 109
- Procura armas ocultas ou simplesmente não pode tirar as mãos de cima de mim? perguntou-lhe Robin, risonho. - Asqueroso pervertido! - gritou Simmons, e moveu o punho para lhe dar um feroz gancho na mandíbula. Robin se esquivou limpamente, agarrou-lhe o braço e o torceu girando-o rapidamente para trás. Simmons girou e caiu ao chão com atordoante força. Durante um momento esteve aturdido; depois se levantou, com os olhos cerrados e a raiva moderada pela cautela. Robin se via ágil e elegante frente a Simmons, como um Davi frente a um Golias. Mas sua postura era a de um lutador, balançando o peso entre os dois pés, os joelhos flexionados, os braços relaxados e alerta. - Isso você não aprendeu no salão Jackson's - disse Simmons. - Não. Nunca disse que tenha sido aluno do Jackson'S. Aprendi em uma escola muito mais dura, onde as dificuldades eram maiores. - Eu também, mocinho - disse o londrino adotando a mesma postura. - Se quiser assim, assim será. Maxie colocou dissimuladamente a mão no bolso da jaqueta do Robin e fechou a mão ao redor do pau de golpear. Depois não restava outra coisa que olhar, meio sufocada pelos nervos. Mesmo com a ordem do Robin, não o abandonaria. Talvez Simmons não pretendia matá-lo, mas havia a terrível possibilidade de que o matasse sem querer. Isso era menos possível se ela ficasse de testemunha. Os dois homens se moveram em cautelosos círculos observando-se atentos e alerta, interrompidos por breves e violentos choques. Robin mantinha a distância, aproximandose para dar um rapidíssimo golpe e afastando-se novamente com a rapidez de um raio. Ele tinha a vantagem da velocidade, mas Simmons tinha a letal vantagem do alcance e o peso. A Maxie chateou comprovar que Simmons estava desfrutando muitíssimo. Depois de um inteligente movimento de Robin, comentou com aprovação: - É condenadamente bom, sobretudo para ser um aristocrata. Estas palavras foram acompanhadas por uma série de letais diretos à cabeça e os ombros. Robin saltou para trás, mas não conseguiu evitar do todo a saraivada. Recebeu vários golpes, que lhe cortaram a respiração e o fizeram cambalear. Simmons aproveitou a vantagem lhe atirando um direto no diafragma que o jogou no chão. Grasnando triunfante, o londrino se aproximou para o golpe final. Muito menos derrotado do que aparentava, Robin o fez cair movendo a perna a modo de foice. Antes que Simmons chegasse ao chão, ele já se levantou, agindo com tanta rapidez que Maxie não conseguiu seguir todos seus movimentos. De repente Simmons estava no chão de barriga para baixo e Robin com um joelho sobre suas costas. - Se renda! - gritou-lhe, lhe aplicando uma chave que poderia ter fraturado o pescoço de um homem muito parvo para não render-se. Embora estivesse furioso, Simmons não era tolo. A contra gosto, levantou uma mão em sinal de submissão. Por desgraça, seus companheiros não estavam dispostos a aceitar o resultado. Grunhindo e sem o menor indício de esportividade, dois deles avançaram para o homem 110
que derrotou o seu empregador. - Robin! - gritou Maxie. Ao mesmo tempo deixou cair a jaqueta e com a mão livre recolheu terra com cascalho e as lançou aos olhos. Os dois uivaram de dor. Ao ouvir o grito de advertência, Robin se levantou de um salto; com uma patada muito bem dirigida lançou um dos homens ao chão, e sem perder um segundo girou e agarrou o outro pelo braço e o lançou também ao chão. Embora seus ágeis e rápidos movimentos tivessem a graça de um bailarino, deixaram seus competidores escancarados, um deles com o braço dobrado em um ângulo nada natural. Enquanto Robin deixava fora de fogo aos dois atacantes, o terceiro agarrou uma pedra e a jogou com força letal dirigida à cabeça. Maxie se jogou contra ele com todo seu peso, conseguindo lhe desviar um pouco o braço. Aproveitando que o homem cambaleava, cravou-lhe o punho com o pau dentro no esterno. O homem emitiu um afogado chiado e retrocedeu. Mas a intervenção de Maxie só teve um êxito parcial, porque embora reduzisse a força do golpe, a pedra golpeou Robin em cima da orelha com um som surdo, e o impacto o fez cair desmaiado sobre os paralelepípedos. Avivada e aterrada por Robin, Maxie se atirou novamente contra o homem lhe arranhando a cara com as unhas; aproveitando que ele levou as mãos aos olhos para proteger-lhe deu-lhe uma forte joelhada na virilha e depois lhe golpeou a garganta com o pau. O homem emitiu um som indescritível, dobrou-se sobre si mesmo e caiu ao chão como um traje sem ocupante. O homem menos prejudicado, Simmons, ficou de pé e agarrou Maxie em um abraço de urso, lhe imobilizando os braços e as pernas. Ela se agitou e retorceu, mas não conseguiu liberar-se, embora sim conseguiu lhe dar umas boas cabeçadas e dentadas. - Quieta, fedelha! - gritou Simmons, aferrando com um potente punho suas mãos atrás das costas. Com a outra lhe tirou o pau e o atirou longe. - Meus moços fizeram mal em intervir, mas, por Deus que se não se comportar vai lamentar. Maxie viu a necessidade de uma trégua estratégica e deixou de debater-se. Olhou para o Robin, aterrada por seu estado; estava desmaiado sobre o pó, seus cabelos loiros manchados por um rio de sangue. Segurando-a firmemente, Simmons olhou furioso os dois homens que se estavam pondo de pé. - Lutaram como um punhado de meninas, disse-lhes em tom depreciativo. - Pior ainda, esta mocinha tem mais destreza e coragem que vocês três juntos. Com expressão rancorosa, um deles jogou o pé atrás para dar um chute ao Robin. - Toca-o e eu mesmo te romperei o braço, ladrou Simmons. - Agora vão à cavalariça de aluguel e tragam uma carruagem até aqui. Os dois homens partiram em meio a um mal-humorado murmúrio de grunhidos e resmungos. O terceiro boxeador continuava em meio da rua sublimemente inconsciente. Maxie pensou mal-humorada onde estariam os cidadãos do Market Harborough; mas essa era uma rua afastada em que havia mais armazéns que casas, e não vinha ninguém. - Deixe-me ir ver o Robin, disse com os lábios apertados. - Pode estar ferido gravemente. 111
- Vai sobreviver, embora poderia estar pior se você não tivesse pego o braço de Wilby. Simmons moveu a cabeça. - Wilby não deveria ter feito isso. É difícil conseguir ajudantes de confiança. Maxie não sentiu a menor compaixão, mas pensou que no momento a discrição era a melhor parte da coragem. - O que vai fazer conosco? - perguntou, aparentando resignação. - Você vai ao Durham, atada como um ganso de Natal se for necessário. Quanto ao seu amigo, isso é um problema, sem dúvida. Franziu o cenho. - Poderia deixá-lo aqui, mas então poderia me seguir; parece um tipo teimoso. Talvez deveria levá-lo a polícia local, e dizer que me roubou o cavalo. Refletiu um momento e riu. - Sim, essa é a solução. Quando o levarem ao magistrado, você já estará em Durham e será problema do Collingwood. Esfregou-se a bochecha, onde estava se formando um bom hematoma. Melhor ele que eu. Enquanto falava afrouxou a pressão de suas mãos. Decidindo que não há momento melhor que o presente, Maxie tratou de soltar-se. Conseguiu-o um momento, mas antes que pudesse fazer nada, ele lhe agarrou um dos pulsos. A isto seguiu outra furiosa resistência. Ela conseguiu lhe alcançar a cara e lhe arranhar a bochecha machucada até lhe tirar sangue. - Eu adverti, pequena zorra! Simmons a arrastou até o muro baixo que cercava a rua, sentou-se e a pôs sobre um joelho e começou a lhe golpear as nádegas com seu mãozona. Por um momento ela ficou atordoada pela incredulidade diante da indignidade do que ele estava fazendo. Os iroqueses não eram partidários de usar a violência com os meninos. Seu pai também preferiu sempre a razão à força, por isso jamais a surraram. Sua luta anterior fora feroz, mas sem nenhuma intenção letal. Entretanto, nesse momento se dissolveram até os últimos restos da sua moderação inglesa. Fez uma profunda e longa inspiração e lançou o grito guerreiro dos mohawk, que fez vibrar os vidros das janelas mais próximas. Foi uma explosão de som selvagem parecido a algo ouvido na Inglaterra na época em que os aborígines se pintavam de azul. - Deus todo-poderoso! - Exclamou Simmons com a mão suspensa no ar. - O que foi isso? E no momento em que estava distraído, Maxie se retorceu, tirou a faca da bota e se preparou para matá-lo.
CAPÍTULO 18
Robin não perdeu totalmente a consciência em nenhum momento, mas esteve muito desligado do que acontecia a sua volta. Seu corpo e sua mente se reencontraram bem a tempo para ver Simmons pôr Maxie sobre seu joelho. Desejou advertir ao londrino que surrá-la não era uma boa ideia, mas sua voz se negou a sair. Enjoado já a ponto de desmaiar, ficou lentamente de joelhos. O grito guerreiro de Maxie foi como uma sacudida elétrica no seu organismo. 112
Levantou a cabeça e a viu dirigindo a faca para a veia jugular de Simmons. O londrino se esquivou, suarento e a brilhante lâmina não se afundou no pescoço mas lhe arranhou o ombro. - Basta, Maxie! - conseguiu exclamar, antes que sua sanguinária camarada voltasse a tentar. Ela voltou para ele seus selvagens olhos castanhos e vacilou; em sua expressão se via como lutavam a raiva e a razão. Um instante antes que ocorresse algo pior, Robin conseguiu aproximar-se de Simmons de um ângulo em que este não podia vê-lo e lhe aplicou a pressão que empregou antes no claro do bosque. Era perigoso fazê-lo, mas as possibilidades de Simmons de sobreviver eram maiores se perdesse a consciência ante Maxie; o que poria fim à briga. Simmons emitiu um som afogado e caiu desabado no chão, quase arrastando Robin com ele. Maxie se apressou a segurá-lo, lhe proporcionando o muito necessitado apoio. Entretanto suas palavras foram mordazes: - Deveria ter deixado que me encarregasse dele. Robin se segurou a ela ao notar que perdia visão pelos lados dos olhos; por uma vez, mal foi consciente do delicioso contato com seu corpo. - Sinto muito - conseguiu dizer, fracamente, - mas eu não gosto de ver matar gente. Ela emitiu um som que ao mesmo tempo denotava desdém e que a conversa devia continuar em um momento mais oportuno. Mas com um admirável enfoque no imediato, perguntou-lhe: - Pode caminhar? Os outros vão voltar logo. Ele se sentou no muro com a cara apoiada nas mãos sobre os joelhos, tentando pensar como poderia arrumar-se com essa tremenda dor no crânio. - Necessitarei de ajuda, disse. Imediatamente ela guardou a faca e o ajudou a guardá-la na jaqueta. Depois foi recolher o pau de golpear, pendurou nas costas as duas mochilas e o ajudou a ficar de pé já passando um braço por cima de seus ombros. Enquanto avançavam pela rua, refletindo em meio de seu atordoamento, ele pensou em quanta força ela possuía em sua miúda estrutura. De todo modo, era uma sorte que o canal só estivesse do outro lado dos armazéns. O problema era o que fariam quando chegassem ali. Tão logo entraram na estalagem, Giles pediu a comida em um salão privado, e que lhes levassem conhaque imediatamente. Lady Ross ainda estava tremendo pelo incidente que esteve a ponto de lhe custar a vida, e se deixou conduzir ao salão com uma docilidade que Giles não esperava que durasse muito. Tinha a cara cinza sob os chamejantes cabelos. Depois de fazê-la sentar em uma poltrona, examinou-lhe o braço onde a arranhou o chifre do novilho. A pele branca que deixava ver a ruptura da roupa estava machucada, mas a ferida era superficial, com muito pouco sangue. - Não há ferida grave, mas o hematoma vai ser impressionante. Uma garçonete trouxe o conhaque. Giles serviu uma taça e a passou; Desdêmona se obstruiu e tossiu com o primeiro gole, mas as cores começaram a voltar à cara. 113
- Haverá também hematomas em um bom número de partes menos mencionáveis, disse com um sorriso torcido. - Isso sabe você melhor que eu. Ela tirou o cabelo da testa com dedos mais ou menos firmes. - Dê-me uns minutos para subir ao meu quarto e me pôr apresentável. Depois, interessa-me saber algo dos homens que seguiam a Máxima e a lorde Robert. Lady Ross demorou pouquíssimo em recuperar sua ensurdecedora respeitabilidade. Quando voltou, seus cabelos estavam domados e escondidos sob um chapéu, pôs-se outro vestido tão lúgubre como o anterior, e toda sua figura estava envolta por um xale. Giles a preferia despenteada e desarrumada; entretanto, sua comedida aparência não diminuía em nada o pulso constante de atração sexual. Tão logo ela chegou ao salão lhes levaram a comida já pedida. Por acordo tácito, deixaram os assuntos sérios para depois de comer. Quando chegaram à etapa do café, Desdêmona olhou ao marquês com uma sobrancelha arqueada. - O que tem que esses homens? - Reconheci um deles, e suspeito que é o agente que enviou seu irmão atrás da senhorita Collins. - Wolverton lhe explicou seu encontro com o Simmons e a ajuda que lhe tinha prestado vários dias antes. Ou seja, não somos só nós que estamos na pista correta, cada um por seu lado, mas também Simmons e seus ajudantes. - Isto tem um elemento de farsa - comentou Desdêmona, sorrindo ao seu pesar. - Mas pelo pouco que vi, eu não gostei do aspecto de Simmons nem o de seus sócios. - Os homens que fazem este tipo de trabalho não procedem das classes mais refinadas, disse o marquês em tom irônico. - Se tiverem sido contratados para levar a senhorita Collins de volta ao Durham, imagino que não lhe farão nenhum dano, mas é possível que não tenham tanta consideração com meu irmão. - Pelo que você me já me disse, dá a impressão de que até o momento lorde Robert ganhou todos os assaltos. Desdêmona tomou um bom gole do café quase fervendo. Disse-me que esteve fora da Inglaterra um bom número de anos. Era diplomático ou estava no exército? Wolverton suspirou e esteve um momento brincando com sua taça, pesando sua resposta. - Eu direi com a condição de que não o diga a ninguém. - Tão desonrosa foi sua conduta? O marquês levantou a cabeça e a olhou com uma frieza em seus olhos azul ardósia que ela não viu nunca. - Muito pelo contrário. Mas o que fazia era muito confidencial e é possível que haja ramificações ou consequências durante anos e inclusive décadas. Além disso, não é uma história que me corresponda contar. A Desdêmona não foi difícil fazer a dedução. - Seu irmão era espião? - perguntou. - Já se vê como desenvolveu suas ideias sobre conduta honrada, acrescentou com sarcasmo. Wolverton fechou os olhos ao captar seu tom. 114
- Sim, era espião. Durante a guerra praticou o tipo de atividade mais perigosa e menos respeitada, absolutamente essencial e absolutamente secreta. Robin era virtualmente um menino, e estava de viagem pelo Continente durante a Paz do Amiens quando se inteirou de algo que considerou seu dever comunicar ao Foreign Office. Pediram-lhe que continuasse ali, e durante os doze anos seguintes arriscou mais de mil vezes sua vida e sua prudência para proteger ao seu País e acabar logo com a guerra. O marquês se interrompeu, acrescentando peso ameaçador com seu silêncio, e terminou com voz firme e tranquila: - Para que pessoas como você pudessem ficar sentadas a salvo e seguras na Inglaterra e julgá-lo. O rubor era a maldição das ruivas e Desdêmona era fiel a sua espécie. Quebras de onda de rubor, ardente e humilhante, cobriram-lhe a cara da linha do cabelo até o pescoço do vestido e mais abaixo. - Sinto muito, disse se lamentando. Por mais furiosa que esteja pelo que seu irmão tem feito a minha sobrinha, não deveria ter falado assim. Sentia-se mais que envergonhada; também se lamentava pela retirada da habitual simpatia do Wolverton. Aliviada viu que sua expressão se suavizava. - Sua reação não é insólita, disse-lhe ele. - A espionagem exige ter nervos de aço e um bom número de habilidades que um cavalheiro não deve ter. Robin era muito, muito bom para esse ofício, se não, não teria sobrevivido. Foi colocado a prova de modos que acabariam com a maioria dos homens e que estiveram a ponto de acabar com ele. - Por isso você o protege tanto? - perguntou ela em tom afável. - Protegê-lo-ia de todo modo. Ele é o único familiar que me resta e embora saiba que é ferozmente competente, continua sendo meu irmão pequeno. Suspirou. - Sei muito pouco além do que ele quis me contar desde sua volta para a Inglaterra, e estou imensamente agradecido de que não me tenham informado melhor durante os anos que esteve fora. Deus sabe que já tinha bastante me perguntando se voltaria a vê-lo alguma vez ou se simplesmente desapareceria, como um morto anônimo a mais e eu nunca saberia como nem quando. O marquês se interrompeu bruscamente, com o rosto tenso. Passados vários segundos, continuou: - Para que se faça uma ideia do tipo de coisas que realizava em sua «desonrosa» profissão, o ano passado contribuiu para fazer fracassar uma conspiração destinada a fazer voar a embaixada britânica em Paris durante uma das reuniões da Conferência de Paz. Desdêmona afogou uma exclamação, calculando quem teria morrido em uma explosão assim. Provavelmente o ministro dos exteriores Castlereagh, inclusive talvez Wellington. As consequências políticas eram assombrosas, não só para Grã-Bretanha mas também para toda a Europa. Ao lhe ver a expressão, Wolverton sorriu com ironia. - Compreende por que lhe disse que isto deve ser confidencial? É só um exemplo do que tem feito Robin. Hão-me dito que as autoridades de Whitehall desejam fazê-lo Barão em gratidão aos serviços prestados, mas o problema é que não sabem o que dizer que possa fazer-se público. - Seria o primeiro a receber um título de nobreza por espionagem. 115
- Robin fez coisas pioneiras toda sua vida. Quando era menino não causava nenhum dano, mas sabia ser peralta de modos surpreendentemente criativos. Ao marquês lhe iluminou a expressão. - Por exemplo, creio que é o único menino que expulsaram de Eton no primeiro dia de aula. - Duvidosa honra, disse Desdêmona rindo. - Como o fez? - Introduziu seis ovelhas no salão da casa do diretor. Nunca soube como o conseguiu. Foi um ato calculado, realizado porque desejava ir ao Winchester, não a Eton. Wolverton sorriu, lembrando. - No caso de que lhe ofereçam um título, não estou muito seguro de que o aceite. Uma vez, quando éramos meninos, estávamos nos banhando no lago do Wolverhampton e me deu uma cãibra muito dolorosa. Quase me afoguei. Ele me tirou fora; isso foi uma façanha impressionante se tomarmos em conta que eu o dobrava em volume e me debatia como uma coelha. Quando me recuperei lhe fiz ver que poderia me ter deixado na água e então ele seria o seguinte marquês de Wolverhampton. - E? - animou-o Desdêmona. - Robin me disse que esse era o melhor argumento possível para me tirar do lago, disse ele com uma piscada risonha. Desdêmona mordeu o lábio. - Quanto mais sei de seu irmão, mais terrivelmente simpático me parece. - Robin herdou todo o encanto e a galhardia da família. E face ao que você pensa, também é honrado. Com um indício de sorriso na cara, Desdêmona contemplou a forte figura do marquês. - Parece-me que você herdou uma boa porção de cada uma dessas qualidades. Wolverton a olhou um momento e lhe subiram as cores à cara. Depois se levantou e caminhou até a janela para evitar seu olhar. Era a primeira vez que ela o via desconcertado. E bem merecido que o tinha, pensou com satisfação; ele não tinha parado de desconcertá-la desde o momento em que se conheceram. Decidiu que era hora de deixar de lado o pessoal. - Acredita que Simmons e seus homens deram alcance a nossos fugitivos? O marquês esteve olhando para fora meio distraído, mas nesse instante olhou com mais atenção. - É possível. Aí vêm caminhando dois homens muito mal. Posto que antes vi um deles com o Simmons, minha hipótese é que tentaram agarrar ao Robin e a sua sobrinha e fracassaram. Imediatamente ela foi reunir-se com ele na janela e contemplou incrédula aos dois boxeadores machucados. - Seu irmão fez isso? - É muito provável. Quando menino era pequeno e atraente, quase como uma menina. Tais são os horrores dos internatos particulares ingleses, que ele tinha que escolher entre brigar ou humilhar-se. Se tivesse estado em Eton, eu poderia tê-lo protegido, mas tal como se desenvolveram as coisas... - lhe cortou a voz. - É evidente que seu irmão não gostava de humilhar-se. Repentinamente consciente 116
da proximidade que estava da imponente e muito masculina figura do marquês, afastou-se discretamente. - E agora o que, milorde? Duvido que voltem com os boiadeiros. - Eu também, disse ele carrancudo. - Agora que nossos fugitivos estão alertas, será quase impossível encontrá-los no caminho. São muitas as rotas e eles têm muitas formas de disfarçar-se. Talvez chegou o momento de que você volte para Londres e espere ali a visita de sua sobrinha. Ela o olhou desconfiada. A sensação de que eram aliados estava se desintegrando rapidamente. - Tem algo em mente? - Ocorreu-me uma possibilidade. Previu a seguinte pergunta e a parou com um gesto da mão. - Prometo-lhe que se minha hipótese for correta, levarei os dois fugitivos a sua casa em Londres. - E se se negam a vir? - perguntou ela, evitando a pergunta de se estava disposta a renunciar à busca. - Empregarei um doce raciocínio para persuadi-los. Esboçou um meio sorriso. Empregar a força com o Robin não é aconselhável. Recordando o aspecto dos dois rufiões que acabavam de passar, não ficou mais remédio que estar de acordo. Wolverton agarrou seu chapéu e se dispôs a sair, mas na porta se deteve. -Por que lhe chamaram de Desdêmona ? - É tradição familiar pôr nomes latinos aos meninos e shakespearianos às garotas, explicou ela. - Mas o nome de sua sobrinha é latino. - Há exceções de vez em quando. Ao meu irmão Maximus o batizaram assim por minha tia Máxima, e seu nome passou a sua filha. A tia Máxima morreu faz uns meses, amadurecida em anos e em sensatez. Vou sentir falta dela. - Refere-se a lady Clendennon? Era a única Máxima que conhecia. Ao vê-la assentir, continuou. - Não há dúvida de que as mulheres enérgicas é outra tradição na família Collins. Cada vez me sinto menos inclinado a acreditar que sua sobrinha tenha sido obrigada a continuar com o Robin contra seus princípios. - Isso está por ver-se, disse Desdêmona em tom mordaz. Enfocada novamente em sua missão, envolveu-se mais no xale, agarrou seu chapéu e se dispôs a partir. O marquês se pôs de lado, mas antes de abrir a porta, olhou-a intensamente. Como hipnotizado levantou uma mão e lhe tocou a cara, seguindo o contorno da têmpora e a orelha, lhe roçando a bochecha e lhe acariciando a curva da garganta. A carícia foi muito suave e delicada, como se quisesse memorizar os tons e a textura de sua pele com as pontas dos dedos. Ela ficou imóvel, tentando conservar a serenidade. Todos os lugares que ele tocou lhe formigaram de sensações. Não conheceu a doçura em seu matrimônio, e a impressionou compreender quão vulnerável era a ela. Olhou-o nos olhos e imediatamente se lamentou. A efusão que viu neles era muito mais perigosa que um golpe. Ele era enorme, poderoso, não só em seu aspecto físico, mas 117
também em seu ar de autoridade. Dentro de um instante se inclinaria a beijá-la, e se ocorresse isso... Afastou-se bruscamente e abriu a porta. - Espero lhe ver você já nossos parentes errantes em Londres, Wolverton. Dito isso saiu e fechou a porta. Giles ficou olhando fixamente a porta que lhe deu na cara. Porque uma mulher tão resolvida e mundana se angustiava como uma virgem criada no convento quando ele manifestava interesse nela? A explicação simples era que lhe tomou aversão. Não lhe cabia a menor dúvida de que neste caso a explicação simples estava equivocada. Não era aversão o que viu em seus olhos; era medo. O marquês do Wolverton tinha bem merecida a fama de homem indolente, mas quando decidia algo era irredutível. Enquanto se afastava o som dos rápidos passos de lady Ross, resolveu averiguar qual era a origem dessa angústia. Então, talvez fosse possível fazer algo a respeito.
CAPÍTULO 19
Embora Robin fazia os maiores esforços possíveis, Maxie teve que levá-lo quase em peso. O canal parecia estar imensamente longe. As costas lhe formigavam ao pensar que de um momento a outro apareceriam Simmons ou seus homens a capturá-los. Posta a escolher preferiria que fosse Simmons. Deu amostras de ter consciência, mas em seus homens não confiaria mais que em lobos famintos num açougue. Continuava esperando que aparecessem outras pessoas, mas o lugar se via deserto. A gente devia estar fazendo sua comida de meio-dia. Quando entraram em uma passagem que separava dois armazéns, conseguiu reunir energia suficiente para rezar uma oração pedindo um milagre. Ou não seriam capazes de chegar mais longe. Quando saíram ao cais abrasado pelo sol, viram um barco carregado junto ao ancoradouro. Sobre a coberta estavam um homem e um menino preparando as coisas para zarpar. O capitão era um homem de corpo largo e musculoso e cabelos grisalhos. Endireitou-se e os olhou com curiosidade, o que não era surpreendente posto que Robin ia pendurado nela como um xale. Maxie decidiu que o melhor era fazer uma sincera súplica. - Por favor senhor, disse sem tentar dissimular seu desespero, poderia nos ajudar? Atacaram-nos e meu marido resultou ferido. A surpresa do olhar do capitão a fez recordar como ia vestida. Com a mão livre tirou o chapéu. O homem pestanejou, despertado seu interesse. Ela acreditava que Robin estava quase inconsciente e não teria ouvido, mas lhe sussurrou no ouvido em tom jocoso: - Vejo que usou as armas pesadas. O pobre diabo não tem alternativa. - Shh - sussurrou ela, ao ver que o capitão saltava ao cais e caminhava para eles. - Foram assaltados por ladrões em plena luz do dia? - perguntou o homem, com 118
visível ceticismo em seu rosto curtido. Que história poderia comover a um homem do canal? pensou. Em caso de dúvida, conte alguma variação da verdade. - Não foram ladrões. Foi meu primo com seus amigos. Querem nos impedir de chegar a Londres. Olhou para trás, sem ter nenhuma dificuldade para parecer angustiada. - Por favor, pode nos levar por uma curta distância? Eu posso explicar tudo, mas vão aparecer aqui a qualquer momento. Olhou suplicante ao capitão, tentando parecer o tipo de mulher com a qual um homem se sente protetor. Deveria ter prestado mais atenção em sua prima Portia, que tinha dedicado anos a cultivar o aspecto de necessitada. - Possivelmente só querem um trajeto grátis, disse o menino sardento. O capitão observou ao Robin, que estava a ponto de cair ao chão. - Esse sangue tem bastante aspecto de ser real. Tomou uma decisão. De acordo, moça. Levarei-os por fé umas quantas milhas. Agachou-se, agarrou ao Robin e o jogou ao ombro como se fosse um menino pequeno. - Vamos. Maxie o seguiu e saltou a pequena distância que separava o barco do cais. O barco era de construção simples, com os dois extremos em ponta e uma cabine de base quadrada no meio. Sobre a coberta havia caixas com alcatrão, seguros com cordas, e o ar estava impregnado de um forte aroma de lã, não desagradável. O carregamento devia ser de tapetes, que se fabricavam nessa região, conforme lhes tinha explicado Dafydd Jones. - Suponho que preferem ir ocultos, se por acaso vir seu primo, disse o capitão. Jamie, abra a trampilla2 de popa3. O moço se apressou a obedecer, com visível entusiasmo em sua cara arredondada. Abriu a trampilla, deixando ao descoberto uma adega com mais tapetes. Jamie desceu e reordenou os cilindros para fazer espaço. Depois o capitão depositou ali o corpo enfraquecido de Robin. - Não permita que manche de sangue minha carga. - Farei o possível, prometeu-lhe ela. Têm alguns panos e água para lhe lavar a ferida e enfaixá-lo? Jamie correu a procurar o pedido. Ela desceu à adega e se ajoelhou junto ao Robin; afastou-lhe o cabelo para ver a ferida. Já estava se formando um galo, mas a alegrou comprovar que a ferida era superficial e que quase não sangrava. Jamie só demorou um minuto em voltar com o pedido, além de manjericão em pó para aplicar à ferida. Com a maior suavidade possível, ela lavou o sangue da ferida e pôs a atadura. Robin suportou estoicamente, embora ela o viu abrir e fechar a mão sobre o tapete em que tinha deitado. - É hora de empreender a marcha, disse o capitão quando ela acabou. - Creio que seria 2
Trampilla – escotilha (Abertura no convés dos navios, provida de tampa forte e que, descendo até o porão, serve para carregar e descarregar o frete.), alçapão, janela 3 Popa – extremidade traseira de uma embarcação.
119
melhor voltar a fechar a adega. - Tem razão, respondeu ela. - Meu primo poderia seguir o barco se adivinhar que tentamos escapar por aqui. É...é uma história complicada. - Não duvido, comentou o capitão com expressão satírica. Depois de fechar a pesada trampilla, acima se ouviram ruídos de coisas arrastadas e desapareceram as frestas de luz que deixavam ver as frestas da trampilla retangular. O capitão devia estar pondo tapetes em cima. Maxie o benzeu por sua previsão. Embora Simmons seguisse o barco, era improvável que encontrasse esse esconderijo. Mas a precaução deixava em absoluta escuridão a adega. O oco em que estavam tinha ao redor de um metro oitenta de comprimento, uma e vinte de largura e pouco menos de um metro de profundidade, e debaixo havia tapetes macios. Dava a impressão de estar dentro de um ataúde cômodo. Maxie tratou de superar o desgosto pelo fechamento. O que importava era que se afastavam de Simmons e que o capitão parecia ser um bom aliado. Como se viesse de muito longe, ouviu o Jamie dar a ordem ao cavalo para que empreendesse a marcha. O barco começou a mover-se. Não tendo nada mais que fazer, sentiu o esgotamento e se deitou junto ao Robin. - Está aí? - Estive mais ou menos presente durante todo o último ato, disse ele com um fio de voz, embora tenha tido que me conduzir como uma roda de queijo. Ela sorriu aliviada. - Parece que a pedra não te rompeu o crânio. - Pois claro que não. A cabeça é minha parte mais inquebrável. Há mais água? acrescentou sem conseguir evitar que sua voz revelasse o esgotamento. Ela lhe levantou a cabeça e o segurou pelos ombros para que pudesse beber da garrafa. Depois de voltar a lhe deitar, perguntou-lhe: - Tem alguma outra lesão além da ferida na cabeça? Ele guardou silêncio e pelos sons, ela compreendeu que ele estava se apalpando. - Nada importante, disse ele finalmente. - Estupendo. Então pode inventar um motivo convincente de porque nos seguem meu primo Simmons e seus simpáticos amigos. - Mas você fez um trabalho de invenção tão bom que seria uma lástima que me colocasse eu, protestou ele. - Comparada com você sou a mais ínfima aficionada nisso de inventar histórias. - Talvez em inventar, mas a atuação foi esplêndida. Se não tivesse sabido a verdade, teria jurado que estava assustada e desamparada. - E o que te faz pensar que eu não o estava? - perguntou ela, sem saber muito bem se sentia adulada por sua fé ou ofendida por sua despreocupação. - Porque Kanawiosta, respondeu ele em tom de brincadeira e aprovação, - uma mulher disposta a atacar um boxeador profissional três vezes maior que ela é valente até o extremo de ser suicida. Ficou de lado e a rodeou com um braço atraindo-a para ele, e acrescentou com voz adormecida. - É uma guarda-costas maravilhosa. 120
Sorrindo, ela se relaxou contra ele e apoiou a bochecha em seu peito. Embora soubesse que isso era irracional, sentia-se segura em seus braços, como se o mundo exterior não pudesse lhe fazer dano. Muito em breve a respiração dele se fez mais lenta e tranquila e ficou dormindo. Ela se teria adormecido facilmente, mas resistiu a tentação. Dedicou-se a escutar o suave tamborilar da água contra a quilha e tentou imaginar uma história convincente para contar ao capitão. O barco Penélope acabava de entrar na primeira das eclusas4 do Foxton quando apareceram dois homens ofegantes, trotando junto ao caminho de sirga. - Eh, você! - gritou o mais corpulento, com acento cockney. - Espere um minuto; quero lhe fazer umas perguntas. John Blaine tirou a pipa da boca e olhou de cima abaixo ao recém-chegado. O homem tinha aspecto de ter estado em uma briga, sem lugar a dúvidas. - Um barco de canal não se detém quando está em uma eclusa, respondeu e ato seguido gritou ao seu filho: - Abra o painel inferior. Jamie fez girar o torno e começou a passar água à eclusa seguinte. - Maldito seja, estou-lhe falando - ladrou o cockney. Blaine não achou simpática a atitude do desconhecido. A senhora miúda, em troca, fora muito encantadora. - E eu tenho trabalho a fazer, replicou. - Faça-se útil e ajude com as comportas. Quando chegar ao fundo terei tempo para falar. Igualou-se o nível de água entre a primeira e a segunda eclusa, e Jamie abriu a comporta que as separava. O cavalo atirou da sirga fazendo avançar o barco, fechou-se a comporta de trás e se abriu o painel inferior da seguinte para que passasse a água à eclusa inferior. Balançando-se entre os pés, o cockney observou a rápida descida do Penélope à eclusa mais baixa, como se estivesse debatendo em seu interior se saltava ou não ao barco para fazer suas perguntas à força. Passado um momento, franziu o cenho e fez um gesto ao seu seguidor. Os dois acrescentaram sua considerável força ao trabalho de abrir os painéis e as comportas. As eclusas do Foxton consistiam em dois lances de cinco eclusas cada um; no meio dos dois lances havia um lago por onde podiam acontecer dois barcos. A passagem pelas dez eclusas é um trabalho lento, e Blaine poderia ter encontrado tempo para responder umas poucas perguntas educadas no caminho, mas nessas circunstâncias se manteve notoriamente ocupado. 4
Eclusa - é uma obra de engenharia hidráulica que consiste numa construção que permite que barcos subam ou desçam os rios ou mares em locais onde há desníveis (barragem, quedas de água ou corredeiras). Eclusas funcionam como degraus ou elevadores para navios: há duas comportas separando os dois níveis do rio. Quando a embarcação precisa subir o rio ela entra pela comporta da eclusa à jusante e fica no reservatório (ou caldeira), que é, então, enchido com água elevando a embarcação para que possa atingir o nível mais alto, à montante. Quando a embarcação precisa descer o rio ela entra pela comporta da eclusa a montante e permanece no reservatório enquanto ele é esvaziado, descendo a embarcação até o nível mais baixo do rio. As comportas abrem-se para a entrada do navio. Observe que a água está ao mesmo nível do lado do navio. Após a entrada, a câmara da eclusa será esvaziada e o navio estará ao nível das águas da comporta ao fundo. Seu objetivo é, portanto, permitir a navegação. Um dos processos de enchimento do reservatório pode ser gravitacional, de modo que não é necessário o uso bombas d'água e motores.
121
Finalmente o barco chegou à última eclusa, a vinte e dois metros mais abaixo de onde tinha começado. Com exagerada cortesia, o cockney saltou à cobertura e perguntou: - Agora vai responder a umas poucas perguntas? Blaine pôs tabaco fresco em sua pipa de argila, fez saltar uma faísca e deu chupadas na boquilha até que o tabaco esteve aceso. - Que deseja saber? - Procuro dois delinquentes, um homem loiro e um moço. São muito perigosos. - Sim? - perguntou Blaine com expressão de aborrecimento. O cockney começou a caminhar pela coberta do navio, de um extremo ao outro, procurando alguma sinal que confirmasse suas suspeitas, ao mesmo tempo que descrevia aos fugitivos e enumerava suas maldades. Maxie tinha a impressão de que estavam há dias encerrados nessa escuridão densa e morna, embora não podiam ter passado mais de uma ou duas horas. Saiu de sua letargia para ouvir vibrações acima, na coberta. Ouviu um rumor de vozes por cima dos sons mais suaves da água que golpeava a quilha. Dois homens estavam falando, um deles, em um fechado cockney. Embora se esforçasse para escutar, não conseguiu entender as palavras. Robin seguia dormindo sob os efeitos da ferida na cabeça, mas ela se sentou, muito nervosa para ficar quieta. Quase não se atreveu a respirar quando ouviu aproximarem passos retumbantes de um homem grande e pesado que faziam ranger as tábuas. Simmons devia estar bastante perto para tirar a capa de tapetes que cobria a trampilla para ouvir os desbocados pulsos de seu coração. Os passos se detiveram a menos de um metro de sua cabeça. Isso era imensamente pior que enfrentar a um inimigo ao ar livre. Os nervos lhe esticaram até tal ponto que sentiu um desejo histérico de gritar ou golpear a trampilla com os punhos; algo para pôr fim ao suspense. Nesse momento, Robin despertou e fez uma inspiração como preparando-se para falar. Imediatamente ela mediu com a mão na escuridão até lhe encontrar a boca e a tampou. No nervoso silêncio, ouviu dizer ao Simmons: - Amparar delinquentes é burlar-se da justiça do Rei, e a lei será dura com qualquer um que o faça. Ela afogou uma exclamação diante da devoção com que invocava a Lei o descarado. Certamente o demônio sabia citar a escritura para seus fins. Robin se tinha esticado quando lhe tampou a boca, mas em seguida se relaxou e fez um assentimento de compreensão. Quando os passos se afastaram, ela começou a retirar a mão, mas antes que pudesse fazê-lo, lhe roçou a palma com os lábios em um beijo muito suave. Ela inspirou, estremecida. Era notável como os diferentes tipos de contato podiam produzir reações tão variadas. Porque a afetava assim essa carícia tão ligeira como uma mariposa ao lhe tampar a boca com a mão? A escuridão que os rodeava já não estava carregada de perigo, mas sim de 122
intimidade. Estirou a mão e lhe passou os dedos pelo cabelo e pela atadura. Quando lhe encontrou a cara, acariciou-lhe a bochecha. A barba que começava a aparecer contrastava com sua pele suave. Recordou a sensualidade de vê-lo barbear-se e se ruborizou. Passou brandamente as pontas por seus lábios e ele os tocou com a ponta da língua. Ela estremeceu involuntariamente. Quando lhe rodeou o pescoço com a mão e a atraiu para si, estava disposta. Mais que disposta; abriu os lábios para encontrar os seu em um beijo com boca aberta. Esqueceu os nervos e o medo aos que os buscavam acima. Não existia nada fora do homem que tinha em seus braços, a aspereza aveludada de sua língua e o poder masculino de seu corpo. Sempre que se tocavam, a excitação formava redemoinhos por suas veias acendendo-a até o mais profundo. Ele deslizou a mão por entre seus corpos até chegar ao sensível lugar onde se uniam suas coxas. Quando lhe acariciou ali, ela reteve o fôlego e se esfregou contra ele. A energia da paixão e a criação foram fluindo por ela, arrastando-a para a satisfação na dança eterna do emparelhamento e da renovação. Desceu a mão por seu corpo até pousá-la sobre o potente e endurecido membro masculino. Todo o corpo dele ficou rígido. Ela o acariciou ali, desfrutando de seu poder tanto como lamentava a roupa que os separava. Puxou para cima a parte de trás da camisa e começou a lhe acariciar a cintura, lhe esquentando a coluna com a palma. O contato pele a pele resultou deliciosamente excitante. Nesse momento voltaram a ranger as tábuas da coberta embaixo dos pesados passos. Os dois ficaram imóveis. O barco se balançou com o peso. Os passos se aproximaram, aproximaram-se...até deter-se justo ao lado da trampilla. Então rugiu a voz do Simmons, aterradoramente perto. Suas palavras eram um murmúrio ininteligível, mas o tom de furiosa ameaça era inconfundível. De volta bruscamente à realidade de sua situação, Maxie sentiu desejos de dar-se de patadas. O que ocorreu com a sua resolução de evitar uma relação mais profunda com o Robin? Não tinha mais miolos que um esquilo. Separou-se dele. Apertou-lhe convulsivamente o pulso. Ela ficou rígida e ele soltou imediatamente. Mas sua resistência a soltá-la foi manifestada no lento e erótico deslizamento de sua palma sobre seu pulso e o dorso de sua mão. A carícia suave como uma pluma acrescentou combustível às chamas que ameaçavam consumi-los. Quando ele deslizou os dedos pelos dela, notou a irregularidade dos ossos torcidos, mal soldados. Ao desejo se somou uma perigosa ternura. Não poderia ter sido mais consciente dele se tivessem estado em uma cama nus. Quando finalmente acabou o contato, não teve coragem para renová-lo. Se voltasse a tocá-lo estando nesse estado, não haveria marcha atrás. Desejando que o esconderijo fosse maior, silenciosamente se retirou para o mais longe possível dele, esmagando-se contra uma parede de cilindros de tapetes com protuberâncias. O coração martelava tão forte que quase afogava a respiração agitada de Robin. Rangeram as tábuas quando Simmons passou seu peso ao outro pé. Ouviu-se um ruído áspero, como se estivessem atirando os tapetes de cima. Deus 123
santo, é que Simmons sabia que havia uma trampilla debaixo? Soou uma voz proveniente da proa do barco. Simmons caminhou para quem o chamou, fazendo ranger mais tábuas. Depois se fez um comprido silêncio, enquanto ela rogava que Simmons não voltasse a investigar mais. Quando o barco reatou o movimento, soltou o fôlego retido, tão aliviada que estava quase tremendo. Mas mesmo aliviada, quando conseguiu tirar a voz, falou em um sussurro um pouco entrecortado: - Sinto muito, pode ser que não pareça certo, mas não era minha intenção te fazer perder os estribos. - Sei. O que ocorreu foi minha culpa, respondeu Robin com voz triste. - A maioria de minhas partes estão funcionando, mas parece que o golpe na cabeça me danificou o julgamento. Ela recordou o contato de seu corpo tenso contra o seu. Sim, todas suas partes estavam funcionando muito bem. Outra vez lhe acendeu a cara de rubor e agradeceu a escuridão que a ocultava. Não era típico dela evitar uma situação difícil. Decidiu que era o momento de agarrar outro touro pelos chifres. - Ao que parece estamos amaldiçoados por uma forte atração física e graves duvida sobre atuar segundo ela. É uma maldita moléstia, não acredita? Ele se pôs a rir. - A atração entre homem e mulher é o que faz girar ao mundo. Posto que você e eu estamos juntos todo o tempo, às vezes as coisas ficam violentas, mas eu não preferiria de outra maneira, e você? Ela pensou. Pensou no turbulento desejo de seu corpo, no prazer puro e perverso que encontrava em seus abraços, no vazio que ficaria em seu coração depois de que se separassem. - Não, disse um pouco surpreendida, suponho que não. - Alegra-me ouvir isso, disse ele docemente. Trocou a atmosfera entre eles, dissipando-a sensação de ardente paixão. Com infalível instinto, Robin procurou na escuridão e lhe encontrou a mão. Atraiu-a para ele no tipo de afetuoso abraço que era normal entre eles. Ela se relaxou junto a ele, em paz novamente. - Estamos preparados para o interrogatório do capitão quando nos deixar sair daqui? - sussurrou-lhe ele no cabelo. - Sim, respondeu ela, sem explicar mais. Deslizou-lhe brandamente a mão pelas costas. - Há algo que eu deva saber para apoiar sua história? - Não. Isto vai te horrorizar, mas decidi que o melhor é dizer a verdade. - A verdade - disse ele, como se estivesse maravilhado. - Isso não me teria ocorrido jamais. - Essa é uma das poucas coisas que já disse que creio sem lugar a dúvidas. Ele se tornou rir. - Asseguro-te que digo a verdade com muita mais frequência que menos. Recordar todas as mentiras para não as enredar pode ser muito exaustivo. 124
- Eu não saberia fazê-lo - respondeu ela, tentando expressar um tom de repreensão. Notou que lhe vibrava o peito de risada silenciosa. - Seguimos casados? Ou vai retratar-se do que lhe disse antes respeito a que eu era seu marido? - Suponho que seguimos casados, respondeu ela a contra gosto. - Prefiro não explicar o que somos. Não há uma boa definição. Novamente sentiu as vibrações que indicavam que estava rindo em silêncio, mas ele não fez nenhum comentário. Posto que Robin já estava acordado e em guarda, sentiu-se livre para descansar um pouco. Acomodou a cabeça no ombro dele. Logo chegaria o momento de enfrentar-se novamente o mundo. Maxie despertou quando levantaram a trampilla e entraram os largos raios do sol poente. Olhou para cima receosa, mas só viu a cara do capitão do barco, não a do Simmons. - Estão bem aí? - Sim, muito bem em realidade, e muito agradecidos - respondeu Robin. Levantou-se e saltou à coberta; depois estirou a mão para ajudar Maxie a subir. - Por certo, meu nome é Robert Anderson e ela é minha mulher Máxima. Ela observou que dizia Anderson, não Andreville. Graças a Deus que tinha a sensatez de não usar seu fraudulento título. Os dois já tinham um aspecto bastante discutível sem isso. Olhou ao seu redor e viu que a barco estava amarrado no final de uma enorme eclusa. Perto do cais havia um estábulo de pedra e ao lado a pequena casa do cuidador da eclusa, rodeada por jardins floridos. O lugar se via aprazível e agradavelmente seguro. O capitão tirou a pipa da boca. - Eu sou John Blaine. Meu filho levou o cavalo ao estábulo. Os dois homens estreitaram as mãos. - Espero que Simmons não tenha sido grosseiro com você, disse Robin. - Ocorre que foi. Flutuou um sorriso atrás da fumaça da pipa. - Temo que houve um pequeno acidente. O tio tropeçou com a sirga e caiu no canal. Depois perdeu o interesse pelos barcos e partiu pisando forte. Maxie sorriu, pensando como teria engenhado Blaine para produzir o acidente. - Gostaria de nos acompanhar para jantar? - convidou a seguir. O convite recordou a Maxie que não tinham comido desde o café da manhã muito cedo com os boiadeiros. Fora realmente essa manhã quando compartilharam um bule de chá e uma barra de pão com o Dafydd Jones? - Vir-nos-ia muito bem o jantar, capitão Blaine. Com um gesto ele lhes indicou que o seguissem até a singela cabine do barco. A mesa estava coberta de mantimentos frios preparados pela mulher do Blaine no Market Harborough. Por fortuna, a boa senhora tinha ideias um tanto exageradas sobre o que precisavam comer seus homens para não morrer de inanição; havia mais que suficiente de empanada de cordeiro, pão, queijo e cebolas curtidas. Os quatro comeram na cabine, com a porta aberta para que entrasse a brisa do entardecer. 125
Enquanto comiam, Blaine não fez nenhuma pergunta. Quando terminou, carregou de tabaco sua pipa, e depois perguntou: - Agora, senhora Anderson, você me disse que explicaria tudo, não é? Seu primo, continuou acentuando a palavra com um ligeiro matiz sardônico, disse que você e seu marido eram culpados de roubo e assalto. - Em realidade Simmons não é meu primo, respondeu Maxie francamente. Disse isso porque era mais singelo que explicar a verdade. - Não vi muita semelhança familiar, concordou ele. - Qual é, pois, essa verdade? Ela contou o mais essencial da história: que seu pai morreu em Londres, que tinha motivos para suspeitar que existia alguma intervenção violenta, que seu tio tentava por todos os meios a impedir de chegar a Londres para investigar. Contou a verdade, embora com os menos detalhe possíveis, sobretudo no referente a sua relação com o Robin. - Juro-lhe, capitão Blaine - concluiu muito séria, - que não somos delinquentes. Pelo menos ela não era, pensou; incluir o Robin entre os inocentes era estirar bastante a verdade. - Não roubei nada além de um velho mapa de caminhos de meu tio e não cometemos nenhum assalto além de agir em defesa própria para escapar do Simmons e seus homens. O capitão voltou a encher sua pipa e a acendeu com um fósforo. - Era seu tio seu tutor antes que se casasse? Ela negou com a cabeça. - Nunca o foi. Até no caso de que não estivesse casada, acabei de completar os vinte e cinco anos, de modo que estou bem passada da idade de necessitar um protetor legal. Ele não tem nenhum direito sobre mim. Não só Blaine a olhou surpreso, Robin também. Dado seu pequeno tamanho, a gente tendia a acreditar que era mais jovem do que era na realidade. - Tudo isso tem traços de ser a verdade, embora não precisamente toda a verdade. Eu gostaria de ter visto essa briga em defesa do Simmons e seus homens. Blaine deu uma chupada à boquilha e o tabaco aceso brilhou na semi-penumbra. - Imagino que manhã reatarão o caminho para Londres; se quiserem passar a noite na adega, podem fazê-lo. Ela se levantou, inclinou-se sobre a mesa e lhe deu um rápido beijo na curtida bochecha. - Deus o abençoe, capitão Blaine. Você e Jamie foram maravilhosos. Ele quase soltou a pipa. Tentando reprimir um sorriso agradado, disse a seu filho: - Se for contar isto a sua mãe, não se esqueça de dizer que esse beijo não foi minha ideia. Todos riram. Depois, a sobremesa se voltou uma velada social. Prepararam chá e se transladaram à coberta, onde os ondulantes sons da vida aquática constituíam um aprazível fundo à conversação. Não demoraram para reunirem-se o guardião da eclusa com sua família, trazendo com eles pãezinhos doces para compartilhar. Uma vez acesas os abajures, Robin lhes ofereceu um espetáculo de malabarismo e magia. Depois convenceu a Maxie de que tocasse a gaita. Era uma espécie de reunião informal de vizinhos de Nova a Inglaterra e Maxie sentiu um grau de contentamento que nunca teria esperado encontrar nesse lado do Atlântico. Terminada a noite, retirou-se com o Robin à adega do barco. 126
Enquanto se relaxava em seu conhecido abraço, fez uma oração de ação de agradecimento por essa estranha viagem. Estava descobrindo uma Inglaterra diferente da dos seus parentes aristocráticos; esta era um país muitíssimo mais acolhedor e amável. Acima de tudo, agradeceu pelo Robin. Simmons procurou por toda parte os fugitivos, mas estes se esfumaram sem deixar rastro. O torpe capitão do barco do canal lhe havia dito que recordava vagamente ter visto duas pessoas suplicando ao condutor de uma carruagem de mercadorias que os levasse. Depois outras pessoas lhe haviam dito coisas parecidas, mas ao final todas as possibilidades deram em nada. Amaldiçoando-se por seu fracasso, com muita reticência enviou uma mensagem ao lorde Collingwood, lhe dizendo que perdeu a pista e não podia lhe garantir que a garota não chegasse a Londres. Acabou a missiva sugerindo que talvez a sua senhoria conviria procurar outras maneiras de impedir que sua sobrinha se inteirasse da verdade a respeito da morte de seu pai. Quanto a ele, continuaria a busca.
CAPÍTULO 20
Robin olhou as nuvens sem o menor entusiasmo. Durante a maior parte da viagem tinham gozado de um tempo fabulosamente bom, mas isso estava a ponto de mudar. Como mínimo haveria uma chuva torrencial, e provavelmente uma tormenta de importantes proporções. A iminente tormenta o ajudou a tomar uma decisão. - Gostaria de passar esta noite com todo luxo? - perguntou a Maxie. - Se isso significar um banho, sim! Ela acompanhou a resposta com um desses alegres sorrisos que faziam comportar-se de um modo estranho o seu coração, como se se esquecesse de pulsar. Era a mulher mais valente e corajosa que conheceu; aceitava alegremente todas as situações que se apresentavam. Às vezes o achava exasperante, e quem não? Mas nenhuma só vez em toda a viagem se queixou nem se mostrou ressentida ou mal-humorada. Maggie também fora assim. Surpreso, percebeu que fazia muitos dias que não pensava em Maggie. A sedutora presença de sua companheira o estava fazendo sentir muito remoto o passado. E assim era como devia ser, já era hora. Tinham avançado a bom passo desde que deixaram o barco do canal. Nesses momentos foram rumo ao sul por um caminho que passava perto do Northampton, a só uns dias de Londres. Ao que parece, com o olhar para o norte pelo canal mais as maiores precauções para evitar chamar a atenção, tinham obtido que Simmons lhes perdesse o rastro. Não tinham tido nenhum outro encontro desafortunado. Isso ia muito bem a ele; já era suficiente aventura estar com o Maxie e esforçar-se por não pôr suas mãos sobre seu delicioso corpinho. Se arrumava para controlar sua atração 127
considerando-a mentalmente «inacessível», como se estivesse casada, ou se tratasse de uma jovenzinha virgem ou uma parente consanguínea. Isso lhe deu muitos bons resultados, vale dizer; não tivera que voltar a pedir desculpas. Mas o desejo era constante, seguia fervendo a fogo lento. Supunha que o que realmente o refreava era saber que se voltasse a descontrolar-se ela se fecharia em si mesma e talvez inclusive desapareceria. Ela podia desejá-lo, mas deixou muito claro que sua mente governava o seu corpo. Um relâmpago, seguido quase imediatamente por um horroroso trovão, tirou-o de seu pensamento. Começou a chover, não uma suave chuva inglesa, e sim muito, e ficaram empapados até os ossos em poucos segundos. - Quanto falta para chegar a esse lugar que pensou? - perguntou ela a gritos para fazer-se ouvir por cima da chuva torrencial. - Não muito. Aumentou a velocidade a trote. Mas esta chuva não é nada. Para mau tempo, deveria ter visto a retirada de Napoleão em Moscou. Ela riu, como sempre surpreendida de sua capacidade de invenção. - Vai dizer-me que esteve com a Grande Armada, então? Outro trovão cortou o ar. - Por um tempo, respondeu ele como se tal coisa, - mas não resultava muito interessante, de maneira que roubei um cavalo e voltei para a Prússia. E assim continuaram, ela lhe fazendo perguntas e ele as respondendo com prontidão e inverossimilhança. Não tinha parado de inventar histórias quando de repente anunciou: - Por aqui. Já quase chegamos. Saiu do estreito caminho e se meteu por um buraco em uma sebe. Ela o seguiu e o encontrou esperando-a junto a um muro de pedra que se estendia por ambos os lados até além de onde ela alcançava a ver. - É possível que me tenha molhado um pouco o cérebro, disse-lhe perplexa. - Não consigo ver nada que se pareça com um refúgio. - Temos que passar ao outro lado do muro, disse ele. De um salto se agarrou do lado do muro, e com um balanço obteve limpamente montar em cima. Dali desceu o extremo da correia de sua mochila. - Deus santo, Robin - exclamou ela horrorizada, - o que se propõe? Este muro rodeia uma propriedade privada? - Sim, mas o proprietário está ausente e não há ninguém na casa, explicou ele. Ao ver que seguia indecisa, acrescentou: - Prometo-te que não haverá nenhum problema. Ela pesou sua confiança nele contra suas dúvidas. Como sempre, ele parecia transparentemente sincero. Recordou o que pensou dele quando se conheceram: a cara de um homem capaz de te vender muitas coisas que não necessita. Um anjo patife. Mas até o momento não tivera nenhum motivo para não confiar em seu julgamento, embora fosse muito possível que sua confiança nele indicasse que ela tinha alguma deficiência na cabeça. Agarrou a correia e subiu a parede. Ao outro lado se encontraram em um pequeno bosque de imensas árvores, cujas copas minguavam com a força da chuva. Robin encabeçou a marcha por um atalho apenas perceptível, de terra molhada e esponjosa. 128
Quando foram saindo do bosque, um potente relâmpago iluminou um momento o lugar. Ela se deteve, maravilhada pela majestosa mansão perfilada contra os escuros nuvens. Embaixo dessa tormenta algumas casas teriam parecido fantasmagóricas e ameaçadores, mas nesse caso não era assim; a casa senhorial estilo jacobino se elevava sobre uma colina baixa, e estava rodeada por um bem cuidado parque de amplos quadros de grama e jardins. Não era nem exageradamente grande nem tinha nada de ostentosa. O que a fazia extraordinária eram as elegantes proporções e a forma como encaixava em seu entorno como uma pedra preciosa em seu engaste. Inclusive em meio da turbulência dos elementos, via-se serena. - Robin, não deveríamos estar aqui, exclamou com convicção. - Há mordomos, porteiros e coisas dessas, mas cada um tem residência própria. Na casa não vive ninguém, tranquilizou-a ele. - Podemos nos alojar ali sem que ninguém se inteire. Ela seguiu sem mover-se. - Como pode estar seguro de que continua desocupada? - Eu me ocupo de saber essas coisas, respondeu ele em tom vago. - Vamos. Não sei você, mas eu me estou congelando. Ela olhou ao seu redor para assegurar-se de que não os observava ninguém e depois o seguiu. - Como se chama esta propriedade e quem é o proprietário? - Chama-se Ruxton. Durante muitos anos foi uma propriedade secundária de uma das grandes famílias aristocráticas - explicou, dirigindo-se para a porta de trás. - Está muito bem mantida, mas dificilmente a ocupam. - Que lástima. Maxie contemplou a acolhedora fachada, pensativa. - Esta é uma casa para se viver nela. Seus nobres ingleses são criminalmente esbanjadores. - Não direi que não. Detiveram-se diante uma porta pela qual se entrava na cozinha. Robin girou o pomo e descobriu que a porta estava fechada com chave, o que não tinha nada de estranho. Sem perder um instante, tirou a bota direita. Pasma, viu-o levantar uma parte do salto e tirar um par de arames rígidos com estranhos ganchos nos extremos. Voltou a por a bota e introduziu um dos arames na fechadura. - Que diabos faz? - exclamou ela. - Não é evidente? Ao ver que voltava a abrir a boca, disse-lhe em tom de recriminação. - Silêncio, por favor. Faz tempo que não pratico, e preciso me concentrar. Não podia ser muito o tempo que não praticava. Depois de introduzir o segundo arame, só demorou um minuto em mover a fechadura. Quando abriu a porta e lhe indicou que entrasse, lhe dirigiu um olhar que deveria ter feito ferver a fria água de chuva. - Tem as habilidades mais horrendas, disse-lhe entre dentes. - Mas úteis. Olhou-a com um sorriso abençoado. - Não é preferível estar embaixo de um teto junto a uma lareira a estar ao ar livre sob a chuva? 129
- Teria preferido outro refúgio, resmungou ela ao entrar. A luz que se filtrava pelas persianas das janelas permitia ver que a cozinha estava ordenada e não havia ninguém nela. Na parede oposta se via o brilho opaco de chaleiras e utensílios pendurados, as mesas de trabalho estavam limpas e prontas para usar, mas não havia sinal de ocupação humana. Pelo visto, a informação de Robin era correta. De todo modo sentiu desassossego quando deixou a mochila sobre a mesa lajeada e tirou a jaqueta e o chapéu ensopados. Robin abriu uma porta que dava a uma despensa. - Acenderei o fogo na lareira. Nesta tormenta ninguém vai se fixar em um pouco de fumaça que saia por uma chaminé. Era evidente que esteve ali antes. Alguma cozinheira indulgente lhe teria dado comida na época em que a casa estava habitada? Ou teria sido um convidado ali durante sua juventude respeitável? Fosse qual fosse o motivo, ele só demorou uns minutos em encontrar e acender um abajur, depois acendeu fogo com carvão e pôs água a esquentar. Ensopada até os ossos e tiritando de frio, agradeceu estar junto à lareira e absorver o calor do fogo. Robin voltou a desaparecer e quando voltou trazia um grosso xale que lhe pôs sobre os ombros. - Encontrei um guarda-roupa com diversos tipos de vestimenta. Enquanto se esquenta a água para o banho, vamos escolher quartos para passar a noite? - Para ser sincera, respondeu ela olhando a cozinha, - preferiria dormir aqui. Acho uma terrível intrusão invadir a casa de outra pessoa, mesmo que não a ocupem com regularidade. - Mas é que esta casa não é o lar de ninguém há muitos anos. Acendeu as velas de um candelabro, sorriu-lhe e a chamou com a mão. - Vamos ver. Não faremos nenhum dano. Ela saiu da cozinha e o seguiu, sabendo que quando lhe sorria assim, ela era capaz de segui-lo até o mesmo inferno. A luz piscante das velas iluminou uma casa formosa e atraente, com uma qualidade humana da que carecia Chanleigh. Embora a maior parte dos móveis estavam cobertos por capas da Holanda, suas formas revelavam uma elegância atemporal. Bastava passar uma mão pelas mesas de madeira acetinada das Índias para dar vida a suas brilhantes superfícies. Altas janelas com persianas esperavam para deixar entrar a luz, e deliciosos tapetes orientais emudeciam o som de seus passos. Na sala de música, levantou a tampa de uma espineta e tocou uma escala. As notas soaram limpas e afinadas sob seus dedos curiosos. - É uma pena que ninguém aprecie tudo isto, comentou. - Uma casa senhorial tem uma vida que se estende a séculos... - disse ele, pensativo. Uma ou duas décadas sem habitar é uma aberração insignificante. Ruxton foi um lar no passado, e voltará a ser. Ela desejou que tivesse razão. Subiram a escada. Ao chegar acima viu uma janela volta sem persianas e foi a admirar as ondulantes colinas. A paisagem era menos espetacular que os áridos campos do Durhamshire, mas era formosa e muito acolhedora. Franziu os lábios. Como era possível que os donos não queriam viver ali? É que não 130
tivessem nenhum parente pobre que necessitasse de um lar? Movendo tristemente a cabeça, seguiu atrás de seu companheiro. Ele abriu uma porta e olharam dentro. Era um quarto grande, com uma cama larga de quatro postes e um tapete cor rosa debaixo. - Irá bem este? Creio que é o quarto da senhora. Do outro lado dessa porta teria que estar o quarto do senhor. Ela o olhou, recordando a estalagem Drover. - Em outras palavras, é mais perigoso compartilhar uma cama que uma sebe, um montão de feno ou um carregamento de tapetes? Ele a olhou aos olhos, sério por uma vez. - Assim resultou antes. Creio que é melhor que eu durma no quarto contíguo. Claro que tinha razão, maldito seja. Pela vigésima vez, Maxie subiu as suaves macias bordas de sua luxuosa bata. Não estaria bem que o veludo vermelho se metesse em sua comida. Tinha-lhe melhorado bastante o humor nas três últimas horas. Enquanto Robin se banhava, ela tinha guisado o presunto e as verduras que tinham comprado. Seus princípios a respeito de beber álcool não se estendiam a cozinhar com vinho, e uma generosa medida de clarete, além das ervas secas que encontrou na adega tinham feito maravilha com outros ingredientes meio plebeus. Depois, enquanto se banhava ela, durante essa deliciosa sessão inundada em água aromada com lavanda, Robin tinha saqueado os tesouros da casa, criando um esplêndido ambiente para jantar. A sala de jantar formal era muito grande para ter intimidade, de modo que pôs a mesa na sala de café da manhã. As taças de cristal, os talheres de prata e os pratos de porcelana fina brilhavam à luz das velas, e em delicadas fontes havia deliciosas frutas confeitadas agarradas da adega. Com alegre despreocupação pelos direitos de propriedade, também tinha pego duas batas de veludo para usar enquanto secavam suas roupas. Usar a suntuosa bata ao sair do banho a fez sentir-se como uma princesa. Tragou o último bocado de seu guisado e se apoiou no respaldo da cadeira com um suspiro satisfeito; voltou a subir as mangas. A bata era muito grande e lhe arrastava pelo chão, mas era perfeita para essa ocasião lunática, tendo o cabelo recém lavado solto como uma menina, e os pés abrigados por meias três-quartos de lã. Decidiu relaxar e desfrutar desses extravagantes luxos. Tinha a estranha sensação de que a casa os acolhia bem. Talvez estivesse contente de ter moradores, embora fossem transitivos e ilegais. Observou dissimuladamente ao Robin. Sua bata lhe sentava à perfeição, e era de um tom azul que combinava com seus olhos. A cor destacava seus cabelos dourados, fazendoo irracional e perigosamente atraente. Ele estirou a mão para agarrar sua taça de vinho e a bata lhe abriu, deixando a descoberto uma porção de peito. Interessou-lhe perceber que havia um ligeiro tom avermelhado no pêlo do peito. Supôs que isso ia com a barba que lhe crescia avermelhada. - Em ocasiões como esta - comentou, servindo-se de mais água de um jarro de prata, acharia agradável me reclinar na poltrona com uma taça de conhaque na mão. 131
- Pode fazê-lo de todo modo. Nada nesse quadro diz que tenha que beber realmente o conhaque. Elevou a taça que continha o último da garrafa de clarete que se apropriou para condimentar o guisado. - Fazemos um brinde ao futuro? Ela riu e levantou sua taça. - Vale um brinde com uma infusão? - No que se refere a simbolismo a intenção é tudo, assegurou-lhe ele, - os detalhes não importam. Ela titubeou um momento, prisioneira de um estranho e profundo desejo. Cada vez lhe resultava mais difícil imaginar-se separada de Robin, com seu despreocupado encanto, seu humor quixotesco e sua tranquila aceitação de sua condição de mestiça. Mas um futuro com ele cabia sob um título de fantasias, não de resultados possíveis. Tentar retê-lo seria como tentar capturar o ar em suas mãos. Sorrindo tristemente, levantou a taça e a apurou de um gole. Ela era norte-americana, o que significava que não devia aceitar que um pouco fosse impossível. Depois de servir-se mais infusão, escolheu uma parte de gengibre confeitado de uma fonte de porcelana da China. - Em algum momento de seu diversificado passado tem que ter sido mordomo. Assinalou a elegante mesa. - Faz isto muito bem. - Pois tem razão. Tive um ou dois trabalhos de mordomo, assim como de lacaio e alguma vez de moço de quadra. Ela se surpreendeu, não fora sua intenção que ele respondesse ao seu comentário. - É certo isso ou é outra brincadeira? - Absolutamente certo. Sorriu: - Tão difícil te resulta me imaginar fazendo um verdadeiro trabalho? - Não é fácil. Apoiou o queixo na palma com o cotovelo afirmado na mesa; contemplou seu tranquilo semblante patrício. Em realidade não devia surpreender-se. Inclusive os cavalheiros errantes com arraigada aversão empregos honrados tinham que fazer algum trabalho de vez em quando para colocar alimento no estômago. - Seguro que foi bem como criado. Tem uma capacidade camaleônica para se harmonizar em qualquer ambiente. Tratou de definir as impressões que se formou durante a viagem juntos. Entretanto, embora não tenha nenhuma dificuldade para falar com qualquer pessoa de qualquer categoria social, sempre parece estar à parte, com o grupo mas não do grupo. Ele imobilizou a mão ao redor da taça de vinho. - Esse, Máxima é um comentário muito perspicaz. Antes que ela pudesse retomar o tema, continuou. - Logo estaremos em Londres. Onde pensa em começar a investigar a morte de seu pai ? - Na estalagem onde morreu. Seguro que terá criados que poderão me dizer algo. Também tenho os nomes de velhos amigos que pensava visitar. - Depois do que se inteirar do que possa e atue conforme, continuou ele com um intenso olhar, - o que pensa fazer ? Ela negou com a cabeça e começou a jogar com os talheres de prata, tentando, sem 132
conseguir decifrar a intrincada inicial gravada. - Suponho que voltar para os Estados Unidos e procurar trabalho em uma livraria. Em realidade não o pensei. O futuro me parece muito longínquo. Com os aros agarrou um torrão de açúcar e o pôs em sua infusão. - Não, isso não é tão assim. Normalmente tenho uma vaga ideia do que contém o futuro. Nada tão grandioso como uma profecia, simplesmente a sensação de que algo se cumpre. Por exemplo, quando viajava com meu pai, sempre sabia quando íamos chegar a nosso destino e quando não. Quando zarpamos para a Inglaterra, não tinha nenhuma dúvida de que chegaríamos bem e sabia que conheceria a família de meu pai. Se for por isso, quando saí da casa de meu tio, sabia que chegaria a Londres. - Pressentiu que teria tantas aventuras no caminho ? -perguntou-lhe ele, curioso. - Não, e nunca poderia haver imaginado que conheceria alguém como você. Dirigiulhe um breve sorriso. - Mas agora, quando olho para diante, não consigo projetar o que vai ocorrer. É como um verão quando planejamos passar pelo Albany. Não havia nenhum motivo para supor que isso não ia ocorrer, mas não consegui nos imaginar ali. Resultou que meu pai caiu doente. Passamos várias semanas em um povoado de Vermont e ao final não fomos a Albany naquele ano. Algo assim me ocorre agora. - O que vê ? - perguntou ele carrancudo. - Uma espécie de vazio. Pensou um momento. Talvez o futuro vai dar um giro que não consigo imaginar porque é muito diferente do passado. Sempre soube que não passaria toda minha vida como vendedora ambulante de livros, embora não sabia como ia terminar essa parte de minha vida. Mas tão logo meu pai me disse que viríamos a Inglaterra, soube que nunca voltaria para a vida de vendedora ambulante. - Em minha vida conheci muitas formas diferentes de intuição, e aprendi a não descartá-las, disse Robin com expressão muito séria. - Se tentar conscientemente, acredita que poderia obter uma melhor percepção do que vai ocorrer em Londres? Se houver perigo, irá bem estar preparados. - Não sei se isso é possível, respondeu ela, duvidosa, - mas eu tentarei. Fechou os olhos, relaxou-se apoiada no respaldo da cadeira e visualizou o mapa da Inglaterra. Um caminho prateado serpenteava para o sul desde o Durham, e seu brilho aumentava no Yorkshire, onde conheceu ao Robin. O que aconteceria em Londres, o complexo e vibrante coração da Inglaterra? Deixou voar a mente. Negrume, caos, dor. O impensável... Lançou um grito, endireitou-se bruscamente e fez um movimento convulsivo com a mão, arrastando a taça e o pires que estavam na mesa, que caíram com estrépito ao chão. Contemplou as partes dispersas, com o coração desbocado. - Rompi-a, disse estupidamente. - Ao diabo com a porcelana. Robin já estava com ela rodeando-a com seus braços. Ela apoiou a cara em seu ombro. - Sentiu que ali ia ocorrer algo horrível? Ela tentou penetrar no aterrador vórtice negro que quase a tinha consumido, mas sua mente resistiu, como um pônei nervoso e assustado. - É. ..era literalmente inimaginável. Algo muito horrível para entender. 133
Ele a estreitou com mais força. - Poderia ter sido sua própria morte? - perguntou-lhe brandamente. - Se for assim, amanhã mesmo te levarei na direção oposta, embora para isso tenha que te atar a um cavalo. Ela negou com a cabeça. - Nunca lhe tive medo da morte, portanto minha morte não seria tão perturbadora. Assaltou-a um pensamento horroroso. Poderia ter pressentido um vago perigo para o Robin? Tão logo lhe formou esse pensamento na mente, descartou-o. Seu medo não tinha nada que ver com o Robin. - Tampouco era sua morte. Creio. ..Creio que tinha a ver com a morte de meu pai. Tragou saliva. Embora mentalmente aceitei a possibilidade de que meu tio tenha disposto a morte do Max, em meu coração nunca acreditei. Mas se meu tio for o responsável, isso explicaria porque pensar no futuro é tão perturbador. Um julgamento por assassinato teria terríveis repercussões para toda a família Collins. Sofreriam pessoas inocentes. - E você não deseja isso, embora seus parentes não tenham sido particularmente amáveis com você. Pôs-lhe um dedo sob o queixo e o levantou a cara para que o olhasse. Suponho que é parvo te perguntar se quer deixar as coisas em paz. - Isso de maneira nenhuma, disse ela endurecendo a mandíbula. - Pode ser que não consiga descobrir a verdade, mas se não o tentar, não me perdoarei isso jamais. Ele assentiu, não surpreso. - É sábia para atuar. A verdade dificilmente é tão ruim como nossos temores. Afastoulhe o cabelo da têmpora e se afastou. - Vou preparar outro bule de chá. Depois te contarei todas as histórias mais absurdas que me ocorram para que quando vá à cama durma bem. - Obrigado Robin, murmurou ela quando ele já saía com o bule na mão. O futuro juntos podia ser limitado, mas se ele estava com ela enquanto investigava a morte de seu pai, seria capaz de enfrentar o que fosse que a esperava em Londres.
CAPÍTULO 21
O marquês do Wolverton calculou que se Robin e a Inocente Resguardada decidissem passar pelo Ruxton, demorariam entre três e quatro dias em chegar ali desde o Market Harborough. Dirigiu-se ao sul, fazendo as averiguações de rotina, mas com uma notável falta de êxito. O casal se evaporou como neblina do verão. Giles tinha a intenção de passar a terceira noite em Ruxton, mas uma violenta tormenta converteu os caminhos em pântanos, o que diminuiu a velocidade da carruagem até o passo de um caminhante. Irritado, repreendeu-se por ter dedicado muito tempo a inúteis averiguações. Se tivesse renunciado a elas umas horas antes, poderia ter chegado a Ruxton. Não tinha mais remédio que procurar alojamento na estalagem mais próxima. A perspectiva não lhe resultava nada atraente. Enquanto sua carruagem estralava pelo lodo, surpreendeu-se pensando em Desdêmona Ross, que tinha uma alarmante tendência de lhe invadir a mente, tão acordado 134
como dormindo. Não sabia muito bem o que fazer respeito a dela, mas certamente desejava fazer algo. Seu agradável pensamento foi interrompida por um forte estalo sob seus pés. A carruagem se deteve bruscamente e se inclinou para um lado, ficando em precário equilíbrio. Soltando um suspiro saiu ao aguaceiro; uma avaria da carruagem era o final perfeito para o dia. - Wickes, comprovamos a gravidade da avaria? - gritou ao seu cocheiro Wickes. Wickes entregou as rédeas ao Miller, o jovem criado que fazia de guarda, moço de quadra e ajudante de câmara em tempo parcial. Desceu da boléia e acompanhou o marquês pelo lodo a ver a avaria. - O eixo está rompido sem remédio, milorde, disse Wickes pesaroso. - Teremos que enviar Miller a procurar um ferreiro. Giles se encasquetou mais o chapéu para que a chuva não lhe entrasse pela nuca. - Estamos a dois ou três quilômetros do Daventry. Ali tem que haver um ferreiro. Estava a ponto de enviar ao Miller à cidade quando ouviu o ruído de guarnições de cavalaria e rodas de outro veículo, também rumo ao sul. - Isto é uma sorte, disse Wickes e saiu ao caminho a fazer gestos ao carruagem que se aproximava. Não era uma carreta e sim outra carruagem particular, uma carruagem com característicos lados amarelos. Um sorriso se estendeu pela cara do Giles. Quem quer inventou o dito de que não há mal que por bem não venha, tinha razão; essa tormenta estava soprando certamente bem. Quando se dirigia a carruagem, uma alta figura feminina desceu ao dilúvio e pôs-se a andar para ele. Ele apressou o passo e quando estava perto dela, exclamou: - Volte para dentro da carruagem, lady Ross. Não há nenhum motivo para que você também se molhe. - Não se preocupe, Wolverton, não me vou derreter. Dirigiu-lhe um sorriso astuto, com as pestanas molhadas pela chuva e a água caindo a jorros pelo lado do chapéu. Esta é minha oportunidade de resgatá-lo para variar. Como podia deixar passar uma oportunidade assim? Suponho que se rompeu uma roda ou um eixo. Ele assentiu. - Agradeceria-lhe que enviasse a alguém do Daventry para nos ajudar. - Por que não vem comigo? Seus homens são perfeitamente capazes de cuidar da carruagem. Penso em me alojar na Wheatsheaf, que é uma estalagem bastante decente. Você também pode conseguir quarto ali. - Embrulhou-se mais na ensopada capa-. Este não é tempo para viajar. A ideia de passar um tempo com sua esplêndida senhoria era muito atraente para rejeitar o convite. Giles disse a seus homens que esperassem dentro da carruagem até que chegasse ajuda, tirou uma maleta na qual levava uma muda de roupa e umas quantas coisas de primeira necessidade, e seguiu a lady Ross até sua carruagem. Subiu a carruagem e se sentou, salpicando água para os lados do assento. Ao comprovar que estavam sozinhos, perguntou-lhe: - O que ocorreu a sua criada? 135
- A tola moça caiu com um resfriado com muito ruim, assim eu a enviei para casa. Inclinou a cabeça. - Como pode ver, não segui seu conselho de ir a Londres para esperar. Encontrei-me com uma ou duas pessoas que poderiam ter visto nossos fugitivos, mas não estou mais perto de encontrá-los. Como foi sua sorte? - Mais ou menos igual. Decidindo que já não havia nenhum motivo para manter segredo sobre Ruxton, disse: - Robin tem uma propriedade perto de Daventry. Minha intenção é ir à casa a ver se poderiam ter-se abrigado ali um ou dois dias. Gosta de me acompanhar ali amanhã? - É obvio. Sorriu irônica. - Há vantagens evidentes em que estejamos juntos quando os encontrarmos. Juntos. Agradou-lhe muito o som dessa palavra. Em Daventry encontraram um ferreiro que estava disposto a ir ver a carruagem imediatamente em troca de um pagamento que não necessitou de muita extorsão. Uma vez conseguido isso, dirigiram-se à estalagem Wheatsheaf. Tão logo entraram, Giles pediu uma bandeja de chá. O proprietário deu as ordens pertinentes e os conduziu a um salão privado. Enquanto Giles se tirava a capa, Desdêmona foi se pôr junto a lareira. - Isto me resulta familiar, comentou. - Parece que sempre nos encontramos em pousadas. Tirou o chapéu e agitou a cabeça. Seus cabelos avermelhados caíram em uma chamejante massa sobre seus ombros, muito frisados pela umidade. Giles a contemplou agradado enquanto ela se penteava distraidamente os ferozes cabelos com os dedos, em uma inútil tentativa para estirá-los. Decididamente era pró ruivas. Abriu a boca para fazer um comentário leve sobre o efeito que esses encontros nas estalagens poderiam ter em uma reputação. Mas nesse momento sua acompanhante tirou a capa ensopada e ele abandonou o pensamento racional. Muitas vezes se perguntou como seria ela quando não estava envolta em capas e capas de roupa. Aí tinha a resposta, e o conhecimento discorria como um raio ardente por suas veias. Tinha-a acreditado mas bem grossa, de um modo atrativamente feminino. Entretanto grossa supunha ser volumosa toda inteira. Desdêmona era volumosa só em certos lugares. Seu vestido de musselina, ensopado, lhe rodeava mais que umas anáguas molhadas, revelando uma figura espetacular com amoroso detalhe. Tinha umas pernas gloriosamente longas e bem formadas, e a finura de seu talhe fazia claramente chamativas suas belas curvas. Em particular tinha um extraordinário par de... Giles se apressou a compor sua expressão. Um cavalheiro diria que tinha um formoso pescoço, posto que o que tinha não era um tema para um comentário educado. Sim, certamente lady Ross tinha um pescoço muito formoso... e o resto também era muito formoso. Nesse momento ela o olhou e lhe esticou a cara. - Está-me olhando muito fixamente, disse-lhe em tom acusador. Era certo. Giles elevou seus aturdidos olhos para sua cara e lhe disse com lamentável 136
candura: - Lady Collingwood tinha razão. A ela se avermelhou a cara até ficar da cor do cabelo. - Não foi um insulto, apressou-se a dizer ele. - É você uma mulher extraordinariamente atraente. Nenhum homem poderia deixar de fixar-se. - Quer dizer que está de acordo com minha cunhada em que pareço uma cortesã, ladrou ela. Os dois têm razão, porque assim é exatamente como tentaram me tratar muitos homens. Foi agarrar sua capa molhada para pô-la. Suas amargas palavras fizeram compreender ao marquês por que ficava tão nervosa diante a atenção masculina. Tirou a jaqueta, que estava perfeitamente seca porque a capa a tinha protegido da chuva. - Ponha isto. Diferente de sua capa, está seca. Ao ver que ela titubeava, acrescentou em seu tom mais amável. - Lamento o que disse. Não era minha intenção lhe faltar o respeito. Só foi que estava surpreso. Seu disfarce é excelente. Ela aceitou a jaqueta com receio, como se acreditasse que ele a ia atacar. Envolvendose com ela, voltou para sentar-se. A jaqueta a devolvia a sua perfeita decência, lamentou o marquês. Chegou a bandeja com o chá, de modo que ele serviu uma taça e a passou, junto com o prato com bolos. Ao princípio ela se sentou nervosa no lado da poltrona, mas foi relaxando à medida que o chá a esquentava e ao comprovar que ele mantinha a distância. Decidindo que era o momento de saber por que a dama era tão suscetível, comentou: - Deve ter passado mal durante sua primeira temporada. A inocência está acostumada a despertar instintos protetores, mas você tem o tipo de beleza que pode fazer os homens esquecer suas maneiras, sobretudo aos jovens com mais paixão que paciência. Ela olhou fixamente seu prato e desfez um bolo entre os dedos. - A primeira vez que um jovem me achou longe das mulheres que me faziam companhia, senti-me horrorosamente culpada, pensando o que fez para inspirá-lo. Finalmente compreendi que a culpa não era de meu comportamento. Torceu a boca em um careta. - Para me defender, tomei o costume de usar uma agulha longa e afiada no cabelo. - Compreendo por que tem tão má opinião da metade masculina da raça - disse ele, pensativo. - E sua apresentação em sociedade... Isso foi só o começo, não é? - Porque o pergunta, Wolverton? - levantou a cabeça e o olhou desafiante. - Se só quer expressar intenções desonrosas de um modo mais amável que o habitual, não vejo em que meu passado seja da sua conta. Ele fez uma funda inspiração. - Minhas intenções não são desonrosas. Portanto, tenho certa dificuldade para encontrar as palavras, têm que ser honradas. Boquiaberta, ela pôs a taça no pires com certa brutalidade, e houve som de choque. Olharam-se aos olhos durante um desses momentos caleidoscópicos quando tudo muda para sempre. Para melhor ou para pior, não haveria marcha atrás. Quando ela falou, suas palavras pareciam não vir ao caso, mas ele sabia que sim tinham que ver. - Conheci sua esposa em uma das festas de sua primeira temporada. Era deliciosa, 137
bela como uma figurinha de porcelana. Ele deixou a taça no pires, procurando que não soasse. A reciprocidade era jogo limpo. Se ele queria explorar a Desdêmona, ela tinha direito a fazer o mesmo com ele. - Sim, Diane era muito formosa. - Ela e eu não poderíamos ser mais distintas. - Espero em Deus que isso seja certo - disse ele, sem poder evitar um tom de amargura. - Se não forem, isto poderia resultar ser o segundo grande engano de minha vida. Desdêmona se havia sentido desequilibrada durante toda a conversa, mas essas palavras do marquês a estabilizaram. Alegrou-lhe saber que ele era tão vulnerável como ela. - O que foi mau? Ele se levantou e começou a passear inquieto. - Não é uma história muito longa. Eu me casei com ela muito apaixonado. Custavame acreditar que me tivesse eleito entre tantos outros. Encolheu seus largos ombros. - Foi pura idiotice não ter percebido o motivo; eu era herdeiro do melhor título e da melhor fortuna posta no mercado do matrimônio naquele ano. Mas ela foi muito hábil ao simular uma doce e amorosa inocência. Era fácil ser estúpido. - Certamente estava apaixonada. Nenhuma mulher em seu são julgamento aceitaria a um homem que não gostasse de tendo tantas outras opções. - Eu não lhe caía exatamente mal, disse ele com expressão sardônica, - mas depois durante uma de nossas encantadoras discussões, disse-me que se aborreceu de mim antes que terminasse nossa lua-de-mel. Imaginei que se aborreceria, mas nem tanto, nem tão cedo. Desdêmona fez um gesto de pena. Essa crueldade lhe recordava muito seu próprio matrimônio. - Mas Diane tinha bastante de filósofa. Eu podia ser aborrecido, mas ela estava disposta a me tolerar em troca de fortuna e posição. Tinha um incrível talento para gastar dinheiro, e desejava ser marquesa. - Morreu no parto junto com o bebê? Desdêmona tinha uma vaga lembrança de ter lido a notícia das mortes. Tinha dedicado um momento a lamentar o inoportuno fim da beldade. - Sim. Giles apoiou uma mão no suporte da chaminé e contemplou o fogo durante um comprido momento. - Quando estava morrendo, quando parecia que o bebê ia sobreviver, disse-me que era quase seguro que não era meu. Foi mas bem como uma desculpa. As mulheres em sua posição têm que dar um ou dois herdeiros legítimos antes de seguir seu próprio caminho. Ela tentou fazer isso como parte do trato, mas... às vezes se produzem enganos. Desdêmona se compadeceu. Pela primeira vez em sua vida se aproximou de um homem e fez um gesto físico de consolo, sem preocupar-se de se ele poderia reagir de mau modo. Pô-lhe a mão no braço só por cima da camisa e lhe disse: - Sinto muito. Ela não merecia a você. Embora ele tentou que não lhe quebrasse a voz, ela notou seu braço tenso como um 138
arame estirado. - Isso eu não sei, disse, mas é certo que tínhamos ideias muito diferentes do que desejávamos do matrimônio. Meu julgamento foi desastrosamente mau. Com voz quase inaudível, acrescentou: - O pior de tudo foi não saber como levar duelo por ela. - Compreendo-o, disse ela, docemente. - Quando morreu meu marido, senti alívio, culpa, certa tristeza impessoal por uma morte tão sem sentido. Foi... complicado. Ele levantou a mão e a apoiou brevemente sobre a dela. - Não conheci sir Gilbert Ross, mas sei que tinha fama de jogador. A Desdêmona tocou contemplar o fogo da lareira. - Entre outras coisas, todas elas más. Jamais em sua vida falara com ninguém a respeito de seu matrimônio, mas a sinceridade do marquês merecia uma resposta igual. - Afogou-se em um lago, bêbado. Virtualmente o único ato considerado de sua vida foi morrer quando tinha menos dívidas de jogo, de modo que havia dinheiro suficiente para pagá-las e restou um pouco. Isso, junto com uma herança de uma tia, permitiu-me ter independência econômica. Descobri que a viuvez me assentava muito melhor que o matrimônio. Ele emitiu um suspiro. - Um cortejo segundo os costumes da sociedade é algo muito artificial. Não me surpreende que você e eu tenhamos acabado escolhendo pares que eram muito diferentes ao que imaginávamos. - Muito certo, embora em realidade eu não escolhi o meu marido. - O matrimônio foi imposto por sua família? - Não. Certamente meu irmão teria feito uma escolha melhor. Durante minha temporada em Londres, sir Gilbert era um de vários pretendentes sérios. -Sorriu com desavenças. - Minha fortuna não estava ao nível da sua, mas tinha um dote decente, já os homens gostavam de minha aparência, ainda que não a respeitassem. Gilbert me cortejou assiduamente, mas sabia que meu irmão lhe negaria a permissão se fizesse uma oferta. Assim, um dia me levou a passear pelo parque e continuou sem deter-se. No dia seguinte me devolveu a minha casa. O marquês franziu o cenho. - Não. Foi muito respeitoso. Levou-me a uma casa desocupada no campo, me jurando amor eterno e me dizendo que não podia viver sem mim. Eu estava furiosa, é obvio, mas também me sentia adulada. Era muito bonito, e eu era tão jovem que me pareceu muito romântico que um patife tão bonito estivesse loucamente apaixonado por mim. - Compreendo, disse Wolverton. - Não teve necessidade de lhe pôr a mão em cima. Só o feito de haver passado uma noite só com ele já a comprometia totalmente. - Exatamente. Todos estiveram de acordo que não tinha outra alternativa que me casar com ele. Apertou os carnudos lábios. - Era muito jovem para compreender que sempre há opção, de modo que aceitei meu destino. - É por isso que está tão resolvida a que sua sobrinha tenha uma opção, tenha ocorrido o que tenha ocorrido? - Exatamente. Não permitirei que ninguém, absolutamente ninguém, obrigue-a a 139
contrair um matrimônio desgraçado. Desdêmona agarrou o atiçador e removeu os carvões acesos. - Deveria ter oposto resistência, mas como disse, gratificava-me que Gilbert me desejasse tanto que tivesse tomado medidas drásticas. Caía-me muito bem; era muito ameno e eu interpretei o fato de que não me violasse como uma prova de verdadeiro afeto. Por desgraça, não era mais amor que o que sentia sua Diane. - Só lhe interessava seu dote ? - Isso era o principal. Mas além do dinheiro... Tragou saliva; não sabia se seria capaz de continuar. O marquês lhe rodeou os ombros com um braço em atitude não ameaçadora, e se relaxou um pouco. - Uma vez que estava muito bêbado, Gilbert me contou que fez uma lista das garotas que tinham fortunas decentes mas que ao mesmo tempo não eram herdeiras tão importantes que não lhe permitissem aproximar-se delas. Então, depois de conhecer todas, escolheu-me por... por meus peitos. A voz lhe saiu fatal, surpreendida de poder dizer em voz alta o que lhe tinha ferido a alma. Sem dizer uma palavra, ele se aproximou mais. Ela percebeu que ele era capaz de compreender quão humilhante fora essa declaração do seu marido; as experiências dele foram igualmente humilhantes. - A transação básica que concerne ao matrimônio é a relação sexual por dinheiro, disse ele pensativo. - O homem mantém e protege à mulher em troca da acessibilidade sexual. Isso não é algo adulador para nenhum dos dois. Certamente para mim não foi um prazer me inteirar disso de um modo tão duro. Aumentou a pressão do braço. - Você teve a desgraça de ser obrigada a casar-se por causa da luxúria e o dinheiro. Isso me parece particularmente injusto. - Meu Deus, que estúpidos somos os mortais, disse ela com uma risada pesarosa. - A isso se reduzem todas essas formosas frases românticas: o homem escolhe à mulher que o excita mais, e a mulher aceita ao homem capaz de lhe dar mais dinheiro? - Essa poderia ser a transação básica, mas só é o começo. - Os seres humanos são criaturas complexas, e um bom matrimônio deve satisfazer muitas necessidades e desejos. Olhou-a com um brilho de diversão em seus olhos azul ardósia. - Mas além do afeto, o companheirismo e a confiança, não é algo inerentemente ruim achar fisicamente atraente a esposa. Ela desviou a vista, outra vez tímida, mas contente de estar dentro do círculo de seu braço. - Voltamos então para a realidade de que pareço uma prostituta? - Na realidade não. Nunca achei muito interessantes essas mulheres, ao menos não durante mais de uma ou duas horas. Você, em troca não é outra coisa que interessante. Admiro o idealismo de seu trabalho político, e o que tem feito por uma sobrinha que nunca viu. Eu gosto de sua franqueza, riu. Também eu gosto que seus rubores façam fácil saber o que está pensando. A quebra de onda de cor que cobriu o rosto da Desdêmona confirmaram suas palavras. Sentiu-se a ponto de ficar a arranhar o tapete com o pé como uma menina. Ele concluiu a lista de suas virtudes dizendo: - O fato de que a respeite como pessoa é o alicerce. Entretanto, estou absolutamente 140
encantado de que também tenha o tipo da cortesã de ópera mais cara. Ela teve que rir diante sua absurda e maravilhosa lógica, e do modo como esta lhe dissolvia seu acanhamento por sua aparência tão imprópria de uma dama. Talvez pela primeira vez em sua vida, a admiração de um homem lhe resultava agradável, não ameaçadora. Então elevou o olhar e lhe acabou a risada. Conteve o fôlego ao ver o que viu em seus olhos. Sem dúvida havia desejo, mas também afeição e amabilidade. Quando ele se inclinou, não tentou evitar seu beijo. O beijo começou como uma suave carícia sem exigências, absolutamente diferente dos escravizantes assaltos de quão jovens às vezes a tinham esquecido quando era jovenzinha. Seu marido dificilmente se incomodou em beijá-la assim; mas bem ia direito a obter sua satisfação. Em troca, Giles preferia uma tranquila exploração. Seus lábios lhe roçaram os seus com pausada sensualidade, fazendo-a descobrir prazeres que jamais tinha imaginado. Ao princípio se limitou a aceitar, mas muito em breve desejou corresponder. Rodeou-lhe o pescoço com os braços e se relaxou apertada contra ele. Seus corpos se ajustavam à perfeição como se estivessem feitos expressamente um para o outro. Com ele não se sentia como uma vulgar amazona muito volumosa; sentia-se como uma mulher que encontrou o seu par. Ele introduziu as mãos por debaixo de sua jaqueta, que ainda tinha posta sobre os ombros, e começou a lhe acariciar as costas; sentiu cálidas suas mãos sobre a úmida musselina de seu vestido. Só se deu conta do esforço que ele tinha que fazer para refrear-se quando timidamente lhe tocou a língua com a sua. Ele emitiu um rouco gemido e a estreitou com tanta força que ela sentiu toda sua potência masculina. Ficou rígida, detestando sentir-se amedrontada. Imediatamente ele pôs fim ao beijo e se afastou. Com a respiração entrecortada, acariciou-lhe os emaranhados cachos vermelhos. - Sinto muito. É perigosamente fácil esquecer minhas maneiras. Não era minha intenção alarmá-la. - Não me alarmou. Ao menos não muito. Desdêmona se sentia algo mais que perturbada. - Aonde vamos daqui, Wolverton? Sorriu-lhe, esperançado. - Um cortejo, talvez? Passar tempo juntos, aprender a nos conhecer melhor, decidir se nos damos bem. - Isso eu gostaria. Tão logo o disse sentiu um estremecimento de nervos. - Mas levará tempo. Como lhe disse, desfrutei com minha independência. - Também desfrutou com sua solidão? - perguntou-lhe ele, docemente. Ela olhou seus sapatos arruinados e moveu a cabeça. - Mas se formos cortejar, façamos com sinceridade. Se eu achar que não suportaria voltar a me casar, eu direi. E se você decidir que sou uma fera insuportável, me deve dizer isso. Nada dessa tolice de sentir-se obrigado a casar-se porque me iludiu. Dizem que por esse motivo se casou Wellington com sua mulher, e triste assunto resultou ser. - De acordo. Esse juízo é exatamente o que eu gosto em você. Como seguinte passo 141
nesta relação, talvez deveríamos ficar mais íntimos. Chame-me de Giles. Franziu os lábios em um careta. Diane sempre me chamava por meu título, o que era apropriado posto que se casou com o lorde. - Tola mulher. Muito bem, Giles. Olhou-o pensativa. - Acredita que poderá me chamar de Desdêmona com a cara séria? - Provavelmente não. O humor brilhou claramente em seus olhos. - Quando chegou feita uma fúria ao Wolverhampton, me ocorreu que Otelo poderia ter tido um ponto de razão quando estrangulou a sua Desdêmona. A ideia me voltou para a cabeça uma ou duas vezes após. - Esse é um comentário ridículo e indigno. Tentou parecer severa, mas se surpreendeu sucumbindo a uma indigna hilaridade. Que garota mais estúpida devia ser Diane ao achar aborrecido o Giles. - Certo, concedeu ele alegremente. - A isso se devem esses sorrisos? - Sou uma viúva de idade amadurecida e finalidades sérias, declarou ela. - E não dou sorrisos. Depois escondeu a cara em seu ombro em uma vã tentativa de sufocar os sons de sua mentira.
CAPÍTULO 22
Robin não tinha mentido respeito ao número de histórias divertidas que sabia. Quando decidiram que era hora de deitar-se, ela rira tanto que já quase não recordava a ansiedade negra que havia sentido quando tentou olhar o futuro. Agarrados pelos braços subiram à escada, Robin levando uma vela e Maxie agarrando-a saia da bata para não cair e romper o pescoço. Ele a acompanhou até seu quarto e acendeu a vela de sua mesinha de noite; depois se voltou para ir-se ao quarto contíguo. A luz da vela lhe formava nítidas sombras na cara, iluminando os perfilados traços. Com sua suave bata de veludo azul, parecia um senhor medieval saído do passado. Era o homem mais desejável que já viu em sua vida, e desejou lhe desatar o cinturão da bata para despir seu formoso corpo e fazê-lo cair sobre a cama. Sem pensar conscientemente, colocou a mão aberta sobre o triângulo de pele que deixavam ao descoberto as dobras soltas de sua bata. A ele se acelerou o coração sob sua palma quando entre eles vibrou uma crua tensão sexual. - A quem toca ser sensato? - perguntou ela com a boca ressecada. - A mim, creio. Acariciou-lhe o cabelo, pulverizando as brilhantes jubas sobre seus pulsos. Depois lhe agarrou a mão, beijou-lhe os dedos e a soltou. - Recorda que estou no quarto ao lado. Se tiver pesadelos, me chame e imediatamente estarei aqui. - Sei. Reprimindo o impulso de arriscar-se a lhe dar um beijo de boa noite, retrocedeu e começou a fazer a trança para deitar-se. - Que tenha agradáveis sonhos. Depois de que ele fechou a porta de comunicação, Maxie tirou a bata e se meteu entre os lençóis limpos. Face à comodidade da cama não pôde conciliar o sonho. O motivo não 142
tinha nada a ver com o perturbador pressentimento de um futuro escuro. Era simplesmente que a cama de quatro postes era muito larga, muito sozinha, muito vazia. Ficou de barriga para baixo e golpeou o travesseiro irritada, com o pretexto de fazê-lo mais macia. Embora podia ser prudente evitar uma maior intimidade com o Robin, a prudência era uma má companheira para a noite. A mesma dificuldade de estar sem lhe reforçava o conhecimento de que estava no caminho correto. Maldição, maldição, maldição. Uma hora se agitando e dando voltas na cama não lhe serviu para conciliar o sonho. Mal-humorada se sentou a refletir. Talvez se abrisse a porta de comunicação entre os dormitórios se sentiria mais perto de Robin, menos sozinha. Desceu da elevada cama e se dirigiu à porta, tiritando um pouco em sua fina anágua de musselina. Novamente estava chovendo, e o ar frio a fez recordar o mês de novembro em Nova Inglaterra. Silenciosamente abriu a porta e aguçou os ouvidos, esperando ouvir o consolador som da respiração do Robin por cima do tamborilar constante da chuva sobre os cristais da janela. Ouviu sua respiração, mas o som não era consolador. Sua respiração era sufocada e superficial, como a da primeira noite quando dormiram em colchões de samambaias em um campo do norte. Então ele o atribuiu a um pesadelo, mas não tivera nenhum outro após. A cama rangeu quando ele se deu uma volta e trocou de lugar. Depois começou a falar em um idioma que não era inglês, sua voz de tenor angustiada. Ela franziu o cenho e entrou no quarto; Robin estava falando em um dialeto alemão. Embora ela não falasse o idioma, reconheceu as palavras dá Blut e der Mord: sangue e assassinato. De repente, com uma violência que a teria despertado embora a porta tivesse estado fechada, gritou: i Nein! i Nein! e agitou os braços freneticamente diante de um perigo invisível. Alarmada, ela subiu à larga cama e lhe pôs uma mão no ombro para o despertar do pesadelo. Ao sentir seu contato ele se incorporou com a rapidez de um raio, e antes que ela pudesse dizer seu nome, segurou-a pelos ombros, jogou-a de costas sobre o colchão e se pôs em cima dela em todo o comprimento. Tinha o torso nu e molhado de suor, e a respiração lhe saía em fôlegos. Colocou o antebraço sobre sua garganta, apertando com tanta força que ela mal podia respirar. Aterrada, avaliou a exercitada força de seu corpo tenso; se lutasse, ele poderia enforcá-la ou lhe romper o pescoço. Tentando permanecer imóvel, inspirou todo o ar que pôde através da constrangida garganta. - Robin, acorda! Está sonhando, conseguiu dizer. Durante um aterrador momento, ele aumentou a pressão sobre sua garganta, lhe impedindo de falar mais. Então suas palavras penetraram através do pesadelo. - Maxie? - sussurrou. - Sim Robin, sou eu - conseguiu dizer ela. Ele se afastou bruscamente e caiu de costas ao seu lado, sua pele pálida como um 143
fantasma na escuridão. - Deus santo, perdoe – disse com voz rouca. - Está bem? Agradecida, ela fez uma profunda inspiração, enchendo de ar seus pulmões. - Não me fez nenhum dano. Sentou-se e se inclinou até a mesinha de noite para acender uma vela. Depois se voltou para ele. Horrorizada, viu que estava tremendo com tanta violência que fazia vibrar o colchão. Rodeou-o com seus braços em um instintivo gesto de consolo. Ele a abraçou com um desespero tal que esteve a ponto de lhe romper as costelas. Ela atraiu sua cabeça e a apoiou contra seus peitos, como se fosse um menino. Teria caído vítima da malária em suas viagens? - É um ataque de febre? - Não, só era um pesadelo, respondeu ele sua voz tremendo pelo esforço de parecer sereno. Acariciou-lhe a cabeça. - Não existe isso de «só um pesadelo». Os iroqueses entendem disso, e dizem que os sonhos e os pesadelos provêm da alma. O que perturbava seu descanso? Ele esteve em silêncio por tanto momento que ela começou a pensar que não lhe ia responder. - O de sempre, disse ele ao fim com uma voz tão fraca que era quase inaudível: violência, traição, matar a homens que poderiam ter sido amigos se os tempos tivessem sido distintos. O tom de tristeza era arrepiante. Maxie pensou no granjeiro que os surpreendeu em seu celeiro. Robin falara com muito conhecimento sobre a guerra na Península, sem dizer em nenhum momento que fora soldado. Mas nesse momento percebeu que tampouco o tinha negado. - Seriamente esteve no exército? - Nunca fui um soldado, disse ele com amargura. - Nada tão limpo como isso. - Se não foi soldado, o que foi então? - Espião. Apoiou a cabeça no travesseiro e secou a cara com uma mão trêmula. Durante doze anos, desde quando fiz vinte anos. Mentia, roubava, alguma vez trabalhei de assassino. Era muito, muito bom para isso. Ela sentiu a emoção da surpresa que vem quando um fato é absolutamente inesperado, mas tão claro que não se pode duvidar. - Isso explica muitíssimo. Eu pensava que era um ladrão vulgar e comum, ou um vigarista. - Teria sido muito melhor se tivesse sido um delinquente comum. Ao menos teria causado menos dano. Começaram a rodeá-lo rostos distorcidos, imagens de pessoas que conhecia, e uma imprecisa legião de desconhecidos que tinham morrido por causa de informações que ele tinha irradiado. Os estremecimentos pioraram e se perguntou desesperado se seria possível que um corpo se fizesse em pedacinhos. Era o pior ataque de pânico que tivera até o momento. Desejou que Maxie não estivesse ali vendo sua debilidade, mas não podia deixar de segurar-se a ela como a um 144
salva-vidas em uma muito exaustiva turbulência emocional. Antes que as imagens o esmagassem, ela voltou a lhe falar, tirando-o com sua voz pausada do mar de sofrimento em que se estava afogando. - Um ladrão só trabalha por dinheiro. Não posso acreditar que se fizesse espião por pura cobiça. - É certo que a espionagem não é um trabalho para alguém que deseja fazer-se rico. Adotei-o porque pensei que derrotar ao Napoleão era uma boa causa, e espiar era uma maneira de me fazer útil. Mas à medida que passava o tempo foi aumentando minha consciência do sangue que manchava minhas mãos... Ela inclinou a cabeça e seus sedosos cabelos lhe roçaram a bochecha com o aroma agridoce da lavanda. - Conte-me como começou. Suponho que não estudou espionagem em Oxford. - Estudei em Cambridge. Encontrou certa diversão ao pensar em quão bem ela o tinha avaliado. - Ao acabar meu segundo ano, houve uma trégua no Continente pela primeira vez em dez anos. Decidi passar as férias na França. Logo compreendi que a guerra se reataria, só era questão de tempo. Por acaso, inteirei-me de algo que podia interessar ao Foreign Office; enviei a informação a um primo que tinha uma colocação ali. Lucien foi a Paris imediatamente para falar comigo. Impressionou-lhe o que eu descobriu e me sugeriu que ficasse na França quando acabasse a trégua. Além de minha picardia natural, minha mãe era escocesa, o que me deu acesso à comunidade escocesa que se instalou em Paris depois do fracasso do levantamento jacobita de 1745. Dado que desprezavam ao Napoleão, eram excelentes aliados. Ele sempre tinha admirado o seu primo ligeiramente mais velho; fora muito gratificante ganhar sua aprovação. Em sua infância e adolescência, recebera muito pouca aprovação de outros familiares. Tinha-lhe resultado facílimo convencer-se de que com isso faria algo valente e valioso. - No começo era quase um jogo. Eu era muito jovem e descuidado para compreender que... que ia vender minha alma, parte a parte. Novamente começou a sentir o cansativo pânico. - Quando compreendi o que estava fazendo, já não ficava nada de alma. - Essa é uma metáfora interessante - disse ela docemente, mas falsa. - Ou não pode esquecer a forma de encontrar sua alma, mas não a pode perder, vender nem dar de presente. - Está segura disso? - perguntou ele sorrindo sem humor. - Absolutamente. Agarrou-lhe a mão entre as duas delas, e o pânico minguou um pouco. - Se não tivesse alma, não poderia sofrer o tipo de culpa que sente agora. Segundo minha experiência, os vilãos consagrados dormem calmamente de noite. - Por esse critério, eu seria um santo - disse ele cansativamente. - Uma vez me disse que sua amiga Maggie era sua companheira de maldades. Então eu não entendi bem o que quereria dizer. Era espiã também? - Sim. O seu pai matou uns revolucionários franceses. Eu a ajudei a escapar. Ela não tinha nenhum motivo para voltar para a Inglaterra, de modo que nos convertemos em companheiros. Eu passava a maior parte de meu tempo viajando pelo Continente, mas minha casa estava sempre em qualquer lugar que estivesse Maggie. Com maior frequência, 145
em Paris. - Camaradas e amantes, sussurrou Maxie. - Ela era o centro. Quando te deixou, desmoronou-se. Ele assentiu. - Quando estávamos juntos eu era capaz de manter controlados os piores demônios. Só depois comecei a me afundar. Como sabe? - Intuição feminina, disse ela com certa mordacidade. - Suponho que seus trabalhos de criado tinham por finalidade obter informação. - Exatamente. A gente tende a não fixar-se nos criados. Um lacaio ou um moço de quadra pode inteirar-se de tudo o que acontece em uma casa. Ela puxou a manta e a pôs sobre os dois. Seu peso era agradável; Robin não se deu conta do frio que sentia. Mas o calor essencial provinha de Maxie. Ela era toda doçura e prudência, seus peitos suaves e brandos sob a anágua, suas mãos tranquilizadoras. - Acaba de me ocorrer que muitas de suas histórias inverossímeis poderiam ser verdadeiras, disse ela. É certo que compartilhou uma cela com um marinheiro chinês em Constantinopla? Ele esboçou um sorriso. - Pura e santa verdade. Li Kwan me ensinou algumas técnicas fabulosas que me salvaram a vida várias vezes. Combinando nossos talentos conseguimos escapar desse inferno. - E o da retirada de Napoleão de Moscou? Robin emitiu um som afogado e começou a tremer novamente, como se ainda sentisse em seus ossos o frio siberiano. Ela o abraçou mais forte. - É evidente que essas lembranças são terrivelmente dolorosas. Mas seu trabalho ajudou ao seu País, talvez contribuiu a salvar vistas e acabar a guerra antes. - É possível, mas com muita frequência, o que fazia era francamente corriqueiro. Sua boca se torceu em uma careta. - Um dos triunfos de minha duvidosa profissão foi a não muito difícil dedução de que Bonaparte planejava invadir a Rússia, pela quantidade de livros sobre a geografia da Rússia que tinha em sua biblioteca. Ela emitiu um assobio silencioso. - Pode que a dedução tenha sido singela, mas como diabos conseguiu se introduzir na biblioteca particular do imperador? - Não te convém sabê-lo. Alisou-lhe o cabelo molhado da frente, tornando-lhe para trás. Umas ruguinhas escuras escureciam as comissuras de seus olhos. Pela primeira vez, representava cada minuto de sua idade, e algo mais. - Eram tempos de guerra, disse ela, compreensiva. - Embora matar a alguém tem que ter sido terrível, não era tão diferente de lhe disparar a um soldado no campo de batalha. - Essa vez não foi assassinato, e sim sedução, disse ele com um tom de ódio a si mesmo. - Uma garçonete, feia e bastante tímida, mas doce. Jeanne se sentia agradecidíssima pela atenção. Eu me fiz passar por um soldado francês leal que estava se recuperando de feridas, e que desejava ver o lugar onde trabalhava seu bem amado 146
imperador. Não foi difícil convencê-la de que me levasse a biblioteca. Apertou-lhe o braço com tanta força que ela pensou que lhe deixaria hematomas. Detestava usar assim às mulheres, tomar o que deveria ser o melhor e mais verdadeiro entre um homem e uma mulher e pervertê-lo. Mas o fiz. Deus me proteja, eu fiz. - Há homens que desonram a mulheres por esporte. Pelo menos você tinha um motivo, disse ela docemente. - Jeanne se inteirou de que a tinha utilizado ? - Não, disse-lhe que tinham enviado a Áustria o meu regimento, e me despedi dela com muito carinho. Ela... ela chorou e rezou por minha segurança. Ainda lhe vejo a cara... lhe quebrou a voz. Maxie sentiu pena pela doce Jeanne, e pelo Robin, que tinha traído seu código de honra. Mas certamente havia um lado positivo na história. - Pode ser que Jeanne tenha chorado sua perda, mas te asseguro que a experiência de sentir-se desejada por um homem como você fez maravilhas em sua confiança em si mesma. Ao ver que ele abria a boca para replicar, pôs-lhe um dedo nos lábios. - Não me diga que foi uma, traição por sua parte, concedo-te o ponto. Mas você lhe deu certa felicidade, e lhe permitiu conservar seu orgulho e dignidade, e não tinha que fazê-lo. - O fato de que nunca tenha sido desnecessariamente cruel não faz corretos meus atos, disse ele, sinceramente. Ela franziu o cenho e tentou ficar em seu lugar. - Ser amoral seria uma enorme vantagem para um espião. Para uma pessoa como você, naturalmente decente, certamente isso foi horrível. Como se arrumou para viver assim tantos anos? Ele fez uma inspiração lhe resfoleguem. - Mantendo atrás de um muro meus piores atos, como se fosse outra pessoa quem os fazia. Isso me deu bom resultado durante muito tempo. Mas quando acabou a guerra e já não havia mais crise, o muro começou a desmoronar-se. - Vem daí os pesadelos. - Exatamente. Acariciou-lhe brandamente as costas, recordando a vez em que tentou lhe ensinar a escutar a brisa. Novamente percebeu o matagal de fios de seu caráter, e desta vez compreendeu por que tantos fios eram feitos de dor negra, em carne viva. Viu que seu espírito era tremendamente frágil. Embora não tivesse perdido sua alma, estava-se aproximando de um desmoronamento emocional. Era estranho como atrás de sua risada esteve sempre essa escuridão. A compenetração com ele a tinha esgotado. Seria muito mais fácil deixar as coisas aí. Pela manhã, Robin já teria reconstruído os muros que o protegiam da loucura, e estaria tão alegre como sempre. Mas o perigo era que a fragmentação que lhe tinha permitido sobreviver estava a ponto de destruí-lo. Sua mãe lhe ensinara que os sonhos devem renovar-se, e que é necessário liberar os pesadelos. Para que Robin sanasse era necessário fazer penetrar luz curadora no negrume que tinha atado no centro de seu espírito. Estremeceu, sentindo-se impotente. Robin necessitava de uma pessoa mais forte e mais sábia, mas no momento só tinha a ela. 147
Afundar em sua dor faria mal aos dois. Mas em bem de sua prudência, ela devia tentar, embora depois ele a desprezasse. Deixou flutuar livremente seu espírito, com o vento e a chuva, que estavam limpando o ceu noturno. Depois de recuperar certa força, começou a falar.
CAPÍTULO 23
- Conte o resto do que te atormenta Robin, disse-lhe Maxie docemente. - Já te disse muito, respondeu ele com um suspiro áspero. - Acredita-me muito frágil para ouvir a verdade? Não sou uma resguardada inocente inglesa recém saída do colégio. Vi o suficiente da vida para compreender as decisões difíceis. - Mas também é sincera como a luz do sol. Como não vai desprezar o que sou? disse ele com desespero. «Porque te amo.» As palavras saíram do mais profundo de seu ser, com tanta potência que lhe custou não as dizer. Mas não as disse, porque o último que ele necessitava eram declarações de amor indesejadas. - Tenho carinho pelos patifes, sobretudo aos honrados. No tempo que estivemos juntos, fez considerável bem e nenhum dano. Salvou ao Dafydd Jones de morrer pisoteado por um novilho; impediu-me de matar ao Simmons, o que te agradeci tão logo me esfriou a fúria. Beijou-lhe a têmpora, e sentiu a aceleração de seu pulso. - Diga-me o que fez, Robin. As cargas se aliviam quando se compartilham. - São muitas coisas, sussurrou ele. - Intermináveis mentiras. Informantes com os quais trabalhava eram apanhados e morriam das formas mais horríveis. O comandante francês a quem assassinei simplesmente porque era um excelente soldado, capaz de ter sitiada indefinidamente uma cidade espanhola murada. - Seus informantes sabiam dos riscos que corriam tão bem como você. Quanto ao assassinato, interrompeu-se um momento para escolher as palavras, - nenhuma pessoa decente gozaria ao fazer isso, mas um lugar é algo terrível que costuma acabar numa matança espantosa. Seu ato impediu uma? - Tendo morrido seu comandante, os soldados fugiram da cidade sem combater. Salvaram-se vidas, o que foi bom, mas nada pode fazer correto o assassinato de um homem que estava cumprindo seu dever. Esteve com ele um par de vezes. Caía-me bem. Robin abriu e fechou a mão sobre a colcha, arranhando o tecido com as unhas. - Caía-me bem, e lhe dei um disparo pelas costas. - Ai, Robin, Robin, exclamou ela com o coração dolorido. - Compreendo por que disse que lutar como soldado teria sido mais limpo. Para os soldados as coisas estão melhor definidas, a responsabilidade está nas mãos de seus superiores. Seu trabalho era muito mais difícil. Muitas vezes tinha que escolher entre males diferentes, apanhado em um mundo de cinzas sem os fáceis brancos e negros, jamais seguro de que tomou a decisão correta. Doze anos disso seria muito para qualquer um. 148
- Certamente foram muitos para mim. Soou um trovão na distância e a fria chuva começou a golpear mais forte os cristais da janela. Maxie se sentiu como se estivesse caminhando por um pântano com os olhos enfaixados, onde um mau passo podia conduzi-la ao desastre. - É esse assassinato o pior, o pior do que se sente responsável? Robin começou a tremer outra vez, mas não respondeu. - Diga-me isso Robin, insistiu ela. - É possível que o sofrimento se apodreça menos dentro se o compartilhar. Ele moveu o braço tentando de liberar-se. - Não! Ela o segurou firmemente, sem lhe permitir escapar. - Diga-me isso, repetiu. - Foi na Prússia, -começou ele, com voz afogada. - Consegui uma cópia de um tratado que tinha graves consequências para a Grã-Bretanha. Ela repassou seus conhecimentos sobre as guerras. - O tratado do Tilsit, pelo que a França e Rússia faziam uma aliança secreta para humilhar a Grã-Bretanha? Ele afastou a cabeça para olhá-la. - Para ser norte-americana, está bem informada dos assuntos europeus. - O tema interessava ao meu pai, por isso seguíamos as notícias juntos, explicou ela. Seriamente conseguiu saber o que diziam os segredos desse tratado? - Poucas horas de que o assinassem. Sorriu com amargura. - Te disse que era bom em meu ofício. Mas obter a informação era a parte fácil, comparada com a tarefa de fazê-la chegar à Inglaterra. Muito em breve os franceses descobriram o ocorrido, e saíram em minha perseguição. Tinha que chegar a Copenhague, de modo que cavalguei para o ocidente, empregando todos os truques que conhecia para evitá-los. Depois de vários dias fugindo, por fim estive seguro de que conseguiu escapar. Precisava fazer uma parada para descansar. Meu cavalo estava meio morto e eu não estava melhor. Conhecia uma família nessa região, uns granjeiros muito prósperos. Odiavam aos franceses, e me tinham ajudado antes. Receberam-me como a um filho a quem não viam há muito tempo, continuou com a voz embargada pela emoção. Disse-lhes que me tinham seguido mas que conseguiu escapar e que não havia nenhum perigo. Emitiu um gemido do fundo da garganta. Estava catastroficamente equivocado. - Encontraram-te os franceses? Ele assentiu. - Dormi mais de doze horas. Herr Werner despertou na manhã seguinte, quando se inteirou de que os franceses estavam revistando as casas da vizinhança. Disse-lhe que partiria imediatamente, e fui ao celeiro, mas não encontrei meu cavalo. Então percebi que não viu o Willi, o filho mais novo. Tinha dezesseis anos, era mais ou menos de minha estatura e loiro. Considerava-me um herói e me tinha uma espécie de adoração. Quando vi que não estavam meu cavalo nem a sela, tive a horrorosa premonição de que estava em perigo. Pus-se a correr pelo bosque para o caminho principal, com o fim de impedir o que ia acontecer. Fechou os olhos com a cara contraída. - Era muito tarde. 149
Maxie sentiu ressonar nela esse sofrimento, mas não podia deter-se ali, devia obrigálo a terminar o relato. - O que ocorreu? - Willi decidiu afastá-los da granja. De onde eu estava, que era um terreno mais alto, vi como deliberadamente se deixava ver por um esquadrão de cavalaria francesa. Montava meu cavalo, usava uma jaqueta da mesma cor que a minha e ia sem chapéu, mostrando esse maldito e identificável cabelo loiro. Tão logo o viram, os franceses se lançaram em sua perseguição. Ele tentou deixá-los atrás; meu cavalo era excelente corredor e poderia ter escapado, mas de repente se encontrou diante de outro esquadrão que vinha a galope pelo outro lado do caminho. Ao dar-se conta de que estava apanhado, internou-se no bosque, mas não tinha vantagem suficiente. Os dois esquadrões lhe alcançaram rapidamente. Não lhe deram a oportunidade de entregar-se; simplesmente lhe dispararam; feriram-no pelo menos dez balas de mosquete. Robin estremeceu, todo seu corpo coberto por suor. - Willi era um menino inteligente, e conseguiu burlá-los. Pelo bosque passava um rio muito caudaloso, ao fundo de uma garganta profunda, e sobreviveu o suficiente para chegar ali. O cavalo soltou um chiado quando o lançou abismo abaixo. Robin ocultou a cara no peito de Maxie, tremendo, com o sofrimento de um homem que chegou ao limite de sua resistência. Não lhe fez mais perguntas; limitou-se a acariciálo, lhe sussurrando palavras consoladoras no idioma de sua mãe, lhe dizendo que tudo ia bem, que era um guerreiro valente e digno, e que o amava tivesse feito o que tivesse feito; enfim, todas as coisas que não podia lhe dizer em inglês. Compreendeu que para o Robin a morte desse menino chegou a simbolizar tudo o que é inocente, valente e condenado ao fracasso. Fazia nove anos da assinatura do tratado do Tilsit, e naquele tempo Robin não teria sido muito mais velho que o próprio menino. A maravilha não era que estivesse perto do desmoronamento mas sim tivesse sobrevivido e funcionado durante tanto tempo carregado com essas terríveis responsabilidades e sentimentos de culpa. Durante um bom momento o silêncio só foi interrompido pela chuva, trovões na distância e os sons de aflição. Pouco a pouco se acalmaram os sons de angústia, embora ele continuou agarrado a ela como se fosse sua única esperança de salvação. - Os franceses teriam gostado de recuperar os documentos, continuou com voz desolada, - mas o rio estava crescido. Pensaram que a água destruiria o que não tinham destruído as balas, e partiram. Eu fiquei para ajudar aos Werner na busca, até que encontramos o cadáver do Willi. Seus pais nunca me fizeram nenhuma recriminação. De certo modo, isso foi o mais terrível de tudo. Inclusive me pediram desculpas porque Willi tinha acabado com meu cavalo e insistiram que tomasse seu melhor exemplar em substituição. - Dá a impressão de que Willi buscou o desastre, disse Maxie docemente. - Se não tivesse intervindo com sua temerária valentia, você poderia ter escapado limpamente e ninguém teria sofrido. - Talvez sim, talvez não, respondeu ele com a respiração entrecortada, - mas fica o fato de que se não houvesse passado pela granja dos Werner, Willi não teria morrido. - Só Deus sabe isso, Robin. Talvez chegou sua hora e se não tivesse ido você ele teria 150
caído pela escada e quebrado o pescoço nesse mesmo momento. Ou talvez no ano seguinte se teria alistado no exército e morrido em uma batalha contra os franceses. É lógico que sinta aflição e pesar, mas se crucificar não serve a nenhum bom fim. Acariciou-lhe a testa, desejando poder fazer algo para lhe aliviar o sofrimento. - Sempre tentava fazer o correto, disse ele com tristeza, - mas com muita frequência não sabia o que era o correto. Ela suspirou. - Creio que a maioria tenta fazer o melhor possível. Em realidade não podemos fazer nada mais. - Meu melhor possível não era suficientemente bom. Essa dor atada demonstrava que ela tampouco fez o suficiente. Evocou seu passado, e disse: - Depois da morte de minha mãe, assisti a uma cerimônia de condolência celebrada por membros de seu clã. Isso me serviu muitíssimo. Fez uma oração pedindo recordar ou improvisar bem o rito para aliviar ao Robin e lhe tampou brandamente as orelhas com as mãos. - Quando um homem está sofrendo não ouve, recitou. Que estas palavras eliminem a obstrução para que volte a ouvir. Tirou as mãos de suas orelhas e as colocou sobre seus olhos: - Durante sua aflição perdeu ao sol e caiu na escuridão. Agora te devolvo a luz do sol. Tirou as mãos dos olhos e viu que ele a estava olhando muito sério. Cruzou as mãos no centro de seu peito e entoou: - Deixastes que sua mente morresse em seu enorme sofrimento. Deve liberá-la, porque senão, você também se murchará e morrerá. Antes de tirar as mãos sentiu os movimentos de elevação e descida de seu peito ao respirar. - Em sua aflição sua cama ficou incômoda e não pode dormir de noite. Deixe que saia o desconforto do seu lugar de repouso. Passou-lhe as mãos pelos ombros, as baixando pelos braços e lhe disse brandamente: - Will repousa em paz, Robin. Não pode fazer o mesmo você? Ele fechou os olhos e a atraiu para si até tê-la em cima. Ela sentiu seus fortes batimentos do coração, como se o coração quisesse sair pelas costelas, mas pouco a pouco o ritmo se foi normalizando; abraçou-o fortemente, pensando que parte de sua escuridão interior fora dissolvida pela luz; embora não fosse uma cura completa, era um começo. Deslizou-lhe a mão por entre os cabelos até pousá-la em sua nuca. - Como adquiriu tanta sabedoria, Kanawiosta? - Do modo habitual, disse ela, em tom irônico. - Cometendo enganos. Apoiou a cabeça em seu ombro, tão esgotada pelas tormentas emocionais que quase não podia continuar acordada. - Seja qual seja for o motivo, tem sabedoria. Desceu-lhe a mão pelas costas até detê-la no quadril. - Muita para considerar a possibilidade de se casar comigo. Esse comentário atuou sobre seu esgotamento como uma orvalhada de água gelada, e a avivou totalmente. Durante um instante repetiu as palavras em seu interior para 151
assegurar-se de que ouvira bem. Depois se sentou e o olhou fixamente. Robin tinha a cabeça apoiada no travesseiro e a contemplava com a paciente quietude do esgotamento. A piscante luz da vela brincava pelos traços de sua cara e seu peito, mas era muito tênue para lhe ver a cor ou a expressão de seus olhos em sombra. Rasgada entre a surpresa, a diversão e um desesperado desejo, lhe perguntou: - É essa uma oferta ou simplesmente um produto de seu extravagante senso de humor? Ele suspirou e desviou o olhar para o ceu raso. - Não falei como brincadeira. Suponho que não consigo me decidir a te fazer uma oferta franca. Se nos casássemos, todas as vantagens seriam indubitavelmente para mim. Você seria uma tola se aceitasse, e é muito inteligente para não saber disso. Ela não soube se ria, chorava ou chiava. As abrasadoras emoções da noite a tinham obrigado a admitir que o amava, embora não estava segura de compreendê-lo, e nem sequer se confiava totalmente nele. O que não era o mesmo que dizer que desconfiasse dele; não duvidava de que ele seria fiel a qualquer promessa que fizesse. E nesse momento o compreendia muitíssimo melhor que uma hora antes. De toda forma... - A ideia de me casar com você não carece de atrativos, mas não consigo imaginar que tipo de vida levaríamos. Nossas culturas e passados são muito diferentes e embora haja levado uma vida errante, não é isso o que desejo para o futuro. - Tampouco eu. Asseguro-te que sou capaz de manter um teto sobre sua cabeça. Esboçou um sorriso satírico. - Não sou tão pobre como pareço. - Lourinho, me olhe. Quando ele a olhou, perguntou-lhe: - por que quer se casar comigo? Não disse nada de amor. Ele fechou os olhos, com o rosto contraído de pena. - Posso te prometer muitas coisas, Kanawiosta. Segurança, fidelidade e fazer todo o possível para te fazer feliz. Mas amor? Creio que não sou bom para o amor. É seria mas sábio não prometer. Nem sequer a dor que experimentou quando morreu seu pai foi tão grande como a que sentiu nesse momento. A dolorosa e desesperada sinceridade do Robin lhe produziu desejos de chorar; mas não chorou. Agarrou-lhe a mão esquerda deformada, a beijou e depois a apertou contra sua bochecha. - Deseja-me porque estou aqui e Maggie não? Ele abriu os olhos e lhe apertou a mão. - Não. O que sinto por ti não tem nada que ver com a Maggie. Eu a quis e a quero muitíssimo. Sempre a amarei, mas não te desejo como substituta dela. Passou uma fugaz expressão risonha por seu formoso rosto de anjo patife. - É muito você mesma para te confundir com outra pessoa. Ela se sentiu desorientada, sem saber como reagir. - O carinho e a lealdade são valiosos, inclusive essenciais. Mas são suficientes? - Não esqueça da paixão. Puxou-a pela mão para recostá-la junto a ele. - Eu não a esqueci nem um só minuto desde que te conheci. 152
Girou-se e a abraçou. Seus lábios se encontraram e ela pensou que ia se desfazer em fogo líquido. Antes houve beijos e carícias, mas sempre escurecidos pela dúvida. Desta vez era absolutamente diferente. Toda a formidável perícia de Robin estava concentrada nela, só nela. Correspondeu o beijo com todo seu triste desejo. O drama da noite tinha varrido as defesas normais, e suas emoções e corpos se entrelaçaram com a mesma intimidade. Por um momento doce e louco, não houve perguntas, a não ser só sabor, carícia e descobrimento. Por muito atormentado que fosse o passado do Robin, desesperado seu presente e incerto seu futuro, ela o amava. Ele desceu por seu pescoço lhe deixando uma esteira de beijos, e lhe desceu os suspensórios da anágua para lhe deixar os peitos ao descoberto. - Formosos; perfeitos e formosos, sussurrou cavando as mãos sobre eles e esfregando a cara na greta escura que criou. Ela se fixou no contraste entre sua pele morena e a pele branca dele. Então lhe lambeu um mamilo e ela esqueceu o contraste, esqueceu suas dúvidas, esqueceu todo fora da chama pura do desejo. Acariciou-lhe as costas, deslizando as mãos para baixo, seguindo as marcas das antigas cicatrizes, os vergões produzidos por açoites. Algum dia teria que lhe perguntar sobre isso, a ferida de bala e sua mão deformada, sobre todos os incidentes perigosos que poderiam ter acabado com sua vida antes que tivessem a oportunidade de conhecerem-se. Mas não essa noite; ah, não, Deus, essa noite não. Ele se afastou bruscamente e afundou a cara no travesseiro com os ombros estremecidos. - A paixão é muito fácil, disse com voz rouca. - Creio que nenhum dos dois está em condições de tomar uma decisão. Ela ficou ofegante. Apertou fortemente as mãos na colcha, olhando o ceu raso e tentando recuperar a serenidade. Porque demônios não podia ter se encalacrado com um homem egoísta só interessado em seu prazer? Porque não poderia ter amado um homem assim. Escolheu cuidadosamente as palavras e o tom de voz. - Suponho que isto significa que está experimentando outra de suas crises de consciência. Ele levantou a cara do travesseiro e a olhou com um sorriso de brincadeira para si mesmo. - Exatamente. Brandamente lhe subiu os suspensórios, lhe cobrindo os peitos com a anágua. Sua mão ficou um momento sobre seu peito; depois retirou o braço com a mão em um punho. - É extraordinária. Depois da noite que te fiz passar, deveria estar chiando histérica. - Asseguro-te que a tentação é forte. Com as pernas tremendo pela reação, girou-se e apoiou a cabeça em uma mão para poder lhe ver a cara. - Falou a sério sobre o matrimônio? - Certamente, disse ele com seus olhos ardentes de paixão. Ela fechou os olhos para ordenar seus pensamentos antes de falar. Desejou lhe dizer 153
que o amava, mas não se atreveu, depois de ouvir suas dolorosas dúvidas sobre sua capacidade para amar. Tampouco queria lhe dar outra causa para sentir-se culpado se a luz da manhã o fazia trocar de opinião em relação à proposição. Era o matrimônio com o Robin o motivo de que não tivesse conseguido ver o curso de seu futuro? Pensou em Londres e imediatamente teve que desprezar o pensamento, novamente estremecida por essa horrível angustia negra. Mas o fugaz contato lhe reforçou a crença de que sua dolorosa intuição não tinha nada a ver com o Robin; parecia mais um muro de fogo que devia atravessar para ter um futuro. - Tem razão, disse tentando reprimir um estremecimento involuntário, - este não é momento para tomar decisões. Eu devo me inteirar do que ocorreu ao meu pai, e você tem que solucionar muitas coisas. Ele se aproximou e lhe beijou brandamente a testa. - Solucioná-las-ei com a maior rapidez possível. Enquanto isso, pelo menos não me disse que não. Enrolou uma mecha de cabelos negros no dedo. - É possível que meu comportamento se pareça muito ao de um lunático, mas creio que nunca em minha vida me hei sentido tão feliz como estes dias que estive com você. Estive desejando que esta viagem não acabe jamais. Mas posto que não haverá respostas definitivas enquanto não acabe, agora desejo chegar a Londres o quanto antes possível. O que passa é que. .. Ela guardou silêncio, esperando pacientemente que ele continuasse. - Não sei se é bom que me case com uma mulher porque a necessito tanto. Creio que isso poderia não ser bom para nenhum dos dois. Observou-lhe a expressão. Desapareceu essa objetividade que sempre usava posta como uma capa, e saboreou a sensação de intimidade. Mas lhe resultava difícil pensar com clareza enquanto o sangue lhe golpeava com força nas veias. Em um plano mais profundo, seguia sentindo as energias majestosas e vibrantes da paixão e da criação, a crença de que juntos encontrariam uma medida de integridade. Com repentina consternação percebeu que se esteve comportando como suas moderadas primas Collins. Desde o momento em que se encontrou com o Robin esteve defendendo sua virtude, preocupando-se com o futuro em lugar de viver o presente, protegendo seu coração de possíveis sofrimentos. Mas agir como uma respeitável senhorita inglesa não a salvaria do sofrimento; só lhe negaria o cumprimento do desejo mais profundo de seu coração. Era o momento de prescindir da razão européia em favor da sabedoria iroquesa. Desejou dar e receber, ser o tipo de mulher sã, completa, sábia e apaixonada que fora sua mãe, embora só fosse por uma hora. Desejou viver esse momento tão livre como o vento e a chuva. E na medula de seus ossos sabia o que fazer isso era o correto. Dirigiu ao Robin um sorriso transbordante de amor. - Seu problema, lorde Robert, é que pensa muito. Dito isso, se aproximou e o beijou.
154
CAPÍTULO 24
Ele não pôde resistir, mas durante um louco instante ele tentou, pensando em todas as pessoas às que fez mal. - Está segura de que isto é o que deseja? Ela sorriu e ficou em cima dele, afirmando-se com uma mão. - Totalmente segura. Ondas de cabelos negros como o ébano emolduravam esses traços exóticos que o hipnotizavam desde o momento em que a conheceu. Ela era Kanawiosta, filha de outro país e de outra raça. Com seus cabelos esparramados sobre seus peitos cobertos pela anágua, parecia uma deusa pagã da terra, muito misteriosa para que um homem mortal a conhecesse ou possuísse, com um poder feminino capaz de convertê-lo em brasas ardentes. Mas quando ela se inclinou para beijá-lo outra vez, seus lábios eram acolhedores e reais, e suas mãos pequenas e capazes, generosas em suas carícias. Rendendo-se, ele abriu a boca a seu embriagador beijo. Desejou inalá-la, tê-la dentro para que lhe enchesse os buracos de seu espírito destroçado. Desejou enterrar-se nela e dentro dela refugiar-se da furiosa tormenta que sempre fazia estragos em sua cabeça. O beijo se intensificou, deslizou as mãos pelos seus ombros e peito, fazendo arder a pele com sua quente carícia e chegando até muito dentro dele, lhe derretendo antigas penas: de repente ela interrompeu o abraço e se afastou, apoiando-se em um braço, seus olhos negros de desejo e seu peito agitado sob o tecido translúcido da anágua. - Alegra-me que mudou de opinião. - Você mudou isso. Rodeou-lhe os peitos com as mãos, lhe acariciando os mamilos com os polegares. Os mamilos se endureceram, marcando-se no fino tecido. Ela fechou os olhos e sorriu, emitindo um som parecido ao de uma gata agradada. Ele lhe desceu a anágua até a cintura, para poder admirar a doce curva de seus peitos. Eram perfeitos, nem muito grandes nem muito pequenos, deliciosamente coroados por círculos da textura de veludo surrado. - É feita para viver no Jardim do Éden, disse-lhe com voz rouca, - onde não se conhecia a roupa. - O Éden estava em um clima mais temperado que a Inglaterra, disse ela com sua praticidade. Seu sorriso se voltou malandro e olhou a cueca; embora esta era de linho fino e folgado, sua reação a ela era deslumbradoramente evidente. - Se vamos simular que este é o Éden, estes devem sair. Soltou-lhe as amarras e começou a baixar-lhe. Ele teria demorado só um momento em tirá-la se ela não tivesse ajudado, mas suas mãos acariciantes fizeram o processo muito mais longo e quase o reduziram à incoerência total. Quando os dois estavam tão nus como Adão e Eva, ele a atraiu até a ter deitada em 155
cima dele, seus peitos esmagados contra seu peito, a pressão de seus mamilos agradável e enlouquecedora. Não se cansava de explorar as profundidades ardentes de sua boca. Deslizou-lhe as mãos pelas costas até as pousar sobre as deliciosas curvas de suas nádegas. Perdido no desejo, apalpou e amassou os firmes músculos escondidos sob sua pele acetinada. Ela reteve o fôlego e esfregou contra ele a parte inferior de seu corpo. Separou um pouco as pernas e o membro excitado se deslizou por entre suas coxas, esfregando-se contra ela com uma intimidade só inferior ao coito. Ela emitiu uns suaves gemidos e lhe mordiscou o esterno quando ele levantou os quadris uma vez e logo outra. Robin desejava que tudo fosse lento e perfeito, como ela merecia, mas lhe destroçava o domínio de si mesmo. Debatendo-se contra o fogo branco que ameaçava consumi-lo, agarrou-a em seus braços e rodou até inverter as posições, ficando ele em cima. - Não tão rápido, Kanawiosta. Agarrou-lhe os pulsos e os imobilizou, um a cada lado da cabeça. - Em interesse da justiça, mereço a oportunidade de te enlouquecer. - Sou muito partidária da justiça, disse ela com um sedutor sorriso. Tomando-se seu tempo, lhe roçou os peitos com o queixo, lhe raspando delicadamente a sedosa pele aromada com lavanda até que ela teve o corpo vibrante de desejo. Desceu outro pouco a cabeça e com a boca agarrou um mamilo, chupando-lhe e puxando-o até que estava tão rígido que lhe formou uma fenda na língua. Depois dedicou sua atenção ao outro peito. Quando ela ofegava febril, retorcendo-se contra ele, deslizou a boca para baixo, em uma esteira de beijos, passando pelo arco das costelas e a depressão de sua estreita cintura. Deteve-se fazendo girar a língua ao redor do umbigo, e lhe mordiscou o leve arco do abdômen. Ela se debateu para liberar as mãos imobilizadas. - Já cumpriu seu desejo, ofegou. Em outros cinco segundos estarei desvairando. - Excelente. Moveu-se para cima e novamente se apoderou de sua boca em um beijo lento e sensual. Abandonando toda simulação de estar controlado, soltou-lhe os pulsos e a rodeou com um braço. Com a outra mão a acariciou para baixo seguindo a rota de seus beijos até enredar os dedos nos cachos do pêlo negro. Ela se estremeceu ao sentir o primeiro contato de seu dedo com a protuberância esquisitamente sensível que procurava. A suave fricção a fez agitar-se frenética. Ele interrompeu o beijo para que ela pudesse inspirar baforadas de ar. Depois fechou os olhos, bloqueando sua sedutora imagem para poder concentrar-se nas sutis mensagens de seu corpo. Aqui mais pressão, ali fricção, para lá, para cá, enquanto ela respirava ofegante e movia os quadris. Enquanto o embriagador aroma da paixão lhe enchia os narizes, a dócil nudez dela se converteu em todo seu mundo. Fazia muito, muitíssimo tempo desde que não tinha assim a uma mulher, e jamais havia sentido uma ânsia tão profunda. Maxie sentiu aumentar e aumentar o frenesi, que lhe enchia a mente de fogo carmesim; quando já não pôde suportá-lo mais, gritou lhe apertando a mão com as coxas enquanto a envolvia um torvelinho de sensações. A força de seu abraço a sustentava 156
segura enquanto seu espírito subia para o ceu em espiral, voando livre como um falcão. Quando voltou para a terra, afrouxou-se contra ele, enjoada e trêmula. Ele se recostou ao seu lado, apertando-a contra ele com um braço enquanto com a outra mão a acariciava do ombro ao quadril em fricções longas e suaves. Ela afastou a cabeça e a satisfação que viu em seus olhos lhe aplacou a sensação de egoísmo. Mas sob a superfície aparentemente tranquila, ele tinha o corpo tenso e insatisfeito. Apoiou a cabeça no travesseiro, agarrou-lhe a mão e atirou dela para que se colocasse em cima. - Toca a ti, Robin. Bastou um só movimento lento e lascivo de seus quadris para lhe destroçar a aparente calma. Com a cara tensa de urgência, lhe afastou as pernas com o joelho e com o dedo explorou seu lugar íntimo, separando as delicadas dobras. Não fazia falta mais, porque seu corpo ainda estava umidamente acolhedor. Afirmou-se em cima dela e colocou a aveludada cabeça de seu membro; depois empurrou, embainhando-se na carne bem disposta com uma rápida investida. A dor foi breve, mas intensa, uma quebra de onda que lhe percorreu todo o corpo em um instante. E passou a dor, lhe deixando uma sensação não desagradável de estiramento interior e a profunda satisfação de saber que estavam unidos no baile da vida. O efeito no Robin foi muito pior. Ficou rígido e a olhou com expressão pasma. - Meu Deus, Maxie! Por que não me disse isso? Ela sorriu e o rodeou com os braços, lhe pressionando as duras nádegas para o ter apertado contra ela. - Porque sabia que te daria um desses enlouquecedores ataques de cavalheirismo. Não pode evitá-lo, é inglês. Levantou os quadris, enterrando-o mais fundo. - Outra vez está pensando muito, Robin. Incapaz de resistir, ele se afundou nela uma e outra vez, com a respiração entrecortada e irregular. Embora ela nunca experimentasse essas sensações, em sua medula soube como responder, como seguir seu ritmo e fazer eco de sua paixão. Acolheu feliz a flagrante masculinidade de seu ataque, regozijando-se ao mesmo tempo em seu poder feminino capaz de inflamar e absorver esse desejo. O corpo do Robin se arqueou e ficou rígido. - OH, Deus... - gemeu, sua voz uma oração lenta e estremecida. Embora ela não chegasse ao mesmo e feroz pináculo de antes, sim experimentou uma sensação semelhante de liberação e satisfação. Quando o sentiu abrandar-se, percorreu-lhe o corpo suado com as mãos, sentindo o lento relaxamento de seus músculos. Lambeu-lhe o ombro e gostou do sabor salgado. Ouviu os batimentos do coração tão perto, que pareciam ser os seus. Ele esfregou a bochecha contra a dela, depois deu uma volta e saiu da cama. Muito esgotada para sentir curiosidade, Maxie se limitou a observá-lo. O jardim do Éden, sim. Robin devia estar acostumado à despreocupação dos amantes nus, mas para ela era um prazer novo e inesperado. Ele era como um leão montês, esbelto, ágil e absolutamente masculino. A lembrança de como foi o ter dentro a fez exaltar roucamente. 157
Ele foi até o lavabo e abriu uma gaveta. Depois de tirar algo, voltou para a cama e lhe deu uma toalha primorosamente dobrada. Ela a usou para limpar-se, e lhe agradou ver que só deixava umas poucas manchinhas de sangue. Teria sido uma estupidez manchar a cama de uma pessoa desconhecida. Quando acabou sua limpeza, ele se deitou ao seu lado e voltou a agarrá-la entre seus braços. - Tanto era meu patetismo que se sentiu obrigada a fazer o mais que pudesse para me arrumar? - perguntou-lhe com uma mescla de risada e tristeza. Ela sorriu. - Suponho que há um grão de verdade nisso, mas essa explicação não faz justiça a nenhum dos dois. Desejei-te do momento em que nos conhecemos, Robin. Esta noite decidi deixar de atuar como uma recatada senhorita inglesa e me comportar como uma mulher dos mohawk. Fez um gesto exagerado e lhe mordiscou o ombro. - Somos famosas por nossa ferocidade. Tomamos o que desejamos, rosto pálido. Massageou-lhe meigamente a nuca deixando o polegar metido na depressão que encontrou ali, onde calçava à perfeição. - Desconcertou-me absolutamente. Dada sua idade, sua infusão anticoncepcional, sua falta geral de atitudes virginais, supôs que não era virgem. - Entre os iroqueses, muitas famílias compartilham uma cabana. Os meninos aprendem a idade tenra o que é natural entre homens e mulheres. - Além disso, uma vez disse que as mulheres do povo de sua mãe têm uma aceitação mais livre de seus desejos. Certamente você se sente cômoda com você mesma como poucas mulheres que conheci. Olhou-a com expressão brincalhona. - Mas o que mais me custa compreender é por que fui eu o primeiro. Tão tolos são os norte-americanos? Ela fez uma careta. - Como te disse uma vez, havia muitos homens que pensavam que uma mestiça era prisioneira fácil, mas a muito pequena idade eu decidi que não me deixaria utilizar com tanta despreocupação. Entretanto, como viajávamos tanto, havia poucas oportunidades de desenvolver o tipo de relação em que podia estar segura de ser desejada por mim mesma. Até aí era certo. O que não disse foi que resistir as insinuações lhe tinha resultado fácil porque jamais conheceu nenhum homem que a atraísse tanto como ele. Ele a beijou na testa. - Seja qual for o motivo, honra-me muitíssimo que me tenha escolhido. Ela o olhou severamente. - E agora não irás fazer o estúpido comentário de que posto que me manchou é seu dever me dar seu sobrenome em santo matrimônio, não é? - Poderia, se acreditasse ter alguma possibilidade de êxito, mas te conheço o suficiente para saber que esse argumento não daria resultado. Acariciou-lhe o corpo sob a manta. Além disso, não me parece manchada. Parece absoluta e encantadoramente imaculada. Ela riu em voz baixa. Talvez não fosse falar de amor, mas lhe pareceu justo dizer: - Você é bastante maravilhoso. Valeu a pena esperar. 158
Beijou-lhe o lado da orelha. - Boa noite, Kanawiosta - sussurrou. - Não mais maus sonhos para nenhum dos dois esta noite. Ela deu meia volta e apoiou as costas contra sua parte dianteira. Tinha o corpo tão cansado que poderia se enrolar como uma rosquinha e dormir de todos os modos. Com essa proximidade física e emocional entre eles, foi fácil perceber o estado de ânimo do Robin. Parecia que a combinação de confissão e paixão lhe tinha aliviado bastante sua escuridão interior. Embora não tivessem futuro além de uns poucos dias ou semanas a mais, sua força e resistência naturais o capacitariam para continuar o processo curador. Produzia-lhe gratificação ter podido ajudá-lo, embora suspeitasse que sua principal virtude fora não pertencer ao mundo de seus conhecidos. Sempre é mais fácil revelar os torturantes segredos a alguém que não tem nenhuma conexão com a própria vida normal. Reprimiu um suspiro, Apesar de sua proposta de matrimônio, ela ainda não conseguia ver um futuro unida a ele. Ele podia lhe dizer algo e não importaria, porque ela não continuaria ali a modo de aviso de quando sucumbiu à debilidade. Então percebeu que nesse momento era ela que estava pensando muito. Só importava que Robin tinha remédio, e que ela tinha saboreado uma doçura e um prazer que não lamentaria jamais.
CAPÍTULO 25
Limpo pela tormenta, ao amanhecer o ceu estava claro e espaçoso quando Maxie despertou. Aproximava-se o solstício do verão e o sol saía muito cedo, de modo que não teria dormido mais de duas ou três horas, e, entretanto se sentia incrivelmente renovada e descansada. Robin continuava dormindo, sua cabeça dourada junto à dela e seu braço sobre sua cintura. Tinha a cara aprazível e muito jovem; ao vê-lo era difícil recordar seu desespero na noite anterior, ou acreditar que tivesse feito as coisas que fez; essa manhã parecia apenas um pouco mais velho que um escolar. Essa imagem era desmentia pela cicatriz em seu flanco. Olhou-a atentamente pensando que era um milagre que a bala não lhe tivesse destruído uma parte essencial da anatomia. Aumentou a pressão do braço com que o rodeava. Em realidade deveria despertá-lo, mas não conseguiu decidir-se a fazê-lo. Essa noite fora muito especial; era possível que nunca mais voltassem a estar tão unidos, por isso resistia a pôr fim a essa magia. Roçou-lhe o cabelo com os lábios, em um muito ligeiro beijo. Ele levantou as pestanas absurdamente longas e lhe sorriu. A essa distância, seus olhos azul profundo tinham o efeito de uma bala de canhão. Se já não estivesse apaixonada por ele, apaixonar-se-ia depois desse sorriso íntimo e preguiçoso. - Sempre durmo bem quando estou com você, sussurrou ele. 159
- O efeito é totalmente mútuo. Apalpou-lhe a cicatriz da ferida de bala e continuou: Suponho que esta e suas outras diversas cicatrizes são de feridas recebidas na linha do dever. Ele assentiu. - Essa me fizeram na Espanha. - E as marcas de açoites das costas? - Era inocente dos delitos pelos que me açoitaram, respondeu ele com expressão irônica, - mas como meus verdadeiros atos me teriam levado a forca, pareceu-me melhor não me defender. - E a mão? Ele a levantou e se viram claramente os contornos irregulares dos ossos dos dedos. - Um cavalheiro muito resolvido quis me obrigar a escrever uma mensagem que poderia em perigo a uma pessoa amiga minha. Eu resisti. Quando já me tinha quebrado vários ossos, disse-lhe que era canhoto, portanto já não podia escrever nada. Ela estremeceu ao pensar nessa horrível tortura a sangue frio. - Tem que ter sido uma dor atroz. Ele fez um vago som de assentimento. - Quando me compuseram os ossos já se haviam passado vários dias, por isso não ficaram de tudo bom. Foi uma sorte que não me infectassem e que a mão me funcione bem. - Levou uma vida muito emocionante. Inclinou-se e lhe beijou meigamente a cicatriz de ferida de bala no flanco. Sentiu a pele rugosa na língua. O bico do peito estava a só uns centímetros de distância. Curiosa por saber se era tão sensível como seu mamilo, mordiscou-lhe a pele até chegar ali. O brando montículo se endureceu deliciosamente. Não era estranho que ele desfrutasse tanto lhe beijando os peitos. Quando passou sua atenção ao outro bico do peito, ele fez uma rouca inspiração. - Tenha cuidado Máxima, ou vai obter mais que o que espera. Ela levantou a vista e o olhou com os olhos muito abertos e inocentes. - Quanto mais? Desceu a mão por seu corpo e envolveu com ela o quente membro masculino. Este já estava meio ereto e imediatamente se endureceu totalmente. Ele cravou os dedos nos lençóis. - Não está dolorida por ontem à noite? - perguntou-lhe com voz entrecortada. Ela pensou. - Não especialmente. Suponho que graças a todos esses anos de cavalgar e caminhar. Começou a lhe acariciar o pênis, lhe esfregando o lado da aveludada cabeça com o polegar. - Creio que ainda não entendi bem o truque de fazer o amor. Não iria mal um pouco de prática. - Você ganhou, bruxa - exclamou ele rindo. Fez um de seus movimentos rápidos como um raio, como o da noite anterior quando ela tentou o despertar do pesadelo; em menos de um abrir e fechar de olhos, ela estava 160
debaixo dele, mas desta de vez ele estava totalmente acordado, seus olhos risonhos e lhe tecendo uma rede de prazer embriagador com as mãos e a boca. Recordava exatamente o que ela gostara mais nessa noite, e descobriu também muitas novas formas de deleitá-la. Quando ela estava gemendo de desejo, penetrou-a, com muita suavidade a princípio. Quando teve claro que ela não sentia nenhuma moléstia, intensificou os movimentos, enchendo-a de um prazer rápido e ardente. Quando estava a ponto de estalar de prazer, ele inverteu suas posições e ela ficou em cima. Aferrou-se a ele, sentindo-se como se estivesse se elevando, elevando até cair no sol. Quando ele se esvaziou nela, ela explodiu em fogo, glorioso e aterrador. Depois se desmoronou, tremendo, sobre seu peito com as pernas fora das dele. Tivera razão ao lhe dizer que obteria mais do que esperava. Uma mulher seria capaz de vender sua alma com a esperança de encontrar um prazer semelhante. Boa coisa que houvesse dito a verdade quando lhe disse que a alma não se pode vender, perder e nem dar de presente, porque senão, estaria condenada por toda a eternidade. Robin lhe acariciou prazerosamente as costas, seu afeto tão agradável como fora sua paixão. Quando os dois recuperaram certa aparência de prudência, disse-lhe: - Basta de deixar que a casualidade controle nossa viagem. Hoje chegamos a Londres. Ela levantou a cabeça e o olhou. - Como? Não temos dinheiro para passagens em carruagem de aluguel, nem sequer para esta distância. Ele lhe dirigiu um alegre sorriso, aquele que sempre ela desconfiava. - Explicarei isso depois. Agora temos que nos levantar, para poder partir antes que se levantem e saiam de suas casas os trabalhadores da propriedade. Juntos eliminaram tudo os sinais de ocupação em menos de uma hora. Depois de um rápido café da manhã, recolheram suas mochilas e saíram. Ainda era bastante cedo e não havia ninguém para descobrir a intrusão. O caminho passava perto do estábulo, atrás da casa. Em lugar de continuar caminhando, Robin saiu do caminho e entrou no estábulo por uma porta lateral. Alarmada, Maxie entrou atrás dele; dentro estava meio em penumbra e alguns cavalos relincharam sonolentos ao senti-los entrar. Consciente de que podia haver moços de quadra dormindo na planta de acima, ela falou em voz baixa, mas conseguiu que o tom lhe saísse com toda a indignação que sentia: - O que fazemos aqui? - Conseguiremos transporte. Robin caminhou tranquilamente pelo corredor, observando atentamente os currais de ambos os lados. A maioria dos cavalos eram para o trabalho do campo, mas havia também vários para montar. Quando tirou um cavalo castrado de seu curral, ela se plantou diante dele, jogando faíscas pelos olhos. - Maldito seja, Robin, não quero participar de roubo de cavalos. Ou pensa deixar estes soltos uns quilômetros mais à frente, como fez com o pangaré do Simmons? Ele deu a volta ao redor dela e amarrou ao cavalo, depois foi procurar outro. - Esta vez não. Vamos necessitar deles para o resto da viagem. 161
- Robin! - Não se preocupe. Escrevi uma nota explicando o que ocorreu aos cavalos. Tirou uma parte de papel do bolso e o inseriu em um prego que se sobressaía de um poste. Sem deter-se a lê-lo, ela o seguiu ao quarto de ferramentas agrícolas. - Disse que não é ladrão e nem vigarista, disse ela entre dentes. - Mas já não é espião tampouco. A guerra já acabou. Que diabos acredita que está fazendo? - Não teremos nenhum problema. Agarrou uma sela de um prego. - Conheço o dono desta propriedade. Ela o olhou furiosa, com as mãos apertadas em punhos. A sensação de confiança e intimidade tinham desaparecido, deixando-a desconcertada e inquieta. - Que malditas razões tenho para confiar em ti, lorde Robert? As bochechas dele empalideceram. - Lamento que sinta a necessidade de perguntar isso. Ela fez uma inspiração profunda, sabendo que estava a ponto de dizer algo irrevogável. Quando conseguiu controlar um pouco a raiva, disse serenamente: - Creio que ontem à noite houve sinceridade entre nós. Mas hoje é outro dia e seguem havendo muitas coisas que não sei de você. - Responderei qualquer pergunta que me faça, disse ele muito sério. Mas... mas preferiria as deixar para depois. Maxie desejou chorar de frustração. Claro que era possível que Robin conhecesse o dono da propriedade, mas era igualmente possível que estivesse brincando um pouco de despreocupado latrocínio. Quando uma pessoa matou, seduziu e traiu, roubar dois cavalos valiosos poderia lhe parecer uma simples travessura. Ele se apoiou a sela no quadril e lhe roçou ligeiramente a bochecha com a mão livre. - Confia em mim um pouco mais de tempo, Kanawiosta? Quando lhe falava assim ela não tinha escolha. Exalou um lento suspiro. - Preso por cem, detento por mil. Mas não pode atrasar muito tempo mais o dia de ajuste de contas. - Sei, suspirou ele. - Mas esta viagem foi um tempo especial. Não só tenho descoberto a ti, mas também, em um sentido muito real a mim mesmo. Não estou de todo preparado para enfrentar a realidade. Dirigiu-lhe um sorriso, um pouco torcido, mas autêntico. - Orgulha-te o fato de ser capaz de me reduzir a uma parte de gelatina, ou isso não vale porque produz esse efeito em todas as mulheres? - Supervaloriza meus encantos. Inclinou-se por cima da sela, deu-lhe um rápido beijo e caminhou para a parte principal do estábulo. - Mas me alegra que seja suscetível a eles. Isso mantém mais igualada a balança do poder. - O que pretende dizer com isso? Desde que nos conhecemos não tem feito outra coisa que me fazer girar ao redor de seu dedo! Ele pôs a sela sobre o primeiro cavalo e se voltou para ela. - Suponho que sabe que se me pedisse que caminhasse em quatro patas por carvões acesos eu o faria. Ela pestanejou. 162
- Não quereria saber ao menos se tinha um bom motivo para te pedir isso? - Sim, sorriu ele, e me poria minhas calças de asbesto também. Mas de todos os modos o faria se me pedisse isso. Maxie o olhou com um estranho revôo de emoção no peito. Ou falava totalmente a sério, ou era o melhor embusteiro sobre a face da terra. Ou talvez estava louco, não podia esquecer essa possibilidade. Cansativamente procurou outra sela, a mais velha e desgastada que encontrou, e selou o outro cavalo. Robin saiu primeiro do estábulo e caminharam silenciosamente puxando os cavalos até uma porta pequena no muro. Maxie contemplou as pontas das botas enquanto ele forçava a fechadura com seus arames. Uma vez que saíram, ele fechou a porta com sua gazua, montaram e empreenderam caminho para o sul. Quando já estavam a suficiente distancia do Ruxton para sentir-se mais segura, perguntou-lhe: - Podemos chegar hoje a Londres? - Sim, embora seja quase de noite quando chegarmos. Ela franziu o cenho, tratando de calcular o tempo que restava. - Alcança-nos para uma noite de alojamento quando estivermos lá? - Em realidade não. Temos suficiente para os direitos de pedágio e comprar alimento para o dia, mas para nada mais. Mas tenho amigos que nos podem dar alojamento. - Não farão perguntas incômodas? - Esses amigos não. Suspirou. Teremos que trocar nossos hábitos informais, esse é um dos motivos pelos que não queria que acabasse a viagem. As pessoas respeitáveis já te considerariam horrorosamente comprometida, mas não importa porque ninguém sabe. Em Londres nos reuniremos com o mundo real. Suponho que além de investigar a morte de seu pai desejará visitar sua tia. Vamos ter que nos comportamos com uma aparência de decoro, e pormos de acordo no que vamos dizer para não nos contradizermos em nossas mentiras. - Suponho que isso significa camas separadas, disse ela, com uma careta. - Temo que sim. Se algum de seus parentes, ou meus se for por isso, descobrir que viajamos juntos, porá o grito no ceu, exigindo que nos casemos imediatamente. - E por que te preocupa isso? - perguntou ela com ironia. - Pensei que o matrimônio era o que desejava. Ele se pôs a rir. - Não me ocorre nada que possa te fazer fugir mais às pressas que lhe digam que tem de se casar comigo. - Sou muito capaz de resistir à pressão social, sobretudo de gente que não conheço, replicou ela. - Eu também, mas faz muito tempo compreendi que a conformidade superficial simplifica enormemente a vida. - Onde for faz o que deve? - Exatamente. Isso vale por dois em Londres. Olhou-a. - Por sorte, amanhã posso obter recursos, de modo que nesse aspecto não teremos nenhum problema. 163
- Posso perguntar onde pensa obter esse dinheiro, lorde Robert? - De um banqueiro, tudo muito aborrecido e legal. Dançaram-lhe os olhos. - Percebeu que sempre me chama de lorde Robert quando me desaprova? Ela refletiu um momento e logo sorriu a contra gosto. - Suponho que esse estúpido título falso simboliza tudo o que não sei de você e me faz desconfiar de você. - Seriamente desconfia de mim? - perguntou-lhe ele docemente. A ela não surpreendeu que ressurgisse a pergunta; estava no núcleo mesmo de sua relação. Por sorte acabavam de entrar em uma pequena aldeia, o que lhe deu tempo para pensar em sua resposta. Já no caminho aberto, depois de passar pela estreita rua principal, disse-lhe: - Não faz nenhuma honra ao meu juízo, mas confio em ti, pelo menos até certo ponto. - Qual é esse ponto? - perguntou-lhe ele sem olhá-la, e com expressão tranquila e um pouco reservada. - Estou segura de que não me faria nenhum dano conscientemente, e creio que sempre trata de fazer honra a sua palavra. Emitiu um suspiro exasperado. - Mas talvez me equivoco. Uma mulher sábia me disse uma vez que estar apaixonada reduz a inteligência na metade e elimina totalmente o bom julgamento. Interrompeu-se bruscamente, consternada pelo que acabava de revelar. Ele se girou a olhá-la, perfurando-a com seus intensos olhos azuis. Agarrando-lhe as rédeas do cavalo, deteve os dois. Aproximou mais seu cavalo ao dela, tanto que suas pernas se tocaram, e se inclinou a lhe dar um longo beijo, ferozmente emotivo. Ela correspondeu o beijo lhe rodeando o pescoço com os braços, surpreendida pela profundidade dos sentimentos que tinha induzido com sua oblíqua declaração. Robin podia ser incapaz de declarar amor, mas parecia que não recebia mal a declaração dela. Quando reataram a marcha, a tensão da primeira hora da manhã desapareceu e voltavam a ser amigos. Na estalagem Wheatsheaf tinham atribuído a uma garçonete a tarefa de ajudar a vestir-se à distinta cliente. Por desgraça, o vestido limpo que Desdêmona pôs era tão severo e lúgubre como o que usou no dia anterior. Em realidade teria que fazer algo com seu guarda-roupa. Enquanto a garçonete a penteava, Desdêmona repassou os acontecimentos da noite anterior. Depois do mútuo desnudamento de almas, o marquês e ela se haviam relegado emocionalmente, e a conversação durante o jantar foi mais geral que pessoal. Entretanto, mesmo Giles sendo o tipo de latifundiário rico ao que ela se havia oposto politicamente muitas vezes, tinha que reconhecer que era de mentalidade humana e tolerante. Provavelmente mais tolerante que ela, se queria ser absolutamente sincera. Ao aproximar à hora de deitar-se, tinham-lhe entrado certos receios, pensando se talvez ele tentaria convencê-la a dormir com ele. Mas em todo momento tratou-a com irrepreensível decoro; além de um bom beijo de boa noite, cuja lembrança a fez curvar os lábios em um sorriso de gata diante um prato de nata... 164
Desdêmona se apressou a compor sua expressão, deu meia coroa à garçonete e desceu ao salão privado a tomar seu café da manhã. Ia preparada para fazer ornamento de certa reserva quando voltasse a encontrar-se com o marquês, e se sentiu perversamente decepcionada ao ver que ele ainda não estava ali. Com a tácita esperança de que ele apareceria, pediu comida suficiente para dois. A comida chegou pouco antes que chegasse Giles. Ele golpeou a porta aberta, titubeou e lhe perguntou com expressão insegura: - Posso te acompanhar a tomar o café da manhã? O fato de que ele se sentisse igualmente tímido, dissolveu-lhe o nervosismo. - Por favor, respondeu cordialmente. - Não sei como estarão os rins assados, mas os ovos esquentados e as salsichas estão excelentes. Ele tomou assento frente a ela. - Fui ver o ferreiro. Minha carruagem não estará preparada antes de amanhã, no mínimo. - Não importa. Com a domesticidade de uma esposa, serviu-lhe uma taça de chá, acrescentando a quantidade de leite que viu ele por na noite anterior. - Podemos ir à propriedade de seu irmão em minha carruagem. Depois ou te trago de volta ao Daventry ou te levo a Londres, se não te interessa esperar que a carruagem esteja reparado. - Muito amável de sua parte. Ele se serviu de ovos e salsichas. - Não estou com ânimo para esperar aqui outro dia. - Acredita que encontraremos a nossos fugitivos em Ruxton? - Duvido, estou começando a considerá-los espirais de fumaça, sempre voando fora de alcance, respondeu ele em tom irônico. Irá te visitar sua sobrinha quando chegar a Londres? Ela encolheu de ombros. - Isso eu espero, embora não apostaria muito dinheiro. Seu irmão se alojará na casa Wolverton? O marquês negou com a cabeça. - A casa está fechada e só há um cuidador ali. Estava pensando em vendê-la, mas o estou reconsiderando. Olhou-a francamente. - Talvez passe mais tempo na cidade no futuro. Isso soou agradavelmente a Desdêmona. Surpreendeu-se sorrindo outra vez. Deus santo, estava-se comportando como uma colegial aflita de seu primeiro amor. Não, isso não era certo. Enquanto olhava e estendia meticulosamente a geléia em sua torrada, compreendeu que nunca se havia sentido assim. Fora uma garota tímida e estudiosa, lenta no desenvolvimento do interesse pelo sexo oposto. Em sua juventude a tinham atormentado os requerimentos amorosos indesejados, e se tinha casado jovem e sem amor. Certamente lhe estava permitida uma pequena loucura. - Como vai encontrar lorde Robert? - perguntou, elevando a vista. - O dinheiro deve estar nos primeiros lugares de sua lista de prioridades, de modo que lhe deixarei recado com seus banqueiros, respondeu Giles. - Também farei saber a alguns de seus amigos que quero vê-lo. Esse diálogo a tirou de suas fantasias e a devolveu à realidade. Embora chegasse a confiar no marquês, lorde Robert seguia sendo um 165
personagem duvidoso. Se fizer mal a Máxima, as consequências certamente afetariam a frágil relação entre ela e Giles. Resolutamente agarrou outra torrada. Que o futuro se cuide de si mesmo. Esse dia desfrutaria das horas passadas com o homem mais atraente que conheceu em sua vida. Os caminhos estavam pantanosos, de modo que quando chegaram a Ruxton já era quase meio-dia. O porteiro manifestou sua alegria ao abrir a porta ao marquês, mas a sua pergunta por lorde Robert respondeu que não esteve ali. De todos os modos entraram e se dirigiram ao escritório de administração da propriedade. Quando entraram, o administrador Haslip estava inclinado sobre os livros de contas com o cenho franzido. O cenho desapareceu quando levantou a vista e viu o homem que o tinha contratado e fiscalizado durante anos. - Lord Wolverton! - exclamou, levantando-se da cadeira. - Este é um prazer inesperado, milorde. Vai ficar um tempo aqui? Giles negou com a cabeça. - Só vim a ver se estava aqui meu irmão. Haslip titubeou. - É possível que tenha estado, mas não estou seguro. Ao ver que Giles arqueava as sobrancelhas, acrescentou: - Ninguém o viu, mas esta manhã faltavam dois cavalos e encontrei esta nota no estábulo. Entregou uma parte de papel. Não sei se essa é a letra de sua senhoria. Se for, muito bem, mas poderia tê-la falsificado um ladrão preparado. Quem quer que fosse, levou os dois melhores cavalos do estábulo. Giles olhou a nota. Só dizia: «Necessito dos cavalos», e estava assinada «Lorde Robert Andreville». A letra tinha os típicos caracteres inclinados para trás do Robin. - É sua letra, disse passando a nota a Desdêmona. - Ou seja que esteve aqui ontem à noite. A que hora notaram que faltavam os cavalos? - Ao redor das nove. - Entrarei na casa a ver se passou aqui a noite. Se chegou muito tarde, talvez não quis despertar a ninguém, disse tranquilamente. Melhor não dizer nada da Inocente Resguardada; quanto menos se dissesse dela, melhor. Certamente Haslip tinha suas perguntas, por exemplo: como entrou seu novo empregador em uma propriedade murada, por que partiu sem notificar a ninguém sua presença e para que necessitava dois cavalos. Mas se limitou a dizer: - Muito bem, milorde. Irei procurar as chaves. Já dentro da casa senhorial, Giles despediu o Haslip. Depois, com a Desdêmona, dedicaram certo tempo a revisar a casa, acabando na cozinha. - Estiveram aqui, isso está claro - exclamou Desdêmona, depois de fazer sua ronda pela dispensa, - os armários em que se guardava a baixela e vi a banheira com umas poucas gotas de água dentro. Olhou através da luz uma taça de cristal lavada e seca. Parece que jantaram com estilo. - Robin sempre teve estilo, comentou Giles. - Revisei o armário da roupa branca. A julgar pelo número de lençóis usados uma vez e dobrados cuidadosamente, dormiram em camas separadas. Talvez todas nossas preocupações foram por nada. 166
- Isso veremos, limitou-se a dizer Desdêmona. De toda forma, estava disposta a aceitar a possibilidade de que um casal pudesse viajar juntos sem que o homem seduzisse sexualmente à mulher. No dia anterior poderia ter estado em desacordo, mas sua associação com o Giles a estava fazendo compreender que um homem amadurecido nem sempre atuava como um jovem louco de luxúria. Era possível que lorde Robert se ofereceu a acompanhar a Máxima por puro altruísmo. Mas ainda no caso de que não tivesse havido mau comportamento, seguia restando o assunto do decoro e da reputação. - Posto que vão a cavalo, poderiam chegar a Londres esta noite, disse. - Sim. O marquês lhe sorriu alentador. Dentro de um ou dois dias, todo este enredo se terá resolvido. Enquanto saíam da casa, ela encabeçando a marcha, Desdêmona pensou com ironia que talvez o problema de Máxima estava em vias de solução, mas seu problema com o marquês era uma provocação muitíssimo mais complicada. Em todo caso, era o tipo de desafio que lhe encantava.
CAPÍTULO 26
Depois de um comprido dia sobre as montarias, Londres assaltou os sentidos de Maxie com tanta força que lhe pareceu que Boston só era uma praça de mercado. Cansativamente cavalgou atrás do cavalo de Robin pelas ruas em penumbra, todo seu interesse colocado no momento em que chegariam ao destino. Sacudiu-a uma forte emoção quando viu o Robin puxar as rédeas e deter o cavalo diante da mansão mais magnífica de um setor da cidade cheio de mansões magníficas. - É aqui? - perguntou consternada. - Sim, disse ele sorrindo tranquilizador e desmontando. - A aldrava está posta, o que significa que meus amigos estão em casa... - Com nosso aspecto não nos vão abrir a porta da cozinha, e muito menos nos fazer passar ao vestíbulo, resmungou ela, apeando seu esgotado corpo. - Não se preocupe, disse ele rindo, já me viram em pior estado. Com os pés plantados nos paralelepípedos, ela olhou a imponente fachada, sentindose uma provinciana manchada de lodo. O orgulho veio em sua ajuda. O que lhe importava o que pensassem dela esses aristocratas ingleses? Se a Robin parecia apropriado levá-la ali, ela não ia se esconder como um sabujo covarde. Segurou as rédeas dos cavalos enquanto Robin golpeava com a aldrava. Muito em breve abriu a porta um lacaio de libré e peruca. O criado fez uma inspeção detida e insultante do visitante, como se se tivesse encontrado um barril de pescado podre na porta. - Chame alguém para que leve os cavalos ao estábulo, disse Robin imperiosamente antes que o lacaio pudesse abrir a boca. Fazia uma de suas transições fotos instantâneas, desta vez convertendo-se em um 167
altivo aristocrata. O lacaio balbuciou algo, mas cedeu diante do olhar desdenhoso do visitante. No minuto seguinte apareceu o mordomo e o lacaio se encontrou levando os cavalos ao estábulo. Mesmo com a sua resolução, a Maxie custou não encolher-se quando pôs os pés sobre o mármore do vestíbulo; este era tão enorme que toda uma companhia de cavalaria teria cabido ali. O elegante ceu raso abobodado se elevava duas colunas, nas paredes que circundavam a sala havia pedestais com estátuas que deveram ser roubadas de templos gregos, e o centro estava dominado por uma imponente escada dupla de caracol. Não estava familiarizada com as grandes mansões, mas essa poderia ter sido um palácio real. Deus santo, por isso a ela se referia, essa era Carlton House com o Príncipe Regente de festa na planta principal. Em troca Robin estava tão tranquilo como se fosse o dono da casa. - Está em casa a duquesa? - perguntou ao mordomo. - Sua excelência não recebe hoje, respondeu altivamente o criado. - Não é isso o que lhe perguntei, disse Robin com firmeza amável e letal. - A duquesa me receberá. Diga-lhe que lorde Robert está aqui. A cara do mordomo refletiu os rápidos cálculos mentais que pesavam a impecável pronúncia e as maneiras do visitante contra sua desastrosa aparência. Depois inclinou ligeiramente a cabeça e desapareceu. Duquesa? Maxie pensou se a augusta dama não resultaria ser a avó do Robin e ele a adorada ovelha negra da família ou um pouco igualmente horroroso. Muito em breve depois de conhecê-lo decidiu que era bem educado, mas pertenceria realmente aos níveis mais elevados da sociedade inglesa? Com um nó no estômago, reconheceu que isso era muito possível, inclusive provável. Gelada de inquietação, evitou olhá-lo aos olhos, fechando-se em si mesma nesse território desconhecido e possivelmente hostil. Com todos os músculos tensos, passeou pelo grande vestíbulo como uma gata explorando um novo lar. Nem sequer o ar de autoridade de seu companheiro lhes conseguiu o convite a passar a um salão. Chegou ao extremo mais afastado do vestíbulo quando ouviu o ruído de passos rápidos. Voltou-se a olhar e viu uma gloriosa criatura dourada baixando a escada de caracol a toda velocidade. A mulher não a viu, mas correu para seu visitante e se jogou em seus braços sem lhe importar suas sujas roupas. - Robin! Bandido! Por que não me avisou que vinha? Rindo, Robin abriu os braços para recebê-la. - Tenha mais cuidado, Maggie! Pensa no futuro marquês de Wilton, senão em ti. - É igualmente injusto como Rafe, disse a duquesa com carinho. Poderia ser uma menina, sabe? - Tolice. É muito eficiente para não dar o herdeiro requisitado em sua primeira tentativa. Durante um momento os dois estiveram abraçados com a naturalidade que dão muitos anos de intimidade. A duquesa era quase tão alta como Robin, e tão loira como ele. Em seu calado canto, Maxie sentiu uma emoção tão profunda, que por um momento 168
lhe obscureceu a visão. Acreditou-se preparada para o que quer fosse encontrar nessa casa, mas não para isso. Deus dos ceus, não para isso! Como podia tê-la levado a casa de sua amante? Como? Em toda a comprida viagem do norte, nunca Robin lhe pareceu mais longínquo. Seus cabelos loiros brilhavam à luz do abajur, inclusive com suas roupas puídas e sujas pela viagem era inconfundivelmente um aristocrata. Nunca em sua vida, sequer em sua primeira infância, quando a insultavam os meninos brancos, havia-se sentido tão mestiça, tão marginalizada, tão irremediavelmente pequena, morena e à parte. - Quero te apresentar a alguém muito especial, disse Robin soltando a duquesa. Enquanto se aproximavam pelo vestíbulo, Maxie esteve a ponto de ficar paralisada por uma explosiva mescla de fúria e confusão social. O que se faz em presença de uma duquesa? Em particular, o que faz uma mulher vestida de homem? A resposta lhe chegou flutuando, procedente de uma grande dama que conheceu em Boston: "uma cidadã da república norte-americana não se inclina diante nenhum mortal, só diante de Deus, e só se lhe der a vontade". Sendo assim, a amante de seu amante certamente não merecia uma reverência. Por outro lado, posto que estivesse vestida de homem, sim, procedia tirar o chapéu. E isso fez, mas não foi possível fazer nada a respeito de sua expressão, que devia ser ferozmente hostil. A duquesa se deteve, abrindo mais os olhos, surpreendida. Tinha os olhos cor verde cinza mutável, não azuis como os de Robin. - Maggie, apresento à senhorita Máxima Collins. Maxie, a duquesa de Candover. Robin pousou ligeiramente a mão no braço de Maxie e disse à duquesa: - Estou tentando persuadi-la de que se case comigo. Os olhos verdes refletiram surpresa, seguida rapidamente por um brilho risonho. O semblante da duquesa não tinha a simetria da beleza perfeita, mas seu radiante encanto era muito mais potente que o que poderia ter sido a beleza. Com razão atormentava os sonhos de Robin. Ao ver a expressão risonha da duquesa, Maxie esteve a ponto de explodir. Era evidente que Maggie acreditava que o interesse de Robin por uma suja anã vestida de menino era uma espécie de piada. - Querida minha, que maravilhoso conhecê-la, disse a duquesa com autêntica simpatia, aplacando um pouco sua fúria. Sorriu-lhe com ar de cumplicidade. - Quanto desejo que se decida a aceitar o Robin. Tem um bom número de qualidades redentoras, embora suponha que neste momento deseje assassiná-lo, não é? O comentário definia com tanta exatidão seus sentimentos que Maxie se sentiu um pouco enjoada. - Na realidade estou pensando qual seria o melhor método. Até que, falou com os dentes apertados, estava resolvida a igualar o aprumo da duquesa. - O azeite fervendo me parece muito rápido. Maggie se pôs a rir. - Imagino que simplesmente a trouxe aqui, sem uma palavra de explicação. - Exatamente, excelência. Maxie olhou Robin, e viu que este nem sequer parecia 169
envergonhado de si mesmo. Não tinha tirado a mão de seu cotovelo, e esse contato a tranquilizava, mesmo que desejasse lhe torcer o pescoço. - Robin fez uma vaga referência à casa de uns amigos, nada mais. - Isso é consequência de muitos anos espionagem, em que quanto menos se diga melhor, explicou Maggie. Fez um gesto com a mão para abranger sua volta. - Eu também me impressionei a primeira vez que vi este mausoléu. Inclinou a cabeça, pensativa. É norte-americana? Certamente a duquesa compartilhava com Robin o ouvido para distinguir as formas de falar, assim como tinha compartilhado tantas outras coisas com ele. Esse pensamento não melhorou seu humor. - Sim, embora meu pai fosse inglês; o filho mais novo do sexto visconde Collingwood. Imediatamente se envergonhou por ter cedido a necessidade de mencionar seus parentes nobres, mas já era muito tarde para retirar as palavras. A duquesa franziu o cenho, pensativa. - Collingwood. A sede está no norte? Em Durham? - Sim. Pensando que isso era muito lacônico, acrescentou. - Passei a primavera em casa de meu tio e sua família. Robin a olhou estranhando que falasse de sua conexão com o Collingwood, mas se limitou a dizer: - Tendo chegado a Londres com os bolsos vazios, esperávamos que a casa Candover tivesse espaço para nos alojar uma ou duas noites. - Seguro que encontraremos espaço. A duquesa se voltou para Maxie. - Permita que a acompanhe ao seu quarto para que possa descansar e refrescar-se. - Se não se importar, excelência, primeiro queria falar com Robin a sós, disse ela com voz tranquila, - mas com um brilho perigoso nos olhos. - Não precisa falar mais. A duquesa lhes indicou uma porta. - Nesse salão pequeno estarão tranquilos. Robin entrou atrás dela na sala, observando-a inquieto. Supôs que ela se surpreenderia ao encontrar-se na casa de Maggie, mas sua fúria mal reprimida era muito maior que esperou. Tão logo ele fechou a porta, Maxie se girou, tremendo toda inteira de fúria. - Como se atreve a me trazer para a casa de sua amante? - Maggie não é minha amante há vários anos, disse ele amavelmente. - Entretanto continua sendo minha amiga, e sempre tivemos o costume de contar um com o outro. Posto que você e eu necessitávamos de um lugar para nos alojar, pareceu-me natural vir aqui. Atravessou o salão até a lareira e se apoiou no suporte. - Sabia que podia contar com que ela e Candover aceitassem dois viajantes desarrumados sem fazer perguntas, sem ofender-se, armar escândalo e nem dar motivo a fofocas perigosas. Aqui pode fazer a transição e voltar a ser uma jovem dama respeitável sem que ninguém se inteire. Maxie apertou os punhos, mas seu domínio era tênue. - Diante do mordomo se identificou como lorde Robert, e sua duquesa o chamou do mesmo modo. Pensei que me havia dito que esse não era um verdadeiro título. - Foi você quem disse que não era verdadeiro, observou ele. - Eu me limitei a não 170
corrigir o engano. Parece que seu pai não te explicou todas as peculiaridades do sistema inglês de títulos. Por exemplo, o uso de «lorde» com o nome de batismo é prerrogativa exclusiva dos filhos mais novos de duques e marqueses, portanto é correto me chamar de lorde Robert Andreville. Ela fechou seus grandes olhos castanhos, assimilando essa afirmação. Estava mais exótica e mais perigosa que nunca. - Disse-me que não era nobre. - E não o sou. Lorde Robert é um título de cortesia. Sou tão plebeu como você. Se meu irmão morrer, o que Deus não permita, seria nobre imediatamente. Encolheu-se de ombros. Isso não tem muito sentido. - Seu pai era duque? Ele negou com a cabeça. - O marquês do Wolverton. Um degrau mais baixo na escada. - Ou seja, estava na propriedade de sua família quando nos conhecemos. Olhou-o como se fosse um completo desconhecido. - Que tipo de homem é? Desde o começo até o final me induziu a enganos deliberadamente, me deixando acreditar que era um vagabundo sem lar, um ladrão, ou algo pior. Quantas outras mentiras me disse? - Sempre te disse a verdade. Robin passou o peso do corpo ao outro pé, sem olhá-la aos olhos. Estava caindo na exagerada imparcialidade de considerar que era sua reação ao nervosismo ou ao sentimento de culpa. Mas, mesmo sabendo que era um engano, não conseguiu eliminar a tranquila objetividade de sua voz. - Embora reconheça que disse falsidades a outros em sua presença. A raiva de Maxie explodiu em uma ira pura e faiscante. Em um só movimento agarrou uma delicada estatueta de porcelana de uma elegante mesinha e a atirou. A estatueta se estrelou no suporte da chaminé, poucos centímetros do lugar onde ele tinha a mão esquerda apoiada. Ele não se moveu nem retirou a mão, nem sequer quando as partes de porcelana o golpearam, mas lhe puseram brancos os nódulos ao apertar fortemente o lado do suporte. - Não me importa se a exatidão de suas palavras estava passada por muito, meu Deus! Seguro que foi educado por advogados ou jesuítas, disse-lhe em tom depreciativo. Sua intenção era me enganar, embora apaziguasse sua delicada consciência manipulando a verdade em lugar de dizer mentiras francas. Quebrou-lhe a voz. - Que tola fui ao te acreditar. Essa dor crua transpassou a atitude defensiva de Robin com a rapidez de uma navalha. Estremecido, fez uma inspiração para serenar a respiração. - Tem razão, usei a verdade para criar uma falsa impressão. Mas te juro que não era minha intenção te enganar. - Por que então? Olhou-o fixamente, os finos traços de sua cara tensos; sua vulnerabilidade o fez sofrer por tê-la ferido sem intenção. Mas a sua imagem desse momento se sobrepunham imagens de quando a tinha em seus braços, fazendo amor. Sua doçura, sua generosidade, sua sensualidade e paixão. Enquanto se olhavam aos olhos, desejou-a com uma intensidade paralisadora, a 171
necessidade física tão estreitamente entrelaçada com a necessidade emocional que lhe era impossível separar a uma da outra. Tinha-a desejado do momento mesmo em que abriu os olhos e descobriu que uma ninfa encantadora e enérgica dos bosques caiu sobre ele. Sendo assim, porque tinha agido com tanta estupidez? Como podia ter sido tão condenadamente idiota um homem reconhecido por sua sutileza e percepção? Ao se aprofundar nas curvas mais profundas de sua mente lhe fez evidente a resposta. - Não tenho muito carinho por lorde Robert, disse-lhe lamentando. - E se não me caía bem o tipo, dificilmente podia esperar que te caísse bem a ti. E desde o momento em que te conheci desejei, muitíssimo, te agradar. Embora difícil, deveria ter tentado antes a sinceridade. O corpo tenso de Maxie relaxou, ao dissipar-se sua fúria. Continuaram olhando-se nos olhos durante um momento eterno. - Compreendo, disse ela. Mas embora a raiva desapareceu, restava a tristeza. Foi apoiar o ombro no outro extremo do suporte da lareira e cruzou os braços sobre o peito. Em um tom que igualava a imparcialidade dele, em seu grau máximo, perguntou-lhe-: Trouxe-me aqui para obter a aprovação de Maggie? Ou simplesmente deseja horrorizá-la, lhe mostrando o tão baixo que caiu desde que ela te deixou? Seria impossível encontrar outra mulher tão formosa e aristocrática como ela, de modo que suponho que decidiu procurar na direção oposta. Apresentar-lhe uma selvagem asquerosa certamente lhe vai ensinar uma ou duas coisas. - Meu Deus, não é possível que creia que te trouxe aqui por um motivo assim! Entender sua raiva abateu um pouco ao Robin. - Você é uma mulher sábia e de caráter, e ganhar sua afeição é uma honra para qualquer homem que tenha essa sorte. E inclusive coberta de lodo e com aspecto de ter sido arrastada por um matagal agarrada do cabelo, é formosa. Ela apertou os lábios. - Como bom mascate, sempre tem na ponta da língua as palavras corretas. - Mas às vezes, lorde Robert, as palavras não bastam. Merecia isso, mas de todo modo se sentiu como se lhe tivesse enterrado o punho no plexo solar. - Declaro-me culpado se ser um imbecil insensível. Dizer que te trouxe aqui para obter a aprovação do Maggie tem uma conotação errônea, mas é certo que desejava que a conhecesse. São as duas mulheres mais importantes de minha vida, e creio que poderiam ser amigas. Maxie estirou o braço sobre o suporte e esfregou o mármore esculpido como se fazer isso fosse o mais interessante do mundo. - Se me desaprovar, como certamente, vai fazer, o quê? - Não te desaprovará. Cobriu-lhe a mão que tinha apoiada no mármore. Ela moveu bruscamente os dedos diante o contato, mas não retirou a mão. - Creio que o sentido de sua pergunta é se, colocado a escolher entre as duas, vou escolher a ti. Apertou-lhe mais a mão. - A resposta é sim. Até no caso de que Maggie não te aceitasse e fosse tão obstinada que tentasse me dissuadir, não o conseguiria. Só você tem o poder de nos separar. 172
Ela fechou os olhos e a cara lhe traiu de emoção. Incapaz de continuar mantendo a distância, Robin se aproximou e a agarrou em seus braços. Sem resistir, ela apoiou a cara em seu ombro, como se estivesse esgotada. Fossem quais fossem seus conflitos verbais, no plano do contato físico, sempre havia harmonia entre eles. Ele a estreitou com força, com a esperança de que o abraço fosse tão tranquilizador para ela como era consolador para ele. Dado o caráter enérgico dela, ele tendia a esquecer o quão pequena era. Sentiu uma quebra de onda de ternura protetora; a cabeça escassamente chegava ao queixo, e ele não era alto. - Sua cabeça está à altura de meu coração, disse-lhe. Com uma mão lhe tirou as presilhas do cabelo, que lhe caiu sobre as costas como um brilhante manto de ébano. - Sou um idiota absoluto, Kanawiosta. Durante a viagem desejava bloquear o passado e o futuro, porque pela primeira vez em muitos anos, sentia-me feliz. Acariciou-lhe a coluna rígida, deslizando os dedos por entre os sedosos cabelos. - Sabia que cedo ou tarde teria que me explicar, mas sou um covarde indolente, e preferi retardar a explicação o mais possível. Não considerei quão injusto era isso com você. Você me parecia como a terra, sábia, carinhosa, imensamente forte. Passei por cima do fato de que você também tem suas cicatrizes e seus medos. - E que outras surpresas me tem reservadas? - perguntou ela, sem levantar a cabeça. Ele pensou um momento. -Bom, sou bastante rico. Entre outras coisas, sou o proprietário de Ruxton. Isso a fez levantar a cabeça, e por seus olhos passou um relâmpago de exasperada diversão. - Ou seja, roubou seus próprios cavalos? Ao ver que ele assentia, acrescentou: - e pensar na angústia que senti. - Disse-te que não tinha porque preocupar-se. - A duquesa tem razão, disse ela com voz severa, mas com os lábios curvados com reprimido humor. - É um libertino. - Culpado, - suspirou ele, já não divertido. - Por isso me parecia tão boa ideia ser outra pessoa. Maxie o olhou aos olhos, com expressão séria. - Temos que falar mais disto, mas creio que não esta noite. - Estupendo, nestes momentos não estaria em forma para isso. Provavelmente não mais do que está você para decidir se casar ou não comigo. Isso ele disse em tom ligeiro, mas conteve o fôlego; precisava saber se os últimos incidentes a tinham enfurecido tanto que considerasse impossível o matrimonio com ele. Ela moveu a cabeça com expressão preocupada. - Não sei, Robin. Separam-nos ainda mais coisas das que eu acreditava. Começou a brincar com suas enrugadas lapelas. - Não sei se posso me encaixar em seu mundo inglês, e nem sequer se desejo tentar. - Unem-nos mais coisas das que pensa, e este mundo inglês não é a única possibilidade. Roçou-lhe o cabelo com os lábios. - Mas este não é o momento para falar disso tampouco. O importante é que não disse que não. Esboçou um sorriso. - Obrigado 173
por não me golpear com essa estatueta de porcelana. Talvez deveria tê-lo feito. Eu estava incrivelmente obtuso. - Queria te fazer ver meu ponto de vista, não te fazer dano, mas deveria ter controlado meu gênio. Fez uma careta. - Espero que a estatueta não tenha sido uma querida relíquia familiar. Olhou-lhe a camisa enrugada. - Se eu te chamo de lorde Robert quando estou exasperada, o que significa quando me chama Kanawiosta? - Suponho que significa que te falo com o coração, respondeu ele pausadamente, - e espero que me escute do mesmo modo. - Não é um mau motivo. Depois de um comprido silêncio, olhou-o com um brilho de picardia. - Se me casasse com você, teria um título? E nesse caso, qual seria? - Chamaria-se lady Robert Andreville. Abreviado, lady Robert, ou talvez lady Loura. Ela abriu mais os olhos, surpreendida. - Sério? Não é outra de suas brincadeiras? - A pura verdade de Deus. Maxie jogou para trás a cabeça e soltou uma gargalhada. - Que sistema mais ridículo! Com razão os pais fundadores não quiseram adotá-lo. Abriu-se a porta e entrou a duquesa do Candover. Ao ver que seus hóspedes estavam abraçados, empreendeu uma rápida retirada. - Não é necessário que se vá, disse Robin, soltando Maxie sem nenhuma pressa. Negociamos uma trégua. Muito prudente para fazer um comentário, a duquesa disse: - Acabei de receber uma mensagem do Rafe em que me anuncia que vai sair do Westminster antes do que esperava. Vir-lhes-ia bem jantar conosco dentro de uma hora mais ou menos? Eu adoraria se pudessem, mas se estiverem muito cansados, talvez prefeririam que lhes levassem a comida a seus dormitórios. Depois de olhar ao Robin, Maxie respondeu: - Será um prazer para mim aceitar, excelência, mas lhe advirto: só trouxe um vestido, que deve estar bastante a mal pela viagem. - Minha criada pode escovar e engomar. O olhar da duquesa se pousou nas partes de porcelana quebrada; lhe iluminou a cara. - Mas que fabuloso! Quebrou essa horrível reprodução do Laocoonte. Maxie se ruborizou. - Sinto muito, foi absolutamente culpa minha. Reporei-a tão logo possa. - Nem pense nisso! A duquesa sorriu travessa. - Era um presente de núpcias de uma das primas Whitbourne que desaprovava que Rafe se casasse comigo. Digamos que três pessoas comidas por serpentes não é um presente muito amável, não lhe parece? Sempre a deixei bem ao lado da mesinha com a esperança de que a quebrassem acidentalmente alguma das criadas, mas sem êxito. Maxie se pôs-se a rir. Precisava ser uma autêntica dama para fazer uma hóspede culpada acreditar que lhe fez um favor. - Se tiver outras coisas que deseja quebrar, estarei encantada em agradá-la. - Certo! Levo-a agora ao seu dormitório? Há tempo para um banho ou uma sesta se o desejar. 174
Com expressão séria, Maxie seguiu à duquesa pela escada até o dormitório. Já havia imaginado que ela e Robin fossem incapazes de resolver os problemas que os separavam. E agora estava inundada em um mundo estranho em que poucos a acolheriam bem. Mas quanto antes comprovasse se seria capaz de viver nele, melhor.
CAPÍTULO 27
Depois que Maxie saiu de um delicioso banho, a duquesa enviou a sua própria criada francesa para que a ajudasse a vestir-se. Além de um muito ligeiro susto, a bem treinada criada não delatou nem um indício de desaprovação diante uma hóspede tão especial, embora em seu rosto houvesse uma expressão de lamento quando lhe deu o vestido recém engomado. Mas muito em breve a conquistou totalmente o francês fluido, embora com acento canadense de Maxie. Maxie pôs seu singelo vestido de musselina branca e depois se sentou e esperou a que a criada lhe recolhesse os cabelos escuros em um elegante coque na nuca. O penteado resultante era decente. Entretanto, quando se apresentou o lacaio a lhe dizer que era a hora de jantar, deu-se uma último e nervosa olhada no espelho antes de segui-lo, com a cabeça muito erguida, até o pequeno salão da planta baixa. Robin e a duquesa estavam conversando tranquilamente, suas cabeças douradas juntas. A roupa dele também experimentou uma grata restauração na hora passada, e de alguma parte tinham aparecido uma camisa e uma gravata limpa, provavelmente do roupeiro do duque. Parecia sentir-se tão a vontade ali que lhe voltaram as dúvidas. Ele podia sentir-se a vontade na casa de um duque, mas que diabos fazia ela aí? Ele levantou a cabeça, olhou-a com um brilho acolhedor em seus olhos azul profundo e se levantou para recebê-la. - Está absolutamente deliciosa, sussurrou-lhe. Maxie se ruborizou, mas seu olhar de admiração a alegrou até os dedos dos pés. Dificilmente o duque poderia ser mais agradável. Talvez Robin tivera razão ao procurar alojamento ali. Tal como tinha prometido a duquesa, era um singelo jantar familiar segundo os critérios britânicos, embora houvesse bastante comida e soberbamente preparada. Maxie agradeceu não ter que arrumar-se com os intermináveis pratos considerados essenciais em Chanleigh. Tinha temido que houvesse certos horríveis costumes para comer nas que ela delataria que era uma provinciana ignorante, mas sua inquietação era infundada. Viu mais garfos e colheres em Boston. Participar da conversa também lhe resultou fácil, posto que os três britânicos procuraram discretamente que a norte-americana não se sentisse excluída. A Maxie a comoveu essa consideração e a divertiu um pouco também. Tão óbvia fora sua impressão diante da casa Candover no momento de sua chegada? Pelo visto sim, embora não pelos motivos que a duquesa acreditou. 175
Os homens passaram por cima dos prazeres do Porto para acompanhar às damas a tomar o café no salão. Isso alegrou a Maxie; embora a duquesa fora toda amabilidade, não se sentia preparada para estar a sós com ela, a amante do Robin; a ex-amante. Quando os Candover se absorveram em uma conversa sobre uma próxima viagem ao campo, os hóspedes caminharam até as amplas portas janelas com suas taças de café. As portas davam a um jardim traseiro, tão exuberante que custava acreditar que estivesse no centro de uma das maiores cidades do mundo. Maxie observou os seus anfitriões. Entre o duque e a duquesa havia um laço tão forte que era quase tangível. - Embora se tenha casado com ele por dinheiro comentou, agora há muito mais que isso entre eles. Robin a olhou perplexo. - De onde tirou a ideia de que Maggie se casou com o Rafe por sua fortuna? - de você, naquela manhã na estalagem Drover. Disse-me que sua Maggie se foi com um homem que podia lhe dar muito mais que você. Fez um expressivo gesto, abrangendo sua volta. - Tudo isto, além de um título ducal; é muitíssimo. De todo modo não tem traços de ser verdade. A duquesa não me parece especialmente mercenária, e pelo que me acaba de dizer, você também é rico. - Outra coisa mais em que a induzi a um engano acidentalmente. Sua intuição é muito correta. Maggie não é uma mulher a quem se possa comprar, só se pode ganhá-la, girou-se a olhar pelos cristais para fora. Quando te disse que se foi com um homem que podia lhe dar mais, referia-me ao aspecto afetivo, emocional, não ao financeiro. O problema nunca dinheiro e posição social. - Continua sendo tão doloroso, Robin? - perguntou-lhe ela em voz baixa. -Agora que a conheço, compreendo por que te é tão difícil esquecê-la. - A dor está no passado. Olhou-a de lado. - Agora estou pensando no futuro. Tocou a ela olhar para fora. Teve a impressão de que estavam movendo-se em um complicado minueto emocional. Um dos dois descobria uma nova percepção e a comunicava, logo se separavam para assimilar a descoberta e depois voltavam a juntar-se. Depois havia outro momento de revelação, e outro passo atrás. Mas cada vez que voltavam a se juntarem aproximavam-se um pouco mais. Talvez fosse necessário que fossem se conhecendo mutuamente a passos pequenos. Certamente ela não estava preparada para comentar a última frase dele. Tinham ocorrido muitas coisas. Trocou o ângulo de seu olhar até ver seu reflexo no cristal da janela em lugar do jardim escuro de atrás. Com seu singelo vestido e decoroso coque quase poderia parecer uma elegante dama de Boston. Sorriu irônica. Coberta de lodo e com aspecto de ter sido arrastada por um matagal agarrada do cabelo? - Não é o elogio mais poético, mas é certo - disse ele. O primeiro... - riu, ou melhor dizendo, o segundo que observei quando me saltou em cima no Wolverhampton, foi o quanto é formosa. - Não te saltei em cima, exclamou ela indignada. - Tropecei. Se não tivesse estado ali espreitando como a serpente do Éden. 176
Ele sorriu, bebeu o que restava do café e deixou a taça em uma mesinha. - Para ser uma pessoa que tinha tantos temores da sociedade londrina, parece bastante a vontade. Ela arqueou as sobrancelhas. - Não esperará que creia que todos são como os Candover na sociedade. - Eles seriam excepcionais em qualquer parte, concordou ele, mas a sociedade não é mais que uma coleção de pessoas, e Londres possui uma enorme diversidade. Pode-se encontrar um círculo agradável e esquecer o resto. Se for por isso, tampouco é necessário passar tempo em Londres. - Minha experiência da sociedade não foi sempre tão afortunada. Maxie detectou a fragilidade de sua voz; pensou em deter-se ali, mas por impulso continuou. Era o momento de dar outro passado do minueto. - Embora os Estados Unidos sejam uma república, há pessoas fascinadas pela aristocracia. Sendo filho de um lorde, com considerável engenho e educação, meu pai era bem recebido nas casas de muitas das chamadas «melhores famílias». Claro que o consideravam excêntrico, por ser mascate de livros e não ter dinheiro. Mas mesmo assim, durante os invernos que íamos a Boston, convidavam-nos para jantar duas ou três vezes à semana. Clérigos, catedráticos, comerciantes ricos, todos recebiam bem ao honorável Maximus Collins. Bebeu o resto do café e deixou a taça na mesinha. Depois voltou a contemplar o jardim. - Foi em uma dessas noites, eu tinha ao redor de vinte anos, quando por acaso ouvi uma conversa entre a senhora Lodge e uma de seus amigas. Assim me inteirei de que Max não aceitava nenhum convite se não me convidavam também. A senhora Lodge estava disposta a tolerar isso para desfrutar do encanto e bom tom do prezado senhor Collins, mas no caso de que a pequena mestiça fosse o chamariz a qualquer homem da família, ela não vacilaria em cortar a relação. Tinha que manter os valores morais, sabe? Era incrível que um cavalheiro como o senhor Collins se casasse com uma selvagem, mas claro, os homens são vítimas impotentes na sua luxúria. Olhou ao Robin de lado. - E, claro, que todos sabiam como eram essas porcas pagãs. Robin soltou uma feroz maldição entre dentes: - Não estranho que pense mal da sociedade se essa foi sua experiência. Apoiou-lhe brandamente a mão no ombro. O agradável calor de seu contato fez mais fácil a ela encolher os ombros com despreocupação. - Nem todos eram assim. Em algumas casas me recebiam bem, e não era uma incômoda necessidade. Jamais contei ao meu pai o que ouvira. Max desfrutava muitíssimo nessas noites. Teria sido uma lástima lhe tirar algumas. Robin aumentou a pressão da mão. - Sem dúvida a senhora Lodge era uma intolerante, mas também é possível que falasse movida pelo rancor que sentem algumas senhoras para as mulheres jovens e atraentes. - Você acredita? - sorriu ela. - Duvido que as senhoras de Boston sejam muito diferentes das de Londres. Tira o 177
preconceito racial e o que fica é exatamente o que qualquer mulher mais velha invejosa poderia dizer sobre uma garota bonita. - É possível que tenha razão. A senhora Lodge tinha três filhas de cara roliça e sem cintura. Maxie esboçou um sorriso perverso, repentinamente divertida por esse incidente que fora uma dor secreta durante anos. - Por que nos resulta mais fácil ser clarividente em relação aos problemas de outra pessoa e não em relação aos próprios? - É uma lei da natureza, assim como o sol sai pelo este e as maçãs caem da árvore, não sobem. Ao ver que ela recuperou o bom humor, tirou-lhe a mão do ombro. - Amanhã vamos a estalagem onde morreu seu pai? Ela ia assentir, mas deteve o movimento, atendida por um repentino pânico. Tinha percorrido a Inglaterra para encontrar respostas, e nesse momento sentia medo. Temia o que ia descobrir, ela temia a perspectiva de que quando estivesse resolvido o mistério da morte de seu pai deveria tomar uma decisão respeito de Robin? Ela o amava, ele desejava casar-se com ela... Deveria ser singelo, mas não era. - Em lugar de ir ali diretamente, talvez devesse visitar primeiro a minha tia Desdêmona. Ela esteve várias vezes com meu pai antes que morresse. Talvez pudesse me contar coisas sobre suas atividades. Ele assentiu. - Acompanho-a ou prefere pedir a Maggie uma criada para que vá com você? - É tediosa a respeitabilidade, - respondeu ela com uma careta de desagrado. - Posto que uma frágil flor como eu não poderia atravessar a cidade só em uma carruagem, prefiro ir com você. Além disso, se resultar que tia Desdêmona seja uma vilã, você me será muito mais útil. - Agradeço devidamente esse voto de confiança, disse ele. - Se não se importa esperar até última hora da manhã, antes quero visitar meu banqueiro e meu alfaiate. Tinha mandado fazer alguns trajes novos. Com sorte, ainda não os terão enviado ao Yorkshire. Olhou a puída manga com expressão avinagrada. - Não vou sentir falta desta jaqueta. - Dá-me isso? Tenho muito boas lembranças dessa jaqueta. - Fique com ela com minhas bênçãos. Olhou-a hesitante. - Permitir-me-ia que te mande fazer um ou dois vestidos? Ter um só vai ser um desconforto aqui em Londres. - Suponho que tem razão, disse ela sem entusiasmo. - Mas não quero perder o tempo em provas. - Não será necessário. A criada de Maggie pode tomar medidas deste vestido. Passeou um admirado olhar por sua figura. - Parece simples, mas o corte e a talha estão muito bons. - Obrigado, eu mesma fiz. A falta de recursos faz maravilhas na variabilidade. Levou a mão à boca para cobrir um bocejo. - Estou a ponto de me retirar. Foi um dia muito comprido. - Vou me sentir muito só nessa cama esta noite, disse Robin em voz baixa. Olharam-se nos olhos. Deus santo, só na noite anterior se fizeram amantes. Nessa mesma manhã tinham saudado a aurora como deuses pagãos da fertilidade, nus e desavergonhados. A lembrança lhe produziu uma excitação que lhe percorreu todo o corpo, ardente, urgente. 178
Robin sentiu o mesmo. - Dar-te-ia um beijo de boa noite, disse-lhe com o pulso vibrante na garganta, - mas se o faço acabaria te levando ao meu quarto e não te deixaria sair até manhã. - Igual nos descobririam no caminho, respondeu ela, tentando sorrir, - o que causaria uma brecha na hospitalidade. - Ninguém vigia os corredores aqui. Agarrou-lhe a mão e lhe acariciou o centro da palma. - Poderíamos passar a noite juntos e ninguém perceberia. Acelerou-lhe o coração quando ele descreveu lentos círculos em sua palma com a ponta de um dedo. Ela olhou suas mãos tocando-se. Nem sequer o mais consumado cerimonioso se escandalizaria ao ver esse ligeiro roçar, e, entretanto a fazia sentir-se... lasciva; tão depravada como se tirasse o vestido em público. Ele deslizou os dedos até a sensível pele do interior do pulso. A carícia no ponto do pulso lhe esquentou o sangue até uma excitação febril. Tragou saliva, disposta a aceitar tudo. - Vou ao seu quarto mais tarde? - propôs-lhe ele com voz rouca. Percorreu-a com um olhar ardente. Eram amantes, conheciam-se seus corpos intimamente e, com a destreza de um ladrão, ele estava forçando a fechadura de sua força de vontade... A imagem lhe produziu desejos de rir e rompeu o feitiço. Afastou-se. - Não, sinto muito. Não tem muita lógica, mas não me parece correto me deitar com você nesta casa. Queria dizer a casa de Maggie, é obvio. Robin fechou os olhos e lhe mudou a expressão, os traços de sua cara se esticaram e endureceram. Quando voltou a olhá-la, tinha retornado a razão. - Compreendo, mas eu gostaria que não se sentisse assim. Ela fez gesto de partir, mas se deteve. - Não terá pesadelos se estiver sozinho, não é? - Se os tiver, não serão tão terríveis como os que tive no passado. Sorriu-lhe com uma ternura tão íntima como um beijo. - Tinha razão, as cargas são mais leves quando se compartilham. Quando se dirigia a dar a boa noite aos seus anfitriões, ela pensou no quão fácil seria ao Robin aproveitar sua preocupação por seus pesadelos para a convencer a de ir a sua cama. Sob todo seu perigoso encanto e iníquas habilidades, havia realmente um homem honrado. Era um agradável pensamento para levar ao seu repouso solitário. O duque do Candover estava escovando os longos cabelos cor trigo dourado de sua mulher. Margot estava reclinada no respaldo da poltrona, com cara de satisfação e os olhos meio fechados. - O que te parece a amiga de Robin, Maxie? - Eu gosto dela, respondeu ele sorrindo. Contou-te Robin como foi que apareceram em nossa porta? - Não com detalhes, - respondeu ela e depois de um momento acrescentou. - Deseja casar-se com ela. - Não me diga! - Rafe interrompeu o escovado. - Não a conhece há muito tempo. - E o que importa? Eu desejei me casar com você na mesma noite em que te conheci. 179
Ele se sentiu absurdamente agradado, e reatou a tarefa. - Nunca me havia dito isso. - Já é bastante presunçoso sem isso, disse ela, - e logo deu um salto e um chiado quando lhe fez cócegas nas costelas. - Seu estilo não é nada comum, comentou ele. - Inteligente, nada convencional, versátil. Bastante parecida com o Robin, na realidade. E muito bela, em um sentido muito individual. - Sabia que te fixaria nisso, disse a duquesa em tom mordaz. Ele sorriu. - Eu prefiro as loiras. Deixou a um lado a escova e começou a lhe massagear a nuca e os ombros. - Você se incomoda em vê-lo com outra mulher? Acho um pouco surpreendente que a tenha trazido aqui. - A mim, em troca, surpreender-me-ia e me doeria se Robin não se sentisse com a confiança vir para mim. Sorriu como se burlando um pouco de si mesma. - Suponho que toda mulher, em alguma curva egoísta de sua mente, gostaria que seu ex-amante a recordasse com um patético suspiro e com as palavras «Que mulher era. Oxalá as coisas tivessem sido diferentes...». - Como pensei eu de você durante doze anos? - Exatamente, disse ela com um gorjeio de risada. - Mas de verdade, desejo ver Robin feliz, não amargurado pelo passado e nem se casando com alguma garota insípida porque se sentia sozinho e não encontrou outra melhor. - Não o imagino fazendo algo tão estúpido. - Eu não estava tão segura, disse Margot com uma fina ruga no sobrecenho. - Estive preocupada com Robin desde que nós viemos de Paris. Embora suas cartas sempre fossem divertidas, eu as notava frágeis, como se ocultasse o verdadeiro estado de sua mente. Mas esta noite quando o vi, voltava a ser o antigo Robin. Depois de momento acrescentou: não, estava melhor. - Tem sua aprovação, a tal Máxima? - Muitíssimo. Margot se pôs a rir. - A pobre garota estava arrepiada como uma gata furiosa quando nos apresentou, porque Robin não se incomodou em lhe explicar aonde a trazia, mas em geral, comportou-se com enorme comedimento. Em um mundo cheio de mentiras, ela é alguém. - Sugiro-te que vá com tato em suas manifestações de amizade, disse Rafe em tom irônico. - É possível que à senhorita Collins não entusiasme muito a íntima amizade do Robin com outra mulher. Ouvindo entre linhas, Margot inclinou a cabeça para trás. - Suponho que sabe que não tem porque te sentir ciumento de Robin, não é? Pensou que se tinham feito bons amigos. Rafe lhe deslizou a mão lhe acariciando a garganta arqueada para trás. Embora aprendeu a aceitar a amizade de sua mulher com Robin, isso não lhe tinha resultado fácil, sendo um homem apaixonado e possessivo. - Ciumento não, invejoso talvez, por todos os anos que te teve e eu não. Ela negou com a cabeça, com seus solenes olhos verde cinza fixos nos seus. 180
- Tinha a Maggie, a espiã. Mas as circunstâncias que a criaram já acabaram e ela também. - Isso eu sei. Agora é Margot. Inclinou-se e lhe deu um beijo lento e possessivo. - E Margot é minha. Depois a agarrou em seus braços e a levou a cama, onde demonstrou isso do modo mais profundo e satisfatório. Era muito tarde quando lorde Collingwood chegou ao hotel Clarendon, mas Apesar de seu cansaço, teve dificuldades para conciliar o sonho. Depois de meia hora se agitando e dando voltas na cama, sentou-se e agarrou a garrafinha de licor que deixou na mesinha de noite. Sem acender o abajur, bebeu diretamente da garrafinha, pensando em sua missão. Era possível que Máxima já estivesse em Londres. Talvez, não o permitisse Deus, já descobriu a verdade sobre a morte de seu pai. Essa ideia o fez sentir-se mal. Bebeu outro gole de conhaque. À situação que já era perigosa suficiente para um escândalo, somava-se o saltimbanco loiro que viajou com Máxima. Se ainda estava com ela, esse homem seria causa de problemas; teria que eliminá-lo do quadro. A situação estava mal olhasse por onde a olhasse. O que piorava todo era que tinha bastante afeto a jovem, apesar de suas peculiares educação e antepassados. Por isso teve todo esse trabalho. Se fracassasse, Althea diria que era culpa dela, por não ser mais insensível. Afogando um suspiro, voltou a colocar a cabeça debaixo da almofada. A família era o mesmo um inferno.
CAPÍTULO 28
Desdêmona entrou em seu ensolarado salão de visitas, desfrutando do prazer de estar novamente em sua casa. Tudo lhe parecia tão normal que quase chegava a acreditar que as últimas semanas de loucura foram pura imaginação, consequência de comer muita lagosta ou de muitos jantares políticos. Ao ouvir o ruído de uma carruagem deter-se fora apareceu à janela e sorriu. Não havia nada imaginário na atlética e larga figura do marquês do Wolverton, que nesse momento subia os degraus. Havia-lhe dito que essa manhã a visitaria na insólita hora das onze, e o relógio estava dando essa hora quando ele chegou à porta. Gostava de um homem em que se pudesse confiar. Enquanto esperava que o fizessem passar, puxou o cordão para ordenar que lhes levassem café. Uma vez trocadas as saudações e servido o café, Giles lhe disse: - Meu irmão está em Londres. Na realidade, teria encontrado com ele no banco se tivesse chegado uns minutos antes. - Esplêndido! Deram-lhe alguma ideia sobre onde se aloja? - Desgraçadamente não, mas pelo menos sei que está em Londres e que não está 181
oculto para evitar que o encontrem. Em um ou dois dias o localizarei, e certamente ele saberá onde está sua sobrinha. Ela estava a ponto de replicar quando entrou sua criada lhe fez uma inclinação. - Perdoe, milady, mas vieram vê-la a senhorita Máxima Collins e lorde Robert Andreville. Inspirou pelo nariz, em sinal de desaprovação: - Nenhum dos dois tem cartão de visita. Desdêmona a olhou boquiaberta. Repondo-se imediatamente, disse: - Faça-os passar de todo modo, Alice. Um minuto depois, o objeto de sua longa perseguição entrou tranquilamente na sala. A Desdêmona haviam dito que sua sobrinha era baixa, morena e atraente, mas essa descrição não fazia justiça à realidade. A jovem dama de cabelos cor de ébano que entrou era miúda, dona de si mesmo e sua cara era tão formosa como sua figura perfeitamente proporcional. Embora seu vestido de musselina fosse recatado, nada fazia Máxima Collins parecer com uma senhorita mosca morta tal como tinha imaginado. Não dava nenhuma impressão de ser uma pessoa que caísse facilmente vítima da vida. Máxima observou a sua alta tia ruiva com igual surpresa. Desdêmona pensou que deviam parecer duas gatas tocando os narizes com curiosidade. - Espero que perdoe esta inesperada intrusão, tia Desdêmona, disse Máxima. Indicou o seu acompanhante. - Ele é lorde Robert Andreville. Robin, lady Ross. Desdêmona deu um rápido olhar ao acompanhante de sua sobrinha, seguido por outra mais longo que distava pouco de ser descortês. O dourado lorde Robert tinha aspecto de cavalheiro, não de patife e era suficientemente bonito para fazer perder a cabeça a qualquer mulher. Não estranhava que a garota tivesse fugido com ele. Ele se inclinou elegantemente diante sua anfitriã. - Seu servidor, lady Ross. Depois se endireitou com um sorriso que teria produzido palpitações a uma mulher mais vulnerável. Não sendo vulnerável, ao menos não nesse momento, Desdêmona o obsequiou com um olhar lúgubre e uma leve inclinação da cabeça. - Minha querida menina, disse a sua sobrinha, - quanto me alegra ver-te por fim. Estive muito preocupada com sua segurança. - Mas por quê? - perguntou Máxima com os olhos muito abertos e inocentes. Desdêmona ouviu um sorriso, proveniente do marquês. Pela extremidade do olho viu que este estava desfrutando enormemente da situação. Lorde Robert não percebeu a presença de seu irmão, mas ao ouvir a risada, olhou para o lugar de onde provinha. - Giles! Mas que coincidência! Não sabia que pensava em vir a Londres esta primavera e nem que conhecesse lady Ross. - Não conhecia a lady e nem pensou vir a Londres, respondeu Wolverton. - Você é o responsável por ambas as coisas. - Eu? - Lady Ross e eu estivemos percorrendo a Inglaterra durante as duas últimas semanas, separados e juntos, tentando encontrar vocês dois, explicou o marquês. - E agora 182
vem aqui, brandos como manteiga, como quem faz uma visita matutina a uma tia anciã. - Tia Desdêmona não é anciã, fez notar Máxima. - Obrigado, murmurou a tia não anciã, pensando que a situação estava se descontrolando rapidamente. - Embora para ser justos, jamais estIve controlada. - Falava em sentido metafórico, respondeu Giles olhando a Desdêmona com um tenro sorriso. - De fato, já percebi que não é anciã. Senhorita Collins, posto que a confusão parece ser a ordem do dia, permita que eu me apresente. Sou Wolverton, o irmão mais velho de seu malandro acompanhante. - Ah, sim - disse ela, amavelmente, - o que se morre, Deus não o permita, faria nobre ao Robin imediatamente. Wolverton pestanejou, como tratando de captar isso e assentiu. - Exatamente. - Creio que todos deveríamos nos sentar a beber café, disse Desdêmona com uma voz de heróico comedimento, puxando o cordão para ordenar que trouxessem mais taças e outra cafeteira. Máxima se sentou em frente a sua tia. - Porque estava preocupada comigo, tia Desdêmona? É que lhe escreveu o tio Cletus? - Cheguei ao Chanleigh pouco depois de sua fuga. Em resposta as minhas perguntas, Cletus e Althea reconheceram que tinha partido inesperadamente e que era provável que tivesse pouco dinheiro. Deduzi que se vinha a Londres, fá-lo-ia do modo difícil. Chegou outra bandeja e Desdêmona serviu café para os recém chegados. - Uma jovem sozinha, caminhando centenas de quilômetros por um país desconhecido cheio de patifes, ladrões e Deus sabe o que mais... é óbvio que me preocupei. Portanto, decidi te seguir. - Isso foi muito amável de sua parte, tia, mas não tinha porque ter se preocupado. Os grandes olhos castanhos de Máxima refletiam uma doce surpresa pelo fato de que alguém se angustiou. - Foi uma viagem agradável e interessante, e não ocorreu nada digno de menção. Lorde Robert emitiu um som como se engasgasse. Máxima abandonou a doçura e lhe dirigiu um olhar fulminante. Imediatamente ele recuperou sua expressão de fingida inocência e olhou o seu irmão. - Como você entrou nisto, Giles? - A lady Ross disseram que sua sobrinha fora raptada à força por meu irmão mulherengo, foi a sucinta resposta. Lorde Robert arqueou as sobrancelhas. - Por favor, Giles, mulherengo? O que fiz nos meses que passei em Wolverhampton para merecer isso? - Isso foi o que me disseram os aldeãos, disse Desdêmona friamente. - De modo que fui ao Wolverhampton fazer averiguações. - Lady Ross não faz justiça à ocasião, disse animadamente o marquês. - Em realidade, irrompeu em minha biblioteca como uma fúria vingadora, golpeou violentamente a mesa com seu guarda-sol, acusou-te e condenou, em ausência, de toda sorte de delitos e baixeza moral, ameaçou-te com toda a força e majestade da lei e partiu feita um furacão. 183
Com o rosto vermelho granada diante dos interessados olhares de sua sobrinha e lorde Robert, Desdêmona olhou o marquês zangada; certo que naquele dia havia atuado com violência, mas era muito pouco cavalheiresco dizê-lo. - Mulherengo, baixeza moral? - repetiu lorde Robert, olhando compreensivo a sua anfitriã. - Tendo ouvido isso, evidentemente não tinha outra opção que tentar resgatar de mim a sua desventurada sobrinha. Máxima sorveu pelo nariz, em eloquente reação ao comentário de lorde Robert. - Compreendo esses temores, tia, mas eram infundados. De fato, lorde Robert insistiu em me acompanhar, exclusivamente por minha segurança. Ele supôs, igual a você, continuou, com um tom de exasperação em sua mesurada voz, - que eu era uma incompetente necessitada que não teria sobrevivido a viagem. - Esse engano não durou muito, Maxie - disse lorde Robert, sorrindo com visível afeto. - Maxie? - repetiu Desdêmona. - Que apelido tão vulgar. - Assim me chamava meu pai - protestou sua sobrinha, em tom ofendido - e assim prefiro que me chamem. - Seu pai me chamava de Dizzy, e esse apelido tampouco eu gostava muito, respondeu Desdêmona sarcástica. - Dizzy? - repetiu Wolverton, interessado. - Mas se preferir que te chame de Maxie - continuou Desdêmona, sem fazer caso do marquês, - tratarei de me acostumar. Observou pensativa a figura miúda e sossegada de sua sobrinha. - Talvez devesse deixar de me chamar tia. Só nos separam uns poucos anos de idade, e parece que não tenho feito muito bom trabalho como tia. Possivelmente seria melhor se nos conhecer e tentarmos ser amigas. - Isso eu gostaria de muito, respondeu Maxie, sorrindo timidamente. Desdêmona bebeu uns sorvos de café e suspirou. - Este é um tema desagradável, e talvez muito típico de uma tia, mas não posso deixar de me preocupar sua reputação. Olhou de esguelha lorde Robert. - Sem dúvida as coisas são meio diferentes nos Estados Unidos, mas estará a par dos cânones sociais ingleses, suponho. O suspense ao final da frase insinuava o piedoso desejo de não ter que falar mais. - Se quer dizer o que creio que quer dizer, disse Maxie em um tom cuja frieza teria honrado uma sócia do centro social Almack's, - asseguro-te que lorde Robert se comportou como um perfeito cavalheiro. Já em seguida danificou o efeito, acrescentando em voz baixa um pouco parecido a ela: - Fui eu quem não se comportou. Desdêmona a olhou fixamente, segura de ter ouvido mal. Ao mesmo tempo Giles, que estava mais perto de Maxie, experimentou um acesso de tosse que a olhos vistos era uma fracassada tentativa de dissimular um ataque de risos. Desdêmona decidiu então que mudar de tema era o melhor naquele caso. - Onde está alojada? - perguntou. - Eu adoraria te ter aqui. - Muito amável de sua parte, mas estamos alojados na casa Candover. O duque e a duquesa foram muito hospitaleiros. O marquês levantou a cabeça, surpreso. 184
- Estão alojados com o Candover e sua esposa? - perguntou. - Sim, respondeu lorde Robert com um indício de desafio na voz. - Por que não? - Porque não, na realidade? - murmurou Giles. Desdêmona estranhou a surpresa de Giles e o tom de lorde Robert, mas decidiu guardar sua curiosidade para quando estivesse a sós com o Giles. Voltou a atenção a sua sobrinha. - Partiu tão repentinamente de Chanleigh porque Althea te amargurava a vida? Não suporta ninguém que esteja em desacordo com ela. Maxie guardou silêncio um momento, pesando a resposta. - Isso foi parte do motivo, disse finalmente. - Também desejava te conhecer antes de voltar para os Estados Unidos. A Desdêmona não lhe ocorreu nunca essa possibilidade, que, pelo resto, era bastante lógica. - Parte da Inglaterra? Os vivos olhos castanhos da jovem se escureceram. - Meus planos são meio incertos. Em certo sentido, a ideia de que Maxie retornasse aos Estados Unidos era um alívio para a Desdêmona; nesse caso, qualquer imprudência que tivesse cometido o casal não teria consequências escandalosas. Embora claro, pensou, com renovado pessimismo, sendo a natureza como era, bem poderia haver outro tipo de consequências. Maxie deixou de lado a taça de café e se inclinou para ela com as mãos entrelaçadas na saia. - Por favor, Desdêmona, se não se importar, poderia... poderia me dizer algo sobre as vezes que viu meu pai antes que ele morresse? Ao ver a cara séria de sua sobrinha, Desdêmona adivinhou o verdadeiro motivo de sua vinda a Londres. Max quis muitíssimo a sua filha, e certamente esse sentimento fora mútuo. Tinha que ser muito terrível para ela que seu pai tivesse morrido sozinho e longe. - Mas claro que eu gostaria de falar dele - disse, reclinando-se no sofá com um sorriso nostálgico. - Foi muito agradável voltar ver o Max. Eu era só uma menina quando partiu aos Estados Unidos, mas me escrevia cartas maravilhosas. Sorriu. Por certo, tenho seu relógio. O encontramos no corpo de um bandoleiro morto. Esta notícia deu pé a uma animada série de explicações por ambos os lados. Quando acabaram os comentários do incidente, o marquês ficou de pé. - Vocês senhoras, terão muitíssimas coisas que a dizer. Se quiser, Robin, pode deixar sua carruagem à senhorita Collins, e eu te levarei aonde queira ir. Robin olhou ao Maxie e esta assentiu. Depois de um revôo de despedidas, os irmãos saíram da casa e subiram a carruagem do Wolverton. - Onde quer ir? - perguntou Giles. - A Whitehall, por favor. Posto que tenho a tarde livre, bem poderia fazer uma visita aos meus antigos colegas. Robin se sentou no assento com a vista para trás, frente ao seu irmão. - Dá a impressão de que lady Ross te meteu em uma boa confusão. - Não mais que sua sobrinha a ti. Dadas as ameaças de sua senhoria contra todos e cada um dos Andreville, decidi que era meu dever lhes encontrar antes que ela, se por 185
acaso fosse possível evitar assim o escândalo ou seu encarceramento. Giles deixou seu chapéu no assento. - Conseguiu lhes alcançar Simmons? Robin elevou as sobrancelhas, surpreso. - Sim, em Market Harborough. Como soube dele? - Encontrei-o isso perto de Blyth e o levei em minha carruagem. Estava cuidando de suas lesões e planejando se vingar do «amante loiro» que lhe assaltou desde atrás. - Pois claro que lhe assaltei por trás; o tipo me dobra em tamanho, explicou Robin com lógica irrefutável. Se há algo que aprendi com os anos, é que «lutar limpamente» é um luxo perigoso. - Suponho que ele é o homem que enviou lorde Collingwood atrás de sua sobrinha. - Exatamente. Robin encolheu os ombros. - Ela não queria ir com ele. - Isso parece. Simmons me disse que ela lhe apontou com uma pistola. - A vida nos bosques do Novo Mundo é bastante distinta a de um salão de Londres, de modo que tem o costume de resolver os problemas com certa franqueza, sem rodeios. Em Market Harborough, por exemplo, tive que lhe impedir que cravasse uma faca nas costelas de Simmons. Quando nos conhecemos, custou-me muito persuadi-la de que aceitasse meu amparo porque pensava que eu era um inútil. - Não é primeira em cometer esse engano, disse o marquês com um sorriso nostálgico. - A senhorita Collins não é absolutamente o que imaginava. Nessa furiosa entrevista em que conheci lady Ross, quando ela te acusou de ser um vil sedutor, eu contra-ataquei lhe dizendo que ela e sua sobrinha tinham planejado tudo para te apanhar. Robin riu. - A ninguém que conheça o Maxie ocorreria algo assim. Não tem nem um só osso enganoso em seu delicioso corpo. Seu estilo é o ataque direto, de frente em plena luz do dia, não o ataque furtivo. Olhou de esguelha ao Giles. - Pedi-lhe que se case comigo. Porá objeções se me aceitar? Giles arqueou as sobrancelhas. - Importaria se o fizesse? Os dois são maiores de idade. - Se a pergunta é se sua desaprovação me deteria, a resposta é não. Mas preferiria muito que a acolhesse bem na família. Nem sempre foi aceita como merece. Robin desceu a vista para fazer um leve ajuste à manga de seu elegante traje. - Pensei que é hora de assentar a cabeça. Giles se pôs a rir. - Não vejo muito claro como casar-se com uma mulher tamanho minúsculo que tem a coragem de atravessar toda a Inglaterra a pé, atacar a um boxeador profissional e jantar com uma duquesa seja o que chamaríamos de «assentar a cabeça», mas, por isso vale, tem a minha bênção. Creio que farão muito bom casal. Resiste a dama? - Tem suas dúvidas, respondeu Robin, e acrescentou rindo: - Mas estou me valendo de todo meu legendário encanto para convencê-la. Quando Robin desceu da carruagem diante da porta do Whitehall, Giles fez uma fervente oração mental rogando que a garota aceitasse sua proposta. No instante mesmo em que o casal fez sua entrada no salão de lady Ross, teve claro que Robin se recuperou da negritude da alma que o afligia. Se for necessário uma feiticeira com caráter para que 186
Robin voltasse a rir, ele estava mais que disposto a lhe dar a boas-vindas como cunhada.
CAPÍTULO 29
Quando Maxie voltou para a casa Candover se sentiu aliviada ao comprovar que Robin ainda não tinha retornado. Isso significava que teriam que deixar para o dia seguinte a visita à estalagem onde morreu seu pai. A inquietação e o temor pelo que descobririam ali tinham aumentado. Em sua conversação com a Desdêmona, esta lhe disse que tinha notado nervoso ao Max durante sua estadia em Londres; uma sombra de angústia se abateu sobre ela ao ouvir isso: era muito provável que ele se envolveu em algum projeto nefasto que lhe trouxe o desastre. Quanto a Desdêmona, achava-a encantadora. Por fim encontrava uma parenta inglesa com quem realmente se sentia família. Seu pai lhe havia dito várias vezes que ela lhe recordava sua irmã pequena, e ao conhecer a Desdêmona entendia por que. Sob suas diferenças superficiais, as duas se pareciam muito. Sua tia podia ser uma excêntrica teimosa segundo o critério estreito da sociedade inglesa, mas não lhe cabia dúvida de que se arrumaria esplendidamente nas isoladas regiões da América do Norte. O irmão de Robin também era uma agradável surpresa. Embora quase não tinham semelhança física, o marquês se parecia bastante ao Robin na atitude tolerante e nesse indefinível sorriso que animava sua expressão. Também se tinha mostrado simpático com ela, apesar de todo seu histórico. Talvez fosse possível que não pusesse objeções a que ela entrasse para formar parte da aristocrática família Andreville. Tão logo entrou em seu dormitório se dirigiu ao roupeiro para pendurar sua capa. Ao abrir as portas teve que afogar uma exclamação de surpresa. Nas poucas horas transcorridas desde que Robin lhe sugeriu aumentar seu guarda-roupa, tinham aparecido quatro vestidos, com sapatos combinando alinhados abaixo. Além disso, nas prateleiras de um compartimento do roupeiro havia complementos e acessórios tais como luvas, meias e xales, muito bem dobrados e ordenados. Pendurou o chapéu e depois tirou o vestido mais chamativo; era um formoso vestido de noite de seda em uma tonalidade carmesim que assentaria admiravelmente à cor de sua pele. Não se incomodou em provar nenhum dos vestidos. Misturados os talentos de Robin e Maggie, seguro que todos ficariam bem. Deveriam formar uma equipe formidável em sua época de espiões. Quando fechou as portas do roupeiro, esboçou um sorriso irônico. Robin não precisava estar presente para distraí-la de sua obsessão por seu pai. Nesse momento podia meditar sobre ele. Era incrivelmente forte a tentação de aceitar às cegas sua oferta de matrimônio, antes que trocasse de opinião. Mas não conseguia desfazer-se da ideia de que sua principal virtude era estar disponível, quando a mulher que tinha escolhido primeiro não mais estava. Se ela não estivesse apaixonada por ele, caberia a possibilidade de que conseguissem formar um matrimônio agradável, desfrutar da mútua companhia e de seus corpos sem conflitos importantes; embora não chegassem às alturas de um matrimônio por 187
amor, tampouco chegariam ao mais vil. Mas dado que ela o amava, a desigualdade nas emoções seria desastrosa. Viver com Robin seria para ela como um lento veneno, sabendo sempre que a tinha escolhido principalmente por ter estado ao seu lado quando estava passando uma má noite. Cansativamente pressionou as têmporas com os dedos. A menos que Robin desejasse verdadeiramente casar-se com ela, Máxima Collins, mestiça norte-americana que não tinha nada de dama, seria uma tola se o aceitasse. Quando retornasse aos Estados Unidos, ele a esqueceria logo. Resmungando, decidiu procurar uma distração para não começar a comer os móveis. Estava disposta a ser sábia e nobre em sua rejeição ao Robin, mas ter que ser também elegante era condenadamente pedir muito. Afrouxando as mandíbulas, desceu à biblioteca; quando esteve ali na noite anterior, Candover percebeu o claro desejo em sua cara e a convidou a explorar seu conteúdo. Não havia ninguém na imensa sala. Embora lhe chamou a atenção uma bola negra peluda que estava sobre uma poltrona; depois de observá-la atentamente, chegou à conclusão de que ou era um abrigo de pele que não estava em seu lugar ou era um gato dormido. Começou a explorar, tirando livros ao azar das prateleiras. Comprovou que Candover tinha livros que sempre desejou ler e nunca conseguiu. Havia livros de poesia, história, filosofia, arte e todo o resto capaz de desafiar e deleitar a mente. Resolveu proceder com método, de modo que fez rodar a escada até o outro extremo da longa sala e se encarapitou na plataforma superior. Ali agarrou um livro da prateleira mais elevada e, sem a menor preocupação pelo decoro, arregaçou o vestido e se sentou com as pernas cruzadas. Alegremente calculou que, se se aplicasse, terminaria sua excursão pela biblioteca em algum momento dentro de uns anos. Imersa em uma novela epistolar de Montesquieu, já quase esqueceu onde estava quando a tirou de sua abstração o ruído da porta ao abrir-se. Levantou a vista do livro e viu entrar a duquesa, que depois de fechar a porta apoiou as costas nela. Maxie franziu o cenho; a duquesa devia acreditar que estava sozinha, posto que não olhou para cima. Pensou que talvez devesse anunciar sua presença, mas nesse momento à duquesa deu uma vertigem e, cambaleante, conseguiu chegar a um sofá. Alarmada, Maxie se apressou a baixar da escada. - Sente-se mau, excelência? Chamo a alguém? A bela cara da duquesa tinha uma tintura cinza esverdeado que não combinava com seus olhos. - Não - respondeu, tentando sorrir. - Vim para cá para evitar alarmar a alguém. Rafe tem a todos os criados da casa revoando a meu redor, e ele é o pior de todos. Reclinou-se no respaldo e fechou os olhos. - Não me passa nada, além de que ainda não entendi o truque de levar bem a gravidez. A maioria das mulheres se sentem mal pela manhã, mas me ocorre pela tarde. - Compreendo, disse Maxie compreensiva. A julgar pela estreita cintura, era evidente que estava muito ao começo da gravidez. Recoste-se e ponha os pés sobre o sofá. Enquanto a duquesa obedecia docilmente, ela agarrou uma manta de outro sofá e a 188
estendeu em cima. - Talvez lhe conviria comer algo leve. A duquesa estremeceu. - A muitas mulheres dá bom resultado comer várias vezes com o passar do dia, continuou Maxie em tom tranquilizador. Nada complicado, talvez algo como chá com bolachas. A duquesa pensou. - Vale a pena tentar. Transcorrido um quarto de hora, quando a futura mãe já tomou, com certo receio, dois pãezinhos doces quentes com uma taça de chá, recuperou sua cor normal. Estava sentada com as pernas dobradas em um extremo do sofá. - Obrigado pelo conselho, disse. Sinto-me incrivelmente melhor. Ao menos, até a próxima vez, acrescentou com uma careta. - Não se preocupe, excelência, as náuseas desaparecem em algum momento depois do terceiro mês. - Fala como uma parteira, comentou a duquesa, sem poder evitar um tom de curiosidade na voz. Maxie tragou o último bocado de pãozinho doce. - Não sou parteira, mas tive um passado bastante movimentado. Contou-lhe Robin algo de mim? - É obvio que não - respondeu sua anfitriã, olhando-a com expressão severa. - Robin é o último homem sobre a terra que diria algo sobre os assuntos particulares de outra pessoa. Às vezes é impossível obter que diga algo útil sobre alguma coisa. E eu gostaria que nos conhecêssemos. Chame-me de Margot. - Não Maggie? - Meu verdadeiro nome é Margot e esse é o que uso agora. Maggie é um apelido que me pôs Robin, e durou todo o tempo que trabalhei como espiã. Seguro que para ele sempre serei Maggie, como para mim ele nunca será lorde Robert. Inclinou sua dourada cabeça como tentando decidir se dizia mais ou não. Tomada a decisão, continuou: - sei que sente incômoda comigo, mas não sou nenhuma ameaça para você. Justamente o contrário, eu gostaria que fôssemos amigas. Maxie pensou que a duquesa merecia consideração por confrontar francamente uma situação violenta. - Não foi minha intenção pagar com má sua educação sua hospitalidade, mas sim reconheço que me custa compreender a relação entre você e Robin. - Não foi mal educada. Creio que levou muito bem uma situação em que a maioria das mulheres teria reagido com ataques de histeria. Margot bebeu um pouco de chá, pensativa. - Conheci o Robin quando me salvou, com enorme perigo para ele, de um grupo de revolucionários franceses que tinham matado o meu pai. Eu sentia um imenso desejo de lutar contra Napoleão da forma que pudesse, de modo que decidimos trabalhar juntos. Éramos muito jovens e só podíamos confiar um no outro; havia muitíssimo carinho entre nós dois. Foi fácil e muito gratificante nos converter em amantes. Entretanto, eu já conhecia Robin há doze anos quando me inteirei de seu verdadeiro nome, sua posição social e sua 189
nacionalidade. Deixou a taça na mesinha e começou a fazer girar seu anel de núpcias, distraidamente. - Pode ser difícil entender isto fora do contexto da guerra. Robin ficava ausente durante meses, arriscando sua vida de modos nos quais eu tentava não pensar. De repente, um dia qualquer reaparecia, alegre e amável, como se tivesse saído a dar um passeio na esquina. Estou segura de que há muitíssimas coisas que não me contou nunca para não me preocupar mais. Em alguns aspectos intimávamos muito. Mas havia outras partes de nossas vidas das quais nunca falávamos. Finalmente me pareceu que não estava bem que fôssemos amantes, e isso se acabou. Mas mantivemos a amizade e a confiança, que continuará sempre. Com expressão pensativa e o olhar desfocado, continuou: - Talvez o resultado teria sido distinto se eu não tivesse estado apaixonada pelo Rafe desde antes de conhecer o Robin, isso é impossível saber. Mas creio que Robin e eu somos muito parecidos para formar um casal ideal. Em um tom mais vivo e enérgico, acrescentou. Talvez agora entenda melhor por que desejo ver Robin feliz. Maxie sentiu oprimida a garganta. Não podia ser fácil para a duquesa despir sua alma diante de uma mulher que era virtualmente uma desconhecida. - Agradeço sua franqueza, Margot. - Vai em meu próprio interesse me entender bem com você. Se me tomasse antipatia, isso afetaria minha amizade com o Robin, e eu não gostaria de nada. Sorriu com um brilho travesso nos olhos. - Possivelmente te serviria tentar pensar que Robin e eu somos irmãos. Ao Rafe foi muito útil. Para não delatar seus pensamentos, Maxie se inclinou a servir-se de outra taça de chá. Ao Robin e Candover tinha que ter resultado difícil fazerem-se amigos, amando a mesma mulher, mas pelo visto tinham obtido. Ela deveria fazer o possível para igualar essa maturidade. Além disso, era fácil tomar simpatia a Margot. Elevou a vista e a olhou. - O que faz é mais que generoso, para o Robin e para mim. É fácil entender por que ele está apaixonado por você. - Robin nunca esteve apaixonado por mim. Nem antes e nem agora, disse Margot com firmeza. Fez gesto de continuar, mas se deteve. - Não direi nada mais. Talvez já tenha dito muito. A conversação tinha convencido ao Maxie de que Margot não estava apaixonada pelo Robin, mas não havia nada em suas palavras que demonstrassem que o inverso não era assim. De todos os modos, a duquesa lhe oferecia um ouvido feminino sábio e tolerante, e decidiu se aproveitar isso. - Robin me pediu que me case com ele - disse com certo hesitação, - mas me faz difícil imaginar que em seu mundo aceitem a uma pessoa com minha mestiçagem. - Isso é tolice. Tem boas maneiras, educação e beleza. Com isso e um pouquinho de arrogância, será aceita na mesma corte do Rei. O truque é não pedir jamais desculpa pelo que é. Maxie sorriu. - Isso parece ser algo que aprendeu do modo difícil. Mas seguro que não teve nenhuma dificuldade para ocupar seu lugar na sociedade. 190
- Surpreender-se-ia, disse a duquesa em tom sombrio. - Quando me casei com o Rafe, minha situação não era muito diferente da tua. Nós duas somos filhas dos filhos mais novos de famílias nobres, de um berço respeitável, mas não da categoria superior. Você tem o que chama de sua mestiçagem, enquanto eu tenho um passado claramente turvo. Havia muitíssimo assunto para fofocas, e eu não era o que os Whitboume desejavam para o cabeça de família. Maxie franziu o cenho. - Todos sabem o que houve entre você e Robin? - Essa é uma das coisas que sabem muito poucas pessoas e todas elas são discretas. Mas era impossível ocultar meu trabalho como espiã, eram muitas as pessoas que me viram e conheceram quando fazia o papel de uma escandalosa condessa húngara. - Entretanto a sociedade te aceitou, disse Maxie fascinada. - Por sorte, respondeu a duquesa com um sorriso travesso, Rafe tem à Medusa entre seus antepassados. Quando uma pessoa lhe desagrada ou o ofende, é capaz de convertê-la em pedra com um olhar. Desde o começo deixou muito claro que qualquer que fora mal educado comigo estava sentenciado. Maxie riu. - Deixou petrificada a prima Whitboume que te deu de presente a estatueta do Laocoonte? - Não, mas pouco depois se encontraram em um baile, já partir de então a senhora foi incrivelmente educada comigo. - Faz parecer possível a vida aqui, comentou Maxie muito séria. - Se a desejar, está ao alcance de sua mão. A duquesa a olhou com expressão sagaz. Está disposta a pôr a prova suas asas sociais? Esta noite vamos ter uma pequena reunião com jantar. Não vai ser um dos jantares políticos do Rafe; só virão uns poucos casais; pessoas que são muito amigas nossas e autenticamente simpáticas. Não está obrigada a assistir, mas se quiser tentar, posso convidar também a sua tia e ao irmão de Robin, para que haja umas poucas caras conhecidas. Tão logo?, pensou Maxie. Mas, sobrepondo-se a sua primeira reação de pânico, disse: - Esta noite é tão boa como qualquer. - Bem feito! Seriamente, creio que vai passar bem. Era possível que sim, mas nem sequer isso seria suficiente para dissipar a névoa negra que seguia obscurecendo seu futuro. Essa só ideia bastou para lhe escurecer a alegria da tarde. Resolvida a não ceder à angústia, assinalou com um gesto a bola negra que estava na poltrona contígua. - Isso é um gato ou um abrigo de pele? - Um gato. Chama-se Rex. Maxie observou atentamente a pele negra sem cara - Está doente? Não se moveu desde que entrei aqui, faz uma hora e meia. - Não se preocupe, não está morto, só está cansado - disse Margot. - Muito, muito cansado, acrescentou rindo. Sabendo que era o centro de atenção, Rex se espreguiçou satisfeito, mostrando um robusto corpo felino. Depois ficou de costas com as quatro patas ao ar e reatou sua sesta. 191
Qualquer tensão que tivesse ficado na sala se dissolveu quando as duas mulheres soltaram uma risada juntas. Maxie decidiu que fosse o que fosse que contivesse o futuro, estava muito contente de ter conhecido Margot. Depois que Máxima partiu, Desdêmona ficou em um agradável estado de satisfação mental e verbal. O dever a tinha motivado a empreender a busca de uma sobrinha desconhecida, e agora era um prazer ter conhecido à verdadeira Maxie, que era muitíssimo mais interessante que essa moça insípida e imaginária que ela tinha acreditado necessitada de resgate. A conversa com Máxima a fez compreender que a vida escolhida por seu irmão havia sido satisfatória. Saber disso a agradava. Talvez fosse sua estadia em Londres o que o fez parecer nervoso ou inquieto quando foi visitá-la. Desdêmona também descobriu uma semelhança, mental e física, entre Max e sua filha. A semelhança estava na cara de sua sobrinha quando ria, em sua educação eclética e em sua ativa mente. Haveria quem pensasse que Maximus Collins tinha desperdiçado sua vida, mas a filha que educou não era um má mostra da sua vida. Lorde Robert também era uma agradável surpresa. Era evidente que estava mais que disposto a fazer o devido com Máxima, e a garota não era indiferente a ele. Seria um matrimônio excelente. Desdêmona se reclinou no respaldo do sofá e sorriu ao ceu raso, repreendendo-se por ter esse pensamento tão pouco progressista. Ela era uma mulher moderna e independente, e teria estado totalmente disposta a manter a sua sobrinha se esta não tivesse desejado casar-se com o homem que a tinha comprometido. Mas esse apoio não seria necessário, e não só porque Máxima era muito capaz de cuidar de seus próprios assuntos. Nos últimos dias tinha começado a pensar que o matrimônio não era algo necessariamente mal, ao menos quando estava baseado em respeito e afeto mútuos. Seu sorriso se ampliou quando lhe veio à cabeça outro pensamento indigno. Lorde Robert era rico, inteligente, bonito, de caráter... pouco convencional mas honrado e pertencia à camada mais elevada da sociedade. Althea ficaria absolutamente apoplética se sua desprezada sobrinha mestiça se casasse com esse homem supremamente desejável; a perspectiva era deliciosa. Depois de sentir prazer uns quantos minutos mais em sua contemplação abençoada, foi ao seu estudo ocupar-se da correspondência que se acumulou durante sua ausência. À medida que ia baixando o montão, percebeu que a maioria das cartas estavam relacionadas com seu trabalho. Quando deixou de ter tempo para seus amigos ? Deveria alargar os limites de sua vida. Por volta do final da tarde, entrou a criada com um recibo e uma nota. - Acabam de trazer isto, milady. O lacaio está esperando. Vai enviar resposta? Desdêmona leu a nota. Era da duquesa do Candover, para convidá-la a um jantar com um grupo de amigos essa noite. Dado que a senhorita Collins poderia sentir-se coibida entre tantos desconhecidos, a duquesa esperava que ladv Ross lhes honrasse com sua presença. Quase a modo de aplique sem importância, a duquesa dizia que também fora convidado lorde Wolverton. 192
A nota era encantadora. Embora Desdêmona conhecia o duque por seu trabalho político, ainda não conhecia sua flamejante esposa. Era uma amabilidade da duquesa pensar na situação da sua hóspede. Escreveu uma aceitação e a entregou a sua criada para que a levasse ao lacaio. Então entrou em pânico. Deus misericordioso, que vestido podia usar? Puxou o cordão para chamar a sua criada pessoal. Já recuperada do resfriado pego na região central, Sally Griffin apareceu com os olhos brilhantes de interesse. - Há algum problema, milady? - perguntou depois da devida reverência. - Esta noite jantarei na casa Candover, Sally. Minha sobrinha está alojada ali, e a duquesa teve a amabilidade de me convidar para que comprove por mim mesma que está em boas mãos. Titubeou um momento, e logo continuou, sentindo-se ridícula. - Só temos umas horas. Acredita que poderia modificar algum de meus vestidos para que estivesse mais... mais... na moda? A Sally lhe iluminou a cara. - Quer dizer que por fim decidiu exibir o que lhe deu o bom Deus? Sempre te disse que não há nenhuma senhora em Londres que tenha uma figura como a sua. Desdêmona se ruborizou. - Sempre pensei, continuou a criada, que com umas poucas mudanças o vestido marrom de seda Devonshire ficaria muito bonito. Mas não há tempo a perder. Antes que sua senhora pudesse trocar de opinião, Sally lhe agarrou a mão e a arrastou para a escada. - Quando me despediram sem recomendações, eu teria morrido de fome ou teria tido que fazer a rua, se você não me tivesse dado trabalho. Após isso desejei ter a oportunidade de fazer algo por você. Esta noite vai estar muito elegante, ou não me chamo Sally Griffin. Meio protestando, Desdêmona se deixou levar. Dar rédea solta a Sally poderia resultar ser um desastre, mas apostaria a que o resultado não seria aborrecido. E o que certamente não desejava era que Giles se aborrecesse.
CAPÍTULO 30
Uma vez que a criada francesa Lavalle vestiu e penteou Maxie, partiu para cuidar do acerto da duquesa. A desafortunada consequência de ter uma só criada para atender a duas damas era que a que primeiro ficasse pronta tinha tempo de sobra para acumular uma boa quantidade de nervos. Maxie sabia que era uma estupidez preocupar-se tanto por um jantar. Se conseguisse acabar a noite sem envergonhar ao Robin ou a ela mesma era um assunto insignificante no desenho divino das coisas. Muito mais importante era a morte de seu pai e a relação não resolvida entre ela e Robin. De todo modo, passeava-se pelo quarto repetindo em silêncio o conselho da duquesa: «Nunca peça desculpas pelo que alguém é». Foi um alívio ouvir um golpe na porta. Pensando que era Lavalle, que voltava para 193
corrigir algum descuido, respondeu: - Adiante. Quem entrou foi Robin, tão tranquilo como se estivessem em um celeiro da zona central e não na mansão de um duque. Vestido com um traje formal de noite, estava extraordinariamente bonito. Ele arqueou as sobrancelhas, fingindo surpresa. - Perdoe, jovem. Creio que me equivoquei de quarto; procuro uma jovem a quem arrastaram por um matagal agarrada pelo cabelo. Rindo, ela correu a abraçá-lo. - Sinto-me como se fizesse dias que não te vejo, não horas. Com autêntica habilidade de cavalheiro, ele conseguiu abraçá-la sem lhe enrugar o vestido nem lhe desfazer o penteado. - Excelente. Meu objetivo é que chegue ao ponto em que não possa suportar me ter fora de sua vista mais de dez minutos. O terrível era que ela já se sentia assim, embora não queria reconhecer. Retrocedeu e deu uma volta, fazendo girar a seda vermelha ao redor de suas pernas. - Nunca em minha vida pus algo tão elegante. De verdade me assenta bem? - Está maravilhosa. Seu lento olhar a percorreu toda inteira, notando cada detalhe de sua aparência, desde seus cabelos negros recolhidos até o resto de sua figura realçada à perfeição pelo elegante vestido de talhe alto. - Exótica, perfeita, exuberantemente sensual, perigosamente bela. Fez uma inspiração profunda. - Melhor que não siga, porque poderia te rasgar esse precioso vestido. Mas seria negligente se não dissesse que também parece inteligente, elegante e segura de si mesma. - Essa é uma lista maravilhosa. Enrugou o nariz. - Mas se pareço segura de mim mesma, quer dizer que me contagiou por roçar algo seu. - Seria um prazer para mim te contagiar assim com algo que possuo, respondeu ele muito sério. Ela teve que voltar a rir. Era evidente que Robin foi alegrá-la para lhe tirar os nervos, e estava conseguindo fabulosamente. Ao agarrar suas luvas largas, perguntou-lhe: - Há algum horroroso rito social inglês que deva saber por que não me fazê-lo condenaria a ser uma proscrita eternamente? Ele negou com a cabeça. - As boas maneiras que aprendeu com seus pais e nos jantares em Boston servirão muito bem. -Falando de boas maneiras, posto que nominalmente sou uma donzela inocente, não deveria estar em meu quarto. - É certo. E acrescentou com um sorriso perversamente íntimo. - Mas nós dois sabemos quão nominal é essa etiqueta de criada inocente. - De todos os modos, respondeu ela tentando sem êxito parecer séria, - deveríamos esperar os outros convidados em um lugar mais formal, como a biblioteca por exemplo. Agarrou-o do braço e o guiou para a porta. - Mas antes... tenho algo para você. Com um de seus truques de mago, fez aparecer um estojo largo forrado em veludo. - Disse-me que sou uma urraca, e somos uma espécie 194
famosa por colecionar coisas brilhantes para dar de presente aos objetos de nossa adoração. Aqui está a prova. Ela o olhou consternada. - É absolutamente categórico que uma mulher nominalmente inocente não aceite presentes valiosos de um cavalheiro. - Que sorte que eu não sou um cavalheiro. Ficou sério. - Não sei o que trará o futuro, Kanawiosta. Espero em Deus que o descubramos juntos. Mas até no caso de que escolha tomar um caminho separada de mim, eu gostaria que tivesse algo em minha lembrança. Ela o olhou com franqueza. - E também deseja estar seguro de que eu tenha algo valioso para ter do que dispor se em algum momento me encontre em dificuldades econômicas. Ele levantou a comissura do lábio em sorriso irônico. - Poderia ter me sido útil em minha época de espião. Tem a mais perturbadora capacidade de ler as mentes. - Não todas as mentes. Abriu o estojo e conteve o fôlego. Modelados no revestimento de seda branca havia um colar com brincos combinando. Em delicados medalhões de filigrana de ouro estavam engastados magníficos rubis e diminutos brilhantes. - Oh, Robin, que preciosos. Não faz as coisas pela metade, não é? - Em realidade, neste caso sim - respondeu ele. - Se tivesse pensado que as aceitaria, teria comprado todas as jóias deste jogo, desde pentes de prender cabelo ao diadema e ao cinto. - Não fala de brincadeira? - Desta vez não. Ela desviou a vista para escapar da intensidade de seus olhos. Não havia dúvida de que a desejava por esposa. Oxalá pudesse estar segura de que era pelos motivos corretos. - Ficarão perfeitos com este vestido. Aproximou-se do espelho, tirou os singelos brincos de ouro, e pôs os de rubis. Ao mover a cabeça, a luz reverberou em brilhantes raios ao redor das pedras pendentes. Robin lhe fechou o colar e ficou a suas costas lhe deslizando as mãos de mago pelos braços até as deixar repousar em sua cintura. A maravilhou a facilidade com que podia excitá-la com a mais ligeira das carícias. Fez uma funda inspiração e se olhou atentamente no espelho. Jamais em sua vida havia se visto melhor. Os rubis ficavam esplêndidos com sua pele morena. Não tinha o menor aspecto de mulher vendedora ambulante de livros; parecia uma dama. E se por dentro se sentia uma impostora, isso não lhe notava na cara. Seu olhar passou da sua imagem a do Robin. Ele era a quinta essência do aristocrata inglês, um homem de traços finos, fleumática indiferença, com um traje de corte delicioso. Entretanto, suas mãos a sustentavam como se ela fosse o ser mais precioso da terra, e em seus olhos havia sinceridade. - Falou como se o único futuro possível para nós estivesse na Inglaterra, disse-lhe ele docemente, - mas isso não é certo. Se preferisse, poderíamos viver nos Estados Unidos. - Faria isso por mim? - perguntou ela, olhando-o surpreendida. Beijou-lhe o pescoço sob a orelha, com lábios firmes e quentes. 195
- Imediatamente. A única grande vantagem da riqueza é a liberdade que dá. Juntos podemos criar a vida que queiramos. E ainda no caso de que estivesse disposta a viver na Inglaterra, eu gostaria de visitar os Estados Unidos, conhecer o povo de sua mãe, ver a terra que lhe viu crescer. Ela estremeceu um pouco, tanto porque a oferta a comoveu como em reação ao seu beijo. - Mas preferiria viver aqui, não é? Ele pensou um momento e logo assentiu. - É estranho. Tenho passado quase toda minha vida adulta no estrangeiro. Sei falar doze idiomas com diversos graus de fluidez, e sou capaz de encontrar uma boa comida ou uma cama em qualquer cidade do Continente, e entretanto, quando voltei para a Inglaterra no inverno passado, senti-me mais em casa que antes quando vivia aqui. Ela cobriu com a sua a mão que repousava em sua cintura. - Partiu sendo um menino e voltou feito um homem. Isso muda muito as coisas. - Tem razão, já não tenho a necessidade juvenil de me revelar contra todo o conhecido. Voltou a beijá-la, desta vez no ângulo esquisitamente sensível entre a garganta e a clavícula. Ela sentiu intensamente sua cercania e sedutora masculinidade. O espelho refletiu essa percepção no brilho de seus olhos e a apaixonada dilatação de seus lábios. Robin também notou. Aumentou a pressão de suas mãos. - Menos mal que todos os homens que vão vir esta noite estão felizmente casados, senão, temeria que algum se elevasse com você. Está irresistível, Kanawiosta. Nesse instante ela se fez uma promessa: ocorresse o que ocorresse no futuro, devia fazer o amor com ele pelo menos uma vez mais. Se não tivesse essa ilusão para esperar, não seria capaz de sair do quarto sem arrastá-lo à cama nesse mesmo instante. - Será melhor que baixemos, disse com a voz entrecortada. - Porque senão não sairemos deste quarto nas duas horas seguintes, suspirou ele. Afastou-se e lhe ofereceu o braço cerimoniosamente. - Pronta para entrar na cova dos leões, milady? Ele podia estar disposto a deixar seu país por ela, mas perderia mais partindo do que perderia ela ficando. Devia esforçar-se ao máximo em comprovar se poderia encontrar um lugar entre esses alarmantes aristocratas. - Os leões não podem ter as garras mais afiadas que as senhoras de Boston, lorde Robert - disse, agarrando-se em seu braço. Com Robin ao seu lado, seria capaz de fazer frente a tudo. Wolverton lhe enviou uma nota oferecendo-se a levá-la em sua carruagem ao jantar, e Desdêmona aceitou com presteza, mas nesse momento em que já era muito tarde para voltar atrás, estava olhando sua imagem no espelho, aterrada. - Sally, de maneira nenhuma posso sair assim. Quando me disse que modificaria o vestido, não pensei que pretendia rebaixar o decote até o umbigo. - Vamos, vamos, milady, esse é um exagero, respondeu a criada em tom tranquilizador. - O decote é elegante e não tem nada de extremado. - Pode ser que o vestido não seja extremado, mas minha figura certamente é. Deu um 196
olhar acusador a sua criada.- Teve-me longe do espelho até quando já era muito tarde para trocar o vestido e o penteado. - Sim senhora - disse Sally, impenitente. - Por favor, confie-se em mim nisto. Está formosa e elegante, e esse bonito marquês vai se arrastar aos seus pés. A Desdêmona lhe acendeu o rosto. - Eu não tenho segredos? - Sim, claro que os tem - respondeu Sally, novamente em tom tranquilizador. Mas só uma tola não veria o que tem diante do nariz. Ou seja, que esteve olhando ao Giles com olhos de apaixonada, pensou Desdêmona, tenebrosamente. Igualmente poderia ter pendurado um letreiro no pescoço, no seu pescoço muito, muito nu. - Deveria usar o colar de pérolas em lugar do camafeu, disse Sally, que sem dúvida lhe leu o pensamento. Assim se sentirá um pouquinho menos exposta. O colar de pérolas de três voltas, sim, encheu um pouco a ampla superfície de pele nua, embora Desdêmona continuou sentindo-se como em um desses pesadelos em que alguém se encontra nua em público. Voltou a contemplar-se com horrorizada fascinação; uma anágua não seria tão reveladora. - Pareço uma cortesã. - Mas do tipo muito, muito caro, milady - disse Sally, sorrindo travessa. Desdêmona se pôs a rir. - Estou dizendo tolices? Voltou a olhar-se no espelho e tentou ver-se com objetividade. A seda era de um marrom escuro com reflexos avermelhados que não assentaria bem em muitas mulheres, mas teve que reconhecer que vinha às mil maravilhas ao seu cabelo castanho avermelhado e a sua pele branca. Sally também tinha desdenhado o habitual penteado severo de sua senhora, a favor de uma cascata de ondas e cachos entrelaçados com uma fina correntinha de ouro. Inclusive conseguiu convencê-la a aplicar um pouquinho de maquiagem. Desdêmona teve que reconhecer que se a imagem que via no espelho fosse a de uma desconhecida, ela a acharia elegante e não pouco atraente. O golpe da aldrava na porta ressoou em toda a casa; chegou o marquês e já era muito tarde para trocar-se. Desdêmona endireitou os ombros e se ergueu em toda sua estatura. Por desgraça essa postura destacava uma parte de sua anatomia que já era bastante proeminente sem endireitar os ombros, mas a única maneira de sobreviver a essa noite seria fingir que se sentia muito a gosto com sua aparência. Giles a estava esperando ao pé da escada. Enquanto ela descia, ele se limitou a olhá-la fixamente, com expressão pasma. Isto voltou a pô-la nervosa, por isso se deteve e se aferrou ao corrimão. Era uma galinha velha vestida como uma franga e estava fazendo o mais espantoso e ridículo papel. Subiu o xale até os ombros e começou a cruzar-lhe sobre o peito. O marquês se apressou a subir os dois últimos degraus e lhe agarrou uma mão nas suas, lhe impedindo assim que se ocultasse sob o xale. - Perdoa minha estupefação, Desdêmona. Sabia que era formosa, mas esta noite 197
certamente me tirou o fôlego. Levantou a mão até seus lábios e a beijou. Com os dedos formigantes, Desdêmona soltou o ar que tinha retido sem sabê-lo. Não cabia a menor dúvida da sinceridade da admiração do Giles. O melhor de tudo era que seu olhar quente não a fazia sentir-se acossada. A fazia sentir-se... muito a gosto consigo mesma. Sorriu ao marquês e se agarrou no seu braço. - Vamos? Ia ser uma agradável reunião noturna. Maxie e Robin estiveram tanto tempo falando que quando chegaram abaixo já tinham começado a chegar os convidados. Margot saiu a recebê-los à porta do salão pequeno. Dentro havia seis ou oito pessoas conversando com a naturalidade de velhos amigos. A duquesa sorriu ao Robin e logo olhou a Maxie com aprovação. - Maxie, está maravilhosa. Graças a Deus que Rafe prefere às loiras. Vamos, quero te apresentar aos outros convidados. Em voz baixa, acrescentou: - Coragem! A maioria das pessoas reunidas nesta sala têm histórias tão pouco comuns como a tua. Antes que começassem a avançar, lhes aproximou um homem alto e loiro acompanhado por uma jovem discretamente formosa de cabelo castanho. - Robin, disse o homem, estirando a mão, com um amplo sorriso, quanto senti não ter estado em Whitehall esta tarde. Enquanto se estreitavam as mãos, observou ao Robin com olhos perspicazes. Encontro-te muitíssimo melhor que da última vez que te vi em Paris. - Havia certa necessidade de melhoras, respondeu Robin e fez avançar a Maxie. Senhorita Máxima Collins, Lucien Fairchild, Conde do Strathmore. A dama, Suponho, é sua esposa, a que não tive o gosto de conhecer. - Correto, disse sorrindo a jovem alta. - Sou Kit Fairchild. É um prazer conhecê-la, senhorita Collins. O nome Lucien soou familiar ao Maxie. Depois de corresponder à saudação da condessa, dirigiu-se a ele. - Você é o primo do Robin que trabalha no Foreign Office? Lorde Strathmore riu. - Primo de segundo grau, filho de primo irmão. - Luc sempre foi melhor que eu para os detalhes, comentou Robin. Ou seja que esse era o homem que tinha pedido ao Robin que entrasse na espionagem. Não parecia perigoso, mas claro, tampouco o parecia Robin. - Pode ser que sejam primos de segundo grau, disse pensativa, mas a semelhança entre os dois é maior que entre o Robin e seu irmão. - Se fossem cavalos valeria a pena reproduzir seus traços, não lhe parece? - disse Kit muito séria mas com os olhos travessos. Maxie decidiu que ia gostar da esposa de Lucien. Em poucos minutos já conversavam. Vendo que não havia necessidade de preocupar-se com sua hóspede norteamericana, Margot se afastou para saudar outros convidados. 198
Um casal recém chegado se aproximou do grupo. Robin se interrompeu em meio de uma frase e ficou olhando, pasmo; Maxie nunca o viu tão absolutamente surpreso. Sobrepondo-se, Robin estirou a mão para o recém-chegado, um bonito jovem moreno de sorriso aberto. - A última vez que nos vimos, chamava-te Nikki e estava enganando a um tenente austríaco em uma feira equina nos subúrbios de Viena. - Merecia que o enganassem, disse o jovem enquanto se estreitavam as mãos. - Aquele cavalo que te vendi era estupendo, não é? - Um cavalo de primeira classe. Excelente resistência, o que vinha muito bem a um personagem suspeito como eu. Moveu a cabeça, incrédulo. - Em todas as ocasiões que nos passamos mensagens, jamais me ocorreu a ideia de que não fosse um verdadeiro cigano mercador e vendedor de cavalos. Mas posto que está aqui, Suponho que é lorde Aberdare, o infame Conde cigano. Aberdare sorriu. - Não se culpe por não adivinhar que eu era mais do que parecia. Nem todos que formávamos parte da extensa rede de Lucien fomos velhos amigos de colégio. - E não por falta de empenho, comentou Strathmore com ironia. Todos riram. Depois o grupo se separou por sexos, já que os homens começaram a trocar notícias. Kit tomou a substituição nas apresentações. - Maxie, apresento a Clare Davies, a Condessa do Aberdare. Lady Aberdare era só um pouquinho mais alta que Maxie, de cabelo escuro e olhos azul escuro. - Prazer em conhecê-la, disse. Depois de olhá-la um momento, sorriu satisfeita. - Esse vestido fica melhor em você do que ficaria em mim. Maxie demorou um momento em compreender. - Ceu santo, exclamou! Robin e Margot saquearam seu guarda-roupa por mim? - Não exatamente. Tinha mandado fazer vários vestidos e acabava de recebê-los. Posto que temos mais ou menos o mesmo porte, Margot me perguntou se havia algum do que não estivesse muito segura. Clare sorriu. - Tinha sérias dúvidas a respeito do carmesim; o tecido é precioso, mas nenhuma filha de pastor metodista se sentiria cômoda usando essa cor em público. Em troca você, está esplêndida com ele. Maxie se sentiu um pouco aturdida. - E eu que pensava que me iriam fazerem migalhas. Todos são tão simpáticos comigo. As demais riram. - A sociedade londrina tem mais que sua boa cota de felinos e insetos piores, disse Kit, - mas aqui não vai conhecer nenhum. Fez um gesto para o resto da sala. - Tenho que dizer que estes homens resultaram bastante bem para ser um grupo de etonianos superprivilegiados. - A agitadora, disse Clare, sem animosidade. - Kit é nossa radical residente. A conversa passou então a temas políticos. Todas estiveram de acordo em que a recente guerra entre Grande Bretanha e Estados Unidos fora uma tolice absoluta, que se teria evitado se governassem as mulheres. Enquanto falavam se aproximou um lacaio com xerez para os dois condes e limonada para Maxie. Esta se sentiu deliciosamente mimada, 199
pensando que nunca desfrutou mais de uma festa em sua vida. Desdêmona e Giles chegaram juntos e em atitude de que isso era o que correspondia. Desdêmona estava francamente espetacular e Giles tinha dificuldades para tirar os olhos de cima dela. Depois de saudar sua tia e Giles, Maxie procurou Robin com os olhos, mas não o encontrou. Viu que perto dela estava lady Strathmore, não ocupada conversando, de modo que lhe perguntou: - Kit, viu a...? - interrompeu-se quando a mulher deu a volta para olhá-la. Misteriosamente era Kit e ao mesmo tempo não era. - Você não é lady Strathmore, não é? A mulher riu. - Tem razão, não sou Kit, sou sua irmã Kira Travers. É você muito observadora ao deduzir isso com tanta rapidez. Algumas pessoas nunca entendem que somos duas. E não, não planejamos usar o mesmo tom de azul esta noite, simplesmente fazemos coisas assim. O ano passado nossas preciosas filhas nasceram com uma sutil diferença de vinte e quatro horas. Maxie sorriu. - Alegra-me saber que não começava a imaginar coisas. - Você é a senhorita Collins, a norte-americana? Meu marido também é do seu lado do Atlântico. Kira procurou o seu marido com os olhos e lhe fez um gesto com a mão. Maxie ficou tensa quando chegou até elas um homem alto e delgado de cabelo castanho. Certamente perceberia que era mestiça, e o mais provável era que tivesse os mesmos preconceitos que um britânico. - Senhorita Collins, disse Kira, - meu marido Jason Travers, Conde do Markland. Ele se inclinou cortesmente. Por um momento Maxie acreditou que sua expressão de pena era por ela, mas ele corrigiu rapidamente a ideia dizendo: - A minha esposa adora dizer meu título, sabendo que o meu coração ianque dói de ouvi-lo. Sorriu afetuosamente a sua mulher e depois voltou a olhar a Maxie. - Tem sangue índio? Maxie se ergueu em toda sua estatura. - Minha mãe era mohawk, disse receosa. Ele podia insultá-la se quisesse, mas se dissesse uma só palavra depreciativa contra sua mãe, subiria para procurar sua faca. Ele deve ter adivinhado o que estava pensando, porque ao falar, em seus olhos brilhou um claro brilho travesso. - Espero que não esteja agarrada a antigas inimizades; meu bisavô era furão, e isso nos converteria em inimigos até a morte. Não ficou outra coisa que rir; até aí lhe chegou o fanatismo índio. O nome lhe resultava conhecido. - É você Jason Travers, dono da Travers Shipping Company de Boston? A ele lhe iluminou a cara. - É você de Boston? Só lhes levou uns minutos comprovar que tinham vários conhecidos em comum. Teriam passado o resto da noite conversando. Quando soou o gongo que anunciava o jantar, apareceu Robin ao seu lado. 200
- Como o faz? Perguntou ela, divertida. - Parece um gato, tem a capacidade de se materializar em um lugar que estava vazio dois segundos antes. - Algumas de minhas melhores lições de espionagem aprendi dos gatos. Mover-se em silêncio, dormir com um olho aberto, e estar sempre preparado para pôr-se a correr se a situação tomar um giro para pior. Sorriu-lhe com quente aprovação. - Está-se adaptando às turvas águas da sociedade londrina, infestadas de tubarões, como um veloz cisne. - Estou passando maravilhosamente bem. Margot tinha razão ao dizer que todas estas pessoas eram autenticamente agradáveis. Aumentou seu prazer ao ver quão contente estava Robin. Londres podia ter sua cota de tubarões, mas se ela tinha um punhado de amigos como as pessoas que acabava de conhecer essa noite, os tubarões não importariam.
CAPÍTULO 31
Ainda não tinha transcorrido a metade da reunião quando Giles já decidiu que devia passar mais tempo em Londres. Por muita consideração que tivesse aos seus vizinhos de Yorkshire, a conversa durante o jantar não era jamais tão interessante. Depois de um curto momento de conversa enquanto bebiam o porto, os cavalheiros passaram ao salão a reunir-se com suas senhoras. O olhar do Giles se dirigiu imediatamente a Desdêmona. Sua reformista mundana e severa estava radiante como uma colegial, embora em sua aparência não havia nada de menina; sentado ao seu lado durante o jantar, tivera que fazer desonestos esforços para não ter os olhos cravados em seu formoso... pescoço. Cada vez que ela ria ou levantava a taça de vinho, ele desejava tirá-la da sala de jantar para levá-la a um lugar onde pudessem estar sozinhos. E ela sabia, a perspicaz ruiva. Tudo isso lhe teria resultado agradável, e até divertido, se não fora pelas pontadas de ciúmes impróprios dele cada vez que algum dos outros homens a olhava. Candover e Desdêmona se conheciam há anos por suas atividades políticas, mas ele estava disposto a apostar a que o duque nunca a olhara com tanta admiração como a olhava essa noite. Se Candover não tivesse sido seu amigo há décadas, e não estivesse tão apaixonado por sua esposa, teria se sentido tentado de lhe sugerir um duelo ao amanhecer. Sorriu diante dessa ideia absurda, e deliberadamente dirigiu a atenção aos outros convidados. Era uma reunião informal em que todos se moviam com liberdade, passando de um grupo a outro. Máxima Collins encaixava muito bem ali, com seu engenho e presença, à altura de qualquer outra mulher das presentes. Seria uma admirável esposa para o Robin. Depois de uma animada conversa sobre os colégios públicos com lady Aberdare, decidiu que era o momento de estar novamente com Desdêmona. Olhou ao seu redor e a viu conversando com o Robin diante das portas janelas. Esta vez lhe resultou difícil tirar a pontada de ciúmes com risadas. Porque estava tão cativada? Pergunta estúpida: Robin 201
tinha esse efeito em todo mundo. Detestando-se por sentir ressentimento de seu irmão, pôs-se a andar para eles. Nesse momento Robin fez estalar os dedos e apareceu em sua mão um lírio dos vales que devia ter roubado de algum dos arranjos florais. Desdêmona aceitou a flor rindo encantada. A irritação de Giles se elevou a alturas perigosas e se desvaneceu seu prazer pela noite. Malditos o encanto natural do Robin, sua facilidade de palavra e o insensível coração de mármore que lhe permitia usar seus dons tão sem piedade. Sem ver que Giles se aproximava, Desdêmona se afastou para ir falar com sua sobrinha. Em lugar de segui-la, Giles se dirigiu para seu irmão. - Acompanhe-me a tomar ar fresco, disse-lhe bruscamente. Robin o olhou perplexo, mas respondeu amavelmente: - Como quiser. Robin sempre era amável; esse era outro traço irritante. Lutando uma batalha perdida com seu mau humor, Giles saiu ao espaçoso pátio de pedra. Não tinha ideia sobre o que desejava dizer ao seu irmão, mas ia dizer lhe algo, sim senhor. Caminharam para o muro baixo que rodeava o pátio. Os famosos jardins da casa Candover eram formosos, mas Giles não mostrou nenhum interesse na vegetação iluminada pela lua. Robin observava com inquietação a lúgubre expressão de seu irmão, perguntando-se o que teria ocorrido. Era uma sorte que as rajadas de mau humor de Giles fossem muito raras, porque sempre lhe produziam muitíssima inquietação. - Lady Ross é maravilhosamente formidável, comentou com o fim de alegrar o ambiente. - Oxalá tivesse estado eu ali quando irrompeu em seu estudo com seu guardasol. Giles apoiou as mãos no muro com os olhos perdidos na contemplação da noite. - Se tivesse estado ali, teriam se evitado muitíssimos problemas. Pensei o que seria de você. - Mas não estava preocupado, não é verdade? Justamente naquela manhã te havia dito que podia empreender vôo se me apresentasse algo ou alguém, interessante. Talvez foi uma premonição. - Repetia-me isso, disse Giles com inequívoca aspereza, - mas teria me sentido melhor se tivesse me enviado uma nota ou deixado uma mensagem no povoado. - Sinto muito, a verdade é que não me ocorreu. - Não me cabe dúvida disso. Giles apertou com força o lado do muro e os nódulos lhe puseram brancos. - Nunca pensa em ninguém além de si mesmo. - O que quer dizer com isso ? - perguntou Robin tenso. Giles olhou ao longe, seus olhos opacos como ardósia, sem um rastro de azul neles. - Em todos esses anos que esteve se fazendo de herói, dedicou alguma vez um maldito pensamento às pessoas que lhe queriam? Te ocorreu imaginar como era para mim esperar meses e meses, sem saber se meu único irmão morreu, e se era assim, como morreu? Apareceram-lhe profundos sulcos ao redor dos olhos. - Estou seguro de que não. Afinal você tinha coisas muito mais interessantes e importantes no que ocupar a mente. 202
Robin olhou ao seu irmão com a sensação de que se estava abrindo uma enorme greta de geleira embaixo deles. A greta sempre esteve ali uma debilidade fatal nos alicerces de sua relação, mas os dois tinham preferido não fazer caso dela. Conseguiram ser amigos sem falar jamais do que havia sob a superfície. E nesse momento, pelo motivo que fosse, Giles desejava romper o silêncio e arrastá-lo com ele no abismo. E se isso ocorresse, os laços que os uniam poderiam romper-se sem remédio. Rogando que Giles estivesse disposto a voltar para terreno seguro, disse amavelmente: - A maior parte do que fazia era incrivelmente tedioso, sem um indício de heroísmo à vista. Claro que sempre restava o risco de que me acabasse a sorte, mas tinha as coisas dispostas para que se me ocorresse algo, enviassem a notícia ao Wolverhampton o antes possível. - Quanta consideração! - disse Giles com claro sarcasmo. - Se eu tivesse sabido isso, tudo teria sido muito distinto. Robin sentiu um conhecido comichão de rebelião. - Trata-se então de que eu não tive suficientemente consideração com o cabeça da família? Escassamente tolerava isso de meu pai, e certamente não vou tolerar isso de você. - Refiro-me a simples cortesia, replicou Giles. - Vivia enviando informação a Inglaterra, e entretanto uma carta ao ano te parecia o melhor que podia fazer por sua família. Robin Fechou os olhos. - E o que podia contar ? “Minto, roubo e de vez em quando mato. Quando não estou ocupado em vilanias, vivo com uma mulher que tem muita sensatez para casar-se comigo. Ainda não estou morto. Espero que as colheitas vão bem este ano. Teu respeitosamente, Robert». Essas palavras tiveram um efeito explosivo. Giles se girou bruscamente, a ira marcada em todos os contornos de seu corpo. - Insinua que sou um covarde? Sabe Deus que não foi minha escolha ficar seguro em Wolverhampton. Teria dado tudo o que possuía para me alistar no exército quando saí de Oxford. Robin se impressionou pela intensidade irracional dessa reação e compreendeu que sem dar-se conta tinha ativado um profundo e doloroso pesar em seu irmão. - Sei perfeitamente bem que não é um covarde. Francamente, viver sob o mesmo teto com meu pai exigia mais coragem do que eu tinha. - Alguém tinha que tomar a sério as responsabilidades familiares, grunhiu Giles sem aplacar-se, - e certamente esse não seria você. Estava muito ocupado vendo o mundo e arriscando sua vida. Robin começou a sentir raiva própria. - Eu não tinha nenhuma responsabilidade familiar, respondeu com aspereza; escassamente tinha um lugar na mesa. Não era o filho favorecido e minha existência ou não existência importava pouco respeito ao Wolverhampton. Sempre supus que estar longe da Inglaterra era o melhor que podia fazer pelo nobre sobrenome Andreville. - Não seja infantil, bramou Giles. - Eu era o herdeiro, portanto era lógico que meu pai 203
passasse mais tempo comigo, mas te tratava justamente. Era muito generoso na realidade, se tomarmos em conta que sua conduta era para fazer perder a paciência de um santo. - Ah sim, nosso generoso e justo pai, disse Robin amargamente. - Você nunca esteve presente quando me agarrava e me olhava à cara como se não pudesse acreditar que tivera a má sorte de me ter por filho. Só uma vez me disse que era culpa minha que ela tivesse morrido, e que oxalá tivesse sobrevivido ela e não eu, mas o pensamento sempre estava em seus olhos, sempre. E aí estava por fim, quase evidente de dor, a lembrança da mulher cuja morte tinha arrancado o coração à família. - Isso ele te disse? - murmurou Giles, incrédulo. - Sim. Robin olhou ao seu irmão, com tanta fúria que soltou o que não quis pensar jamais: - Você nunca o disse em voz alta, mas eu sabia que pensava o mesmo. Houve silencio por espaço de uns segundos. Depois Giles perguntou: - De onde tirou essa ideia? - Tenho que dizê-lo? - respondeu Robin, com as mandíbulas apertadas. - Ela era sua mãe, e esposa dele. Você tinha cinco anos e a adorava, sentimento absolutamente mútuo. Cada dia ela ia à sala de jogos a te ler contos e te cantar canções. Tenho entendido que inclusive te ensinou a ler. - Como sabe isso ? - sussurrou Giles, com o rosto cinza. - Soube pelos criados. Não tendo tido mãe, naturalmente sentia curiosidade por saber o que eu perdeu. Essa foi minha primeira experiência em reunir informação. Ela era uma lenda na sala dos criados, sabe? Porque seu comportamento era muito diferente do que eles esperavam de uma marquesa. Robin fechou os olhos, para desprezar uma nova quebra de onda da desolação que tinha impregnado sua infância. - Meu Deus, como invejava a você por tê-la tido, embora só tivessem sido cinco anos. Em seu lugar, eu teria organizado um acidente fatal para o menino que matou a minha mãe. - Maldito seja, Robin, eu jamais senti isso, exclamou Giles. - Claro que a chorei, perdêla foi a pior experiência de minha vida. Mas nunca culpei porque ela morreu e você não. - Meu pai sim, e jamais me permitiu esquecer. Giles se voltou para o jardim, com os largos ombros rígidos. - Quando uma mulher morre no parto, a maioria dos familiares que ficam aceitam como a vontade de Deus. Uns poucos, como meu pai, jogam a culpa ao bebê. Outros são como eu. Cuidam do bebê que sobreviveu porque é o único que fica da mulher que morreu. - Isso você fez bem, disse Robin com voz mais suave. - E me fazia me sentir mais culpado. Eu era o responsável pela morte de sua mãe e entretanto você sempre tinha paciência comigo. - Deixa de falar como se tivesse cometido um assassinato, exclamou Giles fazendo um gesto de impaciência com a mão. - A mamãe adorava os bebês: sei que teve ao menos dois abortos espontâneos entre meu nascimento e o teu, e possivelmente mais. Estava encantada porque sua gravidez era o suficientemente avançada para fazer provável que chegasse ao fim. Estava acostumado a me falar do irmãozinho ou a irmãzinha que ia ter, e de como devia te proteger. Às vezes pensei se talvez suspeitasse que não sobreviveria, disse com a voz embargada pela emoção. - Sua saúde sempre fora delicada, e tinha que 204
saber que era perigoso ter tantas gravidezes. Mas estou disposto a jurar que enfrentava o risco de boa vontade. Disseram-lhe isso seus informantes? - Nunca perguntei sobre os acontecimentos que rodearam sua morte. Não... não queria saber mais. Giles suspirou e passou a mão pelo cabelo. - Seu nascimento se adiantou várias semanas, e se acreditava que não viveria. Depois que ela morreu, meu pai se encerrou com chave e não quis falar com ninguém. Toda a casa era um caos; ouvi a uma das criadas dizer que morreria se não se alimentasse, de modo que fui ao povoado em meu pônei. Morreu o bebê da esposa do moleiro poucos dias antes de nascer, assim fui a sua casa e virtualmente a levei obrigada ao Wolverhampton. Insisti em que pusessem seu berço em meu quarto para te escutar durante a noite e estar seguro de que continuava respirando. Robin o olhou com o peito oprimido. - Nunca me inteirei disso. - Era difícil que soubesse, não era maior que uma barra de pão nesse tempo. Giles fez um visível esforço para dominar suas emoções. - Parecia-te tanto a mamãe, não só em sua aparência, mas também em sua facilidade de palavra e seu encanto. Sua precocidade enfeitiçava a todo mundo que te conhecia, embora te comportasse como um braço de Satanás. Eu te invejava a forma como saía impune de travessuras pelas quais me teriam açoitado. - Posto que fizesse o que fizesse, meu pai me desprezava, decidi lhe dar um boa causa, disse Robin com ironia. - Eu era condenadamente melhor para ser terrível que para ser obediente. Giles fez um encolhimento de ombros. - A obediência se supervaloriza. Meu pai achava úteis minhas capacidades, mas por muito que me esforçasse nunca lhe parecia suficientemente bom. Robin começou a entender do que ia realmente essa conversação. - Por que estamos falando disto depois de tantos anos? Perguntou amavelmente, o que desejas de mim? Giles guardou silêncio e contemplou ou suas mãos grandes e capazes, com uma expressão estranhamente vulnerável. Fora dos muros do jardim, passou uma carruagem estralando pelos paralelepípedos do Mayfair. Houve um comprido momento de silêncio. - Vai parecer infantil, disse finalmente com voz apenas audível. - Suponho que o que desejo saber é que... que me importo com você. É o único familiar próximo que tenho. Tentei ser um bom irmão, mas dado que você sempre foi por sua conta, custasse o que custasse, normalmente não estava em posição para te ajudar. Nem com nosso pai, nem no colégio, e muito menos quando te meteu em um dos ofícios mais perigosos da terra. - É óbvio que me importa, respondeu Robin carrancudo. - Como não sabe isso? Certamente recordará como te seguia por toda parte sempre que ia para casa nas férias e nos feriados escolares. Tinha uma paciência incrível. Eu desejava ser como você. Foi muito frustrante para mim compreender que isso era impossível. Simplesmente somos muito diferentes. 205
- Fomos e somos, disse Giles, sem deixar de olhar as mãos. - Ser diferentes não significa que seja impossível o carinho, disse Robin com a voz entrecortada. - Você foi muito mais meu pai que nosso estimado progenitor. Tudo o que sei de honra, disciplina e lealdade eu aprendi de você. Suspirou. - Suponho que um dos motivos de que me fiz espião foi que desejava que se sentisse orgulhoso de mim, e espiar era algo que sabia fazer bem. De acordo, é um trabalho ruim e nada honrado, mas contra um monstro como Napoleão era importante. Doeu-me que desaprovasse o que fazia, mas, tendo começado, não podia dar atrás. Giles elevou a vista e o olhou atentamente. - Nunca condenei suas atividades. Em realidade, orgulhava-me muitíssimo de sua valentia e inteligência. - Seriamente? - perguntou Robin com as sobrancelhas arqueadas. - Todas as discussões que tivemos foram a respeito de meu trabalho. Fervia ao máximo entre as linhas de suas muito escassas cartas, e ferveu em fogo forte na última vez que nos encontramos em Londres, faz quatro anos. Giles desviou a vista. - Lamento ter perdido os estribos naquela noite, mas estava preocupado. Parecia a ponto de se quebrar. Pensei que era hora de que Grã-Bretanha continuasse a luta sem você. - Não estava em meu melhor momento então, reconheceu Robin, - mas me retirar a uma vida tranquila no Yorkshire me teria deixado louco. Era melhor para mim continuar trabalhando e correr meus riscos. - Como já disse, somos muito diferentes. Para mim, Wolverhampton foi sempre meu retiro e minha redenção. Houve outro comprido silêncio que finalmente rompeu Robin, dizendo cansativamente: - Depois de que nossa mãe morreu não houve nunca muito amor em Wolverhampton, já que a aflição e raiva de nosso pai envenenou a todos. Eu não me atrevia a te pedir muito, por temor a que te esgotasse a paciência; isso não suportava nem pensar. Giles sorriu sem humor. - Passava-me algo muito parecido; pensava que se fazia algo que pusesse arriscar nossa relação, você voaria como uma libélula e não voltaria jamais. Robin sentiu a garganta ressecada e tragou saliva; sentia-se mais vulnerável que quando revistou a biblioteca de Napoleão. - Você foi a salvação de minha infância, Giles. Agora é uma das duas, não, das três pessoas por quem daria minha vida. Oxalá tivesse sabido dizer isso antes. Lamento que haja passado um só momento pensando que eu não te amava. Giles esfregou a testa, obscurecendo sua cara com sua larga mão. Quando desceu o braço, havia um brilho de umidade em seus olhos. - Supõe-se que os irmãos se amam, mas acreditava que em nosso caso, a maior parte do sentimento estava de meu lado. Um dos nós que atavam o coração do Robin se desatou. Giles tinha razão; os irmãos deviam amar-se e eles dois se amavam. Depois de quase trinta e três anos de vida complicada, acabava de descobrir uma 206
simplicidade sólida que sempre esteve ali. Sem dizer uma palavra, estirou a mão para seu irmão. Giles a estreitou com força. Robin sentiu que voltou para casa, mais que quando tinha retornado ao Wolverhampton. - Deveríamos ter falado assim há anos, disse quando lhe soltou a mão. - De todo modo, porque esta noite, em meio de uma noite de primeira classe? Giles riu sobressaltado. - Quando vi Desdêmona enfeitiçada por ti, saiu a superfície todo o ressentimento fraterno que fervia dentro. Não me importa que fascine a todas as demais mulheres, mas ela me importa muitíssimo. - Asseguro-te que não tem nada a temer. Toda nossa conversação versou sobre você; crê-te capaz de caminhar sobre a água. Eu não a desenganei. Suponho que tem esperanças nessa direção? - Sim. Giles sorriu. - Creio que vou procurá-la. Sinto-me mais feliz quando ela está perto. Robin o compreendeu perfeitamente. A conversa com seu irmão fora valiosa e deveriam tê-la tido fazia muito tempo, mas se sentia como se houvesse passado por uma debulhadora emocional; o que significava que, mais que nenhuma outra coisa no mundo, necessitava de Maxie.
CAPÍTULO 32
Robin encontrou Maxie conversando com lorde Michael Kenyon, homem alto de cabelos castanhos e a resistência de um guerreiro. Ela o olhou e sorriu travessa: - Lorde Michael diz que te conheceu na Espanha. Tentei lhe surrupiar mais e me contou que naquela vez estava disfarçado de sacerdote irlandês. Robin olhou ao ceu pondo os olhos em branco. - Pois sim. Durante a guerra peninsular, toda uma rede de sacerdotes espiões operava do Instituto Irlandês da Universidade da Salamanca. Quando estive na Península, de vez em quando me disfarçava de um deles. Fez uma careta. Também obtive que me disparassem. Seguro que lorde Michael não te disse que me encontrou sangrando sobre meus documentos roubados e teve o juízo de me conduzir até o quartel geral de Wellington. Ou seja, foi assim que Robin adquiriu a terrível cicatriz de bala. Sem importar-se se escandalizava a outros convidados, Maxie ficou nas pontas dos pés e depositou um ligeiro e rápido beijo na bochecha de lorde Michael. - Obrigado. Deve ter sido necessário todo um regimento de anjos da guarda para manter Robin intacto. Lorde Michael a olhou, surpreso, mas absolutamente incomodado. Tinha uns extraordinários olhos verdes. 207
- Ouvi dizer que as norte-americanas são encantadoramente francas, mas nunca tivera a sorte de ver uma demonstração. Há mais iguais a você em Boston? - Máxima é única em qualquer parte, disse Robin com carinho. - Já temia isso. Lorde Michael esteve outro momento conversando com eles e depois se afastou para outro grupo. Maxie o seguiu com a vista. - Há uma lady Michael que não veio esta noite? - É solteiro, respondeu Robin e acrescentou em tom mordaz: - Está interessada em solicitar o posto de esposa? Ela o olhou séria. - Esse é um comentário absurdo, inclusive de você. Era simples curiosidade; embora paquere com muita simpatia, seu coração não está absolutamente disponível. - Interessante. Segundo Margot, está passando uma temporada com Lucien e Kit, com a intenção de tomar esposa se encontrar a uma dama ao seu gosto. Talvez já encontrou uma. Perdendo interesse no tema, continuou: - Vim te perguntar se te interessaria sair e tomar ar fresco. Os jardins Candover à luz da lua são toda uma vista. Por muito que estivesse desfrutando com outros convidados, a Maxie agradou a perspectiva de passar um tempo a sós com o Robin. Dirigiram-se às portas janelas. Antes de sair, ele olhou ao seu redor. - A noite está um pouco fresca. Se conhecer Maggie, terá deixado alguns xales por aqui, para as convidadas que desejem sair ao ar livre. Pois sim, em uma mesinha à esquerda havia uma pilha de xales de tecido dobrados. Robin agarrou o de cima. - Margot pensa em tudo, comentou Maxie admirada. Ele abriu o xale de caxemira escura e o pôs ao redor dos ombros, com mãos acariciadoras. Saíram ao pátio de lajes de pedra e Robin fechou as portas. Depois atravessaram o pátio e baixaram os degraus ao jardim. Aqui e lá havia abajures que iluminavam os atalhos, mas não brilhavam tanto que diminuíram a magia da noite. O volumoso xale chegava ao Maxie até os joelhos, protegendo-a do ar fresco. Mais quente foi o braço que Robin lhe pôs sobre os ombros quando já se afastaram da casa e estavam fora de vista. Foram caminhando mais juntos que o que se consideraria decoroso. E não é que lhe importasse, justamente o contrário. Já estiveram tão juntos que lhe custava um esforço recordar as normas sociais. Olhou-o para fazer um comentário e franziu o cenho. A alegre expressão do Robin desapareceu, já a luz da lua parecia profundamente cansado. - Passa algo? Ele a olhou de esguelha. - Deveria ter sabido que notaria. Giles e eu acabamos de ter a pior discussão de nossas vidas. Muito exaustiva. Ela se deteve e o olhou fixamente. - Isto é terrível. Não estranho que esteja assim. Acreditava que se davam muito bem. - Sempre nos damos bem até certo ponto, mas havia muitas coisas das quais não falávamos. Suspirou. - Esta noite arejamos toda uma vida de ressentimentos. 208
- Pelo que já vi, para as irmãs é mais fácil serem amigas que para os irmãos, disse ela muito séria. - Os irmãos tentam competir entre eles o que dificulta os sentimentos mais amáveis. Deve ser ainda mais difícil quando o irmão mais velho é herdeiro de um grande título e uma grande fortuna. - Tem razão, isso eu vi em outros irmãos. Provavelmente é uma vantagem que Giles e eu sejamos tão distintos. Aumentou a pressão nos ombros, e puseram-se a andar novamente. - Chegamos à conclusão de que a causa principal da discussão desta noite se remonta à morte de minha mãe. Meu pai me culpou da sua morte, e isso teve consequências nefastas para a família. Giles teve que aprender a ser sério e responsável e tratou de cuidar de todos, o que não deveria ter que fazer nenhum menino. Eu cresci rebelde. Em consequência, nem ele nem eu fomos capazes de nos demonstrar o muito que nos estimamos. Quando voltei da França no outono passado, não estava seguro de se Giles me aceitaria bem em Wolverhampton. Não me dava conta de que ele estava doído porque eu tinha partido tão longe e esteve ausente por tanto tempo. - Conseguiram resolver suas diferenças ? - Sim, graças a Deus, respondeu Robin, sorrindo. - Agora somos mais amigos do que já fomos no passado. - Quanto me alegro. Sem poder controlar a veemência de sua voz, acrescentou: - Mas seu pai merecia que o açoitassem. Tirar-se toda a culpa pela morte de sua mulher e pô-la em um bebê indefeso foi um ato desprezível. - Culpa. ..meu pai? Do que? - Sua mãe não ficou grávida sem ajuda, observou Maxie, sarcástica. - Sabe se tinha um histórico de problemas nas gravidezes ou nos partos? - Em realidade, Giles disse que nunca fora forte e que tivera vários abortos espontâneos. Maxie assentiu, sem surpreender-se. - Se seu pai se refreasse mais, é possível que a saúde dela não se ressentisse. Robin esteve calado um momento e no final disse em tom surpreso: - Nunca me ocorreu pensar nisso. - A uma mulher, sim, teria ocorrido. Ele sorriu tristemente. - É uma pena que não tenhamos tido uma mulher sensata como você no Wolverhampton para que nos tivesse arrumado a todos. O caminho os tinha levado a um diminuto templo grego circular convocado em um rincão do jardim. Suas colunas e proporções eram tão perfeitas que Maxie supôs que algum duque anterior o comprara na Grécia e embarcado a Inglaterra desarmado. Juntos subiram a escada. O pequeno templo era um lugar agradável e ventilado. Encostados às paredes de meia altura havia bancos arredondados. Perto do fundo se levantava um altar retangular de pedra, que serviria mais como mesa para comida ao ar livre que para sacrificar cabritos expiatórios. A luz da lua lhe dava um aspecto feiticeiro. Robin olhou Maxie. A luz da lua fazia de seu semblante uma sinfonia de planos elegantes e contornos sombreados. Incapaz de esperar mais, levantou-lhe o queixo e a beijou. 209
Sua intenção fora lhe dar um beijo ligeiro e afetuoso, mas tão logo se tocaram seus lábios, desintegrou-se seu controle emocional. Esses últimos dias o tinham açoitado as lembranças de todas as más experiências de sua vida. Não teria sobrevivido se não fosse pela mulher que tinha em seus braços, e a desejava como deseja água um homem que está morrendo de sede no deserto. Essa noite estiveram dançando uma lenta dança do desejo, que começou quando ele esteve em seu quarto e foi crescendo ao longo da noite com olhares longos e sorrisos secretos. Mas o que sentia nesse momento transcendia a paixão, era uma crua necessidade de seu maravilhoso calor e os sedutores mistérios de seu corpo. Passou as mãos sob o xale para acariciar as suas suaves curvas. Ela reagiu com um suave som parecido a um ronronar; então fez suaves pressões em um mamilo com o polegar e o dedo; notou que este se endurecia imediatamente sob a seda. Desejava mais, muito mais. Agarrou-a pela cintura e a sentou sobre o altar. Ela fez uma aspiração de surpresa, depois relaxou e apoiou as mãos no lado do altar. Essa posição elevada lhe fazia mais fácil chegar a diversas e deliciosas partes de sua anatomia. Colocou as mãos sobre as dela, deixando as presas contra a pedra. Ela moveu os dedos um instante e depois os deixou quietos. Ele se inclinou e esfregou sua bochecha contra a dela; sua pele era suave como uma pétala, fresca na superfície e vibrante de vida debaixo. Soprou-lhe brandamente a orelha e percorreu os delicados contornos com a língua. Ela suspirou de prazer e estirou o pescoço como uma gata. O xale era tão grande que ela estava sentada sobre ele e seguia restando tecido suficiente para lhe cobrir os ombros e o peito. Ele afastou o xale com o queixo e a lã escura se deslizou para trás, caindo em dobras sobre o dorso de suas mãos, que seguravam as dela sobre o lado do altar. Essa postura fazia se sobressair seus peitos para diante, convidativas. Lambeu-lhe o arco sensual da garganta. Ela era sã, completa e desejou devorá-la, para que essa prudência e integridade formassem parte dele. Quando seus lábios chegaram ao colar, passou rapidamente por cima e continuou para baixo. Tinha pago uma pequena fortuna pela jóia, mas os rubis e diamantes eram frios e sem vida comparados com as duas elevações que deixava a descoberto o decote. As beijou com ardente ternura, aspirando o aroma feminino que emanava da fenda entre os peitos. Tentando dissimular sua urgência, soltou-lhe as mãos para moldar com as palmas abertas as deliciosas curvas de suas nádegas. Depois deslizou as mãos para diante, brandamente, pela deliciosa curva do abdômen e descendo para a sensível elevação na entreperna. - Creio que é momento de parar, disse ela sem fôlego. - Ainda não. Ela tinha um pouco separados os joelhos sob a reluzente saia; ele os separou mais e ficou no meio, de modo que ela não pudesse voltar a fechá-los. Estava tão perto que sentia seu provocador calor feminino. Procurou e encontrou sua boca, desejando inspirar tal paixão que não opusesse 210
resistência ao que ia fazer. Levantou-lhe a saia e a anágua com a duas mãos e, aprofundando o beijo, apoiou as palmas sobre seus joelhos cobertas pelas meias. Depois massageou para cima, passando por cima das ligas, procurando sua essência feminina oculta. Ela correspondeu ao beijo com generosidade, mas era muito atenta para distrair-se. Quando lhe acariciou o interior das coxas, Maxie girou a cabeça e instintivamente tentou fechar as pernas, mas não pôde, e a pressão de seus joelhos sobre seus quadris inflamou ainda mais o desejo dele. Apanhada por seu corpo, ela ficou imóvel. - Robin - disse, com voz entrecortada. - Robin, deveríamos voltar para salão. Este não é o lugar nem o momento. Não estava assustada... ainda, pensou ele. Assustá-la seria imperdoável, mas foi incapaz de afastar-se. Com a respiração resfolegando pelo esforço, endireitou-se e a rodeou com seus braços. Um forte pulso lhe golpeava as têmporas e outro mais forte na virilha, onde seu membro endurecido estava pressionado contra o lugar íntimo dela, tentando romper a roupa para fundir-se com ela. Maxie era tão miúda, tão fácil de envolver em seus braços, e ao mesmo tempo flexível com força feminina. - Perdoa-me, sussurrou. - Tem razão, mas, meu Deus, tenho a mais absurda sensação de que se não te possuir vou morrer. Tratou de dizer algo um pouco divertido, de fazer uma brincadeira que apagasse o estúpido melodrama de suas palavras, mas por uma vez, falhou-lhe a frivolidade. Seu sangue martelava repetindo: Se não te possuir vou morrer, se não te possuo vou morrer. A crua necessidade não era só dessa noite, nem só do ato físico de união que lhe exigia seu corpo. Desejava-a para sempre, como sua amante, seu par, sua esposa. Mas também, com bastante frenesi, desejava lhe fazer o amor nesse momento. - Não queria te deitar comigo na casa de Maggie, disse sem poder abandonar uma débil esperança, - mas agora não estamos em sua casa. - Ui, Robin, Robin, que demônio mais perverso e eloquente é, metade anjo, metade patife - disse ela com um suspiro que continha uma amável recriminação e risada ao mesmo tempo. - O que vou fazer com você? Ele fechou os olhos, envergonhado de que ela o conhecesse tão bem, mas agradecido de que continuasse lhe falando com afeto. Passou os dedos pelo seu cabelo, e se afastou para acariciar a sua face. Ele sentiu seus dedos frescos na testa e as bochechas quentes. Acariciou-lhe os lábios entreabertos com o polegar e depois lhe agarrou a cara com ambas as mãos e o atraiu para baixo para beijá-lo. Quando se uniram seus lábios, deslizou a mão para baixo, pelo peito e quadris e quando chegou a entreperna fechou a palma sobre o duro vulto que se sobressaía sob o tecido da calça. Ele ficou rígido enquanto o fogo da excitação o corria nas veias. - Espero que a ninguém mais lhe ocorra sair a passear pelo jardim, sussurrou ela e subiu a mão até o primeiro botão de sua calça. Depois de um instante de surpresa, ele começou a soltar os botões, enredando 211
torpemente os dedos com os dela. Uma vez liberado, acariciou-a, deslizando os dedos pelo suave pêlo até chegar aos doces segredos femininos de mais abaixo. As dóceis e sedosas dobras estavam ardentes e molhadas de excitação. Ela exalou um suspiro ofegante que o enlouqueceu. Levantou-lhe a perna direita e a pôs ao redor do quadril; depois fez o mesmo com a esquerda. Ela se deixou ir docilmente. Enquanto se preparava para penetrá-la, ela gemeu e o aproximou apertando-o com as panturrilhas. Mais controle era impossível; enterrou-se dentro dela com uma feroz investida. Ela afogou uma exclamação, no limite entre o prazer e a dor. Ofegante, ele se obrigou a ficar imóvel para que ela se adaptasse a ele. Só o feito de estar dentro dela quase bastou para fazê-lo chegar à culminação. Vibravam-lhe todas as partes do corpo. Sentia-se como se tivesse entrado em um porto seguro, mas ao mesmo tempo uma tempestade açoitava furiosa em seu sangue. Rodeou-os o aroma almiscarado da excitação sexual, tão íntimo como seus corpos. Segurando-lhe as costas com a mão direita, deslizou a mão esquerda entre eles até lhe tocar justo em cima do lugar por onde estavam unidos. Encontrou a sensível proeminência e a esfregou brandamente com um nódulo. Ela emitiu um gemido e começou a mover os quadris esfregando-se contra ele; de repente a agitou um lento estremecimento e afundou a cara em seu ombro. Uma série de contrações mais rápidas desencadeou a ejaculação sem a necessidade de mover-se; alagouo um violento prazer, embora no centro desse orgasmo caótico e limpador havia paz. Ofegante, apertou a testa contra a dela. - Deus santo, Maxie. Como queria. ..oxalá. ..oxalá houvesse algo que eu pudesse fazer para te devolver o tipo de bem-estar que você me dá. Bem-estar. Maxie suspirou, contente de que ele não pudesse ver sua expressão na escuridão. Ao compreender seu angustiada necessidade, lhe deu prazer livremente, em troco recebera um êxtase embriagador; não era uma má troca. Mas não pôde evitar desejar ser para ele algo mais que uma fonte de bem-estar emocional e desafogo sexual. Não, não era justa; Robin lhe dava tudo o que era capaz de lhe dar. Não era culpa dele que não a amasse. Separou-se dele, esperando que lhe funcionassem os músculos para não cair desmoronada sobre o altar de pedra. - Creio que te arruinei a gravata. - Se for assim, guardarei os restos entre as páginas de um livro de poemas para o resto de minha vida. A essa galanteria acrescentou um beijo. Enquanto seus lábios acariciavam os dela com suave afeto, uma ideia supersticiosa a fez estremecer. Prometeu-se que fariam o amor pelo menos uma vez mais. Essa vez fora essa relação rápida e ligeira? Tentou ver para diante, acreditar que os esperava toda uma vida para fazer amor, mas não conseguiu ver nada fora da negra névoa do desespero. Voltou a estremecer. - Tem frio, disse ele, preocupado. - É hora de que nos ponhamos respeitáveis para voltar para a casa. Agarrou-a pela cintura e a depositou brandamente sobre o chão de mármore. Enquanto lhe dava um lenço para que se limpasse acrescentou: - Semi212
respeitável irá bem. Se estivéssemos imaculados, ninguém acreditaria. - Imaculados não é uma possibilidade, comentou ela alisando a saia do vestido. Felizmente o xale tinha protegido o vestido da pedra tosca. - Espero que todos nos dêem o benefício da dúvida e suponham que quão único temos feito é nos dar uns quantos beijos. - Naturalmente isso é quão único ocorreu, afirmou ele com sua voz de mascate, saturada de falsa sinceridade. - Depois de tudo, você é uma donzela inocente e eu sou um cavalheiro. - Estritamente nominais em ambos os casos. O penteado estava se desmoronando. Encontrou as presilhas e o firmou, com a esperança de que o resultado não fosse muito extravagante; depois arrumou o xale sobre os ombros. Robin a rodeou com o braço e começaram a caminhar lentamente para a casa. - Um de meus motivos para te levar a Ruxton era ver se você gostava, disse ele timidamente. - Sempre tive carinho a essa casa, embora só estive nela umas seis vezes em minha vida. Acredita que poderia ser feliz vivendo em Ruxton? Ela pensou na quente pedra, nas ondulantes colinas verdes, no ar acolhedor e elegante da casa. Ruxton desejava ser um lar e ela era uma mulher que toda sua vida tinha ansiado um lar estável. Com voz quase inaudível, respondeu: - Sim. Se... se resolverem as coisas entre nós, poderia chegar a ser feliz ali. Mas aquele era um se muito, muito grande.
CAPÍTULO 33
Durante o trajeto a casa na carruagem, Desdêmona e Giles conversaram com naturalidade, com palavras que qualquer um poderia ter ouvido, mas a mão grande e forte dele envolvia as duas dela, fazendo-a sentir-se ridiculamente feliz. Não havia sentido essa borbulhante espera desde que era pequena. Quando chegaram a casa, Giles subiu com ela os degraus e a teve uns instantes agarrada pelos braços, com expressão absorta. Por um momento aumentou a pressão das mãos, e ela pensou se iria beijá-la, aí mesmo, no Mount Street. Nesse momento sua criada abriu a porta e ele desceu as mãos. - Boa noite Desdêmona, disse. Foi uma noite muito agradável. Sim, e era muito cedo para que acabasse. - Não é tão tarde, na realidade. Não gostaria de entrar um momento? Beber um pouco de conhaque, talvez? O marquês vacilou, claramente pensando em rejeitar o convite. Surpreendida por seu temor, lhe sorriu. - Por favor ? - Uns minutos então - disse ele, depois de um silêncio pouco adulador. Ela enviou aos criados à cama, depois conduziu Giles ao salão e serviu conhaque para os dois. Sentados frente a frente, conversaram de coisas transcendentes durante um momento, mas a naturalidade anterior se desvaneceu. O marquês a olhava com uma 213
expressão nebulosa e pensativa que a punha nervosa. Embora durante a noite considerou adulador seu interesse, já não estava tão segura. Talvez, pensou com profunda tristeza, ele considerava que seu interesse fora um engano momentâneo e nesse momento estava pensando como desfazer-se dela com elegância. Ele acabou seu conhaque e se levantou. - Creio que é melhor que vá. Desdêmona o olhou fixamente, segura de que fez algo mal. - Não me olhe assim, disse-lhe ele com um brilho de humor nos olhos, - como se acabasse de votar contra seu projeto de lei de amparo aos aprendizes. Ela desviou o olhar, tentando controlar sua expressão. Uma mulher como ela devia ter aprendido já aos dezessete anos a não levar o coração na manga. Entretanto ela, que estava no lado sombrio dos trinta, atuava como uma tola ingênua. Giles soltou uma maldição em voz baixa. - O problema não é você, Desdêmona, e sim eu, disse-lhe francamente. - Se ficar, vou ter muitíssima dificuldade para não te pôr as mãos em cima, e é provável que seja muito incômodo isso. Certamente vai danificar o cortejo lento e refinado que planejamos. Cortejo? Ouvir isso a tranquilizou. - Não creio provável que te vá converter em uma fera luxuriosa. E se te ocorre, olhouo timidamente, é um risco que estou disposta a correr. Giles sorriu, mas moveu a cabeça. - É possível que consiga me comportar como um cavalheiro, mas não posso garantir. - Estupendo! - disse ela temerariamente. Ele riu, formando ruguinhas na pele bronzeada de ao redor dos olhos. - Dá-se conta do muito que já mudou nas duas últimas semanas? - Espero que seja para melhor. - Isso eu creio, certamente. Apoiou as costas no suporte da chaminé, com os braços cruzados sobre o peito e a expressão séria. - Talvez seja muito cedo para uma proposta formal de matrimônio, mas eu gostaria que considerasse a possibilidade. Desdêmona ficou olhando, desvanecido o alívio. Deixou-se levar, encantada por sua companhia e sua admiração, mas ao pôr ele o assunto sobre a mesa, a dolorosa realidade se abateu sobre ela. Ele arqueou as sobrancelhas ao ver sua expressão. - Não te surpreenderá, suponho. No Daventry já falamos desta perspectiva. - Suponho que pensei que depois de ter a oportunidade de considerar não me faria a oferta, respondeu ela com um fio de voz. Ele fez o sorriso médio irônico que lhe encantava. - Não sei se isso indica falta de fé em mim ou em você. Desvaneceu-se o sorriso. - É prova viva de que uma mulher não necessita de um marido para levar uma vida digna de viver. Compreendo que no caso de que deseje voltar a se casar, talvez preferiria a uma pessoa mais prometedora. Simplesmente... Simplesmente me diga isso agora e não voltarei a tocar no tema. Essas palavras lhe recordaram que não era a única que se sentia insegura. - Não me cabe a menor dúvida de que seria um marido maravilhoso. O problema é, 214
tragou saliva, - que não sei se eu seria uma boa esposa. Ele a olhou aos olhos. - É sincera, formosa, tem bom coração, e não suporta de boa vontade aos estúpidos. Para mim, essas são excelentes qualidades para uma esposa. Ela sorriu pelo que ele considerava importante, mas desviou o olhar. - Não sei se posso te dar um herdeiro. É certo que meu marido e eu não compartilhamos cama muito tempo, ou seja, que é possível que não seja estéril, mas já tenho mais de trinta... - Isso não importa, interrompeu-a ele. - Faço-te a proposta porque desejo que seja minha esposa, não uma égua de cria. Não me incomoda pensar que Robin ou seu filho possuam Wolverhampton depois de mim. Em seus olhos brilhou uma desoladora tristeza. - Minha mãe e minha primeira esposa morreram de parto. Não quereria que te ocorresse isso. Desdêmona desceu os olhos a suas mãos, que tinha apertadas nervosamente na saia. O problema das verdades pela metade é que não são muito amparo quando se derrubam. Deveria ter sabido que não poderia evitar a verdade real. Obrigou-se a olhá-lo. - Há outra razão, mais fundamental, que me faz temer que não seria uma boa esposa para você. Você é um homem apaixonado, ardente. Certamente te convém uma esposa que seja igual. Mas eu não sei se sou capaz de ser esse tipo de mulher. Esperava que ele entendesse o que queria dizer, mas não teve essa sorte. Ele esteve calado um bom momento. - Poderia me explicar com mais clareza o que quer dizer? disse ele finalmente, com voz doce. - Meu marido... - lhe quebrou a voz e lhe afundaram os ombros, - estava acostumado a dizer que deitar-se comigo era como deitar-se com um pedaço de gelo; que qualquer mulher da rua era mais ardente que eu. Giles se aproximou, sentou-se no braço da poltrona e a rodeou com seus braços. - Shh, carinho - disse-lhe, balançando-a docemente, esfregando a bochecha em seu cabelo. - Poucas mulheres são apaixonadas por um matrimônio desgraçado. Não se condene pelas palavras de um bruto egoísta. Ela se abraçou a ele tremendo, mas suas palavras lhe aliviaram um pouco a opressão que sentia dentro. Jogou brandamente para trás os cabelos. - É incrivelmente justa. Provavelmente não há nenhuma outra mulher em Londres que revele tão conscientemente seus defeitos quando um marquês lhe oferece matrimônio. Ela se afastou um pouco para olhá-lo francamente aos olhos. - Não me interessa me casar com um marquês. Interessa-me Giles Andreville, que é o homem mais bondoso, mais encantador e mais atraente da Inglaterra. Lentamente se formou um amplo sorriso na cara de Giles. - Parece que nós dois consideramos boa ideia o matrimônio, quando nos casamos, então? Antes que ela pudesse responder, ele inclinou a cabeça e a beijou. O desejo, que se tinha partido quando estava revelando seus temores, começou a voltar. Correspondeu-lhe 215
o beijo, desejando ter mais experiência. Ele levantou a cabeça e a olhou aos olhos, sorrindo. - Não beija como uma mulher fria. Levantou-se e a puxou pela mão para pô-la de pé e envolvê-la em outro comprido abraço. Ela desfrutou do contato com seu corpo largo e musculoso. Ele era o único homem, em toda sua vida, que a fazia sentir-se delicada e feminina. Apertou-se contra ele e se entregou ao seu beijo. Ele se afastou com a respiração rápida e rouca. - Creio que podemos nos arrumar a nossa mútua satisfação, não te parece? Talvez ele tinha razão, mas ela não queria arriscar-se ao desconhecido. Desceu a vista a sua gravata e disse hesitante: - O matrimônio é para sempre, Giles. Seria melhor que não fizéssemos nada tão irrevogável enquanto não estivermos seguros. Ou melhor dizendo - retificou, enquanto eu não estiver segura de que sou capaz de cumprir minha parte do trato. - Nunca haverá nenhuma garantia, Desdêmona, disse ele muito sério. - Creio que é suficiente que confiemos em que o amor nos ajudará. Roçou-lhe a bochecha em uma suave carícia. - E eu te amo, muitíssimo. - Eu também te amo, sussurrou ela, - mas não tenho tanta fé como você. Creio que seria melhor se... se provássemos primeiro. Ele a olhou fixamente. - Desdêmona, está-me tentando? Ela assentiu, ruborizada, e voltou a baixar a cabeça. Ele a envolveu em seus braços e começou a rir. Ela se sentiu humilhada e tentou soltar-se. Mas ele não a deixou escapar. - Tem uma ideia de quão alarmante é para um homem que lhe digam que todo seu futuro depende da sua atuação de uma noite? A ideia é paralisadora. Então ela entendeu que ele ria não dela mas sim dele e do maravilhoso absurdo da natureza humana, e pôde rir com ele. - Não tem por que ser uma só noite. Podemos tomar todo o tempo que seja necessário. Sorriu travessa e se apertou mais contra ele. - E embora haja passado muitíssimo tempo da última vez que estive tão perto de um homem, se a memória não me falhar, os indícios me dizem que não parece estar absolutamente paralisado. Giles afogou uma exclamação e a estreitou com mais força. - Vejamos se consigo te convencer de que será a melhor de todas as esposas possíveis? Inclinou-se a lhe dar outro beijo, e este os deixou aos dois sem fôlego. Sem dizer uma palavra, ela o guiou pela escada e o corredor até seu dormitório, com a cabeça apoiada em seu ombro; não recordava ter-se sentido mais feliz em toda sua vida. Em algum momento durante esse último beijo, compreendeu que ele tinha razão, que a potente atração que sentia por ele significava que era capaz de ser uma esposa ardente e bem disposta. Mas seria uma lástima saltar a prova. Giles fechou a porta do dormitório e se voltou para ela. - Permita que te olhe, disse-lhe docemente. 216
Sua criada deixou acesa o abajur na mesinha de noite, e sua luz era suficiente para lhe ver a intensidade de sua expressão. Timidamente ficou imóvel enquanto ele dava uma volta ao seu redor. Desabotoou-lhe o colar de pérolas, lhe beijando brandamente a nuca quando terminou. Depois lhe passou os dedos por entre os cabelos fazendo os cair sobre os ombros, e afundou a cara neles. - Faz muito tempo que desejo fazer isto, sussurrou. - Seus cabelos são como fogo e seda, igual ao resto de você. Seu fôlego lhe esquentou a garganta; sua admiração lhe esquentou o coração. Com uma nascente confiança, disse-lhe: - Eu também quero ver-te, Giles. Desatou-lhe a gravata e desabotoou os botões do pescoço, para poder pôr as mãos sobre a agradável extensão de seu peito. O pêlo castanho lhe fez cócegas nas palmas, e notou a aceleração de seu coração. Alternaram-se em tirar mutuamente, com muito gosto muito, peça por peça, com deliberada lentidão, alimentando o fogo da paixão com doces sussurros e suaves carícias. Quando sua anágua caiu ao chão com um frufru, deixando-a nua, somente com as meias, ele exclamou com voz rouca: - É formosa, maravilhosamente formosa. Boadicea, a Rainha guerreira da GrãBretanha devia ser como você, toda ela cabelos avermelhados e abrasadora força feminina. - Sorriu. -Desde que te vi no Daventry, pensei que tem um pescoço magnífico. Ela se ruborizou. - Isso é o que esteve olhando toda a noite? - É óbvio que te olhava o pescoço. É que não sou um cavalheiro? Agarrou-lhe os peitos, levantando-os e moldando-os com as mãos, e acrescentou, com voz rouca: Também faz tempo que desejo fazer isto. Esfregou a cara na profunda e acolhedora fenda entre seus peitos e começou a lhe lamber e lhe beijar os mamilos, adorando-a com suas carícias. Ela reteve o fôlego e jogou a cabeça para trás. Pela primeira vez em sua vida se sentiu a gosto com seu corpo de prostituta, porque procurava agradar a ele. Mais que qualquer outra coisa no mundo, desejava agradá-lo, compartilhar com ele a sorte que começava a alagá-la. Quando se meteram na cama, fizeram-no como companheiros. Quando se uniram, ela o fez com ânsias frenéticas, com a necessidade de convertê-lo em parte dela. E quando gritaram de prazer, fizeram-no juntos. Foi uma noite de acanhamento e de descobertas, de paixão e risadas, muito preciosa para desperdiçá-la dormindo. Desdêmona descobriu que não era uma mulher fria, não, absolutamente, e no ato de amor convenceu ao Giles de que só uma boba absoluta podia tê-lo achado aborrecido. Quando não estavam fazendo amor, conversavam abraçados, revelando seus pensamentos com a mesma intimidade com que se comunicavam seus corpos. Quando Giles observou que o ceu se iluminava com as primeiras luzes da alvorada, disse com enorme pesar: - Amanhece muito cedo nesta estação. Seu fôlego lhe moveu os cabelos revoltos. 217
Não desejo partir, mas é hora de que vá. Ela deu uma volta até ficar quase em cima dele, com o queixo em seu peito. Não havia nela nem rastro da mulher furiosa e em atitude defensiva que tinha irrompido em sua tranquila vida. Toda ela era uma doce acolhida. - Porque vai partir? Os criados já teriam deduzido o que acontece. - À exceção de meu cocheiro, não necessariamente - disse ele e sorriu. - Reconheço que para pessoas de nossa avançada idade, o decoro não é de importante importância, mas prefiro que não haja fofocas em torno de seu nome. Sorrindo travessa, ela meneou suas curvas com tão bom efeito que ela atraiu para si para outro beijo. Quando foi necessário respirar para sobreviver, ele disse ofegante: - É uma mulher desavergonhada, e eu sou um homem afortunado. Novamente sua branca pele de ruiva se tornou cor rosa. - Seus encantadores rubores se estendem mais do que eu imaginava, disse ele com interesse. Isso a fez ruborizar-se ainda mais. Quando Giles terminou de investigar até onde lhe chegavam os rubores, já tinha transcorrido outra meia hora. Depois, quando repousavam entrelaçados, ela disse em um sussurro: - Não sabia que podia ser assim. - Eu tampouco. Ela levantou a cabeça e o olhou surpreendida. - Seriamente? - Seriamente. Acariciou-lhe o ombro nu. Suponho que tive a quantidade de experiência normal, mas nunca antes fiz o amor tão intensamente. Nada do passado igualou isto. Voltou a beijá-la longamente. Está preparada para tomar uma decisão a respeito do matrimônio, ou necessita de mais tempo? Ela se pôs a rir e fechou os braços ao redor de seu pescoço. - Acredita que sou tão tola para te deixar escapar?
CAPÍTULO 34
A estalagem Abigdon estava em uma rua chamada Long Acre, perto do Covent Garden. Quando a carruagem de aluguel se deteve diante dela, a cara de Maxie se esticou. Do momento em que despertou, a negra angústia esteve sufocantemente perto. Não podia desprender-se da sensação de que estava em um caminho que transformaria para sempre a vida que conhecia. Mas não tinha outra alternativa que continuar adiante. Com o Robin tinha decidido que era melhor visitar a estalagem e fazer perguntas. Certamente ali recordariam a morte de um cliente. E se não recebiam respostas claras, bom, isso lhe daria outro tipo de informação. Robin a ajudou a descer do carruagem. Deteve-se um momento a contemplar a casa. Era pequena e respeitável, mas só isso. Seu pai não tinha dinheiro para estabelecimentos 218
mais elegantes. Agarrando ao braço do Robin, elevou o queixo e caminhou para a porta. Quando o casal de jovens bem vestidos desapareceu pela porta da estalagem, o proprietário de uma loja de tabaco os observou através dos sujos cristais de sua cristaleira, entrecerrando os olhos para comprovar se suas aparências correspondiam às descrições recebidas: um homem loiro, tão fleumático como um lorde e uma Vênus morena de tamanho pequeno. O ancião assentiu, esses deviam ser. Voltou-se para seu ajudante. - Vá à esquina e diga ao Simmons que os que me pediu que vigiasse estão neste momento na Abigdon. Vá depressa, e se não estiver lá, busca-o. Há meia coroa para você se chegar aqui a tempo. E para ele haveria três libras menos a meia coroa. satisfeitíssimo, o proprietário da loja se convidou a um de seus charutos mais caros. Decidiram de antemão que seria Robin quem falaria, já que normalmente aos homens tomavam mais a sério. Quando se encontraram diante um recepcionista com a cara cheia de grãos, Robin lhe perguntou: - Poderíamos falar com o dono, por favor? O empregado levantou a vista do jornal que estava lendo e olhou insolentemente a Maxie. - Posso lhes alugar um quarto, disse, mas terão que pagar o dia completo embora só o desejem por uma hora. - Não necessitamos de um quarto, disse Robin, com voz gelada. - Desejamos falar com o dono. Agora mesmo. O empregado e considerou a possibilidade de dar uma resposta mal-humorada, mas pensou melhor. - Verei se Watson quer falar com vocês. Maxie apertava e abria as mãos enquanto esperava. Se não fosse pela tranquilizadora presença de Robin, teria subido pelas paredes. Agradeceu que ele não tentasse conversar. No humor em que estava seria capaz de lhe arrancar a cabeça a dentadas. Durante uma tempestade de neve de inverno tinha afugentado a uns lobos com mais serenidade da que tinha nesses momentos. Fechou os olhos e se obrigou a respirar mais lentamente. Conhecer a verdade teria que ser melhor que viver com essa angústia. Voltou o empregado e fez um gesto, indicando com o polegar por cima do ombro. - Receberá vocês. Pelo corredor, a última porta à esquerda. Watson era um homem magro, de incipiente calvície, com um aspecto de irritação crônica. - Digam o que traz vocês aqui e rápido - bramou, sem se incomodar em levantar-se da cadeira diante da sua mesa. - Sou um homem ocupado. - Sou lorde Robert Andreville, disse Robin energicamente. - Faz uns três meses, morreu aqui, inesperadamente, um de seus alojados, o senhor Collins. - O tipo norte-americano. A cara do Watson ficou inexpressiva. - Sim, estirou a pata aqui. - Poderia nos dizer algo sobre as circunstâncias de sua morte? Diante do silêncio do homem, especificou: - Quem o encontrou e a que hora? Estava vivo ainda quando o 219
encontraram? Chamaram um médico? - O que importa a você isso? - perguntou o administrador, carrancudo. - Era meu pai - disse Maxie sem poder conter-se. - Suponho que tenho direito de saber como foram seus últimos momentos. Watson se voltou a olhá-la atentamente, com expressão indecifrável. - Sinto muito, senhorita. Desviou a vista. - Uma garçonete o encontrou pela manhã. Já estava morto. O médico disse que deve ter sido um ataque do coração. Morreu repentinamente. - Como se chama o médico ? - perguntou Robin. Watson ficou de pé com expressão mal-humorada. - Já ocupou boa parte de meu tempo. Não há nada mais a saber. Collins morreu e é tudo. Se não tivesse morrido aqui, teria morrido em qualquer outra parte, e oxalá tivesse sido assim. Agora, fora. Tenho trabalho que fazer. Maxie abriu a boca para protestar, mas Robin lhe agarrou firmemente o braço. - Obrigado por seu tempo, senhor Watson. Depois de que seu companheiro a tirou do escritório e fechou a porta, ela protestou: - Quero lhe fazer mais pergunta, Robin. Ocultava algo. - Sim, mas não vai dizer mais sem violência física, e é muito prematuro tentar isso. Pode haver uma maneira melhor de descobrir o que queremos. Em lugar de seguir pelo corredor para o vestíbulo, Robin se dirigiu para o outro lado. Os criados sempre sabem o que acontece, e talvez ninguém lhes ordenou que não digam nada. A porta do final do corredor dava a um pátio pavimentado com estábulos encostados a três dos muros. Maxie seguiu Robin pelo pátio até uma série de portas abertas. No interior, um ancião moço de quadra estava azeitando umas guarnições, assobiando desafinado através de dentes torcidos. - Bom dia, senhor, saudou Robin alegremente. O moço levantou a vista, surpreso mas não molestado pela interrupção. - Bom dia, senhor. No que posso lhe servir? - Meu nome é Bob Andreville, disse estendendo a mão. Seu acento era claramente norte-americano, muito mais que o de Maxie. Estava pensando, leva muito tempo trabalhando aqui? O moço se limpou a mão azeitada nas calças e estreitou a mão ao Robin. - Só dez anos, disse. Meu nome é Will Jenkins. É você norte-americano? - Sim, mas meu pai nasceu no Yorkshire. Esta é minha primeira visita a Inglaterra. Teria vindo antes, se não tivesse sido pela guerra. Moveu a cabeça. - Condenada estupidez as guerras. Os norte-americanos e os ingleses deveriam ser amigos. - Isso é certo, disse a moço. Tenho uma prima na Virgínia. Você é dessa parte das colônias? E assim continuaram nessa veia enquanto Maxie se movia nervosa e inquieta, embora reconhecia que Robin tinha razão. O moço de quadras amistoso lhes diria muito mais que o hospedeiro hostil. Ao final de uns momentos, Robin disse, por fim: - Faz uns meses, esteve aqui de visita meu amigo, Max Collins. Justo antes de me 220
embarcar, inteirei-me de que morreu, mas ninguém sabia como ocorreu sua morte. Recordava o nome da estalagem onde se alojava e pensei que já que estava na cidade bem podia passar por aqui a ver se me inteirava de algo para dizer a sua família. Franziu os lábios. - Ali se houvem histórias de quão perigoso é Londres. Assaltaram-no uns ladrões? - Nada disso. O senhor Collins morreu aqui, em sua cama. Jenkins moveu a cabeça grisalha, lamentando. - É uma pena. Era um cavalheiro distinto, muito agradável com todos, inclusive com esse parasita do Watson. Causou verdadeira comoção quando se suicidou. Essas palavra golpearam Maxie como uma bala de canhão, o impacto foi tão demolidor que transcendia à dor. “Se suicidou. Se suicidou”. Ouviu a exclamação afogada do Robin. - Não, exclamou. Max não pôde ter feito isso. Jenkins a olhou compreensivo. - Lamento ser eu que o diga se era um amigo dele, senhorita, mas não há nenhuma dúvida. O cavalheiro tentou organizar tudo para que ninguém soubesse, mas não teve suficiente cuidado. Devia estar sofrendo por algo e decidiu que já não podia suportá-lo. Muitos sentem isso. O senhor Collins fez algo a respeito. Quando era menina, uma vez Maxie se aventurou a passar por um lago gelado durante um degelo de janeiro. Vinte anos depois ainda não esqueceu seu terror quando o gelo que acreditava sólido começou a romper-se sob seus pés. Desesperada tentou retroceder, mas o gelo já estava trincado por toda parte; caiu na água gelada e estava a ponto de afogar-se quando, tendo ouvido seus gritos, acudiu seu pai a resgatá-la. Nesses momentos seus sentimentos eram similares aos que sentiu aquela vez, mas mil vezes piores. O que havia dito Jenkins era impossível, insuportável, e não era a água a que a estava tragando e sim uma angústia demolidora. - Não, repetiu cobrindo a cara com as mãos. - Meu pai não se teria matado nunca. Não! Mas as peças encaixavam com terrível precisão. Isso explicava tudo o que fora incapaz de compreender. Sem pensar girou e pôs-se a correr pelo pátio até o portal ficava ao Long Acre. Ouviu Robin gritar seu nome, mas sua voz lhe soou remota, sem importância. Quando saiu à rua se chocou com um homem que cheirava a cebola. Caiu-lhe o chapéu e esteve a ponto de cair ela, mas conseguiu recuperar o equilíbrio. Cega a tudo, saiu do meio-fio, sem fazer caso do tráfego. Um grito rouco soou em seu ouvido; alguém a agarrou fortemente pelo braço e a tirou do caminho de um cavalo encabritado, evitando por um cabelo que os cascos com ferraduras lhe rompessem o crânio. Fazendo caso omisso de seu salvador, soltou-se e continuou correndo, como se em alguma parte existisse um lugar onde o passado fosse diferente, onde não tivesse que acreditar que seu pai havia se suicidado. Tropeçou e deu com todo o corpo no sujo meio-fio. O golpe a deixou sem fôlego, mas não sentiu nada quando os joelhos e palmas se estrelaram nos paralelepípedos. Ficou de pé e estava a ponto de reatar sua fuga quando umas fortes mãos a 221
agarraram. - Basta, Maxie! - disse-lhe urgentemente uma voz conhecida. - Pelo amor de Deus, pare antes que a matem. Tentou escapar, mas ele não a soltou. Enquanto ele a tirava da rua, ela fechou os punhos e o golpeou. - Meu pai não teria se matado nunca me deixando abandonada! - gritou entre soluços, com a cara banhada em lágrimas. - Amava a vida e me amava. Não teria feito isso jamais! Robin compreendeu que era a ela mesma a quem queria convencer. Tentou lhe imobilizar os punhos lhe segurando ambos os braços aos lados em um abraço férreo. Ela continuou debatendo-se, frenética. Ele ficou sem fôlego quando lhe cravou um cotovelo no estômago. Era uma mulher perigosa para reter contra sua vontade, mas não se atreveu a empregar mais força. Desesperado por acalmá-la antes que se fizesse mal a si mesmo, disse-lhe em tom severo: - Não sabemos com segurança o que ocorreu, Kanawiosta. É possível que Jenkins esteja equivocado. Temos que averiguar mais. Ela fez uma dolorosa e rápida inspiração e ficou quieta, todo seu corpo tremendo em seus braços. Ele compreendeu então que suas palavras tinham tido o efeito contrário ao desejado: em lugar de convencê-la de que o moço de quadra podia estar equivocado, tinham-lhe feito impossível negar a verdade. Doeu-lhe seu sofrimento, sabendo que ela estava em algum inferno particular no que ele não podia acompanhá-la a menos que ela o permitisse. Sem fazer caso dos olhares curiosos, continuou lhe falando em voz baixa, seus lábios perto de seu ouvido, com a esperança de que o som de sua voz a tranquilizasse embora não prestasse atenção às palavras. De repente, o instinto desenvolvido durante seus perigosos anos no Continente o fez elevar a vista. A meia maçã, ao outro lado da transitada rua, estava Simmons, com expressão lúgubre. Deus santo, por que tinha que aparecer esse maldito justo naquele momento? Fez gestos a uma carruagem de aluguel que ia passando; quando se deteve, agarrou Maxie nos braços e afastou bruscamente a um comerciante que pretendia subir ao mesmo veículo. - Mayfair, o mais rápido possível, gritou ao cocheiro. - Cinco tostões extras se fizer o trajeto na metade do tempo normal. Quando o carruagem entrou com uma sacudida no meio do tráfego, Robin se acomodou no assento, com Maxie embalada em seus braços. Depois fez uma oração pedindo sabedoria para ajudá-la como ela o ajudou. Simmons observou partir para carruagem de aluguel com o cenho franzido. Era evidente que a garota se inteirou da verdade e a tomou muito pior do que tinha temido seu tio. Fez um gesto a um esquálido rapaz que trabalhava para ele regularmente. - Vê aonde vão. O menino correu atrás do carruagem; quando lhe deu alcance, de um salto se agarrou de uma barra da parte posterior, encarapitou-se e se acomodou para o resto do trajeto. Quando voltasse o moço, pensou Simmons, pelo menos poderia lhe dizer ao Collingwood onde estava alojada sua sobrinha. Não era muito, mas era só o que podia 222
salvar de um trabalho que, pelo resto, fora um desastre do começo até o final. Embora consciente, Maxie estava consumida na emoção, com o corpo frio e tremendo; parecia não perceber a presença do Robin. Ele a embalou em seu colo durante todo o trajeto até a casa Candover, tentando sem êxito de lhe infundir seu calor. A primeira vez que lhe falou da morte de seu pai, ele considerou a possibilidade de suicídio, porque isso explicava o desejo do Collingwood de mantê-lo em segredo. Como foi o que disse Maxie em Ruxton quando falou de que não podia projetar seu futuro? Algo assim como uma possibilidade que era literalmente impensável. Conhecendo seu pai melhor que ninguém, nunca lhe ocorreu que fosse capaz de tirá-la vida. E entretanto o fez e saber isso a tinha afundado. Quando chegaram à casa Candover, Robin passou com ela nos braços junto ao sobressaltado mordomo, lhe dando ordens por cima do ombro de que enviasse água quente, toalhas, ataduras e unguento a seu dormitório. Subiu com ela até ali, depositou-a na cama e lhe tirou o destroçado vestido de musselina e as meias. Nesse momento não lhe importavam um maldito pepino as regras sociais. Quando chegou o que tinha pedido, despediu-se da criada e depois procedeu a lhe lavar brandamente os machucados nos joelhos e mãos, limpando-os do sangue, pó e cascalhos. Nenhuma das feridas era profunda para lhe pôr ataduras, embora deveram lhe doer como demônio quando lhes aplicou o unguento em carne viva. Ela não resistiu, não cooperou nem manifestou nenhuma moléstia durante a cura. Limitou-se a permanecer deitada passivamente, sem olhá-lo nenhuma só vez nos olhos. Quando ele acabou, ela se deu meia volta e escondeu a cabeça nos travesseiros. Ele pensou se esse retraimento total seria um aspecto de sua herança mohawk. E não era que lhe importasse o motivo; o que lhe importava era que ela o excluía. Nunca tinha imaginado que isso doesse tanto. Agasalhou-a com uma manta e depois colocou sua mão sobre o punho fechado dela. - Há algo que eu possa fazer ? Ela fez um muito leve movimento de negação com a cabeça. - Kanawiosta, disse-lhe docemente, - quando eu me estava afogando na angústia você me disse que uma carga compartilhada é mais leve. Não quer aceitar nada de mim? - Agora não, respondeu ela com a voz afogada pelo travesseiro. - Sinto muito. - Quer que vá? Ela assentiu. Com o coração oprimido, ele se incorporou. Apesar do seu pequeno volume, nunca a havia visto frágil, mas nesse momento, a miúda forma sob a manta parecia diminuída e vulnerável. Não tentou definir seus sentimentos; só sabia era que de boa vontade daria tudo o que possuía para aliviar seu sofrimento. Apressado pela necessidade de expressar algo de sua ternura, roçou-lhe os cabelos negros em uma carícia muito suave para que ela a sentisse. Depois se obrigou a sair do quarto. Informada pelos criados de que havia problemas, a duquesa esperava pacientemente 223
fora, sentada em uma cadeira com as mãos entrelaçadas na saia. - O que ocorreu? - perguntou ao Robin em voz baixa, tão logo este saiu. Ele suspirou e se passou a mão pelo cabelo, com ar de frustração. - Ao que parece, o pai de Maxie se suicidou. - Oh, Meu deus! - murmurou ela, empalidecendo. Tendo perdido o seu pai em circunstâncias trágicas, entendia muito bem a dor de Maxie. - Queria Deus que eu pudesse fazer algo, disse ele com uma careta, mas o único que deseja é que a deixe sozinha. - Dê-lhe tempo para que passe a emoção, aconselhou-o ela. O luto é um assunto que se deve confrontar sozinha. Às vezes é necessário entrar primeiro no interior da gente mesmo e fazer as pazes ali para logo poder aceitar consolo de outros. - Não me cabe dúvida de que tem razão duquesa, respondeu Robin tentando sorrir, mas é muito terrível vê-la assim. - O amor faz sofrer, Robin. Igual à fome - acrescentou, com o fim de alegrar um pouco a atmosfera; - agora me sinto faminta com muita frequência. Venha tomar o chá comigo. Agarrando-lhe o braço, levou-o de volta da sala de refeições Tomar chá não era grande coisa, mas era melhor que nada.
CAPÍTULO 35
Acabavam de tomar o chá em silêncio, quando entrou o mordomo com um cartão de visita. Margot o olhou e arqueou as sobrancelhas. - Lorde Collingwood veio. Robin se avivou imediatamente. - Parece bom que o recebamos juntos? Interessa-me muitíssimo ouvir o que vai dizer. - É obvio. O mordomo saiu e em poucos minutos fez passar ao visitante. Lorde Collingwood era um homem alto, de rosto magro e aspecto cansado. - Tenha a bondade de perdoar a intrusão duquesa, disse depois de uma cortês inclinação, - mas tenho motivos para acreditar que minha sobrinha, a senhorita Máxima Collins, está alojada aqui. Queria vê-la. - Está aqui, respondeu Margot, - mas se sente indisposta e não quer receber ninguém. Quereria lhe deixar uma mensagem? Collingwood titubeou. Enquanto pensava, seu olhar recaiu em Robin, que se tinha retirado discretamente a outro lugar da sala. O visconde fechou os olhos. - Minha sobrinha fez a viagem com um homem cuja descrição corresponde a você. Robin inclinou a cabeça. - Sou lorde Robert Andreville. - O irmão mais nova do Wolverton? - perguntou o visitante, surpreso. 224
- O mesmo. Collingwood moveu a cabeça, incrédulo. - E eu que estava preocupado de que a garota se deixou enganar por um patife. - O berço nobre não está necessariamente à prova de vilania, respondeu Robin sarcástico. - Entretanto, minhas intenções em relação à senhorita Collingwood foram honradas. Encontramo-nos por acaso. Conhecedor dos perigos a que se arriscava, oferecime a acompanhá-la com o fim de me ocupar de que chegasse sã e salva a Londres. Enquanto falava, observava atentamente ao seu interlocutor. Comprovou que este tinha uma leve semelhança com sua irmã, embora com um ar mais formal e tradicional que o de lady Ross. De todos os modos, tinha o aspecto de ser um cavalheiro inglês, não do tipo que faria assassinar a um irmão incômodo. Com razão a Maxie custava acreditar que seu tio pudesse ser tão desumano. - Certamente protegeu bem a minha sobrinha do agente da delegacia de polícia do Bow Street que enviei atrás dela, disse Collingwood com uma deixa de humor na voz. - Deus santo, Simmons é um policial? - exclamou Robin atônito. Passado o momento de surpresa, riu de si mesmo. - Deveria ter imaginado. Maxie e eu cremos que era algum tipo de vilão. - Policiais e delinquentes revistam parecer-se entre eles, concordou Collingwood, mas Ned Simmons é um dos melhores agentes do Bow Street. Encarreguei-o que investigasse a morte de meu irmão e que fizesse todo o possível para impedir que o assunto chegasse a conhecimento público. Muito à margem da possibilidade de escândalo para a família, não queria que houvesse nenhum problema para enterrar Max no cemitério. Casualmente, Simmons estava no norte quando minha sobrinha escapou, de modo que lhe pedi que a levasse de volta para casa. Aceitou o assento que lhe indicou Margot com um gesto. - Pelo que me disse Simmons, continuou preocupado, - minha sobrinha estava muito alterada depois de visitar a estalagem Abigdon. Robin assentiu. - Inteirou-se de que seu pai se havia suicidado. O hospedeiro não soltou palavra, Suponho que você ou Simmons lhe pagaram para que guardasse silêncio, mas um dos criados nos disse isso. Maxie tomou muito mal a noticia. Collingwood suspirou cansativamente. - Isso eu temia; queria muitíssimo ao Max. Eu invejava a filha ao meu irmão. Minhas filhas... - interrompeu-se. Ao final de um momento, continuou. - Queria lhe economizar essa terrível emoção a Máxima. Por isso tratei de impedir que chegasse a Londres. - Justamente foi seu intento de ocultar a verdade o que a impulsionou ao dever de investigar, disse Robin em tom áspero. - Por acaso ouviu uma conversa entre você e sua esposa que dava a entender que houve algum tipo de intervenção violenta na morte de seu pai. - Ou seja, que foi isso o que ocorreu. No princípio pensei que repentinamente decidiu visitar minha irmã, lady Ross. Só quando minha irmã apareceu em Durham compreendi que algo ia mal. - Cada relatório que me enviava Simmons me alarmava mais. Alegra-me que não lhe 225
tenha ocorrido nenhum desastre. Fez um gesto de preocupação. - Agora que não tenho que me preocupar com sua vida, posso começar a me preocupar com sua reputação. - Ninguém tem porque saber como chegou a Londres, observou a duquesa, - de modo que sua reputação está intacta. O verdadeiro problema é sua reação à notícia do suicídio de seu pai. - Tenho algumas notícias melhores reservadas. Collingwood olhou atentamente ao Robin. - Suponho que você se constituiu seu protetor? - Supõe bem. - Então creio que posso lhe dizer que Máxima recebeu uma pequena herança que lhe dará certa independência econômica. É só a modesta soma de quinhentas libras ao ano, suficiente para manter-se com comodidade aqui ou nos Estados Unidos. Robin arqueou as sobrancelhas. Apesar do comentário negativo do Collingwood, a herança era bastante considerável. - De quem herda? Ela me disse que seu pai não lhe deixou nada. - Nossa tia Máxima, lady Clendennon, era a madrinha do Max. Sempre o quis muitíssimo. Embora se queixava do esbanjador que ele era, sempre o fazia sorrindo. Adorava receber suas cartas. Suspirou. - Se a prudência do Max tivesse igualado ao seu encanto, poderia ter sido primeiro-ministro. A tia Máxima sabia que teria sido absurdo deixar dinheiro ao Max, de modo que decidiu fazer de sua filha uma de suas herdeiras. Depois de sua morte, no inverno passado, seu advogado escreveu ao meu irmão em Boston; a isso se deveu sua viagem a Inglaterra. Dado que o testamento se mostrava remisso na execução do testamento, Max decidiu vir a Londres a falar com ele pessoalmente. - Por que seu irmão não explicou isto a Maxie? Tenho a impressão de que ela cuidava dos assuntos econômicos. - Max me proibiu de dizer-lhe enquanto não estivesse tudo resolvido, porque não queria que se desiludisse se as coisas não resultavam bem, explicou Collingwood. - Resulta que uma das estipulações que pôs minha tia em seu testamento era que Máxima só podia herdar depois de cumprir os vinte e cinco anos como mínimo, e que enquanto Max estivesse vivo, o dinheiro ficaria em um fundo de fideicomisso5. Pelo visto minha tia estava resolvida a não permitir que meu irmão esbanjasse a herança de sua filha. Com a morte do Max se acabou esse problema, mas o atual lorde Clendennon insistiu com o advogado a encontrar uma maneira de desqualificar a Máxima. Temo que meu primo seja um demônio ambicioso, e que o legado passará a ele se ela não herdar. Quando recentemente Clendennon se inteirou de que a mãe de Máxima era uma pele-vermelha, insinuou que podia ser filha ilegítima, fruto de uma aventura passageira, ou talvez nem sequer filha do Max. Robin emitiu um suave assobio. - Compreendo que você não queria dizer isso ao Maxie. Teria se enfurecido. - E com toda a razão. Quando Clendennon iniciou o litígio, pedi ao meu advogado 5
Fideicomisso - Instituição para garantir a integridade de um patrimônio de família, geralmente bens de raiz, e pela qual um testador cede ao testamentário ou legatário apenas o usufruto dos bens legados, impondo-lhe a obrigação de, por sua morte, transferi-los íntegros ao seu herdeiro ou legatário.
226
que escrevesse a seu colega de Boston. A semana passada recebi uma cópia do certificado de matrimônio de meu irmão. Casou-os um sacerdote anglicano, de modo que Máxima é totalmente legítima. Esboçou um leve sorriso de satisfação. - Ainda no caso de que não tivesse havido uma cerimônia cristã, eu estava preparado para argumentar que estavam legalmente casados segundo as leis do povo de sua esposa. Em todo caso, a ilegitimidade não teria invalidado necessariamente o legado, mas Clendennon poderia tê-la aproveitado como pretexto para causar problemas legais cuja resolução teria consumido tempo e dinheiro. Isto é muito mais singelo. - Tomou bastante trabalho em favor de sua sobrinha. - É obvio, é da família. Além disso, tenho muito carinho à garota. Oxalá minhas filhas tivessem algo de sua energia. Pela primeira vez durante a entrevista, Collingwood sorriu. Mas só um pouquinho. Máxima deve ter sido muito difícil de criar. Um excêntrico como Max era melhor pai para ela. Levantou-se. Estarei hospedado no Clarendon por vários dias. Eu gostaria de ver Máxima antes de retornar ao Durham. Fará-me o favor de lhe dizer que vim? - É obvio, respondeu Robin. - Deseja lhe explicar pessoalmente sobre a herança? O visconde encolheu os ombros. - Deixo ao seu critério. Se receber a você e não a mim, diga-lhe se acreditar que isso poderia animá-la um pouco. Parece-me que eu embrulhei todo este assunto. - Maxie tem sorte de ter um tio tão consciencioso, disse Robin. - Com todas essas restrições que tinha, é possível que não tivesse havido nenhuma solução que não fosse um embrulho. - Obrigado. Collingwood fez as inclinações de despedida com a expressão um pouco mais animada. - Lorde Robert, excelência. Quando Collingwood partiu, Robin disse a Margot: - Estou seguro de que vê o que vejo eu nesta história. Ela assentiu, pensativa. Tirar conclusões de dados incompletos era a essência da arte da espionagem, e os dois eram muito, muito bons para isso. - Mas há alguma maneira de demonstrá-lo? - Não de forma categórica, mas com mais informação posso apresentar argumentos convincentes. Não é necessária uma prova absoluta. Muito contente de que houvesse algo que podia fazer por Maxie, Robin se dirigiu à porta. - Começarei agora mesmo. Só Deus sabe a que hora retornarei. - Darei-te uma chave da casa, disse Margot. - Isso será mais decoroso que forçar a fechadura se voltar tarde. Eu vigiarei o quarto de Maxie e tentarei evitar que faça algo estúpido. Faça-me saber se posso fazer algo mais. - Obrigado. Esboçou um leve sorriso. - Na realidade, já sei onde vou encontrar exatamente a ajuda que necessito. A porta estava aberta, de modo que Robin deu umas batidinhas com os nódulos e entrou. Lorde Strathmore elevou a vista do que estava fazendo em seu escritório, com expressão distraída. Quando viu quem era seu visitante, sorriu e ficou de pé. - Alegra-me que tenha voltado para Whitehall, Robin. Ontem à noite eu passei muito bem, mas não tivemos ocasião de falar. 227
- Hoje não será melhor. Estreitaram-se as mãos e Robin se sentou na poltrona que lhe indicou seu primo. - Esta é só uma visita rápida para te pedir ajuda. - O que seja, disse Lucien. Qual é o problema? - Quero investigar um suicídio que teve lugar faz dois... não, quase três meses, perto do Covent Garden. Lucien franziu o cenho. - O pai de sua amiga Maxie? Robin assentiu; seu primo também era um perito em armar dados fragmentados. - Sim. Ela está muito angustiada e turvada; estimavam-se muitíssimo. Quero saber tudo o que possa sobre qualquer circunstância atenuante que possa lhe fazer mais fácil aceitar sua morte. Quero falar com a garçonete que o encontrou morto, o médico que certificou seu falecimento, e com todas as pessoas às que visitou em Londres. E todo isso quero fazê-lo hoje. Lucien arqueou as sobrancelhas. - Quer que te acompanhe? Nós dois podemos cobrir mais terreno. Robin olhou as pastas empilhadas sobre o escritório. - Não está ocupado? - Não há nada que não possa esperar. - Estupendo, então. Posto que Londres não é meu território, necessitarei toda a ajuda possível. Franziu o cenho. - Isto deveria haver me ocorrido antes, mas estar comprometido pessoalmente faz estragos no julgamento. Há um agente do Bow Street, Ned Simmons, a quem contratou a família Collins para jogar terra sobre o assunto. Se consigo encontrá-lo, é possível que ele já saiba grande parte do que desejo saber. - Conheço Simmons, assentiu Lucien. É muito eficiente. Frequenta um botequim perto do Covent Garden. Com sorte, o encontraremos ali agora. Robin se levantou, pensando que tudo ia ser mais fácil do que supôs. Lucien também se levantou e foi agarrar uma bengala de um rincão da sala, mas antes de dar a volta ao escritório, deteve-se. - Robin, há algo que quero te dizer. - Sim? Lucien passou nervosamente a mão pela manga de latão brunido da bengala. - É estranho, disse, sem humor. - Faz anos já que tenho remorsos em minha maltratada consciência a respeito de você, e entretanto não sei expressar isto com palavras. Olhou-o com seus olhos verde dourado sombrios. - Suponho que o que desejo saber é quanto está ressentido comigo por te haver metido no ofício de espião. Robin o olhou surpreso. - Não me pôs uma faca no pescoço, Lucien. Eu tomei a decisão sozinho. - Sim, mas é que eu não sabia o que te pedia, insistiu Lucien. Suspirou. - Naquele tempo me parecia uma espécie de jogo, de aventura. Você foi inteligente e tinha um dom especial para os idiomas. Pareceu-me evidente que seria capaz de ficar no Continente e coordenar a rede de espionagem britânica da metade da Europa. Entre nós derrotaríamos ao Bonaparte. Quem ia imaginar que as guerras continuariam outros doze anos? - Não se culpe por ter animado minha loucura, disse Robin amavelmente. - Só é dois 228
anos mais velho que eu. De maneira nenhuma podia saber tudo o que envolvia. Minha vida era minha para arriscá-la como quisesse. - Giles não era dessa opinião, respondeu Lucien. - Creio que nunca me perdoou a parte que tive nisto. Mas arriscar a vida é algo relativamente franco, limpo. O pior de ser um espião é o elevado preço espiritual que custa fazer uma guerra nas sombras. Deslizou as mãos inquietas por volta de um e outro lado da brunido manga da sua roupa. - Sei bastante disso por experiência própria, mas ao menos eu passava a maior parte de meu tempo dentro dos limites relativamente civilizados da Inglaterra. Minhas maldades estavam acostumadas a serem de longo alcance e afetavam a pessoas sem rostos. O que fazia você era muito mais difícil. Com o passar do tempo, começou a parecer um vidro soprado a ponto de quebrar. A preocupação de seu primo comoveu ao Robin. - Lamenta me ter pedido que trabalhasse para o Foreign Office ou que eu aceitasse? - Isso é o pior de tudo. Lucien sorriu como escarnecendo de si mesmo. - Como desumano chefe de espiões que sou, é-me impossível lamentar o que fez, suas contribuições foram realmente essenciais. Suponho que o que desejo na realidade é não me sentir tão condenadamente culpado pelo que esse trabalho te tem feito a você. Robin se pôs a rir. O sentimento de culpa ele compreendia muito bem. - Se for absolvição o que deseja, Luc, tem-na. Reconheço que estive muito perto da ruptura, mas nas últimas semanas tenho feito as pazes com meu repreensível passado. Nunca me sentirei orgulhoso das coisas que fiz, mas não vou seguir me crucificando. Enquanto falava, ouviu ressonar em sua voz as palavras de Maxie. Lucien lhe observou a cara com olhar perspicaz. - Tenho descoberto que a mulher adequada pode fazer maravilhas à nossa paz mental. - Efetivamente. E agora tenho a oportunidade de pagar uma dívida a esta determinada mulher adequada. Vamos? Com a ajuda do Lucien, não teria que ser difícil informar-se a respeito dos últimos dias do Max Collins. Robin rogou a Deus que essa informação mudasse as coisas.
CAPÍTULO 36
Maxie se sentia como se andasse vagando por uma terra escura de horríveis pesadelos, mas sabia que não haveria despertar. Seu pai tirou a própria vida e saber disso produzia uma dor mais atroz de que poderia ter imaginado. Com a cabeça colocada sob os travesseiros, como um bichinho do bosque em um refúgio, perdeu a noção do tempo. Na janela foi trocando lentamente a sombra jogada pela luz do dia, e depois desapareceu ao nublar o ceu. Alguém entrou no quarto, deixou uma bandeja com comida e partiu sem dizer uma palavra. O quarto se obscureceu, e ao avançar a noite, finalmente se acabaram os ruídos da casa. 229
Quando um relógio distante deu as doze badaladas de meia-noite, obrigou-se a sentar-se a considerar sua situação. Não podia passar o resto de sua vida escondida em um quarto. Quanto tempo demoraria seus anfitriões em insistir que ela saísse? Vinte e quatro horas? Três dias? Ou uma semana? Ou a extraordinária hospitalidade de Margot lhe permitiria ficar ali para sempre, uma enferma louca servida por criadas silenciosas ? Até no caso que a duquesa o permitisse, Robin não permitiria. Cobriu a cara com as mãos perguntando-se, desanimada, o que ocorreria. Já tinha claro porque não tinha podido perceber seu caminho além de Londres. Ocorreu o impensável e se sentia bloqueada, incapaz de avançar, incapaz de retroceder, muito aturdida para imaginar algo que se parecesse com uma vida normal. Cansativamente desceu da cama e agarrou sua bata, um dos objetos que tinham aparecido como por arte de magia em seu roupeiro no dia anterior. Deteve-se a pensar. Seriamente estava só há dois dias em Londres? Tinha a impressão de que tinha transcorrido um século desde que chegou, conheceu Margot e se comportou gravemente mal no jardim. Nem sequer essa última lembrança a reanimou. Atou o cinturão em sua estreita cintura e acendeu uma vela para iluminar seu caminho para a biblioteca. Os livros nunca lhe tinham falhado; sempre a faziam sentir-se melhor. Talvez estar rodeada por eles lhe serviria para limpar sua nublada mente. Ao fundo da biblioteca havia uma mesa. Encaminhou seus passos para ali e se instalou diante dela, na poltrona estofada em pele. A sala estava fresca e gotas de chuva golpeavam intermitentemente as janelas. Milhares de livros recobriam as paredes em fileiras amistosas; seu títulos brilhavam como ouro opaco à luz da vela. Quando aspirou os agradáveis aromas a pele das encadernações e a madeira polida dos móveis, mesclados com um tênue aroma de tabaco, lhe aliviou um pouco a opressão no peito. A um lado do escritório havia uma caixa de nogueira para tabaco de pipa. Movida por uma vaga lembrança, abriu a caixa e pôs um punhado em um pires plano de porcelana que servia de cinzeiro. Depois acendeu com a vela as folhas picadas em fios. O aroma acre lhe evocou cerimônias às que tinha assistido quando era menina. No povoado de sua mãe se considerava sagrado o tabaco, e o queimavam para que levasse orações ao mundo do espírito. Mas enquanto observava elevar-se a coluna de fumaça até perder-se na escuridão, não sabia muito bem o que pedir na oração. Fora um comprido dia e a casa Candover estava totalmente às escuras quando chegou Robin de volta. De todos os modos, com a considerável ajuda de Lucien e um Simmons surpreso, mas em boa disposição de colaborar, encontrou a informação que necessitava. Era possível que Maxie estivesse disposta a escutar no dia seguinte. Entrou com a chave que lhe deu Maggie. Acabava de fechar a maciça porta, quando seus instintos tocaram uma imaginária campainha de advertência. Ficou absolutamente imóvel um momento, alargando os sentidos, até que captou o que ocorria. Embora todos estivessem dormindo, havia um aroma de tabaco aceso nesse andar em que não havia quartos. 230
Provavelmente isso só significava que um criado tinha fumado enquanto fazia a ronda comprovando que todas as portas estivessem fechadas com chave, ou que Rafe ficou trabalhando até tarde. De todo modo, seguiu o aroma e este o levou a porta da biblioteca, por cuja fresta de abaixo se via luz. Silenciosamente girou a maçaneta e entrou. Maxie estava sentada diante da mesa no fundo, com a cascata de cabelos lisos cor de ébano sobre os ombros e o olhar fixo em uma espiral de fumaça. Embora o alegrou que ela tenha se levantado da cama, viu que tinha a expressão triste e imensamente distante. Doeu-lhe ver a ofuscação de seu espírito. Talvez com o que acabou de saber obteria reacender sua chama essencial. Ela o olhou sem surpreender-se. - Boa noite. Esteve rondando por Londres ? - Exatamente. Atravessou o comprimento da sala e foi sentar se em uma poltrona perto dela. Ao ver que estava descalça e só usava uma bata leve sobre a anágua, tirou a jaqueta, pegou várias folhas dobradas do bolso, e a ofereceu. - Deve estar congelada. Ponha isto. Ela agarrou a jaqueta mecanicamente e a pôs sobre os ombros. Via-se muito pequena colocada entre as dobras de tecido escuro. - Inteirei-me que várias coisas que creio vai achar interessante, disse-lhe. Suportaria as escutar agora ou devo esperar até amanhã? Ela fez um gesto vago com a mão. - Dá igual. Agora irá bem se quiser. - Lorde Collingwood esteve aqui hoje, começou ele pensando o que seria necessário para tirá-la dessa letargia. Pode ser que seu critério fosse duvidoso, mas sua intenção era boa quando contratou ao Simmons para impedir de chegar a Londres a investigar a morte de seu pai. Simmons é um agente do Bow Street. Ela pôs outro punhado de tabaco sobre o montinho em brasas. - O que é um agente do Bow Street? - Um policial. Trabalham principalmente para o magistrado chefe do Westminster, que tem seu escritório no Bow Street, daí o nome. Entretanto os cidadãos particulares podem contratá-los para trabalhos especiais, e foi o que fez seu tio. Maxie assentiu sem interesse. - Collingwood também disse que sua tia avó Máxima deixou para você em herança quinhentas libras anuais, mas estipulou que não podia recebê-las enquanto não completasse os vinte e cinco anos e seu pai tivesse morrido. Parece que sua tia avó tinha dúvidas sobre as habilidades financeiras de seu pai. Um débil sorriso se desenhou nos lábios de Maxie. - Dúvidas muito justificadas. Max era um inútil para o dinheiro; não lhe interessava. Robin fez uma respiração lenta e passou ao essencial de sua história. - Embora talvez ele lhe ocultou isso, fazia um tempo que a saúde de seu pai estava se foi deteriorando. Quando veio a Londres, não só foi visitar o testamenteiro de sua tia para informar-se dos detalhes de sua herança; também visitou dois médicos. Os dois lhe 231
disseram que tinha insuficiência cardíaca, embora era possível que vivesse muitos anos a mais, inválido, com muita dor e incapacitado para levar a vida a que estava acostumado. Ao ouvir isso Maxie levantou a cabeça e por fim o olhou, mas não disse nada. Dava a impressão de que quase não respirava. - Falei com várias outras pessoas às quais seu pai visitou nos dias anteriores a sua morte. Agarrou os papéis que tinha tirado da jaqueta e os pôs sobre a mesa. - Apoiandome nos detalhes que tenho aqui, estaria disposto a jurar diante um tribunal que seu pai decidiu pôr fim a sua vida para que você pudesse herdar imediatamente, e para te economizar o sofrimento de cuidar dele durante uma morte lenta. Também é razoável supor que não desejava morrer assim, esperando o fim sem poder fazer nada. Ele sabia que seu tio cuidaria de você, de modo que não ia te deixar sozinha. Maxie estava tremendo; passou a língua pelos lábios ressecados para umedecê-los. - Como... como o fez. - Com uma forte overdose de digital, um medicamento para o coração que tomado em grandes quantidades é veneno. Os dois médicos lhe deram um pouco de digital, lhe advertindo que tomasse cuidado nas dose porque podia ser fatal. Parece muito provável que seu pai pensou que teria tempo para desfazer-se dos frascos, mas a substância lhe fez efeito muito rápido. Se tivesse tido mais tempo, ninguém teria se dado conta de que não morreu de modo natural. Guardou silêncio um momento para que ela assimilasse isso, e logo concluiu: Seu pai não a abandonou desconsideradamente, mas sim porque a queria muito. Creio que quis te dar com sua morte a segurança que não pôde te dar em vida. Equivocou-se ao não compreender que você teria preferido o ter todos os meses ou anos que restavam, mas seu ato foi motivado pelo amor. Os olhos castanhos do Maxie recuperaram vida. Cobriu a cara com as mãos e sussurrou: - Não sei por que, mas isso muda absolutamente tudo. - Você e seu pai foram tudo um para o outro, disse Robin docemente. - Por ofensivos que fossem com você os desconhecidos, por muito que lhe atormentassem por seu sangue mohawk, sempre sabia que seu pai te amava. Para você, acreditar que havia se suicidado sem te dizer nada nem pensar em você, era como se lhe dissessem que toda sua vida esteve apoiada em uma mentira. Ela levantou a cabeça e limpou as lágrimas com o dorso da mão. - Como compreendeu isso quando eu não o compreendi? - Ao se aprofundar nos rincões negros de minha mente, também abriu a sua, disse ele. Colocou-se diante dela e lhe pôs as mãos sobre as orelhas. - Quando uma mulher está sofrendo não ouve, recitou. Que estas palavras eliminem a obstrução para que volte a ouvir. Colocou as mãos brandamente sobre seus olhos: Durante sua aflição perdeu o sol e caiu na escuridão. Agora te devolvo a luz do sol. Ajoelhou-se diante dela para que seus olhos estivessem ao mesmo nível e pôs as mãos cruzadas no centro de seu peito. Sentiu nas palmas os batimentos do coração uniformes de seu coração. - Deixou que sua mente morresse em seu enorme sofrimento. Deve liberá-la, porque 232
senão, você também se murchará e morrerá. Agarrou-lhe as mãos as envolvendo entre as suas. - Em sua aflição sua cama está incômoda e não pode dormir de noite. Deixe-me que estorve o desconforto de seu lugar de repouso. Levantou-lhe as mãos e lhe beijou uma e depois a outra. - Mais que nenhuma outra coisa em sua vida, seu pai desejava que fosse feliz. Por ele, deve encontrar a saída da escuridão. Ela fechou os olhos e lhe correram as lágrimas pelas bochechas. - Como recordou tudo isso, Robin? - perguntou em um sussurro. - Essas palavras estão gravadas em meu coração, Kanawiosta. Ela abriu os olhos. - Meu pai nunca queria falar de sua saúde; detestava ser débil. Tirar a vida sabendo que eu me beneficiaria e ele se economizaria o sofrimento é exatamente o tipo de coisa que faria, mas eu estava encerrada em minha aflição com tanto egoísmo que não soube ver por mim mesma. Riu meio soluçando. - Que típico do Max essa ineficiência para pôr fim a sua vida; sem mim era incapaz de organizar-se. - As coisas mais importantes sempre são as mais difíceis de se ver, disse Robin. Profundamente satisfeito porque ela era capaz de voltar a rir, soltou-lhe as mãos, levantou-se e se apoiou sobre a mesa. Já passada a crise, sentia intensamente sua proximidade e sua absoluta e inconsciente atração. Procurando algo com o que distrair-se, seu olhar recaiu no tabaco aceso. - Isto tem algum significado especial? -O tabaco é sagrado para o povo de minha mãe. Queimam-no para que leve orações e desejos aos espíritos. Como havia dito antes, ele era partidário de fazer oferendas aos deuses, para a sorte. Agarrou um punhado das folhas secas picadas e a deixou cair sobre o montinho em brasas. - Que desejo formulou? - perguntou ela. - Se lhe disser isso, vai impedir que o desejo se faça realidade? - Não creio que influa em nada, respondeu ela sorrindo. Só fazia um instante que ele se havia dito que não era o momento de falar, mas quando viu seu irresistível sorriso jogou a precaução ao vento. - Pedi que se casasse comigo. A Maxie lhe desvaneceu o sorriso; reclinou-se na poltrona e amassou a jaqueta. Esta tinha um tênue e agradável aroma do Robin. Desejou conservar a jaqueta velha porque, quando estivesse sozinha no futuro, recordaria como era estar em seus braços. - É perigoso esse teu hábito de me oferecer matrimônio. Se não tomar cuidado eu poderia aceitar. - Nada eu gostaria mais, disse ele muito sério. Ela suspirou e olhou as mãos entrelaçadas. Quando estava sem resolver o problema da morte de seu pai, contava com esse pretexto para evitar essa conversa, mas já não o tinha. Levantou a cabeça e o observou atentamente. Fisicamente só estava à distância de um braço, mas seus cabelos loiros, sua pele branca, sua despreocupada segurança em si 233
mesmo e sua muito arraigada elegância aristocrática representavam um abismo muito largo para cruzá-lo. - Creio que somos muito diferentes, Robin. Sou a filha de um mascate esbanjador e uma mulher considerada selvagem entre seus patrícios. Você procede de séculos de riqueza, boa criação e privilégios. Tratou de dar um tom natural a sua voz, como se a conclusão fosse fácil e óbvia. - A ideia de se casar comigo te atrai agora, mas creio que com o tempo te pesaria. - Você sentiria pesar? - perguntou ele docemente. - É obvio que sim, se você o sentisse, respondeu ela. Sabia que essas singelas palavras continham a essência do dilema. Amando-o não seria capaz de suportar o pesar dele. Por muito cuidado que pusesse ele em ocultá-lo sob sua amabilidade e encanto, ela saberia. - Equivoca-se, sabe? As diferenças entre nós são superficiais, enquanto que as semelhanças são profundas, disse ele com convicção. - Nós dois nascemos marginalizados, Maxie. Em seu caso se deveu a sua mescla de sangue, a não pertencer nunca totalmente nem à cultura de sua mãe nem a do seu pai. Sei bastante do que suportou, porque face à riqueza, os privilégios e meus inumeráveis antepassados nobres, eu era um inadaptado natural, não me sentia mais em minha casa que você entre os teus. Talvez teria sido diferente se minha mãe tivesse vivido, ou se meu pai tivesse sido capaz de suportar sua ausência. Seu rosto adquiriu uma expressão irônica. - Mas provavelmente, continuou, embora minha mãe tivesse vivido eu teria sido um inadaptado de todo modo. Cada uma ou duas gerações, os Andreville produzem uma ovelha negra, e meus cuidadores estavam convencidos de que eu era uma, inclusive antes que soubesse caminhar sem andarilho. Bastava que algo estivesse proibido para que me atraísse. Tudo o que fazia estava ruim, prova de minha maldade natural. Punha em dúvida coisas que não deviam ficar em dúvida, desobedecia às ordens com as que não estava de acordo, inventava histórias que se consideravam mentiras malévolas. Mostrou-lhe a mão esquerda deformada. - Em latim, esquerda se diz «sinistro», o que diz muito sobre como se recebe os canhotos. O tutor que tive antes de ir ao colégio acreditava que eu usava a mão esquerda com o único fim de chateá-lo. Às vezes me atava isso às costas para me obrigar a utilizar a direita outras vezes me golpeava a palma esquerda com uma regra metálica até que sangrava. Sorriu sem humor. - Provavelmente fui um dos poucos meninos da Inglaterra que pensava que a vida em um internato de colégio privado era melhor que a vida em casa. Pela primeira vez ela compreendeu totalmente a desolação de sua infância. Com razão acreditava que não era bom para amar. Como pôde ter sobrevivido com seu humor, prudência e bondade intactos? Oprimiu-lhe de pena o coração por ele e pelo Giles, dois meninos solitários que mereciam algo muito melhor do que tinham recebido. Graças a Deus que pelo menos tinham um ao outro. De todo modo... - De acordo que nós dois crescemos nos sentindo marginalizados, disse 234
pausadamente. É isso um laço suficiente para nos manter unidos? Nos definem nossas debilidades? Com sua camisa branca, inclinado sobre a mesa com as mãos agarradas no lado, ele se via magro, forte e avassaladoramente atraente. - Não nossas debilidades e sim nossa confiança, respondeu. Só nos atrevemos a mostrar nossas debilidades às pessoas que acreditamos que nos vão compreender e nos aceitar apesar delas. Inclusive quando apenas te conhecia, surpreendia-me te dizendo coisas que não havia dito a ninguém jamais e que escassamente as reconhecia para mim mesmo. - Isso é parte do que me preocupa, Robin - disse ela correspondendo sinceridade com sinceridade. - Penso se não quererá se casar comigo só porque estive ao seu lado quando estava sofrendo. Chegou a me considerar especial porque precisava falar e eu te escutei? Teria servido igual qualquer mulher? - Tão má opinião te merece meu julgamento? - disse ele, sorrindo com uma intimidade e doçura que lhe derreteu o coração. - Com nenhuma outra mulher teria sido igual. Com você sou completo. Ao ver que ela ainda duvidava acrescentou docemente: Ensinaste-me muitas coisas, mas sobretudo, sobre o amor. Fez uma inspiração profunda. E eu te amo, Kanawiosta. Ela inspirou e reteve o fôlego para ouvir as palavras que acreditava não ouviria nunca. - Disse-me que não é bom para amar. - Eu acreditava que não era, mas sorriu com certa ironia, nestes últimos tempos você e Giles me deram um curso intensivo sobre o tema. Eu acreditava que amava a Maggie tudo o que era capaz de amar, e que ela me deixou porque eu padecia de algum tipo de carência fundamental. Agora sei que não era que fosse incapaz de amar mais, mas sim ainda não conhecia à mulher pela qual podia me apaixonar totalmente. Maggie tentou me explicar isso uma vez, mas eu não entendi. Esteve em silêncio um momento, procurando as palavras. - Com Maggie sempre havia limites emocionais. com você, Kanawiosta, não há nenhum. Puseram-lhe brancos os nódulos ao apertar com força o lado da mesa. Na manhã, depois de sair de Ruxton, deu-me a entender, com certa intensidade, que me amava. Foi só minha ilusão? Essas palavras a encheram de uma alegria radiante, como a luz do sol. - Meu Deus, Robin, é obvio que te amo - sussurrou. - Todo este bate-papo sobre nossas diferenças, minhas dúvidas sobre a Inglaterra, só eram uma cortina de fumaça. Meu verdadeiro temor era que eu te amo muito para ser sua esposa se você não me amasse. Caiu-lhe a jaqueta dos ombros quando se levantou e lhe abriu os braços. Robin se jogou neles imediatamente. Desde o começo seus corpos tinham sabido que estar juntos era o mais absolutamente correto. Esta vez não havia nenhuma dúvida, só um desejo ardente, irresistível. Já estavam estendidos sobre o tapete, quase totalmente despidos, quando Robin se afastou. - Maldição, outra vez estou a ponto de fazê-lo. Apoiou a testa sobre seu peito nu, com 235
a respiração agitada. - Esqueço que não deseja fazer o amor nesta casa; perdoe-me. Sorriu tristemente. - É uma lástima que esta noite faça muito frio e umidade para sair ao jardim. Começou a levantar-se, mas lhe rodeou o pescoço com os braços. - Não há nenhuma necessidade de que ponha nobre, Robin. Agora que sei que me ama, estar aqui não me incomoda absolutamente. - Alegra-me muito, muito, ouvir isso,disse ele com a cara risonha. Inclinou-se novamente sobre seus peitos. Ela se arqueou contra ele, em muda resposta a sua boca, mãos e embriagador contato. Inclusive mais que fogo, havia ternura, compreensão e alegria, tudo combinado em uma emoção muitíssimo maior que a soma de seus medos. Esta vez a paixão não foi um presente de distração, e sim uma união do mais íntimo de seus seres. Ela se sentiu como se estivesse voando por entre as enredados fios do espírito dele. Embora ainda estavam ali alguns dos fios negros, já não se agitavam com angústia, e ao mesmo tempo, os fios brilhantes de seu ser, fiados pelo sol, envolviam-na com alegria e felicidade. Juntos estavam completos. Depois ela repousou tremendo em cima dele, seus cabelos esparramados sobre seu peito e face. Meigamente, ele os jogou atrás para lhe ver a face. - De verdade, carinho, vamos ter que voltar ao hábito de fazer isto em uma cama. Os altares de pedra e os chãos das bibliotecas têm sua utilidade de tanto em tanto, mas não são particularmente cômodos. Ela estirou seu corpo com o passar do dele, saboreando seus fortes e magros músculos. - Eu estou muito cômoda aqui. Ele sorriu. - E você é uma manta deliciosa. Ela cruzou os braços sobre seu peito e apoiou o queixo neles. - Se sentir uma marginal incurável é horroroso quando a gente está crescendo, disse pensativa, mas pelo que vejo muitas pessoas interessantes começam assim. - Isso eu notei. Acariciou-lhe amorosamente as costas nuas. - Também tenho descoberto que não é necessário continuar sendo um inadaptado toda a vida. - Nós dois nos adaptamos à perfeição, sorriu ela. Ficaram em aprazível silêncio. Ao cabo de um momento lhe perguntou: - Está segura de que não te incomoda fazer o amor aqui? - Totalmente segura, respondeu ela prazerosamente. Ele a rodeou com os braços e em um só e veloz movimento ficou em cima dela. Seus cabelos se esparramaram pelo tapete persa criando sombras muito negras sobre as formas cor granada, que lhe emolduravam exoticamente a formosa cara. - Nesse caso meu amor, disse ele docemente, façamo-lo outra vez.
236
EPÍLOGO
Era um dia perfeito para um casamento, e os jardins do Ruxton ideais para a cerimônia e o posterior café da manhã de núpcias. A lista de convidados não era longa, e muitos dos que a formavam estiveram no primeiro jantar social de Maxie em Londres. As pessoas que conheceu naquela noite estavam se convertendo nos melhores amigos que já tivera em sua vida. Giles e Desdêmona tinham participado da cerimônia em qualidade de padrinhos, um a cada lado do noivo e da noiva. Dentro de duas semanas, Maxie e Robin lhes devolveriam o favor, quando o par se converteria em marido e mulher. Uma vez acabados os brindes e a parte mais formal da comida, Robin se inclinou para Maxie e lhe disse em voz baixa: - Saímos a um passeio? Nossos convidados podem arrumar-se sem nós durante uns minutos. - Encantada. Agarrados pela mão percorreram os atalhos entre os jardins, que estavam magníficos com as flores e os primeiros aromas do verão. Em poucas semanas, Ruxton se tinha convertido no lar de seu coração. - Já te disse o quanto eu gosto de seu vestido? - perguntou-lhe Robin quando foram entrando no bosque. - Nunca vi nada parecido, mas te assenta à perfeição. Agradada, ela olhou o vestido esquisitamente adornado com contas e franjas. Era o presente de núpcias de Margot. - É uma interpretação livre de um vestido de noiva mohawk. Eu desenhei o modelo e Margot encontrou uma costureira disposta a fazê-lo, embora não tinha agulhas de porcoespinho e nem tintas naturais. Através da folhagem se filtravam raios de sol e por todos os lados revoavam pássaros, impregnando o ar com seus melodiosos gorjeios. - Olhe a quantidade de passarinhos cantores que nos rodeiam, Robin - comentou ela fazendo um gesto para eles. - É como se tivessem vindo celebrar. Ele sorriu. Uma repentina suspeita a impulsionou a observar com mais atenção a erva de ambos os lados do atalho. - Lorde Robert, ordenou ao jardineiro que pulverizasse grãos em todo o comprimento deste atalho para atrair aos pássaros para nós? Ele se pôs a rir, impenitente. - O que tem de mal em criar um pouco de magia? A primeira vez que te vi no anel de elfos do Wolverhampton, pensei em Titânia, a Rainha dos elfos. Ela se pôs a rir também. - E eu pensei no Oberón. Nossas imaginações funcionam de modo similar. - Entre muitas outras coisas. Olhou-a, hesitante. - Talvez não deveria perguntar, mas estes dias, quando pensa no futuro, consegue perceber seu curso? 237
Ela assentiu. - Muitos, muitíssimos anos felizes com você. Agarrou-lhe as mãos e lhe beijou as pontas dos dedos. - Isso é o que desejava ouvir. O atalho os levou até um claro no meio do bosque que Maxie ainda não viu. No centro havia um anel de elfos parecido ao do Wolverhampton. Deteve-se contemplá-lo, sentindo-se absolutamente feliz. Robin a estreitou entre seus braços e a beijou com infinita doçura. - Agora, Kanawiosta, sussurrou depois, - ensina-me outra vez a escutar a brisa. Fim
Lorde Robert Andreville (Robin) e Máxima Collins (Kawaniosta)
238