Revista Vozes das Ilhas

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Vozes

das

ILHAS

Revista da Reforma do Estado Edição Especial Distribuição Gratuita Outubro 2014

GERMANO ALMEIDA

“Não é o Estado que precisa ser reformado…”

PEDRO LOMBA MORAIS

“A nossa geração não entra na Terra Prometida”

FAUSTO DO ROSÁRIO

“Somos sobreviventes”

EMANUEL PEREIRA SILVA

“É preciso moralizar a vida pública”

JOSÉ JOAQUIM CABRAL

“Andamos aqui no fio da navalha”

JOSÉ MANUEL PIRES FERREIRA

“O nosso mal é a pobreza espiritual”

PADRE JOÃO AUGUSTO MARTINS

“Somos um povo de muita fé”

ODETTE PINHEIRO

“Faltou-nos um momento de verdade e reconciliação nacional”

JOÃO DO CARMO SANTOS

“Cabo Verde é um país rico”

ÁLIA LOPES DOS SANTOS

“Libertei-me da função pública”

MÁRIO CORREIA

“Estamos no capitalismo selvagíssimo”

BELARMINO LUCAS

“O sucesso empresarial ainda é muito mal visto em Cabo Verde”

JOSÉ MELO

“O cabo-verdiano precisa lutar mais pelo seu país”

ANTÓNIO PEDRO SILVA

“Temos uma sociedade de gente sem caráter”

LÚCIA DOS PASSOS

“A próxima revolução será das mulheres”

FELISMINA ROSA MENDES

“A imigração é muito dura”

LUIZ SILVA

“O emigrante é que é o herói de Cabo Verde”

TIBAU TAVARES

“A cultura é a nossa maior riqueza”

ONÉSIMO SILVEIRA

“Tudo está na República de Santiago”

GABRIEL FERNANDES

“A República de Santiago não existe”

JOSÉ MARIA NEVES

“Às vezes, sinto pena do Primeiro-ministro”

assim se constroi um país



sumário Germano Almeida

4 “Não é o Estado que precisa ser reformado…”

Pedro Lomba Morais

OUTUBRO / 2014

16 “A nossa geração não entra na Terra Prometida”

Fausto do Rosário

27 “Somos sobreviventes”

Emanuel Pereira Silva

36 “É preciso moralizar a vida pública”

José Joaquim Cabral

46 “Andamos aqui no fio da navalha”

José Manuel Pires FerreirA

57 “O nosso mal é a pobreza espiritual”

Padre João Augusto Martins

66 “Somos um povo de muita fé”

Odette Pinheiro

79 “Faltou-nos um momento de verdade e reconciliação nacional”

João do Carmo Santos

92 “Cabo Verde é um país rico”

Ália Lopes dos Santos

98 “Libertei-me da função pública” FICHA TÉCNICA Propriedade: Unidade de Coordenação da Reforma do Estado

Mário Correia

104 “Estamos no capitalismo selvagíssimo”

Belarmino LucaS

118 “O sucesso empresarial ainda é muito mal visto em Cabo Verde”

José Melo

132 “O cabo-verdiano precisa lutar mais pelo seu país”

Textos e fotos: José Vicente Lopes

143 “Temos uma sociedade de gente sem caráter”

Revisão final: Péricles Hungria Silva

154 “A próxima revolução será das mulheres”

António Pedro Silva Lúcia dos Passos

Felismina Rosa Mendes

Design Gráfico: Eneias Rodrigues (CS Design) Impressão e Acabamento: Manuel Barbosa & Filhos Lda. Tiragem: 000000 Cidade da Praia, outubro de 2014 Todos os direitos reservados

166 “A imigração é muito dura”

Luiz Silva

176 “O emigrante é que é o herói de Cabo Verde”

Tibau Tavares

191 “A cultura é a nossa maior riqueza”

Onésimo Silveira

198 “Tudo está na República de Santiago”

Gabriel Fernandes

208 “A República de Santiago não existe”

José Maria Neves

224 “Às vezes, sinto pena do Primeiro-ministro” [1]


Prefácio Ouvir para repensar Cabo Verde O leitor desta publicação tem em mãos vinte entrevistas, “20 Vozes”, recolhidas neste ano de 2014. E, como tudo na vida, esta “empreitada” tem uma história e, possivelmente, um propósito que não cabe a mim explicar (ver Posfácio). Resumidamente, da minha parte, esta “empreitada” resulta do desafio que me foi formulado pela Unidade de Coordenação da Reforma do Estado (UCRE), na pessoa do seu responsável, Carlos Santos, para entrevistar 20 cidadãos sobre um conjunto de assuntos relativos à sociedade cabo-verdiana. E, definidas as balizas da minha actuação, parti para o terreno. Porém, diante das preocupações que os entrevistados entenderam por bem expressar, eu e os promotores desta recolha acabámos por bem que o Primeiro-ministro José Maria Neves, enquanto tutela da Reforma do Estado, mas também responsável primeiro pelos actuais rumos desta nação, Cabo Verde, deveria também ser chamado para a arena. Afinal, como diz um dos entrevistados – a médica e pastora nazarena Odette Pinheiro – o Estado em Cabo Verde tende a ser um “buraco negro”, no qual são enfiadas todas as cartas, petições e reclamações dos cidadãos, sem que ninguém se dê ao trabalho de responder ao pobre contribuinte. José Maria Neves, felizmente, aceitou o repto, juntando assim a sua “voz” às outras 20 vozes convocadas desde o início para este exercício de cidadania. O leque dos entrevistados vai do agricultor ao quadro superior, passando por empresários,

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dirigentes associativos, agentes culturais e intelectuais, numa viagem de Santo Antão à Brava, Cabo Verde. Nesta “viagem” temos João do Carmo Santos, agricultor e industrial da Ribeira Grande de Santo Antão, por exemplo, que em cima dos seus 85 anos de idade diz recusar que Cabo Verde seja um país pobre. “Pobre é a nossa mentalidade”, corrige. O ambientalista José Melo defende que “o caboverdiano precisa lutar mais pelo seu país”, para que as gerações de amanhã tenham um país mais desenvolvido e em paz com o seu ambiente. Nesta luta, o médico Pedro da Lomba Morais, qual último moicano na sua Brava natal, faz saber que esta geração não entrará na Terra Prometida, cabendo-lhe contudo abrir o caminho para os homens e as mulheres de amanhã. “Essa Terra Prometida é cheia de esperança”, diz, na linha do padre João Augusto Martins, para quem “o cabo-verdiano é um povo de muita fé”. Enfim, e com Lúcia dos Passos fica o aviso aos navegantes de que a próxima “revolução”, em Cabo Verde, será protagonizada pelas mulheres. Num outro nível, agora com Germano Almeida, Onésimo Silveira e Gabriel Fernandes, temos uma “viagem” por vários momentos da nossa história e cultura. Pois, conforme se depreende das suas palavras, é na História que encontramos não só a razão daquilo que hoje somos enquanto povo, como também a legitimação do que pretendemos ser um dia enquanto país e nação.


José Vicente Lopes

Tratando-se Cabo Verde de uma nação diasporizada, procuramos, de algum modo, trazer para este terreiro a “voz” da diáspora, através de Felismina Mendes e Luiz Silva. De Felismina, radicada em Portugal há mais de 30 anos, fica a mensagem que a “imigração é uma vida muito dura”, e de Luiz Silva, residente em França há mais de 50 anos, a ideia de que o verdadeiro herói de Cabo Verde é o emigrante. “No entanto, quando se fala na história recente de Cabo Verde não se fala do emigrante, somos simplesmente excluídos”. Em suma, eis se se quiser, um conjunto de “vozes” que representam a ideia do Cabo Verde que temos neste quase virar de 2014 para 2015, ano do 40º aniversário da independência nacional. E numa altura, também, em que se discute o que ele poderá ser em 2030, conforme o fórum Transformar Cabo Verde, realizado em Maio deste ano, na cidade da Praia. São 20 vozes como podiam ser muitas mais, na certeza de que cada voz é ela própria um caso único, na linha da velha máxima “a cada cabeça a sua sentença”. A todos, de uma maneira geral, preocupam o problema da segurança, do emprego, a qualidade do ensino e, acima de tudo, o mau ou precário funcionamento da justiça, sem a qual não há sociedade justa nem democrática. “Há situações em que o cidadão é quase levado a fazer justiça com as próprias mãos”, reclama o músico maiense Tibau Tavares.

Mas nisso não faltam também aqueles que tudo fazem para que Cabo Verde seja um país em paz com o seu ambiente, com relações mais justas tanto no domínio do direito do trabalho como do consumidor. Aqui, como salienta António Pedro Silva, presidente da ADECO, a defesa do consumidor é algo extremamente importante, mais importante inclusive do que a independência nacional ou a democracia porque, bem vistas as coisas, “tudo é consumo”, uma vez que as pessoas lutam “para consumir melhor”. É de referir, por fim, que a esmagadora maioria destas entrevistas foi recolhida antes do II Fórum Transformar Cabo Verde, que aconteceu de 14 a 16 de Maio de 2014. E isso é importante dizer porque muitas das opiniões expressas pelos meus entrevistados vieram a ser expressas durante o referido fórum, facto este que ajuda a comprovar que a inquietação há muito está instalada entre nós. E a isso tudo, na medida do possível, José Maria Neves, enquanto Chefe do Governo, procurou responder, advogando que um dos principais desafios que se colocam a este “país global” passa por “repensar o Estado para um pequeno Estado como Cabo Verde”, mostrando-se contudo otimista em relação ao futuro: “Hoje eu tenho mais certezas do que dúvidas quanto ao futuro de Cabo Verde”. Boa leitura a todos que se interessarem por esta publicação.

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Germano Almeida

“Não é o Estado que precisa ser reformado…” Advogado, natural da Boa Vista, residente há quase 40 anos em São Vicente, Germano Almeida, 69 anos, é o mais produtivo dos escritores cabo-verdianos. Graças à literatura, tem viajado pelo mundo, onde, quase sempre, acaba por falar sobre Cabo Verde. Um Cabo Verde que, segundo ele, desde 1975, passou a viver uma “revolução” e onde, mais que o Estado, são as pessoas que precisam ser “reformadas”.

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SER CABO-VERDIANO Estamos os dois neste hotel de Casablanca, presumo, no teu caso, aqui estás por seres escritor, não? Sim, por ser escritor, e não por ser editor e muito menos advogado. Portanto, é por causa da literatura que tens estado a circular pelo mundo? Sim! Todos os passeios que tenho estado a dar pelo mundo são praticamente por causa da literatura. Isso leva-te, de algum modo, a refletir sobre a tua condição de cabo-verdiano? Eu nunca me esqueço que sou caboverdiano, de maneira que quando me deram o passaporte diplomático [em 2003], achei justo esse gesto, na medida em que me sinto, realmente, um embaixador de Cabo Verde, embora acredite que esta é uma maneira de ser de todos os caboverdianos. Onde quer que eu vá, e sou convidado a falar, quase sempre me sinto na obrigação de situar Cabo Verde. Para mim, isso é quase que uma missão. Jorge Barbosa dizia que ser caboverdiano custa. Custa-te ser caboverdiano, hoje, em 2014? Eu não sei em que contexto ele fez essa afirmação. A mim não me custa nada, gosto de ser cabo-verdiano, por isso não tenho nenhuma outra nacionalidade, embora já tivesse tido a oportunidade de ter outras, mas recusei sempre. Para mim, ter outra nacionalidade seria quase que uma traição. Traição por quê? Eu não critico quem tenha mais de uma nacionalidade, aliás, os meus filhos têm. Mas eu é que não seria capaz de aceitar uma outra, além da cabo-verdiana. Essa noção de cabo-verdiano é inata ou adquiriste-a? Creio que é inata. Ao longo do tempo, o fulano é cabo-verdiano, vai vivendo essa condição sem pensar nisso, um dia, por alguma razão, conclui, “eu estou bem nesta pele”. A nossa [6]

identidade se apresenta por essa via. Pessoalmente, sinto-me cabo-verdiano, vejo Cabo Verde como se fosse o centro do mundo. Antes, menino na Boa Vista, eu julgava que a minha ilha era o centro do mundo, cresci, aumentei de espaço e me dei conta que afinal havia outras ilhas, outros países, mas nunca abri mão de que Cabo Verde é o centro do mundo. Saíste muito cedo da Boa Vista? Saí aos 17/18 anos. Para onde? São Vicente, depois Praia (Santiago), Angola, para o serviço militar, de lá fui para Lisboa, fiz o curso e regressei para Cabo Verde, já depois da independência. A minha ideia foi sempre regressar, com ou sem independência. Essa opção de sempre voltar a Cabo Verde decorreu de quê? Por altura do 25 de Abril e da independência, estando eu em Portugal, assisti a muitos daqueles debates sobre a política, assunto de resto de um dos meus livros [Dona Pura e os camaradas de Abril]. Eu dizia para mim, “se eu não fosse caboverdiano seria anarquista”. (risos) Por quê? Eu achava piada à forma como aqueles tipos encaravam a vida, discutiam política. Era um discutir por discutir, o que me levava, às vezes, a achar aqueles fulanos uns tontos para o meu gosto. Terminei o curso, entendi que era mais útil em Cabo Verde e vim. Não me via a viver noutro lugar. O facto de já teres circulado por vários lugares, inclusive de Cabo Verde, leva-te a ver o boavistense como um caso único ou para ti é tudo a mesma coisa? A mesma coisa não será. Em Cabo Verde, cada ilha produziu um tipo de gente diferente, embora haja um núcleo duro de caboverdianidade a que todos estamos ligados, já que somos um mesmo povo. Concordo com os historiadores quando falam em Santiago como ilha-mãe, de onde as pessoas se espalharam pelas diversas ilhas para dar lugar ao Cabo Verde que

hoje somos. De facto, temos um grau cultural comum, embora cada ilha tenha criado especificidades próprias, Boa Vista, Santo Antão, São Vicente e tudo mais. Não somos todos iguais, pensamos diferente, sendo certo embora que nos reconhecemos uns nos outros como cabo-verdianos que somos. Mas somos iguais em que aspetos? Na maneira de encarar Cabo Verde. O grande trunfo do cabo-verdiano é a ligação à sua terra. Uma vez cheguei a defender, não sei se com alguma propriedade ou não, que temos um profundo sentido de nacionalidade, mas não somos nacionalistas. Só depois da independência, sobretudo, é que o cabo-verdiano começou a interiorizar que pode viver em Cabo Verde. Até então, devido às nossas condições de seca e de miséria, tínhamos de sair de Cabo Verde, levando embora Cabo Verde às costas. E em qualquer lugar onde vamos instalamos Cabo Verde. Isto, por um lado, é positivo mas, por outro, tem coisas negativas, na medida em que não faz com que a gente crie condições de viver condignamente, porque, nessas situações, o fulano alimenta sempre a ideia de regressar a Cabo Verde, logo, aceita viver em más condições, na mira de ganhar dinheiro e um dia, finalmente, voltar, e quando isso acontece, normalmente, está velho e já não tem muito para dar. Ainda dentro dessa procura da nossa identidade, para ti, o que é que ajuda a definir o cabo-verdiano? O primeiro elemento é o sentimento de pertença a Cabo Verde. O segundo é a língua. O crioulo é, de facto, a grande arma que o cabo-verdiano criou e que coexiste com ele o tempo todo. Haverá naturalmente outras coisas, mas esses dois elementos são fundamentais para a nossa identificação enquanto povo.

CABO VERDE, 40 ANOS Estamos praticamente a caminhar para 40 anos de independência. E nesse período quais são os principais ganhos dentro dessa geografia que é Cabo Verde? O principal ganho é que, em 40 anos, nunca mais tivemos gente a


morrer por causa da fome, provocada pela seca, coisa que marca o nosso passado e faz a diferença com o pósindependência. Este é um ganho extraordinário. Por outro lado, a nível da educação, da saúde e vários outros aspetos, tivemos ganhos não menos extraordinários. Eu tenho por mim que Cabo Verde, a partir da independência, começou a viver uma revolução. E uma revolução é algo que não se faz num dia, num ano, ou mesmo 50 anos. A revolução vai-se fazendo, às vezes, com momentos de contra-revolução, mas que continua a ser uma revolução. Mesmo assim, precisamos de ter a consciência do seguinte: o caboverdiano ainda não aprendeu a criar o futuro. Continuamos a viver o hoje como se fosse o último dia, gastando tudo o que ganhamos porque não sabemos o que vai ser amanhã. É preciso criar uma mentalidade nova; e eu, sinceramente, não sei quem poderá conseguir fazer isso. Essa incapacidade decorre, certamente, do nosso passado enquanto povo, suponho. Sem dúvida, decorre da forma como viveu durante os 500 anos do colonialismo. E essa herança não muda em 40 anos. Será preciso muito mais tempo e muito mais trabalho para que o cabo-verdiano mude de mentalidade. Eu sei que o Germano é muito preocupado com Cabo Verde. Como é que vês o teu país neste momento? Com preocupação. Os ganhos que Cabo Verde foi tendo ao longo da independência são visíveis, mas não podemos perder de vista que eles aconteceram graças à ajuda internacional, que foi bem gerida, e isso levou-nos à dignidade de um país de desenvolvimento médio. Mas isso tem consequências desastrosas, na medida em que Cabo Verde, quando promovido a país de rendimento médio, passou a perder ajudas que foram fundamentais para o seu desenvolvimento. Por outro lado, há algumas políticas que estão a ser seguidas e que não creio que sejam suficientes para conseguir a reviravolta que se pretende.

Só depois da independência, sobretudo, é que o cabo-verdiano começou a interiorizar que pode viver em Cabo Verde. Até então, devido às nossas condições de seca e de miséria, tínhamos de sair de Cabo Verde, levando embora Cabo Verde às costas.

A que políticas te referes? Por exemplo, as mudanças que se pretende a nível do direito do trabalho. No fundo, o que se está a fazer, de facto, é degradar as condições de vida dos trabalhadores, que já não são boas. Não se pode estar a fazer isso pretensamente para favorecer o patronato porque este nem isso tem garantido. Eu lembro-me que em 1993 fez-se uma lei do trabalho, para precarizar o sector, porque, com isso, iríamos conseguir investimentos externos e o aumento do emprego. Eu era deputado na altura [pelo MpD] e achei que era preferível ter o caboverdiano com emprego três meses durante o ano do que o ano inteiro desempregado. Isto não aconteceu porque o investidor externo que se queria não veio e o que veio de forma nenhuma resolveu o nosso problema. De maneira que não creio que seja essa a via. Temos que arranjar outras formas.

Que formas? O problema é que eu não sei. No caso de São Vicente, por exemplo, a ilha que mais tem sofrido com o desemprego, costumo dizer que é preciso juntar as pessoas, levá-las a pensar em torno da seguinte ideia: o que é que São Vicente tem e que o mundo precisa? Podemos alargar a ideia e perguntar, o que é que Cabo Verde tem e o mundo não tem e precisa? A solução não é navegar à vista. Temos que ter em conta que somos um país virado para a prestação de serviços, precisamos saber que serviços o mundo precisa para nós oferecermos. Mas já se chegou à conclusão que um desses serviços é o turismo, não? Eu não sei se é o turismo, e se é o turismo, de certeza absoluta, que não é o turismo que estamos a praticar. Nomeadamente, o na Boa Vista? Sim. O turismo de massas não resolve os nossos problemas. Estraga o ambiente, sem resultados efetivos. Tenho a impressão que Cabo Verde é um país permanentemente na encruzilhada. Por onde quer que nos viremos, em pouco tempo, estamos a questionar se as soluções apresentadas são as melhores… Parece-me que estamos de novo numa encruzilhada. Houve um boom a seguir à independência, devido à ajuda externa, mas neste momento que não temos ajuda externa estamos parados. Só por isso temos que ver o que fazer. Dificilmente, em 40 anos, Cabo Verde haveria, por si só, de conseguir os meios para desenvolver-se. Mas, por outro lado também, tendo em conta as nossas condições, quem quiser viver em Cabo Verde tem de aprender a fazê-lo com essas limitações. Se não se pode viver em Cabo Verde como se vive em Portugal, quanto mais como se vive noutros países da Europa mais desenvolvidos. Há coisas em Cabo Verde que nós não podemos ter. Isso passa pela forma como o país é gerido? Obviamente, Cabo Verde é gerido como se fossemos um país rico. Não faz sentido. Estou a pensar neste momento nas grandes estradas que se [7]


fizeram. Elas podem vir a ser úteis, mas faz sentido fazer uma estrada para ser útil no futuro? Quando o futuro chegar essas estradas já estão estragadas. Tem havido uma falta de oportunidade, de sentido, com certas coisas, que eu não percebo. Por exemplo, as barragens não são necessárias? São ótimas, porque úteis. Na minha opinião, são das melhores coisas que se fez em Cabo Verde em todos estes anos. Entendo até que se devem fazer barragens em todas as ilhas. As barragens feitas em Santiago, por exemplo, poderão vir a ser as melhores formas de se desenvolver Cabo Verde.

REGIONALIZAÇÃO Há pouco te referiste a São Vicente como um caso que nos interpela a todos. Eu tenho a sensação que os meus conterrâneos acham que resolvem os problemas da ilha com a regionalização. Tens essa sensação? Sim, claramente. Só que pensar que se resolve os problemas de São Vicente com a regionalização é de alguém que não tem mais por onde se virar. Eu defendi, nos anos 90, uma certa ideia de regionalização e ela já não pode ser a mesma hoje. Já se passaram muitos anos, os meios de comunicação e transportes desenvolveram-se, as ilhas ficaram muito mais próximas umas das outras. Mas também não é a regionalização como se está a defender que vai resolver os problemas de São Vicente ou de Cabo Verde, de um modo geral. Temos que procurar outras vias. A tua regionalização seria de que tipo? Nos anos noventa eu defendia que, criando grupos de ilhas, podíamos deixar algumas com certa autonomia, havendo assuntos que teriam de ser obrigatoriamente tratados pelo governo central. Cabo Verde é demasiadamente pequeno para termos tantas instâncias de poder. Temos uma estrutura de poder como qualquer país desenvolvido ou grande, não faz sentido. [8]

Eu tenho por mim que Cabo Verde, a partir da independência, começou a viver uma revolução. E uma revolução é algo que não se faz num dia, num ano, ou mesmo 50 anos. A revolução vai-se fazendo, às vezes, com momentos de contra-revolução, mas que continua a ser uma revolução.


Nisso há até quem defenda a federação para Cabo Verde… Coisa que não faz sentido. Muitas das propostas que surgem têm como pressuposto a necessidade de fazer alguma coisa, como não se sabe ao certo qual é a melhor solução, as propostas vão surgindo a torto e a direito. Mas é preciso parar, pensar serenamente, sobre que tipo de regionalização Cabo Verde precisa, ou melhor ainda, que tipo de governo precisamos realmente para o nosso país. Há espaço para esse debate, sereno, racional…? Se não há, é preciso criá-lo. Pessoalmente, não creio que a regionalização, como uma espécie de independência de São Vicente de Cabo Verde, seja a solução para São Vicente ou para qualquer outra ilha. Não acredito, sinceramente. Diante da nossa incapacidade de resolver um conjunto de demandas que têm a ver com o nosso desenvolvimento, não estaremos a nos transformar num povo de frustrados? O risco disso é real. São Vicente, neste momento, é de certa forma uma sociedade frustrada. São Vicente viveu da inércia criada pelos ingleses, praticamente, até à independência. Depois da independência, já com a crise instalada no porto, São Vicente continuou à espera e até hoje não se conseguiu encontrar uma solução para os seus problemas. Eu me pergunto se não fossem os ingleses se São Vicente existiria enquanto tal. Cabo Verde não tem meios e por isso não podemos acusar ninguém pelo estado em que a ilha se encontra, esse estado decorre da própria miséria do país. No caso de São Vicente, é necessário ver, com frieza, o que é que é preciso fazer para tirar a ilha do lugar em que se encontra. Veja, por exemplo, neste momento está-se a investir fortemente no alargamento do cais acostável. Eu assisti ao alargamento da primeira fase dessa infraestrutura, nos anos 90. Eu dizia, brincando, “está-se a criar aqui um bom campo de futebol”, e não se criou um campo de futebol porque

aquilo foi transformado num armazém de contentores velhos. Resolveu-se agora aumentar. Bom, aquela parte da ilha vai ficar bonita, mas nós temos meios para gastar numa coisa que apenas vai ficar bonita? A mim me disseram que no futuro vai ser útil. Mas pergunto: fez-se um estudo para saber que barcos vão utilizar essa infraestrutura de modo a rentabilizála? Foi-me dito que não se fez. Parte-se do princípio que, no fim, um dia, tudo dará certo. O que falta às lideranças de Cabo Verde neste momento? Uma vez li uma coisa que dizia, “o político pensa no presente, o estadista pensa no futuro”. Acho que estamos a precisar de estadistas. O fulano que governa está demasiado ocupado com o imediato, mas ele tem de ter gente que pense o país a longo prazo. Mas repara, o JMN lança uma proposta de governar Cabo Verde a pensar em 2030, as pessoas riem-se. É normal que isso aconteça. Às tantas, porque não têm tempo para pensar o futuro, os nossos governantes perdemse um bocado, começam a sonhar.

REGIONALIZAÇÃO X DESCENTRALIZAÇÃO A questão da regionalização surge porque as pessoas entendem que o país está demasiado centralizado. Tens esta percepção? O país está muito centralizado na Praia é evidente, mas a verdade é que Cabo Verde esteve sempre centralizado. Não é de hoje. Isso é desde o período colonial. Agora fala-se na desconcentração de poderes, mas o que vemos é que ninguém, na verdade, quer abrir mão dos seus poderes, muitas vezes pequenos. Os micropoderes que cada um tem ninguém quer abrir mão deles. Antes de falarmos na regionalização, deveríamos falar em desconcentração. Há coisas em Cabo Verde que não fazem sentido terem que ser decididas na Praia, mas também há muitas outras que podem perfeitamente ser decididas na Praia, sem prejuízo de ninguém. Neste momento há quem brigue porque quer tirar uma

certidão, logo resmunga que “está tudo concentrado na Praia”, mas você pergunta “qual é o problema se pedes a certidão de manhã, à tarde tens, havendo até situações em que consegues a certidão em cinco ou dez minutos?” Portanto, graças ao computador, pedir a certidão na Praia ou em qualquer outro lugar de Cabo Verde dá no mesmo, ainda que a base de dados esteja na Praia. Este tipo de prestação que não incomoda ninguém, podemos dizer “OK, ficam todos juntos”, mas há outras coisas que é preciso separar. E isso não advém da regionalização, vem apenas de desconcentrar poderes que estão juntos. Então, mais que regionalizar Cabo Verde precisa de desconcentrar o poder? É o que eu penso. Hoje, os meios de comunicação encurtam as distâncias, há situações que podem ser resolvidas in loco, mas existem inúmeras outras em que o problema não se põe. Porque se partirmos para atribuir autonomia para tudo e mais alguma coisa vamos precisar de dinheiro, e onde está o dinheiro para quem nos vai governar? Aliás, vemos isso a nível do poder local. Municipalizou-se o país largamente, é verdade, mas temos câmaras o tempo todo com as mãos estendidas para o governo. Porque as câmaras não têm meios próprios. As câmaras mais pobres, que não têm terrenos para vender, estão em situação de miséria. Vivemos numa ilusão permanente? Eu não sei. Há uns anos atrás ouvi um fulano do governo a dizer “a terra em Cabo Verde é o nosso petróleo”, eu disse-lhe: “Cuidado, porque somos demasiadamente pequenos para considerar que a terra é o nosso petróleo”. Depois cometeu-se um erro gravíssimo, que os portugueses não cometeram, que é vender as terras. Os portugueses deram sempre terra em concessão, com base na qual, passados X anos, esse bem voltava para o Estado, mesmo os ingleses chegaram a ter concessões de 100 anos, tanto assim que o Estado de Cabo Verde, já depois da independência, retomou algumas [9]


dessas terras. E mais do que vender, o nosso maior erro foi vender a quem não nos pagou, sequer. E isto porque vendeu-se a pessoas que apenas foram especular o que conseguiram do nosso Estado ao desbarato. Mas se não pagou, podemos pegar esses bens de volta. É o que devíamos fazer, mas ninguém faz, porque falta-nos gente com serventia para fazer isso. Quando fala em serventia quer dizer que falta gente com pulso para aplicar a lei? Exatamente. Estamos a ser governados por gente frouxa? O problema é este: Cabo Verde é demasiadamente pequeno, extremamente dependente do exterior, e se a gente chateia um fulano qualquer é logo o fim do mundo, estamos a chatear o americano, o inglês, que veio cá investir, a América cai sobre nós. Há um bocado desse receio. Há medo de afrontar certas pessoas em função das dependências que temos dos países deles. Temos casos de terrenos em Santiago que foram tomados abusivamente e não fizemos nada; no Sal é a mesma coisa. O que se passou com Pedra de Lume e o Stefanina é uma vergonha. Tudo prova que aquilo pertencia ao Estado de Cabo Verde e no entanto nunca tivemos a coragem de afirmar isso.

GLOBALIZAÇÃO Já que estamos a falar das nossas relações com o mundo, como é que vês a nossa integração sub-regional, na CEDEAO? Se nós estamos, de facto, interessados em nos integrarmos na CEDEAO não temos feito muito para isso. A nossa maior tendência (risos) é virar para a Europa; e eu não sei se a Europa nos quer ou não. Cabo Verde tem de ter uma política com certo sentido de oportunismo, ver e buscar onde é que nos interessa estar, na Europa, na África, ou estar com todos ao mesmo tempo. Estamos os dois aqui, em Casablanca, porque somos CEDEAO, caso contrário, [ 10 ]

não éramos chamados. Mas fora esses pequenos momentos, a nível económico, o que é que podemos ganhar com isto? Não temos nada para exportar e o pouco que temos ninguém o compra. Tivemos uma investida dos TACV na nossa sub-região e sabemos todos como foi e acabou. É complicado. Ou seja, se a nível regional não conseguimos, muito menos a nível global, não? Exatamente. Então não acreditas nas maravilhas da aldeia global? Eu nunca acreditei na globalização. Há tempos o José Maria Neves publicou um livro citando um americano qualquer [Thomas l. Friedman] que diz que o mundo é plano, alegando esse fulano que um sujeito pode estar na Índia a trabalhar para uma empresa americana e manda as coisas através de internet. Isto é verdade, mas isto não transforma a terra num mundo plano. Transforma, quando muito, o mundo virtual no mundo plano. E nós vivemos num mundo real. No mundo real, eu, para vir ao Marrocos, precisei de um visto – aliás, durante a viagem, li a entrevista de um empresário africano a dizer que ele para entrar em 30 países africanos precisa de visto ao passo que o americano, seu concorrente, não. Eu acreditaria na globalização por essa via, de outro modo, a integração da economia por si só não resolve os nossos problemas. Neste caso devemos nos fechar para dentro de nós próprios? Eu não sei se estamos em condições de fazer isso também. O que entendo é que não estamos em condições de nos virarmos completamente para o estrangeiro e ficar dependentes disso. Aí damos com os burros na água. O mundo não nos acarinha com a vontade que gostaríamos. Com isso estamos a viver num quadro extremamente pessimista. O quadro não é bom realmente. E isso faz-me lembrar, de novo, o caso de São Vicente, que durante o tempo dos portugueses e dos ingleses ganhou imenso, teve bastante dinheiro. Devia-

se saber que esse modo de vida não iria perdurar e que era importante arranjar forma para quando o porto carvoeiro acabasse, o que iria ser desta ilha e da sua gente. Não se pensou nisso. No caso de Cabo Verde, com a independência, recebemos a ajuda da comunidade internacional, que foi bem gerida, de um modo geral, mas pergunto: será que essa ajuda foi usada no sentido de criarmos, de facto, um país capaz de viver de forma autónoma? Aqui ponho as minhas dúvidas. E vês nos partidos políticos alguma solução para os problemas que temos? Infelizmente não. Os partidos estão muito virados para o próprio umbigo, ocupados o tempo todo com a conquista e a conservação do poder. Em teoria, não sou contra o partido único, pois não acredito que Cabo Verde precise ter mais do que um partido, só que os partidos únicos têm essa coisa maléfica, de se concentrarem e acharem que são os donos da verdade. No Parlamento, o ideal é se tivéssemos deputados ocupados o tempo todo a discutirem os problemas do país e não os partidos em si. Em Cabo Verde devia haver um pacto de regime permanente, onde apenas Cabo Verde interessa. Isso é possível em Cabo Verde? Devia ser possível, partindo do princípio que Cabo Verde é o mais importante e não o partido em si. Acontece, Germano, onde há dois cabo-verdianos, há três opiniões diferentes para tudo. É verdade e esse é o nosso mal. Cada cabo-verdiano, se formos ver, tem a sua própria ideia de desenvolver Cabo Verde e acha que a dele é a única. O José Maria Neves escreveu um livro, Uma agenda de transformação para Cabo Verde, precisamente nessa linha. E é esse tipo de coisa que precisamos evitar.

DIÁSPORA E a nossa diáspora, como a vês? Com o desenvolvimento dos meios de comunicação, virtuais ou reais, passou a haver uma interação muito


forte entre nós que estamos em Cabo Verde e a nossa diáspora. A diáspora aproximou-se bastante de Cabo Verde e isso é um ganho importante. Hoje sentimos ou nos relacionamos com os nossos patrícios no exterior como sendo parte de Cabo Verde. Quando falamos em “ilhas” espalhadas pelo mundo, de certa maneira, isso é verdade, coisa que não acontecia há 50 anos atrás. Neste sentido, somos tributários do desenvolvimento da técnica e da ciência, que nos permite ter uma diáspora praticamente em casa, participando inclusive nos debates que vão tendo lugar no país. A nossa diáspora pode, por isso, trazer muito para Cabo Verde. O quê, por exemplo? A nível do ensino, da medicina, do desenvolvimento industrial, da economia, etc. Em princípio, eles, os emigrantes bem sucedidos, podem ter dinheiro que nós, em Cabo Verde, não temos e podem ter também algum conhecimento no exterior que nós aqui temos dificuldades em ter.

… graças ao computador, pedir a certidão na Praia ou em qualquer outro lugar de Cabo Verde dá no mesmo, ainda que a base de dados esteja na Praia. Este tipo de prestação que não incomoda ninguém, podemos dizer “OK, ficam todos juntos”, mas há outras coisas que é preciso separar.

Será que quem está nas ilhas está aberto a esse tipo de colaboração? Esse é o grande problema, não está. Sei de gente que aparece com a melhor das intenções e se oferece, mas, de repente, há alguém que diz: “Para, este fulano vem empurrar-me do lugar que já é meu; então, não dou oportunidade”. Por isso é preciso criar uma mentalidade diferente. O cabo-verdiano receia o estrangeiro, e o estrangeiro, para nós, é até o caboverdiano que vem da diáspora. E se isso ainda é assim é porque a diáspora não se integrou em nós. No fundo, precisamos criar uma forma para considerar esses cabo-verdianos não como gente que vem de fora mas como gente que está cá dentro. Só assim poderá haver uma melhor coligação entre nós.

ESTADO x AS PESSOAS Existe hoje a ideia de que o Estado em Cabo Verde precisa ser reformado. Comungas dessa ideia? Sim e não. Se o Estado precisa ser reformado, isso tem de acontecer a partir de quê? Quando oiço falar na

reforma do Estado, entendo que é preciso fazer alguma coisa no sentido de tornar a máquina pública mais célere, mais próxima das pessoas. Nesse sentido, sim, concordo. Mas isso tem a ver com as pessoas que estão no Estado e não o Estado em si. Mas o Estado são as pessoas que lá estão. Então as pessoas que lá estão é que precisam ser reformadas. Há dias precisei de registar uma ata e foi-me dito: “São 30 dias”. Com os meios ao nosso dispor hoje em dia, no máximo, podia ser no dia seguinte, ou então se entreguei o pedido de manhã devo ter a resposta à tarde. Caso contrário, não faz sentido. Mas há outras situações. Um fulano pede em tribunal o arresto de um navio, o navio é arrestado e o sujeito fica cinco ou dez anos à espera da decisão final. A funcionar assim, o tribunal é um estorvo para o desenvolvimento de qualquer país. Aqui, sim, o Estado precisa ser reformado. Mas, como disse, não creio que seja o Estado, mas sim as pessoas. E como resolver isso? Tem de haver maior exigência dos utentes em relação às pessoas que estão à frente dos serviços. Quando se entrega um processo a um juiz, por exemplo, ele devia ter X tempo para resolver o caso, não pode ficar o tempo que quiser para resolver um problema, às vezes, simples. Eu tenho um processo no tribunal desde 1995, que nunca andou, não faz sentido. E o juiz que tem o caso não pode ser responsabilizado? É evidente que não. Como dizer a um juiz que ele tem X tempo para decidir? É complicado. Por quê? Vêm logo com a conversa da independência do tribunal, “juiz breve sentença tola”, essas coisas. Há um problema em Cabo Verde: não temos inspeção. Há ainda o problema de toda a gente se conhecer, a gente não pode fazer isso ou aquilo porque vai indispor este ou aquele… É isso que é preciso ver, mas isso não é reformar o Estado, é reformar as pessoas. [ 11 ]


Então não o preocupa aquela coisa do Estado mínimo, Estado suficiente ou necessário?… Isso é só conversa, bazofarias que o MpD defendeu quando apareceu, em 1990, dizendo que o Estado é mau administrador. Eu, a brincar, dizia “vocês estão a privatizar as empresas que o Estado que não presta criou”. Eu não sou contra a ideia de um Estado forte em Cabo Verde. Sempre tive essa ideia. Mas um Estado forte em que sentido? No sentido económico. Quando alguém fala em Estado forte pensa logo no Estado com cacete na mão, não é isso. (risos) O Estado forte é o Estado economicamente forte, capaz de, em cada momento, acudir os seus cidadãos. Por causa disso, hoje estamos numa situação de quase paralisia. O Estado diz: “Emprego é da responsabilidade do privado”, o privado responde: “Eu não tenho como criar mais empregos porque o Estado não me deixa – as suas burocracias, impostos…” Nalguns casos isso é verdade. Sem o apoio do Estado a iniciativa privada nunca poderia criar emprego suficiente para todos os cabo-verdianos. A fazer o quê? Em Cabo Verde o que nós temos é comércio. O comércio vale o quê?… É importar e vender. Se tivéssemos indústrias para produzir e exportar, a iniciativa privada seria ótima. O comércio – comprar e vender – está ao alcance de qualquer um. Tirando a justiça, quais são os outros males crónicos de Cabo Verde? É difícil dizer, assim de repente… O ensino, por exemplo, está bem como está? Neste momento não. Fizemos muito bem em massificar o ensino, mas a partir de um certo momento precisávamos de elitizar o ensino. E por uma razão simples: não há nenhum país que se desenvolva sem elites. Acho muito bem que as pessoas saibam ler e escrever e tenham acesso à escola, mas também acho que os [ 12 ]

melhores sejam aproveitados para progredirmos. Eles é que vão, de facto, trabalhar para Cabo Verde. A forma como massificamos até o ensino superior é péssimo. A gente fala com muitos fulanos que acabaram o ensino superior e não sabem dizer duas coisas. O estado de ignorância deles é pavoroso. Eles consideram que se pagarem 16 contos por mês de propina adquirem logo o direito ao diploma ao fim de cinco anos e isso dá-lhes direito logo ao emprego. Tem-se que acabar com a ideia de que o ensino é para se ter poder económico, o ensino é para se adquirir conhecimento. Mas isso não rende votos, Germano. Eu sei. O Estado admitiu sete universidades em Cabo Verde. Faz sentido? Por duas vezes ou mais, chamamos gente do exterior para fazer auditoria às universidades e os relatórios nunca foram publicados. A sociedade nunca soube, de facto, o que os auditores disseram. Isso devia ser público.

CIDADANIA, SOCIEDADE CIVIL… Como vê o cidadão cabo-verdiano no dia a dia? Ele é cívico, apático… Temos ou não sociedade civil? Não temos sociedade civil. Temos algumas pessoas criticadoras, mas não temos massa crítica. Mas há muita gente a escrever nos jornais, a opinar no Facebook… Mas não significa ter massa crítica. São pessoas individuais e seria interessante se essas pessoas tivessem seguidores. Por exemplo, alguém escreve um artigo no jornal há quem apareça a dizer “fizeste um bom artigo”, mas não aparece alguém a dizer “a partir do que disseste vamos tomar uma posição”. As pessoas acomodam-se, não estão para se chatear. Eu não vejo isso na regionalização. As pessoas começaram a opinar e hoje há uma corrente forte, em São Vicente, a favor dessa ideia. E se o número dessas pessoas é assim tão grande podiam, por exemplo, fazer uma manifestação. Mas isso já aconteceu em São Vicente. Há dias, em Santo Antão, houve

uma manifestação das pessoas para dizerem que estão fartas daquele chove não molha de Santo Antão. É verdade que as pessoas começam a despertar para uma situação, coisa impossível há uns 10 ou 15 anos atrás. O aparecimento desse sentido crítico é bom, estou de acordo, mas não creio que isso se traduza a nível nacional. São fenómenos pontuais, localizados. É uma ofensa pontual, numa ilha, numa região, e as pessoas tomam posição. Eu ouço os programas de rádio com debates onde há sempre gente a telefonar para dar a sua opinião, algumas de forma desabrida. Isto é coisa antiquíssima, é excelente, mas não vejo a sequência a isso. As pessoas se limitam a mandar bocas. Vejamos os sindicatos. Estão a mostrar que estão cansados… Agora, finalmente. E quando digo sindicatos estou a pensar na UNTC-CS, uma central sempre ligada ao PAICV e que agora está a afastar-se do PAICV porque, de facto, o PAICV afastou-se dos trabalhadores. E, neste sentido, a UNTC-CS está a tomar uma posição que eu considero correta, de se afastar do partido que se afastou dela. Mesmo assim, continuas a subscrever a ideia de que não temos sociedade civil? Continuo a pensar que nós temos pessoas que se manifestam em coisas muito pontuais, mas não temos uma sociedade civil crítica, capaz de se opor a um determinado partido político, por exemplo. Não temos. É isso que se passa com a retenção do IUR [Imposto Único sobre o Rendimento] por parte do Estado? Ora, exatamente. As pessoas que têm de facto IUR a receber não se manifestam porque têm medo da perseguição do Estado, “a gente não sabe o que vão fazer depois…” O cabo-verdiano continua muito a viver do medo. Com toda a bazofaria que ele tem com a sua democracia, o farol de África, essas coisas? Sim! Mesmo assim, ele entende que não se pode expor abertamente. Por isso é que comenta com nomes falsos.


Hoje sentimos, ou nos relacionamos com os nossos patrícios no exterior como sendo parte de Cabo Verde. Quando falamos em “ilhas” espalhadas pelo mundo, de certa maneira, isso é verdade, coisa que não acontecia há 50 anos atrás.

Isso ele faz, bocas ele manda, expor-se abertamente e confrontar, isto é que seria interessante, ele não faz. Porque ele teme o Estado? Exatamente. Mas o Germano quer um Estado forte. Não é contraditório? Eu quero um Estado forte, mas um Estado forte não faz coisas dessas. Mas quem tem poder económico acaba por ter poder político. Repara, o Estado forte não retém o dinheiro dos outros, o Estado fraco é que retém. Entendo que se o Estado não paga, não devolve o IUR e o IVA é porque não tem. Eu considerei as privatizações um erro gravíssimo para a economia cabo-verdiana, na medida em que o Estado com empresas, em

tempo de crise, não havendo chuva, como é o nosso caso, tem como socorrer as pessoas. Neste momento temos um Estado que vive de impostos. E isto numa sociedade onde não há trabalho. Portanto, o Estado devia dizer honestamente: “Eu não estou em condições de devolver o que não é meu”. Não diz porque fica mal. Um Estado forte é aquele que sem tergiversações diz: “Eu retive a mais e eis aqui o vosso dinheiro, façam com ele o que entenderem”. Estamos a assistir à falência do Estado em Cabo Verde? Completamente eu penso que não. Mas dessa ideia que nós criamos que o Estado grande é Estado poderoso eu penso que sim, estamos a assistir à sua falência.

Por quê? Porque o Estado em Cabo Verde foi depauperado. A minha ideia de Estado forte é um Estado mais rico do que aquele que temos hoje. Não é forte no sentido de ter força, polícia, não, não, de forma nenhuma. O que defendo é que o Estado deve ser economicamente forte. A encruzilhada em que nos encontramos pode levar as pessoas a repensarem se vale a pena ter o sistema político que temos hoje em Cabo Verde? Ou a democracia é já por si um dado adquirido? A democracia é já um dado adquirido. Ela veio para ficar. O que eu receio é que esta situação nos crie outras formas de dependência que não se compadecem com a ideia da independência nacional. [ 13 ]


Mas Cabo Verde foi e continua a ser extremamente dependente do exterior. Absolutamente. Uma coisa é sermos dependentes como estamos e outra é correr o risco de perdermos a pequena soberania que a gente possa ter. Esse risco é em relação a quê ou a quem? Não sei. Vejamos este caso. Houve uma altura em que Cabo Verde pareceu estar muito dependente do narcotráfico. Querendo ou não, a droga ajudou a alimentar a economia… Exatamente. E porque nos obrigaram a combater o narcotráfico parece que ele agora está a fazer falta a Cabo Verde. (risos) Este é que é o problema! Praia, houve uma altura, vivia em abundância. São Vicente também. Há pessoas que dizem “eu quero desenvolver o meu país, mesmo que seja com o dinheiro da droga”. E dão exemplos, todos os países que se desenvolveram no mundo, grande parte deles, foi com meios mais ou menos ilícitos. Agora, hoje, quando chegou a nossa vez de seguir a receita, a comunidade internacional diz não podemos fazer o mesmo. Consequência: deixamos de contar com o dinheiro do narcotráfico, porque o setor foi mais ou menos decapitado, com sérios prejuízos para a economia cabo‑verdiana.

CRIOULO x PORTUGUÊS E a questão das línguas – crioulo e português – que também preocupa muitas pessoas. Qual é a tua opinião? O crioulo é a nossa língua mãe, mas não é a nossa língua de contacto com o exterior. E dado que a língua de contacto é o português, devemos aprender bem o português, se necessário melhor até que os portugueses. A língua é sobretudo um instrumento. Sendo o crioulo a nossa língua caseira, é importante termos consciência de que precisamos do português. É um erro, as famílias, as escolas, e tudo mais, não se terem [ 14 ]

Em teoria, não sou contra o partido único, pois não acredito que Cabo Verde precise ter mais do que um partido, só que os partidos únicos têm essa coisa maléfica, de se concentrarem e acharem que são os donos da verdade.


dado conta ainda de que devemos cuidar do português para o nosso desenvolvimento económico. Os cabo-verdianos têm uma relação complexada com a língua portuguesa? Completamente complexada. A verdade é esta: o cabo-verdiano tem a sua língua que é o crioulo e para as pessoas que não estão habituadas a falar o português acontece o que acontece comigo quando falo francês, pouco depois já estou cansado. Falando português, a gente cansa-se também. E a oficialização, és a favor ou contra? Sou a favor. Aliás, se há coisa oficial em Cabo Verde é o crioulo. O problema que se põe é este: com o crioulo oficializado vamos ficar com duas línguas? Com a oficialização vamos ter documentos em crioulo, mas ainda não sabemos qual crioulo. Por um lado. Por outro, onde estão os meios para fazer isso? A meu ver, isso não é de forma nenhuma uma prioridade.

alfabeto para nos distanciarmos do português é um erro. Eu quando vejo casa escrita com K (kaza), para mim, não é casa onde moro, é outra coisa. Se isso nos aproxima do português, paciência. As palavras têm valor, têm significado cultural e psicológico. Eu se for dizer um palavrão em inglês não é a mesma coisa que dizê-lo em crioulo ou em português. É neste sentido que, no que toca à língua, temos que ter mais cuidado.

FUTURO E em relação ao futuro de Cabo Verde, como o encaras? O nosso futuro, de qualquer das maneiras, para mais ou para menos, não estará em causa. Se conseguimos aguentar 500 anos em situação extremamente difícil haveremos de aguentar o resto do tempo. Não vejo risco nenhum de Cabo Verde vir a desaparecer. Agora, temos que cuidar desse futuro. De que forma? Não sei.

Independentemente dos meios, vejo alguma divisão entre os caboverdianos. Sem dúvida, porque as pessoas perguntam: que crioulo? O crioulo em si não está em causa, deixemos ao tempo para resolver esta questão. Em Santo Antão há uma expressão, “o tempo é o real das coisas”. E é de facto o tempo que vai resolver este problema. Daqui a alguns anos – 50, cem, não sei – vamos ter um único crioulo em Cabo Verde.

Com os atuais níveis de desemprego, para os vários outros problemas sociais que nós temos… Cabo Verde é um país preparado para a emigração. Ainda antes do 25 de Abril, falando um dia com um fulano bem colocado no regime em Portugal, ele disse-me: “A nossa ideia para Cabo Verde é vocês serem um celeiro de quadros para nós exportarmos.” Uma das nossas soluções é formar gente para exportar.

Por quê? As ilhas estão a ficar cada vez mais próximas, as pessoas movimentam-se, com os meios de comunicação, etc., às tantas, já não sabemos quem está a falar badio, falar “São Vicente”, os crioulos estão a misturar-se, isso é excelente. Um dia vamos ter um único crioulo, comum a nós todos.

Ainda hoje? Sim, ainda hoje. Agora uma coisa: tem de ser gente formada como deve ser e não com as escolas e universidades que nós temos. Temos que formar gente tecnicamente capacitada, quer em termos académicos, quer em termos profissionais, para podermos exportar. Anda toda a gente a investir em escolas teóricas ou académicas, mas ninguém pensa num ensino técnico como deve ser. A nossa solução é exportar gente. Eu digo isso com toda a naturalidade,

Parece-me que a questão do alfabeto – ALUPEC – é que tem funcionado como ruído nisto. Sim, há coisas lá que eu não aceito, essa história de que se procurou um

não me importo de dizer isso, mesmo que possa parecer escandaloso. Somos demasiadamente pequenos para a nossa população. A solução é exportar gente, ganham o que têm que ganhar, regressam para férias, uns haverão de retornar, outros não, mas não temos outra saída.

FIGURAS E MITOS Olhando para estes quase 40 anos, no teu ponto de vista, quem são as pessoas que simbolizam Cabo Verde hoje? No campo político, de um modo geral, tenho grande respeito pelos fulanos que fizeram a luta de libertação nacional. Ocorre-me o Pedro Pires porque ele ainda está vivo. Se eu tivesse que apontar alguém que fosse o mito de Cabo Verde eu apontaria Pedro Pires. E na cultura? Na música, qualquer que for o nome que eu citar muitos outros ficarão de fora. Mas aqui sempre tive duas referências: o Bana e o Ildo Lobo. Há vários outros, naturalmente, a começar pela Cesária Évora. Também ponho na lista os irmãos Zezé e Zeca di nha Reinalda, sobretudo pelo seu trabalho no final dos anos oitenta, com os Finaçon. Eles foram importantes naquela altura da mudança política. Mas a cultura não é só música. É verdade. É literatura, artes plásticas, teatro, etc. A ter que citar nomes, a lista seria bastante extensa, com risco, mesmo assim, de cometer várias injustiças. Por isso deixo-me ficar por aqui. Sei que o Germano subscreve a ideia de que todos os povos precisam de heróis… De heróis e de mitos. Os povos não vivem sem eles. Isto é fundamental. A nosso própria identidade fazse através deles. Por isso é que considero um erro desprezarmos a nossa gente, através da falta de respeito. Os povos precisam de se reconhecerem nos seus mitos. [Casablanca, 18-02-14] [ 15 ]


Pedro Lomba Morais

“A nossa geração não entra na Terra Prometida” Médico, nascido na Brava, ilha onde tem trabalhado a maior parte da sua vida, Pedro Lomba Morais, 63 anos, revela-se nesta entrevista um “enciclopédico”, capaz de falar da medicina, sua profissão, mas também de demografia, cultura, história, etc., com vivo entusiasmo. “Eu quero”, confessa, “que todos tenham um amor por Cabo Verde igual ao meu!”

Sendo médico, o que o levou a fixarse na Brava? Por duas razões. A primeira é que nasci na Brava. Faço parte de uma família muito matriarcal e tudo fizemos para agradar às nossas mães. Ao me formar, decidi que tinha de vir para junto dela, tendo em conta que ela estava a passar por um momento difícil, que tinha a ver com a morte do meu pai, e havia que cuidar dela e dos meus irmãos mais novos. Uma segunda razão tinha a ver com um certo espírito nacionalista, próprio da época. Uma vez concluído o curso, entendi vir ajudar na construção do meu país. Posto isso, permita-me que lhe diga, enquanto cabo-verdiano, eu me [ 16 ]

considero fruto de um “casamento” de Santo Antão a Brava. A minha mãe, natural da Brava, foi filha única. O pai dela, o meu avô, veio de Santo Antão, daí o meu apelido Morais (Morais de Chã de Pedra) e foi parar à Brava à procura de saída para a emigração. Casa, tem dois filhos e emigra; o meu pai e o meu tio, que morre novo nos EUA, vai para São Vicente estudar, fez o sétimo ano, nos anos quarenta. O meu pai, como era órfão, não pôde continuar os estudos. Começa a carreira, como funcionário público, nos Correios, em Santiago, altura das terríveis fomes, e regressa à Brava, onde conhece a minha mãe. Segue depois, em 1951, para Angola e aí faz a carreira na função pública. O meu pai

regressa para Cabo Verde na ressaca de 1975, vinha já alquebrado por causa de diabetes. Eu, em Portugal, terminado o curso, optei por vir para Cabo Verde, para não deixar a minha mãe sofrer sozinha aquele abalo da doença e morte do meu pai, também venho para ajudar os meus irmãos que eram mais novos do que eu nos seus estudos. Chega em que ano? Em 1984, uma altura de grande carência de quadros, na Brava, onde acabei por fazer o essencial da minha carreira. Mas teve uma fase na Praia, ou não? Sim, de 1997 a 1999. Isso porque,


entretanto, fui fazer uma pós-graduação em saúde pública, estive para ser delegado de saúde na Praia, mas, entretanto, fui para o programa de luta contra o sida, e em 1999 regressei a Brava, onde permaneço até hoje. Estando na Praia podia continuar por cá, ou não? Poder podia, aliás, tive várias ofertas nesse sentido. Mas gosto mais de lugares pequenos, de contactos de proximidade, esta é a minha vocação. Na Brava, o Pedro é o único médico na ilha? Neste momento somos dois. Mas fui médico único até 2008.

Isso para uma população de quantos habitantes? Quando comecei a trabalhar, em 1984, éramos à volta de nove mil habitantes. No censo de 2010 andávamos à volta de seis mil. Portanto, acompanhei a instalação do serviço nacional de saúde, de 1984 até ao presente. Posso então dizer que você é uma testemunha de como a saúde ou a medicina evoluiu em Cabo Verde... E como evoluiu! Como compara os dias de hoje com aqueles tempos iniciais? Nós conseguimos realizar a fase da “água” e da “saúde”. Há um período da

saúde que não se compagina com a esfera estrita da saúde, tem também muito a ver com a higiene pública. Aliás, no passado, os médicos eram higienistas. Sim. Esta, no geral, é a primeira fase da saúde pública, na medida em que há doenças de transmissão hídrica – diarreias, por exemplo. No meu caso pude participar nas duas vertentes. Essa primeira fase já está consolidada, nomeadamente no caso da Brava. Na Brava levámos chafarizes a todos os lados e hoje estamos a fechar os chafarizes porque todo o mundo começa a ter água em casa. Se bem que a Brava já trazia do passado um [ 17 ]


certo suporte, nomeadamente a prática de retretes secas e um certo comportamento de saneamento que lhe permitiu uma evolução rápida no domínio da saúde pública. A emigração terá exercido alguma influência nisso? A nível dos hábitos, sim. As latrinas secas, na Brava, são antigas. Depois, com a melhoria da distribuição de água, houve uma melhoria da qualidade de vida da população. No que diz respeito à mortalidade infantil, por exemplo, já estamos a cumprir os objetivos do milénio há dois ou três anos. E eu nisso até sinto um certo prazer, satisfação. Hoje, se uma criança morre na Brava, a minha comunidade sente isso de forma forte. Cheguei a sonhar, um dia, não ter por ano [ 18 ]

nenhuma morte infantil na Brava. Em 2012 não tivemos a morte de nenhuma criança com menos de um ano. Em 2013 tivemos. Ou seja, se provamos que somos capazes de atingir essa situação significa que podemos repetir, portanto, que não se tratou de obra do acaso, é fruto de um trabalho. Há um outro lado da questão que é o planeamento familiar. Tivemos uma intervenção muito forte nos primeiros anos da independência. Em 2013, houve um mês que não nasceu nenhuma criança na Brava. Quando comecei a trabalhar, nasciam, na ilha, cerca de 250 crianças por ano, agora são 120, uma redução de 50%. Em termos do objetivo do milénio número 5, referente à redução da mortalidade materna, também estamos a conseguir. Há sete anos que houve um óbito materno.

Diante disso, quais são as principais doenças da Brava hoje? O que temos hoje são as doenças modernas, diabetes, hipertensão e câncer. Conseguir isso no espaço de uma geração não é coisa pouca.

DEMOGRAFIA Mas a Brava vive também um outro drama, o do seu despovoamento. Sem dúvida. Acontece que conseguimos reduzir a mortalidade, o número de filhos por mãe, mas os factores outros permaneceram, um deles a emigração para os EUA. Além disso, à medida que educamos os nossos filhos, têm sucesso, vão para a universidade, eles passam a ter outras expectativas de vida, que não se realizam na Brava.


Aliás, não é só Brava, Santo Antão e São Nicolau estão a passar pelo mesmo. Esse é um problema que vai afetar todo o Cabo Verde um dia. Cabo Verde está naquele período que se chama de bónus demográfico, isto é, estamos a contrair o crescimento na base, mas ainda o meio está assegurado, mas isso por quanto tempo? Não mais que 10 ou 15 anos, 20 no máximo. Estamos a caminhar para um quadro semelhante aos dos países desenvolvidos. Vamos ter uma população envelhecida, não? Eu chamei a atenção para o problema da Brava em 1994. Em Fajã de Água, uma aldeia, temos hoje cinco crianças no pré-escolar e 21 no EBI, número registado na última campanha de vacinação. Ora, essas 21 crianças vão sair e serão substituídas pelas quatro ou cinco que estão no pré-escolar. Ou seja, corremos o risco de não ter sequer 10 crianças no EBI dessa aldeia, uma aldeia piscatória, note. Portanto, a pesca artesanal já não vai ser sustentável, no curto ou médio prazo, por falta de gente. Projetos de alta intensidade de mão de obra também já não são possíveis. Certas atividades deixam de ser possíveis com essa estrutura demográfica. Isso se passa na Brava, como se passa um pouco por todo o país. A experiência desses lugares deve ser tida em conta porque, em 10 ou 15 anos vamos ter problemas em todo o país. Somos tradicionalmente um país de emigrantes, mas já somos também um país de imigrantes. O que fazer com os que chegam? Com políticas assimilacionistas?... Multiculturalismo?... Isso deve ser visto desde já. A demografia já é um desafio para Cabo Verde? Claramente. Desde logo, a nível da saúde, isso coloca um outro tipo de problema, o do envelhecimento populacional, que exige cuidados mais sofisticados, problemas que já começamos a ter. Câncer e hemodiálise são provas disso. Qualquer país que começa a ter este desafio demográfico tem que atender a isso.

nascemos lá, acredito que eu e os meus irmãos somos os últimos dessa linhagem.

Entendia que devia contribuir para a construção de um país, que não fosse só um hino e uma bandeira. E, nesta qualidade, acompanhei estes anos todos a instalação do serviço nacional de saúde, de 1984 até ao presente.

Brava é um típico caso de drenagem humana. Uma ilha que no contexto de Cabo Verde foi importante nos finais do século XIX e início do século XX, que chegou a ser capital do arquipélago, e hoje é completamente periférica. Este é o reverso do sucesso da Brava. É por isso que o Lomba acaba por ser um caso único. Você é um quadro superior que ainda consegue resistir... Sou eu e um amigo que lá está. Somos os últimos moicanos. Mas este é o preço do nosso sucesso. Quando lutamos para que os nossos filhos estudem, se formem, uma vez formados... Então não espera que os seus filhos retornem e fiquem na Brava? Eu só tenho um filho, no caso uma filha única, está em Lisboa e não vejo continuidade nesse meu esforço. Costumo mostrar a casa da minha família, que vem do meu bisavô, todos

A sua família emigrou para onde? Para Santiago, Portugal, EUA... Eu tive a noção da caboverdianidade dispersa quando a minha mãe faleceu, há 13 anos atrás. De repente, quando aconteceu, o meu irmão estava em Macau, tínhamos familiares espalhados pela Europa (Noruega, Holanda, França, Portugal...), nos EUA de uma costa a outra, em África (Senegal, Angola, Costa do Marfim...), no Brasil, na Argentina, etc. Tenho neste momento uma sobrinha nos Barbados... Veja, uma aldeia de cerca de 400 gatos pingados com gente espalhada pelo mundo. É realmente uma proeza humana. Há hoje um factor positivo da caboverdianidade que nos é dado pelas redes de comunicação. Ainda estamos no princípio, mas com tanta gente espalhada pelo mundo, são inúmeras as contribuições que nos poderão ser dadas. É possível reverter o declínio demográfico na Brava? Não sei. No nosso caso, a emigração é inevitável e os EUA vão continuar a ser o principal polo de atração. Sabendo disso, temos que criar uma política, preparar a nossa gente muito bem para terem sucesso nos EUA, sem ter que trabalhar dois ou três trabalhos para ganhar a vida, ficando sem tempo para cuidar dos filhos. Com sucesso, mais cedo virão a Cabo Verde, para lazer e outras coisas. É preciso preparar as pessoas para a competição que vai encontrar, só assim elas terão sucesso e com sucesso poderão reparti-lo com os que ficaram em Cabo Verde. Então acha que o cabo-verdiano tem de ser preparado para a aldeia global? Sim, investindo de preferência em nichos que tenham a ver com conhecimento e tecnologias. Não temos grandes massas humanas para fábricas, para isso existem os chineses, os indianos, etc. [ 19 ]


Uma das coisas que este país conseguiu perceber que era importante levar água a todo o lado. Veja a Brava. Nós levámos chafarizes a todos os lados e hoje estamos a fechar os chafarizes porque todo o mundo começa a ter água em casa.

SER CABO-VERDIANO No início da nossa conversa, brincou dizendo que se sente um cabo-verdiano de Santo Antão a Brava. Por isso lhe pergunto: para si o que é ser cabo-verdiano? (risos) De tão óbvio, torna-se difícil dizer o que é o cabo-verdiano. Pois é, daí o interesse da questão. Gosto de todas as minhas raízes. Eugénio Tavares tem um poema que eu adoro e que diz: “Quero ir ao céu para colher uma semente para vir semear na terra para todos terem um amor igual ao meu”. Há nisso um sentimento de partilha imenso. Acontece o mesmo comigo. Eu não quero ficar com algo exclusivo para mim. Eu quero que todos tenham um amor por Cabo Verde igual ao meu! Eu tenho como imagem de caboverdianidade uma fotografia que está num dos livros do [António] Carreira, que é um agricultor de Santiago, com a mulher, os filhos, alguns esventrados, a cabrinha por [ 20 ]

perto... Sempre que sinto algum desânimo eu procuro essa fotografia. Vejo a força que pessoas como esse agricultor nos legaram, pessoas que sofreram fome, miséria, meteramse mar afora à procura da vida... Como o Ovídio disse, “As cabras ensinaram-nos a comer pedras para não perecermos”. É o fulano que, no fim da tarde, toma o seu grogue e com cavaquinho vai tocando pelos bares, pelas aldeias... É tudo aquilo que o Baltasar Lopes nos transmitiu com Chiquinho. Há lá uma cena em que o fulano volta para a sua aldeia e não encontra ninguém para trocar impressões, eu sinto isso. Herdei do meu pai o gosto pela leitura, leio muito. Li os escritores brasileiros do nordeste – José Lins do Rego, Graciliano Ramos... – que me ajudaram também a consolidar a minha ideia de caboverdianidade, já que essa literatura está próxima da realidade cabo-verdiana. Além disso, estudei o liceu em São Vicente, nos anos sessenta. Há uma obra extraordinária, Santiago, a terra e o homem, do Ilídio Amaral, que me marcou muito também. Tudo isso ajudou a consolidar o meu orgulho de ser cabo-verdiano. No seu caso, esse orgulho surgiu em Cabo Verde ou fora? Em Cabo Verde. Quando fui para São Vicente, em 1960, estudar, eu já tinha muito orgulho de ser cabo-verdiano. Quantos anos tinha?! Dez anos. Fui para Lisboa em 1963, por razões de saúde – tive um problema renal. Em 1963 os movimentos nacionalistas começam a aparecer com força. No seu caso foi uma coisa precoce mesmo. Sempre fui precoce. Em São Vicente a minha tia dizia “você é político!” Eu nem sabia o que era isso de ser político, mas tudo porque eu me interessava pelas pessoas, pelo sofrimento delas, tomava posição. Indo para Portugal, em 1963, com 13 anos, sem nenhum familiar por perto, acabei por frequentar e conviver com os jovens que já andavam na universidade.

Frequentava a Casa dos Estudantes do Império? Não. Mas convivia com a malta no Campo de Ourique, nos cafés. Eu tinha um grande amigo, o Osvaldo Cruz, que foi agrónomo, que quando a gente se cruzava me dizia, “olha o meu menino do Campo de Ourique!” Eu tinha 13 anos mas andava sempre no meio dos rapazes mais crescidos, que conversavam de política. Com o nacionalismo a fervilhar, eu bebia muito daquilo que ia ouvindo. Voltei para Cabo Verde em 1968, aqui termino o liceu e vou para a universidade em 1971 e aí reencontrei muitos dos amigos que tinha deixado e me reintegrei nas lutas daquela altura nas organizações estudantis. E nisso surge o processo da independência comigo completamente mobilizado. Ainda à volta da nossa identidade. Para si o que une os cabo-verdianos? Primeiro o sentimento de que somos cabo-verdianos. Depois é tudo o resto. Sendo da Brava, aprecio imenso o Eugénio Tavares, mas também o B. Leza, aqui em Santiago admiro a força da sua cultura. No que é que a Brava contribuiu de mais relevante para a cultura de Cabo Verde? A maneira de ser do bravense, muito dócil, muito pacífica. Por um lado, aprendi isso com a minha mãe; e por outro, com outras mulheres. O sentimento de lutar pela justiça, de me posicionar no lado das causas justas. Na Brava, e noutros lugares de Cabo Verde, se diz “eu não tenho medo da justiça, tenho medo da injustiça”. O facto de termos tido alguém como Eugénio Tavares, que pugna pela justiça, ajuda a perceber a importância da nossa cultura. Por outro lado, ao mesmo tempo, a ilha mostra-nos a importância dos seus limites, logo, dos nossos também. A Brava é uma ilha triste, aquelas casas fechadas, os terrenos abandonados... A tristeza, a melancolia da Brava, não é só disso. Há também o nevoeiro. Mas antes veja o seguinte: o seu pai sai da Brava, embarcado num navio, quantos anos depois você sabe que ele chegou


aos EUA? Ele deixa a mulher grávida, quanto tempo depois ele, nos EUA, sabe que a criança nasceu, “estarão bem, estarão mal?”... Não é como hoje, a gente abre o Skype e vê o outro onde quer que ele esteja no mundo. Era duro. Nós tivemos a nossa história trágico-marítima, com o naufrágio do Matilde, ficamos sempre com aquele aperto, “chegou, não chegou?...” Uma vez estive na Brava, caminhando, dou com um adolescente sentado naquele monumento em forma de navio, em Nova Sintra, com um olhar perdido no horizonte, aquilo deu-me cá um aperto. O que é que ia pela alma desse jovem. É como diz aquele poema do Jorge Barbosa, o desejo de evasão, “o sonho de partir e querer ficar...” Aliás, o Jorge Barbosa disse um dia que ser cabo-verdiano custa. Você tem essa percepção? Sim, ser cabo-verdiano custa, e como custa!

Eu tenho como imagem de caboverdianidade uma fotografia que está num dos livros do [António] Carreira, que é um agricultor de Santiago, com a mulher, os filhos, alguns esventrados, a cabrinha por perto… Sempre que sinto algum desânimo procuro essa fotografia.

No seu caso porquê? Eu estudante em São Vicente, quando chegava a altura de passar as férias, havia sempre esta pergunta: “Quando é que aparece um barco para a Brava?” – normalmente era Julho, Agosto, havia o equinócio, era um tempo difícil de ir para Brava. Os barcos diziam para a semana, chegava a semana e nada, “vai ser na próxima”... Até que finalmente aparecia o barco. E quando lá chegava, para regressar, a história repetia-se. Era o tempo do “seló”, a olhar o horizonte para ver se aparecia um sinal que fosse do barco. Essa Brava, hoje, desapareceu. É preciso reinventar a Brava. O que propõe para essa reinvenção? Todo o progresso tem consequências. No caso da Brava, grande parte dos proprietários da ilha estão fora, estão pouco por dentro do que se passa em Cabo Verde. Infelizmente, por altura da independência, afugentamos muita gente que depois fez imensa falta à ilha. Um study case interessante, a fazer, é como se consegue recuperar [ 21 ]


essa gente. Hoje, os que permanecem têm oportunidades de negócios, mas não têm terra, como posso apoiar um agricultor com gota a gota, por exemplo, se a terra não é dele? Mas aquelas terras abandonadas não poderiam ser utilizadas? Podiam mas não são, porque, muitas vezes, não têm dono. Todos sabemos das dificuldades ou dos problemas que há em Cabo Verde, nomeadamente em Santiago, com a propriedade das terras. Na Brava não se fez a reforma agrária. O poder de então achou por bem não confrontar ou afrontar a emigração dos EUA. Se calhar até fez bem. Hoje, com o avanço da imobiliária e do turismo, começa a surgir uma ou outra iniciativa, mas de forma muito tímida. A Brava, praticamente, da beira mar até o cimo do ponto mais alto, tudo tem dono mas ninguém sabe, muitas vezes, quem é o dono visível. E isso atrasa o desenvolvimento da ilha. Só há um ano e tal começamos a ter um transporte marítimo regular, alimentamos durante muito tempo a possibilidade de ter transporte aéreo, mas eu não subscrevo isso. Eu sou muito mais defensor de transporte marítimo, seguro e regular e uma interligação maior entre o Fogo e a Brava. O Fogo tem atrativos turísticos, tem uma população forte e a Brava teria todo o interesse em aproveitar a sinergia decorrente da sua relação estreita com o Fogo. Nós, cabo-verdianos, estamos sempre a ver a “nossa” ilha, querendo replicar estruturas, quando hoje podemos ser totalmente novos. As novas tecnologias permitem resolver os velhos e novos problemas de forma diferente. No caso da Brava, não tendo o turismo de praia, podemos desenvolver o turismo ecológico, mas sem população é difícil. Não ter uma população acima das seis mil almas é complicado.

REGIONALIZAÇÃO, “A FAVOR” Falou na integração entre Fogo e Brava e também da regionalização. É defensor da regionalização? Sim, sou. É preciso discutir isso bem, mas é preciso encontrar solução. Uma [ 22 ]

ilha com seis mil habitantes, produzir e fornecer serviços com qualidade não é possível sem uma base regional. No caso da Brava, entende que ela deve ser acoplada ao Fogo? Sim. Como há muito movimento entre Fogo e Santiago, o pouco que falta chegar à Brava, nós apanhamos. Pior seria se estivermos sozinhos, isolados, sem um foco de atração como o Fogo. Sendo pela regionalização, qual é o tipo de regionalização que você preconiza? Esta é uma discussão a fazer e nisso não podemos perder de vista o mundo em que hoje temos. Às vezes, fico atordoado com certas coisas que vou

Somos tradicionalmente um país de emigrantes, mas já somos também um país de imigrantes. O que fazer com os que chegam? Com políticas assimilacionistas?... Multicuralismo?... Isso deve ser visto desde já.

ouvindo a favor desta ou daquela ilha, a favor desta ou aquela localidade. Eu, por exemplo, não vejo que se queira um porto ou aeroporto para os Mosteiros se eu tenho a construção de um anel que me permite em pouco tempo – meia hora, uma hora por exemplo – ir de um lugar a outro da ilha do Fogo. Os que estão nos Mosteiros vão me dizer, “não senhor, nós temos sim a necessidade do porto e aeroporto...” Cada um é livre de defender o que entende ser bom para a sua ilha ou sua localidade. Mas é falando e discutindo os problemas que haveremos de encontrar a melhor solução para um conjunto de coisas. Mas há um problema importante nisto tudo: os custos. É como eu costumo dizer em relação à saúde, “sim senhor, a saúde não tem preço; atenção, não tem preço, mas tem custos”. Tem custos elevados, pequenas unidades, grandes unidades, médias unidades, tudo isso tem custos, e muitas vezes elevados. Nos dias de hoje não precisamos ter um laboratório em todos os cantos do país, basta esticar o braço, recolhese o sangue, para essa pessoa, pouco importa onde a análise vai ser feita, o importante é que amanhã lhe deem o resultado. Portanto, isto deve levar-nos a uma diferente concepção das infraestruturas para resolver o problema de cada um. A telemedicina que, em Cabo Verde, ainda está no início. À medida que for ganhando consistência, as pessoas começarem a ver que o problema delas pode ser resolvido por essa via, elas vão confiar nisso, sendo certo que no início as pessoas desconfiam. O doente cabo-verdiano ainda é daquele que tem de ser apalpado pelo médico, ele tem de vê-lo nos olhos. Hoje, temos casa disto e casa do outro, à medida que isso for sendo ampliado e ganhando consistência vamos resolver, à distância, velhos problemas que antes só podiam ser resolvidos física ou presencialmente. Isto para dizer que nós da Brava precisamos criar uma rede com os do Fogo e vice-versa, para ganharmos dinheiro, para termos bem-estar, o resto é conversa fiada. As duas ilhas – Fogo e Brava – têm muito de comum e é necessário cultivar o que as une.


Há um problema que aflige a Brava, o número de deportados. Isso continua? Continua, são poucos, mas suficientes para criarem problemas numa ilha como a Brava. Uns acabam por deixar a ilha, vêm para Praia, etc. O grande dilema dos expatriados é conceptual. Como adotar medidas de inserção social de gente que nós não desinserimos, eles foram desinseridos numa outra sociedade, mas somos nós que temos que os inserir numa outra sociedade, a nossa, que sequer tem capacidade para isso. Eles são muito vulneráveis, precisam de uma intervenção especial e difícil, difícil porque somos pequenos. Os que estão na Brava fazem o quê? A tomar os dias. Recebem ajuda da família nos EUA, de vez em quando, um ou outro consegue um biscate, um ou outro tem sucesso na sua reinserção. Este é um fenómeno que algum dia lhe passou pela cabeça? Eu me apercebi desse risco em 1994, comigo em Portugal, por causa dos açorianos. O governo dos Açores, na altura, pediu ajuda ao governo central por causa dos expatriados que andavam a receber em micro-ilhas, vi logo que poderíamos vir a ter o mesmo problema, como veio a acontecer. Para começar, muitos deles não têm família na ilha. Além disso, muitos não se conformam por estarem na Brava. Claro que não podem se conformar. Eles chegam totalmente destroçados, não têm sucesso na vida, não são americanos – mercano tene dólar cima burru, como se dizia antigamente. Estamos a receber gente que não teve sucesso, são esses que nos são devolvidos. E agora, o que fazer com essa gente?

DIÁSPORA Disse-me que tem parentes espalhados pelo mundo. O que espera da nossa diáspora neste Cabo Verde que procura sobreviver? A diáspora é uma palavra que vem da cultura hebraica. Nisso eu costumo lembrar que, quando Moisés sai do

Sim, ser cabo‑verdiano custa, e como custa!

Egito, deambula pelo deserto, ele não entra na Terra Prometida, nem ele nem a geração dele. A nossa geração não entra na Terra Prometida. Nós preparamos o terreno para os nossos filhos, para então viverem no pleno nessa Terra Prometida. Essa Terra Prometida é cheia de esperança. Uma outra herança é essa capacidade nossa de desenrascar, coisa que herdamos dos portugueses, porque, digam o que disserem, o português desenrasca bem. É aquilo que a Cesária disse um dia, quando lhe perguntaram que mensagem tinha para as mulheres, “pa ês bá desenrascá cima mi desenrascá”. Mas também precisamos da cultura anglo-saxónica, das coisas bem organizadas, consolidadas, embora nunca haveremos de conseguir isso, porque somos afro-latinos. Temos também esse lado africano, que vive, que se diverte, “criol gostá d’ riola”... Temos tudo isso e estamos espalhados pelo mundo, e agora, com as facilidades tecnológicas, vamos tendo uma nova aproximação. Acredita então que ainda é possível recuperar esses cabo-verdianos espalhados pelo mundo? Temos o direito de procurá-los onde estiverem e com isso criar uma união. Precisamos unir os cabo-verdianos da Califórnia à China, a partir de Cabo Verde. Mas vê essa preocupação enquanto política pública? Sabe, eu estou lá no fundo do quintal.

Mas, por vezes, o facto de se estar longe permite-nos uma melhor visão da realidade. É verdade. E mais: hoje temos essa coisa recente entre nós que é a universidade. A universidade é, por natureza, o lugar das discussões, com gente jovem. É verdade que ainda estão naquele período de ilusão, basta chegar lá, copiar e colar. Mas acredito que temos talentos e que precisamos trabalhar. Olhando Cabo Verde, a partir da Brava, o que vê deixa-o otimista?... Eu sou por natureza otimista. A minha geração, sem nada numa mão e sem nada na outra – o meu amigo escreveu Os bastidores da independência, é maduro e conscientemente sabe que tivemos em Cabo Verde um período duríssimo – foi capaz de criar este país que hoje somos. Neste momento podemos ter uma geração jovem, que está à rasca, alguns certamente, mas também temos gente muito consciente, com muito talento. Que o deixam otimista? Sim, mais do que isso, devemos apoiálos e dar-lhes o polimento que nós não tivemos. Temos de dar-lhes confiança, mostrar-lhes que podem abrir novos caminhos. Vendo o arquipélago a partir da Brava, na sua opinião, quais são os nossos principais desafios? O nosso principal desafio é confiarmos em nós mesmos. Não desanimar, não achar que somos coitadinhos. O discurso do coitadinho não nos leva a melhorar. É preciso ter confiança em nós mesmos, cultivar sempre a nossa autoestima, de crioulo, ter acima de tudo a confiança de saber que nós somos capazes. O crioulo foi sempre muito bazofo, convencido, é preciso continuar isso, mas com cuidado, não tirar o pé do chão. No fundo, é aquela história do provérbio africano: de manhã, ao acordar, o leão diz “hoje tenho de correr mais para apanhar uma gazela”; a gazela, por seu turno, pensa “hoje tenho de correr mais para fugir do leão”. Cada um, na sua maneira, tem de correr. Estamos num mundo cada vez mais competitivo. O que me estranha na [ 23 ]


nossa longa história da emigração é por que razão trouxemos tão pouco da competitividade americana para a nossa vida, ficamos mais com a influência europeia, nomeadamente a portuguesa. Devíamos ter mais agressividade do americano para ganhar dinheiro. A mim também. Basta notar que o melhor da nossa música produzida no exterior não vem dos EUA. Peter Drucker [1909-2005] explica num artigo que os afro-americanos estavam a adaptar-se bem, a tornarem-se operários, até que, de repente, nos anos setenta, os anos do conhecimento, sofrem com isso. A nossa comunidade nos EUA também apanha com esse abalo e quem conseguiu resistir melhor foi o santo-antonense e o foguense, comunidades muito baseadas no conhecimento, na mobilidade social, ao passo que o bravense, como era muito baseada no operariado, foi a mais afectada. Daí também que, no conjunto dos deportados, a alta taxa de bravenses. Eu vi o mesmo problema em relação aos brasileiros no Japão. O Japão, como você sabe, tem uma grande comunidade no Brasil, com a crise no Brasil, muitos descendentes de japoneses foram para o Japão e muita da delinquência no Japão era de brasileiros. As autoridades japonesas foram ao Brasil buscar polícias, padres, assistentes sociais para ajudá-las a resolver o problema criado com esse tipo de retorno. Os EUA, como têm uma outra abordagem na resolução desses problemas, têm outras soluções, devolvem pura e simplesmente ao país de origem os jovens com problemas. Mas o certo também é que nós precisamos de gente que ajude a resolver os problemas da nossa comunidade nos EUA. Nós estamos no ponto do rebuçado. Por que diz isso? O cabo-verdiano está talhado para o conhecimento. Temos é que ser capazes de criar estruturas que apoiem os nossos jovens para serem cada vez mais melhores, mas também é preciso investir na mudança de comportamentos. Andamos a formar muitos doutores para escolas e [ 24 ]

para as empresas, nada. Precisamos desenvolver o tecido empresarial. O americano, self made man, não se importa de sujar as mãos; nós não, sujar as mãos “é trabalho de contratado”, o fulano que teve de ir para São Tomé e Príncipe dar duro. Acabo de ler um dos ensaios do [António] Correia e Silva, sobre a família cabo-verdiana, que mostra o desconforto que hoje existe sobre uma série de questões, uma delas a dificuldade que temos com o empoderamento das nossas periferias. A própria comunidade afro-americana tem esse problema. Aliás, o Obama meteu o dedo nessa ferida ao chamar a atenção para o abandono dos filhos dos afroamericanos pelos pais. O que significa que não estamos sozinhos no mundo. No nosso caso, temos que nos juntar para encontrar as nossas próprias soluções, não vale a pena estar a chorar sobre o leite derramado.

REFORMA DO ESTADO Um dos nossos problemas perenes é a organização política, a reforma do Estado. Como vê este quesito da nossa vida? Há uns anos li a quadratura do círculo do [Ralf] Dahrendorf [1929-2009]. Numa carta para os amigos dele da Europa do Leste, ele afirma que o problema da instalação e consolidação da democracia leva uns 60 anos. Eu pus-me a pensar, “será que vamos levar 60 anos para consolidar a democracia em Cabo Verde? Se for verdade, eu não chego lá, mas pelo menos fizemos uma parte da trajetória”. Ou seja, nós estamos a fazer um percurso que, segundo Dahrendorf, leva sessenta anos. Otimista que sou, no nosso caso, espero que leve cinquenta. Portanto, não tem problemas com a forma como as coisas estão? Nem por isso. Há quem considere excessiva a nossa máquina pública. Mas porquê? Se voltarmos à História, o que é que a gente tinha?... É como me dizem os meus amigos

angolanos, “o que é que o Estado faz? – Distribui riquezas”. Ora, se eu não tenho petróleo, não tenho diamantes, onde é que vou buscar? Vou buscar ao Estado. Só que chega uma determinada altura o Estado começa a meter água. E o que fazer? Toca a saltar. Para sobreviver, tínhamos que fazer alguma coisa. Já depois de 1990, criámos municípios por todos os lados, organismos disto e daquilo, na lógica de arranjar o nosso tachinho... portuguesmente. Rejeitámos o poder colonial, rejeitamos o partido único, abraçamos a democracia, mas o nosso ADN português continua lá, no fundo do nosso ser. É por isso que eu adoro ler o Eduardo Lourenço. Quando o leio, dou comigo a pensar, “epá, a nossa costela portuguesa...” – e digo isso descomplexadamente. É claro que eu sei que o Estado que temos é demasiado. Mas se a gente liquida ou reduz esse Estado “para onde é que eu vou?” Mas, ao mesmo tempo, o problema está a bater-nos à porta. “Sim senhor, vocês estão cheios de sucesso, são exemplos para a África, sabem gerir, agora que já provaram que são capazes, tratem de andar sozinhos”. Foi isso que a comunidade internacional fez connosco ao nos graduar a país de rendimento médio. Está a acontecer a Cabo Verde o mesmo que aconteceu com a Brava. Tivemos sucessos, os nossos filhos saíram para se formarem e, como não podemos continuar a responder aos desejos deles, a solução é eles saírem, emigrarem, deixarem a Brava, deixarem Cabo Verde. O certo é que para mantermos a caboverdianidade temos que ter uma base cabo-verdiana muito forte, aqui nas ilhas.

CRIOULO: “OFICIALIZAÇÃO É INEVITÁVEL” Falemos agora do crioulo. Como é que você se posiciona diante disso? Eu falo crioulo quase o tempo todo. Uma das questões do nacionalismo é ter a sua língua. A grande dificuldade é que somos poucos, para os nossos contactos com o mundo já ouvi o senhor primeiro-ministro [José Maria Neves] dizer que precisamos de quarto


línguas – inglês, francês, alemão ou, se calhar, o espanhol. Comparativamente a Portugal, por exemplo, os países da Europa do Leste tinham vantagens porque os seus cidadãos dominam três a quarto línguas. No caso de Cabo Verde, eu ainda defendia a introdução de uma quinta língua, o mandarim. A China vai ser uma séria potência mundial, por isso pergunto, por que não o mandarim? E a oficialização do crioulo? A crioulo está ainda em formação. Podemos discutir qual ou quais os crioulos para isto ou aquilo, e é saudável que assim seja, mas a oficialização do crioulo é inevitável. Mais tarde ou mais cedo, ela vai acontecer.

FIGURAS Quando olha para estes quase 40 anos de independência, para si, quem são as figuras que mais se destacaram? Gostei imenso de conhecer, embora tenha privado pouco com ele, o presidente Aristides Pereira. Quando vim trabalhar para a mobilização da independência, na Brava, tirando um ou outro bravense, quase ninguém queria saber da independência. Nós jovens, que estávamos naquilo, andávamos desanimados. Um dia, Aristides Pereira aparece e nos diz: “Não desanimem, continuem a trabalhar, a explicar às pessoas o que é a independência. Convençam primeiro um, depois outro...” Ou seja, ele, com aquela maneira de ser dele, pacífica, transmitiu-nos muita confiança, que era preciso continuar a conversar com as pessoas. E ele, além disso, teve sempre um carinho muito especial pela Brava. Fora ele, há uma lista enorme de gente, da geração anterior, da minha, gente que eu não conhecia e que passei a conhecer, de tal modo que nem me atrevo a dizer os nomes. Do Aristides digo porque já morreu. Uma outra pessoa, que também já morreu, cujo nome não posso deixar de citar é Abílio Duarte. Mas eu, já naquela altura, muito novo, dava comigo a pensar, “como vai ser, quando a minha geração chegar aos 40 e quiser disputar o poder a esses fulanos?” [ 25 ]


Aliás, você teve esse problema em 1990, não? Sim, e batemo-nos pelo poder para mudar as coisas. E digo que o fiz com toda a naturalidade. A mudança deu consigo na Brava? Sim. Inclusive com o Aristides aconteceu o seguinte: quando o meu amigo e colega Dario Dantas dos Reis, que era mandatário nacional dele, me convida para eu ser o mandatário de Aristides Pereira na Brava, eu, na véspera, tinha aceitado ser mandatário de António Mascarenhas Monteiro. Aliás, sentime um pouco incomodado por causa da estima que eu tinha por ele, Aristides Pereira. Na sua ilha, Brava, quem é que se destacou nestes anos todos? Na Brava, as pessoas que poderia destacar é tudo gente que foi saindo. Eu tinha uma grande estima e amizade pelo Antero de Pina, nho Tey, dono da Casamansa. Era uma amizade que vinha da família. Um homem simples, mas que dava uma dimensão à cultura e à resistência, de continuar a viver na ilha. Ele tinha quase toda a família nos EUA e, mesmo assim, foi ficando até morrer. Uma outra pessoa é o José Maria Barros, que infelizmente já morreu também. Com ele criámos muita empatia, estivemos muitas vezes em desacordo, mas reconheço que ele foi importante para a Brava. A complexidade da Brava é ligar ou gerir a política local com a emigração. Até hoje não conseguimos esse equilíbrio. Por trás disso estão feridas mal saradas que vêm do período da independência e que nos impedem de ter uma relação tranquila com a nossa gente lá fora e na ilha. A independência magoou muita gente na Brava? Sim e, depois, a instalação da democracia também magoou outros tantos. Numa ilha pequena, onde se deveria procurar apoiar todo aquele que tem alguma iniciativa, os empreendedores, seja qual for a sua cor política, acontece precisamente o contrário. Isto porque a disputa nos [ 26 ]

Como cantou o Eugénio Tavares, em “Na minino na”, “quem tem medo morre cedo”. Por isso, aconteça o que acontecer, não tenho medo do futuro.

meios pequenos é sempre reducionista, com o agravante de o que se passa na Brava chegar sempre de forma muito distorcida aos EUA. A desinformação é sempre muito grande.

VALORES: “SEMPRE A SER RECRIADOS” O problema dos valores em Cabo Verde o preocupa? Nós que já temos cabelos brancos temos sempre a tendência de achar “isto dos valores já não é o que era”, “hoje ninguém liga para os valores”... Os valores estão sempre a ser recriados. Alguém disse que nada mais muda como as tradições. No entanto, as pessoas acham que as tradições são imutáveis, são eternas, mas não é verdade. A força de uma cultura reside na adaptação permanente dos seus valores aos novos tempos. Em todo o lado discute-se os valores. Mas uma coisa: os valores mudam. Como vê Cabo Verde daqui a 10 ou mesmo vinte anos? Nós somos de uma cultura que, como dizia o poeta, “sempre que o

homem sonha o mundo pula”. Eu sou amigo do Gualberto do Rosário, que nós todos temos como um grande sonhador. Há uns anos atrás todos gozamos com ele, por causa das pontes, dos túneis, da cultura de morangos, do camarão, e hoje somos desafiados a fazer essas coisas todas. A realidade mostra-nos que, sim, é possível. Por isso é preciso continuar a sonhar, mas sonhar com os pés assentes no chão, ciente de que essa nossa cultura, que tem a dolência da morna, também tem a energia do funaná. Eu sou um cabo-verdiano que adora ser cabo-verdiano, não sabe ser outra coisa senão cabo-verdiano, sempre me recusei viver num outro sítio que não Cabo Verde, porque tenho a impressão que se o fizesse eu já estaria morto. Como cantou o Eugénio Tavares, em “Na minino na”, “quem tem medo morre cedo”. Por isso, aconteça o que acontecer, não tenho medo do futuro. Sendo um otimista por natureza, parece que não está muito angustiado com Cabo Verde. Longe disso! Eu nunca me angustio com Cabo Verde e mesmo quando o desânimo ameaça chegar perto de mim recorro àquela fotografia que está no livro do António Carreira de que lhe falei no início desta nossa conversa. Outra coisa é esta: a primeira vez que fui a Santo Antão, na estrada Porto Novo/Ribeira Grande, dei-me conta da força anímica que existe em nós, caboverdianos. Aquilo foi um trabalho de gerações, houve homens e mulheres que provavelmente perderam a vida a construir aquela estrada. De repente, comigo lá, sentindo toda aquela paisagem à volta, senti o eco de toda essa gente dentro de mim. Quem, por alguma razão, sente desânimo com este país, deve ir a Santo Antão para dar-se conta de que todos os problemas que possa ter não são nada. Portanto, essa foto do Carreira e a imponência de Santo Antão são duas coisas que me acompanham o tempo todo e que me ajudam a enfrentar o presente e o futuro. [Cidade da Praia, 22-02-14]


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Fausto do Rosário

“Somos sobreviventes”

Fausto Amarilo do Rosário, 53 anos, natural do Fogo. Professor, investigador das “coisas” da sua ilha. E é nesta qualidade, além de outras, que acaba por girar esta entrevista.

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Sei que és uma pessoa muito ligada à tua ilha, Fogo, mais concretamente à sua memória coletiva. O que te leva a ser assim? Primeiro, por me sentir bem comigo mesmo – quanto mais souber sobre a minha ilha e souber entender as suas gentes melhor estarei nesta sociedade e comigo mesmo. Depois, fui descobrindo, ao longo dos anos, que devo muito a esta ilha. Muito do que sou advém da educação recebida, da convivência tida com os trabalhadores do meu avô, por exemplo, com gente simples, etc. E por outro lado, hoje reconheço a necessidade de, parafraseando o professor João Lopes Filho, escrever a pequena grande história do povo das ilhas. Não tenho a pretensão de ser um escritor, mas alguém que possa contribuir para que a pequena grande história da ilha do Fogo também seja escrita. Há uma identidade foguense no contexto de Cabo Verde? Há. E como é que ela se caracteriza? Pela perseverança, por nunca se dar por vencido, o que acaba também por levar a um individualismo muito forte. O foguense é individualista por natureza, que gosta de lutar sozinho. Contrariamente ao mindelense, que tem uma cultura muito grande de associativismo, o foguense quer vencer, mas vencer sozinho. As grandes figuras do Fogo construíram-se sozinhas. Até o Pedro Pires é um pouco isso. Ah, sim!? Sim, o mesmo se passou com Abílio Macedo. O foguense é também emotivo, não guarda rancor, e, vou dizer uma coisa que talvez espante muita gente, com um sentido de humor muito refinado. Somos conhecidos, muitas vezes, como os brigões de Cabo Verde, que explodimos por tudo e mais alguma coisa, mas temos um sentido de humor muito nosso, que não é tão direto como noutras ilhas, mas feito de frases subtis, com nuances que de repente levam ao absurdo. Neste caso, qual é o contributo que o Fogo deu para a cultura de Cabo Verde? Eu começaria por apontar uma reinterpretação muito própria da [ 30 ]

A história do caboverdiano é a história da sobrevivência. Aqui, num meio agreste; lá fora, adaptando-se aos diferentes contextos, e também esta capacidade que temos de nos reconstruirmos nos mais diferentes espaços, mas nunca perdendo a identidade que nos leva a reconhecer como povo.

religiosidade popular. O foguense reinterpretou e reincorporou, à sua maneira, as figuras de santo, passagens bíblicas, etc. Isso constitui um mundo extraordinariamente rico para a cultura cabo-verdiana. Mas também podemos falar da variante do nosso crioulo que conserva expressões antigas, do português reinol. Na música, temos ritmos próprios, recriados a partir da música e das danças de salão, de que talaia baxu é o mais representativo. A culinária, com aspetos muito particulares, é um outro contributo importante. Mas sobretudo a doçaria, com pudim de queijo à cabeça, como algo representativo do Fogo. A teu ver, o que define ou identifica os cabo-verdianos no seu todo? Acima de tudo, o profundo amor ao torrão natal, quer pela sua ilha quer por Cabo Verde no geral. Em segundo lugar, eu há pouco usei a perseverança, que eu não hesitaria em utilizar para o cabo-verdiano de uma forma geral. O cabo-verdiano é perseverante, batalhador, é capaz de sobreviver nos

mais diversos contextos. A história do cabo-verdiano é a história da sobrevivência. Aqui, num meio agreste; lá fora, adaptando-se aos diferentes contextos, e também esta capacidade que temos de nos reconstruirmos nos mais diferentes espaços, mas nunca perdendo a identidade que nos leva a reconhecer como povo. Já que falaste em sobrevivência, eu vejo-te como um sobrevivente aqui no Fogo. Há sempre o apelo para irmos embora, e aqui no Fogo esse apelo é muito forte. Ao longo da vida podia ter saído várias vezes. Podia ter saído logo que terminei o liceu em São Vicente, altura em que tu e eu fomos colegas no “Ludgero Lima”. Podia ter saído várias vezes na década de noventa, ainda hoje o meu filho mais velho, que está na América, já me fez petição de emigrante, ao que eu já lhe disse “irei visitar-te de vez em quando, mas não contes que vá deixar o Fogo para ir viver nos EUA”. Nesse sentido, sim, sou um sobrevivente, não consigo verme a viver de outra forma. Sinto-me realizado, sinto-me bem aqui. Depois do liceu vieste para o Fogo? Não, primeiro trabalhei na ilha do Maio. Estava em São Vicente com um conforto relativo – água corrente, luz elétrica, uma vida urbana, etc. – de repente, aterrei numa ilha sem nada disso. O Maio era um deserto. Tive de aprender uma série de coisas diferentes, mas, um ano depois, sentiame completamente integrado, tanto assim que ainda hoje sinto um carinho imenso pelas gentes do Maio. Foste ao Maio fazer o quê? Fui como professor. Era uma época em que eu podia falar de avião aos alunos do Maio mas não se podia falar de carro, por exemplo, porque na ilha não havia um carro sequer. Comigo lá chegou um camião para o Secretariado Administrativo, chamado Mar Azul, uma motocicleta para o MDR, uma Kawasaki 125 para um exilado chileno que lá estava, chamado Mário Rivas, e uma carrinha Peugeot 404 para o responsável do partido. Isto em 1979. É depois que aparece um emigrante, Eduíno (acho que era assim que


se chamava) que desembarca com um BMW topo de gama, uma coisa espetacular, que nunca chegou ao destino. Ele era do Morro, saiu do Porto Inglês, pelo caminho, teve um acidente, morreu e lá ficou apodrecendo. São histórias fabulosas de um Cabo Verde completamente diferente do que é hoje. Uma ilha sem estradas, mas tinha uma pista de avião… Não tinha estradas mas tinha um BMW topo de gama. Não tinha carros mas as crianças conheciam avião. E do Maio vais para onde? Venho para o Fogo. Venho com a ideia de, no ano seguinte, ir estudar ou medicina ou psicologia, na verdade psicologia, por vocação. Mas acabei por não fazer nem uma coisa nem outra, isto porque, entretanto, percebi que, afinal, gostava de ser professor.

Foi rezar missa aprendendo a rezála, formando-me à distância com os meios da altura, e aqui estou.

CABO VERDE: 40 ANOS Estes anos todos, essa circulação, permite-te avaliar Cabo Verde destes 40 anos. E como vês este filme? Em primeiro lugar, sinto-me muito orgulhoso por fazer parte deste filme. A independência, de facto, mexeu e mudou a minha vida. Eu faço parte daqueles que acreditaram na grande utopia e que em certa medida hoje é realidade. Quando vejo o Cabo Verde que temos hoje, quando vejo as facilidades que temos na educação, na saúde, as acessibilidades, às vezes coisas até muito simples, enfim, quando vejo todos os meus alunos calçados, e me recordo do tempo em que éramos alunos, vejo que tudo

mudou. Um outro exemplo é o nível das habitações. Aqui em São Filipe houve uma grande mudança na parte superior da cidade, que eu conhecia com casas de colmo, casas de chapa de bidon, etc. e vemos o que há, a mudança é extraordinária. A começar, hoje a ilha tem mais de um liceu, coisa impensável durante muito tempo. Também tenho aqui um grande orgulho. Bati-me durante anos para que tivéssemos o nosso liceu. Toda a década de oitenta foi feita uma luta provando que havia condições para um liceu até que em 1988, Corsino Tolentino [ministro da Educação entre 1986-1991] reconheceu que o curso noturno funcionava com quase 400 alunos, com uma faixa etária que ia dos 14 aos 45 anos de idade, sendo esta parte superior já residual, isto é, que o curso noturno, que tinha [ 31 ]


sido aberto em oitenta para atender funcionários, por iniciativa do padre Camilo Torassa, tinha se transformado numa alternativa para aqueles que não podiam demandar a Praia e São Vicente. É então que surge a autorização. Aliás, a saga do liceu no Fogo é algo que merece ser contada. É o único liceu em Cabo Verde, na altura, que funciona durante praticamente três anos com fundos próprios, pagando aos professores e ao pessoal administrativo, competindo apenas ao Ministério de Educação a validação dos programas e a realização dos exames. Os alunos faziam a prova escrita aqui mas depois teriam de ir à Praia fazer a prova oral. Por que levou tanto tempo para as autoridades normalizarem mais cedo o liceu, incúria, falta de perspetiva?… Era sobretudo a falta de meios. Não era fácil, na década de 80, e aqui vou fazer justiça ao Pedro Pires, e muita gente vai ficar espantada ao ouvirme dizer isso: hoje eu percebo muito bem quando ele pergunta “para quê um liceu no Fogo?” Na altura houve uma petição dos habitantes do Fogo solicitando ao então primeiro-ministro um liceu. Ele, na apresentação do Orçamento do Estado, diz “do Fogo pedem-me um liceu, como se eu pudesse tirar um liceu do bolso”. Esta frase tornou-se célebre e ele foi várias vezes castigado por isso. Hoje, eu percebo-o, na perspetiva de que eu pertenço ao Ministério da Educação, desde 1979, fui delegado de ensino, pelo que fui também conhecendo as dificuldades que havia, desde o simples pagamento dos professores à manutenção de uma escola. Eu, por exemplo, no Maio, passei um ano sem receber. Trabalhei todo o ano lectivo 1979/80 e só vim a receber depois do ano letivo estar praticamente pronto, a vinte e tal de julho. Isto porque as Finanças não podiam pagar. O que seria nessa altura abrir um liceu no Fogo, para não falar da qualificação dos professores. Hoje, quando vejo a História, vejo-a também na perspetiva do que a sociedade civil pode dar, organizando-se, levando o Estado a fazer. A luta pelo liceu do Fogo ilustra [ 32 ]

Vejo com preocupação a forma como o ensino superior está a evoluir em Cabo Verde, e aqui regresso de novo ao Pedro Pires, valerá a pena fazer uma universidade no Fogo, quando é imperativo que tenha infraestruturas mais adequadas por forma a escoar o fabuloso potencial agrícola da ilha, mesmo em anos de pouca chuva?

bem isso.

DESAFIOS Hoje quais são os desafios que se nos colocam? Eu gostaria de ver o cidadão, o foguense em particular, mais envolvido, mais assumido e menos dependente do “político”. Lutei também, durante muito tempo, contra o Estado providência, contra o Estado paternalista e o Estado que faz tudo. Esta cultura, infelizmente, instalouse em Cabo Verde e também aqui no Fogo, isto é, esperar que seja o político milagreiro, o presidente da câmara, o vereador, o primeiro-ministro, a fazer tudo. Neste aspeto , os próprios políticos têm uma grande parcela de culpa, ao assumirem aquilo que sabem, de início, que não podem de facto fazer. Gostaria que o cidadão pudesse ser mais interventivo, mais definidor também das nossas opções de desenvolvimento. Há muitos desafios, antes de mais o desafio – deixa-me começar pela minha área – da qualidade do ensino. Não basta massificar, isso já foi feito,

precisamos de primar pela qualidade, rever os programas é importante. É preciso primar pelas disciplinas de cultura cabo-verdiana, língua portuguesa… O ensino da língua portuguesa está completamente obsoleto. Não é por acaso que nós dizemos e ouvimos que os alunos hoje cada vez falam mal ou pior o português. Mas pergunto: o que é que nós ensinamos e como? Qual é a sedução que esta língua tem neste momento para um aluno quando, muitas vezes, continuamos a trazer exemplos de fora, somos incapazes de aproveitar a rica literatura que temos, não só aquela que está em suporte escrito mas também a oral. Há muita coisa para discutir na educação. Vejo com preocupação a forma como o ensino superior está a evoluir em Cabo Verde, e aqui regresso de novo ao Pedro Pires, valerá a pena fazer uma universidade no Fogo, quando é imperativo que tenha infraestruturas mais adequadas por forma a escoar o fabuloso potencial agrícola da ilha, mesmo em anos de pouca chuva? Nós abastecemos, em muito, o mercado de Santiago, do Sal e de São Vicente, mas vemos que as infraestruturas que temos – porto, estradas – nem sempre correspondem às nossas necessidades de escoamento quanto mais o potencial da ilha.

LÍNGUAS Ainda a propósito da língua, o português é ensinado como língua primeira quando na verdade é segunda. Como professor isso incomoda-te? Eu conto-te uma história breve para veres até que ponto isso me incomoda. Em 1983, eu era professor de língua portuguesa no ciclo preparatório. Uma das matérias que lecionei foi a formação do feminino e, claro, coloquei isso no teste. Havia um exercício que dizia: “Coloca o feminino de…” Havia capitão, macaco e doente. O aluno, do interior, em relação ao capitão deixou em branco, em relação ao macaco escreveu “sancha”, em relação ao doente ele escreveu esta coisa espantosa: “A ka podê”. É claro a reação foi essa que tiveste, risos, e quando contei na sala de professores


foi a gargalhada, mas, refletindo, o aluno não se livrara da língua materna que é realmente a língua primeira. No Fogo, no interior, dizemos “Maria sta ka podê”. Eu defendo hoje a necessidade de levar o crioulo para as escolas, aliás, já lá está e não há por onde negar isso. Mas também tenho o cuidado de dizer, brincando, que seria uma pena que os meus netos ou descendentes não pudessem, um dia, ler Teixeira de Sousa na sua forma original, português. O português faz parte da nossa cultura, é uma riqueza, é parte da nossa memória, e deve ser ensinado como tal. E sejamos claros, hoje a maior parte dos nossos professores leciona recorrendo ao crioulo, porque muitos deles não se sentem tão à vontade com esta língua oficial que é o português. E a oficialização do crioulo? Esta questão na prática não existe, embora, confesse, a minha dificuldade com relação às variantes, barlavento e sotavento, porque ainda não percebi muito bem como essa questão vai ser resolvida. Eu gostaria que, de facto, a oficialização do crioulo respeitasse e valorizasse a riqueza de cada ilha. Mas não tenho a menor dúvida que, mais tarde ou mais cedo, o ensino terá de ser feito em crioulo. Lembro-me de um artigo de João Vário, na revista África de Manuel Ferreira, a propósito da universidade em Cabo Verde, a dizer que hoje já se ouve cabo-verdianos discutindo Marx ou Adam Smith em crioulo. Tenho por mim que até no ensino secundário isso será feito um dia. Há professores que dão aulas de física em crioulo, porque eles próprios não dominam a língua portuguesa o suficiente para ensinar

física, estudaram em países outros que não Portugal ou Brasil, por isso têm as mesmas dificuldades que os alunos, ou então acham que explicando em crioulo o aluno entende melhor a matéria.

permitir que os recursos gerados sejam postos à disposição de cada região aí, sim, poderemos fazer e conseguir qualquer coisa.

REGIONALIZAÇÃO

Diante disso, pergunto: que Estado para Cabo Verde?… Temos o Estado ideal neste momento? Talvez tenhamos o Estado possível. Como disse antes, precisamos, acima de tudo, de um Estado menos paternalista, menos milagreiro, menos obrigado a fazer tudo. Mas também necessitamos de um Estado mais facilitador e que faça também o cidadão acreditar nele. Eu não sei como um cidadão pode acreditar num Estado quando ainda está por receber as retenções na fonte desde 2008, quando o próprio exercício do governo já chegou ao fim; quando um professor espera oito ou dez anos por uma promoção, que é algo legítimo a que tem direito; quando um reformado ou aposentado espera dois ou três anos para poder entrar na carreira. Ou seja, o Estado tem de fazer com que o cidadão acredite nele, diminuindo a máquina burocrática, fazendo com o que o cidadão se sinta satisfeito com Estado que tem. Mas também que se abra mais, se mostre mais facilitador em relação ao cidadão, e que não se arrogue ao direito de tudo fazer. Infelizmente, há esta cultura em Cabo Verde, tem-se a ideia de que o Estado faz tudo.

Uma outra questão que está na nossa ordem do dia, a regionalização. Aqui do Fogo como te dás conta disso? Em 1989, por razões muito especiais, vi-me alcandorado ao posto de delegado de governo interino, aqui no Fogo, por 45 dias e acabei por lá ficar cerca de oito meses. Isso deu-me uma perspetiva da ilha que eu não tinha e foi uma experiência extraordinariamente enriquecedora. Eu defendo uma maior autonomia administrativa e financeira para as ilhas. Mas também sou um crítico muito forte da maneira como os concelhos foram criados. Com todo o respeito por aqueles que o fizeram, os concelhos foram criados um pouco a granel, seguindo a vontade dos políticos. Hoje temos concelhos que não conseguem realizar sequer um terço das despesas correntes que praticamente têm com o pessoal da câmara. Mas, apesar disso, sou por uma autonomia maior para as ilhas e mesmo as regiões, mas nunca na perspetiva também que essa autonomia será panaceia para todos os nossos males. Vejo por aí uma espécie de euforia, entusiasmo, parece que tudo se vai resolver regionalizando, quando não vai. Feita de uma forma que respeite os anseios das populações, na perspetiva da necessidade de se aproximar o cidadão do Estado e de

ESTADO, “MENOS PATERNALISTA”

Mas as pessoas também põem tudo nas mãos do Estado. E isso acontece porque aqueles que são gestores do Estado agem o tempo todo dando a ideia de que nós estamos permanentemente em campanha.

Vejo por aí uma espécie de euforia, entusiasmo, parece que tudo se vai resolver regionalizando, quando não vai. [ 33 ]


É a forma de se fazer política em Cabo Verde que levou a esta cultura, de achar que o político pode fazer tudo. Dói-me quando vejo um recém formado a dizer que vai falar com o fulano de tal para ver se consegue um emprego. Eu acho que não deveria ser falando, mas entrando em concursos transparentes para se prover lugares e não com beneplácitos deste ou daquele, ou do cartão do militante, não importando aqui o partido, seja ele o partido A, B ou C. Neste aspeto, o Fogo é um caso particular ou igual a outros que acontece em Cabo Verde? O Fogo não difere daquilo que acontece a nível nacional. É uma ilha, sem dúvida, afeta ao PAICV, mas isso tem a ver com a maneira de ser do foguense. O Fogo veste-se de um conservadorismo ou por uma saudável desconfiança do que é novo. O Fogo não muda depressa, toda a história da ilha é feita assim. Se hoje é bastião do PAICV, não se pode esquecer que em 1975 era a única ilha que não tinha aceite o PAIGC. O PAIGC, no dia da independência, realizou à

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frente do atual tribunal – na altura se chamava Tribuna do Povo – , o arrear e o hastear das bandeiras, não deveria haver nesse ato mais de 50 ou 70 pessoas, a maior parte jovens, como eu, gritando. O resto fechou-se em casa, praticamente de luto, porque não queria sobretudo a unidade Guiné-Cabo Verde, mas também porque muita gente não queria essa mudança tão radical, que talvez não compreendesse. Mas depois é a ilha que abraça, de forma como sabemos, até hoje, o PAICV, que no início rejeitou. Isso ilustra bem o que é o Fogo.

DIÁSPORA, “FUNDAMENTAL” E a diáspora, a foguense em primeiro lugar e depois a cabo-verdiana, como a vês no desenvolvimento de Cabo Verde? No caso do Fogo, a diáspora tem sido fundamental para o equilíbrio da ilha. A comunidade maioritária nos EUA é precisamente das pessoas do Fogo. Conjuntamente com a da Brava é a mais antiga, mas também a mais numerosa.

Um amigo meu, brincando, diz que mesmo o cabo-verdiano de Santiago quando regressa dos EUA vem de lá a falar o crioulo do Fogo. É bem possível, porque a gente anda pelas ruas de Brockton e ouve o crioulo do Fogo tanto como se ouve na Achada de Santo António. Inclusive, encontras senhoras nas esquinas de Brockton vendendo doces do Fogo, vendendo tabaco que vai do Fogo. Mas muito do equilíbrio que nós temos aqui, em termos de bem estar, deve-se à nossa comunidade dos EUA. Ela é, sem dúvida, uma diáspora que foi sempre solidária, nunca foi distante da ilha natal, mesmo quando não podia vir fisicamente, enviava os bidões. Esta ilha respira, em certa medida, um american dream. A grande vontade, sonho, do foguense é ir para a América. Mas esta relação tornou-se mais intensa e ao mesmo tempo diferente. Em que sentido? Há uma maior valorização do torrão natal. É interessante verificar gente, uma geração que não nasceu no Fogo,


mas na América, mas que se reclama orgulhosa das suas raízes foguenses. Isto é, para mim, extraordinário. Isto se deve a quê? À independência de Cabo Verde. Hoje há uma melhor informação, há um melhor tratamento. Um ganho da independência ou da democracia? Eu diria as duas coisas. Mas há que reconhecer que essa identificação não começa com a democracia, começa antes, com a independência. Durante muito tempo os emigrantes, nos EUA, referindo-se a Cabo Verde, diziam “kel lugar ondi Deus anda ku pé”, também diziam “sin ba dili un ka ta ben nunca mas” ou então “so si passaru traze’ m”. Vejamos, este sentimento de rejeição quer do espaço físico, quer da própria cultura, “na Merca ka si”, ainda hoje se poderá ouvir, mas a maioria de quem parte hoje fálo porque sabe que tem de partir, precisa trabalhar, mas assim que puder volta. Não é por acaso que hoje encontramos muitas pessoas com 50 ou 50 e poucos anos, da nossa idade, regressando da América, definitivamente, fixando-se no Fogo. E mais: intervindo, o que significa que não vieram apenas gozar a reforma, mas investindo, participando na vida social, económica, etc.

Não se dá à ilha do Fogo a importância que ela tem no contexto nacional, não se lhe dá todas as oportunidades que ela deveria ter, o merecimento que ela deveria merecer ter…

Há um novo emigrante? Sim, disso não tenho a menor dúvida. Há também uma nova classe, nascida na diáspora, muitos formados, mas que depois vêm trabalhar. Temos vários casos de jovens americanos, que não são retornados e que estão aqui porque querem, porque se sentem bem, alguns deles lecionam no liceu, por exemplo.

deportando-o para o seu torrão natal com o qual, por vezes, não se identifica ou então quando ele chega aqui é pior do que a prisão. Ele sabe que não pode voltar. A maior parte dos deportados vive com a ilusão de que ainda estão na América. Jogam basquete, basebol, falam em inglês, constituem-se em pequenos grupos, discutem o que se passa em Brockton, Dorchester, etc. Conheço boa parte deles porque foram meus alunos antes de irem para os EUA, inclusive sou presidente de um clube de basquete formado exclusivamente por deportados. Pensam que estão na América e quando acordam – de vez em quando a realidade impõe-se – isso traduzse, às vezes, em comportamentos expressivos dessa rejeição do espaço ou do brusco despertar e a dolorosa certeza de que não poderão regressar aos EUA, a não ser que a legislação mude.

Em contraponto tens os deportados. Como é? Para mim, esta é uma violência, uma violação dos direitos humanos. Temos casos de indivíduos que saíram daqui com quatro ou cinco anos de idade, o seu comportamento é adveniente todo ele da sociedade americana, ele faz algo lá e é punido por essa sociedade

Do ponto de vista social, esses jovens são um problema para o Fogo? Não são, de uma forma geral. A maior parte tenta enquadrar-se nessa forma muito lenta que nós temos aqui no Fogo de aceitar o que é novo. Há casos bem sucedidos de reintegração. Temos um elemento que é o técnico mais

procurado no campo da informática, temos dois ou três que são professores do liceu, outros que trabalham e fazem a sua vida. E há ainda aqueles que estão perplexos perante aquilo que lhes aconteceu. Há também uma franja, felizmente muito pequena, que continua a ser utilizada pelo tráfico, para atividades ligadas ao crime.

DESAFIOS FUTUR0S Quase 40 anos depois da independência, na tua opinião, quais são os principais desafios que se nos colocam neste momento? Um dos nossos desafios é ter uma sociedade mais inclusiva, mais equitativa. Gostaria de ver este nosso Cabo Verde distribuindo oportunidades, evitando este sentimento de periferia que às vezes existe entre nós. Estamos hoje mais desiguais? Acredito que sim. E aqui a regionalização pode ajudar, eliminando essa ideia de que o centro da decisão continua a ser a Praia, demasiadamente. Temos que permitir que os espaços, as regiões, tenham maior poder de decisão. E se pudermos fazer isso os recursos serão geridos de forma melhor, os projetos de desenvolvimento terão maior abrangência e, consequentemente, o nível de vida do cidadão. O facto de Fogo estar muito próximo da Praia dá a ideia de Fogo não ser periferia, mas Fogo é periferia? É claramente periferia. Não se dá à ilha do Fogo a importância que ela tem no contexto nacional, não se lhe dá todas as oportunidades que ela deveria ter, o merecimento que ela deveria merecer ter… O que é por exemplo? Vou dar um exemplo, o anel rodoviário. Não se pode estar em cinco ou seis anos fazendo uma asfaltagem de apenas 32 quilómetros. Alguma coisa está errada. Isso independentemente de derrapagens, de desvios, etc. Não se pode projetar uma infraestruturação em 82 km, depois passar para 67 e agora está-se nos 32, para se acabar nos 29 km. Não se aceita isso. [ 35 ]


Na questão de alguns investimentos, ficamos a reboque da grande ilha. Não quero entrar no discurso do Onésimo Silveira, de haver uma República de Santiago. Apesar da admiração e do respeito que nutro por ele, não acredito que haja uma República de Santiago e o resto são colónias ou províncias. Mas tem de haver uma maior repartição dos recursos, quer financeiros, quer humanos, e uma política mais eficaz, mais consentânea, mas isso passa também por termos, aqui na ilha, uma maior capacidade de decisão, de deliberação e assunção, por parte daqueles que se reclamam como os políticos da ilha, uma assunção das suas responsabilidades e não tanto a fidelidade ao programa partidário. E aqui critico tanto o PAICV como o MpD. Entendo que os representantes do Fogo cingem-se demasiado à fidelidade partidária e ao programa partidário, que nem sempre é consentâneo com as exigências da ilha.

FUTURO E o futuro, como o vês? Acho que vamos continuar a construir esta saga magnífica. Não tenho a menor dúvida de que continuaremos nos afirmando como povo, como nação, em suma, Cabo Verde continuará vencendo as suas dificuldades. A capacidade de sobrevivência vai continuar a ser o nosso grande instrumento para continuarmos a vencer os nossos desafios e problemas. Não gosto muito de futurologia, mas acredito que teremos um Cabo Verde mais igual, melhor desenvolvido, que as gerações que virão viverão melhor do que nós. Não acredito, como muitas vezes oiço, que estamos a caminhar para um Estado de narcotráfico, um Estado corrupto, etc. Teremos problemas, sim, quer a nível do Fogo, quer de Cabo Verde, mas haveremos de os vencer. Esse otimismo se deve a quê? Do nosso próprio percurso. Somos um povo que parecia que não tinha nada para dar certo, afinal, conseguimos contrariar as previsões que os outros traçaram para nós. E mantivemos este otimismo e [ 36 ]

esta alegria, que também é uma característica do cabo-verdiano. Se ao longo destes 500 anos conseguimos ser assim porque não haveríamos de continuar? Vencemos a fome, as calamidades, em certa medida, vencemos a pobreza e a miséria… Não se morre hoje no Fogo, por exemplo, de diarreia, de meningite; já não vemos pessoas com avitaminoses, nem vestidas com roupas miseráveis, etc. Se vencemos tudo isso, se estamos muito melhor, não vejo razões, perante os novos desafios, para achar que vamos perecer ou que vamos ficar pior. Até porque hoje temos melhores níveis de educação, de ensino, e tudo mais, para vencer os desafios que se nos colocam.

FIGURAS Para ti quem são as figuras que mais marcaram estes 40 anos? Sem dúvida Pedro Pires. Mas há outras pessoas. Uma figura que eu gostaria de ver valorizada e reconhecida pela sua ação social é o padre Camilo Torassa. Outra é o incontornável Rolando Lima Barber, Zuca. Um outro nome é Teixeira de Sousa que, através dos seus livros, resgata grandemente a memória do Fogo. Mas há um outro Teixeira de Sousa de que pouco se fala, o médico. A única maternidade que ainda serve a ilha foi construída por ele, em 1953. Há uma luta não menos importante protagonizada por ele e que leva à


CUIDAR DA MEMÓRIA

erradicação da lepra. É ele que faz o censo dos portadores do mal de Hensen, nos anos cinquenta, e que depois leva à construção da gafaria, primeiro para receber os leprosos do Fogo, mais tarde os da Brava, de Santo Antão, de São Nicolau, até se transformar na Casa Betânia, que infelizmente alguns espíritos apressados entenderam transformar em prisão, destruindo a memoria de uma obra fantástica, não se sabendo onde estão os registos, resto da documentação, deste que foi um dos grandes ganhos e vitórias da saúde em Cabo Verde. Portanto, indubitavelmente, Teixeira de Sousa merece integrar esta galeria. Mas há também figuras populares, de grande valor, que reergueram as

bandeiras, marcaram esta sociedade no pós-independência. Saindo do Fogo, a nível nacional… Há muita gente. Indubitavelmente, Aristides Pereira, Carlos Veiga… Mas mais do que políticos prefiro destacar homens da cultura. Há toda uma literatura nova, com novos valores, a começar pelo Germano Almeida, grupo do qual fazes parte, José Vicente, quer queiras quer não; honestamente falando, és uma das marcas deste novo tempo, além da tua forma de fazer jornalismo que introduziste em Cabo Verde, que hoje é escola, é referência… Portanto, também aqui, as mudanças são significativas e os nomes são vários, por isso não vale a pena estar aqui a enumerá-los.

E esse cuidar da memória aqui no Fogo deve-se a quê?… O foguense é um homem que cuida do seu passado, da sua memória coletiva. O foguense nunca pergunta a um outro foguense “de onde és tu”, pergunta sim “bo é di kenha?”, “és filho de quem?” Ao perguntar pela família, a resposta remete sempre a uma figura relativa a um dado espaço, muitas vezes a um dado comportamento tipificado ou a uma cultura. O indivíduo é sempre situado de acordo com a memória, mas dentro também de uma hierarquia social, da ilha, daí a importância da memória para o foguense, “bo é fidju di kenha”. Eu mesmo passei por isso. Em 1984, quando me convidaram para ser membro do Conselho Deliberativo, fui sufragado através de uma lista única, como era norma na altura pelo então partido único. A lista foi submetida às povoações e quando chegava o meu nome, as pessoas perguntavam sempre: “Fausto do Rosário é quem?” Eu na altura não era tão conhecido como sou hoje, tinha apenas 24 anos. As pessoas respondiam “é professor di ciclu”, mas logo acrescentavam “é neto di nhu Antonio do Rosário”. O meu avô é uma das grandes personalidades do século XX no Fogo. Quanto mais não seja por ter sido o primeiro negro que consegue formarse e formar dois filhos em medicina em Portugal. As populações respondiam “se é neto di nhu Anton Rosário então é bom arguen”. Consequência, acabei por ficar mesmo à frente de figuras da hierarquia do partido, sendo por isso necessário que eu negociasse o segundo lugar na lista, atrás do Aires Borges e com o então representante do partido. Na altura, ficava mal que um dirigente ficasse atrás de alguém que não era dirigente. Isto porque nunca fui do PAICV, ou do PAIGC, fui sim militante da JAAC, até 1978. Ou seja, na altura, as pessoas deixaram-se conduzir pela memória que tinham do meu avô. E tive de aprender a respeitar isso. Nós, aqui no Fogo, somos cobrados o tempo todo pelo nosso passado. [São Filipe, 06-03-14] [ 37 ]


Emanuel Pereira Silva

“É preciso moralizar a vida pública” Emanuel Pereira Silva, 66 anos, natural da Boa Vista, ilha que “muito ganhou” com o turismo. Sem papas na língua, este agrónomo reformado diz que o futuro de Cabo Verde é “risonho”, desde que se consiga moralizar a vida pública. Regionalização? “Agora é que se vai roubar mesmo”, afirma.

Disse-me que está na Praia por razões de saúde. A saúde é um dos problemas que vocês têm na Boa Vista? Sim. Com a construção do centro de saúde, sem dúvida que a saúde ficou muito melhor, mas, mesmo assim, ainda faltam os meios de diagnósticos. Por exemplo, não há um serviço de raios X em condições, não se pode fazer uma transfusão de sangue lá, etc. Fez sempre a sua vida na Boa Vista? Profissionalmente, fui colocado na Boa Vista em 1984. Antes, de 1974 a 1979, estive na Praia, depois em Santa Catarina, fui mandado para a Boa Vista e lá continuo até hoje, embora tenha havido um interregno, de 1994 a 1996, em que estive na Praia. Depois disso estive sempre na Boa Vista. Posso então dizer que assistiu ao boom do turismo na sua ilha. Sim. [ 38 ]

Como vê o turismo na Boa Vista? Como uma coisa boa. O turismo tem sido o motor de desenvolvimento da ilha e também de Cabo Verde. É só ver que, no censo de 2000, Boa Vista tinha cerca de quatro mil pessoas, 10 anos depois, o número já era nove/dez mil. Hoje, deve estar à volta de 11 mil. A explicação principal, para não dizer única, é o turismo. Lembro-me do seu tio Aristides Pereira a dizer-me que nunca na história da Boa Vista, a ilha passou dos três a quatro mil habitantes. Sim, no censo de 1990 o número andava à volta de três mil e poucas pessoas; depois, em 2000, já tinha 4200 pessoas. Acho eu, porque não sou especialista em demografia, que nessa altura o aumento se ficou a dever à instalação do liceu, que aconteceu no tempo do meu irmão, Manuel [Pereira Silva, presidente da CMBV, entre 1995-2000]. Com isso, muitas famílias

deixaram de mandar os filhos estudar fora da ilha – Praia, São Vicente e Sal – o que ajudou a fixar a população. Depois, com o turismo, sobretudo com a construção do aeroporto, em 2008, houve uma migração grande das outras ilhas – Santiago, Santo Antão, São Vicente e São Nicolau. Podemos então dizer que a demografia da Boa Vista mudou completamente? Sim. Um dos efeitos é o movimento do porto. Só o porto dá trabalho a muito gente. E as pessoas que trabalham no porto ganham bem em relação aos demais trabalhadores braçais. Para além disso, o turismo contribuiu para o aumento de receitas do município. O município é que cobra o imposto sobre o património e os hotéis pagam um dinheirão. A “invasão” de gente vinda das outras ilhas e até mesmo do


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continente, de que modo alterou o ‘modus vivendi’ na Boa Vista? Sem dúvida que alterou. Desde logo porque entrou gente de outras ilhas, de outras paragens de África, da Europa um pouco – uns italianos. Esse fluxo introduziu um pouco mais de delinquência que antes não havia. A prostituição também, não? Com certeza. Ela é feita sobretudo por mulheres do continente, na zona da Barraca. Há algum negócio de droga, roubos. Mas acho que isso tudo faz parte dos males inerentes ao turismo e ao desenvolvimento em si. É claro que é preciso pôr cobro a isso. É como a história da corrupção em Cabo Verde. Ela está num nível que não é preocupante mas se não se puser a mão em cima, duramente, ela levanta voo. Há já estudos a nível do Estado, nomeadamente alfândegas, autarquias, polícia que apontam nesse sentido… E acho preocupante sobretudo as autarquias, por isso o Governo deve intervir com um maior controlo das contas. Fazem-se inspeções mas depois não se fala mais nisso. Mas ainda sobre os malefícios do turismo, nomeadamente os assaltos e roubos aos turistas, aqui a polícia fez de facto um bom trabalho. A Boa Vista hoje tem cinquenta e tal efetivos, há um programa de praias seguras, com agentes em cima das motos, que aproveitam e fazem o seu próprio turismo, dando shows. (risos) Eu, quando era novo, e era um pouco mais da esquerda, agora com a idade, já tenho 66 anos, vou vendo as coisas melhor e aceito-as como são. Na Boa Vista não há nenhuma situação grave. As ZDTIs [Zonas de Desenvolvimento de Turismo Integrado] foram uma boa coisa que criaram. Na minha opinião, essa história de expropriar sem negociar é que foi mau, mas a lei previa isso e ela é de noventa e tal. Expropriou-se e não se negociou, e o que está em causa é uma bagatela para o Estado. Diga-me, a Boa Vista tem o problema social da Barraca, que você mencionou há pouco. Sim, há esses males, é verdade. Mas pondo as coisas na balança, fez-se muita coisa boa na ilha por intermédio [ 40 ]

do turismo. E nisso trabalham milhares de pessoas, nos bares, nos restaurantes, nos minimercados, nas lojas, rabidantes de Santiago e do Fogo, e também o artesanato, setor dominado sobretudo pelos nossos irmãos do continente. Há muita gente da Boa Vista, de Santo Antão, de Santiago, que já ergue casas com qualidade, mesmo como forma de rendimento, para morar e para viver. Estou a ver que você não comunga da ideia de certos conterrâneos seus, para quem o turismo é uma desgraça para a Boa Vista. Muito longe disso! O turismo dá trabalho a milhares de pessoas. Em 2012, Boa Vista recebeu cerca de 203 mil turistas, quase metade daquilo que Cabo Verde recebeu, 400 e tal mil ou 500 mil pessoas. E empregou nos hotéis mais de 1800 pessoas. A Boa Vista da sua infância e a de hoje como é que a caracteriza? Uma diferença abismal. Na minha infância, na Boa Vista, não se fazia regadio, não havia frescos, não se comia fruta. A alimentação era à base de peixe e carne. Não havia nada no aspeto cultural. Não havia cinema, não havia luz elétrica, a água era dessalinizada… Era assim. Mas eu sempre gostei da Boa Vista, a minha mãe me transmitiu esse amor. Por empenho dela, íamos passar férias todos os anos, mesmo estando eu em Lisboa a estudar. Quando me instalei na Boa Vista, em 1984, havia um barco da EMPA que ia à ilha, de três em três meses, levar milho, óleo, leite, arroz, açúcar, feijões… De vez em quando, aparecia também o barco da ENACOL para levar bidões de combustível. Foi em 1986 que se instalou a primeira dessalinizadora. Era uma monotonia tremenda em todos os aspetos. Vive no interior ou em Sal Rei? Eu moro perto da praia do Estoril e muito pouca gente anda por lá. O que me preocupa mais na Boa Vista é a segurança. Outra coisa que me preocupa é o barulho, por causa disso, já chamei a polícia várias vezes por causa de uma discoteca que põe música alta e isso chateia-me.

Mas consta que a população não retira benefícios do turismo, por causa do all inclusive… Qual história! Nós estamos num mundo capitalista, o investidor tem as suas regras. Ele é que dá emprego. Eu sou da esquerda, mas é assim. Ele vem investir, o Estado estabelece as regras e os limites, mas fora isso o investidor faz o que tem a fazer e ponto final. O Estado podia também, em função da dimensão do investimento, obrigar o investidor a aplicar parte dos recursos em obras sociais. Por acaso, o RIU sustenta um jardim na Barraca, por exemplo. Porque ele entendeu fazê-lo? Sim, não foi nenhuma imposição do Governo ou da Câmara Municipal.


em qualidade e em preço. Nós vivemos num sistema de comércio livre. Isso não tem a ver um bocado com a cultura do cabo-verdiano, que acha que o Estado tem de resolver todos os seus problemas pessoais? Por exemplo, não consegue competir, chama o Estado para eliminar a concorrência?… Isso tem a ver também com uma certa aversão nossa ao estrangeiro. Somos um bocado xenófobos. Eu não conheço o fulano que está lá no RIU, mas tenho de reconhecer que dá emprego a muita gente, pagando razoavelmente bem. Há gente que trabalha na arrumação dos quartos, gente de Santiago, sobretudo, que ganha 25 contos. E pagam sempre. Além disso, essa gente tem alimentação lá dentro, boa, leva para casa, tem transporte, que o hotel paga. Vinte e cinco contos é um mau salário para o tipo de formação que essa gente tem? É claro que não. Agora aparecem os sindicatos com essa história do salário mínimo. Eu não concordo nada com isso.

Quer então dizer que o Estado não adotou medidas de acompanhamento? Não. As medidas de acompanhamento, quanto a mim, deviam ser formação das pessoas que trabalham nos hotéis, apoios aos pequenos negócios, valorização da produção local, peixe, carne, etc., são medidas de saneamento, que podem ser feitas e que não é caro fazer. Um hotel que se preze não vai comprar peixe ou carne atirada para o chão, coberta de moscas, etc., etc. Não arrisca a vida dos seus clientes. O RIU tem dois hotéis, um em Chaves e outro no sul da ilha, têm sempre cerca de 2 mil a 3 turistas para alimentar e se houver produto local, com qualidade e quantidade, com preços competitivos, compra aqui, não os importa. É tudo uma questão de contas.

Ou seja, falta ao operador local ir ao encontro das exigências dos operadores turísticos? Sim, falta. Mas isso são as autoridades é que devem tomar medidas. Foi assim nas Canárias. Lá as autoridades investiram bastante na valorização dos produtos locais, nos atrativos locais, não só deu bastantes receitas aos municípios, como também bastante emprego, melhorando com isso o rendimento das pessoas. A gente contesta muito o all inclusive, você não pode proibir nenhum hotel de dar café, almoço e jantar. Há também os transportes pelas ilhas, e se os hotéis tiram a sua licença, pagando o que têm de pagar à câmara, ninguém pode vir agora proibir os hotéis de fazer isso. O que você tem de fazer é criar alternativas locais competitivas,

Mas por quê? É a nossa velha mania de pensar que somos os mais democratas do mundo, os mais legalistas do mundo, o Estado de direito mais avançado do mundo. Como dizia o falecido Abílio Duarte não temos canela ainda para aguentar tudo isso. Onze contos quem é que paga? Ninguém. Nem empregadas domésticas ganham 11 contos. Os chineses pagam oito contos, mas nisso eu sou realista. Quem vai trabalhar no chinês é para não fazer nada. Eu não iria trabalhar para ninguém para me pagar 10 contos. Eu faria pastéis, varria a rua… Os varredores de rua da Câmara da Boa Vista ganham muito mais que isso. É uma questão de mentalidade. Eu não sei se é por preguiça, ou falta de motivação, mas quem vai para um trabalho ganhar 10 contos é quem não quer fazer nada.

DESEMPREGO: “SEMPRE FOI ASSIM” Mas há ilhas onde o desemprego é gritante, casos de São Vicente, Santo Antão… Com certeza, mas sempre foi assim. Nós fomos para São Vicente em 1955 [ 41 ]


e havia muita miséria. O movimento do porto tinha acabado, havia gente a pedir na rua, com latas de comida, havia um desemprego tremendo. Eu não sei se a situação hoje é pior. O que há hoje é mais exigências. As pessoas hoje têm mais espaço para exprimir a sua insatisfação, é a democracia. A vida em 1955 e hoje, em São Vicente, ou em qualquer outro lugar de Cabo Verde, não era melhor. Tenham paciência! Mas ainda voltando ao turismo na Boa Vista. O que falta realmente são as medidas de acompanhamento por parte do Governo e da Câmara Municipal. De vez em quando, há algumas formações de empregados de mesa, coisas avulsas. Eu acho que devia haver formação em pequenos negócios, em contabilidade, valorização dos produtos locais, embalagens, mesmo durante a produção, higiene, garantindo a qualidade, de forma permanente, todos os anos. Valorizando os produtos locais, aumentando a procura, os preços poderiam também aumentar. Com isso, o rendimento dos produtores locais aumentaria também. Os municípios não foram criados para dependerem do Governo. Devem ter criatividade, os vereadores, os presidentes têm que puxar pela cabeça. Falta essa capacidade? Claramente. O problema é que quem é eleito pega em toda a gente que o ajudou durante a campanha e põe a trabalhar na câmara, os boys, acaba por ter uma data de gente que não entende nada de gestão municipal. Não é só na Boa Vista, isso acontece em todas as câmaras, mas na Boa Vista é pior. Um vereador devia ser um indivíduo com capacidade suficiente para propor políticas, planos, não é para estar a fazer trabalho de capataz na rua. Os vereadores de saneamento em Cabo Verde, mesmo na cidade da Praia, fazem trabalho de capataz. E gasta-se um dinheirão com isso. Mas isso tem a ver com o nosso sistema autárquico, não? Claro que sim. No seu caso defenderia o quê? Um quadro muito mais rigoroso de profissionalização dos vereadores. [ 42 ]

Teria de ser uma pessoa especializada na área. A mesma coisa com os deputados na Assembleia Nacional. Mas como temos que ser mais democratas de todo o mundo, todos os deputados são profissionalizados. A própria lei devia definir o perfil dos deputados. São os partidos que põem lá os fulanos como deputados, mas não são os partidos que os pagam. Eles são pagos pelos nossos impostos. Então você apanha qualquer cheirador de cancan, como diz o Érico Veríssimo, e põe lá como deputado?! A lei não define perfil nenhum, o fulano apenas tem de saber ler e escrever, às vezes, nem isso ou então lê mal e porcamente. Quando muito, sabe desenhar o nome. Se quem o paga somos nós, cidadãos contribuintes, devia haver um perfil mínimo para você ser profissionalizado, contratado pelo Estado.

Até porque vai receber relativamente bem… Bem para não fazer nada. Além do salário, é subsídio disto, é subsídio daquilo, senhas de presença, telefone, ajudas de custo, uma data de trapalhada.

ESTADO, “A DEMOCRACIA EM CRISE” Então diga-me: é preciso reinventar o Estado ou a política em Cabo Verde? Eu acho que sim. A democracia em toda a parte está em crise. Na Suécia, mais de 50% das pessoas não votam. Nos EUA, é a mesma coisa… Na Suíça é diferente, lá tudo vai a referendo. Você não sabe, na Suíça, quem é o primeiroministro, quem é o presidente da República. Aquilo são cantões. Mesmo nos cantões, há qualquer coisa de


importante – uma obra, uma medida que mexa com a vida das pessoas – é sujeito a uma consulta popular. Por causa disso, há uma grande participação de facto das pessoas na vida do país e dos municípios. Isso diariamente. Com os partidos pelo meio, isso conduz sempre ao bipartidarismo. E por mais que a UCID reclame, isso não acaba. Na América é assim também. Na Inglaterra a mesma coisa. No caso de Cabo Verde, a ter que reconfigurar o Estado o que é que faria? Eu não sou especialista nestas coisas. Mas é cidadão, e é a opinião de um cidadão que me interessa. Eu iria para um modelo, mais ou menos, suíço. Isso a nível dos municípios para haver maior

participação das pessoas. Mas com limites. É preciso ver o nível cultural da nossa gente. Temos uma população a quem não podemos dar a corda toda. Em Cabo Verde, dá-se muita corda, isso não é democracia coisíssima nenhuma, é populismo. Ainda a nível dos municípios, devia haver também mais rigor, através da lei, o recrutamento dos quadros. Mesmo os eleitos. Número de deputados. Cabo Verde tem 72 deputados… É de mais. Não devíamos passar dos 60 ou mesmo 40. Cortar, menos regalias e acabar com a profissionalização dos deputados. Cabo Verde tem 40 anos de independência, mas queremos ser iguais a quem tem mais de mil anos de existência. Não temos canelas. Não temos o background da História, a evolução das sociedades, dos sistemas políticos, não temos. (risos)

REGIONALIZAÇÃO

Quanto mais dinheiro você puser na mão do mal formado e ignorante, ele rouba. Por isso, regionalizando, com muita folga para a contratação e o recrutamento de pessoas, na aquisição dos bens, etc., agora é que se vai roubar mesmo. Ficam com mais poder.

E a regionalização, o que pensa disso? Eu ponho as minhas reservas em relação a isso. Entendo que se deve dar mais voz, mas com certo controlo, mais rigor. Com a regionalização vai-se dar mais poder aos órgãos locais, mas se se deixar como está agora, agora é que vai ser roubar. Que ninguém tenha dúvidas, rouba-se mais nos municípios do que no Governo central. Até porque, em Cabo Verde, o Estado não exerce as suas funções fiscalizadoras, faz-se inspeções mas ninguém ouve falar nelas. Entendo que, de facto, o desenvolvimento deve ser local, logo, é a pessoa que está no terreno que sabe o que é que as populações realmente precisam ou querem, mas isso depende da evolução da história de cada país, ou das sociedades. Você não pode dar muita corda, muitos poderes, a gestores com baixo nível cultural e com baixo nível económico e social. Senão descamba-se para a corrupção e para a roubalheira. Porque, quanto mais dinheiro você puser na mão do mal formado e ignorante, ele rouba. Por isso, regionalizando, com muita folga para a contratação e o recrutamento de pessoas, na aquisição dos bens, etc., agora é que se vai roubar mesmo. Ficam com mais poder.

Estou a ver que você é a favor do voto censitário, só vota quem sabe ler e escrever… Isso também não, porque muita gente não sabe ler nem escrever. O problema é dar poder a quem não sabe ler nem escrever. Mas repare, isso é um aprendizado para todos, inclusive para a população que escolhe mal os seus dirigentes, um dia aprende a votar bem. Tenha paciência, mas eu já não tenho idade para ‘aprendizar’ e sustentar os que estão na política. Continuando com a reforma do Estado, o que acha do nosso sistema do Governo em que o presidente da República é eleito pelo voto popular, em vez de ser o Parlamento, como acontece em vários países? Eu não sou para complicar as coisas. Deixe como está. Entendo que quem foi eleito para dirigir o país é o Governo, não é o PR. O PR já tem um poder grande, o de nomear um PM – por lei ele é que nomeia, embora não seja obrigado a aceitar a indicação do partido vencedor das eleições. E se assim é, aqui, entendo que a lei devia ser mais clara. A minha preocupação com o Estado é a sua moralização. Precisamos acabar com a roubalheira, o amiguismo, o nepotismo e não sei que mais, com salários acima das nossas posses. Estamos a caminhar para a mesma situação de Portugal. Um dia, vamos acordar para a realidade. Em Cabo Verde o Governo entrou na onda de criar agências, institutos, e não sei o que mais. Em princípio, também não estou de acordo com isso, embora tenha de admitir que se dá mais autonomia a cada sector. Mas veja as remunerações. É arbitrário, o ministro é que estabelece. São salários de 200 e tal contos, 300 e tal contos, para fazer o quê? Veja a SDTIBM [Sociedade de Desenvolvimento de Turismo Integrado da Boa Vista e Maio], o presidente ganha 500 ou 600 e tal contos, ainda tem 80 contos de renda de casa, viatura e uma data de coisas, ainda por cima, aquilo não é empresa, não é nada! É uma instituição que se criou para gerir as ZDTIs, para vender terrenos. Não produz nada de concreto. [ 43 ]


Ainda no caso da SDTIBM, há lá na Boa Vista uma data de quadros que eu não sei o que fazem – juristas, economistas, técnicos disso, técnicos daquilo, uma trapalhada ­– cada um a receber 200 e tal contos, 300 e tal contos… A isso junta-se subsídio de renda, carro… Por que não dar casa ao polícia, ao professor, que é colocado na Boa Vista? Esses não têm subsídio e eles é que deviam ter, tendo em conta que ganham muito menos. É imoral. Eu não sou contra ninguém ganhar bem, mas devemos ver a questão da equidade e das competências. Fala-se agora em correr com os reformados do Estado, José Maria Neves falou em concurso para recrutamento de certos gestores, sinceramente, mas eu não acredito em nada disso.

DIÁSPORA , “QUAL DIÁSPORA?” Mudando de assunto. Como vê o contributo da diáspora no desenvolvimento de Cabo Verde? Para mim, há duas diásporas. Quais? Na verdade, há apenas uma diáspora, aquela que de facto contribui para Cabo Verde. É o emigrante trabalhador, que envia remessas para a família, investe, etc., etc. E depois há a outra diáspora, que para mim não é diáspora coisíssima nenhuma, formada por quadros. Os quadros cabo-verdianos que estão no estrangeiro, de uma maneira geral, não contribuem com nada para o desenvolvimento de Cabo Verde. O caboverdiano médico não larga o trabalho que tem lá fora para vir trabalhar em Cabo Verde. Ele não dá sequer um mês de férias para vir ajudar os hospitais que temos aqui, simplesmente não vem. Normalmente, não têm família cá, não enviam remessas, não pagam impostos, não contribuem com nada. Parece-me que já acabaram com aquela história do Congresso de Quadros da Diáspora. Uma vez convidaram-me, eu ainda é que tinha de pagar para lá estar. Para mim, essa gente não é emigrante. Eu não sou contra ninguém viver lá fora, que faça a sua carreira profissional. Eu também sou quadro, agrónomo, se tivesse ficado em Portugal ganharia muito mais dinheiro, teria evoluído muito mais, tecnicamente. [ 44 ]

Na verdade, há apenas uma diáspora, aquela que de facto contribui para Cabo Verde. É o emigrante trabalhador, que envia remessas para a família, investe, etc., etc. E depois há a outra diáspora, que para mim não é diáspora coisíssima nenhuma, formada por quadros.

Agora, você está lá fora, quer aparecer em congressos, que quem está cá é que paga, para vir dar lições? Tenham paciência, não contem comigo. Mas são todos assim? Depois da independência, qual foi o médico que veio se instalar em Cabo Verde? Contam-se nos dedos de uma mão: o Dr. Dario, um homem que deu aulas na faculdade Medicina de Lisboa, assistente de um dos maiores cardiologistas de Portugal, o Dr. Pádua; o Irineu Gomes, que veio do Brasil; veio também o Francisco Fragoso, mas chateou-se e foi-se embora; há o Dr. Arsénio de Pina. Mais quem?… No entanto, são centenas de médicos cabo-verdianos lá fora. Mas não é só médicos, também temos engenheiros e outros quadros, não vêm. Eles podiam aproveitar o seu mês de férias, vir e dar algum contributo para o desenvolvimento desta terra, simplesmente não vêm, não querem saber. Mas isso não decorre também da nossa incapacidade, do Estado em particular, em mobilizar essa gente

para dar um dia que seja para o desenvolvimento de Cabo Verde? Um quadro superior não precisa ser mobilizado. Isso está na consciência de cada um. Mas nesse mundo globalizado Cabo Verde não poderia ganhar mais com esse segmento da sua população espalhado pelo mundo? Teoricamente, sim, Cabo Verde tem milhares de quadros espalhados pelo mundo, mas quem vai mobilizar essa gente?… Eu não acredito na mobilização de adultos. Se eles, individualmente falando, não têm na sua cabeça que têm obrigação com esta terra, não haverá mobilização nenhuma que os leve a contribuir para o nosso desenvolvimento. O seu discurso surge em contracorrente ao discurso habitual sobre a diáspora, mas não deixa de ser legítimo. Política é para as conveniências. Dizem que lá fora existem mais de 500 mil cabo-verdianos. Não é verdade. O filho do emigrante, que nasceu lá, que fez a sua vida lá, pela cultura e pelo comportamento, não é cabo-verdiano. Também acho desonesto, nomeadamente da parte dos nossos jornais, um fulano qualquer vence um prémio – por exemplo em boxe – , e logo os jornais escrevem “Cabo Verde tem campeão de boxe”, só porque esse fulano é filho, neto ou bisneto de um cabo-verdiano. (risos) O gajo nunca pôs os pés cá, agora o prémio dele é nosso?! É como o Nuno Delgado. Eu nem sei se ele nasceu cá ou não, mas o pai dele conheci muito bem. O certo é que o Nuno é português, o Estado português é que gastou dinheiro para ele se tornar campeão de judo… E foi com a bandeira portuguesa que ele subiu ao pódio. Sim, agora alguém vem dizer que ele é cabo-verdiano? E recebem-no aqui com honras, na Câmara Municipal, até ministros, e uma data de disparatada. Se ele quer ser cabo-verdiano que venha, trabalhe como cabo-verdiano, e se Cabo Verde quer ser campeão de judo que gaste dinheiro para isso. Sejamos sérios.


a minha mãe é que o pôs cá. Mais ninguém veio, todos os funcionários da administração eram das outras ilhas”. Repare, eu não sou contra, cada um faz as suas opções. É como a nossa diáspora intelectual. Não ajudam nada, passam o tempo a mandar bocas nas suas associações, aparecem aqui com os seus congressos e não mais. Alguém deve ter mandado bocas e acabaram com o Congresso… Com a crise, falta dinheiro… (risos) Ainda bem!

CABO VERDE, 40 ANOS

SER CABO-VERDIANO Então diga-me, para si, o que é que define um cabo-verdiano? O cabo-verdiano é o indivíduo que se assume como cabo-verdiano, culturalmente. No caso desses indivíduos, eles, culturalmente falando, não são cabo-verdianos. Outra coisa, não dão nada a Cabo Verde. Há estrangeiros que se tornaram cabo-verdianos e contribuem com o seu trabalho para o desenvolvimento de Cabo Verde, estão cá, são mais cabo-verdianos que muitos que estão lá fora. Eu não tenho nada contra as opções de cada um, mas também não admito que, oportunisticamente, quando precisa de Cabo Verde, apareça aqui a

mandar bocas, a dar lições, só porque traz um status conquistado lá fora. Isso acontece também na Boa Vista. Como? Há tempos tive uma discussão com um fulano, da Boa Vista mas que vive na Praia há uma data de anos, meu parente por sinal, apareceu lá com a conversa de que é cabrer, eu disse-lhe “Qual cabrer, qual quê!”… “Quem é o quadro da Boa Vista que está aqui? Todos os quadros da Boa Vista que se formaram nunca mais puseram os pés aqui”. A Boa Vista era de facto um meio atrasado, não tinha água, não tinha eletricidade, culturalmente não tinha nada. “Quem veio para aqui?… O Manecas, meu irmão, é que veio como aspirante, tinha ele 17 anos,

Estamos a caminhar para os 40 anos da independência. Para si, quais são os principais ganhos de Cabo Verde? Há muitos. A começar a nível económico. Hoje há muito mais famílias com rendimentos, gente a viver melhor. Vê-se pelo consumo. Na Boa Vista, por exemplo, tudo mudou. Evoluímos bastante em todos os aspetos. Na saúde, na educação… Os ganhos são gritantes. E eu não peço mais. O que me preocupa realmente, em relação a Cabo Verde, é a corrupção, a roubalheira e o mau funcionamento da justiça. Os tribunais deixam muito a desejar. Sem justiça não temos Estado de direito. E não é nada falta de tempo para julgar os casos. Eu não tenho provas, por isso não posso provar, mas já ouvi dizer que há manipulação da justiça, dos seus agentes, isso é que me angustia e me preocupa. A educação avançou bastante, com a massificação, mas está-se a falhar na qualidade. E isso desde a tenra idade. O ensino pré-primário, os jardins, não é oficializado e devia ser. E devia-se também formar professores competentes. Porque, como se diz, de pequeno é que se torce o pepino. Essa história do EBI (ensino básico integrado), de seis anos, que eu não sei onde foram copiar, não trouxe nenhum benefício. Os alunos terminam a sexta classe e escrevem mal. Há gente que termina a universidade e escreve mal. Isso tem a ver com o nível de formação dos professores. Tem a ver também com o crioulo. Hoje não se sabe se é português, se é crioulo, está tudo [ 45 ]


misturado. A verdade é que os alunos saem da escola sem saber escrever nem em português nem em crioulo. Cada um fala e escreve como quiser. O português os alunos não sabem nem falar nem escrever. Veja o caso dos nossos emigrantes em Portugal. Nós temos lá gente – trabalhadores braçais – a viver há uma data de anos que não consegue falar em português como deve ser. Mas o fulano vai para França ou Inglaterra e consegue aprender o básico, pelo menos. Em Portugal, ele mistura português com crioulo. O José Luís Livramento, quando era ministro da Educação, chegou a dizer que um dos problemas do nosso ensino é que temos uma língua oficial, a língua de ensino, que nem os professores dominam como deve ser, misturam com o crioulo. Você vai a qualquer país do mundo a primeira coisa que tem de saber é a língua, se não sabe tem de aprender, para poder compreender a matéria. Se o ensino é em português, ele tem de ser bem ensinado, se for em crioulo, tem de ser bem falado, e para isso são precisas regras. Não me interessa se é de Sotavento ou de Barlavento, se bem que para mim isso é uma complicação, por causa da fonética – a escrita vem da fonética. O meu problema, na verdade, não é português, crioulo, inglês ou chinês. A língua de ensino tem de ser dominada pelo professor e pelo aluno. Nós andamos aqui às voltas com a oficialização do crioulo, mas veja o que se passa no Curaçao, lá o crioulo é para as questões culturais, publicam-se livros, jornais, em papiamento, mas a língua oficial é o holandês. Defende então essa solução para Cabo Verde? Sim. Eu sou pragmático.

INTEGRAÇÃO REGIONAL E a nossa integração sub-regional, como vê? Isso tem que ser. Mas para isso temos também de resolver essa questão, se somos africanos ou não. Eu acho que somos africanos. Culturalmente, historicamente. Mas também devemos aproveitar o que há de bom do Ocidente. Cabral disse que a melhor herança [ 46 ]

que os portugueses nos deixaram é a língua. A questão da língua anda a fazer muita confusão em Cabo Verde. Veja os noticiários em crioulo na rádio. Aquilo é texto em português que o locutor pensa que está a ler em crioulo, por isso não é nem português nem crioulo. Não temos uma política de línguas. Veja, está decidido que o turismo é o motor do nosso desenvolvimento mas você não consegue ninguém que fale decentemente uma língua estrangeira. Em qualquer país nórdico, os alunos saem do liceu sabendo falar e escrever inglês, ou mesmo o francês. Aqui não. O problema está no método do ensino, que precisa ser mudado. A matemática é a mesma coisa. Tem-se de virar o ensino para as necessidades de desenvolvimento. É claro que não se vai obrigar um jovem a ser carpinteiro se ele não quer, nem engenheiro disso ou aquilo se ele não quer. Mas tem de haver uma certa orientação, através de incentivos, para as pessoas tendo em conta as nossas necessidades. A mesma coisa com o ensino técnico, é preciso investir mais seriamente nisso. Falta-nos planeamento, mais orientação, no sentido de torná-lo prático. O desemprego preocupa-o? Na Boa Vista praticamente não temos desemprego. Temos sim gente que não faz nada porque tem família que a sustenta. Ainda hoje é assim? Claro, continua a haver gente emigrada. É claro que o desemprego preocupa-me, sim, a nível de Cabo Verde, mas não é nada alarmante. Há países na Europa que sempre tiveram altas taxas de desemprego, é o caso da Espanha. Desde os anos setenta, com a morte de Franco, que a taxa anda acima dos 20%, agora, com a crise, anda nos 26 ou mesmo 30%, caso das Canárias, onde mais de 40% dos jovens estão desempregados. Em Cabo Verde temos taxas de 18%, 20%. Sempre vivemos em crise em Cabo Verde. Mas há ilhas, como São Vicente, onde atinge os 20 ou 30%, nomeadamente entre os jovens. Nós sempre tivemos elevadas taxas de desemprego e com muita pobreza.

Agora, com o progresso, acho que há menos pobreza. Sem dúvida que com a crise na imobiliária o desemprego aumentou. Mas, mesmo assim, em Cabo Verde há males que não são muito maus, passe o termo. O desemprego é um deles? Sim. Isto é uma terra pobre, as empresas são poucas, produz-se muito pouco, transfere-se tudo para as costas do Estado, como se o Estado tivesse a responsabilidade de criar empregos para toda a gente. Nós estamos num mundo capitalista, quem dá emprego é o dono do capital. Os governos têm apenas que equilibrar as coisas. Há os da esquerda, que têm mais sensibilidade


FUTURO? “É RISONHO” E o futuro de Cabo Verde, como o vê? Eu sou otimista. Independentemente dos governos, vamos viver muito melhor no futuro. O futuro é risonho. Acredito num país com mais riqueza, menos pobreza, com pessoas a viverem muito melhor. Não é muito difícil acabar com a pobreza em Cabo Verde. Mais tarde ou mais cedo, acaba-se com a pobreza aqui.

com as questões sociais, olham mais para os menos desfavorecidos; há os da direita que têm menos sensibilidade para isso, por uma questão ideológica. Quem é da direita acha que os pobres têm que existir, os ricos têm de existir, de preferência, têm de viver muito bem, porque eles é que dão empregos, eles é que são donos do capital. É uma questão ideológica. O Partido Comunista Chinês é que teve uma habilidade grande ao criar zonas de desenvolvimento especiais, onde há o comércio livre, capitalista – “um país, dois sistemas” – para arranjar dinheiro. Os tipos ficaram ricos com isso. Mas também os chineses que aí vivem estão muito bem, já há milionários.

Por quê? Com a evolução da economia. O caboverdiano é humano, é modesto. Ter por ter é algo que não faz parte da nossa cultura, da nossa maneira de ser. Você veja nesses países africanos – Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, por exemplo – os governos não podem nem pagar funcionários, no entanto, os ministros brilham de ostentação, roupas de marcas, carrões, não há modéstia. O cabo-verdiano é mais modesto, na maneira de estar, de vestir, de ser. O cabo-verdiano, não importa o partido, é mais humano, é mais amigo do povo, porque quase todo o mundo em Cabo Verde veio ou saiu muito recentemente do povo. Até há uns anos atrás éramos todos pobres ou remediados, havia apenas um ou outro comerciante, funcionário público, os seus filhos andavam no meio de crianças pobres, a brincar, a estudar nas mesmas escolas, etc. Agora é que começam a aparecer uns gajos com a mania de rico, mas o povo não lhes liga nenhuma.

FIGURAS Nestes quase 40 anos quem é o caboverdiano que mais merece a sua admiração, respeito?… Sem dúvida os que conseguiram a independência. Eu não acredito nessa história que o povo, por si só, faz as coisas. Se não há um grupo restrito que dirige a luta, o processo histórico, não há revolução nem evolução. No caso de Cabo Verde, citando nomes, começo por Pedro Pires. É um indivíduo que nunca pediu nada. É persistente e teimoso, modesto, acho eu. Embora muita gente se queixe dele, acho que o que ele fez foi por Cabo Verde. Além do

Pires, eu apontaria o Osvaldo [Lopes da Silva], o Julinho [de Carvalho]… O Aristides Pereira é outro. Embora fosse meu tio, não éramos muito chegados. Por exemplo, nunca fui ao palácio visitá-lo. Mas por quê? Ele era um indivíduo muito fechado, só ouvia, não se relacionava, não se dava a conhecer, por causa disso, muito pouca gente o conhecia. Eu admiro-o, mesmo assim, por aquilo que fez por Cabo Verde. O Aristides não era nada político, não estava nada para essas coisas de esquerda, Marx, nada disso. Foi o Amílcar que o pôs a ler aquelas coisas e mesmo assim sem grandes resultados. Era, sem dúvida, um humanista, contra as injustiças sociais, disposto a sacrifícios, modesto. Ele, como os outros, deu muito a Cabo Verde sem exigir nada. Essa gente fez tremendos sacrifícios por Cabo Verde e isso é coisa que eu respeito. O meu irmão [João Pereira Silva], por exemplo, ganhava 40 e tal contos. Tinha casa, tinha carro, mas nada disso era dele, antes do fim do mês, não tinha nenhum tostão no bolso. O Pedro Pires, quando deixou o Governo, não tinha nada. O irmão, João Pires, é que lhe deu um apartamento, na Fazenda, para morar. Eu reconheço isso. Mas com isso não quero dizer que era tudo bom no partido único. Nada disso. Havia aqueles tipos de segurança que por tudo e por nada chateavam as pessoas. Até a mim me chatearam em 1979, porque também me consideravam trotskista, eu que desde 1978 tinha deixado de participar nas reuniões do partido, por entender que aquela participação não servia para nada, as minhas opiniões não serviam para nada. Chatearam o [Manuel] Faustino, o Dududa [Eugénio Inocêncio], o José Tomás e o Jorge Carlos Fonseca. Depois veio a abertura e a transição foi pacífica. O próprio regime viu que aquele modelo já não tinha nada para dar, mudou a Constituição, acabou-se com o artigo 4 e pronto. Hoje tudo isso é História e a História não se altera. [Cidade da Praia, 02-03-14] [ 47 ]


José Joaquim Cabral

“Andamos aqui no fio da navalha” Formado em administração de empresas, José Joaquim Cabral, 52 anos, nasceu em Fajã, São Nicolau, ilha onde vive. Amante das coisas da sua terra, tem investigado e publicado trabalhos vários ligados à história e à tradição popular da sua ilha. Conforme diz nesta entrevista, “andamos aqui um bocado no fio da navalha”. E mais, “não cabe apenas ao cidadão ter juízo, mas ao Estado também”. [ 48 ]


Em primeiro lugar, a tua apetência pelas “coisas” de São Nicolau surgiu como? Foi depois do meu regresso do Brasil, país onde me formei, e da minha vivência lá, que eu me apercebi do valor que se deve dar à nossa história, à nossa identidade. Diante disso, após o meu regresso, pus-me a trabalhar nesse sentido. O teu primeiro interesse girou à volta do quê? Resgate das nossas tradições. Os mais novos, hoje, desconhecem o essencial das origens desta ilha. A minha principal motivação é evitar que o nosso legado histórico, patrimonial e cultural se perca por falta de fixação no papel.

SÃO NICOLAU, O “DECLÍNIO” Na tua opinião, qual é o lugar que São Nicolau ocupa na história de Cabo Verde? São Nicolau esteve para ser a capital de Cabo Verde. António Pusich [século XIX], quando foi intendente da marinha, aqui, fez corredor nesse sentido. O frei Cristóvão, bispo de Cabo Verde [18601861] e que viveu todo o tempo em São Nicolau, terá feito um forcing muito grande nesse sentido também. Houve , igualmente, outras pessoas. Conseguiuse trazer a sé para São Nicolau, mas não a sede administrativa de Cabo Verde. Portanto, São Nicolau ocupou no passado – nos séculos XVIII e XIX – uma inegável centralidade em Cabo Verde. Para já, foi a capital de Barlavento, indiscutivelmente. São Vicente nem sequer existia. Basta ver que São Nicolau chegou a ter sob a sua jurisdição as ilhas do Sal e de São Vicente. Hoje estamos numa posição muito marginal. Somos uma ilha desconhecida dos cabo-verdianos, onde o desenvolvimento tarda em chegar. Isto cria-nos uma grande contrariedade. Uma ilha que foi o berço da intelectualidade caboverdiana, a Atenas de Cabo Verde, estar na situação em que está, é triste. Somos das poucas ilhas cuja população tem vindo a decrescer. Isso tudo nos indica que alguma coisa vai mal na nossa localização no contexto nacional.

E quais são as razões desse declínio? Claramente o isolamento. Até há pouco tempo tínhamos graves problemas de ligação com as outras ilhas. Recentemente, antes da chegada do catamaran Liberdadi, chegámos a estar três a quatro meses sem uma única ligação direta à ilha do Sal, o nosso principal mercado hoje. Isso leva qualquer pessoa consequente a não se fixar aqui. Desde logo, o problema da saúde. Temos situações dramáticas em termos de evacuação para os hospitais de São Vicente e da Praia que nem sequer chegam a ocorrer porque, simplesmente, não há navio. Mas também do ponto de vista de desenvolvimento económico. Muitos emigrantes acabam por investir na ilha do Sal (antes era em São Vicente) por causa do isolamento. Não havendo turistas, o fulano que tem poupanças para uma residencial ou uma pensão prefere procurar a ilha do Sal. Quem tem dinheiro acaba por ir aplicar os recursos noutros lugares porque aqui, tão cedo, não consegue rentabilizar o seu investimento. Há também um outro factor que pesou mais no passado, que é a educação dos filhos. Hoje temos liceu, mas mesmo assim chega um ponto em que os filhos têm de ir para fora e, muitas vezes, a família se muda com ele por causa disso. Portanto, são vários os factores que chegam a contribuir para a situação em que São Nicolau se encontra hoje em dia. É possível inverter a situação? Eu não tenho dúvidas que sim. Neste momento estou muito expectante com a entrada em funcionamento dos dois catamarans – Kriola e Liberdadi. Rogo a Deus para que isso continue. Com uma boa articulação com São Vicente, ou Sal, com os voos de carreira e charters, os emigrantes e os turistas poderão passar a procurar São Nicolau com menos dificuldade. Há um potencial grande, no domínio do turismo histórico e turismo rural, que poderá trazer bons resultados para São Nicolau. Temos o seminário e temos a música “Sodade d’ nha terra Sanicolau”, dois cartões de visita. Há também o atum da fábrica SUCLA. Portanto, isso tudo bem explorado, São Nicolau poderá inverter o seu declínio e desenvolver-se.

No teu caso o que te mantém em São Nicolau? Muitas coisas. Uma delas é a qualidade de vida que aqui tenho. Tenho sossego e tranquilidade, ainda me dou ao luxo de ir à praia buscar o meu peixe fresco, de consumir produtos biológicos, chegados diretamente da horta. A isso somo o tempo que me resta para desenvolver as minhas paixões no campo da investigação e escrever. Nisto a minha motivação é dar a minha contribuição para o desenvolvimento desta terra. Não posso nem tenho como fazer tudo que gostaria, mas, mesmo assim, vou fazendo o que sou capaz. Qual é a tua ocupação profissional aqui? Dirijo o gabinete municipal do desenvolvimento local na Câmara do Tarrafal. Paralelamente, estou a trabalhar com o IIPC [Instituto de Investigação e Património Culturais] e o M_MEIA, de Leão Lopes, no Museu da Pesca aqui no Tarrafal. Escrevo e faço outras coisas. Na tua opinião, qual foi o contributo que São Nicolau deu para Cabo Verde? É notório. Eu me lembro que o Mário Fonseca dizia que na fundação da caboverdianidade há dois momentos, e eu acrescentaria um terceiro. Que isso começou com os pré-claridosos. Nisso havia uma forte influência de São Nicolau, José Lopes, António Pusich e vários outros nasceram ou passaram pelo seminário. Um segundo momento são os claridosos. Nisso, aponto o papel muito forte que a igreja desempenhou, igreja essa que teve a sua sede num determinado momento em São Nicolau. Uma parte importante da elite intelectual cabo-verdiana nasceu ou passou por São Nicolau. Um deles, Juvenal, pai de Amílcar Cabral, estudou no seminário, para não falar de Baltasar Lopes da Silva e outros mais. Um terceiro elemento na construção da caboverdianidade foram os que lutaram pela independência nacional. Muitos dos combatentes, direta ou indiretamente, tiveram a influência de São Nicolau. Alguns foram alunos de Baltasar Lopes da Silva, um filho de gema de São Nicolau. [ 49 ]


Uma parte importante da elite intelectual cabo‑verdiana nasceu ou passou por São Nicolau. Um deles, Juvenal, pai de Amílcar Cabral, estudou no seminário, para não falar de Baltasar Lopes da Silva e outros mais. Embora suspeito, acredito que São Nicolau foi fundamental para a construção da caboverdianidade.

CABO-VERDIANO Na tua opinião, a identidade caboverdiana existe? Existiu, hoje não mais existe. Nós nos deixamos atropelar pela aculturação. Contudo, se fizermos algum esforço, ainda somos capazes de encontrar algum resquício, mas já não é tão evidente como foi no tempo dos claridosos, por exemplo. Durante os primeiros anos da I República ainda se podia falar em caboverdianidade. Havia um fervor em relação ao que era nosso. Hoje isso se esvaiu em muita coisa. O que era identidade cabo-verdiana quando ela existiu? Nós tínhamos um apego muito grande a tudo que eram as nossas [ 50 ]

tradições, cultura, história, etc. Na escola estudávamos isso tudo, hoje não. Acho que nem se estuda mais a história de Cabo Verde. Há uma disciplina chamada cultura caboverdiana onde se mete tudo e acaba por não ser nada.

Temos uma crise de valores? Absolutamente. Eu não estou tão velho assim, nem tão novo, mas sou ainda de um tempo em que havia respeito pelos mais velhos, pelo professor, pelos símbolos nacionais, etc. É fácil ver o desrespeito às autoridades hoje em dia.

O que é define o cabo-verdiano hoje? O cabo-verdiano, no passado, era mais identificado pelos seus hábitos, pela sua cultura. Hoje estamos mais preocupados com a riqueza, a ostentação, a posse de bens. Temos investidores que não hesitam deitar abaixo um património para no lugar fazer um outro edifício qualquer. Na música, há artistas que se estão nas tintas para aquilo que é nosso, fazendo coisas desde que sejam rentáveis.

INDEPENDÊNCIA, “GANHOS EXTRAORDINÁRIOS” Olhando para Cabo Verde nestes quase 40 anos de independência, na tua opinião, quais são os nossos principais ganhos? Os ganhos são extraordinários. Eu lembro-me que em 1975 eram raras as pessoas que tinham uma formação superior e a maioria nem sequer estava em Cabo Verde. Do ponto de vista de transformação social e valorização do


durante muito tempo, continuam a falar com sotaque brasileiro. Isso também acontece no vestir, na forma de se comportar. Nesse tipo de contato acabamos por ficar descaracterizados. Isto nem sequer é uma crítica, mas apenas uma constatação. Por outro lado, também mudamos diante do crescimento económico e social por que temos vindo a passar. Isso também afeta os nossos padrões culturais.

ALDEIA GLOBAL O cabo-verdiano lida bem com a aldeia global? Eu acredito que sim. Nisso somos até acusados de sermos um povo volúvel. Ah, sim?! Sim. Eu próprio ouvi esse tipo de crítica no Brasil. No convívio com meus colegas africanos, fechados nos respetivos guetos, iam a um bar e ficavam no seu cantinho, ao passo que nós, os cabo-verdianos, tínhamos uma postura diferente e, por causa disso, éramos por eles acusados de nos armarmos em brancos. Parece anedótico mas é a verdade. Isso tem a ver com a nossa origem como povo, somos mestiços, facilmente nos integramos e nos relacionamos com todos. Mas também sabemos acolher os que vêm para Cabo Verde. Neste sentido, não temos qualquer problema com a aldeia global. homem cabo-verdiano, ganhamos na educação, na saúde, na infraestruturação do país… Ganhamos, também, uma maior consciência de povo. Mas não é contraditório com a tua dificuldade em definir o caboverdiano. Não, porque o problema era outro. Tinha a ver com o cabo-verdiano em si, com a sua descaracterização enquanto povo. Essa descaracterização tem a ver com a nossa relação com o mundo? Absolutamente. A nossa abertura ao mundo é muito fácil. Quando um cabo-verdiano sai, ele incorpora valores da sociedade onde está e ao regressar leva tempo a despir-se de tudo que absorveu. Por exemplo, vejo colegas meus que estudaram no Brasil,

Na tua opinião, como nos relacionamos com a África, a CEDEAO em concreto? Mal. São Nicolau acolheu, em 1931, um grupo de deportados portugueses e com eles vieram guardas angolanos, negros. Já nessa altura os angolanos eram tratados de forma pejorativa. Em São Nicolau, volvidos mais de 70 anos, continuamos a tratar qualquer negro, vindo do continente, de manjaco. Já ouvi por aí que isso não é pejorativo mas para mim, no mínimo, é discriminatório. A verdade é que conhecemos muito mal o nosso continente. Há uns dois anos atrás estive envolvido num projeto que me levou a contatar vários países da nossa sub-região e nisso me dei conta do quanto de África existe em nós. Uma das minhas visitas foi ao Benin e lá descobri o gongon.

Gongon, no Benin, é uma personagem mitológica da crendice desse país. Portanto, acredito que o nosso gongon vem do Benin. Moacyr Rodrigues defende que gongon vem de Gungunhana, que passou por São Vicente quando foi deportado para Portugal e depois os Açores. Não senhor, vem do Benin, porque no Benin existe essa figura. É um objeto fantasmagórico, coberto de palha. É exatamente aquilo que nós dizemos aqui de gongon, um ente estranho, do além, assustador, que vem à noite para apanhar crianças, etc. Portanto, há muito de África em nós e nem podia ser de outro modo. Sucede que, seja na escola, seja no nosso dia a dia, na sociedade, ninguém nos passa a parte positiva de África. A nossa relação com África é um bocado complicada, o que é errado, quanto mais não seja porque parte da nossa origem está lá e logo devíamos ter um melhor relacionamento com o continente. E como vês a integração de Cabo Verde na CEDEAO? Do ponto de vista económico, tenho dúvidas se nós podemos tirar de lá alguma coisa. Lembro-me de quando os TACV decidiram voar para alguns países da sub-região as dificuldades que não tiveram. Eu sei que, ao abrigo de um acordo de pescas, há barcos senegaleses a pescarem nas nossas águas, no pressuposto que podemos fazer o mesmo nas águas do Senegal, mas pergunta aos armadores caboverdianos se conseguem pescar nas águas de algum país da nossa subregião? Na teoria, a dimensão do mercado da CEDEAO seria boa para nós, porém, na prática, não chegamos lá, antes de mais, o modus vivendi deles (com luvas pelo meio e essas coisas) não é compatível com a nossa maneira de ser. E as nossas relações com a Europa? Com a União Europeia acredito que sejam melhores. Mesmo assim, não estamos a tirar o melhor proveito daquilo que prestamos à UE. Cabo Verde, se algum dia tomar consciência do ativo que tem da sua posição geoestratégica, teria condições de [ 51 ]


negociar em melhores condições. Os europeus não estão de olhos em Cabo Verde, a ponto de querer nos atribuir um estatuto especial, porque somos bonitinhos. É porque a UE tem interesse na nossa posição geoestratégica. Devíamos usar melhor esse trunfo.

REFORMA DO ESTADO Fala-se muito na reforma do Estado. Na tua opinião, o nosso Estado precisa ser reformado? Precisa sim. Em todas as campanhas eleitorais este assunto vem à baila. Ainda ontem estava a ler, num jornal, que os cargos de chefia vão ser por concurso público. Eu pago para ver. Eu já espero isso há 20 ou 30 anos. Eu próprio já fui vítima disso. Trabalhei para o anterior presidente da Câmara do Tarrafal, António Soares, e sei o que ele passou, com os seus, para [ 52 ]

correr comigo. Isso porque, antes, quando eu estava na política ativa, fui vereador numa câmara do MpD e taxativamente, para os camaradas do Soares, eu não podia ser diretor numa câmara do PAICV. Confesso que nesta matéria eu tinha grande expetativa porque o nosso primeiro-ministro, que é formado em administração pública, seria capaz de dar uma volta significativa a isso. Agora, no terceiro mandato, é que o secretário de Estado da Administração Pública anuncia o recrutamento para os cargos de chefia por concurso público, uma coisa que já devia estar a acontecer há muito tempo, como acontece na Itália, um país muito conturbado politicamente mas que a máquina do Estado funciona porque a administração é por concurso. Francamente. Outra coisa na qual também não acredito é na avaliação por

desempenho. A avaliação na função pública é a maior palhaçada que podia haver. Na tua opinião, quais são os setores que precisam passar realmente por uma reforma? A administração pública em si é um dos elos mais complicados do sistema, é por onde passa o desenvolvimento do país, logo, é o setor do Estado que deve merecer uma atenção muito especial. Mas, aprofundando um pouco mais, também aponto a saúde. Como disse atrás, aqui, tivemos importantes ganhos, mas nos últimos anos constato que se tem virado mais para o setor privado. Isto é, os médicos – que têm um pé no privado e outro no público – por razões de salários, estão mais preocupados com os seus consultórios do que propriamente com o serviço público onde prestam


… no dia em que tivermos um único crioulo, esse seria eventualmente o momento para a sua oficialização. Não vale a pena forçar a oficialização.

ou a fixação do crioulo impõe vários problemas tendo em conta a variedade de crioulos que existem em Cabo Verde. Baltasar até defendia que, a ser oficializado ou estudando, devia-se usar o crioulo de Santiago. Ele que era de São Nicolau, mas que viveu largos anos em São Vicente. Segundo ele, os vários crioulos existentes acabarão por afunilar-se num único crioulo com o tempo. Aliás, neste momento já estamos quase lá. Hoje em dia pouco se diferencia entre os crioulo de São Nicolau, São Vicente, Sal, Boa Vista e Santo Antão. Em Sotavento, mais concretamente na Praia, onde há muita gente de Barlavento e do Fogo, verifica-se a mesma tendência. Ou seja, no dia em que tivermos um único crioulo, esse seria eventualmente o momento para a sua oficialização. Não vale a pena forçar a oficialização.

DIÁSPORA, “DISCRIMINAÇÃO POSITIVA”

CRIOULO, “SEM PRESSA” serviço. Li há dias num jornal, no Hospital Baptista de Sousa, em São Vicente, gente a reclamar que passa três a quatro horas para ser atendida, às vezes, para receber uma simples informação. Há aqui um espaço para melhorias. A educação é uma outra preocupação. Aqui há um retrocesso evidente. É pegar num aluno que sai do 12º ano, às vezes licenciados com cursos superiores – são vários os que passam pelas minhas mãos – e comparar os relatórios ou o que escrevem, e é um desastre. A qualidade, hoje, deixa muito a desejar. É preciso muito cuidado porque, caso contrário, vamos ter licenciados, como já acontece, a servirem mesa em bares e restaurantes. Nem sequer poderemos “exportar” essa gente para os países africanos de língua portuguesa, porque não dominam minimamente o português.

Sobre o crioulo qual é a ideia que tens relativamente a este assunto? Ainda recentemente estive a ler Baltasar Lopes da Silva. Ele disse, há mais de 50 anos, que o crioulo precisa de tempo para fazer o seu caminho sozinho. Nos últimos anos, com o ministro Manuel Veiga [2004-2010], houve uma pressão muito grande no sentido de pôr o crioulo a correr com vista à sua oficialização. Em Cabo Verde, toda a gente fala e se entende utilizando o crioulo no dia a dia. Por causa disso, o crioulo não está em risco, pelo contrário, está bem, ao contrário do português. Nós precisamos, sim, investir fortemente no português. E, eventualmente, tendo em conta o tipo de economia que pretendemos ser, e se sobrar algum dinheirinho, numa terceira língua, o inglês. O crioulo vai fazer tranquilamente o seu caminho e quando chegar o dia poderá ser oficializado. Como previu Baltasar Lopes, a oficialização

A nossa relação com a diáspora, como é que a vês? Do ponto de vista institucional, a criação de um ministério para se ocupar especificamente do setor foi um sinal político do valor que se atribui à diáspora. Porém, tenho dúvidas quanto à eficiência dessa instituição. Lembro-me de um texto do Arnaldo Andrade, sociólogo, que foi embaixador de Cabo Verde em Portugal, em que ele diz que os caboverdianos na diáspora estão a perder a sua identidade. Ele atribui isso a problemas vários. Isso referindo-se às novas gerações. Os cabo-verdianos da primeira geração foram daqui formados com uma identidade própria, sabem quem são. Com estes não há problemas. As gerações seguintes estão a perder a sua identidade. Palavras de Arnaldo Andrade que eu subscrevo. Hoje temos gente que não sabe se é cabo-verdiano, se é americano, não conhece Cabo Verde. E esse tipo de desconhecimento ou de dúvida força-o para a marginalidade. Há aqui um trabalho tremendo que se deve fazer com as novas gerações na Europa, nos EUA, etc. Nesse domínio, institucionalmente, nós estaremos a falhar na transmissão para as novas gerações do seu legado, da [ 53 ]


sua identidade, no sentido de saberem quem são. Os pais ou são ignorantes, do ponto de vista de iletracia, ou então eles mesmos também já não sabem transmitir os valores que levaram de Cabo Verde. Esta devia ser uma responsabilidade do Estado de Cabo Verde através do Ministério das Comunidades, através das embaixadas ou dos centros culturais. É necessário fazer essa transferência. Do ponto de vista individual, o cabo-verdiano ainda mantém-se ligado à família que deixou em Cabo Verde. Os que estão cá ainda têm expetativa daquilo que os parentes no exterior lhes pode enviar e os que estão lá, sobretudo as primeiras gerações, tentam manter a ligação com os familiares, enviando remessas, regressando para ver as famílias. Portanto, do ponto de vista emocional, conservamos a ligação. Com o advento das novas tecnologias, com o Facebook, etc., vejo, na minha casa, que os meus filhos estão em contacto permanente com os primos que sequer conhecem nos mais variados lugares do mundo. Sabemos então lidar bem com a nossa diáspora? Eu acredito que sim. Sobretudo nos últimos anos, é nítido o esforço institucional, tanto do Governo como das câmaras municipais, para um melhor relacionamento. É certo que ainda falta efetivar ações que ajudem a perpetuar a relação entre nós em Cabo Verde e os nossos irmãos que estão lá fora, na certeza, porém, de que haverá um momento em que as novas gerações se irão desligar da terra dos seus pais e avôs. O Estado tem sabido tirar o melhor proveito da nossa diáspora? Do ponto de vista teórico, sim. Do ponto de vista prático, já nem tanto. Um emigrante regressa e quer fazer um investimento, precisa de um terreno. Ele tem que vir duas, três, quatro vezes, para conseguir o terreno. Cruzei-me há dias com um emigrante aqui, que construiu uma casa há já alguns anos, e por mais que tente não consegue sequer registar a casa como propriedade dele. Se nós prezamos a nossa diáspora, deveria haver nas câmaras ou [ 54 ]

nalgum sítio qualquer um local onde, apresentando o seu problema, o emigrante deveria ter um tratamento especial. Queiramos ou não, ele tem cada vez menos tempo de férias em Cabo Verde e nesse período não pode andar às voltas com a burocracia. Defendo por isso uma discriminação positiva para ajudar esses patrícios a resolverem os seus problemas. Conheço um senhor que também veio com a intenção de fazer uma residencial, correu atrás disto e daquilo, às tantas, cansou-se, e foi fazer na ilha do Sal. Portanto, não estamos a retirar o melhor proveito do emigrante.

REGIONALIZAÇÃO, “SEM BAIRRISMO” Está-se a discutir a regionalização. Qual é a tua opinião sobre o assunto? Confesso não ter uma opinião formada. Do meu ponto de vista, na cabeça da maior parte das pessoas, não é a regionalização que se está a tratar, mas sim o regionalismo. Nisso entra um bocado de bairrismo. Uma coisa que me chama a atenção para os promotores da regionalização em São Vicente é que eles se esqueceram de Santo Antão, uma ilha que está mesmo ali ao lado. Também se esqueceram de São Nicolau. Não me lembro de, em nenhum momento, esse grupo nos chamar para esse debate. Por isso, tenho a impressão que se está a discutir mais o velho problema da rivalidade entre Praia e São Vicente, entre badios e sampadjudos, ou então que se está a investir mais na Praia do que em São Vicente. Pondo isto de lado, entendo que, tal como está fixado na Constituição, devia-se criar condições iguais para todas as ilhas se desenvolverem por igual. E isso não acontece. Por este motivo, temos que ver se para isso acontecer precisamos de regionalização ou de uma outra solução que permita uma melhor partilha do dinheiro público. O que sei é que existem claros desequilíbrios a nível de Cabo Verde. Isto está muito claro, para mim. Ilhas como São Nicolau, Maio e Brava, por exemplo, andam um bocado à margem do desenvolvimento.

Lembro-me de uma lei que visa a fixação de quadros na periferia à qual não foi dado nenhum seguimento. Que ilha vai desenvolver-se sem competências técnicas?… E por que não há competências?… Porque o Estado não foi capaz de criar um quadro que favorecesse o número de quadros para essas ilhas. Isso acontece nos mais diversos domínios. Na saúde, na justiça… Chega aqui gente apenas para fazer estágios. Na justiça, em dez anos, já passaram vários juízes e procuradores, a uma média de um ou dois por ano, porque ninguém quer ficar em São Nicolau. Isso não é bom para qualquer sociedade que queira gerir bem a justiça. Como os quadros não se fixam nas ilhas da periferia, nós que estamos na periferia não passamos da cepa torta, como se diz. Portanto, precisamos realmente de uma solução, cujo nome não sei ao certo, que permita a todos os caboverdianos, a todas as parcelas do território nacional, ter os mesmos direitos. Neste momento quem está na Praia ou em São Vicente tem melhores oportunidades do que aqueles que estão noutras ilhas e isto precisa ser refeito, com máxima urgência. Se for pela via da regionalização, que seja. Se for por outras vias, que também seja, o que não podemos é continuar como estamos. Isso implica, e voltamos à pergunta, que Estado para Cabo Verde? O Estado que temos é bastante centralizador. Gira à volta do poder político nacional na Praia. As câmaras municipais precisam de outras autonomias. Lembro-me, por exemplo, da promoção social que estava entregue às câmaras e foi chamada ao Governo novamente. Para mim, foi um retrocesso. O financiamento do poder local, coisa instituída na Constituição, está dependente do poder central. Sendo um poder próprio deveria ter os seus próprios meios pra gerir. É evidente, desde 1990, com a abertura, que a questão da cor política funciona. E devia haver um quadro legal muito claro para que cada município tivesse os seus recursos. A atribuição dos contratos programa chega a ser discricionária. Além do Fundo do Equilíbrio Financeiro (FEF), cujo


valor se sabe, anualmente, através do orçamento do Estado, tudo o resto é discricionário, depende da vontade política de quem está no Governo. Considero que foi um erro grave a proliferação de municípios que passou a haver em Cabo Verde, temos municípios sem sustentabilidade. Alguns sobrevivem do FEF, que apenas dá para pagar salários. Os investimentos ficam por conta de quem? Pela boa vontade do Governo. Portanto, não existe efetivamente um poder local em Cabo Verde. Devia haver um poder local com peso e força, sobretudo dentro do seu território, um Estado que permitisse a separação clara entre o governo e os partidos, que não funcionasse por via da cor política. Aqui em São Nicolau, a câmara tem muito poder sobre as pessoas? Depende. Quem for da cor política da câmara está-se bem. Um indivíduo conotado com a oposição consegue viver bem? Não, de maneira nenhuma. A cada mudança, tal como acontece no Governo, há uma varredura, e isso é grave porque são vidas que se destroçam, projetos de vida que são cortados ao meio, sobretudo o país ou o município que fica praticamente parado. Entra gente nova e até se adquirir a velocidade cruzeiro já se passaram dois anos. E o cidadão no meio disto? Ele é que paga a fatura. O meio é pequeno, rapidamente sabemos quem votou em quem, a pessoa é penalizada, simplesmente. Que valores defendes para uma sociedade como a cabo-verdiana? O respeito não se perdeu de todo, mas tivemos uma erosão muito grande. O respeito pelos mais velhos, pelas instituições, pelos cidadãos, hoje em dia, precisa ser recuperado. Cabo Verde despertou nos últimos anos para a valorização e preservação do nosso meio ambiente. Acho isso positivo. Mas ainda resta um défice grande neste domínio. Também defendo a salvaguarda e a perpetuação dos nossos valores, dos nossos símbolos, da mesma forma

Todo o mundo quer emprego, mas não está disponível para trabalhar, não está sequer disponível para as suas oito horas por dia, efetivas, como manda a lei. Entre nós há uma excessiva valorização dos “meus direitos”, mas ninguém está preocupado com os “meus deveres” sociais.

que só agora também nos estamos a dar conta da importância da nossa cultura, da nossa identidade. Como cidadão, tenho esperanças que um dia haveremos de conseguir banir a politiquice que existe em tudo e todos, e a pessoa seja vista pelo cidadão que é e não a que partido pertence. Estes são alguns valores que me ocorrem agora. Que tipo de cidadão gostarias de ver em Cabo Verde? Um cidadão interventivo. Em Cabo Verde vejo cidadãos mandadores de bocas, gente que exige os seus direitos, mas que se lembra muito pouco dos seus deveres. Todo o mundo quer emprego, mas não está disponível para trabalhar, não está sequer disponível para as suas oito horas por dia, efetivas, como manda a lei. Entre nós há uma excessiva valorização dos “meus direitos”, mas ninguém está preocupado com os “meus deveres” sociais. No passado, era característica do homem de São Nicolau reivindicar quando tinha que reivindicar, mas ser o primeiro a fazer o que tinha de fazer. Ele não se importava de apresentar o seu problema fosse a quem fosse porque ia com respeito exercer a sua cidadania. Não sei se isso se deveu ou não aos valores que o Seminário foi disseminando pelas pessoas desta ilha. Hoje em dia, não, as pessoas se limitam a mandar bocas sem qualquer consequência, com falta de respeito e sem um mínimo de decoro. São Nicolau é representada por dois deputados. Qual é a avaliação que fazes dessa representação? Eu não me sinto representado corretamente. Um deputado que é meu porta-voz no parlamento devia ter coragem de promover encontros para auscultar os seus representados e levar para o Parlamento. Eu, que sou uma pessoa minimamente atenta, nunca tive essa oportunidade. Eu posso até me penitenciar dizendo que nunca fui atrás de nenhum deles apresentar os meus problemas, mas são eles é que são pagos, por isso eles é que deviam vir atrás de mim, cidadão, para recolher as minhas contribuições. Portanto, não tenho razões para me considerar bem representado no Parlamento. [ 55 ]


FUTURO, “MUITA APREENSÃO” Em relação ao futuro, como o encaras? O futuro da minha ilha encaro-o com muita apreensão. No Tarrafal a atividade económica é fraca. A exceção é a SUCLA, que dá muitos empregos, mas temos uma situação complicada que é a escassez de recursos marinhos. Alguns atribuem ao número excessivo de licenças de pesca a navios da União Europeia, razão pela qual o peixe não chega aqui, às águas mais rasas. Por causa disso, a SUCLA está em problemas sérios. O emprego público, como sabemos, tende a diminuir, a agricultura, tenho de reconhecer, deu um salto, mas para quê se não temos barcos para escoar os nossos produtos? Tivemos aqui, há uns anos, uma sangria muito forte, grande parte da força produtiva de São Nicolau foi para o Sal, nos anos noventa, e ficou por lá. Com os problemas no Sal, alguns ainda regressaram mas já não encontraram as bases, as casas ruíram, etc. Ou seja, São Nicolau tem um futuro muito complicado. Mas temos que ter esperanças. Com uma ligação efetiva com as outras ilhas, podíamos pôr esta ilha a funcionar pela via do ecoturismo, do agroturismo, da pesca desportiva, enfim, isso tudo em rede, e por efeito induzido poderá trazer outras atividades pelo arrastão. Por exemplo, nós temos algum potencial no turismo religioso. Uma catedral em São Nicolau poderá funcionar como um chamariz. A isso poderemos juntar a importância do Seminário. Com isso tudo a funcionar, poderemos ter um futuro melhor, não obstante os problemas que se colocam também. E em relação a Cabo Verde? Eu estou muito expectante. Temos vindo a fazer muita celebração, que eu considero legítima do passo grande que demos para atingir o estatuto de país de desenvolvimento médio. As autoridades nunca se deram verdadeiramente ao trabalho de esclarecer as pessoas o que é que isso significa. Desde logo perdas de ajudas concessionadas, fundos perdidos, perda das FAIMO, Cabo Verde é [ 56 ]

agora obrigado a financiar-se por empréstimos com juros de mercado, dinheiro que não poderemos esbanjar nas FAIMO como se fazia antigamente. Numa palavra, nós temos que começar a ter produção em Cabo Verde. Nós não somos exemplo de produtividade nem de produção. Aqui, na SUCLA, as pessoas trabalham até ao meio dia e tem-se de implorar para alguém fazer horas extras. Que país é este? Os nossos cidadãos não estão conscientes das exigências para se ser um país de rendimento médio. A relação do caboverdiano de hoje com o trabalho não é a melhor.

Mas o cabo-verdiano lá fora é tido como bom trabalhador, empenhado… Porque é-lhe exigido! Ele sabe que se lá fora não trabalhar não leva nada para casa. Eu costumo dizer que seria bom nós, de vez em quando, enchermos esses barcos de cabo-verdianos e mandá-los para o estrangeiro nem que fosse por um mês para verem como é que se ganha dinheiro lá fora. A nossa gente vê o emigrante bonitinho a chegar, a passear, e não tem ideia de como é que esse patrício ganhou o que tem. Não faz ideia que o marinheiro tem de trabalhar a 50 graus na Arábia Saudita a pintar o


costado do navio, tem de fazer a mesma coisa com temperaturas negativas se o navio estiver no Norte da Europa. Aqui basta fazer 30 graus para o fulano encostar a enxada e procurar sombra e tomar fresco. Basta chover não vai trabalhar… Nem chover, basta umas gotículas de chuva, ele já quer fugir para casa ou então não põe o pé na rua para ir para o trabalho. Portanto, a nossa relação com o trabalho precisa ser alterada. Caso contrário, corremos o risco de, daqui a alguns anos, perder o estatuto de país de rendimento médio.

Há muita coisa que precisa mudar na cabeça do cabo-verdiano. Por exemplo, ninguém quer pagar 100 escudos de taxa moderadora na saúde porque todo mundo está habituado à borla, aos apoios. Ninguém quer pagar propinas para os filhos, mas é capaz de gastar o que tem e não tem a beber grogue na rua.

Há muita coisa que precisa mudar na cabeça do cabo-verdiano. Por exemplo, ninguém quer pagar 100 escudos de taxa moderadora na saúde porque todo mundo está habituado à borla, aos apoios. Ninguém quer pagar propinas para os filhos, mas é capaz de gastar o que tem e não tem a beber grogue na rua. Aqui temos um trabalho tremendo para mostrar e convencer as pessoas quais são as suas atribuições, que nada cai do céu, que não é mais a comunidade internacional que vem resolver os nossos problemas. Conseguindo isso, o cabo-verdiano tem todas as condições para superar o que tem de superar. Como povo, já superamos coisas muito piores. Pessoalmente, considero que nós andamos aqui um bocado no fio da navalha, e tudo vai depender do que Cabo Verde poder negociar com o mundo. O trabalho tem de ser de todos, do Governo, das câmaras municipais, da sociedade civil, no sentido de mostrar às pessoas que

hoje, mais do que nunca, o futuro depende de nós próprios. Uma outra coisa que me preocupa é a nossa dívida interna. Ela já atingiu um nível preocupante, e não vale a pena a conversa que nos EUA ou no Japão a dívida é superior a 100 ou 200% do PIB, porque os EUA e o Japão produzem para sustentar a sua dívida, nós não. É bom ter infraestruturas, estradas, escolas, hospitais, barragens, etc., mas temos de ter meios de pagar isso, caso contrário, corremos o risco de um dia acordar com uma mão à frente e outra atrás. Portanto, não cabe apenas ao cidadão ter juízo, mas ao Estado também.

FIGURAS Nestes 40 anos, para ti, quem é ou quem são as figuras que mais se destacaram? Na I República os nomes são vários. Aponto Pedro Pires, mais algum ou outro elemento do governo dele. Na II República há, sem dúvida, o Carlos Veiga. O José Maria Neves, nos últimos anos, é outro que se destaca. Isto falando dos políticos – veja só, diante da pergunta, a primeira coisa que me vem à mente são os políticos, o que prova que eu próprio estou condicionado pela política, somos todos muito marcados pela política, esquecendo do cidadão comum. Nós tivemos grandes empresários, também, que ajudaram a revolucionar este país, do ponto de vista económico. Um deles, em crise neste momento, é o Alfredo Carvalho, da Tecnicil. Mas também temos artistas, a começar pela Cesária Évora, levou o nome de Cabo Verde para o mundo, a reboque do Djô da Silva. Há também o Paulino Vieira. O Germano Almeida deu um grande fôlego à escrita. Éramos um país de escritores – Baltasar Lopes, Manuel Lopes – mas de repente a escrita passou a ser uma coisa muito marginal e o Germano apareceu, sendo hoje o rosto mais visível da nossa literatura. Também aponto o José Luís Tavares, o Arménio Vieira, o Corsino Fortes. Enfim, são vários. [Tarrafal de São Nicolau, 01-05-14] [ 57 ]


José Manuel Pires Ferreira, 71 anos, natural do Paul, Santo Antão, presidente da AMIPAUL. Formado em administração de empresas, trabalhou largos anos no setor portuário até que decidiu retornar ao seu lugar de origem, para abraçar a causa do desenvolvimento da sua ilha natal.

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José Manuel Pires Ferreira

“O nosso mal é a pobreza espiritual” Lembro-me de si, como alguém que fez uma vida no centro e que depois regressou à base, Santo Antão. É isso? Sim, realmente trabalhei muitos anos no setor da economia portuária, em São Vicente e na Praia, a partir de 1994 vim para Santo Antão para o desenvolvimento rural. Com isso, reformulei a minha orientação teórica da vida e das coisas. O que o levou a essa mudança de rumo? Senti que a minha colaboração não estava tendo o reflexo que eu gostaria, as minhas propostas não eram tidas em conta e, se eu não estava a ser útil, decidi procurar onde eu poderia sê-lo. É assim que regresso a Santo Antão, minha ilha natal, para trabalhar com o desenvolvimento rural aqui no Paul. Sente-se bem neste momento? Muito bem. Sei que esteve envolvido no processo de reciclagem das FAIMO. Foi realmente isso? Sim. Especificamente trabalhei ao lado do engenheiro António Neves e outros técnicos na construção dos três planos de desenvolvimento de Santo Antão.

Foi fácil, uma ilha como esta, livrarse das FAIMO? Fácil não foi. Pelo contrário, foi preciso a insistência e a persistência das instituições que lideraram a transformação e a abnegação das pessoas que estiveram à frente do processo. Hoje já é possível viver sem FAIMO em Santo Antão? É possível, mas com dificuldades ainda. Isto porque as mentalidades não estão ainda completamente capacitadas para que cada um assuma o empreendimento da sua vida. É preciso levar as pessoas, que estão sofrendo, a encontrarem o sentido da vida. Essas pessoas têm uma natureza pobre no seu espírito. Realmente, a pior coisa é a pobreza de espírito. Esta é uma coisa que aqui, em Santo Antão, a AMIPAUL e o CRP [Conselho Regional de Parceiros] do programa de luta contra a pobreza chamaram de síndroma LQC, Lamurismo, Queixumice e Coitadeza. As pessoas, de facto, refletem-se nesse síndroma e têm grande dificuldade em sair disso e se autonomizarem.

Repare, numa ilha como esta, as FAIMO eram um importante meio de dominação política, não? Sem dúvida. Houve dominação política, mas, muitas vezes, foi um meio necessário. Uma política idêntica foi desenvolvida depois da Segunda Guerra Mundial em Londres, altura em que foi necessário mandar as pessoas abrirem buracos, fecharem buracos, por forma a que tivessem ocupação e rendimento. Aliás, as FAIMO foram herdeiras do Apoio, no período colonial, numa lógica também de manter gente ocupada. Sim, só que em Santo Antão deixou referências boas. É o caso da estrada Ribeira Grande/Paul, que viria a ser concluída já depois da independência, com as FAIMO. Aqui foi importante a liderança do eng. Silvino Lima, do eng. José Spencer e outros. Já se pode dizer que as FAIMO são uma página virada na vida desta ilha? Virada não digo, mas uma página virando é, sem dúvida. Ainda restam resquícios que precisam ser ultrapassados. [ 59 ]


De que forma as FAIMO acabaram por se tornar em algo pernicioso para as pessoas de Santo Antão? Quando foram monopolizadas pelos partidos políticos. No momento da soma dos votos, lá onde houvesse gente a trabalhar, isso tinha efeitos diretos na disputa do poder. Por causa disso também, ultimamente, as FAIMO tornaram-se um emprego que não rendia nada para o desenvolvimento desta ilha, servia apenas para perpetuar miséria.

SANTO ANTÃO, “SEM RELEVÂNCIA” Dando um passo à nossa conversa, qual é o peso de Santo Antão hoje no contexto de Cabo Verde? No contexto social tem pouco impacto neste momento. Contudo, se for olhar para aquilo que nós chamamos de Geração Dourada – Januário Leite, Fernando Wahnon, Manuel Silva Almeida e de outras pessoas, que foram do Seminário de São Nicolau, escreviam nos jornais em Lisboa, etc. – sim, essa geração em concreto teve um efetivo, basta dizer que chegou a dominar a Comarca de Barlavento. Hoje isso deixou de existir. Em parte porque a capacidade humana saiu de Santo Antão e não mais voltou. No contexto de Cabo Verde, hoje, Santo Antão deixou de ter relevância, embora seja a segunda maior ilha. E, lamentavelmente, continuamos a assistir à autodestruição de Santo Antão. O que o leva a dizer que há uma autodestruição de Santo Antão? Além da sangria humana, há uma espécie de ciúme, próprio dos meios pequenos, em que aquele que chega lá é logo alvo de exclusão de quem não conseguiu o mesmo. A ideia é esta, “ele tem nós temos que o abater”. Às vezes, eu próprio me ponho a indagar sobre as razões objetivas que levam um fulano que conseguiu ter sucesso intelectual ou empresarial, por exemplo, a ser alvo da exclusão por parte da nossa gente aqui. Na sua opinião, isso decorre do quê? De uma falta de perspetiva de vida. E isso tem implicação com a cidadania. Há situações que favorecem esse tipo de comportamento social. Veja a fuga [ 60 ]

Cabo Verde é um país viável, ao contrário do que eu pensava – confesso – na altura da independência. E não era somente eu. Quase todo o mundo pensava assim.

para o fabrico da aguardente de açúcar. Quem fabrica boa aguardente está sob pressão permanente dos outros, em termos económicos, sociais, etc. Por isso é fundamental, neste combate, que se trabalhe a mentalidade das pessoas para o sucesso desde muito cedo. E as referências têm de ser para o médio e longo prazos, não para o imediato. Até porque a infraestrutura intelectual de Santo Antão diminuiu grandemente em todos estes anos de autodestruição. É possível travar o declínio de Santo Antão? Possível é. Em termos potenciais, de riqueza latente, Santo Antão é das melhores e maiores ilhas de Cabo Verde. O clima, a morfologia, o paisagismo, a quantidade de água e de solos de sequeiro disponíveis (seis mil hectares!), isso pode ser colocado ao serviço do desenvolvimento da ilha. Está faltando um empreendedorismo para retomar uma caminhada de sucesso para esta ilha. Mas é possível, sim, inverter o declínio de Santo Antão. Com o produto cana de açúcar, com a pesca, com o turismo, com o

agronegócio, etc., Santo Antão tem condições para andar com os seus próprios pés, dando com isso uma contribuição forte na valorização deste país de economia média. A seu ver, qual o principal estrangulamento de Santo Antão neste momento? Antes de mais, o síndroma LQC, de que lhe falei antes. Há muita gente que não gosta de ouvir, mas eu não tenho problema de dizer, o nosso mal é a pobreza espiritual. A isso juntase o declínio de valores humanos e sociais que antigamente suportavam a “empresa” santo-antonense. E há ainda a infraestrutura intelectual. A AMIPAUL tem procurado agarrar nisso tudo, ajudando a promover o ensino superior em Santo Antão. Felizmente, parece que já há uma “concordância” da UNI-CV e das outras universidades nesse sentido. Há aqui muita matéria perdida, muita pesquisa a ser feita, o que naturalmente irá ajudar o desenvolvimento da ilha. O ensino superior aqui incidiria sobre que áreas? Preferencialmente nos setores agrícola, pecuário, pesca, mas também coisas que tenham a ver com a indústria agroalimentar. Um outro ponto importante seria o transporte ou a logística de transporte, porque muito do estrangulamento de Santo Antão passa pela morfologia do terreno e escoamento da produção. O proprietário precisa de assistência técnica, precisa de compensações, para poder aumentar a mobilidade dos seus produtos. Felizmente, essa mobilidade começa a chegar com estradas de longa distância, brevemente teremos toda a ilha em anel, do Tarrafal do Monte Trigo até Cruzinha, ou outros lugares mais distantes. Mas é preciso também fazer a ligação das zonas de produção, como Chã de Pedras, João Afonso, Fajã de Janela, altamente produtivas, às estradas principais de forma a que haja drenagem para o Porto Novo, e daqui para outros lugares de Cabo Verde. Precisamos de negócios previsíveis, a bonne marché, por forma a garantir rendimentos a quem trabalha a terra em Santo Antão.


Mas nessa altura a quarentena terá de estar superada, não? Olhe, se quer saber, além de não ser um problema que afeta todos os produtos, com o andar dos tempos, o santo-antonense começa a aprender a lidar com o milpés. A valorização póscolheita pode até continuar, para que o milpés – esse animal terrível – não vá para as outras ilhas.

SER CABO-VERDIANO, “ASSUMIR CABO VERDE” Falou-me há pouco de valores. Por isso lhe pergunto: para si o que é ser cabo-verdiano hoje? É assumir, antes de mais, a caboverdianidade, e assumir o que isso representa, em termos humanos, culturais, biológicos, etc. Não ter complexos em termos sido colonizados, até porque herdamos dos nossos antepassados, africanos e europeus, coisas de grande valor, nomeadamente humanos, sociais, etc. Numa palavra, ser cabo-verdiano é assumir Cabo Verde. Eu há dias tive uma pequena

discussão com um intelectual caboverdiano em que ele dizia que Cabo Verde não é África e nesse tipo de questão eu pergunto: se não é África, é o quê, Europa, Ásia, Oceânia? E qual é a sua opinião sobre isso? Nós estamos na costa ocidental de África, a 500 km, logo, Cabo Verde é África. Lembro-me de uma lição que o comandante Pedro Pires deu quando lhe perguntaram a respeito deste assunto e ele respondeu que para sermos Europa teríamos de arranjar um rebocador para transportar estas ilhas mais para o Norte. Independentemente disso, ser caboverdiano é assumir que temos pés para andar, que as coisas não virão do céu. Com as tecnologias de informação e comunicação abriram-se inúmeras oportunidades. Estamos a meio caminho da Europa, África e América, o sol passa por Cabo Verde cinco horas antes de chegar aos EUA, podemos pôr isso a funcionar a nosso favor, oferecendo serviços importantes para os EUA, por exemplo.

Portanto, Cabo Verde é um país viável, ao contrário do que eu pensava – confesso – na altura da independência. E não era somente eu. Quase todo o mundo pensava assim. Mas não, nós somos sim um país viável, em termos de política agregada de África, em termos da realização económica, financeira, em termos de realização pessoal, científica, etc. Vejo que é muito otimista. Sou! Já Januário Leite disse, “Esta é pátria minha amada”. Eu admiro o povo de Israel pelo seu patriotismo. Entendo que o povo cabo-verdiano, também para chegar lá, tem que ser patriota. Falou-me há pouco em identidade. Como é que caracteriza a identidade cabo-verdiana? Nós temos uma orientação intelectual que já deu passos concretos nessa identidade, mas não chegou ainda a determinados extratos da nossa sociedade. Precisamos de políticas de integração para que cada um se sinta

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responsável pela construção, primeiro, de si próprio e, segundo, responsável pela construção da sociedade global.

o amor para cada um se sentir útil e válido para si, para a atualidade e para a nação.

A identidade cabo-verdiana, para si, já é um produto acabado? Não é. Temos que todos os dias colocar uma pedra nesse edifício. As pessoas que escrevem e se ocupam diretamente desse assunto devem continuar o seu trabalho. Pessoalmente, entendo que ainda não fizemos o trânsito do passado para o presente e para o futuro.

Do seu ponto de vista, qual é o contributo que Santo Antão deu para a formação da cultura caboverdiana? Eu remonto aos pré-claridosos que, do meu ponto de vista, estão meio abandonados e não são estudados. Muita da nossa elite desse tempo era de Santo Antão. Tivemos um embaixador de Portugal no Brasil.

lembro. O Roberto Duarte Silva [18371889], que foi professor universitário e investigador de Química em Paris. Precisamos, de facto, olhar para essa geração pré-claridosa até como fonte de inspiração. Além de literata, ela foi também uma geração patriótica. Essa gente organizou a revolta de 1886, a 17 de Abril, na Ribeira Grande. Em 1894, a 21 de Abril, aqui no Paul, houve também uma revolta. Foi criado aqui, no Paul, um Partido Republicano e por causa disso os seus promotores foram submetidos a uma pressão terrível.

O que falta fazer? Falta ainda colher ensinamentos do passado, cotejá-los na atualidade, levar a que as projeções para o futuro mobilizem vontades, sentimentos,

Martinho Nobre de Melo [1891/1985]? Sim. Veja o general Viriato da Fonseca [1863/1942], que chegou a ser assessor de D. Luís ou D. Carlos, já não me

Isso para si já é génese do nacionalismo cabo-verdiano? Absolutamente. Se a gente for ler com olhos de ver, Januário Leite, António Manuel Martins (não o do Sal ou de

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Santiago), mas aqui do Paul, se formos ler o prof. Gonzaga dos Santos, a gente vê pessoas que falam da pátria Santo Antão, da pátria paulense. No seu limite, é certo, eles contribuíram muito para a nossa identidade. Mais recentemente, Santo Antão participou imenso para a independência de Cabo Verde, é só ver que o grosso dos combatentes caboverdianos do PAIGC, que estiveram nas frentes da Guiné, eram de Santo Antão. Santo Antão contribuiu como, aliás, qualquer outra ilha de Cabo Verde. Fogo, São Vicente, Santiago, cada uma deu o seu contributo para o que somos hoje. No caso de Santo Antão, as gerações de hoje têm, contudo, uma grande dívida para com toda essa gente, na maioria caída no esquecimento. Precisam ser resgatados da lei da morte, do esquecimento.

REFORMA DO ESTADO Hoje fala-se na reforma do Estado em Cabo Verde. Na sua opinião, o Estado cabo-verdiano precisa ser reformado? As transformações mundiais estão a suceder num ritmo bastante rápido. Hoje somos confrontados com a globalização. Temos por isso todos que nos adaptar a essa dinâmica de transformação global. O Estado também tem que ter a responsabilidade de estar afinado com as demandas mundiais. E eu, como cidadão, admito reformas no Estado que compatibilizem as necessidades desse Estado com as demandas do exterior, mas também internas. Veja o desafio que o Ministério da Educação tem que ter para preparar os jovens cabo-verdianos para os desafios que a globalização impõe a todos. Isso passa, por um lado, pelo aumento da escolarização, mas também, por outro lado, pelo conteúdo dos cursos que são ministrados pelas nossas escolas. Veja também o que tem de se passar com a nossa mentalidade. Até aqui éramos todos assistencialistas, dependíamos da ajuda pública ao desenvolvimento, o que já não é mais possível. E, por isso, na busca da nossa autonomia económica, financeira, política, etc., temos de potenciar e explorar a riqueza latente que Cabo

Os nossos processos administrativos, ou burocráticos, se quiser, não são claros. Falta racionalidade, os objetivos pretendidos nem sempre são claros. O regional e o central andam, muitas vezes, de costas viradas.

Verde tem. Um exemplo claro dessa nova mentalidade é-nos dado pelo Ministério do Desenvolvimento Rural, através do agronegócio, mas que eu prefiro chamar de setoragroalimentar, levando as potencialidades a emergir. Hoje já se fala também na descentralização. Cabo Verde, por natureza, já é descentralizado. Cada ilha, por si só, representa uma região. Mas eu olho para a descentralização não como uma “ilha Estado” de uma república federativa.

REGIONALIZAÇÃO Com isso está a entrar na questão da regionalização. É a favor ou contra? Eu sou a favor da regionalização no sentido de descentralizar o processo decisório. Na reforma do Estado tem que haver descentralização. Obrigatoriamente. Como li no jornal há dias – um governo e um parlamento para São Vicente – eu fiquei receoso. A regionalização em Cabo Verde não nos pode levar nem para o regionalismo nem para uma república federativa ou algo que venha dividir Cabo Verde. Precisamos de

uma regionalização que seja capaz de ajudar a integrar todas as ilhas e não excluir quem quer que seja. O desafio passa por escolher entre centralizar e descentralizar. Mas nisso não podemos ir para vias que ponham em causa a unidade nacional. É então pela regionalização administrativa ou plano? Confesso que não estou por dentro desses conceitos, mas de uma coisa eu tenho a certeza, sou contra a regionalização política. E nisso pergunto-lhe: temos o melhor Estado? Entendo que é um pouco centralizado. Há quem diga que é muito centralizado. Centralizado é, não tenho dúvida. Temos graves problemas de fluxogramas. Os nossos processos administrativos, ou burocráticos, se quiser, não são claros. Falta racionalidade, os objetivos pretendidos nem sempre são claros. O regional e o central andam, muitas vezes, de costas viradas. Para a melhoria do que está a dizer, o que é urgente fazer? As coisas já vão acontecendo. O simples facto de você ter sido desafiado a ouvir gente como eu é um sinal disso. A resolução de alguns dos nossos problemas passa pela criação de task forces com objetivos bem concretos para, depois de analisados os problemas, projetar que tipos de lideranças devem de facto ser indicadores para essas situações. Precisamos também de meter essas matérias de análises nas universidades. Se nós queremos um agronegócio rentável devemos introduzir na escola primária matérias como segurança alimentar. A mesma coisa na universidade. É preciso que as pessoas não percam de vista o nosso passado que ficou marcado pelas secas cíclicas e as fomes que disso resultaram. E é porque sofremos por causa do nosso problema com a água que hoje se investe em barragens. E quando as ilhas, todas, estiverem com barragens suficientes, com perfurações, teremos dado um grande passo. [ 63 ]


Municipal, cujos responsáveis não gostam de ouvir isso, mas eu não tenho problema em dizê-lo…

o Paul é um dos concelhos mais ricos de Cabo Verde. O que falta, sim, é fazer com que a riqueza latente se transforme em riqueza real.

O problema da água? Sim, o problema da água. Aqui no Paul a questão da água é um desastre. Mas o Paul é rico em água. É rico em água mas essa água um dia vai desaparecer! É rico em água mas há propriedades que ficam dias à espera de serem abastecidas, à espera que no mês de agosto venham as chuvas. Há muita perda de água no Paul para o mar que a gente não vê sequer, porque corre por debaixo da terra. E há também ribeiras que correm 10 ou 11 meses por ano. Mas paradoxalmente o Paul é um dos concelhos mais pobres de Cabo Verde. Essa é uma análise precipitada. O verde não significa riqueza, nem tãopouco a água significa riqueza. Mas estou convencido que se olharmos de forma mais profunda, o Paul é um dos concelhos mais ricos de Cabo Verde. O que falta, sim, é fazer com que a riqueza latente se transforme em riqueza real. Aqui a culpa é de quem, do poder central na Praia, da Câmara Municipal ou dos próprios paulenses? A responsabilidade é igual para todos. É do poder central, é da Câmara [ 64 ]

Não vai lá buscar o salário no fim do mês. Exato! E, como eu dizia, a responsabilidade é também dos paulenses, a começar por aqueles que aqui podiam investir mas que, por razões outras, preferiram fazê-lo noutros lugares. Faltam aqui empreendimentos para transformar os recursos existentes em bens e serviços. É um problema de empreendedorismo pessoal, que, muitas vezes, só não acontece por causa da pobreza de espírito. Mas no caso ainda das câmaras municipais, estou convencido que quatro anos é insuficiente para quem quer que seja o presidente possa investir de forma séria na transformação do seu município. Sucede que ele já entra no primeiro mandato pensando num segundo mandato ou até com um terceiro mandato. E nisso ele não quer contrariar a opinião de quem o apoia e nem sempre também, na cobrança que lhe é feita, ele consegue cumprir com o que prometeu. A menos, é claro, que surja algum com um outra mentalidade, “eu estou disposto a perder o segundo campeonato mas a minha decisão é valorizar o meu concelho, é capacitá-lo em termos sociais, técnicos e humanos para chegar a um objetivo final”. Deu para ver até aqui que muitos dos desafios que se colocam passam pelo próprio cidadão. Daí a minha pergunta, que cidadania almeja para este concelho e mesmo este país? Uma cidadania participativa e agregadora. Isso passa pelo posicionamento do cidadão no dia a dia, no sentido de ele não se autoexcluir do processo de desenvolvimento da sua terra.

ÁFRICA E EUROPA Há pouco falou de África. Por isso lhe pergunto: como vê a nossa integração sub-regional na CEDEAO? No tempo em que estive na marinha mercante passei parte do meu tempo a tentar essa integração. Sou autor de

um estudo, intitulado “NAGUICAVE Shipping Corporation”, para ligar Cabo Verde e Guiné-Bissau e Europa. Foram comprados vários navios – Santo Antão, Ilha do Komo e Santiago. Nos anos 90, com a privatização, esses barcos foram deitados fora! O nosso desenvolvimento não pode estar desligado do mercado da CEDEAO. São 16 países, com mais de 200 milhões de pessoas. Podemos vender serviços, podemos trazer matéria prima de lá, etc. Perdeu-se tempo imenso na questão do sistema de transportes marítimos. Este é um setor que precisa de análise científica, tecnológica, para poder otimizar os diferentes tráfegos que nós temos. Precisamos estudar a logística dos transportes. Precisamos de criar centros de grupagem e desconsolação de mercadorias. Em Santiago, em Santo Antão, em São Vicente, de forma a que carga seja contentorizada. Ainda estamos a utilizar a carga a granel, que exige muita mão de obra. Sem isso não vamos ganhar a batalha do transporte marítimo com a descontinuidade territorial que nós temos, simplesmente. Temos tirado o melhor proveito da nossa relação com a CEDEAO? Não, estamos muito longe disso. A circulação de mercadoria entre os nossos países passa pelos transportes marítimos. E passa também pelo empreendedor privado. Não podemos esperar só que o Governo venha resolver os problemas. Mas colocase o problema de financiamento bancário. O empresário cabo-verdiano não tem capital para se lançar em investimentos que poderiam ser úteis. Não temos. E as nossas relações com a Europa? Precisam ser aprofundadas. Já temos o acordo de parceria especial, mas precisamos sair disso. Há muita coisa que pode ser feita. As oportunidades são várias e temos de saber tirar proveito disso. Nós, AMIPAUL, mas também a AMIRIBEIRÃO, já somos solicitados para várias coisas na Europa, a começar por Portugal, mas também Finlândia, Espanha, por exemplo, mas também de entidades


É preciso que as pessoas não percam de vista o nosso passado que ficou marcado pelas secas cíclicas e as fomes que disso resultaram. E é porque sofremos por causa do nosso problema com a água que hoje se investe em barragens. E quando as ilhas, todas, estiverem com barragens suficientes, com perfurações, teremos dado um grande passo.

como o PNUD. Por isso é com tristeza que vemos que o nosso trabalho é procurado lá fora e aqui vemos certos atores políticos que passam o seu tempo a tentar nos denegrir. Mas saiba, no dia em que nós extinguirmos o associativismo em Cabo Verde vamos passar, outra vez, a país subdesenvolvido. Qual é a crítica ainda hoje dos partidos políticos? Eles dizem que as associações estão ao serviço dos partidos políticos, que não eles, é claro. É uma análise baixíssima. Fazem inclusive esse discurso em púlpitos ou momentos em que as associações não se podem defender, nem contrapor ao que é dito, muitas vezes, de forma leviana e irresponsável. Por exemplo, são discursos feitos na Assembleia Nacional. E é preciso que a sociedade civil defenda as suas organizações. Veja a Plataforma das ONGs o trabalho enorme que não se está fazer. Veja o Atelier Mar, a AMIRIBEIRAO. São ONGs que trabalham para o desenvolvimento deste país, com trabalho feito, com provas dadas! O que leva os partidos a contestarem o vosso trabalho? Na cabeça deles nós estamos ao serviço de um ou outro partido. Para já, é uma ideia monopolista do poder. Para eles, era preferível manter as FAIMO, controlando o voto. Convenhamos que as associações retiraram às câmaras esse poder. Estas, não poucas vezes, vos acusam de ser poder paralelo. Esta é análise pouco racional da geometria. A geometria ensina que linhas paralelas, por mais que se prolongam, nunca se encontram. É importante que as pessoas tenham respeito por elas próprias. Uma associação não pode ser concorrente a uma câmara municipal. Uma associação não tem meios para isso, nem humanos nem materiais e muito menos estatuto político para fazer isso. O meu amigo da AMIRIBEIRÃO, tem uma intervenção enorme, não é um burocrata fechado no gabinete. Na perspetiva de termos universidades aqui em Santo Antão ele já andou meio [ 65 ]


mundo à procura de apoios para essa ideia, em Cabo Verde e lá fora, por exemplo. Convenhamos, um presidente de câmara gostaria de ter esse protagonismo. Que tenha. Ninguém nos mandou fazer, fomos nós que nos lançamos ao terreno, fomos à conquista. Não ficamos à espera que as coisas nos caíssem do céu. Temos parceiros em Portugal, na Finlândia e em vários outros lugares e países. Este é um novo quadro de atuação social e política em Cabo Verde, suponho. E tem que ser assim, tenham paciência. O resultado do nosso trabalho revestese a favor das populações. Este tipo de atuação associativa, aqui em Santo Antão, é irreversível? Eu penso que sim. E o Estado teria muito a ganhar se pudesse concatenar a intervenção nacional, regional, municipal e local.

CRIOULO, “DIGNIFICAÇÃO” Como vê a questão da língua em Cabo Verde? Eu sou favorável que o crioulo atinja, paulatinamente, o seu status de língua mãe. Isso passa pela oficialização? Sim. E se assim não for, vou continuar a ter a impressão que o crioulo é uma língua excluída, de segundo plano ou subalterna ao português. Eu pergunto: se o crioulo for oficializado que males pode trazer para Cabo Verde? Curaçao tem a sua língua mãe, mas também o holandês, ambas oficiais. Mas, atenção, em Cabo Verde, a par da oficialização do crioulo, é preciso investir também na língua portuguesa e noutras línguas. Temos um parceiro na Holanda, um patrício nosso, o António Silva, um catedrático, que é um dos mentores da universidade em Santo Antão, ligado à agricultura, nos propôs que o inglês seja língua orientadora do curso que ele quer implementar aqui. Tenho dúvidas se isso é possível logo no arranque. Mas o inglês, o francês, o português e o [ 66 ]

… é preciso que a sociedade civil defenda as suas organizações. Veja a Plataforma das ONGs o trabalho enorme que não se está fazer. Veja o Atelier Mar, a AMIRIBEIRAO. São ONGs que trabalham para o desenvolvimento deste país, com trabalho feito, com provas dadas!

crioulo devem ser as quatro línguas que nós deveríamos dominar. Diz que é a favor da oficialização do crioulo. Porém, há quem entenda que o facto de termos vários crioulos isso constitui um obstáctulo. O que pensa disso? Eu suponho que o crioulo, na matriz, é igual. Isso acontece em várias línguas, não obstante as variantes dialectais ou vocabulares que possam existir. O nosso mal em Cabo Verde é pensarmos em crioulo e termos que traduzir isso para o português. Os nossos estudantes sofrem com isso. O nosso pensamento é em crioulo e o pensamento domina, queiramos ou não. Uma das queixas ou reclamações é que tudo que é escrito em crioulo é só no

crioulo de Santiago, meu senhores, é preciso que as pessoas de Santo Antão passem a escrever também. O Luís Romano escreveu parte da sua obra em crioulo de Santo Antão, deixandonos livros extraordinários. Em São Vicente, recentemente, apareceu o Zezim Figueira, que infelizmente nos deixou, que também escrevia em crioulo. Mas o problema da língua em Cabo Verde não deve ser só visto em relação ao crioulo e ao português. É importante que sejamos capazes de dominar também o inglês e o francês. No mínimo.

40 ANOS: “DIGNIDADE HUMANA” Na sua opinião, quais são os principais ganhos de Cabo Verde nestes quase 40 anos de independência? O nosso primeiro ganho é de dignidade humana. Cabo Verde passou a ter um Homem total. Tornou-se possível o princípio de que deves investir em ti até atingires a tua plenitude. O pensamento do cabo-verdiano projetou-se para muito longe. O amor à caboverdianidade e o amor a ser útil são ganhos também que não deixo de lado. Antes da independência foram anos de fome, de seca, hoje estamos a limpar da nossa memória esses anos de fome e seca, para uma construção ainda de longo prazo, com garantias de vida folgada. Outra conquista enorme é a liberdade. Só quem não escuta os debates na Assembleia Nacional, só quem não escuta os debates na rádio, na televisão, poderá dizer que não há confrontação de ideias. Nestes 40 anos assistimos à viabilidade económica do nosso país. Aqui há um grande trabalho que devia ser estudado e projetado para que o cabo-verdiano sentisse o seu valor: construção de infraestruturas. Quem andou pela economia marítima, como é o meu caso, que pôde trabalhar em desembarcadores rudimentares na Boa Vista, São Nicolau, no Fogo, na Brava, no Maio, sabe do que estou a falar. Veja o porto do Porto Novo. Essa infraestrutura, neste momento, está projetada para trabalhar para 500 mil toneladas ano, neste momento


apenas usa 100 mil. É um meio que inegavelmente vai ajudar a desenvolver Santo Antão. Há gente por aí a criticar esse porto que não sabe do que está a falar. Aqui em Santo Antão, sem dúvida, que o setor das infraestruturas conheceu um grande salto que, se bem explorado, há-de nos garantir uma vida melhor, sobretudo se Santo Antão e São Vicente conseguirem funcionar de mãos dadas. No caso de Santo Antão, como vê este momento? Simplesmente espetacular. Santo Antão está no caminho do desenvolvimento. É claro que esse desenvolvimento não acontece amanhã, nem depois de amanhã. Mas nestes 40 anos a ilha portou-se bem? A ilha tem apresentado ziguezagues. O desenvolvimento aqui tem sido irregular. Há momentos bons e outros maus.

FUTURO Quais são os principais desafios que se colocam ao nosso futuro neste momento? O empreendedorismo. Precisamos capacitar a “empresa” Santo Antão. Precisamos vencer o desafio da capacitação humana e pôr sobre a mesa a parceria público-privada. Ainda temos dificuldade em ver o Estado em certas iniciativas, da mesma forma que o privado a avançar para domínios que entendemos ser do Estado. Às vezes, verificamos também que as empresas passam para o Estado responsabilidades que são delas.

FIGURAS Para terminar, nestes quase 40 anos, para si, quem são as figuras que mais se destacaram em Cabo Verde? Em primeiro lugar, tenho uma admiração grande pelo comandante Pedro Pires. Aquela frase dele, dita certamente olhando para si próprio ao espelho, “as pessoas devem ter o sentido da vida e o povo o sentido da História” reflete a estratégia de uma vida.

Tenho respeito pelo presidente Aristides Pereira, mas também pelos maquisards que estiveram na Guiné. Admiro o Corsino Tolentino, que saiu de Santo Antão, abraçou a luta e hoje é também uma referência nacional. Há uma referência que é muito pouco falada mas que merece ser levantada: comandante Herculano Vieira. Na marinha mercante ele é uma capacidade. Ele é que colocou, sobre as orientações de Pedro Pires, é claro, as bases para um sistema de transporte marítimo integrado em Cabo Verde. Trabalhei com ele, logo no início da independência, chegámos a viajar à União Soviética, na mobilização de recursos para uma série de portos, um deles o da Boa Vista. Hoje já ninguém se lembra dele, mas é um homem honesto e de valores humanos bons. E nisto eu não poderia igualmente deixar de citar o nome do Dr. José Maria Neves. Eu disse-lhe isso há dias, numa reunião aqui em Santo Antão, felicitando-o pela sua clarividência na condução de Cabo Verde nestes anos de poder. Normalmente, o caboverdiano e o africano gostam de poder; 15 anos depois, ele, se quisesse, poderia continuar a nos governar, mas prefere abrir espaço para outras oportunidades. É salutar. Acho que todos, de uma maneira geral, que passaram pelos vários governos de Cabo Verde, foram homens sóbrios que deram o seu contributo para o Cabo Verde que hoje temos. Mas não me quero ficar apenas pelos políticos, se me permite. É claro que sim. Nas letras, temos o Dr. Germano Almeida, o José Vicente Lopes… Eu?! Sim, é um ato de justiça, e não é por estar na sua presença que o digo. Mas cito também Vera Duarte, Corsino Fortes, o Arménio Vieira… Dos mortos, cito o Santa Rita Vieira, na música, a Cesária, o Bana, o Ildo Lobo, dos vivos temos a Mayra Andrade e vários outros valores. É muita gente. Felizmente, somos um povo rico em termos de valores humanos. [Pombas, 09-05-14] [ 67 ]


Padre João Augusto Martins

“Somos um povo de muita fé” João Augusto Mendes Martins, 48 anos, nasceu em Pilão Cão, São Miguel Arcanjo, ilha de Santiago. Crise de valores, os desafios de hoje, o homossexualismo e, entre outros, o avanço do islão em Cabo Verde são alguns itens desta entrevista, deste que é, provavelmente, um dos rostos do novo clero cabo-verdiano.

Antes de mais, o que leva um jovem garboso, neste mundo de tentações mundanas, a ser padre? Esse jovem foi criança, está nestas andanças há muito tempo, de modo que é a caminhada de uma vida. Estou a responder a um chamamento divino para cumprir uma missão, que nos confia Jesus Cristo à Igreja. Esta é a minha motivação. Esse chamamento resulta do seu ambiente familiar ou surgiu por si só? Na minha família íamos à missa todos os dias, fui batizado tinha apenas nove dias. E depois os meus colegas da escola primária, mais velhos, vieram para o seminário na Praia, eu também vim, influenciado pelos padres da minha paróquia – os padres espiritanos trabalhavam em Calheta de [ 68 ]

São Miguel, mas também influenciado pelos padres da minha aldeia, Pilão Cão. Havia dois padres que são parentes meus. Para mim, foi natural seguir o mesmo caminho. Sabemos que a Igreja Católica está na raiz da sociedade cabo-verdiana. Os tempos atuais implicam desafios novos à Igreja? A raiz continua lá, mas como uma sociedade aberta, e com o mundo como está, há novos desafios, sem dúvida. Em primeiro lugar, além da Igreja Católica, começam a surgir outras religiões. Depois, a própria missão da igreja, aquela de anunciar o evangelho, tem de anunciar o evangelho a homens concretos. Há situações novas e que precisam de anúncios renovados.


É uma competição, uma concorrência, com outras confissões? Não, longe disso. Nós fazemos o nosso trabalho, sem competir com ninguém. A Igreja sente-se incomodada com outras religiões hoje em Cabo Verde? Não, caso contrário, nós nos sentiríamos incomodados com o mundo. A realidade é a que é. Temos que trabalhar as circunstâncias que temos. A Igreja está instalada em Cabo Verde há mais de 500 anos e quem chega, supostamente, vem para arrebanhar quem já está enquadrado no âmbito católico, não? Sim, porque o espaço é este, Cabo Verde. Hoje temos de aceitar que os cabo-verdianos se repartem pelas mais diversas religiões. Da nossa parte entendemos que é preciso, cada vez mais, que o católico saiba quem é, apure a sua identidade, se defina, porque é-lhe exigida a confrontação com os outros. Aquilo que antes era fácil e compreensível já não é, deixou de sê-lo; há o desafio, para a Igreja, de formar cada vez mais os seus, no sentido de saber o que é que se faz, porque é que se dita, para saber. Como há outras propostas, cada um tem de saber qual é a fundamentação da dele. Isso também decorre da formação do mundo, nada é dado passivamente. Podemos falar num diálogo interreligioso em Cabo Verde? Acho que não. O que há é convivência pacífica entre todas as religiões. Por exemplo, o diálogo doutrinal não existe. Alguma atividade a nível social, que poderia ser comum, também não se tem feito. A assinatura da “concordata” entre o Estado e a Santa Sé altera, de alguma forma, a vossa presença em Cabo Verde? Ratifica, digamos, a prática existente e clarifica algumas coisas, dá à Igreja, por exemplo, a possibilidade de desenvolver certos aspetos da sua missão, nomeadamente o ensino. [ 69 ]


Hoje temos de aceitar que os cabo-verdianos se repartem pelas mais diversas religiões. Da nossa parte entendemos que é preciso, cada vez mais, que o católico saiba quem é, apure a sua identidade, se defina, porque é-lhe exigida a confrontação com os outros.

Tirando isso, não altera, apenas clarifica e dá novas possibilidades.

IDENTIDADE CABO-VERDIANA Do seu ponto de vista, o que é que caracteriza a identidade caboverdiana hoje em dia? (risos) Realmente as identidades crioulas levantam muitas questões. O cabo-verdiano é um crioulo, um lutador, um homem de esperança, ele acalenta essa esperança na sua fé. Os cabo-verdianos têm fé em Deus – a maioria professa a religião católica. Portanto, na maioria dos caboverdianos há essa abertura a Deus que vai justificar e dar uma raiz e isso não pode destruir a esperança do caboverdiano, um povo crioulo com muita fé, com vontade de trabalhar e ser solidário com as pessoas. Esse barro, na sua opinião, foi moldado pela religião católica? Os cabo-verdianos aprenderam a ser o que são, com os valores da cultura [ 70 ]

ocidental, os valores do cristianismo desde o seu início. Essa sua pergunta também se refere a toda a Europa, que é a nossa matriz civilizacional. Portanto, vê Cabo Verde como um produto, uma herança hebraicocristã? Sim. Mas é uma herança que se encarna nos homens. Isso, apesar de haver em nós também determinados valores que não decorrem dessa herança. Por exemplo, a crença em feitiços, em magias, em cartomancias, em curas por forças mágicas. Isso são coisas do universo inteiro, mas a nós chegam mais perto da cultura, do modo de ser, da vivência ou da convivência africana. A nossa raiz não é só hebraico-cristã. Somos ainda uma sociedade sincrética? Sim, ainda não se revelou o que haveremos de ser, nós estamos sendo. E, cada vez, vamos ter novas pessoas que chegam com a sua religião, com a sua cultura, embora haja uma matriz que já se constituiu e é dentro dela que vamos integrando todos os contributos que chegam. Suponhamos que eu fosse um marciano e aterrasse em Cabo Verde, e lhe pedisse em poucas palavras que me definisse o cabo-verdiano? O cabo-verdiano é um povo novo – isso se formos comparar com as grandes civilizações. Tem uma cultura muito aberta, desde a sua origem e também da sua posição no mundo. O caboverdiano é um cidadão do mundo porque pertence a esta terra, fecha-se para se defender, mas também se abre para receber tudo. O cabo-verdiano é também um pouco imprevisível, um homem muito aventureiro, que sabe adaptar-se ao mundo.

SANTIAGO, “ILHA MÃE” Sabemos que Cabo Verde surgiu em Santiago, na Ribeira Grande, Cidade Velha. Na sua opinião, como é que esta ilha em concreto, Santiago, ajudou a definir o Cabo Verde de hoje? A questão é complexa. Esta ilha de Santiago, na sua origem, foi um entreposto de escravos, tornou-se

uma ilha agrícola; do ponto de vista religioso, aqui surgiu e se organizou a diocese que tem o nome da cidade de São Tiago – as dioceses têm o nome da cidade a que pertencem. Foi aqui que surgiu a convivência entre o patrão europeu e o escravo africano. E alguns disseram que, por causa das fomes e do quase isolamento em relação ao mundo, que foi aqui que se formou o crioulo enquanto entidade humana. Portanto, por via de todos esses factores, a ilha de Santiago é fundamental para a construção da matriz cabo-verdiana.

VALORES, “FALTA FAMÍLIA” Falemos de valores. A Igreja Católica está preocupada com os valores em Cabo Verde? Sim. A via da Igreja são as pessoas. Se a vida sente-se ameaçada, se a família tem problemas, se os jovens têm algum desencanto, tudo isso tem a ver com valores. Então, automaticamente, a Igreja se preocupa com isso, e há alguns valores que são muito importantes, nomeadamente, os valores que se prendem com a estruturação familiar; e quando os mesmos são abalados, quando põem em causa a integridade das pessoas, nós nos preocupamos com isso. Há uma crise de valores em Cabo Verde? Sim, só que uns falam de crise, outros em mudança. O certo é que há sempre um momento de adaptação, uma velocidade na transformação social que leva as pessoas a entrarem em crise. Uns ficam em crise porque ficam sem norte, atrapalhados, não sabem o que pensar do futuro, mas também não sabem que sentido dar à vida, são tentados por muitas coisas, por exemplo, os vícios em que os jovens caem. O dinheiro, num ambiente de crise e não só, pode transformar-se num ídolo, a relação interpessoal deteriora-se, portanto, tudo isso faz com que as pessoas entrem em crise. Com a crise há um índice de felicidade que fica afetado, as pessoas deixam de estar satisfeitas. Há certos valores que quando não são acolhidos tornam-se numa infelicidade.


No vosso dia a dia, vocês se deparam com pessoas nessa situação? Sim. Aqui na paróquia de Nossa Senhora da Graça, ou seja, o lado oeste da cidade da Praia, há bairros que nós contactamos todos os dias, e vemos que, às vezes, falta família, sobretudo no caso dos jovens. Falta também comida, uma casa condigna, dinheiro para estudar. Há uma insegurança do homem e da mulher quanto ao futuro. Depois há muitas tentações que não ajudam a fidelizar a estrutura familiar como uma âncora segura para as pessoas.

um deus encarnado, está próximo das pessoas. Desde que o atual bispo [D. Arlindo Furtado] chegou que a sua prioridade é desenvolver uma pastoral de proximidade. Isso ditou a criação de novas paróquias. Aqui na Praia era só a freguesia de Nossa Senhora da Graça, mas se hoje há mais quatro ou cinco paróquias significa que os pastores estão mais ao pé do rebanho. Há uma atenção muito particular às pessoas. O papa Francisco defende que a Igreja tem que cuidar das pessoas. A misericórdia não é só uma piedade à distância, é cuidar de cada um.

O rebanho cabo-verdiano está entregue à sua própria sorte? Não, pelo contrário, há uma atitude própria da missão de Jesus, Jesus é

D. PAULINO X D. ARLINDO Podemos então dizer que nestes quase 40 anos, no que toca à Igreja,

há dois momentos, um de D.Paulino e outro de D. Arlindo? Os ciclos, se calhar, são mais largos. Houve uma altura em que se falava da renovação em Cabo Verde, que veio a seguir à morte dos últimos padres cabo-verdianos formados em São Nicolau, porque o seminário foi fechado, e quando chegou o bispo D. Faustino, um espiritano, ele trouxe confrades seus, nos anos cinquenta, e chamou também os padres italianos, os capuchinhos, o que juntado veio dar um novo vigor à evangelização em Cabo Verde. A partir dessa data, tem havido um esforço de proximidade do pastor às suas comunidades. Imagine que, nos anos quarenta, havia um padre para metade de Santiago e ilha do Maio, que residia em São Miguel, o padre Joaquim Furtado. Hoje há um padre só para o Maio, na Praia temos várias paróquias. Mais tarde, com D. José Colaço, abre-se o Seminário D. José, na Praia. D. Faustino supriu as dificuldades que tinha trazendo padres estrangeiros e mandando caboverdianos para formação fora; D. José Colaço abriu o seminário para formar padres cabo-verdianos. De modo que hoje, no clero cabo-verdiano, há uma grande maioria de padres que são cabo-verdianos. Portanto, tudo isso é uma proximidade que se foi desenvolvendo. D. Paulino veio num contexto, o da independência e da libertação, trazendo com ele a boa nova de Jesus Cristo. Ele é “mandadu pa bem traze libertaçon juntu ku boa nova di ivangelu”. Ele fez isso num período que durou 33 anos, e, tendo em conta as normas da igreja que aos 75 anos o bispo fica reformado, veio um outro bispo, no caso de Santiago, D. Arlindo Furtado. E você está a colaborar com ele. Sim. Fui para o seminário no tempo de D. Paulino e foi ele que me ordenou. Trabalhei com ele como vigário paroquial em Santa Catarina, como reitor do Seminário São José, como chanceler da cúria, e quando veio D. Arlindo ele me pôs na paróquia Nossa Senhora da Graça. De modo que trabalhei com ambos, sim. [ 71 ]


Ser macho e ser fêmea não tem nada a ver com a construção do género que se faz consoante a criatividade de cada um. É essa a teoria [do género] que está na base dessa ideologia. O problema com essa teoria, para a antropologia cristã, é que ela é uma teoria falsa. ” Posso por isso pedir-lhe que me caracterize o estilo de um e do outro? D. Paulino é um homem muito trabalhador. Muito severo consigo mesmo, muito austero, decidido, muito agarrado ao evangelho e é acima de tudo um homem firme, que diz o que tem para dizer. D. Arlindo é uma personalidade afável, aberta, próxima fisicamente, fácil de se aproximar, mas também muito firme nas suas convicções, muito aberto à colaboração de todos, inclusive dos leigos na Igreja. Estamos a assistir a um novo momento da Igreja Católica em Cabo Verde? Estamos a assistir a um momento interessante. Pelo número de padres cabo-verdianos, pelo novo modo de se perceber a Igreja, não só da parte dos católicos que sempre mostraram o seu amor a Jesus Cristo, mas por outros que aceitam que gostar de Jesus Cristo é uma coisa boa. Há um ambiente mais distendido neste momento para a Igreja Católica. Esse momento tem a ver com o momento político e social que estamos a viver ou não? Sim, sem dúvida. O ambiente em que viveu D. Paulino não é o mesmo em que vive D. Arlindo, hoje. D. Paulino viveu num ambiente pós independência, de mentalidade revolucionária, do partido único, da filosofia marxista-leninista, socialista, comunista, que estava em vigor. Havia, inclusive, uma certa vergonha dos cabo-verdianos católicos de viver a sua própria fé. Havia pessoas que tinham feito toda a sua vida dentro da igreja católica mas que, a um dado momento, passaram até a ter vergonha de benzer[ 72 ]

se. A religião era coisa de retrógrados, o ópio do povo, crer que Deus é que criou o homem era algo obscurantista. Essa fase existiu e passou. D. Paulino conviveu com ela, teve de dizer que a verdade do evangelho é algo que dignifica o homem. Mas tudo isso passou e quem defendeu determinadas perspetivas sente hoje vergonha do que defendeu. Hoje há uma abertura, de convivência com todos, há este ambiente de distensão em que vive o D. Arlindo. Falou-me há pouco que falta família, falta dinheiro, trabalho… Isso decorre, suponho, do momento social e económico em que o país está a viver, não? O país é o país que temos. Se houver mais emprego, se as famílias têm mais rendimento estão mais satisfeitas. O momento é do país, mas o momento é também do mundo. A solidariedade entre as pessoas supre questões – uma comida de um dia, por exemplo – mas o desenvolvimento, como dizia o papa Paulo VI, é o novo nome da paz. A paz social vem com todo o desenvolvimento, não apenas no sentido do progresso económico, mas no sentido do desenvolvimento integral do homem. Nós sentimos que existe uma certa falta de paz, um certo mal-estar, porque faltam alguns bens materiais. Falta trabalho?… Sim, por causa disso, as pessoas ficam em apuros. Ninguém sobrevive com rendimento zero. Todos os dias nós gastamos. Há essa dificuldade própria de um país como Cabo Verde, mas nós acreditamos que com a colaboração de todos, cada um fazendo o seu papel, o Governo, a sociedade civil, as igrejas, os cabo-verdianos serão mais e melhor servidos.

Há mais gente a pedir-vos socorro hoje em dia? Sim. À Igreja sempre se recorreu porque acredita-se que a Igreja é caridosa. Recebemos pedidos muito urgentes das pessoas. Há muitos jovens que querem estudar e não podem. Uma família cujo chefe é pedreiro, se não há construção civil, se não há trabalho, se ele passa 15 dias ou um mês em casa, de que é que ele vive? É difícil. Há gente todos os dias que nos bate à porta a pedir trabalho. E quando não satisfazemos ficamos com dor de barriga. Como cidadão, como vê a insurgência dos sindicatos face aos problemas laborais que se colocam no dia a dia a Cabo Verde? Nos direitos conquistados não se deve regredir. É um princípio. Mas já vimos tantas coisas pelo mundo por causa de determinadas situações, inclusive salários que foram reduzidos – caso da Irlanda e Portugal, onde tantos cortes sociais estão a ser feitos… Não é antagónico o desenvolvimento das empresas com os direitos dos trabalhadores. É possível compaginar. Hoje em dia, em Cabo Verde, ter um trabalho fixo e garantido é já uma grande sorte neste mundo do desemprego. Diante das reivindicações, quando há condições de as satisfazer, elas devem ser satisfeitas, mas uma coisa tem de ser clara: as negociações têm de ser transparentes para que toda a gente veja que quem está a ganhar não está a ganhar assim tanto e que quem está a receber está a ter alguma coisa. Portanto, é preciso esse equilíbrio para que não haja grandes assimetrias sociais, com uns a ter muito e outros a não ter quase nada ou mesmo nada. Digamos que é sempre bom reivindicar,


sendo certo que nenhum patrão vai dar se com isso vai para a bancarrota. Ainda assim, é bom negociar e é por isso também que há duas forças – há a força do sindicato e há a força do patronato, tendo o Governo no meio para mediar, portanto, que discutam, que negoceiem. A democracia permite isso. Anda a faltar diálogo entre esses parceiros? De certa forma, sim. Se aquele que tem mais força quer impor a sua posição, aquele que hoje tem menos força vai se preparar para o dia que tiver mais força. Ou seja, tudo isso é um processo. E nisso é bom que os sindicatos sejam livres, tenham voz, que não estejam a funcionar por ideologias e lutem pelos direitos dos trabalhadores. Mas os outros que lá estão também estão no seu direito de dizer “até aqui é possível, a partir daqui já não é possível”. Conquanto lutem com palavras, com argumentos, para nós está tudo bem.

DESAFIOS A CABO VERDE Para si, quais são os principais desafios que se colocam hoje em dia a Cabo Verde para o seu desenvolvimento? Eu não sou governante. Certo, mas é cidadão e lida com pessoas com problemas. Como cidadão, gostaria de ver um Cabo Verde com mais produção de riqueza e na hora da distribuição ela deve ser melhor repartida. Mas este é um desejo que depende de muitas coisas. De quê, por exemplo? Num país muito frágil e muito vulnerável, dependemos muito dos outros. É preciso convencer os outros a virem aqui, com capital, investirem e ganharem algum dinheiro. O grande desafio é sermos um pouco mais ricos mas também um pouco mais esclarecidos. Isso em todos os sentidos, para podermos fazer boas escolhas. O cabo-verdiano precisa ser um pouco mais rico, também de ter a mente bem esclarecida, para fazer boas escolhas. Num mundo cada vez mais plural,

em que as propostas são cada vez mais variadas, em todos os sentidos, sobre a orientação pessoal, sobre a constituição da família, sobre a vida, sobre o caminho a seguir. Podemos não ser felizes só por ter mais dinheiro. É preciso saber quem somos, o que estamos a fazer, no fundo, precisamos saber o que é o homem. Cada um tem de responder a isso.

A TEORIA DO GÉNERO Nessa busca de resposta, suponho que isto passa pela educação, formação das pessoas… Como vê o ensino, a educação, neste momento? É uma educação na qual aprendemos a ciência, e na formação profissional aprendemos a técnica. Mas há sempre um modelo de sociedade que está por trás da educação, mesmo que não esteja no programa. Ela passa, muitas vezes, de forma subtil. Nós somos uma sociedade aberta, vêm muitas coisas de fora que nos passam, às vezes, despercebidas e quando nos damos contas há muito terreno minado. Está a referir-se a quê em concreto? Eu refiro-me à teoria do género. Ela é ensinada nas escolas, aparece como uma teoria normal, inofensiva, portanto, tudo isso são desafios para a própria escola, para os pais, para a sociedade, para todos os agentes da sociedade que convivem com a escola. A escola não pode fazer tudo, é preciso que a família esteja atenta ao próprio filho, porque este quando vem da escola traz o que aprendeu. Mas qual é o problema da teoria do género? O problema é que nós não nascemos homem e mulher. Ser macho e ser fêmea não tem nada a ver com a construção do género que se faz consoante a criatividade de cada um. É essa a teoria que está na base dessa ideologia. O problema com essa teoria, para a antropologia cristã, é que ela é uma teoria falsa. Para a Igreja, o homem e a mulher não são iguais? Eles são iguais na dignidade. Anatomicamente são diferentes, sabemos. Por isso a minha

dificuldade em perceber o que me quer dizer. Anatomicamente são diferentes, mas o senhor vai ser acusado de homófobo se for dizer que eles são diferentes. Mas é o que eu penso! Então tenha cuidado, para não ser acusado de estar a discriminar e que por isso está a ser contra os direitos humanos. O senhor, por exemplo, considera possível haver relação sexual entre dois homens? Acha isso normal? Mas isso nada tem a ver com homem e mulher… Tem sim, porque tem a ver com a família. Diga-me, é possível haver família, casamento, entre duas mulheres? Não é possível haver relação sexual entre duas mulheres. Pessoalmente, isso de duas mulheres andarem juntas sempre me fez confusão. Eu sou heterossexual e não me vejo noutro tipo de relação. Mas eu já vi o papa Francisco mostrarse condescendente com o homossexualismo. Condescendente não, acolhedor! Como quiser, antes dele isso era impensável. Ele é acolhedor do homossexual. Para a Igreja, Jesus Cristo, deve-se acolher todas as pessoas. Mas devese ser claro com essa pessoa, de que há uma caminhada a fazer, para que a sua mente esteja de acordo com o seu corpo. O homem é corpo e alma. Não podes ter um cérebro, uma construção mental, que não esteja de acordo com o teu corpo. O corpo não é uma construção de ninguém. Há um desequilíbrio quando aquilo que crias está em desacordo com aquilo que és como corpo. Mas esse problema já se coloca a Cabo Verde, na sua opinião? Coloca-se, sim, senhor. O senhor não viu a parada gay em São Vicente? Qualquer dia vão levar para o Parlamento alguma proposta para se aprovar casamentos de homossexuais. Acho que não vamos escapar disso. [ 73 ]


Ah, é?! Sim. Talvez ache estranho que estejamos a falar sobre isso, mas o objetivo dessa ideologia passa por infiltrar-se em tudo que seja formação de novas gerações para que tudo apareça como sendo normal. Há pouco falamos da educação, pois, a educação pode servir como canal para se meter muitas coisas, de modo que todos devem estar atentos. Tem de haver uma boa educação, mas uma educação que os pais querem, que a sociedade quer, uma educação que forme o homem segundo uma matriz que temos de discutir qual é. Tudo isso que está a dizer é verdade, mas também agora não vamos exterminar os homossexuais. Ah, isso não. Eu tenho por mim que o normal, o natural, é que um homem e uma mulher se juntem para viver maritalmente, mas se dois homens ou duas mulheres resolvem fazer o mesmo, isso é um problema de foro pessoal deles. Mas maritalmente você acha possível? Eu não sei! Eu também estou a ser apanhado por essa “coisa”. Eu resolvi o meu problema casando com uma mulher… (risos) O senhor fez muito bem. É um desafio que temos todos. Veja como é que pela educação isso tudo entra subrepticiamente. Os defensores de certas teorias têm um lobby terrível, têm uma capacidade incrível para fazer o seu caminho, mas nós também estamos aqui para fazer o nosso. A Igreja também tem o seu lobby. Em tudo é preciso democracia, diplomacia, procurar influenciar, estar atento. Para um ladrão, ladrão e meio.

CRISTIANISMO X ISLAMISMO Da mesma forma que há a questão do homossexualismo, há a questão do islamismo. Como vê isso? Nós estamos abertos aos nossos irmãos africanos que chegam com as suas religiões. O islão hoje está em Cabo Verde e vai crescer. Mas certamente todos estão atentos, o Governo, a segurança do país, para que não cheguemos ao [ 74 ]

fundamentalismo religioso, seja ele qual for. Alguns países são Estados islâmicos, têm determinados princípios e organização da vida social que não se compaginam com o nosso modo de viver na sociedade. Acredita num choque de civilizações ou de religiões em Cabo Verde? Isso não. Até porque há experiências seculares entre o islamismo e o cristianismo de coexistência pacífica. É o caso do Senegal, aqui perto. Só que a religião pode ser instrumentalizada por ideologias. Até agora não há nenhum choque de civilizações ou de religiões em Cabo Verde. O islão é um desafio que se coloca a Cabo Verde, aos católicos sobretudo? Sim, é algo que se vai colocando a todos os cabo-verdianos. Primeiro, para nós, para o esclarecimento doutrinal, porque é que um católico não se vai tornar num muçulmano, por que não vai acreditar que Allah é que é o deus?… Nesse sentido, sim, é um desafio novo. Temos de explicar porquê nós acreditamos na Santíssima Trindade. Daí a minha pergunta antes em torno da competição, da mesma forma que um islamita pode converter um católico, o contrário também pode ser possível. Para já, temos de jogar na defesa, no sentido de conservar bem os nossos. E depois, pela vivência e pela percepção do nosso modo de vida, podem converter-se ao cristianismo. Só que a possibilidade de mudança de religião não é admitida em certos países. Há países onde a conversão é proibida. Tu não podes sair do islamismo para entrares numa outra religião. Se sais tornas-te num infiel e como tal deves ser morto. Esse tipo de procedimento não deve chegar a Cabo Verde.

CABO VERDE NA CEDEAO Cabo Verde passou nos últimos anos a receber gente da costa ocidental africana. Como vê a integração de Cabo Verde no mundo, a começar pela CEDEAO? Nós somos África, isso está fora de dúvida. É uma coisa sem sentido pensar


O islão hoje está em Cabo Verde e vai crescer. Mas certamente todos estão atentos, o Governo, a segurança do país, para que não cheguemos ao fundamentalismo religioso, seja ele qual for.

só porque estamos na Macaronésia somos Europa. A nossa integração africana é vantajosa para nós, do ponto de vista económico. Também é vantajosa do ponto de vista da nossa definição identitária. Agora é preciso ver se temos capacidade de ir lá, de fazer alguma coisa que seja rentável. Nós estamos próximos de África desde o início do mundo, mas que vantagens é que tiramos? Do ponto de vista comercial, há muito caminho a fazer. Do ponto de vista eclesial, a parte ocidental do continente já pertenceu à diocese de Cabo Verde, que ia até à Costa do Marfim. Os bispos daqui mandavam padres para fazer missão lá. Portanto, essa cooperação existiu na História. Mas isso se perdeu. Se perdeu em termos de envio de missionários. Mas, em termos de reestruturação da Igreja, isso continua porque pertencemos à mesma Conferência Episcopal, Mauritânia, Senegal, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Ainda do ponto de vista eclesial, há uma cooperação a desenvolver-se. Embora estejamos distantes aqui, no meio do oceano, este é um desafio para nós também, para nos integrarmos na Igreja

Universal através da nossa religião porque é uma “orientação” de Roma para que os bispos sejam integrados, não podemos estar isolados. Na sua resposta anterior manifestou dúvidas quanto aos benefícios comerciais. Entende que não temos sido capazes de tirar benefícios da nossa integração na CEDEAO? Não sou autoridade, mas pelo que vejo qual é o cabo-verdiano que pode fazer um grande investimento na CEDEAO? Temos que ter capacidade para tal e isso eu não vejo. Então é só conversa a nossa integração na CEDEAO? Eu não digo que seja só conversa. Digo que é um desejo, que, para se materializar, tem que ter recursos e pernas para andar. Que não seja só uma intenção. Mas pelo que tenho visto ultimamente há pelo menos uma aproximação mais estreita, por exemplo, com o Senegal, com a GuinéBissau ela já é histórica. É muito mau para nós darmos a impressão que estamos aqui, que somos uns africanos especiais e por isso não estamos unidos a eles. Por isso, é muito boa diplomacia mostrar que somos amigos, que somos irmãos, que sofremos com eles, que lutamos com eles, que somos parte desse mundo que é África, neste caso África ocidental. Isso é muito importante para nós. Mesmo perante o mundo ficaríamos mal se assim não fizermos.

DIÁSPORA Sabe que os cabo-verdianos estão espalhados pelo mundo e o mundo hoje é uma aldeia global. Como vê o contributo da nossa diáspora para o desenvolvimento de Cabo Verde? É uma sorte para nós. Ainda hoje há famílias que dependem das remessas do pai ou da mãe que está emigrada. Foi uma questão de sobrevivência que nos levou a emigrar. Para nós, é natural sair pelo mundo para encontrar a vida. Hoje em dia, há situações de lamentar entre os cabo-verdianos que estão fora porque vivem com uma integração deficiente, há gerações novas que não estão bem integradas, que não sabem quem são, que são marginalizadas nas [ 75 ]


sociedades onde estão. Nós já tiramos muito proveito da emigração, mas naquilo que pudermos, aqui, fazer por aqueles que estão mal devemos fazer. Por exemplo, o que se faz com os nossos patrícios que estão em São Tomé e Príncipe é de louvar, é um muito bom sinal. Veja Portugal. Os bairros onde vivem os cabo-verdianos em situações degradantes é algo que nos toca. Antes da crise mandaram muita coisa para aqui, hoje talvez seja necessário perguntar o que é preciso fazer por eles. Nós, enquanto Igreja Católica, apesar de um clero relativamente reduzido, o bispo tem mandado para a diáspora padres para assistirem cabo-verdianos. Em Brokcton e Boston, nos EUA, um ou outro caso em França ou Luxemburgo, também, com a preocupação de fazermos a nossa parte, de modo a que fé continue nesses nossos irmãos. Mas temos que perguntar, para não ser apenas “vem a mim…”, o que é possível fazer pelos nossos irmãos que estão fora. Arranjar alguma coisa é sempre possível. Ou seja, a Igreja cabo-verdiana tem ela própria a ideia de que Cabo Verde está espalhado pelo mundo? Sim, Cabo Verde está espalhado pelo mundo. Porque é um facto que, do ponto de vista evangélico, os povos têm capacidade de evangelizar. Nos países da diáspora, quando uma comunidade católica mantém viva a sua fé é um acontecimento, uma força de vida. Na Holanda, a paróquia de Nossa Senhora da Paz, formada sobretudo por cabo-verdianos, é das mais vivas de Roterdão. Eu não sabia. Pois é, isso é um testemunho para os holandeses, que têm uma igreja a desmoronar-se. A paróquia de St. Patrick, em Boston, a paróquia de St. Edith Stein, em Brokcton, são paróquias muito vivas. Apoiam-se uns aos outros, isso, do ponto de vista da fé e de testemunho, deu aos americanos uma dinâmica jovem, solidária, comunitária, de se ser cristão. Evangelizam esses países também. Nós, nesse ponto de vista, incentivamos o espírito missionário dos cabo-verdianos que estão na diáspora. [ 76 ]

Com o declínio demográfico na Europa, o que não seria de Portugal, que está a envelhecer cada vez mais, se não fosse a imigração. O que seria de certos países se não fossem os imigrantes que vêm do Leste? Ainda não se disse que determinado modelo civilizacional deu resposta à felicidade do homem. Se calhar são aqueles que são considerados atrasados que vão evangelizar, que vão construir cidades, que vão fazer coisas fantásticas para os outros que estão a morrer. Falou-me da presença da Igreja, no terreno, nas comunidades caboverdianas, mas a presença do Estado ela é suficiente ou é deficitária? Eu não conheço muito. Citou antes o apoio que o Estado dá aos cabo-verdianos em São Tomé e Príncipe. Isso eu vejo na televisão, além disso, eu e a ministra das Comunidades, Fernanda Fernandes, somos amigos, e ela me diz o que vai fazendo. Sabemos que, muitas vezes, são as associações de caboverdianos lá fora que muito fazem no sentido de estar junto das comunidades, sobretudo junto dos jovens, no sentido de evitar que caiam na delinquência ou na marginalidade. Mostram que esses jovens também podem estudar, podem ir para a universidade, para serem úteis aos países onde estão. O Estado não pode fazer tudo. Quem é que vai dizer a um jovem em Damaia que ele deve estudar, que ele deve ser forte, que se crer em Deus é melhor para ele? Portanto, todos têm de fazer algum trabalho. Pessoalmente, não sei se o Estado poderia fazer muito mais daquilo que faz. Hoje há jovens de São Tomé e Príncipe que vêm estudar em Cabo Verde nas nossas universidades, é uma coisa bonita. Mas e os outros jovens com problemas, na Europa e noutros lugares, que incentivo têm para estudar?

REFORMA DO ESTADO Fala-se na reforma do Estado. Quando ouve falar disso o que é que lhe vem à cabeça? Eu penso que é a organização de todos os serviços que o Estado presta para que seja mais eficiente, para que seja realmente um serviço para o cidadão,

para que se tire do sistema tudo aquilo que pode emperrar um verdadeiro serviço, para que o Estado, como organismo funcione bem, eliminando a corrupção, o clientelismo, acelerando os processos para a eficiência. É isso, para mim, a reforma do Estado. E a atuação dos atores políticos, como é que a vê? Os nossos políticos são irmãos, somos nós. Cada sociedade tem os políticos que merece. Eles não vêm de fora, constituem uma classe que está lá para discutir, para aprovar leis, para captar o sentido da sociedade e respeitar esse sentido segundo certos princípios para os quais têm responsabilidade. Consomem recursos, recebem, por isso têm que ser honestos, trabalhar bem, confrontar ideias, amar realmente o povo porque é isso deve acontecer. E eu acredito também que eles vão crescendo nesse serviço ao outro. Num meio como o nosso, pequeno e onde os recursos não são muitos, todos deviam ter a preocupação de fazer com que os recursos que se gastam sejam realmente bem empregues, que não haja desperdício e que se sirva melhor o país com o que nós temos. Falta essa consciência aos nossos políticos? Os nossos políticos, veja, são todos jovens. Temos deputados e governantes muito jovens… Falta maturidade então? Não é isso, todos vamos aprendendo e amadurecendo. E nisso tem que haver sempre alguém que seja mais responsável, que dê o tom, que mostre o caminho, que eduque para o altruísmo, que tenha capacidade de ouvir, alguém que seja pai. Essa pessoa tem que ser alguém muito responsável. E esse sentido de serviço tem que estar sempre presente. E depois há alguns princípios basilares que devem existir na cabeça de todos. A justiça – nós temos que ser justos! A verdade – ela tem que existir! A transparência, a não discriminação do outro, é preciso dar a possibilidade ao outro, saber que ele é uma pessoa e que por isso merece respeito. Portanto, há princípios basilares que às vezes, numa luta pela sobrevivência, não nos damos conta muito bem. O


político, o funcionário, tem de saber que ele tem de ser digno do cargo ou da função que ocupa. Que tem de prestar um bom serviço, que o outro que vem ao seu encontro é uma pessoa, que merece tudo. É neste sentido que todos nós temos que crescer. Eu também sou padre desde os 25 anos e, agora que tenho 48, já aprendi muita coisa.

REGIONALIZAÇÃO Um dos desafios que se colocam à nossa atualidade política é a regionalização. O que pensa disso? Já li alguma coisa. É economicamente eficiente? É caro de mais? É criar mais cargos para haver mais tachos? Ou é um factor desenvolvimento, de mobilização, das capacidades regionais? É bairrismo, para ficarmos cada um num lado? Tudo isso é preciso analisar. Se serve para o desenvolvimento, se é viável economicamente, se une os caboverdianos num projeto de país, é bom. Se é só bairrismo e mais funções isso não será bom. De todo o modo, regiões já existem em Cabo Verde. Existem polos de desenvolvimento naturais, por causa da sua capacidade de gerar recursos e de atrair pessoas. Todos sabem que o Sal, e agora a Boa Vista, por causa do turismo, São Vicente e Praia são centros importantes. Para haver um bom desenvolvimento, para haver o despoletar de cada ilha, de cada região, as coisas, às vezes, não vão por decreto. É preciso que haja condições objetivas, de transporte, de ligação entre as pessoas, capacidade de colocar um produto no outro lado, da possibilidade de nos comunicarmos, de resolver facilmente um problema que nós temos. Portanto, há muitas coisas que precisam de ser feitas até para que a regionalização seja efetiva. A regionalização pode ser uma estrutura que depois não tem consequência prática se não houver a criação prévia de um conjunto de redes e interação entre as ilhas. Portanto, eu sou pelo que vier. Da sua observação pessoal, Cabo Verde deve ou não regionalizar-se? Eu não sei dar uma opinião certa. Aqueles que têm o poder para aprovar a regionalização que vejam isso

bem, para que não seja apenas uma birra, uma moda. Somos um país pequeno, não chegamos a um milhão de habitantes, que região poderemos formar com uma população tão reduzida? Nós, igreja, temos duas dioceses em Cabo Verde – Santiago e Mindelo – para melhor servir os fiéis. Mas esse não foi um desafio que a regionalização natural de Cabo Verde vos impôs? Sim, sem dúvida. Temos duas dioceses e várias paróquias, mas quantos municípios temos hoje em Cabo Verde? Já temos 22 municípios, um serviço ao pé das pessoas. Entende então que a municipalização do país deveria responder aos anseios que a regionalização impõe? Depende. As câmaras são municipais, não vejo uma região só com uma câmara. Veja, quantas regiões é que vai haver em Cabo Verde? Eu já ouvi de tudo um pouco. Há quem fale numa região formada por Santiago e Maio, outra por Fogo e Brava, outra por Santo Antão, São Vicente, São Nicolau e outra ainda por Sal e Boa Vista… Mas também já ouvi gente de Santo Antão a dizer que não quer a sua ilha atrelada a nada, defendendo que cada ilha deve ser uma região. Nós, por natureza, somos ilhas. Por isso, a haver, a regionalização deve ser para trazer alguma mais-valia. O desafio daqueles que têm alguma responsabilidade nesta matéria é o de mostrar que aquilo que propõem é realmente capaz de resolver os problemas das pessoas. Do nosso ponto de vista, falta discussão. Qualquer posição amadora ou afetiva, sem fundamentação, não tem validade.

CRIOULO, “UM ASSUNTO SÉRIO” E a oficialização do crioulo, como a vê? É um pouco a mesma coisa, se calhar mais séria ainda. (risos) Os linguistas têm dito que é necessário e a pensar nisso já aprovaram o alfabeto – ALUPEC. Mas há o problema das

variantes que é preciso respeitar até fixarmos o que é realmente o cabo-verdiano. É compreensível, até porque a língua é um instrumento de comunicação, entre nós, mas também é uma força de comunicação com o exterior. Mas agora diga-me: o estrangeiro que vem aprender a nossa língua tem de aprender todas as variantes? Há algumas coisas que são naturais e outras que não, dependem da determinação política. Uma variante impõe-se pelo número de pessoas, pela economia que se gera em determinados mercados, enfim, há tudo isso. E, depois também, há a história da língua que pode dar o seu contributo. Mas parece que nem todos vão ficar contentes com uma língua que se entender como sendo o caboverdiano, se a sua variante não for tida em devida conta. Vê então a língua como um factor de divergência entre os caboverdianos? Sim. Porquê, por exemplo, o caboverdiano vai ter mais palavras do badio do que as outras variantes? Há esse risco. Mas há todo um processo democrático, de discussão, de decisão. Esse caminho é preciso percorrer. É preciso que os linguistas expliquem por quê uma determinada palavra tem de ser assim, no cabo-verdiano oficial, e outras palavras não fiquem. Esta é uma discussão científica também. Só que além da ciência, neste debate, vai entrar muita emoção. Mas um dia teremos que decidir o modelo a seguir para definir o que é a língua caboverdiana. Acredito que, sim, haveremos de chegar lá. Na sua ação pastoral usa mais o crioulo ou o português? Eu felizmente cresci numa paróquia onde o padre – um açoriano – utilizava o crioulo de Santiago para a missa. Isso na paróquia de São Miguel. Era uma coisa excelente. Curiosamente, nas paróquias onde os padres eram caboverdianos não se utilizava o crioulo. Era o pároco português, nesse caso açoriano, a utilizar o crioulo. Era uma coisa estranha. Portanto, eu cresci com a liturgia em crioulo, por isso eu utilizo muito o crioulo. Mas confesso que já o utilizei mais. [ 77 ]


Ou seja, está a adotar o exemplo dos padres cabo-verdianos. É verdade, estou a ficar estragado. É um trabalho a fazer traduzir a Bíblia para o crioulo. Mas não é fácil. Para se fazer uma boa tradução é preciso conhecer as línguas originais. O grego e o hebraico, quem é que conhece em Cabo Verde? Algumas experiências já foram feitas, com o apoio de uma confissão ou outra, mas essa tradução é mesmo crítica? Mas há muitas músicas sacras em crioulo. Ainda nenhum bispo nos disse para não utilizarmos as traduções que nós mesmos fazemos durante a missa, portanto, neste aspeto, não há nenhum constrangimento disciplinar para o uso do crioulo. Aliás, várias vezes vi pronunciamentos de D. Paulino Évora em crioulo. É verdade, ele mesmo fez as suas pregações em crioulo. Mas atenção, o ler em crioulo não significa que logo se perceba tudo. Como é que vais traduzir a palavra holocausto para o crioulo? Vais ter que dizer holocausto explicando o que é o holocausto. Portanto, não é só o facto de utilizares o crioulo que tudo está explicado, que tudo se torna claro. Mas, sem dúvida, o crioulo é um instrumento de aproximação, útil para a evangelização.

CABO VERDE, 40 ANOS Disse-me que tem 48 anos, portanto, quando Cabo Verde se tornou independente tinha cerca de sete/ oito anos. Fez a sua vida sempre aqui ou esteve fora também? Fiz a escola primária na minha aldeia e fiz o ciclo preparatório, como se dizia, no Seminário São José – eu sou da última fornada daqueles que estudaram lá dentro mesmo. Fiz o curso geral no liceu Domingos Ramos, fiz dois anos de filosofia e teologia aqui na Praia por decisão de D. Paulino, e depois mais dois anos de estudos superiores teológicos em Coimbra. Vim e trabalhei oito anos como padre. Em que ano? Fui ordenado em 1991. Até 1994 trabalhei em Santa Catarina, como vigário paroquial. De 1994 a 1999 estive [ 78 ]

no Seminário São José como reitor. De 1999 a 2001 estive em Roma a estudar ciências sociais. Em 2005 fui fazer um complemento em licenciatura na Universidade Católica de Lisboa, porque quando fiz os estudos ainda não davam licenciatura. Entre outras funções, agora estou na Paróquia Nossa Senhora da Graça. Ou seja, tem uma experiência interna e externa também. Nos seus tempos lá fora o facto de ser caboverdiano significava alguma coisa para os seus colegas? Estudei num colégio internacional em Roma onde éramos mais de 40 países. Fazíamos os atos religiosos juntos, mas o diálogo entre nós era muito enriquecedor para mim, permitiu-me conhecer a realidade de outros países. Da Índia, dos países de África quase todos. Eu sentia-me diferente porque ia de uma realidade pequena, os meus colegas eram de realidades vastas, com muitos bispos e sacerdotes, mas também com muitos problemas. Mas o ser cabo-verdiano, o facto de Cabo Verde estar próximo da Europa, me tornava uma coisa estranha para alguns dos meus colegas. Para os meus colegas africanos, a Europa era lugar distante, não era o meu caso, que já tinha estudado na Europa – Portugal e Roma. Eu estava automaticamente no meu ambiente. Os que vinham da China tinham dificuldades em adaptar-se, os da Coreia a mesma coisa. As outras realidades apresentam situações tão diferentes que é a mesma Igreja Católica que tem de enfrentar. É a mesma Igreja que se encarna em todo o mundo. Diga-me, ser cabo-verdiano para si o que é, um destino? Para mim, é uma doação, porque nasci cabo-verdiano. Mas compreendi, pela minha educação e pela minha fé, que sou um cabo-verdiano, que sou um homem, que sou uma pessoa. Isso torna-me muito mais forte, como caboverdiano, aproxima-me das pessoas de todo o mundo. Ser cabo-verdiano, para mim, é um dom. O que une os cabo-verdianos, na sua opinião? Une-nos a nossa terra, a nossa língua, em todas as suas variantes, a nossa

Para mim, é uma doação, porque nasci caboverdiano. Mas compreendi, pela minha educação e pela minha fé, que sou um caboverdiano, que sou um homem, que sou uma pessoa.


vivência comum, de afetos e de amor. Une-nos também o sofrimento. Cada um sente-se unido, a seu modo, a Cabo Verde. Isto de ser cabo-verdiano, de viver num país com dificuldades, mesmo para aqueles que são mais abastados, é um dom. Ter algumas dificuldades, para viver, dá um tom de luta ao cabo-verdiano, torna-o numa pessoa muito especial. Só que as dificuldades também não podem ser extremas. Porque se são tão extremas levam a pessoa a ficar em baixo, de não ter auto-estima nenhuma. Portanto, nós estamos a falar do cabo-verdiano cheio de brio, um homem forte, descendente de escravos, que luta pela sua sobrevivência, num país que está a desenvolver-se. Mas qual é motivo por que alguns têm auto-estima em baixo, metem-se na droga, suicidamse, sentem-se infelizes? Eles também são cabo-verdianos. O cabo-verdiano não é só o foguetão que está no espaço. Também há alguns destroços, há algum sofrimento e alguma dor. Isso também une a pessoa a Cabo Verde para estar próxima do seu semelhante. Como vê a evolução de Cabo Verde ao longo destes anos de independência? O país dos seus sete/oito anos e o país de hoje, o que mudou de mais relevante? Sim, eu era criança. Eu lembro-me que o partido – PAIGC – era muito forte. O nosso professor fazia de todos nós pioneiros. Eu cantei os dois hinos nacionais, o português e o caboverdiano, os “Heróis do mar” e o “Sol suor”, ao pé da bandeira, de sentido, a cantar o hino, um e outro. E agora canta o atual também, suponho. Com mais dificuldade, mas também canto. Eu vejo muita transformação em Cabo Verde. Da minha aldeia – Pilão Cão – para virmos à cidade da Praia tínhamos de levantar de madrugada. Tínhamos de caminhar até um determinado lugar para apanhar o carro. Hoje não, praticamente temos o carro à porta. Há progresso material, progresso educacional. Quando

vim para Praia estudar a quinta classe, não havia escolas em Pilão Cão, foi depois que um missionário decidiu abrir uma escola. Felizmente, havia aqui o Seminário São José que acolhia muitos que vinham do interior. Portanto, do ponto de vista da educação, houve uma grande evolução. Do ponto de vista do desenvolvimento – infraestruturas e tudo mais – houve também uma grande transformação. Cabo Verde tem andado para o melhor. Hoje, há mais roupa, há mais sapatos, há telefones, há, em suma, um crescimento grande. É otimista em relação ao futuro de Cabo Verde ou é apreensivo? Eu sou otimista. Já houve tempo de alguma apreensão. Cabo Verde sempre foi marcado pelo risco, isso desde a sua colonização. Nos primeiros anos da independência, sobretudo pelos mais velhos de então, havia um certo temor, insegurança, quanto ao futuro. Mas, sem dúvida, a independência foi um ponto de viragem. De tal modo que os que construíram este Estado, com grande mérito, e que puseram este país de pé, arranjaram todos os motivos para todos acreditarmos na viabilidade deste país. Hoje, não há dúvida que temos um lugar no mundo. Vejo que está orgulhoso desse percurso. Sim!

FIGURAS Para si, quem são as figuras que marcaram estes quase 40 anos de independência de Cabo Verde? Do ponto de vista religioso, um homem que marcou a todos é D. Paulino Évora. Do ponto de vista político, queira-se ou não, foram aqueles que estiveram a governar este país. Quer citar nomes? Começo por apontar o presidente Aristides Pereira, o Pedro Pires, que foi primeiro-ministro 15 anos e depois, mais tarde, presidente da República durante 10 anos, sem esquecer todos os ministros que deram o seu contributo para o desenvolvimento deste país. Depois, na fase da

democracia, destaco o presidente António Mascarenhas Monteiro e neste momento temos o primeiroministro José Maria Neves, há quase 15 anos no poder, sem dúvida, um feito político. Antes dele, destaco também o Dr. Carlos Veiga, que assegurou a transição para a democracia. Houve um momento importante, para nós, que foi a visita do papa João Paulo II, que chegou num momento charneira. Estava cá? Eu estava em Portugal. Dizia que ele veio num momento charneira, porquê? Ele veio em Janeiro de 1990. O muro de Berlim tinha caído, em 1989. Em 1990, as coisas aqui estavam a ferver, no ano seguinte tivemos as primeiras eleições multipartidárias. João Paulo II, como homem do leste, foi um grande defensor dos direitos humanos, da liberdade, as palavras dele eram muito escutadas em todo o mundo, inclusive em Cabo Verde. E agora temos o papa Francisco, que veio da América do Sul, “do fim do mundo”, como ele próprio disse. Ele está a atrair muita simpatia pela sua pobreza, que assumiu logo no nome, e pela sua misericórdia. É aberto a todos. Tem dado a todos os cristãos, a todos os católicos, um estímulo para trabalhar a sua fé. É fã dele? Eu não sei se fã é a palavra correta. Como padre, tenho de seguir a sua diretiva. Mas não o faço constrangido. Faço-o com gosto. E fico entusiasmado com os ensinamentos que dá, estimulado a seguir as diretivas que ele dá. Entre Francisco e Bento XVI qual deles prefere? Prefiro os dois. Como homem de doutrina, de fundamentação teológica, Bento XVI, está visto, é dos maiores teólogos que assumiu a cátedra de Pedro. Mas este papa, Francisco, como pastor próximo, é um fenómeno, que conquistou todos. É um homem que veio na hora certa. [Cidade da Praia, 15-03-14] [ 79 ]


Maria Odette Pinheiro, 71 anos, médica e teóloga nazarena, aposentada. Natural de São Vicente, viveu largos anos nos EUA. Integra várias entidades da sociedade civil, autora da Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes defende, nesta entrevista, que Cabo Verde precisa de uma elite. E que faltou, a este país, “um momento de verdade e reconciliação” com a sua história recente.

Odette Pinheiro

“Faltou-nos um momento de verdade e reconciliação nacional” [ 80 ]


O seu exercício na sociedade civil decorre da sua cidadania ou é algo que ultrapassa isso? Em parte decorre da assunção da minha cidadania, mas também da minha ligação muito forte à religião, à maneira como eu entendo o cristianismo, um cristianismo ativo na sociedade. Vivi 20 anos nos EUA, quando voltei, vim com um sentido de missão, devolver o que eu sentia que devia a Cabo Verde, tanto na parte espiritual como social. Assim que cheguei, colaborei o máximo que pude, nomeadamente com a Câmara Municipal de São Vicente, ajudei a combater a epidemia de cólera de 1995, fazendo com que os jovens nazarenos interviessem, indo casa a casa, dar formação às pessoas. Assim fiz porque este é que é o nosso dever na sociedade. Sempre foi nazarena? O meu primeiro contacto com os nazarenos foi aos 11 anos e aos 13 tornei-me, de facto e de coração, nazarena. Essa sua opção foi um desvio pessoal ou toda a sua família era nazarena? A minha mãe e os filhos também, o meu padrasto é que não. Ele dizia-se católico, mas um católico de boca. Fomos aliciados ou convidados por um tio meu, que estava hospedado em nossa casa na altura; eu, indo, encantei-me. Era ainda o tempo em que a missa era em latim. Eu já tinha feito a comunhão, portanto, eu já tinha uma ideia de Deus, mas um deus papão, pronto a castigar-nos por qualquer coisinha que a gente fizesse. Fez os estudos liceais em Cabo Verde?… Sim, no Liceu Gil Eanes, depois fui para Portugal estudar medicina, em 1960. Entretanto, fiz uma tese laboratorial, no fim, convidaramme para assistente da Faculdade de Medicina de Coimbra, em química. Fui assistente até 1974, nesse mesmo ano, foi o meu exame à Ordem dos Médicos, especialista em análises clínicas. Nessa altura a parte teológica estava a puxar-me e fui aos EUA fazer mestrado em divindade.

Vai aos EUA em1974 e lá fica até quando? Até Janeiro de 1994, portanto, 20 anos. A minha ideia original era voltar para Cabo Verde e criar um laboratório privado de análises clínicas, coisa que não havia, e ensinar no seminário. Fui em Janeiro e em Abril, a 25, deu-se a mudança em Portugal e as coisas ficam complicadas. Em Cabo Verde, com a independência, deixa de ser possível clínica privada, com isso fui ficando nos EUA. Nisso, por imposição do sistema americano, tive de tirar uma especialidade, pelo que optei por genecologia obstetrícia. Lá abro a minha clínica privada. Nos EUA em que região vive? O meu mestrado teológico fi-lo no Seminário Teológico Nazareno em Kansas City. Lá fiz também a especialidade em genecologia obstetrícia em dois anos e depois fui para a zona de Boston, para o Boston City Hospital. Aí lida com cabo-verdianos, suponho. Sim, na verdade, mudei-me para essa região por causa dos cabo-verdianos. Como eu tinha um tio em Brockton, soube depois que havia uma vaga numa clínica privada, lá me estabeleço. Você é a primeira mulher, caboverdiana, a atingir o patamar teológico que apresenta? Eu creio que sim, não conheço nenhuma outra. Ao regressar a Cabo Verde, em 1994, com que sociedade se deparou? Em 1994 não notei, ainda, qualquer mudança substancial, tirando a liberdade e a democracia. É preciso ver que eu tinha estado cá em férias antes, várias vezes. Venho em 1982, depois em 86, a partir dali passo a vir de dois em dois anos. Na altura o ambiente era um bocado repressivo. Em 82, por exemplo, as pessoas tinham medo de falar na rua. Em 94, já com a mudança, o que mais estranhei foi o aumento da pequena criminalidade. Havia já alguma falta de autoridade, um certo descaso para isso. E, desde então, as coisas têm vindo a ganhar mais proporção.

Disse-me que decide regressar por causa do seu sentido de dever em relação a estas ilhas. Em primeiro lugar, esse sentido decorre do quê? Olhe, eu não quero usar um chavão – “o amor à terra” (risos) – mas acho que é isso mesmo. A minha formação fezme sentir sempre um grande amor a Cabo Verde. Vou para o curso mas com a ideia de no fim voltar. Como explica isso? Não sei.

CABO-VERDIANO, “NÃO SEI…” Para si, o que é ser cabo-verdiana? Sempre tive um grande orgulho em ser cabo-verdiana. Vejo as pessoas a falarem em identidade e acho que isso é um falso problema, que foi criado, não existia antes. Lembrome dos meus colegas que foram estudar também em Portugal, todos tínhamos um orgulho tremendo em sermos cabo-verdianos. E não pensávamos nisso em termos de sermos África, Europa, ou seja lá o que for. Éramos cabo-verdianos e achávamos que éramos o que devíamos ser. Ser cabo-verdiano, para mim, é poder escolher o melhor daquilo que o mundo ou a vida me deu. Mesmo estando 20 anos nos EUA nunca me senti americana, mas procurei tirar o melhor proveito da cultura ou da sociedade americana. Recorreu à nacionalidade americana? Sim, tenho passaporte, que fiz quando tive a necessidade de o ter. Se não tivesse essa necessidade não o faria? Não. Tanto mais que só tive passaporte americano em 1985, 11 anos depois de estar a viver nos EUA. Daí a minha pergunta: por que não ficou por lá? Não fiquei porque senti o chamado da terra, mas o chamado do seminário também. Eu nunca quis ser funcionária da Igreja do Nazareno – esta é uma coisa interessante – entendi que a minha dádiva à igreja era uma opção. [ 81 ]


Essa postura sua decorre do contacto que teve com a sociedade americana ou sempre pensou assim? A minha opção surgiu antes de eu ir para os EUA. Quando terminei os meus estudos liceais, eu tinha notas que me permitiam concorrer a uma bolsa do Estado, mas, como nessa altura o bolseiro ficava obrigado depois a um determinado tempo de trabalho para o Estado, decidi nunca concorrer a esse compromisso. “Eu quero ter as minhas opções sempre em aberto”, era a minha posição. A sua educação é mais caboverdiana ou é, acima de tudo, uma educação nazarena? É uma educação de uma certa elite cabo-verdiana, embora não goste da palavra elite – há diferença entre elite e elitismo. Por altura da independência, tentando destruir o elitismo que aqui havia, acabou-se por acabar com a elite. Sou bisneta de judeu, Brigham, de Santo Antão. Cresci numa família com fortes valores. Ainda hoje, detesto falta de pontualidade, por exemplo. Há pouco disse-me, a propósito da identidade, que nós não temos problemas de identidade. Por que diz isso? Eu vejo muito na comunicação social, nos livros, gente a falar de identidade, para mim, sem razão de ser. Na luta pela independência, com a ideia de puxar Cabo Verde para a África, tentaram como que manipular o cabo-verdiano. Isso decorre da tal africanização dos espíritos [defendida por Amílcar Cabral]. Nisso procurou-se convencer o caboverdiano que ele não era aquilo que ele devia ser. Foi um erro tremendo. Quebrou-se o tal orgulho que o povo cabo-verdiano tinha. Tentou-se virar a roda da História para trás, quando nós nunca podemos girar a roda da História para trás. Cultura é aquilo que eu mamei no leite da minha mãe. Que ninguém me venha dizer que a minha cultura é isto, é aquilo, ou aqueloutro. A minha cultura é aquilo com que eu cresci, é o que eu sou hoje, é o que eu trago desde a raiz. Então para si o que é a identidade cabo-verdiana hoje? Hoje, embora com o risco de generalização, o que nunca é bom, a [ 82 ]

identidade cabo-verdiana é a cultura do prazer imediato, a cultura dos festivais, a cultura do barulho, que é uma das coisas que precisamos ver, até por ser um problema de saúde pública. Em qualquer concentração humana, com aparelhos sonoros altos, as pessoas estão a comprometer o seu aparelho auditivo. Há menos civilidade hoje? Sim. Civilidade e civismo foram por água abaixo há muito tempo. Nós que moramos aqui [à frente da Escola Técnica do Mindelo] sofremos, pessoas que passam à noite, de madrugada, de manhã, regressando da Laginha, falando ou cantando em voz alta. É o tempo todo. Mas essa não é também a maneira de ser do cabo-verdiano? Com certeza! A ideia que as pessoas têm é que ser cabo-verdiano hoje é serse desinibido, não haver limites, cada um faz o que lhe apetece, sem respeito pelo outro. Chegamos a um ponto em que já não sei se será possível mudar este quadro comportamental. A não ser, é claro, que se tomem medidas bem drásticas sobre este tipo de coisas. Uma lei contra o barulho foi aprovada recentemente. Eu estive a ler essa lei, mas ela é tão super-técnica que não sei se haverá alguém, em Cabo Verde, capaz de entender o que lá está. Os termos em inglês que lá estão levam qualquer polícia que ler aquilo a dizer “o que é que eu faço com isto?” Quem fez esse diploma foi à coisa mais complicada que podia haver lá fora e copiou. Mas falávamos de identidade. A identidade cabo-verdiana hoje é uma identidade confusa. Sobretudo agora que tenho uma relação maior com Santiago, chego ao homem da rua e pergunto-lhe o que é a identidade cabo-verdiana, o que é ser caboverdiano, o cabo-verdiano que dizem ser é um cabo-verdiano com o qual eu não me identifico. Eu não sei realmente o que é a identidade cabo-verdiana, quando antes eu me identificava plenamente com o meu povo. Antes, o caboverdiano era um homem respeitado em todo o lugar que ia. Era conhecido

por ser trabalhador e honesto. Hoje não. Eu sei que todo o mundo mudou, não fomos só nós, mas mudamos pela negativa muito mais do que devíamos ter mudado. A sua decepção não decorre do facto de você ter criado uma visão lírica do cabo-verdiano? Eu creio que não. Eu reparo muito que as pessoas ficam escandalizadas quando sai a notícia de que um adulto violou uma criança, que um adulto fez isso e assado, como se isso só acontecesse hoje em Cabo Verde. No meu caso não é isso. Nessa parte sexual eu sei que o que acontece hoje aconteceu sempre, mas num sentido diferente, não era tanto a violação, o sexo forçado, em si. Melhor, era e não era. O que havia muito é que os homens poderosos praticamente “compravam” as miúdas. Aliás, os próprios pais “vendiam” as filhas, menores, por dificuldades. Nessa altura não se achava que fosse pedofilia, nem violação. Portanto, aqui, as regras têm mudado bastante. Havia então uma banalidade do mal, uma naturalidade do mal? Sim, sem dúvida. Acho que isso vem desde o nosso tempo da escravatura. São resquícios que nos ficaram. Do ponto de vista de moral sexual, Cabo Verde foi sempre muito fraco. Veja a poligamia não oficializada. Mas, ao mesmo tempo, havia um cuidado – ainda que hipócrita – , uma certa ressalva social em relação a esse tipo de comportamento. Fazia-se, mas não era plenamente assumido. Deixou de haver controlo social entre nós? Isso eu não sei, o que sei é que as pessoas deixaram de ser interventivas. Mas isso não é um paradoxo? Vivemos em democracia onde é suposto as pessoas poderem falar dos seus problemas abertamente. Temos esse regime, mas o que se verifica é que as pessoas deixaram de falar. Antes da independência, apesar do salazarismo e do colonialismo, tínhamos umas forças vivas que não deixavam de se exprimir. São Vicente,


D.R.

Eu lembro-me, quando voltei, em 1994, a emoção que foi ao ver crianças a caminho da escola, com batas, calçadas, isto é, sem andar muito, quando no passado tínhamos que caminhar quilómetros para ir à escola…

por exemplo, tinha umas forças vivas incríveis. Veja a questão do liceu, quando se procurou encerrar o liceu. Veja a questão da água da JAIDA. Foi um grupo de cidadãos que foi ter com o presidente da câmara para dizer “nós ouvimos que em Israel produz-se água potável a partir da água do mar…” Na altura, o presidente da câmara era o Teixeira de Sousa e eu sei disso porque o meu padrasto fez parte desse grupo de cidadãos. Havia aqui umas forças vivas que não engoliam tudo. Mas era uma elite também, um grupo reduzido. Era um grupo reduzido, mas as elites têm sempre que existir. Certo, mas não é o facto de um pequeno grupo poder exprimirse que todos passam a dispor do mesmo direito. O que quero dizer é que com o partido único se quebrou a espinha dorsal que havia. Hoje é difícil conseguir uma união para alguma coisa importante. Aqui em São Vicente ainda se mobiliza mais, em Santiago creio que se mobiliza menos. Vi isso aquando da carta dos direitos do doente. Em São Vicente conseguimos casa cheia, na Praia não.

VALORES, “TUDO INVERTIDO” No seu ponto de vista, como estamos hoje de valores? Eu acho que estamos com os valores invertidos. Um outro problema, este resultante da democracia, é o

consumismo. No partido único havia muita dificuldade nas importações, com a abertura, tudo se abriu, tudo tornou-se disponível desde que haja dinheiro, e as pessoas começaram a comprar por comprar. Grande parte dos cabo-verdianos hoje vive acima do seu rendimento real. Os quadros que chegam, ou que acabam por se formar, querem logo atingir o topo, não querem levar o mesmo tempo que os seus pais levaram para atingirem onde estão. As gerações de hoje têm muito mais pressa. Exato. O princípio da dignidade das pessoas, hoje, se espalma mais no ter do que no ser. Mesmo aquilo que era errado e se fazia havia a noção de que isso era moralmente inaceitável, hoje não. Veja o caso das grávidas nos liceus. Nós abrimos em demasia. E creio que isso acontece, em parte, por causa dos políticos. Ah, sim?! Sim. Hoje em dia faz-se aquilo que vai ser popular. Existe a noção de que fazendo o certo vai se desagradar a muita gente. Nessa questão das alunas grávidas é pela lei ou contra ela? Quando o ministro Victor Borges apresentou o problema, eu nessa altura estava no Conselho da Educação, fui cem por cento a favor. Aliás, a lei não está a ser posta em prática. Logo que entrou a ministra seguinte [Filomena Vieira] ela deixou de ser posta em prática.

As pressões foram muitas, como sabe. Lá está, por pressão política, o receio de perder votos. Na lei a aluna não era prejudicada, era protegida, porque aquele ano (gravidez) não contaria para a prescrição, portanto, o seu direito de estudar estava salvaguardado. O segundo ponto importante era a mensagem que era mandada à comunidade estudantil é que não é adequado que uma miúda de 13, 14 ou 15 anos, estar grávida. Aliás, em nenhum ponto de vista é adequado, quer social, quer biologicamente. Podem até dizer-me que no passado começava-se a ter filhos cedo, mesmo assim, hoje, com a ciência, sabemos que não é adequado. É ainda pela aplicação dessa lei? Sim, sou. As alunas grávidas devem ser suspensas, até terem o seu filho e depois regressar.

INDEPENDÊNCIA, 40 ANOS Estamos a caminhar para os 40 anos da independência. Olhando para São Vicente e para Cabo Verde, no geral, que apreciação faz? Cabo Verde, no geral, está melhor. É incontestável que a independência foi uma bênção. Isto no sentido económico, social, na melhoria das condições de vida. Eu lembro-me, quando voltei, em 1994, a emoção que foi ao ver crianças a caminho da escola, com batas, calçadas, isto é, sem andar muito, quando no passado [ 83 ]


Sempre tive um grande orgulho em ser cabo‑verdiana. Vejo as pessoas a falarem em identidade e acho que isso é um falso problema, que foi criado, não existia antes. tínhamos que caminhar quilómetros para ir à escola, isto para não falar daqueles que não puderam estudar por falta de meios. Aqui a melhoria foi importante. Para si, quais são os principais ganhos? Os principais ganhos foram na saúde. Também na educação e na instrução. Na formação do homem total, não, falhamos redondamente. Um pedagogo defende que a escola ensina, mas quem educa é a família. A escola e o lar têm que ir lado a lado. Os nossos lares, as nossas famílias, hoje, são frágeis. Temos o problema de os pais terem que estar fora de casa para garantir o sustento da família, os filhos ficam por sua conta. Isto acontece até na classe média. Nos EUA vi muitos casais com horários diferentes de trabalho para, precisamente, um estar presente na educação dos filhos. Há quem diga, inclusive, que a comunidade cabo-verdiana nos EUA está em crise porque os pais saem cedo, os filhos ficam por própria conta. Isso eu verifiquei. E na minha igreja eu falava muito acerca disso. Eu pastoreei uma igreja de cabo-verdianos nos EUA, em Brockton. Havia pessoas, mesmo crentes, que tinham um trabalho de dia e outro à noite. Um outro problema da nossa comunidade é a primeira geração não saber inglês. Os filhos tornam-se o elo entre os pais e o sistema americano. Para ir a uma consulta, o pai ou a mãe leva um filho, como intérprete, quem atende o telefone em casa são os filhos, de maneira que os filhos ganham, muito cedo, uma sobranceria muito grande sobre os pais. Depois, o pai já não sabe disciplinar na maneira que sabia em Cabo Verde, da maneira que [ 84 ]

foi educado e aprendeu. Por qualquer coisa, o filho ameaça chamar a polícia, nisso, os pais ficam completamente desorientados. Os filhos ficam completamente independentes numa idade muito prematura e largados à sua própria conta.

DESAFIOS FUTUROS Em relação ao futuro, quais os principais desafios que se colocam a Cabo Verde? Em primeiro lugar, a qualidade da educação – secundário e superior. Há quem defenda no primário também. Eu diria do jardim de infância, realmente. A parte formativa, disciplinar, tem de começar no jardim. A criança precisa de se exprimir, mas precisa também aprender, desde pequenina, que há limites. Um dos nossos problemas em Cabo Verde é que já não conseguimos transmitir a ideia de que há limites para tudo. Outra coisa que precisamos ensinar à criança é que quando ela ultrapassa os limites há consequências. Ela tem de interiorizar desde cedo que há causa e há efeito. Na parte técnica, nomeadamente em disciplinas como a matemática, o nosso currículo está desfasado em relação ao exterior. Parte das dificuldades dos nossos alunos lá fora é por causa disso. Tive alunos, no seminário, já com o 12º ano, e que não sabiam usar um mapa. Tive um aluno que nunca tinha usado um dicionário, tive eu de lhe ensinar a fazê-lo. Portanto, há várias coisas que precisam de ser vistas. Mesmo sabendo que vou ser politicamente incorreta, tenho de dizer que andamos por aqui a chamar universidades o que nada tem a ver com universidade. Uma universidade não deve ser uma escola de formação

profissional para dar um canudo ao aluno no final do curso. Universidade é muito mais do que isso. Universidade tem de ser um lugar para dar a um aluno uma formação universal. Ainda ontem vi o Sr. Primeiro ministro [José Maria Neves] a dizer “agora que já trabalhamos para a massificação do ensino superior!…” Ouvi isso e fiquei com os cabelos em pé. Massificar o ensino superior?!! Será que ouvi bem? Repare, já estamos naquela de que cada concelho quer ter a sua universidade. Mas é isso mesmo. Para mim, muitas dessas universidades ou institutos que aí estão não passam de liceus superiores. O professor está lá a regurgitar, grande parte dá umas horinhas aqui, outras horinhas ali, e estamos a chamar a isso de universidades. E eu pergunto, que tipo de pessoas estamos a formar? Cabo Verde precisa de formar bons profissionais, que sejam capazes de trabalhar aqui e lá fora. Temos que assumir que Cabo Verde não vai poder empregar toda a gente, nunca pôde, nem vai poder fazer isso, principalmente com essa “massificação” de universidades. Estamos a criar indivíduos frustrados, que têm uma licenciatura mas que não sabem o que fazer com ela e nem onde fazer com ela. Mas ao mesmo tempo, o que me está a preocupar, é que nós estamos com uma megalomania incrível. Em que sentido? Estamos a pensar em coisas grandiosas sem resolvermos os problemas de base que nós temos. Isso tem a ver com a nossa graduação a país de rendimento médio? Não. Estamos a viver uma megalomania semelhante à que tivemos no fim dos anos noventa,


com o MpD. Foi-nos prometido que seríamos a Singapura deste lado do mundo, ouvi que a Boa Vista iria ter 70 mil habitantes, etc. Havia a ilusão de viver em grande quando não tínhamos dinheiro para isso, o que nos levou à bancarrota. Agora vamos formar cientistas para a África, estamos a olhar para 2030, 2060, quando temos problemas candentes, hoje e agora, aqui, que estamos a procurar resolver e não estamos a conseguir. Diante disso pergunto-lhe: temos os melhores políticos para governarem esta terra? Eu creio que não. Os nossos políticos precisam ser realistas, precisamos de políticos que têm de fazer o que é certo e não se preocuparem nem com a reeleição nem com o partido que ganhar. Eu sei que não se pode viver sem partidos, mas entendo que os partidos políticos têm sido um grande inimigo de Cabo Verde. Ah, sim!? Sim, neste ponto eu acho que sim. De vender ilusões, é isso? Sim, de vender ilusões, com todos eles a procurar eternizar-se quando chegam ao poder. Mas isto vale para todo o mundo. Tudo começa pela conquista do poder e, lá chegando, ninguém quer sair dele. Pode valer em todo o mundo, mas no caso de Cabo Verde entendo que devemos mudar o sistema eleitoral, que sejam as pessoas a indicar os seus deputados e não os partidos – o sistema americano, por exemplo. Não o sistema que temos em que o partido tem uma lista de gente, uns que servem e outros que não servem, só amigalhaços. Devemos mudar isso. Olhe, o Brasil tem um sistema igual ao americano, e lá tem-se isso como a mãe da corrupção política. Portanto, não há sistemas perfeitos. Certo. Mesmo assim, precisamos fazer alguma coisa. Eu, por exemplo, sou absolutamente contra a disciplina de voto. O deputado deve ser responsável perante a sua consciência e o povo que o elegeu.

REFORMA DO ESTADO Isto leva-me a perguntar-lhe, que Estado para Cabo Verde? Um Estado muito mais pequeno, portanto, muito menos Estado. Temos ministérios que é para acabar com eles num instante. Para quê um ministério do ensino superior e outro da educação num país com 500 mil habitantes? Para quê um ministério dos negócios estrangeiros e ao mesmo tempo um das comunidades? As comunidades ficaram muito satisfeitas tendo o seu ministério. Eu acredito que realmente ficaram muito satisfeitas, mas qual a necessidade real disso? Continuando, no Parlamento, poderíamos ter muito menos deputados. Precisamos sobretudo de uma Assembleia com gente mais bem preparada. Há uma deputada lá, que confidenciou a uma amiga minha, que não tem absolutamente nada para fazer. O quê?! (risos) Sim, disse que não tem absolutamente nada para fazer, que está lá por estar, a subir a mão e a descer a mão, na hora de votar. Mas quando digo “menos Estado” não é no sentido de Estado intervencionista ou não intervencionista. Precisamos de um Estado muito mais forte na regulação, está instalado o “deixa estar”, o “deixa fazer”. A administração pública é um horror, as câmaras municipais são uma desgraça. Para se conseguir qualquer coisa que seja é um desastre. Nada funciona. Hoje em dia há um relaxamento para a incompetência que é uma coisa incrível. Nos transformamos num país de inconsequentes? Sim, claramente. A mediocridade está instalada. Antigamente, entrava-se por baixo e ia-se subindo até chegar lá em cima. Hoje chega um licenciado, não tem experiência de vida, nem administrativa, mesmo assim, é posto lá em cima. Que reformas urgentes este país precisa? Precisamos de uma reforma quanto à incompetência. Na administração

pública isso é claro. É preciso que as pessoas sejam responsabilizadas pelos erros que cometem. Que as coisas sejam por mérito. Ouvi há dias que agora as coisas vão ser por concurso. E digo: depende dos concursos. Antigamente, na administração, tudo era por concurso. Vivemos hoje numa sociedade em que não se exige nada a ninguém.

REGIONALIZAÇÃO Um outro tema na ordem do dia é a regionalização. Qual é a sua opinião? A questão da regionalização está a ser empolada. Está-se a falar na regionalização como sendo a panaceia universal para Cabo Verde. A minha experiência com as câmaras municipais já me deixa com um pé atrás. Se com a regionalização viermos ter pequenos reizinhos, cada um no seu lugar, a fazer o que quer, também não vai dar coisa boa. Portanto, a regionalização tem que ser muito bem pensada. Eu acredito, sim, na desconcentração e na descentralização. Há uns anos, quando vim dos EUA, trouxe um carro comigo, e descobri que para fazer o despacho toda a papelada tinha que ir fisicamente a Praia para ter que ser despachada. Há tempos apareceu gente na televisão a reclamar aqui, em São Vicente, que para fazer um bilhete de identidade esse documento tinha que vir da Praia. A centralização é uma das coisas que tem funcionado contra Cabo Verde e contra a Praia em particular. Aquela cidade, como está, caótica e desgovernada, é em grande parte por culpa da centralização. Os jovens formados, a começar pelos bem formados (e não por esses da “massificação”), vão todos para Praia porque na periferia não têm chances de encontrar emprego. Está tudo na capital. Procuro não ser bairrista, sou caboverdiana em primeiro lugar, procuro ver as coisas com um certo equilíbrio, mas realmente a centralização deu cabo de nós de uma maneira incrível. E por “nós” entenda Cabo Verde. Não é só São Vicente que se queixa da centralização. As outras ilhas – Fogo, Santo Antão, São Nicolau, Maio, etc. – também se queixam. [ 85 ]


Temos de criar maneira para as pessoas ficarem na sua terra, fazendo-a prosperar, em vez de todos sermos atraídos para um centro, a capital. Por causa da centralização, somos hoje um corpo definhado com uma cabeça enorme. É a macrocefalia, uma das grandes tendências em África, capitais enormes com o resto entregue ao atraso. Precisamos despertar para isso.

CEDEAO, “MUITO NEGATIVA” Falou em África. Como vê a nossa integração na CEDEAO? Muito negativa. Primeiro, somos 500 mil e eles são não sei quantos milhões. Depois, há a livre circulação, tratado a que Cabo Verde não devia ter aderido. As pessoas que nos procuram deviam vir com um propósito claro e com visto. Mais do que isso, deviam ser seguidas de perto. Nós não vamos poder abranger os imigrantes que ficam em Cabo Verde. É verdade que o caboverdiano já se tornou muito fino, já não quer trabalhar na construção civil, e muitos africanos estão a fazer isso. O INE mostrou há dias que os imigrantes não têm problemas de emprego. Pois, não! O imigrante quer trabalhar e o cabo-verdiano quer emprego. Os anos 90 deram às pessoas a ideia que todo o mundo podia ter escola e um emprego de colarinho branco sentado atrás de uma secretária, de preferência, num gabinete com ar condicionado. Aliás, na última campanha para as legislativas, havia um cartaz que dizia “onde está a minha bolsa de estudo?” Bolsa de estudo para quê? É claro para um emprego, depois, atrás de uma secretária e gabinete com ar condicionado. Andamos a criar ideias falsas – bolsas de estudo para toda a gente, imagine! – quando o trabalho manual é tão digno como outro qualquer. Estou aqui há vários dias à espera de um canalizador para vir me mudar uma válvula e eu não encontro. Em desespero de causa, de tanto esperar, procurei eu mesma mudar, mas não consegui.

PERIGO ISLÂMICO Ainda a propósito da nossa integração sub-regional, disse que [ 86 ]

a livre circulação de pessoas que a preocupa. O resto não? Outra coisa que me preocupa é a islamização de Cabo Verde. Também me preocupa a criminalidade, essa história da nota preta e outras coisas que trouxeram para aqui. Apesar de todos esses países serem mais ricos do que nós, eles lá têm muito mais pobreza do que aqui. Não sou a favor da livre circulação de pessoas e bens, aliás, a circulação é de pessoas, bens eles não trazem. Não temos investidores senegaleses, nigerianos, ganianos, nada que com isso se pareça. Vimos pelo último censo que a maior parte é da Guiné-Bissau, houve aquelas crises, muitos vieram para cá refugiados e acabaram por aqui. Com a Guiné-Bissau temos algo em especial, mas com o resto não. Não temos condições de absorver todo aquele que quiser vir. Aqui, mais uma vez, falta a fiscalização do Estado. Eles só deviam entrar tendo trabalho, ocupação, não tendo, deviam sair depois de X tempo, é o que está na lei, mas é aquela coisa o Estado, também aqui, não funciona. O Estado não faz o que devia fazer. Ainda a propósito da islamização, teme um choque de civilizações aqui? Preocupa-me sobretudo o retrocesso social, a violência e o terrorismo. Até há pouco tempo, pelo menos, o cristianismo e o islão puderam conviver em harmonia no Senegal, por exemplo, agora é que começa a haver sinais de problemas. Infelizmente, temos verificado que o islamismo tem vindo a radicalizar-se cada vez mais. Eu não confundo o islamismo com Al Qaeda, essas coisas, mas deime ao trabalho de ler todo o Alcorão e de retirar uma lista de umas 12 páginas de citações que são a favor da violência… Mas também encontramos isso na Bíblia. Mas não no mesmo sentido. E isso pode ser explicado. Na Bíblia há uma revelação progressiva. Houve um tempo, do Velho Testamento, a que se pode chamar o tempo das conquistas, em que a violência foi usada para a conquista da Terra Prometida, mas depois houve toda uma evolução e

nisso chegamos ao Novo Testamento, à Revelação Perfeita de Deus em Cristo, que agora é completamente diferente. O que encontramos agora é a lei do amor, do respeito pelo outro, de procurar o bem do outro, em que o tipo de violência existente no passado não mais pode ser aceite de maneira alguma. Não encontramos isso no islão. O que as facetas mais extremistas do islão estão a fazer é dizer aos outros é: “Vejam, este é que é o verdadeiro islão!” É por isso que encontramos extremistas contra os próprios muçulmanos, tidos como mais brandos. É o que aconteceu, há bem pouco tempo, no Mali. Túmulos de profetas islâmicos foram totalmente destruídos porque eram moderados. Temos a eterna guerra entre os xiitas e sunitas em vários países do Golfo Pérsico. Exatamente. A ideia é: “Nós é que somos o verdadeiro islão”. Porque está no islão “decapitar o infiel se ele não quiser converter-se”. Eu não confundo,


mulher andar de rosto destapado. E se houver uma lei, eles sabem que assim é, só podem vir aqui sabendo que nós, em Cabo Verde, não admitimos que as mulheres andem de rosto tapado. Eu não vou para a Arábia Saudita exibir a minha Bíblia. Não posso e não me deixam. A única intolerância que eu aceito é a intolerância contra a intolerância. Nós vamos ser vítimas da nossa tolerância quando toleramos demasiado da parte dos intolerantes. Há quem diga que este é o grande problema do Ocidente. Sim, este é o grande erro da Europa, que está condenada a ser islamizada nas próximas gerações. Os guetos islâmicos lá são terríveis. Há lugares em que a sharia já é usada.

EUROPA, “APANHADOS”

mas vejo o potencial de violência que existe mesmo no islão não extremista. Outra coisa é o retrocesso social. Em que sentido? Nós olhamos para o planisfério e notamos três coisas. Vemos, mais ao Norte, onde há o cristianismo protestante, depois onde está o cristianismo católico e vemos, no Sul, onde há o islão. E nisso notamos onde está o progresso. O cristianismo protestante, muito mais cedo que o católico, liberou o homem para a ciência, para o avanço, porque a ideia é que Deus é a favor do homem. Quando Deus disse ao homem “dominai a terra”, não foi para esventrar ou para fazer o mal que o homem ecologicamente tem feito, mas para conhecer a terra, dominar os seus segredos e pôr isso ao serviço da humanidade. A ciência é uma coisa extraordinária. É mostra da capacidade que Deus deu ao homem para estudar e conhecer os segredos deste mundo maravilhoso em que nós coexistimos. Isso fez o cristianismo

evangélico, protestante. Pelo contrário, o cristianismo católico ainda ficou com a mão apertada. É só ver Portugal, Espanha, Itália, os tempos de Salazar e de Franco, com a igreja ajudando Salazar e Franco, é ver a Grécia com o cristianismo ortodoxo. E veja o que se passa ainda hoje no mundo árabe. Eles têm petróleo e só petróleo, e veja lá qual é a condição da mulher. Quase objeto. Este é o meu medo. Pouco a pouco, vão entrar e com eles virá o retrocesso. Prevendo por isso certas situações devia haver em Cabo Verde, desde já, uma lei contra mulheres andarem de rosto tapado aqui. Mas ainda o problema não se põe, é um ou outro caso muito raro. São raros mas eu já vi. Em São Vicente, confesso que não vi, mas na Praia já vi. Deve haver uma lei contra isso. É contra a dignidade da mulher. Em Cabo Verde somos uma civilização em que a mulher e o homem são iguais, e essa igualdade passa pelo direito da

E as nossas relações com a Europa, como as vê? Com a cooperação, a União Europeia tem sido uma grande ajuda para Cabo Verde. Uma das melhores coisas que nos aconteceu, e isto devemos ao Gualberto do Rosário, é a paridade do escudo com o euro. Demos um grande salto. Mas vejo com apreensão, no âmbito da parceria especial, termos que receber os emigrantes clandestinos, idos de Cabo Verde, e que aqui forem apanhados. Isso é perigoso para nós. Não sei como é que vão provar que o fulano partiu de Cabo Verde. Precisamente, se não puderem provar que o sujeito saiu de Cabo Verde não têm nada que o mandar para aqui. Isso não sei. Nós temos sido muito fracos com a UE. Ao contrário do partido único, em que éramos mais nacionalistas, hoje, Cabo Verde tornouse muito subserviente em relação à UE. Veja o que se passa com o acordo de pesca, os milhões que o Senegal conseguiu e o que nós conseguimos. O que Senegal conseguiu está a milhões de anos luz de nós. (risos) Os barcos europeus vêm, pescam o que querem, inclusive tubarões, porque há muito pouca fiscalização. Como recebemos ajudas, temos sido subservientes com a UE. Nós precisamos deles mas eles precisam de nós também, [ 87 ]


Uma das coisas que o PAIGC devia ter feito, sobretudo, quando se tornou no PAICV, era assumir: “Nós errámos nisto e naquilo e reconhecemos que errámos e vamos arrepiar caminho”.

principalmente no que toca à segurança, à emigração clandestina, no combate à droga, por isso podemos ser uma boa sentinela nesta sub-região para a Europa, o que nos dá meios para lidar com eles numa base de alguma igualdade. A droga que por aqui passa causa estragos, sobretudo, na Europa. Por causa disso, devemos ter mais fibra nas nossas negociações com a UE. É crítica em relação ao acordo de parceria especial? Esse acordo foi um grande engodo; no fim, pensando no que poderíamos ter, eles conseguiram nos apanhar e nós nos deixamos levar. Um outro ponto, ainda nas nossas relações com a UE, são as vantagens concedidas aos estrangeiros em Cabo Verde. Primeiro começou com os chineses. Sei que a China dá muito a Cabo Verde. Com eles, quem não podia calçar passou a calçar, embora o sapato não dure muito tempo, os meninos que não tinham presentes no Natal passaram a ter, mas é preciso muito cuidado com o material que a indústria chinesa utiliza, às vezes tinta de chumbo e outras coisas. Com a vinda dos chineses, o pequeno comércio em São Vicente morreu. Tirando os chineses, há os outros investidores estrangeiros que só estão aqui enquanto tiverem vantagens. São atraídos por um conjunto de isenções, terminado o período, fecham e vãose embora. Isso aconteceu com as fábricas do Lazareto, por exemplo. Os investidores cabo-verdianos não conseguem crédito porque os bancos estão nas mãos dos portugueses. Com a privatização da banca a nossa situação ficou pior. O único passo que Cabo Verde pode hoje dar é o salto da sua economia. Enquanto não começarmos a produzir e a exportar, e a poder usar o que é nosso, não vamos lá. O cabo-verdiano é muito pouco nacionalista. Por um lado é bom, mas por outro é mau. Mas o cabo-verdiano entre a mandioca importada e a nacional ele prefere a nacional. Isso porque temos pouca mandioca importada, mas entre o frango da Sociave e o brasileiro eu prefiro o da Sociave. Tem muito menos água

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e chega a nós muito mais barato. Ando em São Vicente à procura de iogurte Yogurel e quase não encontro, por falta de transporte. Havia um tempo que não havia água Trindade, no entanto havia aqui uma série de marcas estrangeiras. Precisamos de criar um orgulho nacional de que mesmo que me custe um pouco mais é nosso. Tivemos muita pressa em nos fazermos membros da Organização Mundial do Comércio. Será que não entramos cedo de mais quando não podemos proteger o que é nosso? Para quê tanta água mineral importada em Cabo Verde? Este é um país que importa sal. Sim, outra coisa incrível. A OMC diz que não podemos ter barreiras que antes havia. Isto faz parte da tal megalomania, a pressa de mostrar que podemos fazer tudo, é isto que nos levou ao nosso atual Código Civil e ao Código Penal. Eu, quando cheguei a Cabo Verde, descobri que um ladrão para ir para a cadeia tinha de roubar mais de 300 contos. Diante disso, o que é que uma dona de casa que ganha 20 contos por mês, é roubada, não terá de passar para ver o ladrão que lhe roubou ser preso? 300 contos para essa pessoa é uma vida. Mesmo a nível dos direitos humanos, temos coisas que estão além do nosso alcance. Fui roubada mais de uma vez por um grupo de piratinhas, que, por serem menores, não podiam ser presos. Eu dei comigo a pensar, no tempo do administrador João Serra, em Santo Antão, pegava-se num desses miúdos e levava-se ao senhor Serra que lhe aplicava 12 palmatoadas e esse miúdo nunca mais voltava a roubar. Olhe que os Direitos Humanos não vão ficar contentes de ouvir isso. Eu sei, eles não gostam! Por isso é que eu digo que as leis têm de estar ajustadas à nossa realidade. O que é que vamos fazer com o piratinha que passa a vida a roubar e não temos lugar para pô-lo? Eu também sou pelos direitos humanos, mas não podemos deixar toda a sociedade à mercê de criminosos que, por causa de leis muito bonitas, importadas da Suécia ou da União Europeia, nos deixam de


mãos atadas. É a nossa megalomania. Pusemos a carroça à frente dos bois, em vez de ir no nosso passo, no sentido de só fazer coisas que realmente podemos fazer. Em vez de resolver problemas básicos, o que pouco a pouco nos levaria ao nosso desenvolvimento, já estamos a pensar no futuro, um futuro que não aguentará sem uma base. Veja os transportes marítimos, aéreos… O nosso drama hoje é o que precisamos fazer para melhorar a nossa economia? O cabo-verdiano tem um problema, a dificuldade de caminhar, passo a passo, para atingir uma determinada meta. Ele acha sempre que consegue arranjar um atalho e que chega lá mais cedo e quando se dá conta andou a perder tempo.

CRIOULO X PORTUGUÊS O que pensa da oficialização do crioulo? Eu sou, em princípio, pela oficialização mas vejo vários problemas. Quais? Um dos problemas é a diversidade dos crioulos, uma diversidade que se procura minimizar. Agora há teoria de que o crioulo é um só e que o que existe são variantes. E se assim é, então, tudo o que falamos é latim. Há mais diferenças entre o crioulo de Santiago e o de Santo Antão do que entre o português e o castelhano. Do meu ponto de vista, não temos um crioulo, temos vários crioulos. É verdade que hoje, com a comunicação social e circulação de pessoas, há uma tendência para a confluência de todos os crioulos, com níveis apreciáveis de interpenetração, mesmo assim, as diferenças são significativas. Quanto à oficialização, a pergunta que se coloca é: que crioulo? É claro que vem logo ao de cima o crioulo de Santiago, com base no factor numérico, lá está a metade da população e a pergunta que também se coloca é: e os outros crioulos? O Boletim Oficial em que crioulo vai ser imprenso, no de Santiago, e os outros? Fora isso, tenho um grande problema com o ALUPEC, eu sou contra o ALUPEC.

Por quê? Cerca de 90% dos vocábulos da língua cabo-verdiana vêm do português. Por isso, não consigo ver qual a razão que nos leva a recorrer a um sistema fonético que nada tem a ver com Cabo Verde. Pego no Sérgio Frusoni, que escreveu em crioulo de São Vicente, leio com toda a facilidade com a grafia antiga, dele. Eu disse uma vez ao então ministro Manuel Veiga, no Centro Cultural do Mindelo: “Vocês já fizeram do crioulo uma língua estrangeira para mim. Eu olho para ele e não me reconheço nele”. Escrever casa com k-a-z-a, para mim, é um disparate grande e acho que isso vai criar uma confusão muito maior às nossas crianças. Elas já estão a escrever difinição porque é assim que pronunciam definição em Santiago, quando aprenderem a escrever casa com k-a-z-a, o que é que vão fazer? Esta é daquelas coisas em que devíamos arrepiar caminho. Mas, em vez disso, há um grupo que tem puxado, puxado, e empurrado tanto, que eu não sei aonde iremos parar. Eu aceitaria o ALUPEC numa língua que nunca tivesse sido escrita, isso sim. Mas antes do ALUPEC, já os nossos poetas escreveram e publicaram. O Sérgio Frusoni traduziu o evangelho, Eugénio Tavares traduziu um poema de Camões. Com a independência, houve um nacionalismo exacerbado e com isso quiseram deitar fora a água do banho com o bebé. E deitou-se fora muita coisa que não se devia ter deitado. Mas o meu problema não é só o ALUPEC. Eu também sou contra o acordo ortográfico. Escrevo à maneira antiga e vou fazê-lo até o último dia da minha vida.

o Brasil que não as implementou. Além disso, é como você disse, este acordo nem sequer vem uniformizar tudo, há coisas que cada um vai continuar a dizer e a escrever como sempre fez. No fundo, andamos a perder tempo.

Por essa lógica ainda estaria a escrever farmácia com ph, não? Isso também não! (risos) Mas sabe por quê sou contra o acordo ortográfico? Porque o Brasil vai continuar a fazer como sempre fez, vai continuar com o seu trema e várias outras coisas.

Falemos da diáspora. O que acha da sua relação com Cabo Verde? A diáspora relaciona-se bem com a terra mãe. Onde ela se ressente um bocado é na falta de acolhimento quando retorna à terra mãe.

Nós deste lado podemos também continuar a escrever fato em vez de terno e outras coisas. Eu acredito na evolução da língua, mas não na revolução da língua. E todas as tentativas de acordo de ortográfico foi

E a língua portuguesa em Cabo Verde, como a vê? Nós não podemos deixar de lado a língua portuguesa. Uma das grandes frases de Cabral é aquela em que ele diz que a melhor herança que os portugueses nos deixaram é a língua portuguesa. O português é a nossa língua de contacto. Ainda por cima com a diferença de crioulos que nós temos. Enquanto não houver apenas um crioulo, como parecem querer os defensores dessa corrente, vamos continuar a precisar do português, à semelhança dos demais países africanos de língua oficial portuguesa. Até lá vão ter que continuar a nos “bombardear” todos os dias com o crioulo de Santiago. Não há uma publicidade que seja em crioulo que não seja em badio. Parece-me que há um esforço premeditado, lá na Praia, no sentido de impor o crioulo de Santiago a todo o país. Veja a campanha “homi kê homi…”, apenas o João Branco aparece lá a dizer “ome kê ome ka ta da porrada na amdjer”, todo o resto – José Maria Neves, David Hopffer Almada… – aparecem a dizer “homi kê homi ka ta dadji na mudjer”, como se o problema da violência contra a mulher fosse apenas em Santiago e um pouco em São Vicente.

DIÁSPORA, “FALTA ACOLHIMENTO”

O emigrante é destratado? Isso não digo. Tirando aqueles problemas do passado – com os TACV, alfândega, falta de transporte para as ilhas, nomeadamente Brava, problema que deixou de existir com o Kriola – acho que não há grandes problemas. [ 89 ]


Do ponto de vista institucional, este é um recurso que tem sido devidamente aproveitado? Tirando as remessas do emigrante, acho que intelectualmente não. Podiase aproveitar muito mais. Não vamos à procura dessas pessoas? Não. E o mais grave, não criamos as condições para eles voltarem. Temos uma diáspora tremenda, do ponto de vista intelectual, quadros e técnicos que podiam ser muito mais bem aproveitados. Sei de pessoas que se ofereceram e nunca foram chamadas, nem convidadas a fazer seja o que for. É o caso de uma irmã minha, que podia vir ajudar na área dela, pessoas que mandam projetos e que nunca sequer recebem uma resposta. Aliás, um dos problemas do nosso Estado, a começar pelo Governo, é não responder às pessoas. É tudo metido num buraco negro. É como diz a anedota, a diferença entre o computador americano e o computador cabo-verdiano é que o computador americano tem uma memória, o computador cabo-verdiano tem uma vaga ideia.

FIGURAS, “CONTRA CULTO DE PERSONALIDADE” Nestes 40 anos, para si, quem são as pessoas que mais sobressaíram? Tenho muito medo dos cultos de personalidade. Prefiro por isso não indicar ninguém. Entendo até que nos estão a faltar modelos para seguir. Precisamente. Se temos como assente que Cabo Verde fez nestes 40 anos um percurso, no mínimo, apreciável, é porque houve gente que fez ou ajudou a fazer essa obra. E eu não me refiro apenas aos políticos. Realmente é verdade. Nesta caminhada fizemos muita coisa boa, mas também desfizemos muito do bom que havia em nós, e é isso que eu lamento. A questão dos valores é uma delas. Tenho por norma que ai de nós se para conseguir o que queremos, ao mesmo tempo, sacrificamos aquilo que é a nossa convicção da maneira que as coisas deveriam ser feitas. [ 90 ]

Sempre foi minha convicção pessoal que Cabo Verde, ao contrário do que disseram e continuam a dizer, não precisava de um regime tão fechado como aquele que tivemos nos primeiros 15 anos da independência. Podia até haver apenas um partido para nos governar, mas não precisávamos da ideologia que esteve por trás disso, do esforço para acabar com as elites, pessoas que eram úteis que tiveram que se ir embora ou que foram simplesmente anuladas. Uma das coisas que o PAIGC devia ter feito, sobretudo, quando se tornou no PAICV, era assumir: “Nós errámos nisto e naquilo e reconhecemos que errámos e vamos arrepiar caminho”. Por isso é que se volta sempre à história do partido único, partido único, partido único, o tempo todo. Isto porque nunca houve um desiderato, uma catarse. Cabo Verde precisava de um momento de “verdade e reconciliação nacional”? Sim, um momento de reflexão, para depois haver uma verdadeira reconciliação nacional, para juntos criarmos realmente um Cabo Verde novo. Não houve essa reconciliação. São Vicente viveu momentos de terror autêntico, os meus familiares tinham medo, e eles não tinham partido, não representavam perigo para ninguém, mas, mesmo assim, tinham medo. É verdade que muito do mau aconteceu nos meses que se seguiram ao 25 de Abril, a responsabilidade era dos militares portugueses, que aqui estavam, mas eles não quiseram pôr mãos nos abusos que se foram cometendo em nome do PAIGC. Muitas das prisões que foram feitas aqui foram ditadas por gente que foi para as ruas, a gritar e a barafustar. Pagamos o preço até hoje? Sim, pagamos. E parte desse preço resulta na sociedade civil que hoje temos, “não me importo”, é o que mais se ouve. O cabo-verdiano tornou-se no indivíduo que apenas “manda bocas”, as pessoas não se levantam, com dignidade, a defender o que consideram certo, a começar pelos seus direitos.

No problema da cidadania há pessoas que entendem que esse amorfismo a que se refere decorre da nossa profunda dependência do poder político. Concorda? Em parte, sim. Não pode haver uma verdadeira democracia quando uma elevada percentagem dos salários vem do Governo. Mas, por outro lado, as pessoas adotaram o princípio cada um por si Deus por todos. “Eu fiz a minha casa, estou bem, não me importo com nada que se está a passar lá fora, desde que aqui dentro ninguém me incomode”. É esta regra hoje em dia.

VALORES Diante do que me está a dizer, que sociedade ou valores almeja para este Cabo Verde que tem naturalmente que caminhar para o futuro? Primeiro, que seja uma sociedade com grande sentido dos seus direitos mas também dos seus deveres. Hoje só se fala em direitos. Até as crianças têm direitos. E quase não falamos dos deveres. Quando tratamos da Carta dos Direitos dos Doentes o ministro da Saúde da altura, Basílio Ramos, quando lhe falamos em deveres, ele estranhou. Fui eu que lhe disse, “os deveres têm que estar na carta, sim senhor, porque quem tem direitos tem que ter deveres também”. É por isso que a carta é dos direitos e dos deveres. Nem todos os países têm deveres na sua carta, nisso fomos mais longe. Precisamos ter uma sociedade consciente dos seus direitos e dos seus deveres. Esta é uma das bases de tudo, a começar pela democracia. Um outro aspeto é o respeito pelo outro. E quando falo em respeito é a todos os níveis, a começar pelo Parlamento. A falta de respeito que lá existe é muito grande. As pessoas devem discutir ideias e não coisas pessoais, como muitas vezes acontece. Quem anda pela rua a cantar às três horas da manhã tem de estar consciente que está a incomodar aquele que em sua casa está a descansar para enfrentar um novo dia e que por isso precisa dormir. E várias outras coisas. Uma pessoa


O cabo-verdiano tornou-se no indivíduo que apenas “manda bocas”, as pessoas não se levantam, com dignidade, a defender o que consideram certo, a começar pelos seus direitos. não pode pintar a sua casa e menos de uma semana depois ter a parede vandalizada, é um bem alheio que foi violentado. É preciso respeito pelo património alheio. É claro que também tenho preocupações que são religiosas e essas são minhas, são mais privadas. Mas falando ainda dos direitos, o cabo-verdiano precisa aprender a colocar os seus problemas em sede própria. Acho muita graça que uma mulher que apanhou pancada do marido em casa, em vez de ir à polícia, vá à televisão. Eu pergunto: “Isto é notícia? Por que é que a televisão tem de me mostrar isto, se essa mulher apanhou do marido? Ela que vá à polícia e não à televisão!” As pessoas se deram conta que a polícia ou os tribunais não funcionam, então é melhor fazer justiça social através da comunicação social. Isso eu entendo, mas é algo que não devia acontecer. Há muita coisa na justiça, a começar por leis desajustadas da nossa realidade, que não vai bem. Por exemplo, acho incrível essa coisa do Termo de Identidade e Residência (TIR). Há pessoas que diante do que fazem deviam ser imediatamente engavetadas e que em vez disso vão para a casa. É só ver que se alguém comete um crime, o senhor vê e eu vejo também, a polícia chega, e porque ela

não viu, portanto não foi em flagrante, o fulano não é preso. Agora diga-me, quem é que vai cometer um crime diante da polícia? Não se entende, simplesmente.

Entende que temos uma classe política despreparada? Sim. Cabo Verde parece Portugal de hoje, a gente olha para aqueles fulanos e pergunta, “mas como é possível?!”

FUTURO, “JÁ FUI MAIS OTIMISTA”

Mas consta que a crise das elites é mundial, somos hoje governados por homens comuns. Eu prefiro o homem comum que tenha a cabeça no lugar e pés assentes na terra do que ser governada por iluminados que nos levem à desgraça. Temos gente que começa a sonhar e às tantas está a levitar. A educação é uma das coisas que mais me preocupa. Às tantas, vamos ter gente formada em universidades abertas, no Paul, no Cabo da Ribeira (e falo do Paul porque Santo Antão é como se fosse a minha terra, por isso não estou a ofender ninguém), depois temos um universitário que nunca saiu de Santo Antão ou mesmo do Paul. A minha visão em relação ao futuro vai ficando cada vez mais limitada, cada vez mais estreita, a tendência é cada um só ver o seu cutelo.

E em relação ao futuro? Já fui mais otimista. Fui mais otimista na abertura, fui mais otimista aquando da primeira alternância, em 2001. Os nossos governos são bons nos primeiros cinco anos. O problema é que depois se acomodam e vai tudo por água abaixo. É o que está a acontecer neste momento. Apreciei imenso o facto de ter havido a mudança em 2001 e não se correu com todo o mundo só porque era do anterior partido, mas depois tudo voltou ao antigamente. Tenho a impressão que este Governo já não tem mais para dar. Está de novo instalado o amiguismo, a megalomania, mas também não vejo grandes futuros porque quem pode vir não me parece que vá fazer melhor. No fundo, estamos com falta de uma boa elite.

[Mindelo, 08-05-14] [ 91 ]


João do Carmo Santos

“Cabo Verde é um país rico”

João do Carmo Santos, 85 anos, é o que se pode dizer um empreendedor nato. Agricultor e dono de uma padaria, este santoantonense da Ribeira Grande recusa que Cabo Verde seja um país pobre. Além de lavrador, foi professor, mestre de obras e também um reconhecido animador cultural, como conta nesta entrevista. [ 92 ]


A sua apetência pela agricultura surge como? Primeiro me criei nela, como lavrador. Depois que o meu pai morre, passei a trabalhar também com a terra que antes estava na posse dele, mas cujo dono era o Sr. Lela Lopes, um grande proprietário que havia aqui, na Ribeira Grande. Mas é sobretudo com a reforma agrária que me torno mais agricultor. Com o Dr. Aníbal, filho dele, fizemos os dois a nossa reforma agrária numa sala de visitas.

REFORMA AGRÁRIA, “ESTOU LIVRE” Como foi essa reforma agrária pacífica?! Amigavelmente. E fiquei bem, devo dizer. Ele disse-me que queria retomar as terras dele, no que lhe respondi: “O senhor pode tomar porque o meu pai não me deixou terras. Deixoume metade da produção e os meus braços”. E ele respondeu-me: “Disseste e disseste bem. Por isso vamos fazer um acordo, amigavelmente”. Ele disseme que me cedia um ou dois quintais aqui, em João Dias, para eu pagar em quatro ou cinco anos. Cumpri e estou muito bem, graças a Deus. Essa vossa reforma agrária foi em que ano? Foi por altura da reforma agrária, em 1981/82. Recorri ao banco, saldei a minha dívida e, como disse, fiquei bem, e assim continuo. Estou livre. Só que hoje estamos a trabalhar com dificuldades porque os meus produtos não têm preço. Estão ao desbarato? Sim, claramente ao desbarato. Só para ter uma ideia, em 1996, uma pessoa veio comprar-me um garrafão de aguardente e ofereceu-me seis mil escudos. Nessa altura, eu pagava a um trabalhador 250 escudos; hoje, a aguardente desceu o preço mas o trabalhador, de 250, passou para 650 a 700 escudos dia. A mesma coisa com a banana, faz tempo que vendo um quilo por 25 escudos aos negociantes, há alturas em que o preço passa para 50 a 60 escudos. Por assim dizer, falta uma política para a agricultura.

Os meus sonhos consegui realizá‑los. Vivi sempre com metas. E, claro, com Deus pela frente.

minhas ideias fui evoluindo. Sou o que se pode dizer um tipo polivalente. Nunca fui de parar. Gosto de trabalhar. Como diz o ditado, o trabalho dignifica o homem. E eu sou viciado em trabalho.

SEGREDO, “CABEÇA E TRABALHO” Pela sua idade, já devia estar reformado. O meu desejo de trabalhar é maior do que a minha vontade de descansar. Tenho 11 filhos, todos com a minha mulher. Parte do meu sucesso devo a ela. Eu e ela temos vivido uma vida de amor. Dou graças a Deus por estar casado com a minha mulher há 61 anos. É um homem feliz, então. Sem dúvida.

Qual é a causa disso? Um dos problemas mais graves que temos em Santo Antão é o escoamento. O preço cai, o produtor tem cada vez menos margens de lucro, ao passo que o trabalhador quer cada vez mais. Uns até dizem “ah, estes 700 escudinhos, está na hora de acabar”. Mas como podemos subir, se o produto não tem escoamento? Chego a ter 10 trabalhadores comigo, todos os sábados, tenho que acertar as contas com eles, mesmo não sabendo o que vai acontecer à minha produção. Eu tinha uma poupança mas isso se esvaiu. Também é dono de uma padaria, não? Sim. É coisa antiga, caseira. Vem do tempo em que eu vivia em Penha de França. Aqui, em João Dias, construi esta outra padaria, mais moderna, eletrizada, tendo os meus filhos como sócios. A concorrência também existe neste ramo, não? Sim. Tirando uma padaria que havia na Ponta do Sol, fui um dos pioneiros a abraçar este ramo aqui na Ribeira Grande. Vi que era coisa que fazia falta e avancei com essa ideia. Portanto, é um industrial que passou pelas obras públicas e que antes esteve na agricultura. Sim, vivi sempre ligado à agricultura, depois às obras públicas, com as

Realizado também? Sim! Os meus sonhos consegui realizálos. Vivi sempre com metas. E, claro, com Deus pela frente. O seu caso é raro. Como disse, é um homem realizado, ao que me consta, nunca foi emigrante. É verdade? É verdade, realmente nunca fui emigrante. Achava que conseguia sobreviver aqui em Santo Antão? Sim, senhor, e consegui. É o que costumo dizer a muita gente, o que nos é falta isto! [aponta com o indicador à cabeça]. Nós podemos viver na nossa terra muito bem. Agora, é preciso trilhar e ter metas. Não é na vida bandalheira que haveremos de viver melhor. Quem se mete na bandalheira apenas vai para trás, apenas vai para o fundo. Eu sou dessa massa, para frente é que está o caminho. Com teimosia, com força e coragem cheguei aonde estou. É um grande prazer conhecer uma pessoa como o senhor. Eu fui sempre assim. Desde a escola. Fiz a quarta classe em 1940. Como eu era um aluno bastante ativo, passei a ser ajudante de professor, ensinei primeira classe e segunda classe, ganhava 10 tostões por dia. Cheguei a levar alunos ao exame. Depois, passei à vida de enxada, marreta, picareta, etc. O trabalho nunca me fez medo. [ 93 ]


Então o senhor assistiu a toda transformação que aconteceu em Santo Antão. Sim, a toda, posso dizer. Estou neste mundo desde 1928. Não trabalhei nas estradas, mas na construção de levadas e diques, conheço todos esses vales. Em 1948, quando comecei, eu tinha 20 anos. Comecei como ajudante de pedreiro ganhando três escudos por dia, como pedreiro passei a cinco escudos por dia e, como mestre de construção, passei a receber sete escudos. Sempre de cara para frente. Como vê Santo Antão hoje? Naquele tempo, em Santo Antão, vivia-se com muito sacrifício. Na década de 40 tivemos as grandes fomes, com epidemias mais diversas, morreu muita gente e muitos tiveram que se ir embora. No entanto, na nossa ignorância, vivíamos bem. O nosso horizonte era limitado. Hoje, não. Hoje estamos livres, o grande desenvolvimento que aqui tivemos foi além dos nossos sonhos, mas, como é da natureza humana, o povo ainda não está muito satisfeito. O que falta às pessoas para estarem satisfeitas? O que falta é cabeça e ideias para trabalhar. Repare, Santo Antão tem desemprego. Mas parte desse desemprego é de gente que não quer trabalhar. É gente que quer a vida de grogue apenas. Há muito alcoolismo aqui. Se há! O senhor não imagina como há muita gente, aqui, que se acabou no grogue, que não teve poder de discernir para uma vida melhor. É grogue e, como se diz também, droga, padjinha. Mesmo tirando isso, é gente que não quer trabalhar. O senhor tem problemas de mão de obra aqui? Sim! Os homens ativos, que podiam estar a trabalhar, não têm genica. A vida de grogue acabou com eles. Isto é, se bebessem do grogue do tipo que eu faço (o meu nome é conhecido na região como produtor, não é para me gabar), moderadamente ou [ 94 ]

de forma social e controlada, não teriam problemas. Você contrata um indivíduo que mal consegue levantar ou manejar uma enxada, faltam-lhe forças. Homens desses eu não preciso para o trabalho. Como vê o futuro de Santo Antão? A continuar como está, com a sua mão de obra a definhar, cada dia mais, esse futuro vai se perdendo. Tirando isso, a ilha vai continuar a desenvolver-se, porque, a cada dia, vemos surgir novas estradas, novos furos para captação de água, a barragem que estão a fazer, etc. Antigamente não havia nada disso. Ainda há pouco, antes do senhor chegar, eu estava a falar no meio das minhas bananeiras sobre este tipo de problemas da nossa terra. Convenhamos, não é todos os dias que tenho um senhor do seu gabarito, para ter este tipo de conversa. O meio aqui é muito rudimentar, como sabe. A educação dos seus trabalhadores não lhe permite ter uma conversa como esta que estamos a ter? Falar, eu falo com eles, procuro mostrar-lhes o caminho porque tenho por norma que a gente aprende conversando. Eu costumo dizer às pessoas à minha volta, conversar comigo é como conversar com uma biblioteca. Eu tenho muita coisa na cabeça. Não sei escrever, como o senhor escreve, mas eu fiz uma boa quarta classe naquele tempo. Sou do tempo em que a pessoa com quarta classe não podia ter certos deslizes na língua portuguesa. Era inadmissível, simplesmente. Qual é, para si, uma boa receita para ter uma vida saudável? Paz, amor, harmonia, sem ofensas. Temos que ser acessíveis a coisas boas. Por exemplo, nos meus 19 anos, eu era músico. Tocava violino. Acompanhava casamentos, tocava na igreja, nos funerais. Eu era muito chamado e estimado. Aos 25 anos, na véspera de me casar, eu me divorciei da música. Achava incompatível? Sim. A minha noiva tinha 18 anos, entendi que não podia continuar com o mesmo tipo de vida. Vendi o violino e fiquei 13 anos sem tocar.

Eu sabia que se não fosse assim iria destruir a minha vida conjugal. Eu tinha de escolher, ou a música ou a minha família. Já estabilizado, muito de vez em quando, eu tocava. Por exemplo, toquei na homenagem ao nho Kzic. Naquele tempo toquei com Antonin Travadinha, com Malaquias, irmão de nho Kzic, e vários outros. Fui também presidente de um grupo de promotor do carnaval. Como disse, sou um homem polivalente, mesmo na cultura. Por exemplo, também fui dançarino. Hoje, as pernas já não ajudam. Trabalhei na carpintaria, como canalizador, faço tudo, só não trabalho com eletricidade. Vendo a minha habilidade com desenho, o António Jorge Delgado, arquiteto, que foi ministro da Cultura, convenceu-me que devia matricularme no CETOP, Centro de Instrução Técnica de Portugal. E assim fiz, como desenhador. Foi ele que me matriculou. Pouca gente sabe disso. Aos 55 anos, decidi fazer o segundo ano [antigo ciclo preparatório, hoje sexto ano], na Povoação. Aos 75 anos resolvi fazer a carta de condução – e consegui.

CABO-VERDIANO, “TUDO QUE É BOM” Como falou em cultura, foi músico e dançarino, acredita que existe uma identidade cabo-verdiana? Com certeza. Para si o que é ser cabo-verdiano? Cabo-verdiano é ser tudo que é bom. A pessoa tem que ter uma boa reputação. Ter instrução, ser sério, respeitador. Ser respeitado. Enfim, uma série de coisas boas que a pessoa deve cultivar. Diga-me, na sua parte musical, como é que aprendeu a tocar violino? Aprendi a tocar com rabeca de caco (cabaça). Com uma cabaça cortada ao meio, um pedaço de madeira, com cordas, fiz o meu primeiro violino. Aprendeu sozinho? Primeiro comecei a “serrar” até começar a obter notas, cujos nomes eu ainda não sabia. Um dia chegou à


casa do meu pai um fulano que tocava, chamado Júlio Barbedju, da Povoação, numa altura em que já tocava uma violazinha também. Vendo-me, ele diz para o meu pai: “O seu filho tem jeito”. E o meu pai respondeu de imediato, de forma dura: “Não, primeiro é enxada!” Comecei a frequentar escondido a casa desse senhor e foi ele que me foi ensinando algumas coisas. Como é que o senhor vê a música cabo-verdiana hoje? A música cabo-verdiana está uma coisa fora de série. Eu não gosto muito é dessa coisa que chamam rap. É muito disparate para a minha cabeça. Mas eles lá sabem, se acham que aquilo é música, e se há gente que gosta, quem sou eu para dizer que aquilo não presta?

Porquê? Eu não entendo muito desse assunto. E não sei se o senhor sabe, eu tenho um partido…

Ainda há pouco, antes do senhor chegar, eu estava a falar no meio das minhas bananeiras sobre este tipo de problemas da nossa terra.

Por exemplo, no seu tempo imaginou que alguém como Cesária Évora chegasse onde chegou? Ah, não! Nem de perto nem de longe. A nossa Cise fez o que nunca ninguém imaginou.

40 ANOS, “PASSEI A VIVER MELHOR”

Aqui em Santo Antão vocês têm os rapazes do Paul, Cordas do Sol. Eles também já foram longe. Têm jeito e são o nosso orgulho.

Fala-se muito hoje em dia na reforma do Estado. Acha realmente que o nosso Estado precisa ser reformado? Sim, precisa.

O seu partido não me interessa, o que quero saber é a sua opinião. Mesmo assim, eu digo o nome do meu partido. Eu sou P-A-I-C-V, com letras grandes! Por quê? É herdeiro do PAIGC, partido que nos tirou do marasmo do colonialismo. Não fosse o PAIGC, na minha opinião, estaríamos ainda debaixo do colonialismo. E eu, como vi muito do que passou, principalmente nos tempos da crise, em que o próprio cabo-verdiano maltratava os seus conterrâneos aqui, até chicote usava, com a luta contra o colonialismo tudo se transformou em Santo Antão e em Cabo Verde. Foi com a independência que a minha vida melhorou também. Mas diga-me, já agora, entre o período colonial e pós independência, qual é a diferença para si? Olhe, no período colonial, nós andámos até debaixo de chicote. [ 95 ]


Mas no período colonial praticamente não havia portugueses aqui. Sim, não havia. Mas foi no tempo deles que praticamente fomos vendidos e oprimidos pela nossa própria gente. Não é o meu caso porque o meu pai era sério e não admitia. Ele não sabia ler, mas não havia nada nem ninguém que abusava dele nem nos filhos dele. Tenho orgulho de ser filho dele. Como disse, naquele tempo, era nossa própria gente que oprimia os seus patrícios, não eram os portugueses. Com a independência, isso acabou. Eu, pessoalmente, não tenho problemas em dizer que passei a viver melhor, graças, acima de tudo, ao meu trabalho e com fé em Deus. Mas há quem reclame que depois da independência, por causa da reforma agrária, houve aqui muitos abusos também. Houve, sim, não nego. E é coisa que eu lamento, porque nenhum ser humano pode dispor da vida do outro. Antes disso, ao ouvir falar na reforma agrária, houve aqui muita gente que meteu na cabeça que iria tomar terra alheia, mas eu não. Nunca pensei nisso. Pensei, sim, trabalhar para comprar terra com o dinheiro do meu trabalho. E assim fiz, como lhe contei. Negociei com o Dr. Aníbal, numa sala de visitas, dentro da realidade, dentro do respeito mútuo, fechamos o nosso negócio. Ele já morreu, fomos muito amigos, inclusive sou também muito amigo do filho dele, João Manuel. Sempre que vem a Santo Antão me visita. O próprio Dr. Aníbal chegou a dizer, mais de uma vez, “estas terras ficaram em boas mãos”.

REGIONALIZAÇÃO, “VOU OUVINDO” O senhor já ouviu falar em regionalização? Sim. E o que pensa disso? Do pouco que sei, eu sou a favor. Tenho por mim que se os mais entendidos no assunto concluírem que essa é a solução dos nossos problemas eu aceitarei. Se concluírem o contrário, também aceito. [ 96 ]

… com a luta contra o colonialismo tudo se transformou em Santo Antão e em Cabo Verde. Foi com a independência que a minha vida melhorou também.


Portanto, não tem uma opinião formada? Não. Eu não tenho muitos dados sobre este assunto. Apenas vou ouvindo aqui e ali, com quem sabe. Estamos há quase 40 anos da independência, mas também já temos mais de 20 de democracia, inclusive com poder local. O que acha disso? A democracia é uma coisa boa. Com ela todos nós passamos a ter o direito de exprimir e decidir por nós próprios. Entendo que devemos fazer isso dentro do respeito, com paz e harmonia, sob pena de nos ofendermos uns aos outros. No caso do poder local, a eleição do presidente da câmara, foi algo bom ou mau para Santo Antão? Foi bom. Também aqui há uma grande diferença em relação ao passado. No período colonial havia o administrador, que mandava e desmandava nisto tudo, depois da independência veio o delegado do governo, que era nomeado na Praia, e com a democracia as pessoas passaram a eleger os seus órgãos de poder local, diretamente. É sem dúvida um grande avanço. Os presidentes de câmara têm um poder grande, com a colaboração ou ajuda do Governo, cabe-lhes trabalhar e lutar pelo desenvolvimento do seu município. Como vê as relações de Cabo Verde com a CEDEAO? Por si, acho coisa boa. Sendo nós um país que dizem ser pobre, estando em África, devemos procurar recursos em toda a parte, inclusive na CEDEAO. E com a Europa? A mesma coisa. E não é só com a Europa, mas também com o Brasil e com os EUA. Temos de procurar relações com quem nos possa ajudar.

ESTADO, “NÃO PODE DAR TUDO” O senhor acaba de dizer que somos um “país que dizem ser pobre”… Não acredita que sejamos um país pobre? Há tempos esteve cá o Dr. Arlindo [do Rosário, médico e deputado

do MpD] que tinha um assunto a tratar comigo. Na conversa ele disse-me “Cabo Verde é um país pobre”. Eu voltei para ele e disselhe: “Senhor doutor, goste ou não, escute o que lhe vou dizer: Cabo Verde não é pobre, inclusivamente Santo Antão não é pobre. Pobre é a nossa mentalidade. Naquele tempo os filhos dos poderosos, aqueles que tinham grogue, café e outros produtos, saíam daqui, iam fazer um curso, mesmo que viessem, os pais eram os primeiros a dizer-lhes, ‘aqui não é teu lugar, tens de ir embora, procura a vida fora daqui’. Resultado: as grandes cabeças foram para os outros lugares, inclusive estrangeiro, e nós fomos ficando aqui, com varredores e marinheiros”. Foi assim que eu lhe disse. Ele olha para mim e diz: “Sr. João, o senhor tem razão”. Esta é uma das razões da desgraça de Santo Antão. Faltou aos nossos avós ideia da industrialização. Só com a indústria poderemos desenvolver a nossa terra. Temos areia, temos pedra, temos água, naquele tempo tínhamos amor ao companheiro, agora falta amor, falta concórdia. Tirando isso, tudo depende de nós, da nossa força de trabalho e da nossa cabeça. É por isso que não aceito que ninguém diga na minha frente que Cabo Verde é pobre. Podemos procurar riqueza aqui dentro! Volta e meia, a gente ouve “Estado não me dá trabalho”, porque é que cada um não põe na sua própria cabeça que tem de trabalhar? Que invente, mas sem roubar. A nossa terra precisa de coisas boas. A virtude nasce da honestidade, do respeito e do trabalho de cada um. Nesta vida procuro o tempo todo honrar Deus acima de tudo, mas sempre trabalhando, sempre procurando o que fazer, não ficar à espera que as coisas me caiam do céu.

EMIGRAÇÃO, “DEIXOU DE VALER A PENA” O senhor disse-me que nunca teve a necessidade de emigrar, que se realizou em Cabo Verde. O que pensa da emigração? Antigamente, a emigração era coisa boa. Ajudou muita gente, inclusive esta

ilha. Hoje não, é diferente. Há tempos alguém me disse, “tenho um filho, vou mandá-lo emigrar”. Eu disse, “não senhor, é melhor deixá-lo aqui, hoje esses jovens saem e em pouco tempo metem-se na droga”. A pessoa me respondeu, “aqui ele não arranja nada”. “Mentira, procurando, a gente vive muito bem nesta terra”. Mas para isso é preciso dinamismo, não querer ser rico de hoje para amanhã. Isso é impossível aqui ou lá fora. Cabo Verde, hoje, sabe tirar proveito da sua emigração? Ultimamente, eu acho que não. Tenho o caso de dois genros que foram para a Holanda naquele tempo. Trabalharam, pouparam, compraram as suas terras aqui, que costumo olhar, fizeram as suas casas, estão a viver bem. Mas as coisas mudaram. Hoje, embarcar para quê? A vida está difícil em todos os lugares do mundo, daí ser melhor cada um procurar melhorar a vida na sua própria terra. É difícil? É claro que sim. Mas com trabalho, cabeça e Deus pela frente, quem quiser consegue realizarse aqui, sim senhor.

FUTURO, “DEPENDE DO CABO-VERDIANO” Como é que o senhor encara o futuro de Cabo Verde? O futuro de Cabo Verde depende do homem, do cabo-verdiano. Se não tivermos gente com vontade de trabalhar, o futuro está comprometido. Aqui em Santo Antão se não se meter mão nessa coisa do grogue de açúcar vamos acabar com o nosso futuro. Nesses quase 40 anos de independência quem são as pessoas que mais se sobressaíram em Cabo Verde? Há muita gente que trabalhou e tem estado a trabalhar. É essa gente que eu respeito. Uns mais e outros menos. Uns com mais recursos baixaram de nível por falta de tino. Outros, como eu, progrediram. Por isso entendo que não devo indicar o nome de ninguém. Todos somos responsáveis pelo que aconteceu a este país nestes quase 40 anos de independência. [João Dias, Ribeira Grande, 10-05-14 ] [ 97 ]


Ália Lopes dos Santos

“Libertei-me da função pública” Empresária, gerente do Quintal da Música, um espaço de música e restaurante hoje de referência na cidade da Praia, Ália dos Santos, 53 anos, afirma que conseguiu se libertar da Administração Pública, ao fim de vários anos como secretária. O seu atual trabalho é difícil, mas compensador, já que reconhecido e elogiado por gente dos mais variados lugares do mundo.

Como surgiu o desafio do Quintal da Música? O espaço é da Câmara Municipal da Praia, foi-me concedido por concurso. Foram vários os concorrentes, concorri e fiquei com o primeiro lugar. Isso desde 2003. Qual a diferença entre a sua gestão e a anterior? Antes era um quintal, só com música. E agora, além da música, há a parte da gastronomia. Aqui fazemos de tudo um pouco. Qual é o público principal? Para além de turistas, costumamos ter emigrantes, serviços públicos, etc. [ 98 ]

Quintal da Música, hoje em dia, é um espaço de referência na Praia, não? (risos) Não sou a pessoa mais indicada para o dizer, mas é verdade. Pelos comentários que as pessoas fazem, pelas mensagens que recebo, tudo aponta nesse sentido. Temos um livro de honra onde, quem quiser, pode deixar a sua opinião sobre os nossos serviços. O livro é preenchido, nomeadamente, por políticos estrangeiros que nos visitam e, no fim, deixam-nos as suas impressões. Qual é a mensagem que mais a sensibilizou? São tantas. A mais bonita de todas foi quando o então primeiro-ministro de

Portugal, José Sócrates, nos visitou [em 2009]. Naquela altura, esmeramos na programação musical, tratamos de pôr de tudo um pouco, desde funaná, batuco, morna, coladeira, cada um desses géneros por grupos diferentes. A fechar o programa incluímos uma serenata. Os jornalistas presentes escreveram, em Portugal, que quem vir a Cabo Verde, na cidade da Praia, e não vir ao Quintal da Música é como ir à Roma e não ver o papa. (risos) O próprio José Sócrates também deixou a sua mensagem no nosso livro de honra. Uma mensagem muito bonita também. Nela ele fala do calor humano que encontrou em Cabo Verde, algo que muito me sensibilizou.


[ 99 ]


Por quantos anos? Isto é segredo. (risos)

Graças a Deus, durante este tempo todo, aprendi muito. Desde logo libertei-me da função pública, vindo para um ramo que não tinha nada a ver com a minha vida anterior. Aprendi não só na área da música, como também da gastronomia. O trabalho é muito, é verdade, mas é compensador, do ponto de vista de realização pessoal.

Com a sua gestão o Quintal da Música tornou-se uma aposta ganha? Eu penso que sim, embora a minha ambição seja fazer mais. O que falta fazer? Tenho algumas ideias, que não posso avançar. Como se diz, o segredo é alma do negócio. Além disso, ainda está em projeto. Como surgiu esta sua apetência pelo mundo empresarial? Eu era funcionária pública, trabalhei na Educação, na Cultura, no Desporto, também na Assembleia Nacional, na Promoção Social, na Saúde… Andei por vários ministérios e lugares. Em que tipo de função? Secretária, trabalhei com vários ministros. Sou quadro técnico, na verdade, do Ministério da Educação. Nos outros lugares estive sempre em requisição. Terminada a comissão, eu voltava para o meu lugar de origem. Sobretudo na Educação, por altura dos aniversários do pessoal, nós nos quotizávamos e fazíamos a festa surpresa ao aniversariante e, normalmente, quem organizava isso era eu. Os meus colegas, vendo, achavam que eu tinha dom para a culinária, para a pastelaria, e, então, começaram a perguntar por quê eu não abria um espaço meu, em vez de estar a trabalhar para o Estado. Eu, como achava que não tinha nascido para negócios, não levava isso muito [ 100 ]

a sério. Mas, de tanto ouvir esse tipo de incentivo, um dia resolvi arriscar. Meti licença sem vencimento durante um ano. É assim que abro um bar restaurante, onde eu servia pequeno almoço, almoço e lanche, jantar não. Também fornecíamos outros lugares, prestando serviços sempre que chamados. Como eu era conhecida, esse meu espaço era bem frequentado, por pessoas muito importantes, e cada vez mais o lugar foi se tornando pequeno. Senti a necessidade de ampliar e mudei-me para a Rua Serpa Pinto. O primeiro espaço era onde? Era junto do hospital. O novo lugar era ligeiramente maior. Mesmo assim, continuava a ser insuficiente. O meu público deixou de ser apenas caboverdiano, passei a receber turistas também, cada vez mais. Um dia soube que o Quintal da Música estava a concurso através de um amigo que frequentava o meu anterior espaço e via a minha azáfama com os clientes, chegava gente que tinha de esperar na rua até poder ser atendida. Concorri e fiquei no primeiro lugar. Esta é a razão da minha presença no Quintal da Música. A concessão é por quantos anos? Até a minha chegada isto era mesmo um quintal. Hoje não. Foram várias as melhorias que tive de introduzir para tornar esta casa um lugar mais atrativo. Com isso o contrato inicial teve de ser alargado.

Além da culinária, o Quintal da Música apresenta uma oferta musical, não? Sim, temos uma programação semanal, de segunda a sábado. Todos os dias há um tipo de oferta musical. Quais são os dias mais cheios? Aos fins de semana. Nos dias da semana normalmente os nacionais trabalham, como é natural, eles não saem todos os dias em paródia. No que toca aos estrangeiros, quando eles aparecem, pela primeira vez, qual é percepção que você vê neles não só em relação ao ambiente mas à oferta musical? Gostam muito. Mal chegam, a primeira coisa que fazem é observar a nossa galeria de fotos. Às vezes, pedem informações, nós explicamos quem é o músico que despertou a atenção, o que fez, a sua importância, etc. Eles também acabam por fotografar o nosso ambiente. Somos, todos os dias, visitados por gente de vários lugares do mundo. Isso ao longo de todo o dia, principalmente quando há navios cruzeiros no porto. Com navios cruzeiros chegamos a fazer programações especiais. Então a clientela do Quintal aumentou com os cruzeiros. Sim, só que com eles é apenas de dia. À noite não, porque normalmente, por volta das 18 horas, os navios vão-se embora. A nossa clientela são empresários que vêm a Cabo Verde a negócios, gente que vem às conferências e que, à noite, quer jantar ao som da boa música caboverdiana. Como normalmente já ouviram falar de nós, por artigos ou recomendações, essas pessoas aparecem. Muitas vezes, ouvem falar no Quintal da Música antes mesmo de chegarem a Cabo Verde. Chegando, fazem a sua reserva. Então não tem problemas de clientela, não? Problema não digo que eu não tenha, porque, por mais que eu venda, os gastos da casa são muitos. Todas estas


melhorias que está a ver são resultado de empréstimo bancário, que tenho de amortecer. Um dos trunfos do Quintal é a música cabo-verdiana. Enquanto operadora, qual é o significado que a música cabo-verdiana tem hoje em dia? É uma riqueza. Hoje em dia, são muitos os turistas que nos procuram, sobretudo, por causa da música, mas também os nossos emigrantes. Eles vêm e saem daqui satisfeitos. Os nossos emigrantes veem que a música de Cabo Verde é hoje reconhecida e apreciada lá fora. Há uns anos atrás, mesmo os cabo-verdianos não ligavam muito para a nossa música. Hoje não. Hoje são os próprios cabo-verdianos que reconhecem o valor deste elemento da sua cultura. Aqui, no Quintal, sinto-o todos os dias. Neste caso, pergunto: para si o que é ser cabo-verdiana? (risos) Eu sou cabo-verdiana, para mim, é uma honra, assim nasci. Sinto-

me feliz e orgulhosa. Contudo, apesar de Cabo Verde ter evoluído muito dos últimos anos a esta parte, sobretudo, ainda acho que há coisas que precisam ser melhoradas. O quê, por exemplo? Como empresária, tenho dificuldade em abordar abertamente certas questões. Por isso, prefiro guardar a resposta para mim. Na sua opinião, existe uma identidade cabo-verdiana? É claro que sim. Pessoalmente, como é que a sente? Sinto-a na minha maneira de ser. Sinto também que as pessoas hoje em dia valorizam muito a nossa cultura e se assim sentem é porque têm consciência de que são cabo-verdianas. E isso não é só a nível da música, que neste momento é o nosso prato forte, mas há muitos outros “pratos” que têm estado a colocar Cabo Verde no topo. Como caboverdiana, isso é algo que me orgulha.

Como cidadã, você deixou a função pública para abraçar este novo trabalho. Sim, pedi licença sem vencimento por um ano, que foi depois renovada, ao fim de cinco anos, como é da lei, ou eu voltava ou não voltava. Com os investimentos que eu tinha feito já não dava para voltar para a função pública. Está satisfeita com a sua opção? Por um lado sim, mas por outro não. Se tivesse ficado no Estado, eu já estaria reformada. No privado a conversa é outra. Então para si, ser funcionário público em Cabo Verde ainda tem o seu valor? Sim, claramente. Em Cabo Verde, na vida empresarial, passamos um bocado transtornados, principalmente por causa da mão de obra. Temos que estar sempre presentes, temos que ser professor o tempo todo. [ 101 ]


Como professor ou como capataz? É mais que capataz, é como um professor, porque, além de mandar, temos de saber fazer. Não adianta dar ordens quando não sabemos fazer. Por isso, eu aqui, se necessário, faço de tudo. Mas com a Escola de Hotelaria e Turismo a sua vida não ficou facilitada? Sem dúvida que ela tem contribuído para a melhoria do serviço, mas não é o suficiente. Falta sempre a componente prática que se adquire através do exercício. Sendo natural da Praia, na sua opinião, qual é o contributo que esta cidade deu para o desenvolvimento cultural de Cabo Verde? As coisas evoluíram muito. Como o Quintal da Música, há vários outros espaços, o que tem contribuído para tornar a cidade um lugar mais agradável, especialmente para quem nos visita. Isso contribuiu também para a melhoria de vida dos próprios músicos, que antes eram muito pouco solicitados para este tipo de trabalho, que nem sequer existia enquanto setor profissional. Hoje, constantemente, são chamados para animar. Fora isso, o Ministério da Cultura e a Harmonia têm feito muito para a música de Cabo Verde. O AME, o Kriol Jazz Festival, tudo isso tem contribuído imenso para o desenvolvimento do sector. Vem gente de fora, mas também atuam músicos de Cabo Verde, o que é muito bom para nós todos. O Quintal da Música sentiu o impacto dessas iniciativas? Sim. Você pessoalmente, quando começou, algum dia pensou que, por causa da música, a sua vida acabaria por ter o rumo que teve? Eu entrei de cabeça, mas não tem sido nada fácil. Todo o negócio, no início, nunca é fácil. Lidar com artistas, lidar com o público e lidar com funcionários não é mesmo nada fácil. Eu entrei para um dia ter sucesso. Por isso já lutei, e continuo a lutar, de todas as formas. Algumas vezes senti o barco a querer ir [ 102 ]

ao fundo, mas continuei sempre com a cabeça erguida. Se tivesse que começar de novo faria? Sim. Apesar do cansaço, não estou arrependida. Eu aqui não sou apenas dona, faço de tudo. Por exemplo, eu é que faço a programação cultural, eu é que contrato os músicos, tudo é comigo. Estou nisto há 10 anos, férias praticamente não tenho tido. Se por ano tirar uma semana é muito. E mesmo quando isso acontece é para meter obras. Esse tipo de experiência permitiulhe um tipo de realização pessoal, não? Sim. Graças a Deus, durante este tempo todo, aprendi muito. Desde logo libertei-me da função pública, vindo para um ramo que não tinha nada a ver com a minha vida anterior. Aprendi não só na área da música, como também da gastronomia. O trabalho é muito, é verdade, mas é compensador, do ponto de vista de realização pessoal. A maioria dos pratos que aqui estão são minha criação. Tudo que aqui se faz é com a minha supervisão. Portanto, não tenho mãos a medir. Reforma do Estado. Achas que o Estado em Cabo Verde precisa ser reformado? Entendo que algumas coisas precisam mudar. O quê, por exemplo? Assim de momento… Há muita gente que aponta a educação, saúde, justiça segurança… Por exemplo, aqui na zona do Quintal há problemas de segurança? Assaltos, aqui, nunca tivemos. Mas isso não significa que o problema não exista, a gente ouve, no dia a dia, histórias e notícias sobre o assunto, e por isso temos que estar alertas. Há quem diga que na Praia há hoje menos movimento noturno por causa da segurança. Você tem essa percepção? Sim, tenho. Havia, antes, muitos frequentadores do Quintal da

Música que deixaram de aparecer. Encontrando com eles, na rua, pergunto-lhes por que deixaram de aparecer, aí me dizem que hoje em dia sair à noite já não é como antigamente, é arriscado. Isso, como não podia deixar de ser, afeta os negócios para quem vive da noite como é o meu caso. Há também casos de turistas que já foram atacados. Não foi aqui, mas noutros sítios. É claro que isso também não ajuda. É uma má imagem que o turista leva. Que valores devemos cultivar em Cabo Verde? Entendo que a educação é fundamental. É claro que isso começa em casa, é preciso que cada um ensine os seus filhos valores corretos, alertando para o que é errado. De tal forma que, quem for educado em casa, quando adulto, ou quando estiver em sociedade, há de saber comportar-se. Mas da forma como certos jovens se estão a levantar hoje em dia – com delinquência e má criação – não podemos esperar coisa boa deles. Pessoalmente, não tenho razão de queixa dos meus três filhos – um deles já adulto – porque eduquei-os e procuro educá-los como deve ser. Quem me conhece e conhece os meus filhos, normalmente, falam-me muito bem deles, o que me deixa satisfeita e orgulhosa deles. Entre a Praia da tua infância ou adolescência e a Praia de hoje, qual é a diferença? Praia evoluiu muito. Embora eu me considere da Praia, na verdade, nasci no interior, em Picos, vim criança, com uns quatro anos de idade. Vim tão criança que já nem me lembro da minha vida no interior. Nós morávamos na Fazenda e pelo que me lembro aquilo eram poucas casas. Era mais um campo de cultivo de milho. Na Achada Eugénio Lima, eu me lembro de uma casinha, na ponta, junto ao quartel. Craveiro Lopes, sim, já era um bairro. Praia cresceu de tal forma que hoje já não há lugar para construir nem mais uma casa. A evolução aconteceu em todos os sentidos. Água, eletricidade, hospitais, centros de saúde… A comparação é vasta.


Nós, da geração mais velha, já fizemos a nossa parte, cabe aos mais novos fazer a parte deles. E para isso têm de se conscientizar que trabalho não é fácil, que nada nos é dado de mãos beijadas e que nem tudo acontece de imediato.

Na sua opinião, nessa evolução, o que é mais importante? Tudo que acabei de dizer é importante. Por exemplo, a nível da saúde. Antigamente, além do Hospital, só Craveiro Lopes é que tinha um posto sanitário. Talvez a Achada de Santo António também. Hoje quase todas as zonas têm centro de saúde. Isto é muito importante, está relacionado com a melhoria de vida das pessoas. A nível da eletricidade e água, a mesma coisa. Dantes eram poucas as casas que tinham luz e água canalizada, hoje quase todo o mundo tem esses dois bens. Portanto, não há comparação possível entre a Praia da minha infância e a Praia de hoje. Você disse que o Quintal recebe gente de vários lugares. O que você acha das relações de Cabo Verde com a Europa? Por coincidência, hoje, ao almoço, em conversa com uns senhores de São Tome e Príncipe, falávamos da evolução que Cabo Verde registou nos últimos anos. E, nisso, dá para perceber que temos hoje relações com gente dos mais variados lugares do mundo, inclusive de África, que também frequentam o Quintal. Como cabo-verdiana, o que acha disso? Acho útil e importante. E a nossa presença na CEDEAO? Ela é importante. Cabo Verde não pode ficar sozinho no mundo. E o que acha da presença dos imigrantes africanos aqui? Se nós vamos para a terra deles, eles também têm o direito de procurar a vida deles aqui. É no mínimo justo. Estando eles aqui, temos de procurar integrá-los na nossa sociedade, de forma que todos possamos viver em harmonia e em paz, uns com os outros. Hoje em Cabo Verde fala-se na regionalização. Precisamos de fazer a regionalização? Eu acho que não. Por quê? Não vejo necessidade.

Nestes quase 40 anos quem são as figuras que merecem ser destacadas? Na cultura são muitos. Prefiro não apontar o nome de ninguém, não quero ser injusta. Na política é a mesma coisa. Cada um fez o que achou que tinha de fazer e é isso que importa. Não sou muito de política. Nada tenho contra os políticos, mas também não sou fã deles. E em relação ao futuro de Cabo Verde? Neste momento não sou muito otimista, sobretudo por causa dos jovens. A geração mais nova precisa pôr na cabeça que, se quisermos que este país continue a evoluir, isso está nas mãos dela. Como se diz, os jovens é que são o futuro. Nós, da geração mais velha, já fizemos a nossa parte, cabe aos mais novos fazer a parte deles. E para isso têm de se conscientizar que trabalho não é fácil, que nada nos é dado de mão beijada e que nem tudo acontece de imediato. Infelizmente, os jovens de hoje não pensam como nós, que achávamos que tudo era conquistado aos poucos, passo a passo, até chegarmos onde cada um de nós se encontra neste momento. Eles querem tudo de uma só vez, sem esforço. Ninguém pode pensar que tudo é fácil, que é só querer e pronto, que tudo é de mão beijada. É preciso lutar, com o tempo, até alcançar o objetivo pretendido. Você própria é um exemplo disso, não? Exato. Eu, se estou onde estou, não me foi dado, foram muitos anos de muita luta, muito desgaste, para eu estar onde estou. Você começou a trabalhar com que idade? Com 17 anos. Comecei a trabalhar no Ministério da Educação. Eu ainda nem tinha idade. Tive de trabalhar quase um ano para eu ser nomeada, na altura para entrar na função pública era com o mínimo de 18 anos. Fui aprendendo com os mais experientes, até me tornar num quadro experiente. [Cidade da Praia, 29/05/14] [ 103 ]


Mário Correia

“Estamos no capitalismo selvagíssimo” Mário Correia, 54 anos, presidente do SICOTUR (Sindicato do Comércio e Turismo), com sede nos Espargos, ilha do Sal, traça nesta entrevista um retrato brutal da situação laboral nessa ilha, cuja principal atividade económica é o turismo. Correia considera-se um cabo-verdiano de duas ilhas: Fogo, onde nasceu; e Sal, onde vive desde 1980. A mudança, para este cidadão, é necessária em vários setores da vida nacional, inclusive no próprio movimento sindical.

Vejo que a sua vida como sindicalista é uma roda viva, quase não tinha tempo para mim. Realmente, a minha vida é muito complicada. Os problemas aqui no Sal são muitos e as soluções são poucas. As instituições ligadas ao trabalho – Direção Geral do Trabalho (DGT) e Inspeção Geral do Trabalho (IGT) e o próprio Tribunal – funcionam muito mal. Quais são os principais problemas que o Sal, a nível do trabalho, apresenta? Os problemas são de toda a espécie. Os despedimentos chegam a ser abusivos, sem que ninguém a isso ponha cobro. Quando a lei dá facilidades no despedimento há gente que aproveita. [ 104 ]

O trabalho está precarizado em Cabo Verde? Gravemente. Por exemplo, no hotel Tortuga, com 300 trabalhadores, 100% são contratos a prazo. Quais são os problemas mais gritantes com que se depara no seu dia a dia? Os despedimentos são o problema de maior. A lei estipula que o contrato a prazo não pode ultrapassar os cinco anos, sabendo disso, ao fim de três ou quatro anos, o empregador não o renova. Isso acontece e não há nenhuma consequência para o empregador. Outra situação igualmente preocupante é a segurança social. A pessoa perde o seu posto de trabalho, cai no

desemprego, mas fica o que descontou, não beneficia de nada. Mas as transferências foram feitas para o INPS? Normalmente, não. Ou então, como não há um controlo, o empregador risca do mapa alguns trabalhadores e apresenta apenas uma parte. Estamos a viver aqui no capitalismo selvagem? Aqui vivemos num capitalismo selvagíssimo. Tenho denunciado certas situações, na expetativa até de algumas instituições de direito me convocarem para eu apresentar os casos e os factos, mas nem isso acontece. Aqui as coisas funcionam de forma abandalhada.


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Então o Sal é uma terra sem lei? As leis existem mas não são para cumprir. Não há nada como uma pessoa estar a trabalhar para uma empresa de forma honesta, mas cheia de medo, porque não sabe a que momento pode receber uma carta de fim de contrato. O trabalhador é um boneco nas mãos do patrão, faz tudo para não ser despedido. Por exemplo, por razões de saúde, a pessoa vai ao médico, tem uma semana de casa, quando regressa tem uma carta de despedimento. Chega-se a este ponto? Sim, não estou a simular nada, estou a falar de situações concretas. O caso é enviado para a DGT, alegando que foi por razões de saúde que o trabalhador teve de ir para casa, o processo desaparece. E a IGT foge, por seu turno, da responsabilidade. A gente pergunta por que é que situações do género acontecem? Foi você que disse que havia trabalho escravo? Não, quem disse isso foi um colega meu, na Boa Vista. Mas aqui no Sal não estamos longe disso também. O “trabalho escravo” não tem nada a ver com o comércio negreiro de antigamente, mas quando uma pessoa vai para o trabalho com fralda… Mas por quê vai ao trabalho com fralda?! Porque pode urinar a qualquer momento. O stress é tanto, que o sujeito perde o autocontrolo urinário. Há gente que recebeu carta de despedimento e caiu desmaiada. Tenho o caso de uma mulher que morreu pouco depois por causa de um problema laboral. Abriu-se o processo, o empresário, em dois tempos, desapareceu daqui, nada aconteceu. Situações do género acontecem todos os dias. Por exemplo, assédio. Moral ou sexual? Os dois. Temos não um mas vários casos de assédio sexual com consumação. A pessoa escolhe, “ou aceita o meu pedido, ou é despedida”. [ 106 ]

Aqui [na ilha do Sal] vivemos num capitalismo selvagíssimo. Tenho denunciado certas situações, na expetativa até de algumas instituições de direito me convocarem para eu apresentar os casos e os factos, mas nem isso acontece. Aqui as coisas funcionam de forma abandalhada.

Diga-me, como sindicalista, como consegue viver neste quadro que me está a descrever? Eu tenho de me esforçar. Nos casos de assédio, recebo relatos, mas as pessoas se recusam que eu leve o caso avante porque têm medo. É difícil ser-se sindicalista num quadro deste, não? Sim, além de difícil, é perigoso. Há dias uma senhora me disse: “Sr. Mário, eu estive um ano sem trabalhar, perdi o emprego porque não aceitei, as minhas colegas aceitaram todas. Quando a situação apertou, sem dinheiro para pagar as minhas despesas, conclui que eu devia ter aceitado também.” Como estão os cidadãos deste país, que se orgulha das leis que tem? Os cidadãos estão fragilizados. O quadro jurídico laboral existe mas o seu exercício efetivo não. As pessoas tudo fazem, tudo aceitam, para não perderem um emprego. Mesmo as pessoas com contratos de trabalho de 10 ou 20 anos têm medo de perder o emprego. Mesmo que a pessoa seja despedida sem justa causa, podendo por isso recorrer ao tribunal, põe-se o problema da demora da Justiça. Por maiores que sejam os problemas, hoje em dia, nenhum trabalhador mostrase disposto a participar numa greve. O nível de pressão e intimidação, maus tratos, ofensas, é tal que os trabalhadores sentem-se de mãos atadas. Esse tipo de situação é do conhecimento dos deputados da ilha? Sim. No caso de Basílio Ramos, presidente da Assembleia Nacional, sempre que ele vem ao Sal, de três em três meses, temos nos reunido com ele e damos-lhe conta dos nossos problemas. Também conversa com os outros deputados? Sim, com os outros dois do MpD. Mas ultimamente tem sido sobretudo com o dr. Basílio Mosso Ramos. Só que de resultados concretos não tenho notado nada. Por isso não vejo a necessidade de continuarmos com este diálogo já que os problemas persistem. Se o presidente da AN, segunda figura


da hierarquia do Estado, não tem competência para influenciar nada, para quê continuar a conversar?

REFORMA DO ESTADO: “O ESSENCIAL” Diante do seu quadro, o que representa para si, neste momento, a reforma do Estado de Cabo Verde? Eu estou completamente desanimado. Não vejo nos próximos 20, 30 ou 40 anos uma verdadeira reforma do Estado. No entanto, este país precisa de uma reforma profunda. Muito de bom tem sido feito, mas o essencial não está a ser feito. O quê, por exemplo? Igualdade. Igualdade de forma proporcional porque, admito, não nos podemos colocar todos na mesma bitola. Aqui os cidadãos não são iguais perante a lei? Não, nem nos casos em que a lei determina a igualdade. Toda a gente deve ser valorizada pela sua capacidade, pela sua formação e pelo seu trabalho, mas o essencial, o mínimo, para toda a gente é indiscutível. Quem veio para o mundo veio para viver, tem necessidade de casa, comida, educação, saúde. Quando vejo gente doente, à espera de uma evacuação que não chega nunca, agregados familiares a viverem no mesmo espaço, idosos que são mal atendidos, trabalhadores que descontam nos seus serviços mas os descontos não são repassados para o INPS e não há ninguém para intervir, considero que o Estado está a falhar. Sabemos que o Governo tentou a lei da cobrança coerciva que foi inviabilizada pelo MpD. Qual a sua posição sobre este assunto? A iniciativa do Governo é muito louvável, a atitude do MpD merece censura forte. Em jogo estão milhões de contos por recolher, com prejuízos gravíssimos para os trabalhadores. O INPS não pode passar por cima da lei e não pode obrigar as empresas a pagarem, por isso a solução que encontra é cortar nas prestações dos trabalhadores. Do meu ponto de

vista, o problema só se resolve através de uma cobrança coerciva como pretendia o Governo. O problema tem de ser resolvido através de um processo que permita uma cobrança rápida. Há empresas de grande porte que não transferem para o INPS o que cobram, todos os meses, aos seus trabalhadores. O Governo não tem nada a ver com o assunto? O Governo é para dirigir este país em todos os sentidos. A mesma coisa as demais instituições do Estado – deputados, tribunais, etc. Só que ninguém quer saber disto. Se nada for feito, continuando como as coisas estão no INPS, as nossas reformas estão comprometidas. Além disso, o próprio INPS tem de mudar, não tem sido gerido da melhor forma, há algum esbanjamento na sua gestão. Os desvios são avultados, demora-se muito para serem detetados, e quando são, foram milhares e milhares de contos que voaram e que nunca mais serão recuperados. Precisamos, de facto, de uma mudança profunda, também, no sistema de segurança social, tanto nos métodos como na gestão.

SINDICALISMO, “SANGUE NOVO” Então, a seu ver, a reforma do Estado deve centrar-se neste domínio social? Sim. Todo o país está a clamar por inovações. Eu próprio tenho desafiado os meus colegas para introduzirmos mudanças na nossa atuação sindical e essa mudança passa pelos próprios dirigentes. Mesmo os dirigentes sindicalistas? Sim, nós, os principais dirigentes, já somos pessoas caducas. Eu tenho 54 anos, estou nisto há muito tempo, o sindicalismo precisa de sangue novo, de novas abordagens. Ultimamente, o nosso movimento foi tomado por conflitos internos, o que dificulta as nossas ações no dia a dia, sobretudo aquelas que exigem união nas ações, unidade nas intervenções, etc. E isso vem desproteger ainda mais os trabalhadores. Naturalmente. Temos estado a fazer reuniões a nível da UNTC-CS em que a

maior parte do tempo é para resolver os nossos próprios problemas internos, não os dos trabalhadores em si. Quanto às reformas para o país, elas têm sido feitas, só que de forma tímida, ou então com pouca relevância porque o que se quer é mudança efetiva, não é conversa nas antenas. Quando se deteta um problema, ele deve ser confirmado rapidamente para, se necessário, mudar o que for preciso mudar. A gente reclama ou denuncia certas situações e os responsáveis nem sequer dizem “recebemos a sua carta, recebemos a sua denúncia, vamos ver o que se passa para tomar medidas”. Isto acontece em todos os níveis. Não é normal a gente apelar à solução dos problemas e os responsáveis nem sequer nos atendem o telefone ou nunca estão para nos receber. O próprio Estado é um incumpridor em Cabo Verde? Claramente. Ele próprio não cumpre certas obrigações com o INPS. É o caso da Câmara Municipal do Sal, por exemplo. Ela tem dívidas de valores avultados com o INPS. Neste momento os seus trabalhadores estão sem direitos no âmbito da segurança social. Sendo assim, o Estado não tem moral para cobrar os privados. Naturalmente. A lei de cobrança coerciva que o Governo pretende tem de abranger o próprio Estado. E acredito que neste momento o Estado é o maior devedor do INPS. Se a lei for aprovada podemos, desde já perguntar, se o INPS vai executar o Estado? (risos) Sim, porque a lei não pode ter exceção. O assunto é grave. Veja o que se passou com a RTC [Rádio Televisão de Cabo Verde], a coisa chegou a um ponto que o INPS cortou, fez-se alguma pressão, a RTC começou a pagar, mas estou convencido que o que paga está muito longe daquilo que devia pagar. Diante disso, qual é o futuro da segurança social? É por isso que estou preocupado e desanimado com muita coisa nesta terra, não vejo a resolução efetiva de muitos dos nossos problemas. Hoje [ 107 ]


no Sal vivemos uma situação em que estamos pior do tempo que não tínhamos aqui a Inspeção Geral do Trabalho. A IGT não funciona, inventa razões para não tomar determinadas medidas previstas na lei. Mas por que diz isso? Eu tenho dito que as instituições do Estado – casos da DGT e IGT – não podem funcionar como funcionam aqui no Sal. Somos ofendidos todos os dias por empregadores, diante dos responsáveis da DGT e IGT, e estes assistem calados como se não estivessem a ver nada. Pelo contrário, acabam por alinhar com o patronato. A coisa chegou ao ponto de uma empresa como a Tecnicil, diante do atraso no pagamento dos salários, dizer que os trabalhadores têm de provar que a empresa está em condições de pagar o que deve aos seus trabalhadores. Diante disso, o representante da DGT acena com a cabeça e confirma, “sim, é verdade, o trabalhador tem de provar que a empresa tem condições de pagar salários!” (risos) Mas o trabalhador tem apenas de provar que trabalhou!… (risos) Como vê, chegamos ao nível da anedota. Enquanto instituição, a DGT o que faz de bem dignifica o Estado e o que faz de mal prejudica a imagem do Estado. Veja o seguinte: uma criança é internada no hospital, a mãe pode fazer companhia a essa criança, mas precisando, essa mãe não tem o direito de utilizar a casa de banho do hospital para tomar um banho, por exemplo. Se mora em Santa Maria, tem de pagar um transporte para ir tomar um banho em casa. Eu denunciei isso publicamente, num programa radiofónico (Quarta à Noite) e fiquei à espera que alguém viesse dizer que era mentira. Até hoje! E o problema persiste? Neste momento não sei. Pode até ser que tenha mudado com a minha denúncia. Mas as pessoas que sofreram na pele o problema nunca vieram a público dizer o que se estava a passar. Não há um exercício de cidadania aqui no Sal, pelo menos. E isso não acontece por quê? Por medo. Não há liberdade. [ 108 ]

As pessoas aqui se intimidaram porquê? Sobrevivência. O Estado deixou essas pessoas em situação de fragilidade? Claramente. E esse medo decorre, acima de tudo, da lei do trabalho, mais precisamente o artigo o 365, alínea 5, que diz: “O contrato caduca no termo do prazo inicial ou da sua prorrogação, se essa for a vontade do empregador ou do trabalhador. A vontade do empregador deve ser comunicada ao trabalhador por escrito e com antecedência mínima de 10 dias”. Tenho várias comunicações que dizem apenas isto: “O contrato termina no tal dia e não será renovado”. Mas repare, não havendo grande desemprego no Sal, é de supor que os trabalhadores estariam numa situação relativamente confortável. O Hotel Riu tem mais ou menos 650 trabalhadores, com a mudança da lei em 2010, fomos avisados que nenhum contrato haveria de se transformar em contato por tempo indeterminado. Essa empresa é um dos casos onde os trabalhadores vivem, permanentemente, em estado de medo. Aceitam tudo. O medo é tal que o sindicalismo está extremamente difícil no Sal. Apesar de não receber salários, não ter as suas transferências feitas para o INPS, é o trabalhador, no entanto, que sente medo e não o empregador. É este o quadro no Sal. O Sal tem muita mão de obra vinda do continente. Suponho que essa gente não estará em melhores condições que os seus colegas caboverdianos. Eles contribuíram para degradar os salários. As construções aqui só funcionam praticamente com essa mão de obra africana. Como a maioria desses imigrantes não estão legalizados, não têm capacidade reivindicativa, o seu salário é aceite porque o pouco que ganha aqui é ainda melhor do que estar na terra dele sem receber nada, no meio de guerras e outros problemas. Há empreiteiros a saírem ricos de Cabo Verde, pagam salários de miséria e,

pior, não pagam a segurança social. Há empresas a participarem no programa Casa para Todos a fazerem isso. O Estado tem consciência disso? Claro! Ou, se não tem, tapa os olhos e os ouvidos.

INTEGRAÇÃO REGIONAL: “REFERENDO” Com isso entramos num dos pontos do meu roteiro, que é a integração regional de Cabo Verde na CEDEAO. Um dos seus impactos, como sabemos, é a chegada desta mão de obra que vem concorrer com a mão de obra local em condições quase que desleais. É isso realmente? Primeiramente, é preciso dizer que o cabo-verdiano, hoje dia, acha que ganhou estatuto e que por isso trabalhar na construção civil não é um trabalho digno. Mas ele está qualificado para exigir melhor? Com mais formação existente, hoje, as pessoas já não querem certos trabalhos nas obras. O trabalho da hotelaria é feito na sombra, é mais procurado; além disso, não são todos os hotéis que apresentam más condições. É por isso que, pessoalmente, sou pelo salário mínimo por setor profissional. Para mim, a integração regional e a parceria especial com a Europa, nomeadamente a facilitação de vistos, me preocupam. Já temos uma livre circulação de pessoas com a CEDEAO não controlada, com a Europa não teremos essa circulação nunca! Da Europa para Cabo Verde pode até ser, mas o contrário nunca. Veja que somos 500 mil, o que é que isso significa no continente ou mesmo na Europa? Com toda a gente que estamos a receber vamos continuar a ser caboverdianos? Corremos o risco de nos transformarmos em minoria dentro da nossa própria terra. Está então preocupado com o futuro? Sim, estou. Eu, pessoalmente, não quero viver em nenhum outro país que não Cabo Verde.


E teme ser estrangeiro um dia em Cabo Verde? Sim. E esse futuro não está longe. Vá a Santa Maria, circule e você verá que o cabo-verdiano já é minoria. É gente tanto de pele branca como negra.

A Europa e os EUA já fizeram as suas contas com Cabo Verde e a abertura deles não é para beneficiar os cabo‑verdianos. Em relação à CEDEAO, ainda estou para perceber quais são os benefícios que estamos a tirar ou haveremos um dia de retirar.

Mas é uma população que está em trânsito, não? Eu não estou a falar de turistas, estou a falar de residentes. No ritmo em que estamos, daqui a 20 anos, no Sal pelo menos, seremos minoria. Mas ao ficarem essas pessoas enraízam-se, tornam-se caboverdianos… Certo. Os filhos desses indivíduos serão cabo-verdianos, ou não? Sem dúvida. Mas este é um jogo do pequenino com o grande. Não é um jogo justo, convenhamos. A Europa e os EUA já fizeram as suas contas com Cabo Verde e a abertura deles não é para beneficiar os cabo-verdianos. Em relação à CEDEAO, ainda estou para perceber quais são os benefícios que estamos a tirar ou haveremos um dia de retirar. E nisso de integração entendo que essas coisas devem ser decididas pelos cabo-verdianos, não é só pelos políticos, pelo Parlamento. Mas os políticos são nossos representantes. O povo nunca lhes deu o direito sobre onde é que eles nos podem levar ou meter. (risos) Falando por mim, eu nunca votei em nenhum partido para me integrar nesta ou naquela comunidade. Há coisas que os políticos deveriam voltar ao povo e perguntar. Entende que devia haver um referendo em torno da nossa integração? Sim, um referendo principalmente sobre a nossa presença na CEDEAO. Com a União Europeia não estou de acordo com o processo de facilitação de vistos. Aqui o nosso problema maior é o que temos de disponibilizar para o acordo de facilitação de vistos que só vale, ainda por cima, para certas categorias. A Europa quer utilizar-nos como os seus guardiões em relação [ 109 ]


às pessoas que vêm do continente africano e, de Cabo Verde, procuram chegar à Europa. Na sua opinião, Cabo Verde não tem como se aguentar na aldeia global? Não tendo, deveria preparar-se para isso. Cabo Verde está despreparado para o mundo global? Sim, está. Primeiro está desprovido de informações. Eu, por exemplo, assumo: eu estou desprovido e desprotegido. Veja, os cabo-verdianos ainda emigram para o mundo inteiro. As vezes, por vício. Uma pessoa que está em Cabo Verde, a trabalhar, com uma vida normal, tem casa, carro, emigra para quê? É clássico que as pessoas só emigram por razões económicas. Devia ser assim. Você é de que ilha? Eu sou da ilha do Fogo. Lá vivi até os 18 anos. Mas é vocação de todo o foguense emigrar, de preferência para os EUA. Eu vim para o Sal. Quando terminei o serviço militar obrigatório, eu tinha trabalho nos correios do Fogo, mas aqui acabei por ficar. Aqui estou desde 3 de Janeiro de 1980. Trabalhei nos TACV, passei depois a trabalhar no Setor do PAICV. Em relação à emigração, estive na Rússia em 1987, na França, em outros lugares… não fiquei. Não gosto de nenhum país estrangeiro, de nenhum mesmo, nem para passar poucos dias, quero logo voltar para o meu país. Nunca teve a tentação de emigrar? Não, e nem vou ter! Mas eu aposto que familiares seus emigraram. Sim, é verdade, inclusive tenho um filho em vias de emigrar para os EUA. É normal, ele está no desemprego, tem lá a mãe, irmãos. Estive em Itália, Portugal e França e sei das dificuldades que os nossos patrícios lá passam. [ 110 ]

Mas a emigração não é um dos aspetos que fazem parte da nossa identidade? Sim, sempre fez e continua a ser. O que não podemos é admitir que aqui na nossa terra soframos da mesma maneira que sofremos na emigração. Há muita gente que está a vir para Cabo Verde e que em pouco tempo se comporta como se fosse dona desta terra. E nisto, tenham paciência, eu não admito. Não admito que um fulano só porque é dono de uma empresa possa pôr e dispor da vida de caboverdianos. Eu, enquanto puder, não vou admitir. A mim, bastam-me os 500 anos que os nossos antepassados sofreram nas mãos dos portugueses. Estamos a ser dominados novamente? Dominados não, porque temos democracia, temos leis. Mas há estrangeiros que vivem aqui muito à-vontade, gente que parece gozar de particular proteção. Não falo que todos são iguais, mas há gente aqui a abusar. Por exemplo, na Câmara do Sal há um aviso a dizer que ninguém pode lá entrar de calções, isso só é válido para os cabo-verdianos, ou para os imigrantes africanos, os brancos entram sem problemas. Por quê? A mim dói muito. Normalmente, o africano, mesmo com algum nível, tem poucas oportunidades; os brancos não, conseguem facilidades nos bancos sem problemas de maior, deixando muitas vezes dívidas por pagar. Há racismo no Sal? Não, mas há quem pratique o racismo.

SER CABO-VERDIANO, “DEFENDER O QUE É NOSSO” Para si o que é ser cabo-verdiano? Para mim, o cabo-verdiano, em primeiro de tudo, tem que se afirmar. Temos que zelar para preservamos a nossa identidade, a nossa dignidade, para defender o que é nosso, afirmarmo-nos como cabo-verdianos, nunca deixarmos de ser aquilo que somos. Para si, existe uma identidade caboverdiana? Não na globalidade. Há muita gente que gostaria de não ser cabo-verdiano.

Para ser o quê, por exemplo? Português. Em 1975, muitos funcionários cabo-verdianos foram-se embora. Alguns voltaram. Tirando isso, o que nos une como cabo-verdianos é algo muito forte, que se manifesta sobretudo quando estamos no estrangeiro. Aqui dentro, este país já não tem nada a ver com o Cabo Verde de 1975. Por que diz isso? O desenvolvimento impõe essa diferença. Hoje a diferença de classes é maior. Mesmo assim, por mim, Cabo Verde é a melhor nação do mundo. Por quê? Com a nossa determinação, com a nossa vontade de fazer, conseguimos atingir um certo nível que muitas nações, com mais recursos, não conseguiram. Somos diferenciados pela nossa seriedade. Precisamos corrigir determinados males para continuarmos a ser uma nação de referência. Eu digo-lhe: em 1980, quando cheguei ao Sal, ninguém se preocupava em comprar fechaduras, não era importante, não havia grades nas casas. Roubos, assassinatos, violações eram coisas que não faziam parte da nossa vida. Hoje, em Santiago, todos os fins de semana, há um assassinato pelo menos. Duas pessoas, por média, são assassinadas por semana em Cabo Verde. Isto é preocupante. Mas há quem diga que é normal, num país em desenvolvimento, essas coisas têm de acontecer. Eu prefiro continuar a achar que não é normal. Na sua opinião, o que é que aconteceu ao cabo-verdiano? Há factores que explicam isso, a ganância é um deles. E o pior é gente que quer ter sem trabalhar para isso. Há uma crise de valores na sua opinião? Há sim. Veja a violência doméstica, o kaçubody, o tráfico de drogas, assassinatos… O que está a acontecer nos últimos cinco a sete anos, a dimensão desses acontecimentos deveria dar lugar a uma reflexão profunda. Quando duas estrangeiras – italianas – são enterradas vivas, isso


A gente reclama ou denuncia certas situações e os responsáveis nem sequer dizem “recebemos a sua carta, recebemos a sua denúncia, vamos ver o que se passa para tomar medidas”. Isto acontece em todos os níveis.

nos deve levar a pensar no que é que nos estamos a transformar enquanto povo. Esse episódio não aconteceu porque o fulano e as fulanas beberam duas cervejas. Quando a Chefia do Estado Maior das Forças Armadas, na Praia, funciona num edifício que foi tomado aos fulanos da droga é porque algo está mal. Esse prédio foi construído com o dinheiro da droga, um dinheiro sujo. Acha que o Estado não deveria tomar esse edifício? Não! Aquilo é para demolir. Demolir?! Sim, demolir. Agora com a Lancha Voadora o Estado vai tomar vários apartamentos, acha também que é para demolir? Sim, no máximo aproveitar apenas o terreno. O terreno não pode ser demolido. O resto é para demolir. Veja o seguinte: uma delegação estrangeira chega, levam os fulanos ao edifício, esses visitantes vão estranhar a qualidade do serviço, perguntando onde saiu o dinheiro, vai-se responder “o edifício foi construído com dinheiro da droga que nós tomamos aos traficantes”. Isso é normal? Na minha cabeça não entra. Eu tenho este princípio: na minha casa não entra nenhum parafuso que não seja suor do meu trabalho. Tudo tem de ser realmente meu. Assim entendo também que o Estado deve agir. Nada que não seja ganho pelo seu trabalho deve ser dele. O Estado é imoral? Até compreendo que todos os edifícios tomados não poderão ser dinamitados porque isso irá criar problemas graves. Imoralidade haverá por outras razões. Quando a alguém são concedidas facilidades através de meios públicos é de se perguntar: por quê? Quando a alguém é concedido um terreno para explorar inertes e esse mesmo alguém fornece inertes à câmara é de se perguntar o que é que pagou. Temos corrupção em Cabo Verde? É bem provável que haja. Neste país ninguém deve ter vantagens sobre

ninguém. Este país pertence a todos nós. E todos nós, a nível de cada um, devemos ter a nossa parte de forma proporcional e sobretudo legítima. Precisamos de uma distribuição séria da riqueza, para que todos se sintam felizes neste país, para que as pessoas não continuem a ver na emigração a possibilidade de ser feliz. É preciso ver que na tentativa de conseguir o melhor as pessoas emigram deixando para trás o razoável, correndo o risco, às vezes, de perder os dois. Nisso nem sempre se consegue o melhor. Mas emigração é sempre um risco. Sim, um risco que ninguém deveria correr. Este país tem tudo para dar certo. Ah, sim?! Sim. Desprovidos de meios, a nossa credibilidade é tão grande que nos permite apoios avultados conseguidos com base na nossa seriedade. Então por que não corrigir os males que ainda há em Cabo Verde? Veja o problema do esbanjamento, os valores que são gastos para determinadas atividades, esses valores poderiam ser utilizados para resolver um conjunto de problemas. Neste momento está em curso uma coisa extraordinária que é a política de habitação. Esta é daquelas coisas que precisam ser louvadas. Eu sinto que os caboverdianos, de uma forma geral, estão satisfeitos com o programa Casa para Todos. Com a poupança, com gastos certos, poderíamos conseguir muito mais do que aquilo que já conseguimos. Há muito ainda por fazer em Cabo Verde. Que gastos você cortaria? Com o Parlamento. Primeiro reduzir o número de deputados, segundo cortar na circulação deles, cortar determinadas viagens dos membros do Governo fora do país, o Presidente da República a mesma coisa. Viagens, mesmo dentro do país, muitas delas não são necessárias. Repare, os governados – isto é, os cidadãos – querem sentir a proximidade de quem os governa. Eu acredito que sim, mesmo que isso não leve a nada. Mas eu sou diferente. [ 111 ]


É diferente por quê? Entendo que só devemos fazer o que nos traz resultados. O dinheiro público é sagrado. Por causa disso, também não sou a favor do prémio de jornalismo. Mas por quê? Premiar quem está a fazer o seu trabalho? Não basta o salário?! Se é assim eu também quero ter prémio. Mas os sindicatos não lutam por prémios de produtividade, quem trabalha já não recebe salário? Nós lutamos por prémios de produtividade para toda a gente. São quantos os jornalistas que merecem prémios? Não são muitos. Essa sua lógica leva-me a perguntar por que razão condecorar pessoas que foram bons cidadãos? Um prémio de jornalismo dava para fazer outras coisas – por exemplo, melhorar a vida de quem mora numa casa de tambor sem os mínimos que levem um ser humano a ter uma vida condigna. Eu sei que eu sou complicado por excelência. Complicado no bom sentido, é claro. Mas entre o essencial e o supérfluo prefiro o essencial. Veja este gabinete apenas tem o essencial. Eu abro mão das mordomias porque sei que os meus associados passam por dificuldades. Vivo apenas com o que é estritamente necessário. E se eu vivo assim o país também pode, basta utilizar este método de gestão. Veja, o INPS corta os benefícios aos trabalhadores porque a empresa não transfere os descontos, no entanto, é o mesmo INPS que tem gastos desnecessários. Se formos fazer o inventário de todas as anomalias que vão tendo lugar nas câmaras, na administração central, é dinheiro que daria para resolver muitos problemas de quem precisa. O Estado é gastador, na sua opinião? Sim, é gastador. É irresponsável? Quando um gasto é desnecessário é porque há irresponsabilidade. [ 112 ]

Na sua opinião, os servidores públicos são devidamente fiscalizados? Pode haver alguma fiscalização, mas no geral não. Mas não é só o Estado, também as empresas privadas são mal geridas. Uma empresa privada que alega dificuldades financeiras para cumprir determinadas obrigações mas, entretanto, tem gente a ganhar balúrdios, com gestores a circular em carrões, é ou não irresponsabilidade que essa empresa não pague os seus funcionários, não transfira os descontos dos seus trabalhadores para a segurança social? Esse é um tipo de irresponsabilidade que merece ser corrigido mesmo com a intervenção de instituições do Estado. O Estado, ou o Governo, deve ter o direito de agir em todos os setores de atividade desde que o interesse público seja posto em causa. Ter trabalhadores sem receber é um problema de interesse público, porque é a vida dessas pessoas que está em perigo. Há normas que têm de ser cumpridas.

REGIONALIZAÇÃO: “IR DEVAGAR” Fala-se hoje em dia em regionalização. Qual é a sua opinião sobre este assunto? Tenho as minhas reservas. Regionalizar o quê e em que sentido? Este país é um todo. Ainda que sejam necessárias algumas autonomias em certas áreas, convém ir devagar. Mais uma vez, acho que há outras prioridades. Para si, a regionalização não é uma prioridade? Não. Assim como o Tribunal Constitucional não era prioridade, o provedor de Justiça também não. Mas um provedor poderá ser útil no seu trabalho de defesa dos trabalhadores, ou não? Eu ainda não tenho a certeza que isso vai acontecer realmente. Para todos os efeitos é mais uma instância a que os sindicatos poderão recorrer, não acha? Se é mais uma instância é mais


Ao fim de vários anos de trabalho, há gente a receber menos de 20 contos por mês. O Estado tem moral para chamar esse professor de professor? Com isso, diga-me, a educação precisa ou não de uma restruturação?

humano ser cuidado quando adoece. E esse direito tem sido posto em causa aqui no Sal, como já expliquei atrás.

Mas a educação precisa de uma restruturação para melhorar a situação laboral dos professores ou para melhorar a qualidade do ensino? As duas coisas. Um professor insatisfeito leva a que nem sempre os resultados sejam satisfatórios.

E o salário mínimo, qual é a sua opinião? Eu sou pela regulamentação salarial, o que passa pelo salário mínimo, particularizando as ilhas do Sal e da Boa Vista. Entendo que nessas duas ilhas devia haver um “outro” mínimo. Com onze mil escudos nessas duas ilhas compra-se muito menos do que nas outras ilhas.

Mesmo assim, a ideia que se tem é que os resultados no ensino são sempre altamente satisfatórios. O que é preocupante. E, no entanto, com todos esses níveis de satisfação, agora os alunos para irem ao Brasil têm de fazer testes de língua portuguesa. Há aqui um desencontro entre o discurso oficial e a prática.

CRIOULO, “ENSINO EM PORTUGUÊS”

distância para lá chegar. (risos) Sou por um tribunal de comarca com meios humanos e materiais, instalações de boa qualidade, os juízes têm que ser bem pagos, à semelhança dos médicos, com boas instalações para que os processos sejam julgados! Tribunal Constitucional, qual vai ser a sua ocupação? Provedor de Justiça. Nada disso, para mim, é prioridade. É como disse há pouco tempo Pedro Pires, está-se a proliferar instituições para quê? Veja, além do ministro da Economia Marítima, temos o Secretário de Estado das Pescas, o Diretor-Geral das Pescas, enfim, escalões, escalões, mas o fulano que está a pescar precisa desses escalões? O certo é que com todos esses escalões a coisa não está a resultar nada. Ou seja, você entende que o Estado em Cabo Verde… … precisa de restruturação! Para si, quais são os setores mais críticos? Educação e saúde. Na educação porque há muita reclamação dos professores.

E a questão do crioulo no ensino? Eis uma boa pergunta! Eu sou pela oficialização do crioulo para, simplesmente, ser utlizado para falar, não para se escrever. Mas então como vai acontecer a oficialização? Para mim, basta dizer que o crioulo possa ser utilizado nas instituições públicas – nos tribunais, no Parlamento, etc. O crioulo interfere no português, nomeadamente no ensino dessa língua em Cabo Verde. Eu pergunto: com a oficialização como será, o professor terá a liberdade de ensinar na língua que quiser, português ou crioulo?… Ou tudo ao mesmo tempo? Sim, ora fala em crioulo, ora em português, como lhe der na telha? No Parlamento, quem quiser, pode discursar em crioulo, mas no ensino não, tem de ser em português. Esta é a minha visão! E a saúde por que é prioritária? Porque mexe com a vida das pessoas. Além disso, é direito de todo ser

SALÁRIO MÍNIMO, “EFEITOS PERVERSOS”

Já há impactos do salário mínimo nacional no Sal? Sim. Para pior ou melhor? Para pior. Há empresas que diante do salário mínimo instituído refizeram as suas contas, dispensando os trabalhadores que têm e contratando outros por essa bitola, pagando-lhes menos. O efeito aqui no Sal está a ser perverso. No combate para a fixação de um salário mínimo nacional estive sozinho mesmo face aos meus colegas sindicalistas.

DIÁSPORA, “MELHOR PROVEITO” O que é que a diáspora pode contribuir para o desenvolvimento de Cabo Verde? Tem dado muito e acredito que isso vai continuar. Cabo Verde depende muito da sua diáspora. E mesmo aqui poderia haver algumas melhorias na nossa relação com os cabo-verdianos que estão lá fora, não temos sabido retirar o melhor proveito da nossa emigração. Eu tenho duas ilhas, Fogo e Sal, nunca pensei em emigrar. Aliás, a minha vontade é terminar a minha vida profissional no Fogo. Por quê? Pelo desafio que isso representa. Hoje em dia o sindicalismo é difícil, nem toda a gente está disposta a correr riscos. O trabalhador sente-se nas mãos do empregador. O Estado não regulamenta nem fiscaliza a lei. Isso dá muita margem de manobra às [ 113 ]


Corremos o risco de nos transformarmos em minoria dentro da nossa própria terra.

empresas que aproveitam para abusar. Elas têm juristas para se defenderem. Nós dificilmente conseguimos isso. O turismo veio alterar as relações de trabalho em Cabo Verde? Alterar não alterou, o que há é uma outra dinâmica. Pessoalmente, estou consciente de que a nossa capacidade de resposta já não é a ideal. Falta gente para a atividade sindical. Não é fácil, pressupõe alguma sensibilidade e nem toda a gente está interessada em certos tipos de confronto. Já fui vítima de várias ameaças, não tenho nenhuma segurança como suporte. O país em si não oferece condições para o são exercício do sindicalismo.

SINDICALISMO, “SANGUE NOVO” Os sindicatos são hoje vistos como força de bloqueio para o desenvolvimento da economia. Entendo que os sindicatos devem posicionar-se como parceiros das empresas. Mas eu não quero que as empresas me apreciem como “bom sindicalista”, porque, para elas, o “bom sindicalista” é aquele que não exige nada, é aquele que aparece, toma água, toma café, dorme nas negociações, toma boleia do patrão, não exige nada, [ 114 ]

este é um excelente sindicalista. Eu sou radical nas minhas posições e o que é direito do trabalhador eu luto por ele até ao fim, se preciso vou até ao Supremo Tribunal de Justiça. E o que é que Cabo Verde precisa neste domínio? Precisa de um tribunal com vocação laboral, no Sal, em São Vicente e na Cidade da Praia. Mas no Sal sobretudo, porque aqui o nível de conflito é mais elevado. Aqui são cerca de 10 mil trabalhadores por conta de outrem, numa população global de 25 a 30 mil habitantes. O volume de processos que estão no tribunal é grande, para não dizer enorme, por isso é que eu digo que o atual juiz, e mesmo os anteriores, não tem culpa por esta situação. A culpa é do Governo por não ter dotado o tribunal do número de juízes suficiente para as demandas. Eu tenho processos no Supremo Tribunal de 2002, 2003, 2004, etc. Agora pergunte, quantos anos esses mesmos processos estiveram aqui no Sal antes de passar para o Supremo? E mais, quando é que esses processos terão o seu desfecho final no Supremo? Já estive pessoalmente no Supremo, já fiz exposições, já falei do assunto para a comunicação social, ninguém se interessa pelo assunto. Enquanto houver problemas desta natureza, eu não poderei estar satisfeito com o nível de desempenho do Governo. Quando um trabalhador coloca um problema ao sindicato, passa a ver o sindicato como o único responsável pela resolução desse problema. A partir disso, todas as críticas na demora do seu problema passam a ser dirigidas ao sindicato e à pessoa que está à frente. É grave. Como é que você se tornou sindicalista? Foi a convite do Carlos Lopes, da UNTC-CS. Ele é daqui do Sal. Sentia-se vocacionado para isto ou simplesmente foi apanhado pela roda da vida? Eu sempre me vi atraído por ações desta natureza, com vontade de apoiar o próximo. Apesar dos inúmeros problemas com a Justiça, volta e meia recebo dinheiro do resultado das negociações com empresas, e quando vejo alguém a receber, por

meu intermédio, aquilo que é dele por direito, é sempre uma alegria pessoal para mim. E quando a pessoa recebe uma sentença desfavorável isso também me afeta. Passo dias aborrecido, com vontade de deixar isto e ir fazer outra coisa. Esta é uma missão que ninguém quer abraçar. Eu me pergunto, daqui a cinco ou 10 anos, quem serão os nossos substitutos? Nós já estamos no final. Se eu tivesse continuado nas Forças Armadas, há mais de 10 anos que eu já estaria aposentado como os meus colegas que se aposentaram com 40 ou 42 anos de idade. Mas a missão sindical é extremamente importante, o que não há são as condições para esse exercício. A atual lei do trabalho não permite um sindicalismo real pela seguinte razão: nas empresas tem de haver delegados sindicais, ninguém quer ser delegado por causa do medo. Como diz a Constituição e a própria lei, quem é despedido sem justa causa tem direito a uma justa indemnização. Mesmo as mulheres grávidas, quando despedidas só porque estão grávidas, ninguém garante que esse direito vai ser salvaguardado ou que ela vá ser reintegrada no trabalho. Mas eu digo também que nós sindicalistas também somos responsáveis pela atual situação. Se quer saber, precisamos de brigar mais. Acha que os sindicatos, a começar pela sua central, têm sido dóceis com o Governo? Para lhe dizer a verdade, a UNTC-CS está mais crítica do que em relação ao passado, sobretudo ultimamente. Só que os resultados não têm sido o que se espera. Estou preocupado. Há um retrocesso em relação aos direitos dos trabalhadores? A ideia é essa. As medidas do Governo neste domínio indicam claramente esse retrocesso. O Governo e os empregadores, aqui, estão a trabalhar em sintonia. Se algumas das propostas preconizadas para a revisão do Código do Trabalho forem adoptadas este será o momento mais difícil e mais crítico para a vida do trabalhador cabo-verdiano. Temos de nos preparar para ações de mais qualidade junto dos trabalhadores, inclusive dos


seus familiares, para fazer frente a essa ofensiva. Os cabo-verdianos, a maioria, não têm nenhuma regalia que possa ser cortada. Se querem cortar, procurem esse pessoal que ganha acima de 300 ou 400 contos e cortem alguma coisa. Quem ganha 20, 30 ou 40 contos não tem nada a diminuir. Eu estou preocupado.

e agrícolas, precisa de uma outra afirmação no contexto de Cabo Verde. No Fogo engorda-se porcos com papaias e mangas por falta de escoamento.

Mas o Governo e o patronato defendem a precarização para atrair mais investimentos e com isso mais trabalho para as pessoas. (risos) A renovação de um contrato por vontade do patrão ou do trabalhador já é algo precário. Precarizar mais do que isso para quê? Já temos situações em que o fulano contrata por um mês e não renova.

Para melhor ou para pior? Para melhor. Aliás, isso se passa em Cabo Verde inteiro, a começar pelo Sal onde vivo há mais de 30 anos. Quando falo que é necessário fazer muito mais não é porque não se tem feito. Entendo que se deve fazer mais porque é possível. O que se está a fazer com a estrada, o anel rodoviário, com os problemas que tem (inclusive corrupção, coisa que não posso provar), sem dúvida, que isso é um importante factor de desenvolvimento. Antes de mais, porque vai encurtar a distância entre São Filipe e os Mosteiros e as zonas periféricas. O cais, que já sofreu uma boa remodelação, é também um outro factor de desenvolvimento. Em relação ao aeroporto, entendo que aquele aeroporto é insuficiente. Muito pode ser feito em toda a ilha, mas faltam também iniciativas locais.

Cabo Verde está mais injusto hoje? A comparação com o passado é difícil, mas estou seguro que há muita injustiça e muita desigualdade, e isso é preocupante. Tem de haver desigualdade naturalmente, mas em função das qualificações e níveis de desempenho de cada um, mas uma desigualdade de zero a cem, não.

RETORNO ÀS ORIGENS Disse-me que quer acabar os seus dias como sindicalista no Fogo. Seria um retorno às suas origens? Eu tenho duas origens, a minha ilha e o meu país. Estou no Sal, estou no meu país, mas a minha preferência era estar na minha ilha. Se eu puder trabalhar nem que seja cinco anos no Fogo, como sindicalista, seria muito bom. Seria uma forma de ajudar a defender os interesses dos meus próprios conterrâneos, sendo com isso útil à ilha onde nasci. Sendo do Fogo, vai sempre à sua ilha natal? Da última vez que lá estive foi há dois anos. E como vê o desenvolvimento da sua ilha neste momento? É um crescimento muito lento. É uma ilha que carece de muita coisa. Por exemplo? O Fogo, com a dimensão e potencialidades que tem, turísticas

O Fogo da sua infância e o Fogo de hoje como é que os compara? Não tem nada a ver um com o outra.

Por exemplo? Eu acredito que a mudança na câmara de São Filipe, de Eugénio Veiga para Luís Pires, muito pode mudar. Há edifícios novos, mas há também pardieiros, casas velhas, dentro da cidade, coisa que já não se devia admitir. Mas essas casas são de particulares. Mesmo assim, uma cidade não pode ficar com aspeto fantasma só porque os herdeiros não se entendem. O Fogo tem uma população poderosa, está em todas as ilhas, em especial em Santiago, isso para não falar da emigração. No meu próprio caso, como já disse, na primeira oportunidade voltarei.

SAL, AEROPORTO E TURISMO Falemos agora desta sua outra ilha, Sal. Tendo aqui chegado em 1980, qual a diferença com o Sal de hoje? Não há nada que se compare. Absolutamente nada. Nestes 35 anos atrás a diferença é abismal.

Para si, há algum setor que mereça realce? Eu apontaria a água. Eu me lembro de um dia em que, tendo que ir ao trabalho, não tendo em casa nem uma gota de água, procurei comprar uma garrafa de água, que também não havia. Nesse dia, tive de comprar uma garrafa de água Castelo (gaseificada) para lavar boca e passar algumas gotinhas pelos olhos. Hoje temos água canalizada, energia elétrica estável, naturalmente os preços não são satisfatórios, mas isso é um outro problema. Nos primeiros dias em que vivi no Sal, eu morava numa casa em que havia água canalizada, mas do mar, eu tomava banho com essa água do mar, e para tirar o salitre utilizava um pouco de água salobra. Caramba! Como era possível a vida humana aqui? (risos) Para ir a Santa Maria e voltar, por exemplo, não se cruzava com nenhum carro, durante todo o trajeto – 20 quilómetros. Onde moro neste momento, Bairro Novo 2, nos Espargos, era zona de pastagem, aqui, onde estamos, não havia casa também. Tudo isso é fruto de um desenvolvimento fora do normal, significa que esta é uma ilha promissora. Com base nos seus recursos aeroportuários e turísticos, tudo isso contribuiu para atingir o nível de desenvolvimento que registamos, uma coisa sem paralelo em toda a história de Cabo Verde. Do seu ponto de vista, qual é o lugar que o Sal ocupa na história de Cabo Verde? Todas as ilhas têm as suas particularidades. Mas por aquilo que contribui para a economia do país e dos cidadãos que aqui vivem, Sal ocupa um lugar extremamente importante. Desde logo, porque ampara gente de todas as ilhas, fazendo com que Cabo Verde inteiro esteja aqui. Os naturais do Sal – agora sim são muitos – quando aqui cheguei, 1980, eram poucos. As pessoas vinham das outras ilhas para trabalhar, e continuam a vir, porque aqui a oferta de emprego é grande em comparação com São Vicente, Santo Antão, São Nicolau, Fogo… Sal e Boa Vista, hoje [ 115 ]


em dia, são as ilhas que mais oferecem emprego. Veja o seguinte, no próximo mês de Novembro, vai abrir um hotel que vai empregar, só ele, 700 pessoas. Apenas um hotel. Um lugar com esta potencialidade devia merecer uma outra atenção. Uma outra atenção em que sentido e por parte de quem? Sobretudo melhor segurança e melhor saneamento. Acontecem aqui assaltos, assédios aos turistas, mesmo aos nacionais, isso não é de admitir. É preciso dizer que as unidades hoteleiras estão preocupadas com isso. Porque quando se recomenda os turistas a terem cuidado, logo à entrada, para não saírem muito, é algo preocupante. Isso devia merecer uma atenção especial e redobrada do Governo. Hoje toda a gente está a gradear as portas e as janelas. Para andar à noite é preciso estar com muito cuidado. Para si, a segurança é um problema? Sim, claramente um problema no Sal. E isso deve merecer uma atenção urgente, ainda que os cidadãos tenham de contribuir para isso, financeiramente. Temos aqui os militares que poderiam estar nas ruas a garantir segurança aos cidadãos. O que não dá é as pessoas viverem em casa como se estivessem em prisões.

SAL, “TODOS CABO-VERDIANOS” Disse que quando chegou ao Sal havia pouca gente do Sal. Por isso pergunto: no que é que se distingue o natural do Sal em relação às pessoas das outras ilhas? Aqui dificilmente se distingue quem é ou não é natural do Sal. Poderá haver um outro que bata no peito e diga “eu sou nascido e criado no Sal”, mas são poucos e isso não é mérito particular de ninguém. Aqui somos todos caboverdianos. Independentemente das minhas contribuições para esta ilha, eu me sinto, em primeiro lugar, um cabo-verdiano, com direito de viver em qualquer ilha de Cabo Verde. Eu nem sequer procurei o Sal para viver, para aqui fui mandado, aqui fiquei e sintome muito bem, sou grato ao Sal por aquilo que hoje sou. [ 116 ]

Não admito que um fulano só porque é dono de uma empresa possa pôr e dispor da vida de cabo‑verdianos. Eu, enquanto puder, não vou admitir. A mim, bastam-me os 500 anos que os nossos antepassados sofreram nas mãos dos portugueses.


Há hoje no Sal um movimento que pretende dividir a ilha em dois municípios, Espargos e Santa Maria. O que pensa disso? Se é vontade da população de Santa Maria não tenho que me opor. Mas, sinceramente, não vejo isso como uma prioridade. Estamos a falar de uma ilha em que a população permanente, mesmo com estrangeiros, anda à volta de 30 mil pessoas. A haver o município de Santa Maria, vamos ficar com dois municípios pequenos. A complexidade que esta ilha vive também existe noutras ilhas. Veja o caso da Praia. Achada de Santo António seria um município, mais para cima um outro município?… É por isso que a divisão do Sal em dois municípios não pode estar na linha das prioridades. O que Sal necessita realmente é de uma câmara municipal dinâmica, funcional, com projetos, etc. Veja, há muito que não se vende terrenos. Esta é uma prioridade. Será que para se vender terreno é preciso criar mais um município? Na verdade, o que temos é uma câmara que não está em condições de resolver os problemas da ilha. No fundo, estamos a repetir a lógica “não estamos a resolver os problemas de uma ilha vamos para a regionalização”, é isso? É isso mesmo. Não é a regionalização em si que vai resolver os problemas de São Vicente ou de Santo Antão, ou de outra ilha qualquer. Há problemas urgentes que precisam ser atacados e a solução não passa pela regionalização ou pela criação de mais um município. Digo com toda a sinceridade, não está na linha das minhas preocupações, primeiro, a criação do município de Santa Maria; segundo, a regionalização; e, terceiro, o Tribunal Constitucional. Para mim, é mais importante dotar os municípios de condições para o seu funcionamento; projetos concebidos para serem executados, nada de demagogia, promessas que serão efetivamente cumpridas, dotação aos tribunais de comarcas de condições materiais e humanas para um melhor funcionamento, isto

é, despacho rápido dos processos. Isto, sim, são coisas importantes que estão sendo transferidas para uma outra oportunidade. Temos de priorizar o que é priorizável. Mais um município, menos um município, no Sal, isso não vai alterar a minha vida. O Sal em si já tem as instituições que precisa – segurança social, comando militar, polícia, tribunal, Inspeção Geral do Trabalho, etc., tudo existe no Sal. O que precisamos é melhoria e eficácia no funcionamento do que já existe. E repare que há condições para que isso funcione. Este país tem condições para não ter os problemas que tem. O problema é vontade. Fala-se muito e faz-se pouco. Veja o Hotel Atlântico, está lá, numa ilha turística, para sobreviver, depende do subsídio do Estado. A situação já foi denunciada, já se escreveu, mas o problema persiste. As pessoas estão lá, o gestor está lá, tudo gente a receber sem fazer nada. (risos) É uma brincadeira.

FIGURAS, “COMBATENTES…” Cabo Verde caminha para 40 anos de independência. Na sua opinião, quem são as figuras que marcaram esse período? Em primeiro lugar, não posso deixar de falar dos combatentes da liberdade da pátria. Os efetivos, como Amílcar Cabral, Pedro Pires, Aristides Pereira, Abílio Duarte… Essas pessoas são referências para Cabo Verde ser o que hoje é, um país independente, democrático e funcional. Por mais que haja críticas, Cabo Verde é Cabo Verde. Quanto mais se fizer, as críticas sempre vão parecer. Os governos que Cabo Verde já teve – do PAICV e do MpD – contribuíram para o que hoje somos. E muito do que se conseguiu foi com trabalho, com seriedade, embora no meio do grupo nem toda a gente fosse séria. Mas isso, sabemos, não é exclusivo de Cabo Verde. Mas o que importa são as pessoas sérias. E em relação ao futuro, qual é o seu estado de espírito? Eu sou muito otimista… mas corrigindo o que está mal. O futuro

pode ser promissor, se pelo menos continuarmos no ritmo em que nos encontramos. Mas não nos podemos descurar. E nisso tenho uma crítica a fazer. Diga. Investiu-se demasiado nas infraestruturas, quando devia-se investir também mais nas pessoas. Hoje não devia haver casas de tambor, tetos a cair, mortes por falta de tratamento médico ou de medicamentos. Há gente que está a contribuir para a segurança social mas que, mesmo assim, morre por falta de tratamento ou de medicamento. As empresas não transferem e o INPS corta, sem dó nem piedade, não pode ser. Se continuarmos neste caminho o nosso futuro pode ficar comprometido. O futuro tem de ser melhor que este presente, embora este presente seja também diferente do passado. Que implementem as tais 100 medidas para a melhoria do Estado. Pode ser que vocês lá na Praia estejam a ver, aqui no Sal não. Basta ver as viaturas de alta cilindrada a circularem nas estradas desta ilha, deste país; o combustível que consomem daria para resolver problemas de muita gente. Os gastos com telemóveis, internet, etc. Eu não quero discursos sobre cortes de gastos públicos, eu quero corte, puro e simples. Perdemos o tom nestes anos todos? Sim e não pode ser. Como lhe disse antes, eu sou um indivíduo complicado. E é por ser como sou, que eu não admito que governante, presidentes de câmara, diretores de serviços com altos carros a gastar combustível a torto e a direito, à custa do Estado, enquanto temos alunos que têm de andar quilómetros para ir à escola. Tem de haver uma melhor distribuição da riqueza em Cabo Verde. O Estado tem de ter dignidade. Por exemplo, as instalações do Tribunal do Sal são uma vergonha. Eu critico porque quero que o meu país seja melhor do que é aquele que é neste momento. [Espargos, 04-04 e 02-07-14] [ 117 ]


Belarmino Lucas

“O sucesso empresarial ainda é muito mal visto em Cabo Verde” Advogado, empresário e presidente da Câmara de Comércio de Barlavento, Belarmino Lucas, 45 anos, é natural de São Vicente. Nesta entrevista apresenta a sua leitura do mundo de negócios e do trabalho, bem como a justiça, a reforma do Estado e os desafios que se colocam a um país da dimensão de Cabo Verde. Segundo ele, “a centralização só gera mais centralização”.

O setor privado já é realmente o motor da economia em Cabo Verde? O setor privado é neste momento o maior empregador; no entanto, não é ainda , em termos efetivos, o motor da nossa economia. O setor público ainda tem uma força muito grande. Mas está em curso um processo que poderá levar a que, no final da linha, o setor privado venha a ser o motor da economia, de facto. Esse final da linha está muito longe? Depende das opções estratégicas que forem feitas. No fundo, tudo tem a ver com o espaço que o Estado pode ou queira conceder ao privado para este [ 118 ]

lançar as suas bases, sem prejuízo das bases que ele próprio, o setor privado, tem de conquistar. E isso não acontece por quê, por falta de vontade política ou por incapacidade do próprio privado? Vontade política há a um determinado nível. Por exemplo, o Sr. Primeiroministro [José Maria Neves] está bem intencionado, tem um discurso e procura desenvolver ações nesse sentido, mas a administração pública não se resume ao PM nem sequer ao Governo. Há coisas que não acontecem porque a administração pública, no seu conjunto, ainda não está devidamente

formatada no sentido de ver o setor privado o motor da economia. Ou seja, o poder em Cabo Verde é pelo setor privado, mas a máquina pública, o setor intermédio, não? A máquina pública ainda mastiga muito. Por incompetência ou por preconceito ideológico? Em muitos casos, faltam as competências necessárias, mas, por outro lado, há uma reserva mental relativamente ao setor privado. No fundo, ainda não desenvolvemos devidamente a cultura do empreendedorismo em Cabo Verde.


[ 119 ]


Desde o primeiro dia da independência deveríamos ter começado a construir um sistema de transporte, público ou privado, que permitisse que as ilhas estivessem ligadas de forma permanente, fiável, com qualidade para, precisamente, potenciar a nossa economia. E nós não conseguimos, até hoje, fazer isso.

O setor empresarial ainda não é visto com bons olhos. Qual a razão disso, na sua opinião? No fundo, entre nós, o sucesso de cada um ainda não é visto como modelo que todos deveriam tentar alcançar; pelo contrário, o empresário ainda é visto como alguém que, até prova em contrário, chegou aonde chegou porque andou a explorar alguém; pior, andou a roubar o povo. Em vez de fazer com que outros cheguem lá, a tendência é nivelar por baixo, não criar as condições para que as pessoas tenham sucesso.

REFORMA DO ESTADO Sendo assim, a máquina do Estado precisa de um choque? A máquina do Estado precisa continuar a ser trabalhada. A situação que estamos a viver hoje já é bastante melhor do que aquela que se vivia há anos atrás. Há melhorias e não seria honesto, da minha parte, não reconhecer isso. Mas é preciso perseverar nas reformas, sobretudo nas reformas das mentalidades. Muitas vezes, apostamos nas reformas dos procedimentos e não fazemos o mesmo esforço a nível das reformas das predisposições mentais dos servidores públicos no tratamento com o setor privado. Ultimamente, qual foi a medida administrativa que veio facilitar a vossa vida? Poderia indicar várias medidas. A Casa do Cidadão é uma delas. É algo [ 120 ]

de extrema valia, veio introduzir facilidades para a criação de empresas e o tratamento de um conjunto de necessidades dos empresários. Nós precisamos de instrumentos do género, precisamos de meios que venham a reduzir a burocracia ou que levem a uma estandardização de procedimentos, precisamos cada vez mais de janelas únicas para tratar dos mais diversos aspetos da vida empresarial. Investir em Cabo Verde é uma luta de obstáculos? Sim, ainda é. As respostas das entidades administrativas continuam a ser, muitas vezes, muito lentas. Mas isso não é um problema exclusivo da administração central, é também da administração local. Por exemplo, ainda temos dificuldades de obter uma simples audiência com um determinado autarca. E, mesmo depois da resposta, há um conjunto grande de procedimentos e de passos que têm de ser dados, junto de entidades diferentes, que têm de ser abordadas no mesmo processo, cada uma a funcionar de forma diferente. E como é que o investidor estrangeiro reage diante do slowdown da nossa gente? Normalmente reage muito mal. Muitos só persistem se, à partida, têm um interesse muito grande em investir em Cabo Verde. Eles mesmo dizem, “se não fosse por esta razão, eu já tinha desistido”.

Temos sido incompetentes em atrair investimentos? Temos. Cabo Verde tem perdido muitas oportunidades porque não temos sabido reagir a tempo a certas solicitações. Há uma incapacidade nossa em lidar com o mundo? O cabo-verdiano, muitas vezes, tem uma noção um pouco sobrevalorizada das suas próprias competências. Dizemos que o cabo-verdiano tem formação, é muito educado, aprende facilmente, não deixa de ser verdade, mas não é menos verdade que nos têm faltado certas competências de ponta, nomeadamente quando temos que lidar com o mundo. Aliás, se formos ver, o número de cabo-verdianos em organizações internacionais, mesmo quando comparados com países da nossa sub-região, o número é bastante limitado. Isso significa que somos muito bons em termos de competências básicas mas, no nível superior, faltam-nos determinados skils, como dizem os anglófonos, para lidar com certas matérias. Muitas vezes, acabamos por claudicar, porque não temos experiência, vivências, internacionais, experiência do mundo em muitas áreas. Precisamos de quê para sermos competitivos a nível da economia? Antes de mais, falta-nos saber as áreas em que podemos ser competitivos. Mas não é no turismo?! Mesmo dentro do turismo temos que definir. Podemos ser competitivos em que nichos? Vamos competir no turismo de praia e sol com outros destinos muito mais maduros? Precisamos saber isso. Na sua opinião, nós devemos apostar em quê? Sem perder de vista o mainstream do turismo do sol e praia, podemos apostar em nichos que se têm revelado importantes para outras ilhas que não o Sal e a Boa Vista, casos de São Nicolau, São Vicente e Santo Antão, que é o turismo rural. Também podemos apostar ao turismo ligado aos jogos (casinos), no turismo de cruzeiros e também no turismo ligado


aos desportos náuticos. Podemos ainda voltar para o turismo de alto valor acrescentado com o turismo voltado para o golfe, a parte do turismo de convenções, encontros, etc. Há ainda o turismo de entretenimento que São Vicente poderia apostar. Seria o que alguém chamou de Cluster da Sabura. Há ainda esse mix formado por São Vicente e Santo Antão, que são duas ilhas cujo desenvolvimento tem de ser visto em conjunto. O poder local já despertou para isso? Eu penso que sim. Inclusivamente, a Câmara de Comércio de Barlavento promoveu recentemente um encontro com os presidentes de câmara de São Vicente e Santo Antão para juntos

realizarmos um projeto em comum. Estamos a trabalhar nisso e o objetivo é definir uma agenda comum que inclua também São Nicolau. Há que desenvolver as sinergias regionais.

SÃO VICENTE, “STAND BY” Falando nisso, como vê o desenvolvimento de São Vicente? Em termos económicos, a fotografia deste momento mostra-nos que estamos em stand by. Há perspetivas e eu sou otimista, tendo em conta o potencial da ilha, mas tendo também em conta o potencial que existe nas duas ilhas vizinhas – Santo Antão e São Nicolau – nesse enquadramento regional, juntas, as ilhas têm mais hipóteses. Impõe-se, sem dúvida, uma

conectação. O certo é que a situação social e económica é difícil, mas há perspetivas. Tirando Santiago, Cabo Verde tem um problema grave de mercado. As outras ilhas, mesmo São Vicente, com 80 mil habitantes, têm um mercado muito reduzido, o que impossibilita o seu desenvolvimento. Por isso, temos de criar condições para unificar o mercado nacional. Quem produz em São Nicolau, Santo Antão, ou até mesmo em São Vicente, tem dificuldade para colocar o que produz noutras ilhas. Veja São Nicolau, tem cerca de 13 a 15 mil habitantes, quem consegue viabilizar um negócio num quadro populacional como esse? Será sempre um micronegócio. Mesmo São Vicente tem que se integrar de facto [ 121 ]


no mercado nacional. Só depois disso, só depois de criar músculos, poderá encarar outros mercados. Do seu ponto de vista, andamos a perder tempo? Sim, temos andado aos círculos. Há muita coisa que perdemos porque não temos ainda o problema dos transportes resolvido. Um dos grandes falhanços da nossa história pós independência é a nível dos transportes, particularmente os marítimos. O mar não nos deveria separar, deveria ser um ponto de união, a autoestrada entre as ilhas. Desde o primeiro dia da independência deveríamos ter começado a construir um sistema de transporte, público ou privado, que permitisse que as ilhas estivessem ligadas de forma permanente, fiável, com qualidade para, precisamente, potenciar a nossa economia. E nós não conseguimos, até hoje, fazer isso. É agora que aparece um catamarã, fala-se no reaproveitamento de um outro navio… Andamos nisto, ainda, em 2014. Como operador, você está cansado? Cansado não estou, porque nós não temos o direito ao cansaço. Temos é que perseverar. Se não fomos capazes de fazer isso nos últimos 39 anos, temos que ser capazes de o fazer daqui para a frente e, nisso, a minha geração tem essa responsabilidade. É o que estamos a fazer a nível das câmaras de comércio, tentar ajudar não só na definição dos eixos estratégicos do desenvolvimento do país, mas também da concretização desses mesmos eixos estratégicos.

REGIONALIZAÇÃO

Falta-nos músculo financeiro para entrar no mercado da CEDEAO [ 122 ]

Há pouco, quando falou na sinergia entre São Vicente, Santo Antão e São Nicolau, é dentro de um quadro regional natural ou de uma regionalização, digamos, política? Nós, à partida, vemos complementaridade entre essas ilhas, independentemente de qualquer modelo regional. A criação e o aproveitamento dessas sinergias é algo que se impõe seja qual for o modelo de organização e de gestão política


e territorial que viermos a adoptar. Isso não tem, à partida, a ver com a regionalização. Mas precisamos ou não de fazer a regionalização? Precisamos de ter uma descentralização do poder, isso é evidente. A centralização é um dos grandes problemas de Cabo Verde. Temos de fazer com que o poder, do ponto de vista da capacidade de decisão, chegue ou se aproxime das diversas ilhas do território nacional. Sobretudo porque somos uma realidade arquipelágica, à partida, impõe-se a existência local ou regional de poderes fortes. Uma coisa é estarmos no mesmo espaço territorial, mais ou menos extenso, entrar num automóvel e chegar ao centro do poder administrativo, outra é eu, sempre que precisar chegar ao centro do poder, ter que apanhar um avião, muitas vezes, perdendo dois ou três dias para ir resolver alguma questão no centro do poder. É até uma questão constitucional, que o cidadão que esteja em Santo Antão ou na Brava possa ter o mesmo acesso a uma decisão administrativa com a mesma celeridade e qualidade do que aquele que está na cidade da Praia. Para si, a descentralização em Cabo Verde tem de passar pela regionalização? Pode não passar necessariamente. E quando estivermos a falar em regionalização impõe esclarecer do que estamos a falar, se é uma regionalização política, plano ou se administrativa. Eu vejo a questão do ponto de vista da qualidade ou dos benefícios que isso traz às populações de cada local. O importante é que qualquer que seja o modelo que se vier a adoptar a coisa funcione realmente. Se é para continuar na mesma eu não quero, não estou interessado. O importante é que cada ilha funcione sem ter que pedir “licença” à capital. Mas isso passa ou não pela regionalização? A regionalização administrativa eu acredito que sim. Política, eu tenho as minhas dúvidas. Eu não sou por

[Na regionalização] Eu não sou por soluções que impliquem a replicação, a nível regional, da burocracia central, isto é, governos, parlamentos, etc., etc. Isso tem custos.

soluções que impliquem a replicação, a nível regional, da burocracia central, isto é, governos, parlamentos, etc., etc. Isso tem custos. Para mim, a regionalização terá de ser vista sempre do ponto de vista das competitividades regionais, no sentido de cada região prover o seu desenvolvimento sem ter que depender, a cada momento, de uma decisão que venha do poder central. Mas nisto temos que ter cuidado para não estar a criar várias Praias no território nacional. Os partidos falam em cada ilha uma região, com exceção de Santiago, que poderá ter duas ou mais regiões. Sobretudo se for esse caso, cada ilha uma região, veja a quantidade de órgãos que não se vão criar. É um bocado complicado, ainda tenho dúvidas e reservas. De uma coisa tenho a certeza: precisamos de uma descentralização radical dos poderes

de decisão. Isso é absolutamente indispensável. Esta é uma condição de competitividade do país e também do nosso desenvolvimento.

CEDEAO, “MERCADO” E a integração de Cabo Verde no seu contexto sub-regional, como é que o vê? Aqui voltamos, de certa forma, à questão do mercado. Além de pequeno, o nosso mercado interno é fragmentado, mesmo unificado a partir de um certo ponto, esse mercado deixa de ser viável para o desenvolvimento da atividade económica. Chegaremos a um ponto em que, com o mercado nacional, as empresas não poderão ir muito longe, a elasticidade é nula. Temos 500 mil habitantes, se considerarmos uma população flutuante de turistas que ainda precisa de crescer muito mais, as empresas começarão a ter dores de crescimento. Nessa altura teremos de começar a pensar em sair, de nos internacionalizarmos. Isso terá de ser num quadro em que Cabo Verde poderá ser competitivo, quanto mais não seja pela eliminação ou atenuação das barreiras administrativas ou alfandegárias. Mas essa integração não é só discurso em Cabo Verde? Até agora tem sido só discurso. Têm as empresas cabo-verdianas condições de conquistar mercado na CEDEAO? Se me perguntar se as empresas que neste momento existem em Cabo Verde têm condições, eu diria que são muito poucas. Sem parcerias, nomeadamente locais ou com empresas das antigas potências coloniais, eu diria que teriam muita dificuldade em penetrar nesse mercado. Falta-nos músculo financeiro. E é precisamente por isso que Cabo Verde não pode pôr de parte nenhum tipo de parceria. Sozinhos não conseguiremos. Mas, independentemente disso, há um outro factor importante: nós não conhecemos o mercado da CEDEAO. A nível do privado isso é claro. Mas mesmo a nível do Estado são poucos [ 123 ]


“Temos falhado na consideração da nossa diáspora como uma mais-valia para o país, o que implicaria um maior envolvimento dos emigrantes no processo de desenvolvimento de Cabo Verde.”

os nossos dirigentes que conhecem de facto a CEDEAO. Portanto, se estamos interessados na CEDEAO, temos urgentemente de conhecê-la, como funciona, quem está lá, etc. Mas esse desconhecimento não decorre do facto de Cabo Verde viver de costas para o continente? Sem dúvida. Até este momento temos uma postura meramente discursiva em relação à CEDEAO. A única coisa que temos explorado é a livre circulação de pessoas. Mas já há importantes investimentos da CEDEAO em Cabo Verde, nomeadamente a nível das infraestruturas. Exatamente. Mas é o setor público, o Estado, que a nível das instituições consegue isso. É possível mudar isso? Sim. Como? Passando de discurso a uma ação concertada, consistente e séria, entre os setores público e privado, no sentido de podermos chegar e conquistar, à nossa dimensão, parte do mercado da CEDEAO. Mas para isso deve haver visão estratégica, com objetivos definidos. As câmaras de comércio têm procurado uma reaproximação. Havia anos que não participávamos, por exemplo, na Feira Internacional de Dakar, tem havido esforços de missões empresariais nos dois [ 124 ]

sentidos, sobretudo com este simples objetivo: conhecer quem são os nossos interlocutores. Já agora, como é que esses interlocutores vos veem quando vocês aparecem? Eles também conhecem-nos pouco, eles mesmo não sabem muito bem lidar connosco. Eu confesso que não vejo o mesmo relacionamento entre um camaronês e um maliano, por exemplo, e nós com cada um desses povos. Eles também, durante todo esse tempo, não nos ligaram, por sermos arquipélago, estivemos apartados. Esta é uma outra barreira que temos também de enfrentar e resolver. E não é porque haja, à partida, má vontade, simplesmente nós nos desconhecemos.

ALDEIA GLOBAL Se lidamos assim com a nossa subregião, como lidamos com a aldeia global de que tanto se fala? Nós temos, se calhar, com algumas ruas dessa aldeia, uma relação de muito maior proximidade do que aquele temos com a CEDEAO. Historicamente, temos estado mais ligados à Europa, aos EUA e até ao Brasil do que à nossa sub-região. O que temos de mudar é a perspetiva como nós nos relacionamos com essa aldeia global. Nós temos estado, desde a independência, muito focalizados numa relação que privilegia a ajuda pública ao

desenvolvimento. Quando olhamos para a Europa, para os EUA e para o Brasil, durante muitos anos, fizemolo na perspetiva do apoio que esses países ou regiões podiam dar ao desenvolvimento do país. A partir de certa altura começamos a olhar numa perspetiva de investimento direto estrangeiro, onde deixou de haver aquela postura de solicitação de apoio mas de estabelecimento de parcerias e penso que, cada vez mais, a nossa postura relativamente a essa aldeia global tem de ser nesse sentido. Alguém já disse que somos bons a pedir ajuda, mas péssimos a fazer negócios. Se calhar o problema não é tanto de conseguir ou não negócios, mas a opção e a postura, até pelo peso que o Estado tem na nossa economia tem sido sobretudo no sentido de pedir ajuda. Temos agora é de desenvolver, de melhorar, a nossa capacidade de fazer negócios, precisamos ter a consciência daquilo que podemos dar em troca do nosso valor a esses parceiros e negociar nessa base. Quanto mais não seja em matérias que dizem respeito à nossa posição geoestratégica e dos dividendos que poderemos extrair disso de uma forma descomplexada. Cabo Verde tem um ativo – a sua posição geoestratégica – então vamos negociar olhando diretamente nos olhos dos nossos interlocutores no mesmo nível na aldeia global.


DIÁSPORA Na nossa relação com o mundo temos a diáspora. Temos sabido relacionar bem com ela? No geral, temos encarado os nossos emigrantes, inclusive a nível do Estado, sempre na perspetiva das remessas financeiras. A única coisa que ouvimos, “as remessas dos emigrantes aumentaram”, “as remessas baixaram…” Temos falhado na consideração da nossa diáspora como uma mais-valia para o país, o que implicaria um maior envolvimento dos emigrantes no processo de desenvolvimento de Cabo Verde. A diáspora tem sido posta de lado? No discurso dos nossos governantes há sempre a preocupação com a nossa diáspora, mas o que tem falhado, se calhar, são os mecanismos para a envolver de forma consistente, que não seja uma mera remessa de ajuda aos familiares em Cabo Verde. Precisamos ver o emigrante como elemento facilitador nos países de acolhimento, isso nos mais diversos níveis, coisa que não temos sabido fazer ou explorar. Internamente, não vemos os emigrantes como potenciais investidores. E isso não acontece por quê? Porque não criamos condições, até hoje, para facilitar os investimentos deles aqui. A abordagem à nossa diáspora não pode ser meramente simbólica ou afetiva. Tem que ser pró ativa e pragmática, no sentido de ver os emigrantes como potenciais ativos no desenvolvimento do país e de facilitação de Cabo Verde nos países de acolhimento, isso numa ótica ampla de diplomacia económica do Estado de Cabo Verde.

MUNDO LABORAL, MELHORAR A FOTOGRAFIA” No campo social, sabemos do braço de ferro que existe entre os empregadores e os trabalhadores. Na vossa ótica a lei do trabalho é um constrangimento para o desenvolvimento de Cabo Verde? É um dos constrangimentos. O setor privado não coloca a revisão do código laboral como a varinha [ 125 ]


“…o código laboral é manifestamente desequilibrado, foi pensado especificamente nos trabalhadores”

mágica que resolve os problemas de competitividade do país. Mas é um factor extremamente importante dessa competitividade que tem de ser também trabalhada e melhorada. Os sindicatos dizem que o trabalho em Cabo Verde já está muito precarizado e vir precarizá-lo ainda mais chega a ser uma desumanidade. Como responde a isso? Isso é uma falácia, um discurso populista dos sindicatos. Se formos ver o que diz o código laboral vê-se que a posição do trabalhador perante o empregador é tudo menos precária, do ponto de vista jurídico. Eu, há tempos, tive acesso a um inquérito feito por uma central onde se expunha como exemplo de precariedade evidente o facto de uma percentagem grande dos trabalhadores não ter contrato escrito. Isto é de uma falácia de todo o tamanho. Pelo contrário, um trabalhador que não tem um contrato escrito, à partida, tem uma situação mais segura do que um trabalhador com um contrato escrito a prazo. [ 126 ]

Mas como é isso possível? A lei diz que quem não tem um contrato escrito, mas tem uma relação laboral que pode comprovar – através de folhas salariais, transferências para o INPS, etc. – significa que esse trabalhador tem um contrato por tempo indeterminado. Portanto, é absolutamente falaciosa a ideia de que o trabalhador está totalmente entregue nas mãos do seu empregador. Falei com um sindicalista que me disse que, com esta lei, há empregadores que lhe asseguraram que nenhum trabalhador chegará a contratos definitivos. Portanto, você acha que isso acontece só por capricho? Isso pode acontecer com algum ou outro empregador. Mesmo assim, não devemos confundir a árvore com a floresta. Do ponto de vista jurídico, daquilo que está na lei, o trabalhador tem uma posição confortável e consolidada. Repare que as situações para se assinar um contrato a prazo são taxativas.

Na sua opinião, se a lei do trabalho não for revista Cabo Verde continua pouco competitivo? Nesse critério sim, vamos continuar a ser pouco competitivos. Um dos factores que tem puxado Cabo Verde para baixo nos rankings de avaliação – Doing Business e outros – é precisamente na parte da rigidez laboral. Se não conseguirmos melhorar esse item não vamos conseguir melhorar a nossa imagem na fotografia. E o que é preciso fazer para isso? Tem de haver uma maior flexibilidade da lei. E estamos todos – governo, sindicatos e empregadores – à procura de um consenso nessa matéria. Diga-se o que se disser, nenhum empregador despede um bom trabalhador. Não é inteligente e ninguém faz isso. O problema é que temos estado sempre a discutir os direitos dos trabalhadores e não colocamos a mesma ênfase nos deveres e nas obrigações deles. Por exemplo, a produtividade. Temos


especificamente nos trabalhadores. Em Cabo Verde, até prova em contrário, os empregadores são os exploradores dos trabalhadores, ainda há muito a ideia de luta de classes entre o operariado e os capitalistas. Continuamos soviéticos em Cabo Verde? É mais do que isso, ainda temos uma visão do sindicalismo do tempo da revolução industrial. Um sindicalista me disse que nós estamos a viver um capitalismo selvagíssimo. Ah, bom.

JUSTIÇA, “UTILIDADE”

tido situações ridículas, a nível da Concertação Social, em que quando se discute questões do género, os sindicatos vêm com a conversa dos ganhos de produtividade. E o que é que se considera ganhos de produtividade? Eu não sei. Ninguém sabe porque não há critérios. A relação tem que ser biunívoca, não é só exigir de um lado, pedindo ao empregador que dê estabilidade ao trabalhador. O que é que se exige ao trabalhador? Que trabalhe. Ora, aí está. E o que é que eu posso fazer se ele não trabalha? Neste momento, como está no código, para despedir um trabalhador por manifesta improdutividade, ou incompetência, é um processo complicado. Portanto, estas coisas têm de ser revistas. Por muito que os sindicatos digam o contrário, o código laboral é manifestamente desequilibrado, foi pensado

A Justiça, como sabemos, é uma das questões que se coloca à reforma do Estado em Cabo Verde e vocês do setor empresarial sentem isso de forma particular, suponho. A Justiça tem de ser vista também na ótica da competitividade do país. O investidor, e não apenas o cidadão comum que também precisa, necessita de ver os seus litígios serem resolvidos com celeridade e qualidade. A morosidade processual é realmente um problema. A pessoa sabe quando é que o problema entra no tribunal mas nunca sabe quando é que vai ter uma decisão definitiva. Isso não abona a favor de nenhum país competitivo. Muitas vezes, quando as decisões saem, a situação já se degradou de tal forma que já não tem qualquer utilidade. Isso é pão nosso de cada dia a nível laboral, por exemplo. São inúmeras as situações de prejuízo

causadas pelo mau funcionamento da Justiça, o que afeta a competitividade do país. Se os tribunais não funcionam bem não há segurança jurídica para ninguém. Falando com o tal líder sindical, ele também apresenta os mesmos problemas em relação à Justiça. Só que, para ele, a culpa é do Governo. Para si, a culpa é de quem? Os tribunais funcionam com os meios que têm, mas os tribunais são geridos por homens e mulheres, isto é, pelos juízes. E tal como qualquer outro “trabalhador” há casos de mais ou menos produtividade. Há juízes que são produtivos e há outros que são menos. Desse ponto de vista, não podemos cobrar ao Governo por maior ou menor responsabilidade da produtividade dos juízes. A responsabilidade é do Conselho Superior da Magistratura Judicial. Mas, por outro lado também, não podemos perder de vista que quem cria os tribunais, que faz a organização judiciária, no fundo cria as condições para os tribunais funcionarem, é o Governo. Eventualmente, nisso, se coloca o problema de não terem sido colocados os meios aos tribunais, nomeadamente as secretarias, para funcionarem como deve ser. Muitas vezes, temos problemas nos tribunais não porque o juiz não esteja a despachar, mas porque as secretarias não têm capacidade de resposta para aquilo que é o trabalho dos magistrados. Mas é também crescente a complexificação da vida e particularmente das atividades empresariais. Os tribunais e os juízes

“…nenhum empregador despede um bom trabalhador. Não é inteligente e ninguém faz isso. O problema é que temos estado sempre a discutir os direitos dos trabalhadores e não colocamos a mesma enfâse nos deveres e nas obrigações deles. Por exemplo, a produtividade.” [ 127 ]


são cada vez mais chamados para decidirem sobre assuntos complexos e particulares e o juiz tem uma formação generalista. E logo coloca-se o problema da formação contínua dos magistrados. Impõe-se ainda, e cada vez mais, uma especialização dos próprios tribunais. Tudo isso, são competências partilhadas entre o Governo e o Conselho Superior da Magistratura Judicial no que diz respeito aos meios de funcionamento da justiça.

Só agora, com a existência desse mecanismo, é que as pessoas começam a introduzir nos seus contratos cláusulas para a resolução arbitral de litígios. A arbitragem ad hoc tem funcionado com muita frequência, sobretudo no ramo da imobiliária e empreitadas de construção civil. Eu próprio já participei nisso. O sistema tem a vantagem de ser mais célere. Tendencialmente, em seis meses, no máximo, um processo é resolvido.

A criação de tribunais arbitrais não teve consequência no funcionamento da Justiça entre nós? O impacto, a haver, é a médio e a longo prazos. A nossa mentalidade está muito virada para a figura do juiz, com o poder do Estado, para dirimir os conflitos. O tribunal arbitral é uma justiça com base negocial.

40 ANOS: “PODÍAMOS ESTAR MELHOR”

Esse tipo de tribunal já existe ou não em Cabo Verde? A lei existe há já algum tempo, com possibilidade de tribunais ad hoc’s, e começa a haver centros de arbitragem, como é o caso do Centro Arbitral da Câmara de Comércio de Barlavento. [ 128 ]

Estes quase 40 anos de independência, no seu todo, como os vê? Vejo-os de uma forma muito positiva. Podemos não ter seguramente o país que almejamos, mas em 40 anos temos um país viável, algo que, seguramente, a 5 de Julho de 1975, ninguém augurava. Portanto são 40 anos muito positivos. Para si, quais são os principais ganhos? Por coincidência, eu há dias falava com as minhas filhas e contava-lhes

da ginástica que a minha mãe tinha de fazer para comprar um frango, uma dúzia de ovos, um quilo de peras, como nós costumamos dizer, de “má figura” na Congel e outros sítios… Elas riam-se, olhavam para mim com estranheza, porque elas hoje vão a qualquer minimercado e têm isso. Portanto, é chocante, para positiva, a evolução que tivemos ao longo destes quase 40 anos, na educação, na saúde e mesmo em termos económicos. É um percurso glorioso, temos razões para estarmos orgulhosos daquilo que conseguimos construir até agora. Eventualmente, em determinados momentos, poderíamos ter feito outras opções, e se isso acontecesse, se calhar poderíamos estar num patamar mais elevado, mas não há dúvida que Cabo Verde hoje, em 2014, é incomparavelmente melhor que o Cabo Verde de 5 de Julho de 1975. Inclusivamente São Vicente? Sim, inclusivamente. O facto de estarmos a atravessar um momento difícil aqui, não quer dizer que as pessoas não tenham uma vida melhor


interno. E repare é um boom que se regista nos últimos dez anos. Além disso, são ilhas que vinham de um patamar muito mais baixo do que São Vicente. Boa Vista em 1975 tinha aí uns 5 mil habitantes, logo, qualquer investimento tem automaticamente um efeito multiplicador grande na ilha. O mesmo se passou com o Sal. São Vicente, pelo contrário, é uma realidade muito complexa. Para já, é uma ilha que não apresentava as mesmas razões que levaram ao desenvolvimento do turismo no Sal ou na Boa Vista. São Vicente tem um perfil diferente, precisa de investimentos outros. Era necessário manter o nível de economia que nós tínhamos naquela altura e depois incrementá-lo. O que se verifica é que, em termos de balanço, estamos a perder gás. Esta é a grande questão. E quando eu me referia à centralização é preciso ver que centralização gera economia, gera mercado, porque gera população, que por sua vez gera economia e gera mercado, e assim por do que aquela que tinham em 1975. O que temos neste momento, em termos económicos, é que a ilha não está no patamar do seu potencial. Os cenários são diversos. São Vicente perdeu competitividade com outras ilhas, nomeadamente Santiago, mas também Sal e Boa Vista? É evidente que perdeu. São Vicente tem estado num processo de perda contínua de competitividade e de protagonismo no contexto do país. E a culpa é de quem? As culpas são partilhadas. Mas nesta análise não podemos escamotear o papel que a centralização teve, a todos os níveis da nossa vida, com tudo centrado na capital. Repare, mesmo com a capitalidade e centralidade, ilhas como Sal e Boa Vista estão a emergir, o mesmo não acontece com São Vicente, por quê? São ilhas onde os investidores privados fizeram importantes investimentos, é um desenvolvimento que deriva mais do factor externo do que

... é preciso ver que a centralização gera economia, gera mercado, porque gera população, que por sua vez gera economia e gera mercado, e assim por diante, é um círculo vicioso.

diante, é um círculo vicioso. Ou seja, introduziu-se esse factor na dinâmica política e económica de Cabo Verde, fazendo a balança do desenvolvimento económico pender num determinado ponto do país. Nisso não foi possível criar contrapesos noutros pontos do país, à exceção do que tem vindo a acontecer no Sal e na Boa Vista. E isso está a tornar-se de tal forma perverso que cada vez mais as consequências da centralização estão a servir de justificação para mais centralização. Tivemos ultimamente um conjunto de situações que demonstram isso de forma clara: a decisão sobre a cidade universitária, a escola de hotelaria e turismo e outras medidas que têm sido tomadas pelo factor numérico, demografia, densidade populacional, etc. Numa palavra, a centralização só gera mais centralização.

DESAFIOS FUTUROS E os nossos desafios futuros, quais são? Já conseguimos o básico que justifica o desenvolvimento de um país, precisamos agora de sofisticar a nossa economia. Temos de ir para um país que seja capaz de gerar os seus próprios ativos de desenvolvimento e que seja de facto capaz de competir neste mercado global. Até aqui fomos criando condições para nos integrarmos no mercado global, é assim que estamos na OMC (Organização Mundial do Comércio), na CEDEAO, etc. Cada vez mais, Cabo Verde está a abrir-se ao mundo. Temos é de ser capazes de criar as condições para que estando nós abertos ao mundo as consequências não sejam só num único sentido, de fora para dentro. Temos de ter condições para sairmos de dentro de determinados nichos onde podemos ser competitivos.

SER CABO-VERDIANO Com a nossa abertura ao mundo, estamos a receber vagas humanas de várias partes do globo, em especial da África ocidental. Diante disso, o cabo-verdiano o que é hoje? O cabo-verdiano é cada vez mais um cidadão do mundo. Sempre tivemos – certas ilhas e São Vicente é uma delas [ 129 ]


– uma relação próxima de intercâmbio e de abertura com os que vêm de fora. Há uma ligação extremamente facilitada com o exterior por via das novas tecnologias de comunicação. Esta é também uma área em que evoluímos imenso. Como povo, estamos num processo cada vez de maior aculturação. Esta nova aculturação já não é algo que se circunscreve aos grandes centros urbanos. Hoje em dia, vamos a qualquer buraco deste nosso arquipélago e qualquer que seja o jovem que a gente encontra – pela sua postura, forma de vestir, de se expressar, etc. – há um certo padrão comum e notam-se as mesmas influências. Somos capazes de encontrar um jovem a fazer hip hop num vale profundo de Santo Antão ou de Santiago, da mesma forma que no Mindelo ou na Praia. Portanto, há cada vez mais a absorção do que nos vem de fora, mas tudo isso é temperado com o que é nosso, porque culturalmente somos muito fortes. Essa nossa idiossincrasia, enquanto caboverdianos, ajuda-nos a temperar e fazer com que não haja um take over total daquilo que vem de fora em detrimento daquilo que é nosso. Veja a música. Embora os jovens estejam abertos ao que vem de fora, eles têm também um grande apego ao que é realmente nosso, fazendo por isso fusões que contribuem para a evolução da nossa própria música. Temos uma cultura muito plástica. Ainda é possível falar de identidade cabo-verdiana? Sem dúvida que sim. Ela não está em risco e nunca estará. Na sua opinião, há uma cultura mindelense, urbana? Eu penso que sim. É uma cultura que é muito tributária daquilo que historicamente lhe entrava pelo porto adentro e que acabou por moldar, em termos fundamentais, a cultura desta cidade e da ilha. Isso se reflete na forma como o mindelense se posiciona em relação à vida, em relação ao mundo, porque ele esteve sempre em contacto com o mundo. Este facto influenciou incomensuravelmente esta cultura. Se nós pudéssemos fazer um desenho para ilustrar a cultura mindelense esse desenho teria a feição do Porto Grande. [ 130 ]

Eu sou otimista porque nós temos uma grande margem de progressão. Há muita coisa que depende de nós, outras que dependem de fazermos opções estratégicas muito bem definidas e nos empenharmos em atingir os nossos objetivos. CRIOULO: “HÁ OUTRAS PRIORIDADES” E a questão do crioulo? O crioulo não merece a polémica que se criou à volta dele. É o nosso maior património cultural. Mais do que tudo o resto, é o que nos define como povo. Estamos aqui a falar em português, porque a entrevista tem de ser publicada em português, mas mal o gravador for desligado, estaremos os dois a falar em crioulo. Portanto, o crioulo é algo que é intrínseco a nós todos e é um denominador comum entre os cabo-verdianos. Relativamente à oficialização, isso é algo que terá de passar por um enorme consenso. É, de novo, um problema de estratégia, o que impõe o longo prazo para se atingir o objetivo. Em se tratando de algo tão sensível, tão profundo, o assunto impõe sensibilidade, bom senso e sobretudo é algo que não pode ser imposto pela via administrativa. Temos de tratar o crioulo de forma a garantir que continue a ser um factor de união dos cabo-verdianos e não de desunião. E nós temos também – e isso é importante – de pensar nas nossas prioridades. O crioulo não vai morrer pelo facto de estar ou não oficializado, é uma língua viva. Ele é a nossa

língua de comunicação, aqui, no dia a dia. Cabo Verde precisa de se integrar no mundo, será pelo crioulo que conseguiremos isso? O próprio português já sai curto. Portanto, temos de fazer uma aposta forte numa língua de comunicação no mundo inteiro, e essa língua hoje é o inglês. Andamos a perder muitas oportunidades porque não temos o domínio do inglês. Ainda há dias tivemos aqui um seminário sobre o trabalho marítimo e foi-nos dito que uma das coisas que tem estado a dificultar os marítimos que nós formamos, em Cabo Verde, em São Vicente em concreto, é o facto de não terem um domínio mínimo do inglês. Qualquer marinheiro das Filipinas ou da Indonésia ou de outros países, bem ou mal, domina o inglês; logo, os nossos marítimos são menos competitivos. Por isso, em vez de estarmos a investir no inglês, estamos a perder tempo, a gastar energia com uma polémica em torno do crioulo, suscitando fantasmas que nós não deveríamos ter nenhum interesse que fossem despertados. Não faz sentido.

VALORES, “NEM TUDO É MAU” O cabo-verdiano é hoje mais cívico ou menos cívico? Depende da perspetiva que encararmos isso. Verifica-se, por um lado, alguma perda de valores fundamentais. No passado, havia da parte dos mais novos um respeito exacerbado pelos mais velhos que hoje já não se verifica. Havia um tremendo respeito pelos professores. Podíamos estar a fazer as nossas travessuras, mas perante os nossos professores, nós nos púnhamos logo de sentido. Esse tipo de consideração já não é possível. O mesmo se passa com determinadas regras de convivência social. Há vários outros exemplos que servem para ilustrar a degradação de valores por que vimos passando. Mas, por outro lado, verifica-se um incremento da cidadania, embora a sociedade civil ainda não tenha o peso nem a capacidade de influenciação, mas nota-se, cada vez mais, a tendência para as pessoas se organizarem em associações, com os mais diversos objetivos e há


uma sociedade civil cda vez mais organizada. Nota-se também um aumento do voluntariado. Portanto, nem tudo é mau. Por exemplo, a nível empresarial é fácil manter a Câmara de Comércio? Fácil não é. A Câmara vive das quotas dos seus associados e dos serviços que presta a partir de algumas competências delegadas pelo Governo, em termos de licenciamento comercial, por exemplo. Mas um dos grandes desafios que nós temos é garantir a sustentabilidade financeira a longo prazo até para que as câmaras possam cumprir o seu papel. As câmaras têm sido um bocado vítimas do seu sucesso. Como nos temos tornado cada vez mais credíveis, isso faz com que sejamos cada vez mais requisitados. São chamadas a estarem presentes nas mais diversas estruturas que se vêm impondo. E, mais uma vez, volta-se a pôr o problema da centralização, porque somos chamados constantemente à Praia para as mais diversas intervenções e isso implica meios que temos dificuldades em reunir.

FIGURAS DE DESTAQUE Nestes 40 anos quem são as figuras que mais se destacaram? Diante das nossas características como nação e povo, temos de pensar nos líderes que ajudaram a viabilizar este país. É o caso de Pedro Pires, depois Carlos Veiga e atualmente José Maria Neves. Como é evidente, cada um com os seus claros e escuros. Em relação ao futuro de Cabo Verde, qual é o seu estado de espírito? Eu sou otimista porque nós temos uma grande margem de progressão. Há muita coisa que depende de nós, outras que dependem de fazermos opções estratégicas muito bem definidas e nos empenharmos em atingir os nossos objetivos. E para isso temos é de depender cada vez mais de nós próprios, saber que o tempo é precioso, dele depende a nossa própria sobrevivência e por isso não pode ser desperdiçado por ninguém. [Mindelo, 17-04-14] [ 131 ]


José Melo

“O cabo-verdiano precisa lutar mais pelo seu país”

José Melo, 55 anos, líder da Biosfera I, associação ambiental cuja ação se centra na ilha de Santa Luzia e ilhéus Raso e Branco. Cidadão do mundo, como se autodefine, Melo gostaria que o cabo‑verdiano lutasse mais pelo desenvolvimento do seu país. [ 132 ]


Como estamos de ambiente em Cabo Verde? Nos últimos dois/três anos, Cabo Verde deu um salto muito grande. As nossas autoridades passaram a preocuparse mais com o ambiente. E eu tenho várias teorias para isso. Diga-me, então. Uma é que Cabo Verde, para obter ajuda financeira internacional, tem de responder por certos quesitos ambientais. Há metas traçadas no mundo inteiro e Cabo Verde não foge à regra. Uma outra explicação é que antigamente as associações de defesa do ambiente eram muito passivas, tentavam fazer algum trabalho, se desse certo deu, se não desse não fazia mal, a população não cobrava, as instituições do Estado também não cobravam. Nesse quadro, as associações e as ONGs não tinham voz ativa para cobrar ao Governo nada. Hoje em dia, os governantes estão mais acessíveis a críticas. Estão também eles preocupados com o que se passa com o ambiente quer em Cabo Verde, quer no mundo inteiro. Isto porque os problemas estão a crescer e impõe-se a tomada de certas medidas. A isso junta-se o trabalho das associações e ONG’s. Respondendo à pergunta, propriamente, neste momento Cabo Verde está num ótimo caminho. É claro que poderíamos estar mais avançados, mas não nos podemos esquecer que somos um país pobre, ilhas ainda por cima, onde os problemas ambientais são mais difíceis de resolver. Qual é o nosso problema ambiental mais grave neste momento? O principal problema ainda é a falta de sensibilização da população e dos órgãos governamentais. Se tivéssemos uma população mais consciente, talvez 50% dos problemas existentes já estavam resolvidos. Temos um problema grave, a nível de todo o mundo, que é o aquecimento global e isso é muito pouco falado em Cabo Verde. Há muitas palestras, workshops, etc., para meia dúzia de pessoas, sempre as mesmas, quando o que precisamos é de mobilizar a população.

As pessoas, em certas localidades, dizem claramente que entre uma carrada de brita ou de areia e o dinheiro para comer, optam pela segunda hipótese. Há sempre respostas para todos os problemas do ambiente. A questão é que tem de haver boa vontade de todas as partes. A Biosfera I tem encontrado problemas vários, por exemplo, da pesca predatória. Não existe pesca pior do que aquela que é feita com explosivos. A isso somam-se pescas com garrafas de mergulho, compressores, mangueiras, etc. Encontrámos isso na reserva de Santa Luzia. Essa ilha e os dois ilhéus (Raso e Branco) estão a ser depredados num passo acelerado. Os “predadores” são pescadores – nossos – que querem trabalhar o mais rápido possível. E qual é a desculpa? “Eu tenho de pôr a panela no fogo”. É preciso mostrar e convencer que se pôr a panela no fogo dessa forma, no futuro, não haverá panela no lume. Este é um trabalho em rede, de mãos dadas, com as pessoas. Não havia a necessidade, por exemplo, de extrair gravilhas no Calhau, poderia haver outras soluções, outros lugares, sem a destruição que se assiste neste momento, desde que houvesse um controlo, uma fiscalização. E quem diz Calhau diz vários outros lugares de Cabo Verde. O poder político sabe lidar com o problema ambiental? Infelizmente, a resposta, quando há, surge sempre num passo muito lento. Isso acontece tanto a nível das autarquias, como do poder central. Ninguém quer perder votos. Diante do problema, cada um prefere deixar que o outro assuma as responsabilidades inerentes a uma determinada medida. São decisões que quem tomar vai perder votos de certeza absoluta, perderá a eleição na próxima disputa, mas um dia voltará a ganhar, porque o povo há de se conscientizar de que eram decisões que tinham de ser tomadas. Há uma agenda ambiental em Cabo Verde? A Direção Geral do Ambiente tem as suas prioridades, as associações as delas, falta uma concertação geral. Cada um trabalha em função dos seus próprios objetivos e metas – é o caso da

Biosfera I, por exemplo. Falta, sim, uma agenda comum a todos, o que torna o trabalho bem mais difícil para todos, inclusive para o Governo e as câmaras. Disse que tem centrado o seu trabalho em Santa Luzia. A ilha foi, há anos atrás, alvo de uma proclamação política, com a visita do primeiro-ministro, José Maria Neves. Aconteceu alguma coisa depois disso em termos institucionais? Sou a favor de visitas dessas se houver resultados à vista, coisa que não aconteceu. Gastou-se dinheiro para nada. Foi elaborado um plano de gestão, há cerca de sete anos, uma instituição foi encarregue disso, a coisa não foi para frente, contrataram-se outras pessoas, até que, finalmente, há dois anos, com consenso das ONGs que trabalham na região –Biosfera I, a Associação do Calhau e as associações dos Pescadores de São Pedro e Salamansa – elaborou-se um plano de gestão, e não há desculpa para que esse plano ande de gabinete em gabinete durante cerca de dois anos.

“PESCA DO TUBARÃO E AFINS” Um outro problema levantado pela Biosfera I tem sido a pesca predatória dos tubarões. A sua voz tem sido escutada? Tem sido, sim. Mas infelizmente tenho que dizer que a minha voz começou a ser ouvida primeiro na Europa e só depois em Cabo Verde. É com muita tristeza que digo isso. Por que diz isso? Só depois de termos sido convidados a ir a Bruxelas, há cerca de dois anos, ter contactos com eurodeputados, sobre os acordos de pesca entre Cabo Verde e a União Europeia, é que Cabo Verde, o Governo, começou a nos ouvir. A questão do acordo de pesca foi uma das principais bandeiras que a Biosfera I levantou desde a sua criação em 2006. As nossas autoridades andavam distraídas ou santos de casa não fazem milagres? Eu vou mais longe. Como cidadão, não como o responsável da Biosfera I, sinto que Cabo Verde poderia estar [ 133 ]


muito mais avançado, em todos os níveis, se os responsáveis de cargos públicos não fossem recrutados em função da cor do partido que sustenta o governo. Há lugares que podem ser ocupados por essas pessoas, inclusive por gente que não entenda de um determinado assunto, desde que esteja rodeada por quem sabe, por quem conhece. No caso da pesca, o setor tem sido esquecido pelo Governo. E não é de hoje, isso acontece desde 1975. Há medidas que deviam ter sido tomadas há muito e não se tomam. E por que não se tomam? Primeiro por incompetência, segundo para continuar bem visto pelo partido que sustenta o governo, para não perder a sua panela. Este é o principal factor que tem causado muitas dificuldades e até mesmo problemas ambientais. As vossas relações com as autoridades que lidam com as pescas e o ambiente como são? Respondo, com uma certa satisfação, que as relações têm sido as melhores possíveis, pelo menos, na área do ambiente. Aqui temos tido alguma sorte, primeiro, com a ministra Madalena Neves, que foi uma governante extremamente preocupada com o ambiente; depois, com José Maria Veiga e Sara Lopes, tivemos uma lacuna. Com o atual ministro, Dr. Antero Veiga, temos uma relação excelente! Ele é do tipo que ouve a preocupação de quem está no terreno e que tenta resolver os problemas, quando não consegue ele diz abertamente que não vai poder resolver dizendo as razões. Com ele, o ambiente evoluiu muito, muitos dossiês foram resolvidos. No caso de Sara Lopes [ministra da Economia Marítima], a lacuna ainda prossegue no que diz respeito às pescas. Ela é do tipo que procura mostrar, na comunicação social, que vai fazendo alguma coisa e, quando criticada, a pessoa quase que se torna uma inimiga. Por exemplo, sabemos que um novo acordo de pescas está a ser negociado com a UE, não obstante as nossas críticas, a Biosfera I nunca foi tida nem achada. [ 134 ]

Vocês sentem-se ignorados? Sim, porque devo dizê-lo que se há muitas questões que estão a ser melhoradas nesse acordo isso se deve às nossas críticas. Foi a Biosfera I que foi à comunicação social denunciar, com factos, o que se estava a passar, nomeadamente, com a pesca do tubarão. O objetivo da Biosfera I não é estar contra este ou aquele partido. De forma nenhuma. O nosso objetivo é a preservação ambiental. Nós criticamos e apresentamos soluções. No caso das pescas, quando temos ministros, secretários de Estado e diretores gerais que não entendem da matéria, e parece que não estão bem assessorados e não têm a humildade de procurar as informações junto de quem pode dar, as coisas não podem andar bem. Infelizmente, há falta de humildade no setor das pescas. Lamento dizê-lo mas é a verdade! Diga-me: como é que você passa a interessar-se pelo ambiente? Eu tenho orgulho em dizer que o meu interesse começou com o meu pai, que sempre foi um apaixonado pela natureza. Ele vivia com comida para lagartixas no Calhau, em Santa Luzia,

Ninguém quer perder votos. Diante do problema, cada um prefere deixar que o outro assuma as responsabilidades inerentes de uma determinada medida.

preocupava-se com os pardais. Isso foi algo que ficou dentro de mim. No início de 1975 fui para o Brasil, lá fiquei 14 anos e lá comecei a ver o problema ambiental que existia, e comecei a recordar dos problemas que afinal nós também tínhamos em Cabo Verde. Regressei a Cabo Verde em 1989, trabalhei nas pescas, na Frescomar, etc. Eu era mergulhador, fazia pesca submarina, por exemplo, em Santa Luzia, ilhéu Branco e ilhéu Raso, desde os 11 anos que frequentava esses meios, de forma que comecei a observar coisas que quando miúdo eu não me preocupava mas que começaram a chamar-me a atenção. Por exemplo, gente a utilizar dinamite para pescar, as praias cheias de peixes mortos, que aparecem com a maré, pessoas a mergulharem com garrafas, a comunicação social alertando para os problemas ambientais, quando dei por mim, tinha abraçado a causa criando a Biosfera I, em 2006. E já agora como é que a Biosfera I surge? Nessa altura, o meu filho estava em Coimbra a estudar Biologia, ele veio de férias e, do nosso convívio, também tomou o gosto pelo ambiente. Juntos, resolvemos fazer uma pequena exposição para alertar para os problemas ambientais de Santa Luzia, ilhéu Branco e ilhéu Raso. O nosso espanto foi grande quando verificámos que a exposição prevista para uma área de 200 metros quadrados, tínhamos material que dava para muito mais e nisso acabamos por utilizar o pavilhão da FIC, com quase três mil metros quadrados. E saiu pequeno ainda. Por coincidência, no último dia da exposição, quando já estávamos a desmontar, alguém nos telefona da Praia para dizer que o primeiro-ministro chegaria no dia seguinte com um grupo de pessoas e que gostariam de ver a exposição. Passámos a noite a remontar o que já tínhamos desmontado. Com ele, recordo, estava a Madalena Neves. O primeiro-ministro disse-me: “Olhe, há aqui questões que eu nem sabia que existiam em Cabo Verde, vocês deveriam criar uma associação para trabalhar conosco a nível ambiental”. Foi dali que nasceu a Biosfera I.


Santa Luzia da sua infância e a de hoje há discrepâncias? Nem queira saber! A discrepância é quase da noite para o dia. No que toca à vida marinha, a diferença é mesmo da noite para o dia! Para melhor ou para pior? Para pior, infelizmente. O melãozinho, na minha infância, vinha dar à praia vivo, nós o apanhávamos como isca para pescar o bonito. Hoje em dia, nem o melãozinho quanto mais o bonito. Realmente, a diferença é muito grande. Por ser uma reserva desabitada, formada por uma ilha e dois ilhéus ao lado, não existe uma fiscalização. Praticamente, diante das agressões, só temos as denúncias. Só agora é que começa a haver uma atitude de colaboração com o atual responsável da capitania. Entram anos e saem anos, com as pessoas a fazerem o que querem e entendem numa reserva integral, como é Santa Luzia. Há pescadores que usam dinamite, garrafas de oxigénio, redes de malha inadequadas. Encalha lá um barco e lá fica um ano ou mais, com combustível nos depósitos. Diariamente, vemos que aquilo está sendo delapidado de uma forma acelerada. Temos vindo a procurar sensibilizar os pescadores que lá vão pescar, para, pelo menos, manterem a zona do acampamento deles limpa. Numa campanha de limpeza que fizemos com eles foram dezenas e dezenas de sacos de lixo que transportamos de Santa Luzia para São Vicente. Esse contacto com os pescadores tem surtido efeito? Temos conseguido alguma coisa, sobretudo dos pescadores de Salamansa e do Calhau. Infelizmente, não posso dizer o mesmo dos seus colegas de São Pedro. E sabe por quê? Sim, eles são os principais utilizadores da pesca predatória na zona, sei quem são, tenho-os denunciado e eles não gostam. Dos seus colegas de Salamansa e do Calhau a adesão e o apoio têm sido quase a 100%, o que por si demonstra preocupação ambiental por parte deles. [ 135 ]


CIDADÃO DO MUNDO Disse-me que nas suas andanças pelo mundo esteve no Brasil. Como foi isso? Fui estudar no Brasil, naquela altura conturbada para a independência, início de 1975. Tinha lá um irmão desde 1962, que me acolheu. Lá conclui o liceu e acabei por fazer dois anos de comunicação visual, casei, formei-me como técnico de pescas, trabalhei vários anos e regressei a Cabo Verde em 1989. Independentemente disso, eu me considero um cidadão do mundo. Depois que fundámos a Biosfera I, temos tido parcerias fabulosas com instituições estrangeiras, por causa disso temos feito muitas viagens, coisas que têm a ver com o aquecimento global, monitorização das espécies, corais, aves, etc., etc. Nesse universo Cabo Verde é apenas um elo? Não, é mais do que isso. Cabo Verde hoje é quase um emblema, principalmente nesta costa ocidental africana, uma região com muitos problemas de agressão ambiental. E não é por causa da Biosfera I. É mesmo Cabo Verde, como exemplo do que é possível fazer em termos de preservação ambiental. Estamos de parabéns. Mas com tantos problemas que a gente tem? Sim. Ainda há dias o meu filho esteve em Portugal, num encontro, com gente de vários outros países, não só europeus mas também de África, e Cabo Verde foi o único mencionado como aquele que está a ter resultados excelentes no domínio ambiental. Isto para mim é surpreendente. Mas é a verdade e digo-o com todo o orgulho, como cabo-verdiano, sentindo-me satisfeito também por estar a trabalhar nesta área. E acredite, não é só o Zé Melo, somos todos que vestimos a camisola da Biosfera I, com cada um a fazer a sua parte. Os sacrifícios são grandes, faltam verbas, a crise internacional afetou, e de que maneira, as ajudas para as associações. [ 136 ]

Há quem diga que ONG’s, mormente para o ambiente, não passam de um negócio. O que acha disso? Isso tem a ver com a falta de fiscalização. Mas tudo que seja fiscalização em Cabo Verde temos problemas. Eu quando falo de fiscalização não me refiro apenas ao bote de pesca, falo da fiscalização sobre as ONG’s também. A Biosfera I conseguiu, no ano passado, dar gritos de alegria, porque há anos que vínhamos convidando e desafiando a Direção Geral do Ambiente para ir à Santa Luzia ver o nosso trabalho. No ano passado, o diretor-geral, a responsável das áreas protegidas e mais um assessor foram conosco, na nossa embarcação, a Santa Luzia, estiveram no nosso acampamento e viram o que lá fazemos. Queremos que as autoridades vejam realmente, no terreno, o que está a ser feito. Fazer um relatório e mandar é muito fácil, qualquer um faz. A Biosfera I tem recebido apoios internacionais porque nós fazemos questão que todos os anos alguém das entidades e organismos que nos apoiam vá ao terreno para ver o que andamos a fazer. Também já tivemos casos de gente que chegou de surpresa para ver. É isso que deve ser feito.

SER CABO-VERDIANO Falou há pouco do seu orgulho de cabo-verdiano. Embora a questão seja óbvia, para si o que é ser caboverdiano? É fazer com que Cabo Verde seja cada vez melhor. Tenho filhos, não luto para que depois de mim haja uma rua com o meu nome, ou uma estátua para mim, de forma alguma. Sonho que daqui a 30 anos os meus filhos ou os meus netos digam: “O meu avô ou o meu pai fez muito por isto”. E que eles, orgulhosos também, possam dar sequência ao que deixei. Para si, o que é que ajuda a definir a identidade cabo-verdiana? Antigamente dizia-se que o que definia o cabo-verdiano era a morabeza. Eu não acredito nisso hoje, embora haja ilhas onde isso ainda seja possível – Santo Antão, São Nicolau… A minha

sensação é que fazemos muito a publicidade da morabeza, mas uma coisa forçada. A morabeza não se força, ou se tem ou não se tem. Muita gente vem à procura dessa morabeza, não a encontra e fica desapontada. Na sua opinião, o que é que aconteceu ao cabo-verdiano? Até 1975, nós tínhamos quase que uma identidade europeia. De repente, passámos a um país que decidiu procurar uma identidade africana. Acho que foi um erro querer meter quase que à força na cabeça do caboverdiano que ele é africano, quando se devia deixar o cabo-verdiano, por sua própria conta, procurar a sua identidade. Nisso, o cabo-verdiano acabou por se perder. Perdemos a nossa identidade e só agora é que estamos de novo a readquiri-la. Por quê? O cabo-verdiano é hoje mais senhor de si. Durante a colónia, não éramos senhores de nós, logo após a independência também não, quiseram impor-nos uma identidade que nós não tínhamos. Hoje, depois de tudo o que passou, o cabo-verdiano acredita mais em si próprio. Pessoalmente, fico feliz, porque estamos a descobrir o que realmente somos. O que leva a pensar assim? Eu observo muito a realidade à minha volta, também converso com pessoas de todas as classes sociais. E, em relação aos primeiros anos da independência, talvez tenha sido bom termos começado com o partido único, caso contrário, muito provavelmente, teríamos caído no anarquismo. Mas isso criou em nós o medo. Até então o cabo-verdiano quase fazia vénia a quem vinha de fora, algo que já vinha do período colonial. Éramos servis. Pode até ser que esteja enganado, mas é essa a ideia que eu tenho do caboverdiano até à abertura política. Hoje o cabo-verdiano é ele! Vem o estrangeiro, ele continua a ser ele, deixou de ser serviçal. O cabo-verdiano está a descobrir-se a si próprio, não precisa ser subserviente em relação a ninguém. Você é mindelense? Cem por cento!


Isso existe? (risos) Ponha aspas! A minha mãe era de Santo Antão, uma ilha que eu adoro imenso. É que o são-vicentino é sempre de algum lugar. Exatamente! Por isso é que quando me perguntam “ma bo é prope mindelense?!” Eu respondo, “não, eu sou cabo-verdiano!”

SÃO VICENTE: “MUITA FESTA” Como é que acha que a história do Mindelo influencia Cabo Verde? Ela influencia em vários aspetos. São Vicente é conhecida pelo seu carnaval, pelas suas festas, etc. Sendo nós ilhas, todas com dificuldades, vendo o sucesso do carnaval mindelense, por exemplo, as outras ilhas procuram seguir no mesmo caminho. Acho isso natural. Há uma vocação natural do mindelense para a festa e esta parte eu critico. Nós, mindelenses, infelizmente, queremos muita festa. Eu dou-lhe este exemplo. A Biosfera I tem acampamentos todos os anos, de Junho a Outubro/Novembro. São cinco meses e meio em média.

Precisamos de gente para trabalhar, o nosso staff são oito pessoas. Usamos o voluntariado, com gente de outras ilhas e também de fora, da GuinéBissau, Senegal, Portugal, etc., gente que vem aprender conosco a lidar com tartarugas, aves, etc. Mas temos um problema gravíssimo com o pessoal de São Vicente. No mês de agosto surgem todos os tipos de razões, são os pais que estão a morrer, dor de barriga, dor de cabeça, náuseas, o primo que chegou de viagem… E por quê? Porque agosto é o mês do Festival da Baía das Gatas. Temos de ficar por nossa conta e, veja, o voluntário que lá está não é gratuito, nós pagamos, é um voluntariado entre aspas, damos sempre uma gratificação. Com a nossa gente, de São Vicente, quando é altura de festa ela deixa-nos na mão. (risos)

até três, cinco meses de trabalho, com alimentação, ele diz logo, “não, na altura da festa não!”, “Agosto eu não posso”, “Festival, Deus livre!!” Eu, nessa situação, sentiria vergonha de reclamar que não há emprego. Eu sou são-vicentino, com muito orgulho, mas o são-vicentino se vê festa esquece todo o resto.

Repare, em São Vicente há sempre a reclamação, “isto é um marasmo”, “desemprego…” O que me chateia neste meu povo é que nós vivemos a reclamar, que não há trabalho, “eu queria um dia de trabalho…”, “eu queria meio dia de trabalho…” e aparece uma ONG que lhe garante um mês de trabalho, ou

Este tipo de questão leva-nos ao problema da cidadania e dos valores instalados. Como vê isso? O cabo-verdiano, no seu dia a dia, é um cidadão muito desligado das coisas que dizem respeito à sua terra. Não me refiro só à problemática ambiental, refiro-me a tudo. Quantas pessoas você acredita que veem o telejornal de Cabo Verde?

Aliás, está instalada em São Vicente essa coisa de reclamar contra os outros, especialmente Praia, como se na Praia as coisas caíssem do céu. Sim, infelizmente, é verdade. E eu acho que não se deveria reclamar e, a partir do momento que alguém reclama um trabalho, quando aparece, em vez de ir dar duro, prefere ir ao Festival Baía das Gatas.

CIDADANIA: “DESLIGADOS”

[ 137 ]


O telejornal é bastante visto, na minha opinião. Mas se tiver um joguinho do Benfica? Aí a coisa muda de figura. (risos) E se tiver o Real Madrid? O problema do cabo-verdiano é que ele tem muitos compromissos futebolísticos. É com o Benfica, com o Real Madrid, com o Chelsea… Gasta muito tempo com isso. Exatamente! Repare, eu sou Porto. Mas se tiver um jogo do Porto, por mais importante que seja, eu não deixo de ver o meu telejornal, eu quero saber o que se passa no meu país. Eu quero ver porque se amanhã eu tiver que abrir a boca eu possa falar pelo que eu vi. Mas repare também, a nossa comunicação social – rádio e televisão – investe pouco na educação da nossa gente. As televisões estão muito mais preocupadas com as telenovelas brasileiras, com o futebol de Portugal, Espanha, Itália, do que com o nosso futebol. Esses meios estão a alienar as pessoas? Estão a desligar as pessoas da sua realidade. Os outros meios de comunicação social – e aqui meto as rádios e os jornais – seguem pelo mesmo rumo. As rádios ou televisões preferem ocupar o seu tempo de antena com música de má qualidade do que ter um programa de educação ambiental, por exemplo. A Biosfera I chegou a propor um programa, curto, não mais de 15 minutos, semanal com repetição, que nós produziríamos, a televisão serviria apenas para transmitir, num horário não nobre, disseram que teríamos de pagar 870 contos e num horário nobre 1130 contos por mês. Fica explicado, não?

DESENVOLVIMENTO: “PODÍAMOS ESTAR MELHOR” Como vê hoje o desenvolvimento de Cabo Verde? Uma coisa temos de reconhecer. Todos os governos, de 1975 aos dias de hoje, deram bons passos para a nossa afirmação. Porém, o desenvolvimento estagnou nos últimos dois/três anos. Com a crise internacional, os financiamentos diminuíram, mesmo assim, poderíamos ter feito muito mais. [ 138 ]

Na sua opinião, quais são os principais ganhos desde a independência? A nível da agricultura, por exemplo, Cabo Verde está a andar bem. Tem-se investido bastante, nomeadamente em Santo Antão, São Nicolau alguma coisa, em Santiago muito, para todos os efeitos, é lá que está o grosso da população… Infelizmente, o mesmo não acontece com as pescas. É o oposto. Aqui, Cabo Verde é manco desde a independência. Quais são os principais desafios que se colocam ao nosso futuro? O primeiro desafio é o Cluster do Mar, de que tanto se fala. Aqui está-se a colocar o carro à frente dos bois. É gente que fala desse assunto sem entender do que se está a falar. Sou técnico de pesca, já trabalhei no setor, e muito do que oiço não passa de conversa furada. O que é, por exemplo? O número de exportação que dizem que nós podemos exportar. É um número que jamais se vai conseguir em Cabo Verde. Só para ver, alguns números reportam-se à pesca artesanal, nem sequer é pesca semi-industrial, para não falar de pesca industrial. A pesca artesanal, para quem não sabe, é feita por linha, com um botezinho, sem condições para se manter o peixe fresco… Pelo menos a nível das pescas, o Cluster do Mar, para mim, é um aborto. Mas por quê? É um aborto porque estamos a começar de cima para baixo, do fim para o princípio. O mar é tudo que temos para explorar, mas essa exploração tem de ser feita de forma sustentada e verdadeira. Não é com sonhos. Fala-se, fala-se, no Cluster do Mar, mas não se vê uma política de sustentabilidade, pelo menos, a nível das pescas, que eu conheço relativamente bem. Veja o acordo de pesca com a UE, de pesca do atum e afins. Repare nessa palavra “afins”. Afins é o que vem na rede. Na verdade, devia ser “pesca do tubarão e afins”. O Cluster do Mar pretende falar no desenvolvimento de Cabo Verde com base no mar, eu pergunto: quantos barcos de pesca desportiva temos apenas aqui em São Vicente? Eu digo-lhe: não passam de trinta. Tenho

contacto com esses barcos, eles pescam na zona de São Pedro, sul de São Vicente, que é a zona onde há mais espadarte. E é raríssimo eles apanharem um espadarte. Pescam o djeu, o atum (isto é, o atum morador)… O espadarte hoje é a coisa mais difícil de encontrar. Um estrangeiro que vem, paga 800 euros, para oito horas de pesca num barco desses, se não apanha um espadarte, ele regressa e a informação que leva não é nada boa. É gente com posses, em pouco tempo põe a circular que não vale a pena vir a Cabo Verde, o melhor é procurar um outro país para isso. E agora a minha pergunta: por quê estamos a ter a cada dia menos espadarte? Já agora diga-me: por quê? O espadarte está sendo pescado pelos pelangreiros da UE juntamente com o tubarão, com números estrondosos. As autoridades no meio disto, são inocentes, ingénuas…? Fazem vista grossa, é a única explicação que eu tenho. Cabo Verde é dócil perante a UE? Completamente. Toda a gente sabe que os armadores europeus que vêm cá o que querem é o tubarão, não é o atum. Isso foi-me dito taxativamente. Eu insisto: Cabo Verde não sabe posicionar-se perante a UE? A meu ver, alguém está a ser subornado. Eu, como cabo-verdiano, alguém me apresenta a proposta de acordo de pesca como esse que Cabo Verde assinou, não importa quem quer que seja o meu interlocutor, eu rasgaria essa proposta à frente dele. Alguém do Governo me disse, “José Melo, nós temos outras contrapartidas”, então, que se negocie as “contrapartidas”, porque o que nós estamos a falar é de um acordo de pesca. As “contrapartidas” são o quê? – Uma estrada, um barco… Então se é uma estrada que seja o Ministério da Infraestrutura e Transportes a tratar desse assunto, o Ministério das Pescas é outra coisa. Em se tratando de um acordo de pesca que se trate do assunto como um acordo de pesca. Não podemos admitir que os armadores europeus estejam absolutamente à vontade nos nossos


mares, desembarcando produtos nos nossos cais, como eu tenho visto, sem que haja um fiscal à vista. É triste. É triste e lamentável. É como caboverdiano que o digo.

CABO VERDE E O MUNDO

Há uma vocação natural do mindelense para a festa e esta parte eu critico. Nós, mindelenses, infelizmente, queremos muita festa.

Isto leva-nos a um outro ponto do meu questionário, que é a relação de Cabo Verde com o mundo. Em primeiro lugar, como é que vê a nossa relação com a CEDEAO? Uma coisa é conversar com os políticos e outra é com os cidadãos. Quando converso com gente nessa costa africana e digo que sou cabo-verdiano, sinto que eles falam com ironia quando se referem a nós. Há um certo desdém quando dizem “Cabo Verde é um parceiro da Europa”. E quando se fala com os políticos a conversa é outra, elogiam. Na Europa hoje Cabo Verde é um emblema nas relações com a África, somos logo apontados como exemplos disso e mais aquilo, com exceção de Bruxelas. Em Bruxelas estive com eurodeputados que me disseram que Cabo Verde abaixa de mais a cabeça à Europa. E esta é também a ideia que eu tenho, os nossos irmãos africanos também pensam o mesmo. Infelizmente, Cabo Verde tem dito muito ámen à Europa. Achamos sempre que os europeus nos estão a fazer um favor vindo aqui investir, viver, etc. Mas isso não é contraditório com aquilo que você me disse há pouco, que o cabo-verdiano é hoje orgulhoso… Eu não estou a falar do cabo-verdiano, estou a falar do político cabo-verdiano. E realmente isso é contraditório. O cabo-verdiano é hoje orgulhoso, encontrou a sua própria cultura, sabe quem é, mas os nossos representantes políticos continuam a portar-se como se fossemos os serviçais dos europeus. OK, essa é a nossa relação com a Europa e com a África, como é? Fala-se em Cabo Verde aderir à moeda única africana, da África ocidental. Até que ponto isso é bom para nós? O acordo de cooperação cambial com Portugal, depois com o euro, trouxe-

nos muitos benefícios, a começar pela estabilidade bancária, Cabo Verde tornou-se mais credível porque havia a paridade CVE/euro. Eu não sei até que ponto não vamos retroceder entrando nessa moeda única africana. A nossa realidade com a dos países africanos é muito díspar. Portanto, tem reticências? Sim, sérias reticências devido à instabilidade dos outros países. Mas Cabo Verde não corre também o risco de ficar isolado aqui no meio do mar? Esse risco existe realmente, mas aí apelo a um certo orgulho da nossa gente, no sentido de cada um lutar pelo seu país. O cabo-verdiano precisa lutar mais pelo seu país. E por lutar entendo desenvolver o país dele. Há dias esteve cá um senhor português, que veio interessado em conhecer Cabo Verde e ficou de tal forma alucinado que decidiu ficar por aqui, não quis nem conhecer o resto, e em conversa comigo ele me disse: “São Vicente tem tudo para se desenvolver, porque é que vocês não fazem?” E eu não soube responder. Mas não é só o Estado, mesmo o privado, por que razão não investiu ou não investe mais em São Vicente? Talvez porque ele não pense o tempo todo em Cabo Verde. Há ainda receios. Há tanta coisa para se fazer e não acontece, mas não é só São Vicente, é Cabo Verde inteiro. Veja-se o que se passa com o turismo. Todos sabemos que o turismo é a nossa principal aposta, no entanto, qual é o tipo de serviço que existe? No geral, é de péssima qualidade. Passamos, muitas vezes, o tempo a colocar o carro à frente dos bois. O que é que Cabo Verde precisa para se afirmar nas suas relações com o mundo? Precisa de saber que nós temos uma concorrência muito grande que é o mundo inteiro. E temos de fazer melhor. E não é com workshops com diretores disso e daquilo, é com a população, com aqueles que trabalham realmente, que estão no terreno. E isso não está a ser feito. Se surge dinheiro para desenvolver alguma [ 139 ]


coisa a primeira coisa que se faz é um workshop, com lanches e beberetes pelo meio.

Uma das coisas que devia ser possível era responsabilizar as pessoas que têm assinado os acordos de pescas com a UE. A única coisa que lhes acontece é, quando deixam de ser queridos aqui, são mudados para outras áreas, mas continuam a fazer coisas erradas, porque não são responsabilizados.

Mas é preciso socializar as ideias, os planos… Tenha paciência. Se há dinheiro para gastar que se gaste diretamente com as pessoas que lidam com o problema no dia a dia, não é pôr meia dúzia de burocratas a falar.

DIÁSPORA: “ELA JÁ ACREDITOU MAIS EM CABO VERDE” E a diáspora cabo-verdiana? Ela já acreditou muito mais em Cabo Verde. Atualmente acho que há uma resistência em vir investir em Cabo Verde. Uma das razões poderá ser a crise internacional, o receio de perder tudo, a insegurança, etc. As notícias que saem de Cabo Verde e vão para a diáspora não são as melhores. Temos um problema gravíssimo, que é o tráfico de droga que não para de aumentar, a violência urbana, etc. Se eu vivesse num lugar relativamente seguro não ia deixar o que tenho para vir viver em Cabo Verde com a mulher, os filhos. Portanto, mesmo em relação à nossa diáspora, temos que disputar com o mundo as poupanças que esses patrícios amealharam a vida inteira. O poder político em Cabo Verde sabe lidar com a diáspora? Não. Veja que as visitas que o nosso poder político faz à diáspora são sempre relâmpago. Os embaixadores que nós temos, por mais que queiram, não conseguem saber verdadeiramente dos problemas da diáspora. Precisamos de meios e de gente capaz de lidar de perto com os problemas da nossa gente espalhada pelo mundo. Primeiro é preciso mostrar o que se passa realmente em Cabo Verde, sentir quais são os receios, os problemas da nossa gente lá fora. Infelizmente, no trato com a nossa gente, é tudo simbólico, os encontros são rápidos, não servem para nada. E essas visitas acontecem quando? Às vésperas das eleições, porque a diáspora tem força, só que ela não sabe que tem força. No dia em que descobrir, as coisas mudam, a balança pende para o outro lado.

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Nós cabo-verdianos esquecemonos facilmente de onde vimos. Marquei há tempos um encontro com a ministra Sara Lopes, fiquei desanimado e espero nunca mais ter que me encontrar com ela. O que é que aconteceu? A atitude dela. Enquanto eu marco um encontro com o ministro do Ambiente, vou ao gabinete dele, sentamo-nos à mesa, ele automaticamente pega no bloco de apontamentos e na caneta, coisa que eu também faço, ele tem assessores e secretários todos sentados à mesa, e normalmente está presente o diretor geral do Ambiente, ou alguém do Ambiente. Discutimos e resolvemos juntos os problemas que me levaram a procurá-lo. No caso da ministra Sara Lopes, há tempos precisava que ela me recebesse, fui informado pelo seu staff que ela estava no Parlamento e que eu seria lá atendido por ela. Por mim não havia problema, se ela entendeu que lá me podia receber, tudo bem. Chego, ela chega também, encosta-se no braço de uma cadeira, cruza as pernas como uma atriz de cinema, e diz-me: “Diga lá Melo o que o traz aqui”. Só nós dois. Levantei-me e fui me embora. Perguntou-me antes como é que a Biosfera I tem lidado com o Governo. Eu digo de ambas as partes é o melhor possível. O Governo, de uma forma geral, está consciente de que a Biosfera I está a fazer por Cabo Verde. Não temos cor política e nem a cor política de cada um é aqui chamada. Apesar de convidados, por este e por aquele, nunca subimos em nenhum palanque. E esperamos nunca vir a fazê-lo. Não é nossa vocação. Nós lutamos para que Cabo Verde tenha um melhor ambiente.

REFORMA DO ESTADO: “PESSOA CERTA NO LUGAR CERTO” Fala-se muito na reforma do Estado. Do seu ponto de vista, o nosso Estado precisa ser reformado? Nós precisamos de uma reforma urgente do Estado. E por reforma do Estado eu entendo que não é só mudar as pedras ou as pessoas. Para essa reforma, talvez seja necessário dar um manual às pessoas para estudarem em casa. Cada um precisa saber muito


bem qual é a sua função. Ninguém é deus. Uma vez num encontro, em São Vicente, eu disse à ministra Sara Lopes para ela se lembrar que é minha funcionária, como é funcionária de todos os cabo-verdianos, que ela não era deusa e que era altura de descer do pedestal. Os nossos governantes têm que interiorizar que quando são eleitos não se tornam deuses. Então diga-me: é o Estado ou os políticos que precisam ser reformados? Primeiro os políticos, mas o Estado também precisa ser reformado. Uma das coisas que devia ser possível era responsabilizar as pessoas que têm assinado os acordos de pescas com a UE. A única coisa que lhes acontece é, quando deixam de ser queridos aqui, são mudados para outras áreas, mas continuam a fazer coisas erradas, porque não são responsabilizados. Por mim esses indivíduos deviam todos ser responsabilizados. Esta é uma das medidas de reforma do Estado que deveria ser adotada? Sim. O Estado em Cabo Verde está devidamente dimensionado? Para um país como Cabo Verde, arquipélago, o Governo não devia estar numa única ilha. A centralização do poder apenas numa única cidade, hoje é Praia, no passado foi na Boa Vista, em São Nicolau e Brava, não importa, acaba por afetar as outras ilhas, que ficam a perder. Defendo que os ministérios deviam ser colocados onde têm mais vocação. Por exemplo, turismo – Boa Vista ou Sal; pesca – São Vicente; Agricultura – Santiago… Isso para que cada ministério, dentro da sua área, pudesse concentrar a sua atenção na ilha onde está vocacionado. Com isso não quero dizer que as outras ilhas sejam esquecidas. A centralização é má para Cabo Verde.

REGIONALIZAÇÃO, “SOU CONTRA” E a regionalização? Sou contra. Há, e sempre houve, a rivalidade entre o norte e o sul, entre Praia e Mindelo, isso já nos

trouxe barreiras e rivalidades desnecessárias. A regionalização – acredito –vai nos trazer novas barreiras. A descentralização do poder, não a regionalização, pode trazer muitos mais benefícios do que a regionalização. Então o problema de Cabo Verde é centralização e não regionalização? Sim, o nosso problema é a centralização do poder. Se houvesse uma descentralização efetiva, com distribuição de ministérios, em função da vocação de cada ilha, Cabo Verde estaria mais desenvolvido. E logicamente também com pessoas certas nos lugares certos.

CRIOULO: “REALISTAS” A oficialização do crioulo, o que pensa disso? Sou contra também. Hoje temos gente, com curso superior e que não sabe escrever uma frase em português, mistura o português e o crioulo, uma confusão. Nós, neste momento, sem a oficialização do crioulo, já não temos um idioma, imagine no dia em que o crioulo for oficializado. No mínimo, o problema vai agravar-se ainda mais. Estamos em concorrência com o mundo inteiro, o que é que haveremos de ganhar nesse mundo de concorrência com o crioulo. É útil? Quem fala o crioulo, tirando o cabo-verdiano? Eu tenho orgulho em ter o crioulo como língua, mas preciso dele para enfrentar o mundo? Temos, sim, de aprender e dominar o inglês ou o francês para nos comunicarmos com o mundo. Se queremos ser um país que presta serviços não é com o crioulo que vamos conseguir isso. O português também não, é curto. Temos de ser realistas.

FIGURAS Nestes 40 anos quem são as figuras que mais se destacam ou merecem destaque? Quarenta anos é muito tempo, há muita gente para se destacar. No meu universo posso até citar nomes de gente que você nem sequer conhece. A nível dos conhecidos, tivemos o presidente Aristides Pereira, foi sempre um bom político, calmo, ponderado,

nunca foi pelo ímpeto do momento. Ele é uma pessoa que temos de enaltecer sempre. Já o Pedro Pires, tenham paciência, ele é em tudo o oposto de Aristides Pereira, demagogo, autoritário, foi tudo. Por mim, ele podia ser apagado da História. Temos também o Carlos Veiga, que foi um lutador, mas não subscrevo a conversa que ele trouxe a democracia para Cabo Verde. Longe disso. Ele pegou a prancha de surf dele e foi na onda. Já havia a pressão internacional para a abertura política. A nível governamental, tirando um ou outro ministro, os governos dele foram muito fracos. O José Maria Neves há que enaltecêlo. No seu primeiro mandato pegou um Cabo Verde conturbado, o MpD teve dificuldade em digerir a derrota, e sempre que pôde criou dificuldades que o José Maria Neves, com muita diplomacia e paciência, lá conseguiu contornar. Contudo, a nível dos seus governos, houve também muitas falhas. Privilegiou-se mais a cor política do que a capacidade de cada um, por exemplo. Mesmo assim, há que enaltecer o trabalho dele. Nestes três mandatos Cabo Verde teve um desenvolvimento muito grande, apesar da crise internacional. Ainda entre os políticos que muito deram a esta terra, ocorre-me o Onésimo Silveira, a presidência dele na Câmara Municipal de São Vicente foi excelente. Da mesma forma que o Jacinto Santos na cidade da Praia. Temos muita gente que já fez muito por Cabo Verde, continua a lutar por fazer muito mais, ajudando-nos a ultrapassar barreiras inimagináveis. Eu, como não tenho vocação para a política, tenho respeito por todos aqueles que, com sacrifício e empenho, fizeram muito por esta terra. Mas também temos políticos que são como prostitutas, vão com quem paga melhor. E esse tipo de gente existe em toda a parte de Cabo Verde, não tenhamos ilusões. Essa gente devia mudar de profissão, tudo menos política, que, quando bem feita, é coisa séria, eu diria mesmo sagrada. Por isso, os próprios partidos políticos deviam ter mais cuidado, limitar o acesso a essas prostitutas no seu seio, porque eles são uma vergonha para Cabo Verde. [Mindelo, 18-04-14] [ 141 ]


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António Pedro Silva

“Temos uma sociedade de gente sem caráter” António Pedro Silva, 60 anos, natural de São Vicente, presidente da ADECO (Associação de Defesa do Consumidor), defende, nesta entrevista, que tudo é consumo e que poderíamos estar pior em Cabo Verde caso não houvesse a ADECO. “A defesa do consumidor é mais importante do que a independência e a democracia”, assegura, “porque tudo é consumo”.

Em primeiro lugar, como estamos de defesa de consumidor em Cabo Verde? Muito frágeis e as razões são várias. A primeira é o facto de não haver um interesse genuíno do Estado para uma efetiva defesa do consumidor por parte da sociedade civil. As instituições que lidam com este problema simplesmente não funcionam. Há também um fraquíssimo envolvimento dos cidadãos em se associarem e fazerem valer os seus direitos. Entre nós prevalece ainda o coitadismo e muita bazofaria, de cada um ficar fora com ideias brilhantes e não se envolver. Diria, em suma, que somos vítimas também do espertismo do cabo-verdiano. Isso que está a dizer acaba por definir o perfil do cabo-verdiano, não? A questão do consumo é muito mais do que uma questão de cidadania.

Toda a gente – quer o cidadão normal, quer o sistema partidário e político – utiliza a cidadania para manipular e se favorecer em termos de consumo. Não entendo. Eu explico. A questão do consumo devia ser, na prática, uma questão de cidadania. Há pessoas dispostas a venderem o seu voto por bens materiais – cimento, ferro, etc., – tal como costuma aparecer nos jornais. E mais: os quadros, os altos dirigentes, estão disponíveis para vender a sua posição em troco de um lugar nos conselhos de administração, no Governo, nas listas para o Parlamento etc. Veja a questão não na perspetiva do comprador do voto, mas do vendedor do voto. Quem faz a venda do voto? – São as máquinas partidárias. E não é uma coisa ocasional, é algo pensado, planificado, organizado pelas máquinas partidárias.

Seguindo esse raciocínio, está toda a gente à venda e à compra neste país. É isso realmente? Eu não digo toda a gente, eu nunca generalizo. Mas boa parte move-se por esta lógica. Temos hoje um sistema corrupto, com uma fachada bonita. Todos os partidos – principalmente os dois grandes, o PAICV e o MpD – já foram denunciados de estarem envolvidos em compra de votos. A máquina não existe no abstrato, por trás dela estão pessoas. E isto é perturbante. Por causa desse sistema é que considero que, neste momento, é difícil que as pessoas se posicionem em causas que eu considero justas. A defesa do consumidor é uma delas, por ser essencial, por isso todas as pessoas, todas as instituições, deveriam estar nesta luta. Há tanto abuso de poder, há tanta deficiência, que até para o equilíbrio deste país era fundamental que se apoiasse a [ 143 ]


causa da defesa do consumidor. No entanto, o que se verifica é um sufoco da ADECO. Por parte de quem? Do Estado. Há tempo e dinheiro para discutir tudo e mais alguma coisa, megaprojetos disso e daquilo, com especialistas vindos de toda a parte do mundo, e não há nada em prol da defesa do consumidor. Há coisas simples, como a imoralidade com que várias câmaras hoje em dia calculam o preço da água, coisa que eu já denunciei várias vezes. Temos em Cabo Verde um sistema que faz o pobre pagar mais caro pela água. Como é possível que Cabo Verde tenha a eletricidade mais cara do mundo, apesar de toda a conversa dos investimentos feitos no setor não aparece ninguém para desmontar isso? Há uma elite que se apodera do poder para retirar benefícios económicos. A dignidade para a elite cabo-verdiana é o quê? Ter um carrão, ter grandes vencimentos…? É isso dignidade? Que raio de gente temos aqui? E depois, quando se lida com as instituições do Estado, vê-se que nada funciona. Há uma incapacidade de [ 144 ]

tomada de decisão, de chamar as coisas pelo nome, propriamente. A questão da cidadania, de que tanto se fala, é algo subordinado também ao consumo, portanto, aos direitos humanos. Mas tudo não passa de mais um discurso para fora. Há muita publicidade enganosa nisto tudo. No seu dia a dia, quais são os principais problemas com que a ADECO se confronta? A nossa maior dificuldade é o sufoco do Estado. Nalguns casos sou levado a pensar que há uma estratégia por detrás, não assumida, porque não faz sentido o incumprimento do Estado das suas obrigações em relação a nós. Uma segunda dificuldade é o próprio cidadão que não contribui. Por causa disso, às vezes, somos levados a pensar que a defesa do consumidor é uma atividade quase fútil. Veja a importância que as autoridades atribuem a um mero jogo de futebol e a importância que atribuem à defesa do consumidor e à defesa da sociedade civil. Diante do descaso que enfrentamos, as pessoas estão a demonstrar que não são democratas nem cidadãs.

O que é que o António Pedro chama de sufocar? Sufocar é cortar todos os meios e não permitir ou dificultar o acesso àquilo que a lei nos confere. Por exemplo, por lei, o Estado é obrigado a contribuir para a criação e o funcionamento das associações de defesa dos consumidores, através de subsídios. Isso quer através do poder central, quer das câmaras municipais. A ADECO foi criada em 1998 e só em 2008 conseguiu a primeira subvenção do Estado. A nível municipal, apenas a Câmara de São Vicente, durante dois anos, é que contribuiu. Na gestão de quem? De Onésimo Silveira, logo a seguir, na gestão de Isaura Gomes, que era membro da ADECO, ela solicitou, a uma dada altura, a suspensão da contribuição. Um absurdo. Temos até hoje um subsídio de mil contos, que mal dá para pagar um técnico, mas essa contrapartida do Estado pelo serviço público que estamos a prestar, no ano passado, chegou à ADECO em Dezembro. Isso depois de termos enviado nove cartas e coisas do género. Ou seja, a própria


energia e a paciência dos responsáveis da ADECO ficam condicionadas por isso. A administração não responde. Mas repare, a administração não responde a muita coisa em Cabo Verde. Sim, mas responde a outras. Quando é do interesse de gente ligada ao sistema responde e sem lei. A ADECO tem direito a mil contos por ano, que [em Abril, data desta entrevista] ainda não chegou, isso representa um esforço enorme. Contando com esse dinheiro, assumimos compromissos vários que depois não são cumpridos. Das câmaras municipais, a única que neste momento contribui é a do Sal. A Câmara de São Vicente alega dificuldades, e desde o segundo semestre de 2012, depois que retomou a transferência, que não cumpre novamente com a lei. A ADECO lida com o Estado e com os consumidores. O incumprimento destes decorre de uma inconsciência cívica ou de algo deliberado? Eu não tenho a resposta precisa. Acredito que há gente que não tem conhecimento da existência da ADECO e há outros que por pura conveniência preferem não contribuir. O que acontece é que a ADECO, em qualquer sistema político, sempre vai ser tida, estúpida e ridiculamente, como uma força da oposição. Porque vamos contrariar, ainda por cima quando temos um Estado com a pretensão de ter empresas e serviços; e, não havendo cultura de eficiência, é um caos. Veja o caso da Electra. Qualquer crítica ao seu desempenho é automaticamente vista como uma crítica ao Estado, ou a quem está no Governo. Ainda por cima, diante das nossas críticas, há toda uma máquina partidária a defender estupidamente o Estado. O que se tem verificado no caso da Electra é que as críticas aos preços nem sequer surgem dos partidos políticos, quem mais coloca o problema – com base em dados – é a ADECO. Com os TACV é a mesma coisa. Telecomunicações… Telecomunicações, idem. Aqui, havia sempre a desculpa “os

portugueses”. Nós dissemos que não, a responsabilidade pelo que se passa na Cabo Verde Telecom é do Estado caboverdiano que, através do INPS e outras vias, não só detém mais de 50% do capital social, como, por uma questão de soberania, pode intervir. O que acontece é que há outros interesses, escusos por aí, que fazem com que a situação seja a que temos, em termos de custos. E quando contestamos isso também estamos a mexer nos interesses de todos, de privados que ganham com a situação, e do próprio Estado que também ganha com isso, lesando o cidadão, o consumidor. A mesma coisa se passou com a grande fonte de receitas que eram os combustíveis. Quem desmontou o argumentário do Estado em relação a este assunto foi a ADECO! Deixa-me ver se entendi bem. O Estado não colabora com a ADECO porque ele próprio é um mau produtor de serviços? Eu não diria pelo facto de ser mau produtor em si. E isso não é só a nível do poder central, como também do poder local. A coisa tanto acontece a nível desses serviços que citei, como da saúde, da educação etc. A nível dos combustíveis foi graças à ação da ADECO que ficou provado que o Estado andava a sobrecarregar-nos com impostos. Com isso, atacámos um ponto que era uma grande fonte de receitas do Estado. Nas telecomunicações é a mesma coisa. Através do INPS, um instrumento do Estado, o Governo influencia a política de preços, através de quem colocou lá segundo um critério partidário. Quem decide sobre este país é meia dúzia de pessoas, se tanto. O partido que está no poder é que manda. E mais: o cabo-verdiano continua mentalmente colonizado. O cabo-verdiano ainda não se libertou? (gargalhada) Continua submisso. Por isso que antes falei em espertismo. Temos muitos doutores, quadros, que não abrem a boca, é uma submissão por conveniência. Por quê? Porque querem continuar nos cargos que ocupam. Lembro-me do João

Vário [1937-2007], que dizia que os cabo-verdianos se transformaram em “passadores de pau”, “merdinhas enfeitadas”, “burrinho de bispo”, etc. Não é só por sobrevivência. A degeneração social não é a nível do povo, não é com os caçubodys das classes mais desfavorecidas, mas com os megacaçubodys das instituições, dos partidos políticos. É aí que está o perigo para esta sociedade. Temos uma sociedade muito corrupta. E tudo está interligado. Temos hoje pouca gente com dignidade. Por isso é que se procura dignidade em palacetes, mansões, jipões, mas não no assumir das responsabilidades como cidadãos, como gente solidária, que procura fazer alguma coisa por esta terra e pelos seus habitantes. A maior parte das ONG’s são submissas e o sistema – aqueles que estão no poder – usam isso em seu proveito. Temos um país onde as pessoas se mostram democráticas até não terem poder, a partir do momento que passam a ter poder, tornam-se em ditadores. Aliás, temos esta história em Cabo Verde desde 1975. A ADECO é útil neste momento? Hoje temos uma carta de direitos do consumidor – é uma iniciativa da ADECO. Só que não funciona. O preço mínimo e máximo de combustíveis é também graças à ADECO. Que não funciona também. Essa coisa do preço mínimo e máximo nos combustíveis é um embuste, nunca vi as duas petrolíferas a concorrerem entre si. Mas foi uma luta da ADECO. Isso durante muito tempo. O mesmo aconteceu com a contabilidade numérica das telecomunicações. O Estado na altura foi contra. Eu, quando pergunto se a ADECO é útil quero saber se as entidades públicas reconhecem em vocês um parceiro. Na conversa, sim! Somos convidados a não sei quantos conselhos consultivos, fóruns, workshops etc. O Estado quer a ADECO para enfeitar o ramalhete? Eles é que sabem o que estão a pensar quando nos convidam para essas [ 145 ]


coisas. Por exemplo, já metemos um processo contra as câmaras municipais por estarem a cobrar o papel de fatura e várias outras ações. Isto porque analisando a aplicação da lei de defesa do consumidor de 1998 vê-se que nós não estamos num Estado de direito. Ninguém cumpre, nem o Governo nem as câmaras. É simplesmente uma lástima. Coisas simples. Se não funcionássemos na base do espertismo, mas com inteligência institucional, todos sairíamos a ganhar com a aplicação da lei. Há vários problemas sociais que poderiam ser evitados por uma efetiva defesa do consumidor. Veja a comunicação social. Isto até parece anedótico. A ADECO tem direito a tempo de antena, quer na rádio, quer na televisão do Estado. Em 2005 ou 2006, com a TCV fazíamos um programa de cinco minutos, que depois era repetido. Um dia chegou-nos a informação de que já não poderíamos filmar por falta de câmara. Ainda insistimos, mas lá nos disseram que não dava, eram só duas câmaras e uma tinha avariado. Criaram novos estúdios, mas a câmara aqui continuava avariada. Diante disso, adquirimos os nossos equipamentos. Passámos a precisar apenas do espaço para emitir o programa. Solicitámos e ninguém nos respondeu – não responder é outra forma que as instituições têm para nos sabotar. Cheguei a colocar o problema na Praia, lá me responderam “não, é o pessoal de São Vicente que não quer trabalhar”, eu vinha e punha o problema, aqui me respondiam, “ah, não, a dificuldade está na Praia!” Ou seja, passavam a vida a “pingue-ponguear” comigo. Chegámos ao ponto de levar o assunto ao Supremo Tribunal de Justiça. Neste momento, podemos produzir os nossos programas, mas a responsabilidade de educar o consumidor é do Estado, não é da ADECO. Hoje estamos limitados a 10 minutos de programa, sem repetição. O custo maior de um programa na televisão é a produção e não emissão. Basta ver que, para preencher a programação, a TCV passa o tempo a emitir vídeos de música a torto e a direito, ainda por cima de baixa qualidade, num país com tanta necessidade de informação. [ 146 ]

A nível das rádios, hoje temos mais disponibilidade de tempo na Rádio Nova, na Rádio Comercial, nalgumas rádios locais, privadas, que chegam até aos 40 minutos, ao passo que na Rádio de Cabo Verde, que é pública, só temos 10 minutos, sem repetição. Nós damos o programa pronto! No entanto, na Constituição da República, apenas duas organizações da sociedade civil têm direito a subsídios do Estado: a defesa do consumidor e os sindicatos. Eu tenho por mim que se limitaram a copiar esse direito da constituição onde se inspiraram, porque se soubessem, de facto, o significado disso não andariam a dificultar-nos a vida. Se sabem, e fazem o que fazem, então, são verdadeiros traquinos. A ADECO tem quantos sócios? Sócios pagantes de quotas são 1200 ou 1300. Inscritos são cerca de dois mil. Só a gestão bancária do pagamento de quotas é uma trabalheira enorme. Quem é o vosso principal financiador? A União Europeia. Neste momento temos um projeto financiado em 90%, estamos com problemas em arranjar 10% porque o Estado não cumpre as suas obrigações conosco. A nível internacional temos conseguido pequenos projetos e em Cabo Verde nunca conseguimos um sequer. É interessante, não acha? Quantos efetivos tem a ADECO? Sete ou oito, todos em part time. A ADECO é nacional ou local? É nacional desde 2004. Pode haver três níveis de defesa de consumidor – local, regional e nacional – e cada um tem as suas competências. Nós nos tornámos nacionais porque na altura estávamos em vias de extinção, quando a Câmara Municipal de São Vicente nos retirou o seu apoio. Eu, Rolando Martins e Vanda Évora entendemos que era importante manter a ADECO, nem que fosse por seis meses pelo menos. E, desde essa altura, ninguém tem concorrido. É do nosso interesse que haja outras organizações de defesa do consumidor, como é também do interesse geral que haja outras pessoas que queiram assumir a liderança da ADECO.

Mas a ADECO torna-se nacional por quê? Porque rapidamente constatámos que os problemas de consumo eram muito sérios em São Vicente, mas que, mesmo assim, era muito melhor do que nas restantes ilhas. E mais, que os verdadeiros problemas de consumo eram de âmbito nacional. Assim, sendo a ADECO nacional, ela poderia falar em nome de todos, abrindo as portas a todos, inclusive da diáspora. Houve altura em que tínhamos mais sócios na diáspora do que em várias ilhas. O que acontece é que as pessoas que vivem no estrangeiro têm uma consciência maior do que quem está cá. Aqui quando abordamos, por exemplo, um quadro para aderir à ADECO a primeira coisa que nos pergunta é: “Qual é a vantagem que tenho em ser membro da ADECO?” Ninguém consciente pode pensar na vantagem que ele pessoalmente vai ter de imediato em aderir a uma associação de defesa de consumidores. Há quanto tempo você está à frente da ADECO? Há quase 10 anos. Está cansado? Eu nunca concorri para o cargo. Calhou estar à frente da comissão que deveria aguentar a coisa por seis meses. Só que quando pego numa coisa é para levar até ao fim. Vamos continuar a tê-lo à frente da ADECO? Isso não sei, mas vou, sim, continuar envolvido nesta causa, que é a causa mais importante do país. A defesa do consumidor é mais importante do que a democracia, é mais importante do que a independência, etc. As pessoas trabalham para consumir, você estuda para progredir, logo, para consumir melhor. No entanto, você já viu a ADECO a participar como membro do Conselho de Concertação Social? Não. Mas os patrões estão fortemente representados na Concertação Social. Aliás, os dois patrões – o Estado e o privado – estão lá. Exato. E há gente do Estado que não precisava de lá estar, está lá só para encher o chouriço. Veja, a ARE [Agência de Regulação Económica]


tem um conselho consultivo, que não se reúne desde 2006 ou 2007. E isso não acontece desde que desmontei a política de preços em relação aos combustíveis.

Há tempo e dinheiro para discutir tudo e mais alguma coisa, megaprojetos disso e daquilo, com especialistas vindos de toda a parte do mundo, e não há nada em prol da defesa do consumidor.

Estaríamos pior em Cabo Verde sem a ADECO? Muito piores! É claro que a própria ADECO pode fazer mil vezes mais o que está a fazer. Mas é claro também que ela precisa de recursos para isso. Os órgãos do Estado que trabalham na área do consumidor – a começar pela IGAE [Inspeção Geral das Atividades Económicas], que faz alguma fiscalização – são impulsionados pela existência e pressão da ADECO. As grandes denúncias dos produtos fora de prazo quando é que começaram? E mais, nós não atacamos as pequenas mercearias. Nós fomos às grandes empresas. Graças à nossa dinâmica, em vários aspetos, estamos mais à frente que os órgãos do Estado. Por exemplo, o debate da proteção financeira surgiu com a ADECO. Só não fazemos mais porque, como já mostrei antes, o Estado não nos vê como parceiros. Em vez de nos apoiar, passa o tempo a criar-nos dificuldades. A ARE é que controla a água, a energia e os combustíveis, os setores mais sérios deste país. Com o Conselho Consultivo, sendo a ADECO membro desse órgão, ao participarmos nas reuniões de decisão, se conseguissem nos convencer nós depois não poderíamos vir para a rua reclamar da decisão tomada. A ADECO seria, no fundo, corresponsável também. Exato. Uma entidade que atua em setores fulcrais, o seu Conselho Consultivo não se reúne há vários anos. Mas não é só a ARE. A Agência de Aviação Civil nunca reuniu o seu Conselho Consultivo. Se formos ver quais são as agências reguladoras que funcionam é apenas uma ou outra. E mais, por vezes, o Estado solicita o nosso parecer sobre um conjunto de questões, normalmente questões complexas, que exigem algum nível de especialização e tempo, mas como é que podemos fazer isso se o Estado não colabora conosco naquilo que devia por imposição da lei?

Por isso é que eu não percebo que haja falta de noção de que a ADECO é uma parceira do Estado. Não é falta de noção! Há gente no Estado a ocupar funções que não devia.

QUE ESTADO? Com isso pergunto-lhe: que Estado para Cabo Verde? Essencialmente era ter gente com alguma integridade nos cargos públicos. Falta cuidado na escolha dos titulares dos cargos públicos? Você falou em escolha. Eu pergunto: quem é que faz as escolhas? É ao mais alto nível que este país precisa de Homens com letra maiúscula. Mas também Mulher com letra maiúscula. Isto é, por melhor exército que tenha, se tiver um péssimo general, corrupto e medíocre, dificilmente vai conseguir grandes vitórias. O problema é mais sério, é com os dirigentes ao mais alto nível. Eles precisam dessa dimensão humana e efetiva, não serem passadores de pau, merdinhas enfeitadas, como diria o João Vário. Mas isso não acontece se boa parte da população também não tiver postura de dignidade, de não submissão, numa palavra, de ser homem e mulher também. E ser melhor consumidor também. As ofertas políticas são produtos, que podem ou não ter qualidade. (risos) Sim, é verdade! Os conteúdos das campanhas, se formos ver, é para resolver os problemas de consumo. Mais água, mais habitação, mais emprego, etc. Os altos dirigentes sabem disso, no fundo. Basta ver que a maioria daqueles que ocuparam cargos políticos, desde 1974, estão bem em termos de bens materiais. E agora é preciso ver qual é a competência demonstrada por esses indivíduos em termos de entrega à causa pública e não só. Qual é o desempenho deles nas respetivas áreas profissionais? Costumam até ser bons políticos, atuando em setores em que nunca tiveram qualquer formação, e muito maus [ 147 ]


nas áreas onde supostamente foram treinados. Isto é uma situação que deve dizer alguma coisa. Mas, como eu disse, eu não generalizo. Com isso não quero dizer que não houve ou não haja gente competente na área em que se formou e que na política não deixou de ter um bom desempenho. A nível da reforma pública, além da justiça, qual é outro setor que o preocupa? A educação é também um setor fulcral, que precisa ser repensado. Há que aperfeiçoar ou trabalhar determinados aspetos. O que há de bom na educação para si? Em primeiro lugar, há um nível elevado de escolaridade, com isso há a possibilidade de formar um número considerável de quadros nos mais diversos níveis, há escolas por todo o país, as pessoas estão a ter acesso à técnica científica, estão a ter instrumentos que lhes permitem aceder a mais conhecimentos, há que reconhecer isso. Mas há muitos aspetos a melhorar, quer em termos de conteúdo, quer em termos de formação integral do homem, para os valores e não com mitos que se construíram neste país. Tirando a educação, há ainda setores fundamentais como a saúde, precisa de enorme atenção. As infraestruturas da saúde estão a aumentar, com isso estamos a adquirir mais competência técnica, mais especialização, mas o serviço precisa ser muito mais humanizado. Os serviços precisam voltar-se mais para o utente. Alguns custos desses serviços acabam por ser proibitivos. Mais uma vez, há que reconhecer que há evolução. Há setores que ficam por aí a falar da independência, esquecendo-se que tudo evolui. Uma coisa eu digo, nós podíamos estar muito mais avançados, tínhamos as condições para isso. Estamos muito atrasados em relação ao que devíamos ou podíamos ter. Onde é que falhámos? Falhámos na declaração precipitada da independência. Tivemos pessoas não preparadas que assumiram este país, sem pensar nos interesses reais da população, assumindo de [ 148 ]

rompante um país que não estava preparado efetivamente para ser independente. A independência devia ter sido algo mais bem pensado, mais bem estruturado, daí uma parte de erros que são apresentados como sendo grandes vitórias. Eu sei que o que estou a dizer contraria tudo o que tem estado a ouvir… Claramente. Eu era jovem nessa altura, muitos que hoje estão no top do poder eram meus colegas no liceu, eu sabia o que se passava antes e depois do 25 de Abril, que é a data marcante para este país. Nem digo o 25 de Abril, porque esse dia passou despercebido aqui, mas o 26, o 27, o 28 de Abril… Entendo que houve uma precipitação com a declaração da independência. Se o ato fosse uma coisa pensada, não nas pessoas que iam deter o poder mas no interesse da população, congregando as competências poucas que nós tínhamos, mas tínhamos, a nível interno e fora, podíamos ter hoje um país muito melhor do que aquele que temos. Em meu favor há o livro que você e o Aristides Pereira fizeram [Aristides Pereira, Minha vida, nossa história]. Algumas coisas que lá estão vieram consolidar o que eu pensava. Qualquer pessoa consciente, que não tenha sido arrebanhada por aquela máquina partidária pensa como eu penso. O que me chateia é o discurso hipócrita sobre os grandes ganhos da independência. Então não há ganhos? Ganhos, há. É verdade que conseguimos avanços consideráveis, mas em 1974 tínhamos os dados que temos, ruas estruturadas, os quadros que tínhamos. Houve sempre evolução, nunca estivemos parados. A evolução pode ser rápida ou lenta, pode ser com muita qualidade ou sem qualidade. Que houve evolução, houve. Mas que não venham apresentar isso como coisa de excelência, que não é. Temos obrigação de estar muito melhor. Confunde-se a independência com a queda do fascismo e fim do colonialismo, duas coisas totalmente diferentes.

O Cabo Verde da sua adolescência ou juventude nada tem ver com o de hoje, suponho. Há aspetos em que houve grande evolução e outros em que regredimos. Regredimos onde? No caráter do homem, por exemplo. Esta é a maior derrota que tivemos neste país. E começou com a chamada independência, pela tomada do poder do pequeno grupo que esmagou a sociedade, em que quem não era do sistema, o meu caso, não tinha lugar. Eu, com a independência, do ponto de vista político, senti-me pior do que no período colonial. No período colonial havia meia dúzia de bufos, mas com a independência metade desta população transformou-se em bufo. Está a exagerar. OK, com a criação de milícias, JAAC, todos passaram a ser denunciantes, praticamente. Naquele tempo, com a mobilização, havia os discursos contra o imperialismo, fazer vigilância nas praias, é só ver o que acontece agora. Mas falávamos do caráter das pessoas, a cada nova situação há gente que se adapta, sem problemas.

SER CABO-VERDIANO Diga-me: para si o que é ser caboverdiano? Mais importante que ser caboverdiano é ser homem. Eu tenho mais afinidade com um sueco, um grego, um russo e um japonês, honesto, com quem compartilho valores de solidariedade, do que com os cabo-verdianos aldrabões a vários níveis. O que tem valor é o homem. A nacionalidade é uma mera formalidade. Mas você não está desgarrado no mundo. Para mim, é a pessoa que tem valor. Isso de pátria, mátria, territórios, nacionalidades são questões que convêm a determinados grupos. Então para si, não há uma identidade cabo-verdiana? Há particularidades. Mas os valores universais eu compartilho-os com pessoas de todos os lugares.


Os conteúdos das campanhas, se formos ver, é para resolver os problemas de consumo. Mais água, mais habitação, mais emprego, etc. Os altos dirigentes sabem disso, no fundo. Basta ver que a maioria daqueles que ocuparam cargos políticos, desde 1974, estão bem em termos de bens materiais.

Não está então obcecado com esta questão de ser cabo-verdiano. Não. A pátria para mim é algo hipócrita. É necessária, não nego, em determinados contextos, mas não passa de uma fabricação humana para defender certos interesses de grupo. Os valores que ainda hoje seguimos, muitas vezes, vêm de outros países ou de pessoas que os tiveram há centenas ou milhares de anos. Eu sou da pátria do Sócrates ou do Platão. Como vê a questão da diáspora no nosso desenvolvimento? Há uns anos, eu entendia que podíamos fazer algo melhor e mais aprofundado para atrair os caboverdianos que vivem na diáspora. Antes de mais, devíamos preparar o cabo-verdiano para a emigração. Sabemos que vamos sempre ter a

emigração, e é bom que haja, porque o enriquecimento não é apenas em bens materiais. Não é só as remessas ou ajudas que cada um envia. O enriquecimento poderia ser também cultural, nada dessa cultura que tem a ver com o folclorismo, mas a cultura da pontualidade, da seriedade, etc. Precisamos e é conveniente que formemos a nossa gente com vista ao seu melhor desempenho humano e profissional, sabendo que muitos vão emigrar. Essa preparação deve ir desde o ensino de línguas, economia… Numa palavra, preparar o caboverdiano para o mundo. Para o mundo e para emigrar. O meu país é o mundo. Eu mesmo tive a oportunidade de ficar nos EUA, país onde me formei, mas preferi vir. Aqui

me sinto bem, mas longe de mim cair no disparate de dizer que Cabo Verde é o melhor país do mundo! Cabo Verde é um inferno para uma boa parte da sua população. E precisamos assumir isso para resolver os problemas. As pessoas que vivem nas zonas degradadas do Mindelo, da Praia, da Barraca (Boa Vista), Sal, etc., vivem em verdadeiros infernos. Sem poder de compra, em más condições de habitabilidade, sem respeito, sacrificadas, sobrevivem apenas. Cabo Verde é o paraíso para alguns poucos. Mas gostamos de mistificar, contar mentiras à volta disto. Precisamos assumir a realidade porque ela é uma vergonha. E a morabeza? Outra mistificação, outro ato de hipocrisia. É claro que entre nós, entre os amigos, há morabeza. [ 149 ]


Mas se pensarmos em termos sociais, na forma como um grupo se apodera dos bens dos outros, e que a outra parte é lançada na miséria e na pobreza, é claro que não há morabeza. Há morabeza entre a elite e os mais pobres? Alguns, sobretudo na Praia, ostentam palacetes, a uns metros de distância temos pessoas sem um mínimo de condições, é depois essa mesma elite – económica, político-partidária – que apresenta o direito das pessoas como um favor que estão a fazer, há morabeza? Isto quando sabemos que essas pessoas, da elite, elas próprias, viveram nessas condições há 20 ou 15 anos atrás. Se você não respeita o outro, como é que pode depois vir falar-me em identidade, caboverdianidade, essas coisas? Isto, infelizmente, é um círculo vicioso porque, muitas vezes, quando um antigo pobre ascende ao poder comporta-se da mesma forma ou pior.

CEDEAO: “HÁ QUE TER CAUTELA” E o nosso trato com os estrangeiros, nomeadamente com os imigrantes africanos? Não tenho grande experiência neste assunto. Aqui, em São Vicente, eles são referidos por manjacos, mas não vejo nada de pejorativo nisso, é apenas uma forma de falar que decorre da falta de cultura da nossa gente. Também não vejo discriminação deles só pelo facto de serem africanos. Mas não há dúvida também que há diferenças na forma de agir deles e a nossa – por exemplo, essa pressão para comprarmos o que trazem. Isso vai contra a maneira de ser do cabo-verdiano. Este, se quer comprar compra, se não quer, não está para conversas. E como vê a nossa integração subregional? Há que se ter alguma cautela. Temos um país extremamente frágil e determinados tratados podem não ter sustentabilidade. A minha preocupação prende-se sobretudo com o fluxo migratório. Temos uma população reduzida, não podemos comparar a nossa população com a da [ 150 ]

Nigéria, por exemplo. Um influxo de 20 mil ou 30 mil nigerianos, o impacto aqui seria tremendo. Cabo Verde é um anão, não pode estar a copiar ou a assinar de cruz tratados com gigantes. Isto se quisermos manter a nossa estabilidade. Tirando isso, temos sabido tirar pouco proveito da CEDEAO.

REGIONALIZAÇÃO Há um debate em curso em Cabo Verde sobre a regionalização. Qual é a sua opinião? Eu apoio essa causa e não é de hoje. Eu vou mais longe: deve-se acabar com a noção da capitalidade. Isso passa por que domínios? Passa por distribuir os órgãos do Estado por diversas ilhas. Por exemplo, Governo, Parlamento, Justiça em ilhas diferentes. Logo, sou até mais radical que os defensores da regionalização. O mesmo se passa em termos de ministérios, direções gerais, etc. Isto é, precisamos pôr o aparelho do Estado a servir as populações. Isto seria extremamente benéfico para este país. Temos de ter a Administração à semelhança do país que temos, um arquipélago – com todas as ilhas a trabalharem em rede. A centralização e o centralismo são emanações ou instrumentos de corrupção, de ditadura, é um processo antidemocrático. E nisto temos também de alterar o sistema de votação em Cabo Verde. Há que se acabar com as listas dos partidos. Isto é um mecanismo maquiavélico. Com isso teríamos de alterar o sistema político. A vontade nacional realiza-se através dos partidos políticos, não? Vamos acabar com esse discurso pomposo sem substância, que é para enganar as pessoas! Repare, o sistema representativo, que nós temos, realiza-se através dos partidos políticos… Eu não estou a dizer que os partidos políticos não devam existir. Com o que diz, vamos ter que inventar um sistema em que não

Temos hoje pouca gente com dignidade. Por isso é que se procura dignidade em palacetes, mansões, jipões, mas não no assumir das responsabilidades como cidadãos, como gente solidária, que procura fazer alguma coisa por esta terra e pelos seus habitantes.


se governará através dos partidos políticos. Temos que ter partidos, sem dúvida, porque detêm alguma especialização, só que não devemos entregar o monopólio do Estado aos partidos políticos. O que defendo é que temos de criar um sistema em que os cidadãos escolhem quem querem. Não é a eleição da lista, mas sim dos elementos da lista. O cidadão pode escolher. No fundo seria a mesma coisa. Não! Neste momento, os partidos escolhem quem quiserem e põem na lista, qualquer um é eleito. É mentira ou verdade? A pessoa é eleita se os eleitores quiserem. Aliás, já houve situações em que quem faz as listas quis ver até aonde vai a paciência do caboverdiano e deu com os burros n’ água. Isso são exceções, infelizmente elegese o partido, o MpD ou o PAICV, não a pessoa. Temos de passar a eleger as pessoas em vez dos partidos. E a formação do governo seria como? A eleição de pessoas existe em vários países. Isto não é novidade. Eu conheço o sistema a que você se está a referir – caso do Brasil – , mas nem por isso esse sistema é exemplar. O fisiologismo no Brasil é a mãe da corrupção política. Diga o que você disser as máquinas partidárias são maquiavélicas. A partir do momento em que o chefe do partido põe na lista quem quiser, esse tipo fica submisso a esse chefe, passa a ser um servo desse chefe. António Pedro, fica servo quem nasceu para ser servo. Como você quiser, mas esse indivíduo entrou na lista graças à autorização, ao convite, chame o que quiser, desse chefe ou do partido. Ainda está para nascer um sistema perfeito. Com certeza. Mas pode-se melhorar consideravelmente o que temos. O sentido não é ser perfeito, nem tenho

essa pretensão. Aliás, eu ridicularizo quando falam em excelência neste país. Há países quem têm o sistema misto. Os partidos metem a sua camarilha e o cidadão mete um ou outro indivíduo que esteja a boiar por conta própria. Sim, é verdade. Agora independentemente de tudo, eu até acho que a situação é mais grave a nível municipal. O sistema é altamente corrosivo. Muitas vezes recorrem a pessoas independentes, e eu não sei qual a conversa que os partidos têm com elas, mas às tantas o indivíduo apenas está lá para enfeitar a lista. No seu caso, o que o levou a abraçar aquela aventura presidida pelo Gualberto do Rosário nas autárquicas, aqui, de 2012? Olhe, se quer saber, isso é uma anedota! (gargalhada) Eu achava (e acho) que desde 1974 as câmaras municipais em São Vicente têm sido um atraso de vida. Isto embora haja momentos de exceção. As propostas do PAICV e do MpD, como as pessoas lá estavam, não me diziam absolutamente nada. Nisto aparece o Gualberto do Rosário com boas ideias. Você sabe que o Gualberto é um tipo de ideias. Isso é consabido. E ele é muito sabido também! Estou à vontade para dizer isso, somos amigos. Eu, como se diz em crioulo, estava naquela de “influir” (gargalhada). Isto é, dar corda para o aparecimento de uma candidatura. Eu e outras pessoas. Queríamos sair desse “nada” instituído, sem perspetivas. Quando não se tem nada, não custa tentar com alguma coisa. Cabo Verde está longe de ser o melhor lugar do mundo, mas eu vivo cá e por isso tenho o dever de procurar melhor. No caso do Gualberto, ele estava longe de ser o candidato ideal, mas como era o que tínhamos resolvemos pegar nele. Eu até tive de lhe chamar a atenção nalgumas coisas, “eh pá, para com esta disparatada, não vais prometer isto porque ninguém vai acreditar”. Sinceramente, eu pensei que ele já tinha tomado um pouco mais de juízo.

Eu estou a gravar! É para gravar, sim! Eu penso que, dos candidatos, o Gualberto era o melhor. Ele tinha as suas limitações, mas também tinha as suas conexões com o exterior e eu acreditava que ele podia trazer alguma capacidade intelectual para São Vicente, que estava a faltar. Mas não sei como, de repente, surge um aperto qualquer, quando dou por mim, estou na lista, eu que estava só para influir. (gargalhada) E não foi fácil. Eu que não sou de vestir camisolas tinha de vestir camisola para subir ao palanque, ia ouvindo cada coisa no comício que eu dava comigo a pensar “mas o que estou eu a fazer aqui?” Fora isso, também tive uma experiência autárquica durante a transição democrática, ao integrar a comissão presidida por Martinho Ramos, em 1991/92. Foi até uma das melhores equipas camarárias que São Vicente já teve, com Francisco Lopes da Silva, Humberto Cardoso, mas rapidamente entrei em choque com eles. Havia um grupo radical do MpD, os revolucionários democráticos que sempre aparecem depois da mudança, a minar o Martinho, acabei por sair. Houve outros que quiseram fazer o mesmo mas parece que não tiveram coragem.

REFORMA DO ESTADO Precisamos de uma reforma do Estado em Cabo Verde? O Estado funciona, no meu entender, muito mal. E não pode continuar como está, precisa melhorar consideravelmente. A reforma não pode ser meramente formal. O problema essencial, em Cabo Verde, é o chamado homem cabo-verdiano. Estamos num país de gente sem caráter, predomina o espertismo, que não passa da malandrice doutorada. Todos são doutores, experts, formados, mas com espírito de comodismo e servilismo. Qualquer que seja a arquitetura do edifício, feita com material deficiente, não vai longe. Pode ficar bonito, pode delineado, mas não tem futuro. O que é urgente fazer para melhorar essa máquina que gere a nossa vida? Seria intervir profundamente no homem cabo-verdiano, no seu caráter, o que passa, antes de mais, pela [ 151 ]


A centralização e o centralismo são emanações ou instrumentos de corrupção, de ditadura, é um processo antidemocrático. E nisto temos também de alterar o sistema de votação em Cabo Verde.

responsabilização, mas não só. A maior fragilidade deste país não é ao nível do povo, é a nível das estruturas mais elevadas. É uma lástima quando os órgãos mais importantes deste país não funcionam e o caráter das pessoas que lá estão. Eu vejo isso a nível da ADECO, quando preciso de uma intervenção urgente de algum alto dirigente deste país a dificuldade que eu tenho. Ficase pela indecisão, quando há coisas que precisam de respostas urgentes e imediatas. Ninguém quer desagradar a ninguém. Isso é péssimo. Isso pode ser aproveitado por qualquer máquina rapidamente. Mas do ponto de vista institucional, o que é que acha que deve acontecer para a melhoria das coisas? Um aspeto fundamental era ver se a justiça funciona, de forma rápida e eficaz! [ 152 ]

A ADECO tem problemas a esse nível? Sim, a lei do consumidor não funciona. A gente mete processos e simplesmente não avançam. À semelhança dos EUA, defendo a existência de tribunais para pequenas coisas. Propusemos isso desde 2005 mas nunca fomos atendidos. O que há por trás disso tudo são interesses pessoais, que acabam por se transformar em interesses de grupos ou de gangs, que esmagam isto tudo. Acha que é interesse de um grupo em particular complicar a justiça em Cabo Verde? Os interesses são difusos. Quando muitos casos são resolvidos extra judicialmente há gente que perde neste tipo de solução. Mais do que perda de poder económico, há perda de influência. No modelo que eu defendo

você põe 50 ou 100 pessoas numa sala, um juiz reformado despacha isso num “ai”, sem advogados, nem conversa fiada. Agora vá dizer que não precisamos de advogados. Aliás, este é o país em que o consumidor precisa de um despachante para ir tirar uma mercadoria da alfândega, uma coisa simples. Sim, são várias as situações que inventaram só para tirar dinheiro ao cidadão. O tribunal de pequenas causas não é nada do outro mundo, existe. O Parlamento, que passa a vida a discutir asneiras, claramente com cada um a fazer a sua campanha todo o tempo, não decide uma coisa tão simples. Uma coisa que se fosse necessário poderiam até mandar vir juízes do estrangeiro para despachar a montanha de processos que estão a


mofar nos tribunais. Fala-se em cinco a 10 mil casos pendentes, é claro que não podem ser resolvidos e nem vão ser resolvidos nunca com este sistema que temos. Os nossos legisladores passam o tempo em carnavaladas, preferem complicar tudo. Concluindo, para mim, a principal reforma do Estado devia ser a justiça, uma justiça centrada nas vítimas. Em vez disso há muita conversa por aí, discursos bonitos, com trocolanças pelo meio. Os pequenos crimes não são resolvidos, nem sequer investigados pela Polícia Judiciária, no entanto, estamos constantemente com os grandes traficantes, etc. E eu pergunto, quais são as prioridades deste país? Estão a resolver esses casos para dar satisfação ao exterior, não para resolver os problemas deste país. Então acha que o tráfico não é um problema para Cabo Verde? É um problema, mas os roubos a que os cidadãos todos os dias são alvo, coisas simples e eternas, que parecem não ter solução? A todos deve ser dada atenção. Isto é, há necessidade de um maior equilíbrio no tratamento das questões, voltadas para a população e não para ludibriar a população ou a opinião pública.

CRIOULO, “TER CUIDADO” Falemos do crioulo. É ou não pela oficialização? Para mim, a língua maior do caboverdiano é a língua cabo-verdiana. Normalmente, falo na língua caboverdiana, só falo português quando sou forçado ou por necessidade. Desde muito jovem que eu me comunico, inclusive por escrito, na língua caboverdiana, na versão do Mindelo, de Sérgio Frusoni. Mas temos de ter consciência da língua cabo-verdiana no contexto global. Quanto à oficialização, se é a possibilidade de se usar isso no dia a dia, nas repartições públicas ou oficiais, eu concordo. Quanto à possibilidade disso acontecer por escrito, neste momento, é um bocado complicado.

o seu direito. É claro que essa pessoa terá ela própria que merecer esse direito. Isso passa pela criação de riquezas, mas também pela redução do fosso entre os que muito têm e os que nada têm. Por quê? Dadas as variantes. Entre outros problemas, não há ainda uma estrutura muito bem definida. Por exemplo, acredito que teríamos dificuldades em fixar, por escrito, na língua caboverdiana, uma dada questão jurídica, implicando crimes, responsabilidades, etc. Há determinadas palavras cujo significado varia de ilha para a ilha, o que poderia causar alguma confusão. Mas isso também acontece com o português. Sim, é verdade, mas no contexto você pode definir. Mas essa, reconheço, é uma questão menor. Mas para si a questão é pacífica ou não? Neste debate é preciso ter as dimensões dessa nossa língua. A língua cabo-verdiana é uma língua muito mais inteligente que o português. Sei que não sou o único que pensa assim. Há, contudo, que se ter algum cuidado neste capítulo. É preciso, antes de mais, definir o que se pretende com a oficialização. Neste momento, e já agora, entendo que devemos apostar numa terceira língua, o inglês. Se quisermos que este país se desenvolva o inglês seria uma excelente opção, começando o seu ensino desde muito cedo.

DESAFIOS FUTUROS Qual é o principal desafio que se coloca a Cabo Verde neste momento? Ocorre-me garantir condições satisfatórias de qualidade de vida a todos os cabo-verdianos. Que as pessoas possam viver com dignidade. Viver com dignidade não é ter carrões, mansões, fatos. Viver com dignidade é a pessoa saber que não depende de ninguém. O desafio é criar condições para que cada um possa ver realizado

Isso passa, com certeza, pelo tipo de cidadania ou valores que todos defendemos, no fundo, para Cabo Verde. Enquanto houver uma camada considerável da população a viver em condições de pobreza quase subhumanas, as pessoas nessa situação acabam por ser manipuladas, através da comunicação social, pela elite detentora do poder, económico, financeiro, político, etc. Sem criar as condições para que essas pessoas não dependam de seja quem for, e que os detentores de cargos se sintam como servidores – o que é quase um sonho – não haverá democracia real, nem cidadania para todos. Em relação ao futuro de Cabo Verde… Este país precisa trabalhar mais, precisa de mais justiça social, de menos “carnavais”, menos espetáculos na televisão… Precisamos de tirar uma grande parte da população do limbo. Se isso acontecer, ela terá muito mais a dar, porque tem enormes potencialidades. Se não forem criadas condições para que possam despontar, em vez de produtores e geradores de riquezas vão ser desestabilizadores, a base da corrupção social, etc. Temos condições para estar muito melhores, desde que haja seriedade, dedicação e empenho.

FIGURAS Para terminar, olhando para estes 40 anos, para si, quem são as figuras que mais se destacaram? Infelizmente, as minhas referências de pessoas com valor são reduzidas. Dos mortos, é gente como Baltasar Lopes da Silva e João Manuel Varela; dos vivos, cito o Arsénio de Pina. Como vê, não são políticos. [Mindelo, 19-04-14]

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Lúcia dos Passos

“A próxima revolução será das mulheres” Lúcia dos Passos, 44 anos, é presidente da Morabi, organização que lida com a promoção da mulher e luta contra a pobreza. É natural de São Lourenço dos Órgãos, Santiago, mas vive na Praia desde a infância. Enquanto me preparava para a entrevista, Lúcia ia despachando, por telefone, um colaborador seu. Pelo tom, deu para perceber que não é de passar a mão na cabeça do “coitadinho” do pobre. E foi precisamente por aí que começamos a nossa entrevista.

Para início de conversa, é fácil lidar com o pobre em Cabo Verde? Fácil não é. O nosso trabalho é de combate à pobreza e, nem sempre, os meios que utilizamos vão ao encontro das espetactivas das autarquias locais, do Governo ou mesmo das próprias pessoas nas comunidades. Na nossa ação privilegiamos muito a formação e a informação para a mudança de atitudes e de comportamentos. Às vezes, é preciso formar também os atores públicos, pois estes nem sempre acompanham o processo de transformação do país. Temos técnicos que estão nos gabinetes e quase que desconhecem que a sociedade cabo-verdiana está em constante transformação, isto é, que vivemos num contexto de globalização e que Cabo Verde não está isolado do mundo. [ 154 ]

No seu caso, está neste setor desde quando? Desde 1992. Sou membro fundador da Morabi, também da VerdeFam, enquanto Morabi somos membros da FAMEC (Federação Nacional de Microfinanças) e fui a primeira presidente, sou comissária dos Direitos e Cidadania, membro da Coordenação da Saúde, etc. Estando em várias frentes, ao fim destes 22 anos, que apreciação faz desta experiência? É um trabalho muito exigente, às tantas acabamos por sacrificar a nossa própria vida pessoal e familiar, não temos hora para chegar a casa, às vezes, todos – inclusive as autoridades locais e nacionais – têm uma expetativa muito grande em relação ao nosso trabalho. Por exemplo, trabalhamos com programas de saúde sexual e

reprodutiva, coisa que não dá dinheiro para a Morabi, mas traz grandes ganhos para o país, inclusive para o Orçamento do Estado. Com isso, estamos a contribuir também para o bem-estar familiar e para a promoção da saúde pública. Também trabalhamos com os profissionais do sexo, através de campanhas de sensibilização, para abandonarem de forma voluntária essa profissão, isso tem custos, pagamos as consultas e os exames médicos, além disso, são pessoas em constante movimento, de uma ilha para a outra, o que dificulta o nosso trabalho, no fim, o seu impacto é também grande. Quanto aos órfãos dos portadores de HIV-Sida, uma outra área da nossa ação, aqui a carga emocional é grande, tanto da parte da criança como de quem com ela trabalha. Há que cuidar


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do ensino dela, através de propinas, passes, saúde, etc. A nível da microfinanças trabalhamos com mais de 11 mil famílias, mais de 22 mil créditos já foram concedidos, em termos de valores são mais de um 1,5 milhão de contos. Portanto, é muito difícil medir todos os ganhos do nosso trabalho, apesar do seu impacto. Veja, ainda há dois dias fomos – eu e representantes do Banco Mundial – ver uma senhora que nos estava a explicar que começou com 50 mil escudos, e que com a vida que hoje tem conseguiu mandar o filho formar-se em Portugal num curso superior, filho esse que já voltou e está a trabalhar. Essa senhora começou com uma mercearia, hoje tem essa mercearia, faz agricultura, pecuária, além de sustentar a família, emprega três pessoas, pessoas essas que sustentam as respetivas famílias. Veja também, nós não damos créditos à habitação, mas um cliente nosso, quando recebe um empréstimo, com o que ganha, consegue construir casa de banho ou mais um quarto, pouco a pouco vai separando as meninas dos rapazes, ou até mesmo constrói o quarto onde meter os filhos, porque, muitas vezes, é no mesmo quarto de casal que dormem as crianças. Tudo isso são ganhos do nosso trabalho que nós não conseguimos avaliar. Nesses 22 anos podemos falar numa mudança silenciosa de mentalidade através da vossa ação? A mudança é real, não é silenciosa. Dou-lhe também este exemplo: a Morabi foi uma das primeiras organizações a trabalhar com Rincon, Santa Catarina. Quem lá vai hoje e conhecia antes vê a diferença. E isso repete-se em lugares onde estamos, como Calabaceira, São Tomé, Salineiro, aqui em Santiago, mas também no Tarrafal de Monte Trigo, em Santo Antão. Nesses locais, as pessoas já não pedem, chegam até nós para fazer empréstimo, trabalhar e pagar a sua dívida. O mesmo se passa com as vendedeiras do mercado da Praia. Fazemos o trabalho de base, a educação, a autoestima, os cuidados de higiene, gestão de pequenos negócios, etc. E não é só o mercado da Praia, também os [ 156 ]

higiene pública que está em causa. As casas de banho dos mercados foram totalmente melhoradas em função da ação da Morabi.

Quando vim para a Praia, água canalizada era difícil, eu era acordada às quatro horas da madrugada para recolher água antes de ir pra a escola. Íamos ao Paiol, Lém-Cachorro, chegávamos a vir à Gamboa, portanto, está a ver, da Vila Nova até Gamboa, na Alfândega. Depois, era estudar e ir para a escola.

AUTO-ESTIMA EM ALTA Como está a auto-estima do caboverdiano, neste momento? (risos) No nosso público alvo, pelo menos, a auto-estima está bem alta. Conheço uma vendedeira que tinha 80 anos, nunca tinha estado numa sala de formação, teve um curso de três semanas, no fim, teve um certificado, ela sentiu-se valorizada. Como ela, houve pessoas que alugaram táxis para mostrar na sua comunidade que já tinham diploma. Diziam “agora sou diplomado para vender!” Isso mostra que a auto-estima dessas pessoas, em concreto, aumentou bastante. Apesar da badalada crise financeira, há coisas que acontecem no mundo associativo e que não aparecem na comunicação social. Aliás, se calhar a crise financeira é uma oportunidade para o mundo da microfinanças apostar, ainda mais, naqueles que precisam de nós para melhorar a sua vida. Nós que estamos no terreno constatamos que essa crise tem mais a ver com o sistema financeiro clássico. As dificuldades são maiores a nível dos bancos, que exigem mais garantias, logo isso dá mais margens a quem está na microfinanças.

QUEM É LÚCIA PASSOS mercados de Santa Catarina, Santa Cruz, Tarrafal, Calheta, São Domingos, etc. Há uma mudança de atitudes. É claro que não estamos sempre presentes para dizer “nós da Morabi é que fizemos”, mas o impacto fica. Mas não é só as vendedeiras, também formamos os fiscais. Aqui, no mercado da Praia, demo-nos conta que, por causa da formação das vendedeiras, estava a surgir um conflito. Elas passaram a exigir mais água, por exemplo, para lavar as mãos e até para cuidar dos seus produtos; os fiscais e os gestores, que não tinham tido a mesma formação, achavam que elas estavam a gastar água de mais. Portanto, com formação, os fiscais e os técnicos passaram a ver também que a água é uma questão de

Por causa da forma atípica como começámos esta entrevista não me deu os seus dados pessoais. Quem é Lúcia dos Passos? Sou natural de São Lourenço dos Órgãos, tenho 44 anos, sou gestora de projetos. Vivo na Praia, desde os nove anos. Na altura, no meu concelho, não havia ciclo preparatório e por isso vim estudar. Fiz o ciclo na “Eugénio Tavares”, na Achada de Santo António. Entre a Praia da sua infância e adolescência e os dias de hoje, qual é a principal diferença? Eu morava na Vila Nova, com uma tia. Quando vim para a Praia, água canalizada era difícil, eu era acordada às quatro horas da madrugada para


recolher água antes de ir pra a escola. Íamos ao Paiol, Lém-Cachorro, chegávamos a vir à Gamboa, portanto, está a ver, da Vila Nova até Gamboa, na Alfândega. Depois, era estudar e ir para a escola. Para as aulas de educação física, as sapatilhas eram da minha irmã que me emprestava para eu ir às aulas. A pasta era para nós as duas. Hoje, os miúdos têm tudo de bom, com marcas. Além de livros disponíveis, hoje, tudo está na internet. Estou a ver que está a falar muito na educação, para si, é o principal ganho? Sim, sem dúvida. Isto em termos de acesso, agora em termos de qualidade, estamos a perder um pouco. Eu acompanho sempre o meu filho nos estudos dele e vejo que há uma perda significativa entre aquilo que aprendi e o que ele aprende hoje. Aqui, na Morabi, recebemos estudantes universitários que cá vêm estagiar

e vemos a forma como abordam as questões, é gente que não pesquisa, quer tudo feito. Na ortografia, há erros crassos, que me levam a perguntar “nossa!, como é que essa pessoa conseguiu fazer uma licenciatura, quando nem o nome de alguém é capaz de escrever?” Se calhar, o problema vem desde a escola primária. A qualidade do ensino, para si, é um problema em Cabo Verde? Sim, claramente. Temos que desapaixonadamente ver o problema. Se calhar, é aqui que Cabo Verde perde, porque tudo é partidarizado. Na educação e na saúde, duas áreaschave para o desenvolvimento, não se deve meter política partidária. A única política permitida é a política do desenvolvimento. Por isso, desapaixonadamente, devemos colocar o problema sobre a mesa e ver onde está a falha, para podermos corrigir e seguir em frente.

CABO-VERDIANO, “SEMPRE À PROCURA DA VIDA” Sendo cabo-verdiana, viveu sempre em Cabo Verde? Sim, aqui fiz os meus estudos. O máximo que já passei fora de Cabo Verde foram três meses. Lá fora convivi, e tenho convivido, com gente de vários pontos do mundo; Cabo Verde, conheço de Santo Antão à Brava, menos Santa Luzia. Para si, o que é ser cabo-verdiana hoje? É uma pessoa assente nas nossas raízes e valores. Respeitar e vivenciar a nossa cultura, que é uma mistura da cultura africana e a cultura europeia. É isto que acaba por ser a nossa identidade, que é expressa através da nossa língua, da nossa forma de estar. Como povo, somos gente persistente, não temos medo de enfrentar as situações por mais adversas que sejam. [ 157 ]


Somos também abertos ao mundo, somos também muito “morabi”. Sendo ilhas, o cabo-verdiano está sempre em movimento, à procura da vida. O cabo-verdiano é aberto à mudança ou é o contrário? É aberto à mudança. Às vezes, até exageramos nisso. Em termos de aculturação, estamos sempre disponíveis. Na sua opinião, o que nos leva a ser assim? O facto de sermos ilhas, dispersas, no meio do mundo, sem fronteiras terrestres com ninguém, leva-nos a ser o que somos. Olhando para os cabo-verdianos, o que nos une, na sua opinião? A solidariedade. Às vezes, as pessoas acham que somos individualistas, mas não é verdade. Havendo necessidade, somos solidários. Veja aquando da epidemia da dengue [em 2009]; dado o alerta, todo o mundo se envolveu, de forma voluntária. Na morte, numa emergência, todos aparecem para ajudar. Nós não somos um povo individualista. Em determinadas situações podemos até sê-lo, mas no geral não. Veja a emigração. Ela aconteceu por quê? Porque alguém foi, mandou buscar a família, o amigo, etc., de tal modo que hoje temos mais cabo-verdianos na América do que aqui, em Cabo Verde. Mas há quem diga que hoje já não é possível o “djuntamon” que havia no passado. Não é bem verdade. Dependendo da atividade, as pessoas se juntam, sem problemas. Se eu sou uma pessoa fechada, não participo na vida da comunidade, não posso esperar que na dificuldade as pessoas me acudam. Por exemplo, eu vim para a Praia mas não me desliguei do meu lugar de origem, todas as semanas vou ao interior. Se alguém como eu veio para Praia e aqui ficou, desligando-se completamente, no dia em que ele precisar não vai ter o mesmo tipo de apoio que eu eventualmente poderei ter no dia em que tiver algum problema em São Lourenço dos Órgãos. As pessoas hoje cultivam um certo tipo de memória, do tipo “quando o meu pai morreu ele não [ 158 ]

O Estado que temos neste momento é bom. Precisamos, sim, é de fazer a descentralização. Eu sou a favor da regionalização, mas de forma bem estruturada. Por exemplo, alguns ministérios podiam estar noutras ilhas, sem ser Santiago. Não é justo ter todos os ministérios em Santiago veio me visitar”, “quando a minha casa ruiu ele não me veio dar o seu apoio…” Este tipo de revanchismo tem também de ser trabalhado nas comunidades. Mas, em termos de solidariedade, enquanto povo, somos solidários e vamos continuar a ser solidários.

SANTIAGO, “CORAÇÃO DE CABO VERDE” Sendo natural de Santiago, na sua opinião, qual é o contributo que esta ilha deu para a conformação daquilo que é hoje Cabo Verde? Santiago é uma ilha rica em termos de cultura, desde tabanca, batuco, que vêm desde a nossa fundação enquanto povo. É um processo que resulta do encontro entre as culturas europeia e africana. Em termos académicos, Santiago é a ilha que mais produziu quadros ou técnicos superiores em Cabo Verde. Isso decorre do facto de sermos a maior ilha, a mais populosa. E temos ainda a vantagem do poder central estar aqui, em Santiago, e isso acaba por contribuir para o processo

de desenvolvimento da ilha. O facto de a capital do país estar também situada aqui tem as suas vantagens. Há um conjunto de factores que faz com que haja aqui o maior número de empregos e oportunidades, o que torna a ilha também mais rica. Enfim, são inúmeras as razões que levam Santiago a ser a ilha mais importante de Cabo Verde, embora São Vicente e Sal também tenham dado a sua contribuição para sermos o país que somos. Aliás, com o turismo, temos hoje ilhas que estão a emergir com bastante força, casos da Boa Vista e do Sal. Santo Antão, Fogo e as demais ilhas também têm o seu lugar. Mas, sem dúvida, que o berço e o coração de Cabo Verde é Santiago.

QUE ESTADO, “DESCENTRALIZAR” Fala-se muito na reforma do Estado em Cabo Verde. Diante do que disse antes, pergunto-lhe, que Estado devemos ter? O Estado que temos neste momento é bom. Precisamos, sim, é de fazer a descentralização. Eu sou a favor da regionalização, mas de forma bem estruturada. Por exemplo, alguns ministérios podiam estar noutras ilhas, sem ser Santiago. Não é justo ter todos os ministérios em Santiago. Os ministérios deviam ser distribuídos em função da vocação das ilhas. Por exemplo, se considerarmos que São Vicente é ilha com especial vocação para a cultura, o Ministério da Cultura devia ser lá. Santo Antão é uma ilha extremamente rica, em termos agrícolas e da pecuária, é claro que temos Santiago, Fogo que também são ricas, eu colocaria uma delegação muito mais forte do Ministério da Agricultura. A mesma coisa em relação ao turismo, se Sal ou Boa Vista são ilhas que efetivamente vivem do turismo, a Direção Geral do Turismo, pelo menos, devia estar numa dessas ilhas. Não é razoável concentrar todo o poder na Praia. Precisamos de outras estruturas, mas com conteúdo. Disse que é a favor da regionalização. Mas que tipo de regionalização defende? Em concreto, não sei, ainda. Mas em tese sou a favor da ideia.


A ter que haver reformas no Estado cabo-verdiano, para si, quais seriam os setores mais urgentes? Para mim, um dos setores a clamar por uma intervenção urgente é o da família e solidariedade. Foi tudo metido no Ministério da Juventude e isso apagou tudo o resto. Não é concebível um país pobre como Cabo Verde não ter um ministério que se ocupe exclusivamente da família e da solidariedade. O Ministério da Juventude, por si só, já é um ministério grande porque nós somos um país jovem. Mas todas as pastas a que se refere estão atribuídas a uma pessoa, ou não? Exatamente e isso foi um erro grande. A primeira coisa que precisamos fazer é devolver o Ministério da Família à sociedade cabo-verdiana. A nossa sociedade precisa de um Ministério da Família e Solidariedade. É um ministério com muitas responsabilidades. Temos uma grande franja da população que é chefiada por mulheres e que já não são jovens. Por isso, como é que vão se rever no Ministério da Juventude? Se há ministério com mais responsabilidades que o Ministério das Finanças em Cabo Verde é o Ministério da Família e Solidariedade. O que programarmos hoje para a nossa juventude é o país que teremos amanhã. O resto nem sequer é a reforma em si do Estado, mas as pessoas, às vezes, que estão à frente de cada setor ou serviço. Há umas que são mais dinâmicas, outras não, e isso acaba por influir no ritmo ou nível de prestação de cada serviço.

VALORES, “DESRESPONSABILIZAÇÃO” Como está a família cabo-verdiana, na sua opinião? Precisa de muita coisa. Estamos a viver algumas crises de valores. Sentimos que as famílias andam a delegar algumas das suas responsabilidades para as escolas, para a sociedade… Temos hoje em dia jovens com comportamentos desviantes, nos trabalhos que fazemos nas comunidades aparece sempre gente a

dizer, “vocês têm que me ajudar com o meu filho, eu já não posso com ele”. Os professores também se queixam disso. E com razão. Temos uma creche no Parque 5 de Julho, das mães que vendem no Sucupira. Essas pessoas depositam as crianças de manhã e só as recolhem no final do dia. Às vezes, as crianças têm algum problema – febre, alguma indisposição, por exemplo – as monitoras telefonam para as mães e estas simplesmente não aparecem para ver o que se passa com os filhos. São as monitoras que têm de levar as crianças ao hospital. Há uma certa desresponsabilização da família, delegando os seus poderes para a sociedade, o que não é correto. Eu é que tenho de me preocupar com a minha família, eu é que tenho que educar os meus filhos. É claro que a escola tem a sua responsabilidade, mas não posso delegar até mesmo a minha parte da responsabilidade para a escola. Que valores, neste caso, defende para a sociedade cabo-verdiana, além desses que acaba de referir? A família cabo-verdiana deve transmitir os valores essenciais da vida, que são o respeito e o amor ao próximo, do diálogo e da assunção plena da responsabilidade de cada um. Se tenho uma família, devo lutar pelo sustento e pela educação dela, se houver um problema devo encará-lo de frente, pedir apoio, sim, mas não esconder os problemas. Várias vezes assistimos situações em que um jovem é procurado pela polícia, eu escondo o meu filho; diante disso, estou a fazer três coisas erradas: primeiro, estou a encaminhar esse meu filho para um comportamento errado; em segundo lugar, não estou a colaborar com a Justiça; e em terceiro, estou a prejudicar a minha vida. Se a minha vizinha foi roubada pelo meu filho, ao impedir que a polícia o capture, estou a impedir a realização da justiça, e com isso essa vizinha fica prejudicada, porque o bem que esse meu filho roubou foi vendido a um terceiro. A partir disso, eu entro num ciclo de comportamento de conflito social na minha comunidade. Ainda que [ 159 ]


inconscientemente, estou a criar um conflito familiar. Hoje acobertei um erro do meu filho, amanhã, quando ele errar perante mim, já não terei moral para repreendê-lo nem os demais irmãos dele. Eu já não posso dizer a nenhum deles “não deves fazer isso”. Há uma crise de valores morais em Cabo Verde? Claramente. Por causa da minha educação, até hoje não tenho o hábito de tomar coisas emprestadas às pessoas. Este foi um dos valores que recebi em casa, em especial do meu pai. Ele nos incutiu, desde muito cedo, a não receber nada de pessoas estranhas, não ter nada que não fosse comprado por nós, a não ser que seja uma pessoa da família ou no dia do meu aniversário em que posso receber um presente de gente que eu conheça. O seu pai, qual era o nível de formação dele? É técnico agrário, está reformado, tem apenas a quarta classe. Naquele tempo, se um de nós aparecesse em casa com algum bem, teria de explicar a origem desse bem. Hoje em dia, não. Estamos, sim, diante de uma crise de valores morais. Mas não é só a esse nível. O mesmo acontece em relação às pessoas idosas e às crianças, [ 160 ]

por exemplo. No passado, se eu encontrasse uma criança na rua, eu procurava imediatamente levála para junto dos seus pais. Hoje não, nem sequer perguntamos por que está na rua sozinha. Chega um idoso num autocarro, ou mesmo na igreja, não nos levantamos para dar o assento a esse idoso. Fingimos que não estamos a vê-lo. Isso também é perda de valores.

CIDADANIA: COM “DIREITOS E DEVERES” Diante disso, eu pergunto-lhe: que cidadania defende ou almeja para esta sociedade? Eu sou a favor de uma cidadania com direitos e deveres. Defendo também uma cidadania em que os políticos respeitam as populações, uma cidadania em que a população não é enganada, em que ninguém é obrigado a vender a alma por altura da campanha eleitoral, portanto, sou a favor do voto consciente. Também defendo uma educação para a cidadania, em que as pessoas sabem quais são os seus direitos e os seus deveres, uma cidadania em que a população participa no processo de desenvolvimento, por isso, se eu for ao hospital, é necessário pagar uma taxa para a consulta, podendo,

eu devo pagar, em nome do princípio da comparticipação dos gastos. Sou a favor de uma cidadania em que a população não deve esperar tudo gratuitamente do Estado, logo, uma cidadania em que a população comparticipa no processo de desenvolvimento. Mas também defendo que o Estado deve criar oportunidades de acesso para que as pessoas tenham emprego, seja emprego em instituições, seja emprego próprio. Mesmo sendo informal, eu tenho o meu meio de sobrevivência. É esta a cidadania que eu defendo.

QUE POLITICOS? Por isso pergunto-lhe também que tipo de Estado defende para Cabo Verde? (risos) A pergunta, se calhar, não é que tipo de Estado devemos ter, mas sim que tipo de políticos devíamos ter? OK, pergunto-lhe, que tipo de políticos devemos ter em Cabo Verde? (risos) Nós temos deputados, hoje, de todas as bancadas, que já vão no quarto ou quinto mandato, você não acha que esses deputados já deviam ter cedido o lugar aos mais jovens? Eles são os únicos cérebros de Cabo Verde? Não são!


Desde 1991 tem havido alguma renovação, você está a ser injusta. Se você for pesquisar, vai encontrar muita gente que lá está desde 1991. Aliás, há gente que lá está antes mesmo de 1991, mas não são a maioria, convenhamos. Mesmo não sendo a maioria, temos que começar a trabalhar, em Cabo Verde, no sentido de cada um conhecer o seu limite temporal de dar a sua contribuição para o desenvolvimento deste país. Se desde 1991 estou como deputado, estou a impedir que gente mais jovem, com outras ideias e com vontade de fazer, de dar a sua contribuição. E quando me refiro aos jovens estou a me referir também às mulheres. Acha que as mulheres não são valorizadas? Temos um país extremamente machista, onde os políticos não dão oportunidades às mulheres. Eu faria uma política com paridade, com base no género. Se formos reparar, as mulheres que estão no Governo têm um bom desempenho, mas estão lá porque foram convidadas pelo primeiro-ministro. No Parlamento, que é centro de decisão, onde são aprovadas as leis, quantas mulheres nós temos? Hoje temos 18%, o máximo que já tivemos foi 21%. Isto num país que tem 50.5% de mulheres. Mesmo assim, ainda somos um país maioritariamente feminino.

MULHERES À LUTA Mas você não acha que as mulheres estão naquela de serem “convidadas”? Não é verdade, são os homens que não dão espaço para as mulheres participarem na política. Inventam reuniões em horários que não são convenientes para as mulheres… Aí está um problema. Os homens se esquecem que ser chefe de família não é uma responsabilidade exclusiva das mulheres. E estou a falar de mulheres com formação, mulheres dirigentes, cujos maridos atribuem a elas a responsabilidade da família. É a mulher que acaba por ter que cuidar dos filhos, da casa, etc.

Mas não é só isso, os homens não deixam espaço às mulheres para participarem na vida política. Veja, por exemplo, na altura da feitura das listas, o que é tido em conta são as concelhias. Aqui, as mulheres têm pouca participação. A política é dominada pelos homens que, estrategicamente, vão dizendo “concelhia não tem importância”, como você não conhece os estatutos, logo, não conhece os meandros do funcionamento do partido, “OK, aceito estar no Conselho Nacional, na Comissão Política…” mas quando você vai à CN lá você não tem nada a fazer, porque, na hora de fazer as listas, as listas são feitas na base, e é aqui que os homens mandam as mulheres para lugares não elegíveis. Hoje, depois de ver o que se passa, já há mulheres a liderarem as concelhias. É isso que temos de fazer, lutar, porque nisto não podemos apenas contar com a boa vontade dos homens. E eu acredito que se houver mais mulheres em Cabo Verde nos centros de decisão, tanto a nível central, como local, vamos conseguir ter um processo de desenvolvimento mais sustentado.

Eu sou a favor de uma cidadania com direitos e deveres. Defendo também uma cidadania em que os políticos respeitam as populações, uma cidadania em que a população não é enganada, em que ninguém é obrigado a vender a alma por altura da campanha eleitoral, portanto, sou a favor do voto consciente.

É a minha convicção. É aqui que precisamos de mudar de política. O que está a dizer não deixa de ser contraditório. A mulher está na base, ela podia bater o pé… Não, a mulher é apenas a máquina do trabalho dos partidos políticos, mas não é máquina de decisão. Portanto, temos de começar a ser máquina de decisão dos partidos políticos. A partir do momento que isso começar a acontecer aí as coisas vão mudar. Vamos ter, se calhar, uma outra forma de fazer política em Cabo Verde. Essa é a próxima revolução em Cabo Verde? Sim. Você pode acreditar que nós, mulheres, não vamos cruzar os braços. Vamos lutar para que essa revolução aconteça. Até porque a mulher é mais pragmática do que o homem. Há situações fáceis de resolver mas que os políticos (homens) preferem inventar histórias. É por isso que não é o Estado que temos que precisa ser reformado, mas os políticos que temos. Estando no Parlamento, por exemplo, é importante que o deputado seja consequente com o seu eleitorado. Às vezes, ouvindo as transmissões das sessões, eu me pergunto, “nossa, em que país vive esse indivíduo?”, vê-se claramente que ele está lá apenas a preencher um lugar. O deputado, antes de abrir a boca, deve investigar, deve ir ao terreno, deve conhecer a realidade; às vezes, discutem assuntos que já estão ultrapassados. Nós, na sociedade civil, já estamos a 50 léguas daquilo que se está a defender ou discutir. Temos deputados alienados da realidade? Isso eu não digo, porque seria muito grave, mas digo que há uma certa falta de sintonia entre a população e os deputados. Isso tanto a nível das assembleias municipais como do Parlamento. Às vezes, sinto que o deputado não sente ou não vive a expetativa para reivindicar, no Parlamento, o que as pessoas querem realmente nas suas comunidades. Os deputados devem representar realmente os seus eleitos, é para isso que estão lá. [ 161 ]


CRIOULO E PORTUGUÊS, “LADO A LADO” Um dos debates que está em curso em Cabo Verde é a oficialização ou não do crioulo. Qual é a sua posição? Para mim, o crioulo é o de Santiago. Por um lado, porque o crioulo de Santiago é mais fácil, está mais próximo do português; por outro lado, somos a maioria, em termos de população. É uma questão de justiça, digam os outros o que quiserem. É a favor da oficialização? Sim, sou. Mas também sou a favor que as duas línguas – o crioulo e o português – andem lado a lado. No caso do crioulo, é preciso fazer o trabalho de base. O que falta fazer? Se é uma língua, ela tem que ter regras. Regras há. Eu acho que não há, ainda cada um fala e escreve como entende. Há todo o trabalho já feito por Manuel Veiga e outros. Eu, por exemplo, embora sendo de São Lourenço dos Órgãos, não falo o mesmo crioulo de uma pessoa de Engenhos [Santa Catarina de Santiago]. Mas o crioulo é um só, ou não, pelo menos em Santiago. Há diferenças, mesmo em Santiago. Por isso, na sua opinião, como deve acontecer a oficialização? O importante é que haja regras. É preciso uma gramática, um dicionário e vários outros instrumentos para que o crioulo seja realmente uma língua oficial. A partir disso há todo um processo de socialização, de formação e informação da população. Não sou eu a achar que é bonito oficializar. E qual o papel da língua portuguesa em Cabo Verde, na sua opinião? É a nossa língua oficial e a língua com a qual nos identificamos quando estamos fora do país. É a língua que nos identifica no mundo. [ 162 ]

… se houver mais mulheres em Cabo Verde nos centros de decisão, tanto a nível central, como local, vamos conseguir ter um processo de desenvolvimento mais sustentado. É a minha convicção. É aqui que precisamos de mudar de política.

A seu ver, as duas línguas são devidamente tratadas pelas nossas instituições? O português, sim. A nível do ensino, como vimos antes, é preciso repensar a questão. Mesmo na formação dos professores. Sentimos que há uma diferença entre os professores que foram formados na época do Magistério Primário com os professores formados pelo IP (Instituto Pedagógico). A qualidade não é mesma. E isso sente-se até no aluno que se formou com um professor do Magistério Primário, é diferente daquele que foi formado pelo IP. Sabendo disso, quando vou matricular o meu filho, procuro aquele professor que sei que é do tempo do Magistério. Um pai que não conhece a diferença, ou que não se preocupa com a qualidade da formação do seu filho, mete simplesmente o aluno na escola. E digo-lhe mais: mesmo entre os professores há quem não aceite que o filho dele seja lecionado por um dado colega. Conheço vários casos. Há pessoas que tiram o filho de uma escola e procuram outra porque sabem que essa outra escola tem melhores professores. É aqui que o Ministério da Educação (MED) tem que trabalhar. Há quem diga que a exclusão social em Cabo Verde começa no ensino. Sim, é verdade. Se eu não me preocupo em escolher a melhor escola para o meu filho, matriculando-o em escolas com maus professores, estou a contribuir para a má formação dele. Acha então que em Cabo Verde devia haver ranking para as melhores e as piores escolas? Sim, deve haver. E deve haver outra coisa: a avaliação e a publicação da avaliação dos professores, para que se saiba qual é a melhor escola e o melhor professor, isto até como forma de motivar os próprios professores. Há professores que em determinadas escolas, de tão maus, são colocados na secretaria; o MED, precisa de um professor, manda pedir esse professor. Ora, se um professor não serve para dar aulas numa dada escola, e por isso é metido na secretaria, não devia servir para nenhuma outra escola. Será que o aluno da escola a que esse


professor foi chamado para tapar buraco não merece um ensino de qualidade? É a pergunta que fica. E qual a consequência? A qualidade do ensino que temos neste momento, quadros jovens desqualificados, que não servem para o mercado de trabalho. A culpa não é do aluno, é do sistema, e o MED deve olhar para isso, criando um Conselho para a Educação, com pessoas fora do sistema de ensino, incluindo os pais, os professores reformados, as igrejas, o MED, para darem o seu contributo para a melhoria do ensino em Cabo Verde. Outra coisa que não valorizamos em Cabo Verde é o ensino pré-escolar. Mas ele é a base da educação. Temos educadores infantis formados no desemprego e temos milhares de jardins infantis sem monitores qualificados. A valorização do pré-escolar é a chave da qualidade do ensino que vamos ter no futuro. Isto é uma cadeia, se tivermos um pré-escolar com qualidade, vamos ter um primário com qualidade, e se tivermos um primário com qualidade vamos ter um secundário com qualidade, e isso se repetirá também no universitário. Não é razoável ter universidades com professores licenciados. Quantos são os doutores nas nossas universidades? É só ver.

CEDEAO, “MENOSPREZAMOS” Falemos agora de Cabo Verde e o mundo. Em primeiro lugar, como vê a nossa integração na CEDEAO? Neste momento há um despertar, mas, do meu ponto de vista, menosprezamos muito as nossas relações com a CEDEAO. Isso se deve a quê, na sua opinião? Isso tem a ver, se calhar, com o facto de termos sido colonizados por Portugal. Não conseguimos cortar o nosso cordão umbilical com a Europa, valorizamos muito a Europa em detrimento de África. O mesmo se passa com os EUA, com quem não temos uma relação forte ou mesmo com o Brasil. A nossa cabeça esteve sempre focada na Europa. Mesmo a nível da cooperação internacional. Nós temos um défice de aproveitamento das oportunidades porque a maior parte dos nossos parceiros externos está baseada em

Dakar e nós, simplesmente, não vamos lá procurar. Só agora é que começamos a despertar, não só para a CEDEAO, mas para toda a África. Por exemplo, o Quénia é um país que tem inúmeras ofertas em termos de novas tecnologias. Na África Austral, temos a África do Sul, Moçambique, Angola, que têm maisvalias que poderíamos explorar mas que não exploramos, simplesmente. Por desconhecimento ou por preconceito nosso? Eu acho que por ignorância. Mas temos também alguma preguiça de pesquisar e investigar. É por isso que eu digo que a sociedade, em muitas coisas, está um passo à frente do poder político. Nós, da sociedade civil, já estamos lá! São os nossos políticos que só agora começam a despertar para a África, porque nós, associações como a Morabi, já temos vários parceiros no continente. Nós já fizemos estágios em Moçambique, no Quénia, os financiamentos que temos é graças a esse tipo de ação, não ficamos aqui, na cidade da Praia, à espera que o Governo nos mostrasse o caminho da cooperação com a África. Decidimos, investigamos e fomos lá bater à porta de quem nos podia apoiar. E a Europa? As nossas relações devem continuar. O que Cabo Verde deve fazer é expandir a sua área de cooperação com todos, não deixando nunca de valorizar a África. É só ver como os portugueses, os espanhóis e outros europeus, estão a correr para Angola, Moçambique e África do Sul. Eles sabem que este é um continente com futuro. E se os outros assim fazem por que não fazermos a mesma coisa também? Temos todos de despertar para isso, e não é só o Governo. Temos, para todos os efeitos, grandes comunidades espalhadas pela África – no Senegal, em Angola, etc. São países onde temos descendentes de caboverdianos bem posicionados. É gente que deveríamos procurar ter do nosso lado. Sabemos lidar com a diáspora que temos? Devemos melhorar a nossa relação, não só informando-a do processo de desenvolvimento de Cabo Verde, mas também aproveitar a capacidade desse nosso recurso a favor de Cabo Verde.

Precisamos de fazer a ponte entre os nossos emigrantes e a cooperação nos países onde eles estão.

FIGURAS, “LISTA ENORME” Para si, quem são as figuras que mais se destacaram nesses quase 40 anos de independência? A minha lista é enorme. E começo pelas mulheres. Em primeiro lugar, a Dory (Maria das Dores Silveira), Isaura Gomes, Madalena Tavares, Lilica Boal… Elas tiveram um grande desempenho desde o processo da luta pela independência, passando depois para o pós-independência, com a fundação da OMCV. Lembro-me também da Ondina Ferreira, como professora. Também cito a Lídia, Nique, Manuela, são várias professoras que tiveram um papel muito importante na formação dos nossos quadros. Falo também de religiosas, da menina Dores, Gilda Barbosa, todos tiveram um papel importante na formação dos nossos quadros, governantes inclusive. Em termos políticos, não posso deixar de citar Aristides Pereira, Pedro Pires, António Mascarenhas Monteiro, o atual primeiro-ministro [José Maria Neves] e o anterior [Carlos Veiga] fizeram o seu papel no processo do nosso desenvolvimento de Cabo Verde. Há inúmeros outros quadros que, de forma anónima, deram também o seu contributo. Há uma pessoa nos Órgãos que já não está viva, mas que foi importante, o professor Dionísio Garcia. Falo dele com a mesma certeza de que pessoas de outros lugares – São Vicente, Santo Antão, Santa Catarina etc. – não deixarão de mencionar esse tipo de gente por causa do papel que tiveram na sua formação pessoal. Ainda nos Órgãos, o padre Arlindo é uma pessoa que, em termos de valores, deu um grande contributo e exerceu muita influência na nossa região. Ele merecia e recebia respeito das populações a que estava ligado. Cito também o superintendente nazareno Adérito Silves Ferreira, o D. Paulino Évora, também me lembro do Cónego Jacinto, que teve muita influência no Liceu Domingos Ramos. O padre Pimenta foi outro caso. São pessoas que estiveram na formação de muita gente e gerações em Cabo [ 163 ]


Verde. Transmitiram valores. Os padres salesianos e capuchinhos. A maior parte dos governantes que estiveram em 1975 até esta altura, claro, uns menos que outros, mas todos acabaram por dar o seu contributo positivo para o desenvolvimento de Cabo Verde. É claro que haverá sempre aspetos menos bons, mas os resultados falam por si. Na minha lista incluo também os presidentes das câmaras. Por exemplo, se hoje temos na agenda a questão da habitação social, o Jacinto Santos deu um grande contributo nisso quando foi autarca da Praia [1992/2000]. A Achada Grande Trás e a Bela Vista são bairros que ele construiu, tirando as pessoas do Tahiti. Se eu for falar com o meu filho que onde é hoje o Auditório Nacional e a Biblioteca Nacional havia um bairro degradado, chamado Tahiti, ele não vai acreditar. Se eu for falar da sociedade civil, necessariamente, tenho de mencionar a Eveline Figueiredo, a primeira presidente da Morabi. Teria de falar da Amélia Figueiredo, da Lígia Fonseca, do meu próprio nome, porque estivemos todas envolvidas na criação da Morabi. Também não me posso esquecer das pessoas que estiveram por trás da fundação do [ 164 ]

Citi-Habitat, a começar pelo falecido Elísio Rodrigues. Se formos a São Nicolau, por exemplo, e se hoje há lá uma agricultura sustentada é porque teve lá o engenheiro Bary, o engenheiro Teófilo, teve o meu pai, pessoas que foram lá ensinar como preparar a terra para a agricultura do regadio. Daqui a alguns anos, em Corda, as pessoas vão dizer, “afinal, Santo Antão tem dragoeiro”, mas quem plantou o dragoeiro? – Foi a Morabi no terreiro de Guene. Temos a Leopoldina Barreto, a Cesária Évora, é muita gente que marcou a vida e a cultura de Cabo Verde. Cada um à sua maneira, cada um na sua época, e cada um dentro da sua área. Cabo Verde é rico por aquilo que somos, e aqui ponho todos os cabo-verdianos. Se calhar, neste exercício, não valeria a pena distinguir A ou B, mas eu não gostaria de fechar esta entrevista sem dizer que todos os cabo-verdianos, de Santo Antão a Brava, sem esquecer os que estão na diáspora, damos o nosso contributo para o desenvolvimento de Cabo Verde. Todos, sem exceção, contribuímos. Mesmo com comportamento negativo estamos a contribuir, porque é do comportamento negativo que eu, enquanto governante, sou obrigado a tomar medidas que vão servir para o futuro. O processo de desenvolvimento

não é só feito com coisas positivas. É o negativo e o positivo que, em choque, nos empurra para a frente.

FUTURO E em relação ao futuro é otimista, pessimista, apreensiva?… Eu tenho algumas preocupações. Há coisas que temos de ter coragem para tomar medidas, agora, não deixar para depois. Para termos um país mais seguro, para oferecer um turismo de qualidade e concorrer com os outros países, temos que trabalhar a questão da segurança e paz. E isso passa, necessariamente, pela educação para a cidadania. Em termos de futuro, temos de trabalhar, desapaixonadamente, para a qualificação do ensino, um ensino com qualidade para poderemos exportar mão de obra qualificada para o mundo. O cabo-verdiano, como povo, não tem medo de trabalhar, é persistente, é corajoso, é empreendedor, mas tem de ser devidamente formado e capacitado. Por isso é que a qualidade da educação tem de ser melhorada. E por último, se dermos uma atenção muito especial à nossa juventude, vamos ter um Cabo Verde próspero. [Praia, 04-06-14]


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Felismina Rosa Mendes

“A imigração é muito dura” Felismina Rosa Mendes, 51 anos, natural do Tarrafal de Santiago, reside em Portugal desde os 12 anos, quando os pais se mudaram de Angola para esse país europeu, em 1975. Presidente da Associação Cabo‑verdiana de Setúbal, mãe e ativista social, ela traça nesta entrevista o retrato nada suave da imigração hoje em Portugal, sem perder de vista Cabo Verde, “terra de boa gente”.

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De Cabo Verde, suponho, deve ter sobretudo uma memória de infância, não? Tenho muito boa memória de infância, é verdade. Saí criança, mas os anos que lá vivi, na companhia dos meus avós maternos, foram essenciais para determinar hoje o que eu e os meus irmãos somos. Somos cinco – três raparigas e dois rapazes – só que Cabo Verde toca-me mais a mim do que aos outros. Aliás, de todos, eu é que vou com mais regularidade a Cabo Verde. Há anos em que chego a ir duas vezes. Esse apelo se deve a quê? Não sei. É algo muito interior, até porque não tenho familiares diretos, apenas amigos, familiares do meu marido, mesmo assim, sinto a necessidade de ir a Cabo Verde [ 168 ]

com frequência. Vou, ainda que seja por uma ou duas semanas, quando regresso aguento isto melhor. Por aquilo que vejo, você é um caso especial. Saiu criança de Cabo Verde, veio para Portugal aos 12 anos, depois de ter estado em Angola. Ser cabo-verdiana, para si, o que é? Cabo-verdiano é a identidade que nós trazemos dentro de nós. O facto de sermos cabo-verdianos, de alguma forma, é um privilégio. Comparando Cabo Verde com os outros países africanos, nomeadamente os PALOP – apesar de não passarmos daqueles 10 grãozinhos no meio do oceano – não nos podemos queixar muito. Logo à nascença já fomos privilegiados, por exemplo, pela educação, o que nos

diferencia das outras Áfricas. Somos fruto daquilo que os nossos pais foram nos passando, o sentimento de pertença, a responsabilidade, enfim, tudo que seja a matriz cabo-verdiana. Cabo Verde tem características muito definidas e, depois, nas nossas andanças, nós nos misturamos com as outras culturas. Havendo uma boa passagem da matriz cabo-verdiana, ela ficará dentro de nós para toda a vida. Por exemplo, eu vivo em Setúbal, gosto de Setúbal, mas também estou bem em Cabo Verde. Mais do que isso, sinto a necessidade de ir a Cabo Verde com regularidade. O meu sonho é acabar os meus dias no Tarrafal. Mais do que os meus pais, eu tenho um sonho de emigrante diferente. A minha mãe não tem expetativa de voltar para Cabo Verde, não tem familiares


diretos, era filha única. Desde que de lá saiu, só voltou uma única vez, em 2005, comigo. O meu pai vai também com regularidade, passa lá largas temporadas, tem lá vários familiares. No meu caso, é mesmo afinidade com Cabo Verde. E como surgiu o seu envolvimento com a Associação dos Caboverdianos de Setúbal? Surgiu um pouco por acaso. Eu já conhecia a associação há muito tempo, seguia o que ela ia fazendo, mas nunca me envolvi, porque achava que as dinâmicas não combinavam muito com a minha forma de estar na vida. Eu sou muito acelerada naquilo que faço e a associação, tendo ela nascido de uma comissão de moradores do bairro, na década de oitenta, a dinâmica dela era muito ao ralanti. Em 2000, houve um caso muito mediático, o assalto à atriz Lídia Franco, e uns jovens de Setúbal foram apontados como sendo os autores disso. Veio um grupo de dirigentes associativos de Lisboa, munido de um advogado, para prestar solidariedade e ajudar a associação naquilo que fosse preciso para defender os jovens. Ficou provado que os jovens não tinham nenhuma ligação ao assalto. Entretanto, tendo nós ficado atentos à situação desses jovens, descobrimos depois que eles estavam já indiciados em outros crimes e práticas. Por acaso, fui convidada para a reunião porque a Associação de Setúbal teve o cuidado de convidar moradores do bairro e foram os dirigentes de Lisboa que lançaram o desafio, por que não ter a Felismina nas fileiras da Associação? Foi o Mário Andrade, o Mário Moreira, o Francisco Tomar, e várias outras pessoas, que me convenceram a abraçar a causa. Depois, analisando a situação, e vendo que muitos desses jovens eram da idade dos meus filhos, amigos deles inclusive, resolvi entrar. Percebi que alguma coisa ia mal com a nossa juventude aqui. Entrei em 2000, como segunda secretária, e um ano depois foi proposto que eu assumisse a vice-presidência. Entretanto, em 2002, houve um outro caso mediático, a morte do jovem Tony pela polícia, aí sim entrei de alma e coração.

Conseguimos uma sede, este espaço onde hoje estamos, era o Carlos Sousa o presidente da câmara, ele percebeu que sem um espaço não poderíamos fazer qualquer tipo de trabalho. Uma das minhas metas é que devia haver eleições, entendia que uma associação cujos membros se autonomeavam não podia ser. Em 2004, houve eleições, com três listas, a minha acabou por passar. Até hoje não consigo sair, temos muita gente, mas falta confiança aos outros dirigentes para assumir a liderança desta casa. No dia 9 de Março houve eleições a que só concorreu uma lista.

Vocês são quantos na Associação? Nos corpos sociais temos 12 ou 15, além de uma bolsa de voluntários, para manter esta casa. Temos monitores contratados, técnicos, professores, estudantes voluntários. Os nossos monitores são alunos que frequentam o Instituto Superior Politécnico de Setúbal. Alguns vieram de Cabo Verde e aproveitamos a presença deles para uma intervenção no bairro. Temos grupos de trabalho que funcionam sempre que necessário. Por isso, mesmo sem dinheiro, a nossa associação consegue realizar atividades contínuas durante o ano. São quantos os cabo-verdianos estimados nesta zona de Setúbal? Ninguém tem a certeza. Há uns anos atrás andávamos à volta dos 20 mil. Só aqui, na Belavista, temos cerca de mil famílias, 700 são cabo-verdianas, cada agregado são quatro a cinco pessoas, portanto, contas feitas são mais de 3 mil.

A imigração é muito dura. As pessoas chegam aqui e perdem o chão, perdem as raízes.

Quais são os problemas mais graves dos cabo-verdianos em Setúbal? O problema mais grave é o desemprego de longa duração. Antigamente, tínhamos crises na construção civil – o grosso dos nossos trabalhadores opera nesse setor– mas ainda as mulheres iam tendo trabalho e com isso iam segurando a família. Agora, com esta crise por que passa Portugal, as mulheres foram as primeiras a serem dispensadas pelas famílias que as empregavam. Com a construção completamente parada, temos muitos cabo-verdianos desempregados no concelho. Paralelamente a isso, temos o problema da juventude. É uma juventude desocupada, sem documentos, com baixa escolaridade, e que não conseguimos ter programas de fazer quebrar o ciclo reprodutivo dos modelos. As associações tentam, por vezes, fazer o que podem, mas temos a noção clara que são paliativos, que não nos vão levar a lado nenhum. Aqui o problema é realmente grave e preocupante. Essa nova geração ainda é caboverdiana, ou já é portuguesa, e como tal gente com problemas comuns aos portugueses? Eu tenho por mim que esses jovens são portugueses. Portugueses [ 169 ]


indocumentados. Eles nasceram cá, não conhecem Cabo Verde, há gente que chega aqui na Associação, com 21 anos, 25 ou mesmo 29, só com cédula pessoal e com uma formação entre o sexto e o nono ano. Diante disso, temos de parar e concluir que algo vai mal. Esse fracasso imputa a quem? A todos nós. Todos temos de fazer aqui um mea culpa e, mais do que isso, é preciso nos interrogarmos sobre o que estamos a fazer para quebrar esse ciclo reprodutivo de que o indivíduo que nasce num bairro social tem de ser pobre e tem que continuar a viver num bairro social. Não estamos a saber passar para os nossos filhos o sonho de que é possível chegar mais longe, de que é possível sair deste ciclo. São poucos os nossos jovens que conseguem chegar ao ensino superior. Na sua opinião, porque é que as famílias falharam na formação da nova geração? A família cabo-verdiana em si falhou por causa da imigração. A imigração é muito dura. As pessoas chegam aqui e perdem o chão, perdem as raízes. Os adultos saem do bairro às sete horas da manhã, às seis, por vezes; deixam as crianças entregues na creche por um vizinho, por um filho mais velho, voltam ao anoitecer, portanto, 12 ou 14 horas, essa criança esteve à deriva, praticamente sozinha. O quadro aqui é diferente de Cabo Verde, onde, quando o adulto sai do bairro ou do meio onde vive, há centenas de adultos que estão com olhos na criança. Aqui ninguém cuida de filho de ninguém. As crianças fazem-se adultos sozinhas. E como o horizonte delas é muito limitado, elas acabam, muitas vezes, por se fazerem adultos nos próprios bairros onde vivem, um mundo periférico, de onde não conseguem sair. Como mudar isso? Antes de mais, seria necessário um grande investimento nas famílias. Que elas voltassem a ter um papel educador, de transmissão de valores e sobretudo tempo para os filhos. Que não tivessem necessidade de trabalhar [ 170 ]

tanto tempo e mais tarde dar-se conta que perdeu o filho para a delinquência, para a droga e outros males.

Gastam-se, ou foram gastos, milhares e milhares de euros nas associações que atuam na Belavista e no entanto nada muda. Hoje, na minha opinião, Belavista está com mais problemas do que na década de oitenta.

Como ativista social, encontra esse tipo de preocupação, primeiro, nas autoridades portuguesas e, segundo, nas cabo-verdianas? As preocupações das autoridades portuguesas em torno deste assunto são momentâneas. Há um pico de tensão, elas voltam o seu foco para a Belavista, acalmando, tudo é de novo esquecido. Faltam medidas de fundo. Isso também em relação às autoridades cabo-verdianas? Não lhes compete tomar uma posição neste caso. Os jovens são portugueses, embora sejam nossos filhos, por isso, biologicamente, são cabo-verdianos. Mas, sinceramente, mesmo assim, não sei se Cabo Verde tem muito a fazer. Desde logo, a conjuntura caboverdiana não permite grandes coisas. Mas uma coisa é certa, Cabo Verde deveria ter aqui algum tipo de apontamento que pudesse traduzir em benefícios à comunidade, um maior investimento nas associações em Portugal, nomeadamente na Federação das Associações Cabo-Verdianas. Temos cerca de 70 associações e fica difícil um Estado como Cabo Verde apoiar 70 associações, mas, à medida que foi incentivada uma federação, o caminho estaria aberto para uma relação mais próxima com Cabo Verde. E eu não sinto isto. Por que diz isso? Acabo de assumir a presidência da federação e constato que não há uma relação efetiva e eficaz entre nós e Cabo Verde. E ironia, Cabo Verde até ajudou, financeiramente, na constituição dessa federação, mas não havendo uma relação efetiva é investimento deitado fora. O que é preciso para reverter este quadro? Antes de mais, vontade política dos governos dos dois países, no sentido de que é preciso tomar uma medida estruturante para depois, daqui a alguns anos, ver se isso surtiu efeito ou não. Gastam-se, ou foram gastos, milhares e milhares de euros nas


associações que atuam na Belavista e no entanto nada muda. Hoje, na minha opinião, Belavista está com mais problemas do que na década de oitenta. Com a crise, muita gente se habituou a ficar sentada em casa à espera que as soluções vão ter com elas. Gastou-se por gastar em formações improvisadas, na lógica de que era preciso gastar o dinheiro da União Europeia e o resultado está à vista, um marasmo total. Os subsídios sociais, ainda que poucos, é dinheiro que sai dos cofres do Estado e um dia acaba. A Belavista é o espelho do fracasso da integração dos cabo-verdianos em Portugal? Eu não diria isso. Há um fracasso nacional, por assim dizer, em alguns bairros. Portugal tem uma boa política de integração, principalmente a partir dos anos noventa, altura em que põe na sua agenda a questão da imigração. Antes disso, como não havia uma política, cada um tratou de se integrar da melhor forma que pôde. E, quando surgiu uma política de bairros sociais, as pessoas foram transportadas das barracas para os prédios sem um acompanhamento, sem um trabalho prévio. Tudo isso contribuiu para aquilo que as pessoas são hoje nos bairros sociais. Do meu ponto de vista, não se pode investir sem cobrar responsabilidades ou sem uma orientação. Diante do quadro que me traçou, sou levado a concluir que os cabo-verdianos vivem aqui sem perspetivas de futuro. Estou certo? Estamos um pouco resignados. Isto é, não temos grandes ilusões de que o futuro pode ser melhor do que o presente neste momento. A tendência é piorar com o passar dos anos. Mesmo assim, e porque faz parte da nossa identidade, a comunidade cabo-verdiana acredita que é possível ultrapassar as dificuldades. Em Cabo Verde não chove, mas todos os anos as pessoas semeiam na expetativa que caia um pouco de chuva. A diáspora é também um pouco isso. Vivemos na esperança de que alguma janela se abra e haveremos de saber aproveitar a oportunidade.

PAPEL DA DIÁSPORA Uma das perguntas do meu roteiro é qual o papel que a diáspora pode representar no desenvolvimento de Cabo Verde. A diáspora sempre contribuiu para o desenvolvimento de Cabo Verde. Quando enviamos as nossas remessas para as nossas famílias estamos a contribuir para o desenvolvimento de Cabo Verde. Nem sempre as pessoas têm noção disso. Aquilo que o Estado não gasta com uma família, porque quem está no exterior está a apoiar, é um contributo indireto ao Estado. Ainda que não concorde com aquele sistema de hiaces, cada pessoa que põe uma daquelas viaturas para transportar pessoas está a contribuir para a rede de transporte de passageiros e mercadorias. E outras coisas. Seria bom o Estado valorizar um pouco mais essa relação das remessas, ou orientar a nossa comunidade para um investimento maior ou melhor, nomeadamente através de pequenos investimentos. Mesmo com a crise na Europa, as remessas continuam a entrar em Cabo Verde. Só por isso o Estado devia ser um pouco mais inteligente numa melhor captação dessas remessas para outros investimentos. Entende então que as autoridades não veem a emigração como um setor estratégico para o desenvolvimento de Cabo Verde? A meu ver, não. Cabo Verde devia tirar maior partido da sua diáspora. De que forma? Orientando ou direcionando os cabo-verdianos para um melhor investimento no país. Andamos de costas viradas, nós que lá estamos e os que estão fora? Isso eu não digo. Mas há coisas simples que podem ser feitas e não são. Nós vemos o que as outras comunidades fazem para rapidamente captar esse recurso, criando, por exemplo, empresas de transferência de dinheiro, na hora, a baixo custo. É por isso que o cabo-verdiano continua a enviar dinheiro no bolso das pessoas. Faltou aqui uma estratégia de captação.

Mas isso não deveria ser iniciativa privada, por exemplo dos bancos? Poderia ser. Mas quando o privado não tem esse tipo de iniciativa o Estado deve, imediatamente, fazer ele próprio ou levar o privado a fazer. É Cabo Verde que perde. Temos aquele mercado de câmbio na Praia porque o dinheiro vai no bolso da pessoa. É mau para Cabo Verde ter aqueles cambistas na rua a vender e a comprar divisas como se isso fosse a coisa mais normal deste mundo. À distância, como é que você acompanha a vida em Cabo Verde? No meu caso pessoal, leio os online sempre que tenho tempo. A nível da Federação há uma rádio – “Cabo Verde na Horizont” – mas essa rádio vive no meio de inúmeras dificuldades para pagar o jornalista, por exemplo. Essa rádio chegou a solicitar o serviço da Inforpress mas o preço cobrado não nos dava para pagar. Portanto, Cabo Verde (o Governo) tem ele próprio de estar atento a esse tipo de apontamento. É do interesse de Cabo Verde que os seus cidadãos na diáspora saibam o que se está a passar na terra-mãe.

ESTADO, “PARAR É COMPLICADO” Há em Cabo Verde hoje em dia um debate sobre a reforma do Estado. Como cidadã que está na diáspora entende que o Estado deve ser reformado? Entendo que sim, porque parar no tempo é complicado. Há muitas coisas em Cabo Verde que devem ser alteradas. Se me perguntar de que forma? Respondo que os políticos, os entendidos no assunto, é que devem propor essas reformas. Todavia, como cidadãos, sentimos que há coisas que podem ser alteradas. Se calhar devemos ter políticos mais estadistas, com mais sentido de Estado, e que pensem algumas questões não a médio prazo, mas a longo prazo, de forma que possa trazer algum beneficio em Cabo Verde. A diáspora cabo-verdiana na Europa está representada no Parlamento por dois deputados. Entende que esse nível de representação é bom? Eu tenho sérias dúvidas sobre isso. Sou amiga pessoal de um dos deputados, [ 171 ]


mas tenho dúvidas no que consiste a nossa representação no Parlamento. Nós não temos feedback daquilo que se passa em Cabo Verde, de que forma esses deputados nos representam. Eu, enquanto dirigente, em Setúbal, nunca recebi a visita de nenhum dos dois deputados pela Europa. Quem diz eu diz outras associações e pessoas. Eleger dois deputados para ficarem sentados em Cabo Verde dificilmente nos poderão representar. Aí está um problema de reforma do Estado… (risos) Portanto, temos de ver e perceber onde andam as falhas do nosso Estado para poder corrigir. Por si só este é um problema com alguma gravidade, deputados desgarrados dos seus representados… Eu penso que sim, mas quem sou eu? Você é cidadã. (risos) Uma cidadã isolada. Isolada mas que lida com milhares de cabo-verdianos. Por isso a sua opinião não é de minimizar. Admito que sim. Entendo que os deputados podiam fazer um pouco mais, viajar um pouco mais, para auscultar os nossos problemas. Enquanto dirigentes associativos nós nos sentimos meio abandonados por Cabo Verde. O nosso trabalho aqui é feito em horário voluntário, é tempo que retiramos às nossas famílias, é claro que não esperamos retribuições pelo que estamos a fazer, porque estamos a fazê-lo por gosto, mas às vezes um pouco de atenção do Estado de Cabo Verde sobre as atividades que temos junto das nossas comunidades saber-nos-ia bem. Felizmente, a um certo nível, há responsáveis – por exemplo o Primeiro-ministro ou o Presidente da República – que, cada vez que saem, procuram visitar as comunidades, isso é bom. É um gesto, mas só isso não chega. É preciso estar atento ao que se passa connosco, estar atento aos nossos avanços. Por exemplo, temos aqui na associação um gabinete de apoio consular, que foi criado na altura do embaixador [ 172 ]

Onésimo Silveira, inaugurado pelo então ministro Victor Borges. Depois do Onésimo, veio o encarregado de negócios Daniel Pereira, veio o embaixador Arnaldo Andrade, o gabinete funcionou plenamente, com uma ajuda de nove mil euros para o pagamento da funcionária. Esse gabinete tem um orçamento de cerca de 11 a 13 mil euros/ano, o Estado de Cabo Verde só nos dava 9 mil. Esse gabinete funcionou de 2004 a 2011 gratuitamente para as pessoas. Em 2006, criou-se um orçamento provisório, foi-nos dito que o embaixador que viesse depois haveria de orçamentar ou resolver o problema. Nada disso foi feito e continuamos a prestar esse serviço para os cabo-verdianos de Setúbal não terem que se deslocar a Lisboa para tirar um documento. Chegou a nova

embaixadora – Madalena Neves – cortou definitivamente a verba. Temos uma dívida para reaver de quase 15 mil euros, não vemos quando é que a embaixada nos vai reembolsar. Nós mantivemos a funcionária a trabalhar até há um ano atrás, e para não contrairmos dívidas com a segurança social tivemos que despedir essa pessoa porque, entretanto, a situação tornou-se insustentável, ao fim de um ano sem receber as verbas da embaixada. Falou-se com o Primeiro-ministro, com a Ministra das Comunidades, sempre na presença da senhora embaixadora, ela diz que não tem dinheiro e a resposta que temos de Cabo Verde é que isto é um assunto da embaixada e a embaixada tem que resolver. Estamos com o serviço suspenso há mais de um ano, daqui a pouco dois anos, um


Verde, mas é preciso que Cabo Verde tenha um olhar sobre nós. Não adianta continuarmos se Cabo Verde não reconhece que estamos a fazer um trabalho válido.

serviço que foi criado e cujo modelo poderia ser espalhado por Portugal, no entanto, estamos parados por falta de uma resposta das autoridades caboverdianas. Penso que, neste caso concreto, o Estado de Cabo Verde falhou connosco e com a comunidade de Setúbal. Uma pessoa aqui para ir a Lisboa, à embaixada, só em transportes gasta cerca de 25 euros. E se tiver que levar filhos gasta outro tanto. Por que razão o Estado de Cabo Verde permitiu que nós suspendêssemos esse gabinete por uma questão financeira? Por quê este silêncio de quase dois anos de uma dívida que a embaixada tem connosco e os responsáveis em Cabo Verde não fazem nada? São por estas pequenas coisas que Cabo Verde, por vezes, falha. Nós estamos cá prontos para ajudar Cabo

Diga-me, este caso decorre de um problema institucional, que se passa também com outras associações, ou é um caso isolado? Não sei o que se passa com as outras associações. Apenas sei que este é um gabinete inaugurado por um MNE de Cabo Verde, presta serviços à nossa comunidade e não deveria ficar nesta situação. Somos um gabinete comparado a um consulado honorário. Temos em Setúbal um cônsul que não apita nada, por isso é que se avançou para esse gabinete, como forma de resolver os problemas da comunidade, mas o Estado deixou-nos na mão. Enquanto isso a nossa embaixada está tranquila e confortavelmente instalada no Restelo, sem dialogar conosco. Mas o que mais nos custa é o silêncio tanto do Primeiro-ministro como da ministra das Comunidades, do Ministério dos Negócios Estrangeiros que pediu autorização a Portugal para a criação desta valência em Setúbal. Estamos à espera. E ainda acreditamos que as coisas se resolverão com o diálogo, porque foi através do diálogo que conseguimos criar este gabinete, no qual Cabo Verde investiu mais de 11 mil euros na decoração para termos um lugar digno para atender a nossa comunidade e depois, no fim, joga-se a água do banho com o bebé dentro. Não entendemos.

(IN)SEGURANÇA E CORRUPÇÃO Já me disse que vai sempre a Cabo Verde. Que ideia tem de Cabo Verde hoje? (Silêncio.) Entre o Cabo Verde da sua infância e o de hoje que ideia faz? Um Cabo Verde muito bom, desenvolvido, com muitas infraestruturas, um sítio onde eu poderia viver tranquilamente, mas que me preocupa a onda de criminalidade e algumas questões que o país está a deixar alastrar ou fugir entre os dedos. O problema

da segurança devia ser prioritário na nossa agenda política. Se Cabo Verde quer atrair turistas não podemos ter casos como as mortes das italianas no Sal. Cabo Verde é hoje um exemplo, pelo menos, para a África e não podemos admitir certas situações. Para si, a segurança é o principal problema de Cabo Verde? Sim, a segurança e a corrupção são dois males que, se não forem tratados, podem manchar e corroer todo o sistema que levamos todos estes anos a erguer. Todos os dias recebemos notícias de pessoas que foram assaltadas à porta de casa e a gente pergunta por que não se resolve o problema, por que é que isso acontece?… Cabo Verde é tão pequenino, uma rusgazinha, acredito, punha toda a gente alinhada. Mas para isso é preciso vontade política para se resolver esta questão antes que seja tarde. O Estado não pode proteger os delinquentes em detrimento dos cidadãos, dos contribuintes. No dia em que os delinquentes não nos encontrarem nas ruas, porque toda a gente começa a recolher-se cedo, eles vão entrar nas casas. O pior é que se as pessoas de bem reagem, defendendo-se, elas são presas e os delinquentes soltos.

40 ANOS, “GANHAMOS MUITO” Nestes quase 40 anos, quais são os principais ganhos de Cabo Verde? Nós ganhámos muito, na educação, na saúde, nas infraestruturas, na nossa relação com o exterior, portanto, não se pode negar que esses 40 anos foram muito bem conseguidos. É claro que há um apontamento ou outro, é da própria vida dos países, porque nem tudo são rosas. Somos um país pequeno, no início com inúmeros problemas, por isso o que se faz salta imediatamente à vista, ao contrário, por exemplo, de Portugal, onde as coisas ficam diluídas. A si o que lhe chama mais atenção? Eu tenho uma grande mágoa em relação ao meu Tarrafal. Investiuse pouco no concelho. E estamos tão próximos da Praia. Por altura da independência, éramos uma vila [ 173 ]


com tudo para ser a segunda cidade de Santiago e hoje somos uma das últimas. Tarrafal foi remetido ao esquecimento. Porquê, não sei. Mas o problema não é só do Tarrafal, no cômputo geral, há ilhas que não se desenvolveram. O desenvolvimento foi desigual em Cabo Verde? Claramente desigual. É claro que o dinheiro deve ter sido pouco, mas devíamos ter ido de ilha em ilha cobrindo as necessidades. Temos ilhas ainda hoje onde o acesso à saúde é limitado, a mesma coisa com a educação. Temos estado a caminhar, mas ainda temos muitas desigualdades nas ilhas. E como hoje se fala na regionalização, este é um desafio que se nos coloca, até porque, pela nossa própria natureza, estamos regionalizados. Só que quando se discute essa questão da regionalização o problema coloca-se logo entre Praia e São Vicente. Eu não acredito que o Maio queira ser regionalizado com as condições que tem. A Brava, a mesma coisa.

REGIONALIZAÇÃO, “FIQUEM QUIETOS” Então não vê a regionalização como uma solução possível para os problemas de Cabo Verde? Não. Isso não é solução sem antes estarem resolvidos os problemas de infraestruturas capazes de gerarem economia. Mas há quem ache o contrário, que, com a regionalização, esses défices serão resolvidos. É uma opinião. (risos) Nós podemos todos achar, aliás, somos todos uns achistas. O que mais fazemos é achar. Mas eu tenho as minhas dúvidas. Por exemplo, temos problemas com a evacuação dos doentes, de ilha para a ilha; será que as ilhas, de forma autónoma, conseguiriam gerar riquezas para fazer face àquilo que o Estado central ainda não conseguiu? Aqui em Portugal referendou-se a regionalização e não se conseguiu. Por isso é que peço a sua opinião. Os cabo-verdianos que fiquem quietos, a regionalização não resolve problema [ 174 ]

nenhum de Cabo Verde. Não inventem modas onde elas não existem. Teremos todos a ganhar se continuarmos como estamos, mas tendo sempre em questão que Cabo Verde são dez ilhas, todas têm direito ao desenvolvimento, além disso, geograficamente, já temos duas regiões, Barlavento e Sotavento. Mas isso é ou não regionalização? Geograficamente sim, mas na prática não, porque o que vemos é Praia e Mindelo. O resto é paisagem.

… quando se discute essa questão da regionalização o problema coloca-se logo entre Praia e São Vicente. Eu não acredito que o Maio queira ser regionalizado com as condições que tem. Brava, a mesma coisa.

Essa disputa está transferida para Portugal entre a nossa gente? Apenas no meio de alguma elite é que se pode sentir isso. Temos associações claramente elitizadas que fazem questão de mostrar “nós temos berço” (risos) mas que, por causa disso, não funcionam, acabam por ficar isolados, são os antigos alunos do Liceu Gil Eanes, parece que só eles é que passaram pelo liceu, esquecem-se que houve liceu na Praia, acham que depois deles o liceu de São Vicente fechou, mais ninguém entrou. Há coisas que gente como eu não entende nessa nossa caboverdianidade. Mas temos que respeitar, são pensamentos…

INTEGRAÇÃO DE CABO VERDE Como vê Cabo Verde no contexto mundial? Por exemplo, a nível subregional. Quero que Cabo Verde consiga tirar partido das integrações que existem, porque sendo Cabo Verde o que é, um país pobre, só podemos servir como exemplo e depois beber um pouco o que os outros países têm. São bem vindas as vizinhanças, as parcerias, podemos sempre beneficiar com isso. Quanto mais não seja, acenarmos com a nossa bandeirinha, “olhem é possível”, isso principalmente em relação aos nossos parceiros e irmãos africanos. Enquanto cabo-verdiana, como vê que as pessoas de outras nacionalidades a apreciam aqui? Os povos das ilhas têm o espírito de serem os cidadãos do mundo. Abstraiome do que é ser cabo-verdiana, ser portuguesa, e procuro estar bem comigo mesma onde quer que eu esteja. Procuro ser igual ao outro.


Você não faz a sua afirmação por ser cabo-verdiana? De todo não. Eu afirmo-me enquanto ser humano, enquanto mulher, enquanto líder associativa. Ser caboverdiana é só um apontamento. Quero que as pessoas me respeitem por aquilo que eu sou, no que posso contribuir para esta sociedade.

FIGURAS, “ORGULHOSA DE TODOS” Na sua opinião, nestes quase 40 anos, quem são as figuras que mais marcaram Cabo Verde? Todos os nossos políticos deram o seu contributo, a mesma coisa os nossos artistas, académicos, etc. Cabo Verde é uma terra de boa gente. Eu me orgulho

de todos os meus compatriotas. Cada um, na sua especificidade, me deu orgulho do percurso destes 40 anos. Quando ninguém acreditava que fosse possível, nós acreditamos e hoje estamos a dar cartas. Eu gosto de Cabo Verde no seu todo. Cabo Verde é um mundo, podemos encontrar tudo nele, e é precisamente isso que mais me atrai nele. Eu mudo de registo. Nestes 40 anos, a nível do associativismo, quem são as figuras que mais contribuíram para o associativismo cabo-verdiano ser o que é hoje em Portugal? Eu, pessoalmente, costumo analisar o passado para melhor me posicionar no presente. Mas se tivesse que

apontar alguém que ajudou a despertar em mim o bichinho do associativismo, eu apontaria o Mário Andrade. Foi ele quem acreditou em mim. Aliás, daquele grupo de dirigentes que veio de Lisboa para nos ajudar aqui, em Setúbal, foi o único que continuou a nos acompanhar. Se hoje sou a dirigente que sou, devo-o ao Mário Andrade. Ele acreditou que eu era capaz de fazer um percurso. E aqui estou, a ponto de você se lembrar de mim para esta entrevista cuja finalidade espero ser útil para a resolução de alguns dos nossos problemas. Caso contrário, é apenas mais uma conversa. [Setúbal, 27-03-14] [ 175 ]


Luiz Andrade Silva, 71 anos, natural de São Vicente, sociólogo e historiador, radicado há mais de 40 anos em França. Há muito se ocupa da emigração, com escritos sobre o assunto. “Cabo Verde não pode continuar a viver de costas para a sua emigração”, adverte.

Luiz Silva

“O emigrante é que é o herói de Cabo Verde” [ 176 ]


Como é que a emigração entra na tua vida? Nos anos cinquenta, a minha mãe emigra para o Senegal. Além de ajudar na minha educação, tudo fez para que eu fosse ter com ela. Até que um dia, em conversa com o Rito Alcântara (uma figura muito conhecida em Dakar), ele a aconselha a deixar-me em São Vicente. Comigo já a trabalhar na função pública, ela ainda tentou que eu fosse para o Senegal, só que nessa altura já havia uma outra corrente migratória para a Holanda, Bélgica, etc. e eu mesmo conclui que essa nova emigração seria melhor para mim. Mas antes de emigrares, qual era a tua vida em Cabo Verde? Antes de emigrar, trabalhei primeiro na Administração Civil em São Vicente, depois no Maio e na Praia, onde aprendi também muito sobre a emigração. Era na administração que se faziam os passaportes e eu via a luta que era preciso travar para se ter um tal documento e com ele embarcar. Em São Vicente, vi como o falecido Luís Silva Rendall, com quem trabalhei, se empenhava para que qualquer caboverdiano que lhe fosse bater à porta tivesse o seu passaporte, expondo-se inclusive à ira da PIDE. No Maio, o administrador Adalberto Lopes de Oliveira já tinha o seu discurso para o candidato à emigração. Na hora, ele oferecia terrenos e outros serviços, “tu vais, mandas dinheiro para teres o teu terreno, tens de investir na tua terra, é bom… Lembra que tens esta e esta obrigação, precisando, a câmara está aqui para te ajudar”, etc. Em São Vicente, havia os comerciantes – nho Matejim, Manuel de Matos, o Celso Leão – que cedo começaram a apostar na emigração. O Constantino, filho do nho Matejim, um dos 12 primeiros cabo-verdianos que nos fins dos anos cinquenta chegaram à Holanda, teve a preocupação de escrever dando novas da vida na Holanda, mandando buscar outras pessoas. Eu estava ligado a todas essas pessoas. De modo que, influenciado, comecei também a pensar em ir para a Holanda. Mas quando cheguei a Paris encontrei a minha irmã mais velha,

Maria Antonieta Silva, passei uns dias com ela, gostei tanto de Paris, que me deixei estar. E aqui estou até hoje.

verdadeiramente África. E foi também do instituto Lagrange que me lancei na vida associativa.

Mas por quê? Estávamos em 1968, apanhei com o Maio de 68, fiquei entusiasmado, passei a ler o Le Monde todos os dias. Eu queria compreender os problemas. Naquela altura, havia em Paris várias comunidades imigradas. Fui acumulando experiência com os portugueses, com os jugoslavos, com os marroquinos, etc. Era uma imigração ativa.

SOLIDARIEDADE CABO-VERDIANA

VIDA D’ UM EMIGRANTE Diz-me o seguinte, vens para Paris como trabalhador braçal ou em busca de uma formação universitária? As duas coisas. Em primeiro lugar, eu queria trabalhar para financiar os meus estudos, à semelhança daquilo que alguns colegas estavam a fazer na Bélgica. Começando a trabalhar e, frequentando a Alliance Française, fiz um curso médio, depois conheci o Vitex, um grande pintor de Angola, que um dia me disse: “Luiz, porque não te inscreves numa universidade?”, eu disse-lhe “eu não tenho tempo”. Ele insistiu, um dia fui com ele, me inscrevi, fiz os testes e lá comecei. Como o Vitex se interessava pela sociologia das artes, também fiz a mesma coisa. Dois anos depois, ganhei uma bolsa das Nações Unidas com duração de dois anos. Foi nessa altura que eu recebi um estágio no Instituto Léo Lagrange (ligado ao Partido Socialista) sobre a emigração e a cultura. Aí, nesse instituto, vim a conhecer todos os jovens turcos do PS. E foi lá que começamos a refletir sobre os problemas económicos, os problemas da emigração, etc. Havia um outro interesse meu que era a história de África, coisa completamente desconhecida em Cabo Verde e mesmo aqui em França. Entrei na Sorbonne, no centro de Recherches Africaines, onde passei a me interessar mais profundamente sobre a emigração, porque passei a trabalhar com as comunidades africanas. Foi nisso que comecei a compreender

O que vos leva a dar esse passo? Os cabo-verdianos, na Holanda, tinham criado a sua associação. Eu, o Tchalé Figueira, o irmão dele, o Manuel, mais o [Francisco] Fragoso e outros rapazes resolvemos criar uma associação, na rua de Flandres. Conseguimos alugar uma cave e, com as quotizações, subimos de piso. Aliás, o nosso projeto era tomar todo o prédio e fazer dele uma casa de caboverdianos em Paris, à semelhança do que já tinha sido feito na Holanda. Esse movimento associativo começou a alargar-se por toda a França, para Famec, Marselha, etc. Numa primeira fase, era a defesa e a afirmação da nossa identidade cultural, principalmente, porque Cabo Verde era muito pouco conhecido. Havia também um trabalho de consciencialização política que se fazia em que o primeiro critério era ser cabo-verdiano e depois que cada um fizesse a escolha que entendesse. Havia muitos cabo-verdianos aqui nessa altura? Quando aqui cheguei havia sobretudo mulheres. À semelhança da Itália, a nossa emigração para a França começou pelas mulheres. Elas tinham vindo do Senegal, com as suas patroas e aqui chegando começaram a mandar buscar a família. Havia também uma comunidade, essa masculina, em Famec, Moselle. Muitos não tinham conseguido emprego nos barcos na Holanda e por isso foram tentar a sorte na siderurgia. Aliás, foi lá que o PAIGC foi recrutar vários cabo-verdianos para a luta, como sabes.

SER CABO-VERDIANO, “UMA MANEIRA ESPECIAL” Neste contexto multinacional, para ti, o que é ser cabo-verdiano? Normalmente, onde o cabo-verdiano chega, basta serem dois, para Cabo Verde existir. O cabo-verdiano já emigrou com uma identidade e com uma nação. Muita gente reclama que [ 177 ]


o cabo-verdiano não se integra, onde chega cria o seu bloco. Assim é porque já levávamos conosco uma identidade que não se dilui. Nos EUA, em Angola, no Senegal, em Portugal, Holanda, onde quer que estejamos, somos claramente uma comunidade única, especial. Mas para ti, o que é que define ou carateriza a identidade caboverdiana? A língua, a música, a nossa solidariedade. Ser cabo-verdiano é uma maneira de estar muito especial. Um exemplo, como é que a comunidade cabo-verdiana surge na Holanda? São doze indivíduos que lá chegam e começam a organizar-se. E é por causa da nossa caboverdianidade arreigada que essa comunidade vem a ter problemas com o PAIGC, mais tarde, por causa da unidade com a Guiné e depois o partido único. Podem retirar tudo ao cabo-verdiano menos a sua identidade, porque ele lutou por ela. Isto é uma conquista que ninguém lhe tira.

SÃO VICENTE, UMA “ILHA DE LIBERTAÇÃO” Sendo o Luiz natural de São Vicente, de que forma a cultura sãovicentina, se existe, se alastrou por Cabo Verde? A cultura de São Vicente existe e está baseada no Porto Grande. Nenhuma outra ilha em Cabo Verde tem a sua vida tão marcada pelo porto. O porto permitiu, primeiramente, que gente das outras ilhas se fundissem em São Vicente, embora seja fácil identificar as origens de cada uma das ilhas em São Vicente, em função dos bairros, mas lá chegando toda a gente se define como sendo de São Vicente porque a ilha recebe e absorve. Aliás, é difícil encontrar alguém que seja exclusivamente de São Vicente. Sim, porque somos uma ilha de povoamento recente, que começou com a instalação dos ingleses. E nisso há que dizer o seguinte: é em São Vicente que o cabo-verdiano se liberta, porque é em São Vicente que o caboverdiano conhece o salário. Os caboverdianos vinham das ilhas e em São [ 178 ]

Vicente tornavam-se autónomos. Por exemplo, desde 1900 que surgiram os sindicatos nas companhias inglesas. É preciso ver que Cabo Verde teve um período da monarquia constitucional que produziu homens como José Lopes, Eugénio Tavares, entre outros, que lutaram para a afirmação da nossa caboverdianidade. A caboverdianidade não é um produto nem da Claridade nem do PAIGC/CV. É algo que vem de muito antes. E isso foi importante porque, quando saímos para o mundo, os mindelenses já tinham uma base organizativa. Com os ingleses aprendemos a nos associarmos, com clubes disto e daquilo. Não é por acaso que o futebol surge primeiro em São Vicente e é depois levado para as outras ilhas, inclusive Santiago. É graças a isso que surge a emigração para a Holanda e aqui, chegando, surgem associações, equipas de futebol, etc. O modelo de vida mindelense espalhou-se depois por todas as ilhas.

40 ANOS: “PODÍAMOS ESTAR MELHOR” Hoje, à distância, como é que vês o desenvolvimento de Cabo Verde? Sem dúvida que Cabo Verde tem progredido, mas podia estar melhor. Cabo Verde ainda não conseguiu fazer um inventário de todas as capacidades que tem fora do país. Somos um país que sempre funcionou de fora para dentro. São os emigrantes os primeiros a pensar na independência. Estando no Senegal, os cabo-verdianos assistem ao movimento da independência e logo começam também a se organizar nesse sentido. Isto é história, está documentado, aliás, o teu livro Os bastidores da independência fala disso. Cabo Verde tem muitos quadros de qualidade fora. Não é preciso que toda a gente entre, mas que elas estejam relacionadas com Cabo Verde. Até hoje não conseguimos criar estruturas para a emigração. Que tipo de estruturas? O Conselho das Comunidades, para dar voz aos emigrantes, ouvi-los. Infelizmente, aqueles indivíduos que

estão em Cabo Verde ainda pensam que aquilo é propriedade deles, que os emigrantes não têm os mesmos direitos. Direitos têm, Luiz. Os emigrantes têm seis deputados no Parlamento. São seis deputados escolhidos a dedo, os partidos escolhem gente que lhes convém. E muitos desses indivíduos não são representativos da emigração. Eu pergunto a qualquer um daqueles deputados qual o compromisso deles com a nossa diáspora, com qual luta dos emigrantes no passado eles estiveram ligados. A verdade é que não se criam estruturas para os emigrantes exprimirem os seus problemas. Os emigrantes e o Estado de Cabo Verde estão de costas viradas? Não digo isso, as relações hoje são melhores que no passado, mas, ainda hoje, Cabo Verde não sabe o que é emigração. As nossas embaixadas, que têm gente escolhida a dedo também, amigos deste e daquele, não têm nenhuma ligação com a emigração. Não têm propostas. O Conselho das Comunidades podia funcionar, mas não existe sequer. As decisões são tomadas sem qualquer envolvimento dos caboverdianos espalhados pelo mundo. Falta uma política para a emigração por parte do Estado de Cabo Verde? Sim, falta e ela é necessária. Desde o princípio defendi isso, mesmo contra aqueles que consideravam que os emigrantes eram perigosos. É o caso do José Brito, que chegou a dizer, na I República, em entrevista à France Culture, que os emigrantes eram perigosos porque podiam ser alienados, etc. Um indivíduo daqueles, que mal conhecia Cabo Verde, ele próprio filho de emigrantes, a pensar assim dos seus irmãos no estrangeiro. Incrível, só porque os cabo-verdianos tinham as suas reivindicações! Na época era essa a ideia dos governantes em relação aos emigrantes. OK, ainda bem que passou, é passado, mas não convém esquecer certas coisas. Mas, como eu dizia, hoje, o problema não é só a nível do Governo. O problema também se coloca a nível


dos municípios. Os municípios devem ter política de emigração. Quando o emigrante chega a Cabo Verde, no período de férias, as câmaras estão todas no horário de verão. Há uma localidade na Itália, Silviere, que, por depender da sua emigração, durante três meses do ano tudo funciona a pensar no emigrante, 24 sobre 24 horas, pondo à disposição serviços, bancos, cinemas, bares, etc. Até a igreja funciona assim, para casamentos, batizados. Em Cabo Verde é o contrário. Quando o emigrante vai a um banco, é como se tivesse ido esmolar, é destratado nas câmaras municipais, nos serviços públicos, etc. Toda a gente é destratada em Cabo Verde, não é só emigrante. Mas eu estou a falar do emigrante. Vocês que estão lá devem reclamar também. É o que se vai fazendo. Não é só emigrante que reclama. De todo o modo, não há nada em Cabo Verde para cativar o emigrante. Não é só a Itália a correr atrás dos seus emigrantes. A Argélia concorre com os bancos franceses na captação das poupanças dos seus emigrantes, Marrocos a mesma coisa. Veja o programa Casa para Todos, que está a dar problemas. Se dissessem Casa para os Emigrantes, estou convencido, não faltaria gente para comprar. Quando o emigrante tem casa na sua terra, ele continua a investir no seu país, ele não retira de lá a família. Eu tenho casa em São Vicente, perto do Amarante. No dia que eu regressar tenho um lugar para morar, é meu, comprado com as minhas poupanças. E mais: eu sou pelo voto do emigrante nas eleições autárquicas. Mas isso é complicado. Para já, eu sei que nenhum presidente de câmara há-de concordar comigo, porque sabe que o emigrante é exigente, sobretudo aquele que vive na Europa. Aqui, ele aprendeu o valor da democracia. Sabe que, se necessário, o seu maire tem de o receber imediatamente. Em São Vicente um emigrante pede uma audiência ao presidente da Câmara, espera pela resposta vários dias, e quando

consegue ser recebido a única coisa que ouve é um “não”. Se os emigrantes votassem no poder local não só aprofundariam a democracia, como ajudariam o desenvolvimento de Cabo Verde. Eu prefiro trocar o meu voto no parlamento pelo voto no município. Por quê? A base de qualquer cidadão está no seu município.

Podem retirar tudo ao cabo‑verdiano menos a sua identidade, porque ele lutou por ela. Isto é uma conquista que ninguém lhe tira.

Mas o emigrante passa a maior parte do tempo ausente. Mas a emigração é uma questão local. É lá que a pessoa se realiza primeiramente. Sabendo que a sua voz é ouvida ele participaria mais e creio que ele regressaria mais vezes a Cabo Verde. Mas de que forma esse direito de voto municipal poderia ser exercido pelo emigrante? Por correspondência através de cadernos colocados nas embaixadas. E eu nem digo todos os emigrantes, mas apenas aqueles que têm os seus impostos em dia, que contribuem para o desenvolvimento de Cabo Verde. Mas repare, a participação do emigrante na vida política em Cabo Verde já existe e, mesmo assim, ele praticamente não vota, nem nas legislativas nem nas presidenciais. O voto nas autárquicas não é mais uma complicação que vamos arranjar? Essa participação é diminuta porque não se faz nada para facilitar a vida ao emigrante. Dou este exemplo: há dias o banco em Cabo Verde pediu aos emigrantes com contas prova de vida. Quem está em Paris pode, bem ou mal, resolver o problema, mas o fulano que está em Marselha ou Famec tem de gastar quatro ou cinco horas, ou até mais, de viagem, para ir à embaixada, esta não trabalha nem sábado nem domingo, porque os indivíduos que lá estão entendem que não têm provas nem contas a prestar, são funcionários públicos, quando a embaixada poderia trabalhar sábado, quanto mais não seja, só para receber documentos. Por causa disso, um amigo meu disse-me: “Luiz, eu vou acabar com aquela conta em Cabo Verde, assim livro-me desta chatice, não vale a pena. Por causa [ 179 ]


de uma conta que nem tem muito todos os anos tenho essa chatice de certificado de vida”. Ainda por cima, todos os anos, o sujeito paga por esse certificado na embaixada – um me disse que pagou 20 euros, uma fulana de Marselha disse-me que pagou 30. Cabo Verde e a sua emigração andam de passos trocados? Sim! Em Cabo Verde não sabem o que fazem os turcos, os argelinos, os marroquinos, os senegaleses, os malianos, etc. Não sabem nem procuram saber, acham que sabem tudo. Mas vocês não deviam ter maiores níveis de exigência junto das autoridades cabo-verdianas, a começar pelos vossos deputados? Ó Zé Vicente, essa malta não quer ouvir! E não é de hoje que não quer ouvir. Já na I República foi a mesma coisa. Os cabo-verdianos estão espalhados no mundo, é uma experiência, é um saber que autoridade nenhuma deveria darse ao luxo de ignorar. Eu ia ao Congresso de Quadros, apresentei várias comunicações, como eu várias outras pessoas, mas nunca os resultados desses encontros foram implementados. O Conselho das Comunidades foi pedido em 1994. Está a ser instalado agora. Mas quantos anos depois? Vinte anos depois e mal instalado. Mal instalado, por quê? Porque, mais uma vez, a emigração não foi ouvida. E ninguém sabe como se vai instalar esse conselho nem onde vai funcionar. Os cabo-verdianos na diáspora são uma rede. Os problemas do sujeito nos EUA, em Portugal, na Argentina, etc., acabam por ser problemas de nós todos. Veja o caso dos cabo-verdianos em São Tomé e Príncipe. Houve cabo-verdianos que estavam bem na Holanda, nos EUA e noutros lugares, que trataram eles próprios de resgatar os seus familiares. Aliás, o caso de STP é algo que me inquieta ainda hoje. Todo o ideal da luta pela independência se baseou nessa injustiça, conseguimos a independência, todos os dias recebemos imigrantes da costa ocidental africana, mas não [ 180 ]

Em São Vicente, um emigrante pede uma audiência ao presidente da Câmara, espera pela resposta vários dias, e quando consegue ser recebido a única coisa que ouve é um “não”. Se os emigrantes votassem no poder local não só aprofundariam a democracia, como ajudariam o desenvolvimento de Cabo Verde.

conseguimos trazer esses nossos irmãos de volta a Cabo Verde. Admito que isso não seja um problema que se possa resolver num ano, mas com um plano poderíamos fazê-lo em 10 anos ou mais. Mas quem quer, pode ir para Cabo Verde. Mas como, se a pessoa não tem meios? O Estado de Cabo Verde hoje dá pensões aos mais desfavorecidos de STP. Isso é uma ajuda apenas. O problema é que o Estado de Cabo Verde deveria ter negociado convenientemente esse dossier com Portugal aquando da independência e isso não aconteceu. Nós insistimos para que o caso fosse para as Nações Unidas, os fulanos do PAIGC nunca fizeram caso. E, como alternativa, ficamos agora com esses remédios, essas pomadas, “matar

saudade”, apoio de 10 euros. Há gente hoje que esfrega as mãos de contente porque vai haver petróleo em STP e a nossa gente vai ficar bem, finalmente. Eu não penso no petróleo, eu estou preso ao compromisso histórico do PAIGC com a nossa emigração. No programa do PAIGC constava o regresso dos caboverdianos de STP. Mas os tempos mudaram, Luiz. Não mudou tanto assim. Por que não se cria uma comissão independente para ver a questão dos cabo-verdianos em STP? Achas que os problemas dos caboverdianos em STP se resolveriam com a sua transposição para Cabo Verde? Imediatamente, com vara de condão, não. Mas através de uma coisa organizada, sim, em cinco ou dez anos a coisa se resolveria. Mas a maioria dessa gente tem descendentes, já está velha, à espera da morte. Sim, mas nem por isso deixa de ser uma mancha terrível na história de Cabo Verde. Havendo uma estrutura capaz, os cabo-verdianos espalhados pelo mundo poderiam ajudar a resolver ou atenuar os problemas dos nossos patrícios em STP. O que podia ser feito para melhorar as relações entre a emigração e o Estado de Cabo Verde? A emigração devia estar acima dos partidos. Deve haver um pacto de regime sobre a emigração, incluindo nós todos. O problema da emigração é que não existe uma política. Vai-se a uma embaixada e o que lá se vê é nepotismo e amiguismo na escolha dos funcionários que lá estão. O caso da embaixada em Paris é flagrante. É isso que estraga as relações entre o Estado e os seus emigrantes. A emigração em França encontra-se hoje devidamente organizada? O movimento associativo aqui enfraqueceu bastante. Com a independência, surgiram várias associações, algumas formadas por patriotas de 25ª hora, cada uma


com interesses particulares. Nós, como vimos que havia aqui muitos problemas sociais, antes ainda da independência – eu, o Fragoso, o Carlos Oliveira, entre outros – criámos a Associação de Solidariedade. Na altura não havia consulado. Eram das nossas quotas que, quando havia um funeral, nos juntávamos e ajudávamos. Aqui todo o cabo-verdiano tinha direito a um bom enterro, com música inclusive. Houve casos de mil pessoas numa igreja. No funeral de John Matias, uma autoridade qualquer, francesa, perguntou-nos se o John era algum governante em Cabo Verde. Houve gente que veio até da Holanda para tocar no funeral dele. Depois disso, passámos a apoiar os jovens, através de equipas de futebol. Também criámos uma orquestra para as nossas atividades recreativas. Foi através da nossa associação que o Catchás começou a tocar antes de ir para Cabo Verde, onde viria a fundar o Bulimundo. É através desse movimento também que os caboverdianos começam a aceder a casas sociais, a juro zero. Na altura, era importante acabar com os bidonvilles. Os franceses também têm a sua política de imigração, tudo fazem para que o imigrante invista cá, porque sabem que o imigrante, aqui, também tem poupanças. Lá em Cabo Verde tem de ser o contrário. Enquanto aqui a taxa para a compra de casa é zero, lá em Cabo Verde é quanto? À volta de 12 a 14% Estás a ver? Os argelinos, os marroquinos, os turcos, etc., tudo fazem para captar o dinheiro da sua gente, concorrendo com os franceses e não só. Alguém já viu o que não seria organizar, todos os anos, um campeonato só com equipas de emigrantes? Quanto dinheiro não entraria na conta dos TACV, etc.? Cabo Verde só pode ser independente quando nós todos – os que lá estão e os que estão fora – formos considerados pertença daquela nação. Aqui em França as novas gerações são educadas pelos pais no sentido de manterem a caboverdianidade? Sim, porque o cabo-verdiano é terrível. Onde quer que ele se encontre,

mantém Cabo Verde com ele. Veja o caso da Cesária, ela é uma invenção da emigração, fomos nós que a chamamos para vir atuar aqui e é aqui que ela é descoberta para o mundo. No entanto, quando se fala da Cesária, fala-se que os franceses é que fizeram a Cesária. Não se reconhece que ela veio aqui, no princípio, por causa da nossa comunidade. Ela vem no quadro do nosso esforço para divulgar a música cabo-verdiana aqui. Hoje toda a gente conhece Cabo Verde por causa da Cesária. Já viu o que não seria se através da nossa comunidade os artistas em Cabo Verde pudessem vir aqui atuar por pequenas ou longas temporadas?

Os cabo-verdianos estão espalhados no mundo, é uma experiência, é um saber que autoridade nenhuma deveria dar-se ao luxo de ignorar. Eu ia ao Congresso de Quadros, apresentei várias comunicações, como eu várias outras pessoas, mas nunca os resultados desses encontros foram implementados.

Além da música, também procuramos trazer a literatura cabo-verdiana. O Chiquinho, de Baltasar Lopes da Silva, foi traduzido pelo Michel Laban; o Jovino trabalhava na FNAC, mandámos buscar D. Teresa [viúva de Baltasar], para a apresentação do livro. Independentemente de apoios, fomos fazendo coisas para que Cabo Verde fosse conhecido. Hoje não é só Cesária. Temos o Jovino, o Teófilo Chantre, a Mayra, etc. Isso é, acima de tudo, o trabalho dos imigrantes aqui. Os franceses se interessam pela Cesária porque havia aqui uma comunidade que foi abrindo caminho e fazendo-o fomos afirmando a nossa caboverdianidade. O problema é essa relação péssima que temos com os nossos políticos. Há uma má vontade deles em relação aos emigrantes? Isso decorre de um problema estrutural de pensamento. A maior parte da nossa classe política é formada em Portugal e Portugal é um país que, no plano teórico, nunca produziu nada de jeito sobre a emigração. O Alfredo Margarido [1928-2010], que veio para aqui em 1964, refletia sobre a emigração. Ele escreveu um dia um artigo, “O elogio do bidonville”, no qual falava da solidariedade existente entre os emigrantes. Houve logo quem lhe criticasse, dizendo que aqueles indivíduos eram explorados, ele respondeu, “eu estou a falar de um sentimento, das pessoas que se lançaram naquelas montanhas, a pé, até chegar à França. Estes é que são os nossos heróis”. No nosso caso, o emigrante é o herói de Cabo Verde. Uns pensam que o herói é o fulano que esteve na Guiné, mas eu pergunto: era mais fácil estar na Guiné ou nos mares do mundo, nas fábricas, à chuva, no meio do frio, etc.? No entanto, quando se fala na história recente de Cabo Verde não se fala do emigrante, somos simplesmente excluídos. O Luiz não pretende dizer que os emigrantes são os excluídos de Cabo Verde? Sim, politicamente, ainda somos excluídos. É só ver os outros países como atuam em relação aos seus [ 181 ]


emigrantes. É só ver Israel, que tem uma diáspora muito forte, com lobbies devidamente organizados, porque eles conseguiram mobilizar a sua diáspora, quando, no caso de Cabo Verde, a diáspora foi simplesmente excluída do nosso processo político e histórico. Mas isso é contranatura, Luiz… Sim, eu sei que é contranatura, mas é o que acontece. Os 12 indivíduos que fundaram a nossa comunidade na Holanda, dos quais hoje restam três ou quatro, mereciam todos um gesto que fosse da nossa nação. Não é só o Djunga. Lá está ainda o Constantino, que nunca pediu nenhuma condecoração, aliás, é capaz de nem aceitar, mas foi ele que criou o primeiro hotel de cabo-verdianos em Roterdão, o Delta. Ele, o Djunga e os outros receberam os cabo-verdianos, arranjavam barcos, ofereciam créditos, às vezes, diziam “tu agora não podes embarcar, tens de dar a vez ao fulano que ainda não pode tirar um dia de trabalho”, etc. Naquela altura não havia segurança social, através de quotas ajudavam aqueles que estavam em momentos de dificuldades. Esses indivíduos – os 12 de Roterdão – fizeram coisas extraordinárias. E lá está a força da nossa cultura, foi o Constantino que financiou o Voz de Cabo Verde, foi o Djosa de Bernarda que mandou buscar o Luís Morais em Dakar. Portanto, é gente que merecia qualquer coisa. Mas o Djunga d’ Biluca já foi distinguido. Eu ponho a questão: por quê o Djunga e não os outros também? Na tua opinião, por quê? Porque, provavelmente, o Djunga deve ter mais amigos em Cabo Verde com poderes para condecorar. Ele não trabalhou sozinho. Por causa da unidade com a Guiné, o grupo do Djunga dividiu-se, vindo dar lugar ao Grupo dos Descontentes que se junta depois à UCID. Mas eram pessoas que eram amigas, que apenas questionavam a unidade com a Guiné, ou mesmo o partido único, mas nem por isso deixavam de ser patriotas. [ 182 ]


Então há uma partidarização no reconhecimento dos valores de uns e de outros na emigração? Eu não sei, o que sei é que os fulanos do PAIGC, depois PAICV, nunca deram o braço a torcer na questão da unidade com a Guiné. Hoje, o PAICV é um partido democrático, onde todos podem falar, mas há coisas do passado que persistem. Todos os cabo-verdianos na Holanda, que participaram nesse processo, fizeram sacrifícios, não foi só o Djunga. Hoje o que é que Cabo Verde precisa fazer para tirar melhor proveito da sua emigração? Já foram feitos três ou quatro Congressos dos Quadros da Diáspora, todos muito bons, não fui ao último, as conclusões estão lá e nunca foram aplicadas. O pessoal em Cabo Verde deixa as pessoas falar, reclamar, dizer o que querem, mas depois, na hora de aplicar as recomendações, nada é feito. Por isso é que eu já conclui que não vale a pena fazer mais congressos, porque não serve para nada. E com isso o nosso movimento associativo espalhado pelo mundo entra em crise. O associativismo é um projeto, não é só para resolver problemas pontuais que se colocam a esta ou aquela comunidade, a este ou aquele indivíduo. Cabo Verde deve formar os seus animadores culturais para a emigração, isto faz-se em França, Portugal e noutros países que sabem o valor da sua emigração. Hoje em dia, os cabo-verdianos na diáspora só se juntam para ajudar esta ou aquela aldeia, em Cabo Verde, com problemas muito concretos.

ESTADO, “MAIS MODESTO” A nível da reforma do Estado, na tua opinião, o que é preciso reformar em Cabo Verde? Antes de mais, o Estado tem que se mostrar mais modesto. Os nossos políticos comportam-se como se fossem representantes de um país rico. Uma coisa gritante hoje em dia em Cabo Verde é o fosso entre os ricos e os pobres. Os políticos estão muito ricos e os pobres continuam muito pobres. Os nossos políticos em Cabo Verde são mais orgânicos que os seus colegas em França. Acham que resolvem tudo com a ajuda externa.

Mas a ajuda externa está a acabar. Este é o problema. Por causa disso, eu tenho medo de muita coisa em Cabo Verde. Qual, por exemplo? A reforma das pessoas. Há uns que pensam que aquilo é uma mina, exigem isto e mais aquilo, quando Cabo Verde não tem condições para atribuir certas reformas. Hoje, até já se fala em subsídio de desemprego. Eu, quando ouvi isso, fiquei parvo. Como é que um país que não produz pode falar em subsídio de desemprego? Eu tenho a consciência que o meu país ainda não pode fazer isso. Pode até chegar lá um dia, mas não agora. Com as campanhas eleitorais, os partidos prometem tudo e mais alguma coisa, não sei aonde vamos parar. Ao mesmo tempo que prometem tudo e mais alguma coisa, em relação à emigração os nossos políticos não têm um projeto. Em relação aos emigrantes comportam-se de forma arrogante, sentados nos seus gabinetes, à espera que o emigrante lhes vá bater à porta, pedir favores, para poder investir na sua própria terra. Com esta mentalidade – tenham a paciência! – Cabo Verde não vai para frente. Cabo Verde tem de fazer uma volta de 180 graus em relação à emigração. Se num ano 10 mil emigrantes foram passar férias, é preciso adoptar medidas para que no ano seguinte seja o dobro a fazer a mesma coisa. Se um indivíduo quer investir, ele tem de encontrar abertura junto dos bancos. Mas os bancos são privados, Luiz, e banco nenhum se recusa a fazer um bom negócio. Se são privados, não sabem lidar com os emigrantes. Precisamos de um banco de emigrantes, financiado por emigrantes, o Estado terá de estar lá dentro para ajudar a controlar… Luiz, se os emigrantes quiserem criar um banco, em Cabo Verde, nada os impede. A única coisa que terão de fazer é cumprir as regras bancárias que existem. Eu sei, inclusive, que se criou lá um banco – o BCN [Banco Cabo‑verdiano de Negócios] – mas o

BCN não sabe o que é a emigração. E quem diz o BCN diz o BCA ou qualquer outro que lá exista, não sabem aproximar-se dos emigrantes. Nada em Cabo Verde está virado para os emigrantes. Por exemplo, nas nossas embaixadas não há um livro que seja sobre Cabo Verde, não há sequer jornais. Há problemas mínimos que ninguém se preocupa em resolver. Cabo Verde tem de criar as mínimas condições para que os emigrantes sigam de perto o que se passa naquelas 10 ilhas. É importante que as embaixadas sejam agências económicas. Foi assim que as embaixadas surgiram no mundo. Em Cabo Verde toda a gente quer ser funcionário público, com horários únicos ou de verão, quando, em França, os serviços funcionam sábado e domingo, se preciso for. Em Cabo Verde até os restaurantes fecham aos domingos. Um australiano [Tony Park] desembarca em São Vicente e diz que não encontrou um lugar decente para tomar um café (risos), critica e fica todo mundo ofendido. Eu não me senti minimamente ofendido. Tu és exceção. Mas falávamos da reforma do Estado em Cabo Verde, na tua opinião, o nosso Estado está bem arquitetado? Em Cabo Verde o Estado é muito centralizado. Qualquer papel tem de ser tratado na Praia. Isto é grave. E hoje fala-se na regionalização precisamente porque tudo está centralizado na Praia. Tudo em Cabo Verde é difícil, até nas câmaras municipais. Há assuntos que os emigrantes poderiam resolver através das embaixadas e isso não é possível. Mas hoje isso já acontece. Através da internet, Casa do Cidadão, já é possível obter uma certidão em minutos. Então precisam trazer isso para a nossa embaixada em Paris. A administração devia ajudar a resolver os problemas das pessoas em vez de estar a mostrar aquele poder colonial, abusivo, que existia antes, para cada um mostrar o poder que tem. [ 183 ]


Mas falávamos de regionalização, ainda não me disseste quais são as tuas razões? Eu sou pela regionalização claramente. Temos de ir para a regionalização, sem deixar contudo de exigir mais também às câmaras municipais. Há dias ouvi o José Maria Neves, no Fogo, a dizer que os municípios têm eles próprios que avançar, não ficar à espera que o Governo vá resolver os problemas que existem nos concelhos. É verdade. Também devo dizer que não sou por soluções que venham a pesar ainda mais o Estado. E neste caso a regionalização é solução por quê em Cabo Verde? Antes de mais, porque tudo depende do poder na Praia. É isso que está a empurrar Cabo Verde para a regionalização. As pessoas fora da Praia entendem que o bolo tem de ser partilhado por todos. É uma realidade que os melhores investimentos são feitos na Praia. Ninguém pode desmentir isso. O natural de Santiago, sobretudo o do interior, também se queixa, que os principais investimentos são feitos em Barlavento, a começar por São Vicente. Em que ficamos? Isso não é verdade. É só ver a cidade da Praia, Santiago, é lá que tudo se concentra. Sou por uma regionalização que seja capaz de resolver os problemas das pessoas. Isso começa na educação e na formação, por exemplo. O senado proposto por Onésimo Silveira visa, no essencial, que todas as vozes de Cabo Verde sejam ouvidas e passem a ser uma solução comum para o país. Mas o Parlamento não tem essa função? Ó rapaz, o Parlamento, infelizmente, tem lá muita gente que está por estar. Há gente que lá está há anos e nunca deu uma ideia que preste para aquela terra. Sei que lá existe uma comissão especializada para a emigração e o que é que ela já fez pela emigração? Perguntas e ninguém sabe porque nunca funcionou. Há deputados que são capazes de vir à França, a convite do parlamento francês, e não [ 184 ]

Cabo Verde tem de fazer uma volta de 180 graus em relação à emigração. Se num ano 10 mil emigrantes foram passar férias, é preciso adoptar medidas para que no ano seguinte seja o dobro a fazer a mesma coisa. Se um indivíduo quer investir, ele tem de encontrar abertura junto dos bancos.

se lembram de se encontrar com os emigrantes que aqui estão. O problema daquele Parlamento é ser dirigido de cima para baixo. Veja o caso dos deputados pela emigração, praticamente nunca falam dos nossos problemas. O que é que o Arnaldo [Andrade], o Sidónio [Monteiro] e os fulanos do MpD [Emanuel Barbosa e Cândido Rodrigues] percebem de emigração? Foram simplesmente colocados lá pelos respectivos partidos. É o mau funcionamento do Parlamento que também leva as pessoas a procurarem outras soluções, uma delas, a regionalização. Por causa da forma como está organizada a vida em Cabo Verde, hoje, toda a gente tem que ir para Praia. É na Praia que estão as melhores oportunidades de emprego. Há uma necessidade de aquelas ilhas serem pensadas em conjunto. A haver a regionalização, qual seria a solução para os custos que isso impõe? A solução pode passar por uma redução do número de deputados no Parlamento e transferi-los para o senado, por exemplo. Mas um outro problema é a instalação de assembleias, governos regionais e outras estruturas. E isso tem custos, não? Como as coisas estão em Cabo Verde, não sei se a regionalização é mais cara. Um outro problema é a profissionalização de deputados. O Luiz é contra a profissionalização dos deputados? Eu não sou contra a profissionalização, entendo sim que eles têm mordomias a mais. Têm salários, telefones, carros… Mas os deputados em Cabo Verde não têm carros, tirando os membros da Mesa e os presidentes dos grupos parlamentares. Mesmo assim. Há custos que poderiam ser poupados, os meus patrícios acham que o Estado pode financiar-lhes tudo e mais alguma coisa. É preciso repensarmos todos, juntos, para levar aquele país para frente.


DESAFIOS Então quais são os principais desafios que se colocam neste momento ao futuro de Cabo Verde? Eu acredito no futuro da minha terra, na capacidade humana dos cabo-verdianos. Por isso, retomo a necessidade de se fazer um inventário dos quadros e empresários caboverdianos espalhados pelo mundo no sentido de levá-los a investir em Cabo Verde. Nós temos de seguir o modelo de Israel, no sentido de fazer com que onde houver um cabo-verdiano ele funcione como lobby de Cabo Verde. E a primeira coisa a fazer é pôr pessoas certas em lugares certos. É bom que o Conselho das Comunidades comece a funcionar, tendo à frente o indivíduo certo, de modo a fazer com que a sua voz seja escutada. São necessários recursos e trabalho para levar os emigrantes a participarem, por exemplo, nesse órgão. Cada um tem a sua vida, não

é fácil. Mas que não seja mais um órgão partidário. Mas este não é também mais um órgão condenado ao fracasso? Eu tenho esse temor, confesso. É um trabalho que exige um movimento associativo forte, com gente no terreno. Precisamos de uma federação mundial das associações caboverdianas no exterior, que teria de trabalhar em parceria com o Conselho das Comunidades e com o Governo. Temos um vasto campo para atuar, particularmente na cultura, e não aproveitamos. Quantos livros não são publicados e que poderiam ser lançados aqui também, na Holanda, nos EUA, Angola?… Como é possível que nunca nenhum dos teus livros tenha sido lançado em França ou na Holanda? Nunca fui convidado. Nunca foste convidado, mas o Governo podia trazer-te, os teus livros são úteis a Cabo Verde.

O Governo tem outras preocupações. OK, se preferes assim. Pertenço a um grupo que publica a revista Latitudes, fizemos um número sobre Amílcar Cabral, outro sobre Baltasar Lopes, e não houve nunca um gesto de Cabo Verde, “olha obrigado, recebemos o exemplar que vocês nos mandaram”. Fizemos um número sobre Agostinho Neto e Angola comprou-nos 2500 exemplares. Angola tem dinheiro, Luiz! O dinheiro não é tudo. Há coisas que podemos fazer e não se faz. Por que é que na embaixada não há um serviço de venda de produtos culturais – livros, discos, postais, etc.? Mas um privado não pode também abraçar este serviço? Ainda não temos gente com essa capacidade, mas de qualquer forma a embaixada não devia ter como missão a divulgação da nossa cultura? A edição francesa de [ 185 ]


Chiquinho acabou, o Michel Laban morreu, e nunca mais ninguém cuidou da reedição do livro. Fui eu e o Alfredo Margarido, através da Associação Solidariedade, que reeditámos o Folclore Caboverdeano, de Pedro Cardoso.

reivindique Cabo Verde como a sua terra. Cabe ao Governo, aos municípios e, se necessário, às regiões, fazer um maior esforço para unir os cabo-verdianos, pondo ao serviço de Cabo Verde o que cada um pode dar. O maior turista de Cabo Verde é o cabo-verdiano que todos os anos vai lá passar as férias. Por isso é que devia haver também uma melhor política de transportes virada para as comunidades caboverdianas, à semelhança do que fazem os argelinos, os marroquinos, os turcos, etc. Indo de férias, é dinheiro que o emigrante deixa, é a economia que funciona. Mas, por estratégia, desgraçadamente, é nesse período que os TACV aplicam no máximo as suas passagens, não consigo compreender essa aberração.

CRIOULO: “ALUPEC” Falemos do crioulo. Em primeiro lugar, és ou não pela oficialização? O crioulo já está oficializado por natureza, está em toda a parte, inclusive nos salões do poder. O que criou problemas foi a imposição do alfabeto fonológico em detrimento do antigo alfabeto, o etimológico. O ALUPEC, em si, não tem nada de novo, foi criado pela UNESCO, está próximo do alfabeto adoptado para o crioulo do Haiti. O certo é que o Haiti, que tinha grandes escritores, encontra-se hoje no maior subdesenvolvimento cultural. No Haiti, hoje, já quase ninguém compreende ou fala o francês. Mas isso não é por culpa do ALUPEC deles. As razões serão outras. Certo. No caso de Cabo Verde, a música deu ao crioulo uma grande expressão. Eu podia utilizar o K nas negativas, por exemplo “ka tem”, porque o K em português é positivo e no crioulo é negativo. Agora, as palavras que nós recebemos do português não faz sentido estar a escrevê-las com K. Mas então qual é o problema? A oficialização em si não é problema, o que precisamos é de um debate para acabar com certas diferenças que se colocam. As pessoas no Barlavento acham que o ALUPEC é mais uma ditadura da Praia e reagem mal; os fulanos da Praia ou de Santiago acham os tipos de Barlavento uns chatos e reacionários e ficam na deles. Precisamos acabar com isso. O Governo, por seu turno, tem de se esforçar para quando tomar uma decisão no campo da cultura e não só para que a decisão tenha sentido nacional. Não podemos estar a governar como se estivéssemos ainda no tempo colonial em que Lisboa decidia tudo por decreto e nada havia a fazer. [ 186 ]

INDEPENDÊNCIA Quais são os principais ganhos de Cabo Verde nestes quase 40 anos de independência? A nível da educação, houve um grande esforço. Sendo Cabo Verde um país pequeno, sem grandes recursos, podemos dizer que Cabo Verde acabou com o analfabetismo, o que é manifestamente uma grande vitória. Hoje encontramos poucos emigrantes analfabetos. Este é, sem dúvida, um grande ganho da independência. Um outro grande mérito é o reforço da nossa caboverdianidade, que ganhou muito com a independência e com a democracia. Não há no mundo um cabo-verdiano, onde quer que ele esteja, que não

Em toda a parte do mundo, sobretudo antes dos low coast, é na época alta que as companhias carregam nos preços. Além disso, hoje há concorrência, há a TAP. A TAP vive lindamente com os TACV, combinam os preços e não há concorrência entre elas. Mas lá onde há concorrência realmente, os caboverdianos procuram imediatamente. Se a Transavia consegue viajar a bons preços entre Holanda e São Vicente, por que é que as outras companhias não fazem o mesmo? Por causa da Transavia constou-me que agora, no Carnaval, São Vicente e São Nicolau estavam entupidas de emigrantes. Vê a questão dos reformados. A terceira idade deve ser vista como uma outra riqueza. O emigrante regressa com a sua pensão, com o seu saber, é um quadro. Chegando, ele não vai lá pedir emprego, mas pode ser útil, ajudando, explicando às novas gerações o que têm a fazer se quiserem procurar a vida no exterior. Em São Vicente, eu já propus a criação de uma Casa do Emigrante, que podia ficar num prédio perto da Pontinha, que era a oficina de artes e ofícios. Lá os emigrantes poderiam se encontrar e conviver. Veja o caso da Brava, uma ilha que poderia ser um recanto para a terceira idade. Cabo Verde fala em atrair idosos ingleses e de outras partes da Europa e se esquece que poderia fazer o


mesmo com os seus emigrantes na Europa, nos EUA, em vez disso, prefere essa coisinha de “matar saudade”. Eu considero isso brincadeira de menino. Mais do que “matar saudade”, precisamos é de medidas que incentivem os cabo-verdianos, na terceira idade e não só, a regressarem para a sua terra, com as economias que acumularam ao longo da vida. Uma coisa não impede a outra. O programa “matar saudade” é uma forma de o Estado de Cabo Verde manifestar a sua solidariedade aos desgraçados de STP que jamais poderiam rever o seu país natal. Mesmo assim, entendo que precisamos de políticas estruturantes, não esses paliativos.

A NEPAD [Nova Parceria para o Desenvolvimento de África] tem grandes projetos – estradas, caminhos de ferro, etc. – e Cabo Verde praticamente nada tem. É preciso estar lá, nos centros de decisão, e lutar pelo nosso quinhão porque também somos parte do continente. No fundo, o projeto da unidade Guiné-Cabo Verde era isso, cada um com a sua parte, para uma união económica. E, bem vistas as coisas, o PAIGC não inventou nada, ainda que em contextos diferentes, já em 1934 cabo-verdianos, em Portugal, pensaram ou admitiram uma união entre os nossos povos. O africano do Senegal é diferente do africano da África do Sul, o angolano é diferente do tanzaniano, mas todos somos africanos, então, por que motivo o

INTEGRAÇÃO SUB-REGIONAL, “CUIDADO COM A LIVRE CIRCULAÇÃO” E a integração regional de Cabo Verde, na CEDEAO, qual é a tua opinião? Antes de mais, é uma leviandade perguntar se Cabo Verde é África ou não. Até porque, no plano cultural, são inúmeras as diferenças entre os países europeus e mesmo assim conseguem fazer a sua união. A África, constituída por vários países, inclusive Cabo Verde, pode também fazer a sua unidade, mas respeitando a identidade e os problemas sociais de cada um. Mas isso de circulação livre entre os países da CEDEAO eu sou contra. Cabo Verde não tem como continuar a receber fluxos migratórios como tem vindo a receber. A unidade económica pode ser feita de outra maneira. Aliás, Cabo Verde até tem uma responsabilidade histórica nessa unidade. No congresso pan-africanista do Porto, em 1934, os cabo-verdianos propunham uma frota marítima que uniria Cabo Verde, Guiné-Bissau, Senegal, Gâmbia, etc., era já uma zona económica. Ou seja, os cabo-verdianos sempre sentiram a necessidade de ter relações estreitas com a África. Temos é que ver nas condições atuais a melhor forma de nos integrarmos nesse todo e ver onde estão os nossos interesses e lutar por eles. Cabo Verde não pode ficar isolado.

Eu pergunto a qualquer um daqueles deputados qual o compromisso deles com a nossa diáspora, com qual luta dos emigrantes no passado eles estiveram ligados. A verdade é que não se criam estruturas para os emigrantes exprimirem os seus problemas.

cabo-verdiano não há-de ser diferente do maliano, por exemplo, sem deixar de ser africano? Cada um tem os seus interesses e cada um deve lutar, na democracia, por eles. Na tua opinião, Cabo Verde tem sabido aproveitar a sua presença na CEDEAO? Eu creio que não. Há muita palha nessa questão. A CEDEAO funciona e atua no continente e muito pouco faz em Cabo Verde. Há importantes investimentos da CEDEAO em Cabo Verde. Por exemplo, o aeroporto da Praia recebeu recursos da CEDEAO. É o que se diz. E, se assim é, é porque alguns países – caso do Senegal, que é um país irmão nosso – , tomaram a consciência que Cabo Verde estava a ser preterido. Temos de ser mais agressivos. Uma frota marítima a ligar Cabo Verde ao continente é algo que faz muita falta. A história de Cabo Verde com o seu continente passa por essa navegação que existiu no passado e que hoje não mais existe. É de estranhar que hoje não haja mais nenhum torneio de futebol, quando essas coisas, no período colonial, existiram e São Vicente e Praia participaram nesses torneios. Hoje já nem isso se consegue fazer. Mas já houve a Copa Amílcar Cabral. Sim, houve, mas já não há mais. A integração passa por este tipo de atividade também. Ampliando esse raciocínio, como vês Cabo Verde na chamada aldeia global? Nós somos um ponto de encontro de civilizações e culturas. Os portugueses, os ingleses, os franceses, os italianos e vários outros povos, inclusive africanos, passaram por Cabo Verde. Nenhum outro país do mundo consegue ser tão global como Cabo Verde.

VALORES, “ACIMA DE TUDO CABO-VERDIANOS” Que valores defendes para a sociedade cabo-verdiana? Nós temos de pensar que acima de tudo somos cabo-verdianos. [ 187 ]


Isso implica o quê? Implica reconstruir a célula caboverdiana com todos os elementos que ela possui. Isso exige trabalho e passa pelo recenseamento dos nossos quadros espalhados pelo mundo. Somos dirigidos por uma elite política que ainda despreza os sacrifícios das massas populares, a começar pelos emigrantes. Veja, como é que até hoje não há uma estátua para um indivíduo como o Luís Morais, uma rua sequer com o nome dele ou com o nome de Voz de Cabo Verde? Na praça D. Luís, em São Vicente, eu se fosse presidente da câmara, punha lá duas estátuas, uma do Luís Morais e outra do Bana, que simbolizam todo Cabo Verde. Baltasar simboliza, Eugénio simboliza, Amílcar simboliza, mas há mais heróis, gente humilde que também lutou para a afirmação de Cabo Verde. À volta do porto do Mindelo há inúmeras histórias por contar. A mesma coisa naqueles montes de Santo Antão, São Nicolau, Santiago, etc. É preciso ver como a nossa gente foi do Fogo e da Brava para a América, como é que pessoas de Santo Antão e São Nicolau partiram para a Argentina, o Brasil, etc. Um país com esta riqueza não tem um museu da emigração? O problema não é só dinheiro, é muitas vezes falta de consciência, de ideias, para fazer coisas simples mas com grande valor simbólico. Um indivíduo como Amílcar Cabral não tem uma estátua em São Vicente, ilha onde viveu e estudou?… Isso é normal?

FIGURAS Nestes 40 anos, para ti, quem são as figuras que mais se sobressaíram? É-me difícil porque escolher uns implica excluir outras. Aqui nesta zona da Europa, França e Holanda, quem é que mais se destaca? O Constantino, o Djunga d’ Biluca, o Djosa de Bernarda, que já morreu, o Manuel Lima, que também já morreu. São vários. Aqui em Paris, nos anos sessenta, conheci uma senhora que se chamava Madame de St. Michel. Essa senhora ajudou muitos cabo-verdianos, arranjando-lhes trabalho. Em 1975, [ 188 ]

(...) é em São Vicente que o cabo-verdiano se liberta, porque é em São Vicente que o cabo-verdiano conhece o salário. Os cabo-verdianos vinham das ilhas e em São Vicente tornavam-se autónomos.

15 dias depois da independência, ao arrepio do acordo assinado entre os Estados de Cabo Verde e Portugal, os cabo-verdianos deixaram de aceder a passaportes portugueses, caindo imediatamente na ilegalidade. Estivemos aqui seis anos sem poder regularizar a nossa situação. Aquela senhora, por sua própria conta, conseguiu legalizar várias pessoas, principalmente mulheres. Foi em 1981, com a vitória de [François] Mitterrand, em cuja campanha participei (tenho até uma carta de agradecimento do Leonel Jospin) que a situação ficou resolvida. Só a nossa associação conseguiu legalizar mais de 2 mil cabo-verdianos. Houve vários cabo-verdianos – o Cucuche (Honório António Lima,

que foi emigrante em Timor, Dakar e depois em França a partir de 1965), que já estava reformado, o Honório Lima, que morreu no ano passado – que acompanhavam patrícios nossos aos serviços de fronteira, para discutir a situação desses conterrâneos. Essa senhora, Mme. Saint-Michel, que citei vários vezes nos meus artigos e trabalhos, nunca teve um gesto de Cabo Verde em relação a ela – e ela já morreu mas deve ter familiares. O Djunga também fala no livro dele [De Ribeira Bote a Rotterdam, 2009] de vários holandeses que ajudaram os cabo-verdianos, a mesma coisa. Houve sempre indivíduos de boa vontade na história da nossa diáspora. A mesma coisa no Senegal. Os capitães dos navios, como Alberto Pancrácio, que levaram tanta gente para o Senegal. O Crisanto [Carvalho], idem. Em todos os lugares da emigração cabo-verdiana há necessidade de fazer o nosso inventário, para saber em primeiro lugar quem são os caboverdianos e em segundo quem são as autoridades e os cidadãos desses países que ajudaram na integração da nossa gente. É uma questão de justiça. Um país ou uma nação tem de ser reconhecida àqueles que a ajudaram a afirmar-se. É aqui que os nossos governantes falham de forma gritante. Eu lembro-me do Gabriel Fonseca, “Tuca”, um dos primeiros militantes da independência de Cabo Verde, um homem sério, honesto, racionalista cristão. Ele assistiu e viu como os senegaleses foram para a independência e ele começa a mexerse também nesse sentido. Ele disse-me, começou a mexer-se porque viu que Portugal não tinha condições para colonizar ninguém. O Tuca era tão racionalista, que quando vem para a França traz com ele o racionalismo cristão. Hoje temos dois centros racionalistas cristãos em Paris. (risos) O cabo-verdiano já espalhou mais o racionalismo cristão do que os brasileiros. Eu sei disso. São eles que levaram o racionalismo a Angola, Holanda, França, nos EUA, etc. Como disse o Nuno de Miranda, o cabo-verdiano tem sido um grande divulgador de culturas. Esta é uma


outra história que tem de ser um dia escrita também. No caso do Tuquinha, ele era um fulano patriota, simples, foi para Cabo Verde, construiu a sua casa em São Vicente, ia e vinha. Quando morreu, ficamos aqui numa grande tristeza. O Tuca, com a idade já avançada, dizia-nos que bastava chegar a São Vicente para deixar de tomar qualquer remédio. “Nôs doença é sodad d’ terra”, dizia ele. (risos)

FUTURO? Como vês o futuro de Cabo Verde? Há aspetos bem concretos que me preocupam. Um deles é a segurança social. Também aqui, os emigrantes poderiam contribuir para a sua reforma em Cabo Verde. De que forma? Descontando para a reforma. É bom que o emigrante, já ao sair de Cabo Verde, estivesse inscrito no INPS e, no país de acolhimento, continuaria a transferir as suas mensalidades. Hoje, como as coisas estão, fico preocupado com o futuro da segurança social em Cabo Verde. Há pessoas que não descontaram e estão a pedir reforma, ou estão a beneficiar do sistema para o qual não contribuíram. Não me estou a referir aos pobres, ou

muito pobres, mas a gente formada, que fez a sua vida fora, sem se preocupar com a sua segurança social e que na velhice, aparece a beneficiar. O cabo-verdiano, seja ele quem for, tem de merecer a reforma a que tem direito pelos descontos que faz. Aqui fora toda a gente sabe o que vai receber quando reformar-se aos 65 anos. Não tem de depender de favores deste ou daquele. Por isso, seria útil legislar a inclusão dos emigrantes no INPS até porque, um dia, esse fulano pode cair de paraquedas em Cabo Verde, com uma mão à frente e outra atrás. Há, além disso, o emigrante que vai de férias e de repente pode precisar de um serviço de saúde e estar coberto. A segurança social em Cabo Verde, como está, é um bazar. Volta e meia temos notícias de gente contemplada com pensões quando nunca contribuiu para o sistema. Não pode ser. Quem paga tem direito, quem não pagou que se criem outras soluções sociais para esses casos. Uma outra preocupação minha, em relação ao futuro, é a proteção que se deve dar aos investimentos dos emigrantes. As casas dos emigrantes que estão alugadas, os fulanos não pagam, os procuradores abusam da confiança, e depois, quando há problemas, os emigrantes não têm onde recorrer.

Ter têm, há os tribunais. As pessoas sabem que os tribunais em Cabo Verde não funcionam. Sabem que a justiça é lenta e o emigrante não tem tempo para estar atrás dos tribunais, de modo que perdem sempre. Defende então um tribunal especial para os emigrantes? Sim, por exemplo. Devia haver uma instância onde casos do género poderiam ser resolvidos sumariamente. Portanto, em relação ao futuro, a forma como a justiça funciona no nosso país é algo que me preocupa. Ninguém pode viver tranquilo sabendo que os tribunais não funcionam. É claro que a lista de preocupações é muito mais extensa, mas fiquemos apenas por esses dois casos. Tirando isso, eu acredito na minha terra. Há um caminho, ele é difícil, mas haveremos de chegar lá. Com opiniões diferentes, com sugestões diferentes, sem esquecer que Cabo Verde é também as “ilhas” dispersas pelo mundo, na América, na Europa, em África, e temos que aprender a lidar com isso, e, com esse espírito, construir um país cada vez mais forte e solidário. [Paris, 29-03-14]

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Tibau Tavares (José Mário Tavares), 46 anos, natural da ilha do Maio. Músico e compositor. Durante 24 anos trabalhou no gabinete técnico da Câmara Municipal da sua ilha natal, até que foi desafiado a participar no grupo Pupkulies & Rebeca, na Alemanha, num “diálogo” entre a música alemã e a cabo-verdiana. Desde então a sua vida sofreu uma reviravolta.

Tibau Tavares

“A cultura é a nossa maior riqueza” [ 190 ]


Sei que neste momento estás lançado numa carreira musical. Como é que ela surgiu? Um amigo meu, alemão, músico também [Janosch Blaul], vinha sempre visitar o pai de férias à ilha do Maio, onde este era cooperante. Disso surgiu a intenção dele de fazer um trabalho entre a música alemã e a chamada música do mundo, world music, e desafiou-me a fazer parte do projeto. Esta é a tua primeira experiência internacional? Sim. Começámos em 2013, gravámos o nosso primeiro álbum [Pupkulies + Rebecca play Tibau] e antes dele sair fizemos um concerto na Alemanha, num dos melhores festivais da Europa – Africa Festival, em Urrburg – e lá surgiu a ideia de fazer um documentário [Momento], que foi gravado no Maio e na Alemanha. Depois do álbum sair, fizemos um tour pela Europa, onde tocámos em 22 palcos, de 31 de Outubro em Berlim a 7 de Dezembro, em Amsterdão, Holanda. E agora, isto é retorno ao Maio? Não, são apenas férias de 30 dias. Depois volto para continuar os compromissos que já temos agendados. Vamos, entretanto, terminar o nosso segundo disco e fora isso temos mais uma nova série de espetáculos em festivais. Então quer dizer que a tua vida sofreu uma reviravolta? Sim, sem dúvida. De simples funcionário da Câmara Municipal do Maio, durante 24 anos, agora estou na estrada, como músico, com licença de longa duração. Quais são as tuas habilitações literárias? Fiz o antigo quinto ano do liceu (atual nono ano) em 1988. Na altura adotouse uma lei que depois de uma certa idade o aluno não podia continuar na escola. Como eu não quis estudar à noite, fui trabalhar para a Câmara Municipal. Em que função? Sou técnico de construção civil, trabalhava no gabinete técnico.

SER CABO-VERDIANO Nesta primeira experiência internacional qual é a apreciação que fazes de ti próprio enquanto cabo-verdiano? Antes de mais, dei-me conta que a nossa música é muito rica. Quando deixo o palco há pessoas que vêm ter comigo, querendo saber coisas do lugar de onde venho, a nossa língua, etc. Tenho recebido muito, mas também, como artista, tenho dado muito. Nesse grupo és o único caboverdiano, ou há gente de outros lugares de África? Somos quatro, sou o único que não é alemão. Sou também o único preto. E que tipo de interação realizas com os teus companheiros? Eu sou o compositor da banda, eu é que faço os arranjos das cordas. Faço as bases e eles metem a parte deles. Esse diálogo é fácil? Sim, para nós, músicos, isso não tem nada de mais. A música não tem limites, podemos navegar e depois, no fim, olhamos o resultado. É um fenómeno meio estranho, às vezes, mas é isso mesmo. O resultado é sempre um diálogo lindo, ainda mais quando são pessoas de lugares tão diferentes que resolvem trabalhar juntas, como é o nosso caso. Estando hoje a trabalhar com alemães, sendo cabo-verdiano, para ti o que é ser cabo-verdiano? O cabo-verdiano é aquele que sabe adaptar-se a todas as situações. No dia a dia lida com coisas boas e coisas más da vida. Costumo dizer que a nossa música é como a cachupa, entra tudo, milho, feijão, peixe… Tudo é bem vindo desde que se saiba dosear. No caso da música, ela recebe tudo sem perder a sua originalidade. Por quê? A nossa música é algo forte, é genuína, pode receber tudo sem perder a base inicial. É simplesmente incrível. Acreditas que existe uma identidade cabo-verdiana? Sim, acredito. E dou este exemplo.

Estive a tocar num festival na Holanda, onde estavam inúmeras bandas dos mais variados lugares do mundo. No backstage, chegou um jovem a perguntar-me se eu era daquela banda alemã que tinha atuado. Esse indivíduo me diz: “Já ouvi praticamente todas as bandas que estão aqui mas tu és o único que tem expressão”. Eu perguntei-lhe “por quê?” e ele respondeu-me: “É uma coisa que eu não sei explicar-te, mas tu és o único que consegue se realçar no meio disto tudo”. Eu acho que isso aconteceu porque sou de Cabo Verde. E essa pessoa era de onde? Acho que da Dinamarca.

MAIO, “NADA DE ORIGINAL” A tua música é vincadamente do Maio ou é cabo-verdiana no geral? Na minha opinião, das ilhas de Cabo Verde, Maio não tem nada de original. Tudo veio de outras ilhas. A minha música canto-a no crioulo do Maio, mas é música de Cabo Verde. É morna, coladeira, batuque. Faço muita fusão. Mesmo as minhas mornas são fusão. Neste momento, por causa dessa minha experiência na Alemanha, a minha música tem muitas influências. Portanto, ela hoje não é puramente cabo-verdiana, mas continua caboverdiana na essência. Mas antes desse contacto era assim? Não, antes era mais Cabo Verde. E quem eram as tuas referências? Paulino Vieira, Bana, Luís Morais. Luís Morais, para mim, até hoje, não foi devidamente valorizado. Depois da morte dele não se deu o que realmente ele merece. Ele é o pai da discografia de Cabo Verde. Todos conhecemos os nossos primeiros discos através do Luís Morais e mesmo quando os discos não eram dele ele estava presente através dos arranjos que fez. Hoje o aeroporto de São Vicente tem o nome de Cesária Évora, na Praia o Palácio da Cultura tem o nome de Ildo Lobo, mas nem o Luís Morais nem o Bana têm algo deles. Acho que não é justo por aquilo que os dois representam na música de Cabo Verde. [ 191 ]


Há situações em que o cidadão é quase levado a fazer justiça com as próprias mãos. O que me preocupa realmente é o mau funcionamento da justiça. Ela não existe.

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Disseste que Maio não tem nada de original. Neste sentido, qual é o contributo do Maio para a cultura de Cabo Verde? Em termos culturais, não vejo nada de especial. A nota mais saliente é o aparecimento do Betu, um compositor muito apreciado e estimado por nós todos. A tua apetência pela música como é que ela surgiu, estando tu no Maio? Eu tenho músicos na família. Nós, os Tavares, do Maio, quase todos tocamos. Mesmo os Tavares, dos EUA, são membros da minha família. Há também o Horace Silver.


CABO VERDE, 40 ANOS Quais são os principais ganhos de Cabo Verde nestes quase 40 anos da independência? Cabo Verde passou a ter uma identidade própria. Antes, éramos identificados como portugueses, éramos uma colónia. O batuque, o funaná, a tabanca, entre outros, eram géneros ou manifestações culturais quase que proibidos. Hoje em dia, somos conhecidos quase que mundialmente por causa da nossa cultura, da nossa música em concreto. Portanto, na minha opinião, o cabo-verdiano tem uma identidade própria, sim. Neste aspeto, Cabo Verde e nós todos, seus filhos, ganhámos muito com a independência. Para ti, quais são os problemas mais graves que temos neste momento? Hoje o mundo inteiro tem problemas, por isso mesmo os problemas que temos fazem parte daquilo que é a vida em si hoje em dia. O que no entanto me preocupa é que nos estamos a deixar mudar. Por exemplo, no Maio, tínhamos muita tranquilidade e hoje já não é assim. Um outro mal que me preocupa é o funcionamento na justiça. Há situações em que o cidadão é quase levado a fazer justiça com as próprias mãos. O que me preocupa realmente é o mau funcionamento da justiça. Ela não existe. O Maio também tem problemas de segurança? O problema no Maio não é gritante, mas é do pequeno que surge o grande. No dia a dia temos os pequenos ladrões que roubam uma garrafa de grogue, o fulano que rouba um cabrito, não sendo castigado, ele sente-se estimulado a fazer coisas mais graves. O mal tem de ser cortado de pequeno. Como é que vês o desenvolvimento da tua ilha neste momento? No Maio o desenvolvimento não existe, passou ao largo. Maio é uma ilha esquecida? Não acho que seja esquecida, fez-se muita coisa, mas não o suficiente.

O que falta no Maio é o turismo. Toda a gente sabe que a ilha tem potencialidades, mas não se sai disso. E a emigração? Ela marcou e marca, profundamente, a vida da ilha até hoje. Mas já não é como antigamente. No Maio, como é que o jovem passa o seu tempo? Não existe praticamente nada. E é isso que leva os jovens a entrarem na bebida, na droga. A droga não é em grande escala mas o alcoolismo é. A situação do Maio é realmente complicada. Há desemprego e acima de tudo falta gente a puxar pela nossa ilha. Enquanto cidadão, que valores defendes para o teu país? Primeiro temos ou devemos preservar a nossa caboverdianidade. A nossa principal riqueza é a cultura. É ela que nos tem levado mais longe. Aliás, tu próprio tens passado por essa experiência, não? Sim, no nosso documentário, quando o apresentámos em Berlim, houve uma enchente enorme. Nesse dia havia mais de 150 agentes comerciais, produtores musicais, etc.; assim que a exibição terminou, todos mostraram interesse em saber mais de Cabo Verde. Nisso dá para perceber que a nossa cultura é muito forte. A cultura é a nossa maior riqueza, devemos preservála e valorizá-la. Felizmente, tenho verificado que o nosso Ministério da Cultura tem feito muito nesse sentido. O AME [Atlantic Music Expo] é um grande evento. Os músicos é que têm de saber tirar proveito dessa oportunidade.

tenho atuado, sei que as pessoas não entendem o que eu digo mas mesmo assim sinto que elas acompanham o que toco e canto, só pela sonoridade. Disseste que não precisamos de ficar na muleta do português. Entendes que não precisámos da língua portuguesa? Isso não, de jeito nenhum, não é isso. Nós precisamos de todos, não devemos desprezar nada nem ninguém. Só assim nos tornaremos mais ricos, mais desenvolvidos.

CEDEAO: “ELES NÃO GOSTAM DE NÓS” Como vês a nossa relação com a África, nomeadamente com a CEDEAO? Eu tenho duas visões sobre esse assunto. A CAN [Campeonato Africano das Nações] deixou-me muito desiludido. Pela arbitragem, deu para ver que eles têm raiva de Cabo Verde. Eu era defensor de relações fortes com a África, nosso continente, sentia orgulho, mas depois com o que vi percebi que eles não gostam de nós. Eles têm raiva das nossas potencialidades. Isso me deixou profundamente desiludido. Eu mesmo disse, “se é assim, é melhor procurarmos o nosso lugar na Europa”. Nós, da mesma cor, do mesmo continente, nos tratam assim, dão-nos rasteiras o tempo todo, “não dá, então é melhor procurar outro caminho”. No caminho que eles nos mostraram não vamos conseguir chegar a nenhum lugar.

CRIOULO X PORTUGUÊS

Então achas que não temos lugar na CEDEAO? Verdadeiramente, não vejo; o lugar que dizem que nós temos é apenas aparente. É a minha opinião.

Crioulo. Como vês o assunto? (risos) Eu também quero ver como é que essa discussão vai terminar. Cada um discute e defende a sua proposta. Sou sim a favor da oficialização a médio ou longo prazo. Por enquanto, é prematuro. Entendo que não devemos ficar na muleta do português. Temos que ter a nossa identidade e isso passa pela nossa língua. Por onde

Como vês a presença de imigrantes africanos em Cabo Verde, eles são bem vindos ou não? Eu não vejo nada de mais. No nosso relacionamento eles é que se mostram complexados em relação a nós o tempo todo. Não posso deixar de reconhecer que há muitos caboverdianos que os injuriam, chamamlhes de manjacos, mas não vejo nada [ 193 ]


de mal nisso, eles é que puseram na cabeça deles que isso é ofensivo. Então achas que nós os cabo‑verdianos os recebemos como deve ser? Às vezes, não. Mas não é toda a gente. No geral eles estão aí a procurar a vida deles, ninguém os incomoda.

REFORMA DO ESTADO Em Cabo Verde fala-se muito na reforma do Estado. Na tua opinião, é preciso realmente uma reforma do Estado? Algumas coisas, sim, precisam ser reformadas ou melhoradas. Nessas coisas bato novamente na tecla da justiça. Um outro assunto de que muito se fala também é na regionalização. O que achas disso? Não vejo isso com bons olhos. Somos insulares, ilhas dispersas, por isso não sei se isso não virá a nos afastar ainda mais uns dos outros. Tenho muitas dúvidas. Há pouco falaste que a ilha do Maio devia ter mais voz. O que pensas da representação da tua ilha? Para mim, essa representação política não existe. O que existe é uma representação partidária de setores do

Maio. Não vejo interesse pelo Maio, o que vejo é sempre o interesse partidário. O próprio maiense troca a sua ilha pelo fanatismo do seu partido, não é capaz de pôr a ilha em primeiro lugar. Sendo uma ilha pequena, deve ser difícil viver no Maio. É extremamente difícil. Para já, há o problema do desemprego. No passado o Maio tinha a fama de ser uma ilha de boa gente, hoje essa virtude vemse perdendo. Encontrámos famílias separadas por causa de desavenças partidárias. Imagine, numa ilha como aquela, isso é feio. Maio não se desenvolve também por causa disso. Uns vêm para Santiago, Praia, eu mesmo começo a procurar a minha vida na Europa. A realização individual no Maio é reduzida. É suposto que numa ilha pequena como Maio o entendimento entre as pessoas fosse mais fácil. Mas não é. No meio pequeno as coisas positivas propagam-se rápidas, mas as negativas também. No teu caso, no Maio, o teu dia a dia é preenchido de que forma? Atualmente, fico mais em casa a trabalhar as minhas composições. As pessoas com quem posso tocar nos encontramos, normalmente à noite,

RETRATO DO CABO-VERDIANO Nós somos um povo bom ou mau? As duas coisas. É como diz a música do Morgadinho, “criol é bom, criol é doce, el é margoze; o quel ta sabe el é buzode, qonde el ta triste el é um coitod” (gargalhada). Não é preciso dizer mais nada. Sentes-te neste momento uma pessoa realizada? Em parte sim, porque a realização plena não existe. Acredito que já consegui realizar uma parte importante do sonho que eu queria realizar. Tenho razões neste momento para me sentir realizado ou feliz. E isso graças a este trabalho que a música me proporciona. Caso contrário, continuaria “largado” na ilha do Maio.

[ 194 ]

tomamos alguns copos juntos. Pessoas amigas, no tempo da campanha eleitoral nem se cumprimentam. Mas isso não é exclusivo do maiense, também acontece noutros lugares de Cabo Verde. Precisamente por isso é que este tipo de conduta me preocupa.

DIÁSPORA Em relação à diáspora achas que temos sabido aproveitar este recurso? Eu acho que sim. A emigração foi, para a nossa salvação, uma das melhores coisas que nos aconteceu a todos. Pessoalmente, se não fosse a emigração eu não estaria onde estou neste momento. O meu pai foi emigrante. Se não fosse isso eu não poderia estudar. Todos nós, cabo-verdianos, temos alguma relação com a emigração, na minha opinião, isso é algo salutar. Projetos futuros? Além da minha carreira, penso poder ajudar alguns talentos que vão surgindo em Cabo Verde. Quero ver se ajudo a introduzi-los lá fora também. Eu não quero sucesso só para mim. Da mesma forma que fui ajudado quero também retribuir o que recebi, ajudando quem precisa. Seria egoísmo não fazer isso. Cada um de nós tem de fazer alguma coisa pela nossa terra, pelo nosso país. O que te leva a pensar assim? Já reparei que o negócio da música está centrado apenas numa parte. Basta ver que os festivais de música em Cabo Verde giram sempre à volta das mesmas pessoas. São sempre as mesmas porque faltam mais talentos ou que porque há uma clique que domina tudo? Falta de gente não temos. Pelo contrário, temos muitos valores, só que ninguém olha para eles. É a política do negócio que centra tudo em torno dos mesmos nomes. Há quem prefira ter tudo fechado, como forma de se aproveitar melhor da situação. Isto é algo que precisa mudar. Pessoalmente, sentiste isso? Neste momento não porque trabalho fora. E devo dizer que


Eu era defensor de relações fortes com a África, nosso continente, sentia orgulho, mas depois com o que vi [na Copa Africana de Futebol] percebi que eles não gostam de nós. Eles têm raiva das nossas potencialidades.

nunca fui artista de palco, fui mais compositor, escrevia e dava aos outros para gravarem, por isso não senti diretamente o problema, mas que ele existe, existe. E é Cabo Verde que sai a perder. Isso deturpa a filosofia da nossa cultura.

NA ESTRADA Acreditas que a partir de agora esta é a tua vida, andar pela Europa por causa da música? Espero bem que sim. Conto ir até onde este nosso projeto me levar. Acho que ainda temos muito caminho pela frente, embora o próximo álbum eu já virei a aparecer como Tibau, ao contrário do primeiro disco. São os meus próprios companheiros que decidiram isso. E porque achas que isso está a acontecer? A adesão do público em relação às minhas músicas levou o grupo a concluir que talvez seja melhor elevar mais a minha presença no projeto. Qual é o vosso mercado principal? Por enquanto é a Alemanha, mas queremos explorar toda a Europa. Na

Holanda, por exemplo, temos muita aceitação.

FIGURAS

Há uma comunidade forte do Maio na Holanda… Não tem nada a ver com a nossa gente. Fiz dois concertos, um em Utrecht e outro em Amsterdão, toda a gente do Maio sabia, eu próprio estava expectante. Com sala cheia, em Amsterdão, só apareceram quatro dos meus patrícios. Só lá estavam brancos.

Nestes quase 40 anos de independência quem são as pessoas que na tua opinião mais se destacaram? Eu aponto Cesária Évora. Pode haver mais, mas neste momento é o nome que me ocorre. Ela atingiu uma popularidade nos lugares mais estranhos possíveis do mundo, levou a nossa música a lugares que a maioria dos cabo-verdianos nem sequer faz ideia. A popularidade dela é à escala mundial. Ninguém mais em Cabo Verde conseguiu isso.

Os pretos não acharam bilhetes. Qual história! Eu disse pessoalmente a alguns tantos que se quisessem me avisavam e eu deixaria os bilhetes deles na porta, não precisavam pagar, nem assim apareceram. O caboverdiano é sempre assim. Cada um é bom só de longe, de perto ninguém vale nada. O cabo-verdiano não reage bem ao sucesso do outro? Nunca. Sentes isso na pele? Todos os dias.

FUTURO E o futuro de Cabo Verde, na tua opinião? Eu entendo que desde que nos tornamos independentes só temos avançado. Por isso espero que continuemos a caminhar para frente.

[Cidade da Praia, 30-04-14] [ 195 ]


Onésimo Silveira

“Tudo está na Repúblic [ 196 ]


Figura conhecida dos cabo-verdianos, Onésimo Silveira, 79 anos, surge hoje como o principal rosto da regionalização em Cabo Verde, antes de mais, por ser o primeiro a lançar este tema para o espaço público caboverdiano. Nesta entrevista, expõe as suas razões na luta contra o facto de “tudo estar concentrado na república de Santiago”.

ca de Santiago”

O que é que caracteriza a identidade cabo-verdiana? Esta é uma questão difícil de responder em poucas palavras. Temos que recorrer à História para nos inspirarmos no processo de ocupação das ilhas, como foi, e por quem, mas também que valores traziam as pessoas que habitaram as nossas ilhas. No caso de São Vicente, ela é a ilha mais nova de Cabo Verde. São Vicente, enquanto sociedade, não tem 200 anos de existência, ao passo que Santiago, não, Santiago tem a idade da nossa história. São Vicente é uma questão mais periférica que nós procuramos encaixar na história de Cabo Verde. Mas respondendo à pergunta, porque nós nos poderíamos alongar muito mais, entendo que a identidade cabo-verdiana é feita de muitas especificidades. Ninguém pode dizer que Cabo Verde é isto, é aquilo e ponto final. Cabo Verde, na verdade, é muito mais especificidades do que generalidades. Em cada ilha mora um tipo de cabo-verdiano que deixa nessa ilha um tipo próprio de expressão e uma história muito própria também. Por exemplo, eu leio o Teixeira de Sousa e fico boquiaberto com o romanceiro da ilha do Fogo, que é expresso por personagens que encaixam perfeitamente no histórico foguense. Quando digo que somos iguais porque somos todos caboverdianos, eu tenho de dizer também que os foguenses, os santiaguenses, e outros também, porque para nós a ilha é uma casa dentro de uma aldeia particular. Vê então Cabo Verde como um conjunto de nove mundos em que cada ilha habitada é ela própria um mundo? Exatamente. Tenho defendido, ou insistido, com a regionalização porque dentro desses nove mundos temos um quadro social muito próprio para definir esse mundo como um submundo dentro de um mundo mais abrangente. Não é por acaso que temos uma língua – o crioulo – que tem sabores locais, embora dentro da mesma raiz, ou raízes. São sabores locais que nos obrigam a uma tensão muito mais particularizada do que aquela que gostaríamos, infelizmente. [ 197 ]


Tenho para mim que Cabo Verde não é uma criação. Cabo Verde é, antes de tudo, uma reação a uma forma de criação. Não sei se me faço compreender. Eu estou a acompanhar o seu raciocínio, e ocorre-me Gabriel Mariano, que definiu Cabo Verde como um tiro que saiu pela culatra do colonialismo. Exatamente! Não é por acaso que as ilhas foram colonizadas cada uma à sua maneira. Veja São Nicolau. São Nicolau é um produto não só de um tipo de administração, mas também de um tipo de pessoas que encarnaram ou que foram agentes do povoamento dessa ilha. Os são-nicolauenses têm uma maneira muito particular de estar em Cabo Verde e de estar no mundo. Fiquei admirado quando, uma vez, em Roterdão, encontrei várias associações de gente de São Nicolau. Uma dos naturais da Ribeira Brava, outra do Tarrafal, etc. Ao fim e ao cabo, já nessa altura, os são-nicolauenses sentiam a necessidade de se exprimir utilizando as suas raízes locais dentro de São Nicolau. Já não era Cabo Verde, nem São Nicolau, era algo muito mais particular do que isso. E isso é uma questão da diáspora que deveria interessar os estudiosos, porque, nos EUA, também fui encontrar, em Massachusetts, uma associação de gente só de São Vicente. Era a primeira vez que eu observava isso, achava que na diáspora éramos apenas caboverdianos. Mas hoje nos EUA e em vários outros países as associações são praticamente por ilhas. Sim, é verdade. E isso explica-se. Antigamente nem todas as ilhas ofereciam emigrantes para a nossa diáspora. No caso da Holanda, os primeiros cabo-verdianos a chegarem foram pessoas de Santo Antão, só muito depois chegaram pessoas das outras ilhas, inclusive de Santiago. Nos EUA, os primeiros foram as pessoas do Fogo, da Brava, de São Nicolau, por causa da pesca da baleia, é depois que chegam pessoas de outras ilhas. Ou seja, mesmo a história da nossa diáspora é marcada por contingências várias e particulares, ao mesmo tempo. [ 198 ]

De modo que, reitero, a nossa identidade é feita mais por especificadas e complexidades do que propriamente de generalidades. Daí eu me ter insurgido sempre contra toda a ideia que tenta deturpar as nossas diferenças para justamente nos roubarem o que é particularizante, nomeadamente quando isso é feito em nome da unidade nacional.

SÃO VICENTE, “OS VALORES VÊM DE FORA” Que marca especial, neste caso, a história ou a cultura de São Vicente ajudou a moldar Cabo Verde? São Vicente é uma ilha marcada pela sua vocação em procurar valores mais no exterior do que no interior de Cabo Verde. Por que diz isso? Porque conheço a história da minha ilha. Aqui, em qualquer debate, ou discussão, com quem quer que seja, as pessoas vão buscar exemplos do que se passa lá fora para justificar ou sustentar o seu ponto de vista. Os valores vêm sempre de fora. Há uma grande artificialidade nisso. Por isso é que devemos ter muito cuidado com o que exprime São Vicente, porque o que exprime é muito menos endógeno do que gostaríamos que fosse. Isso é resultado de ter sido uma ilha sempre aberta ao exterior? Exatamente. São Vicente recebeu uma contribuição de fora mas que nunca pôs em confronto com a realidade nacional. O são-vicentino recorre a histórias vindas de fora para justificar o que há aqui dentro do país. Mesmo na política, eu vejo isso recorrentemente. Por exemplo, para o mindelense, Baltasar Lopes não é um escritor como outro dos nossos grandes escritores. Compara-se Baltasar Lopes com grandes figuras lá fora. Mas por quê? Há aí qualquer coisa de psico no sãovicentino que o leva imediatamente a buscar termos de comparação fora da ilha, fora de Cabo Verde. Mas esse raciocínio não se aplica apenas a Baltasar, aplica-se também a António Aurélio Gonçalves, que

Alfredo Margarito considerou o mais europeu dos escritores caboverdianos. O Roque Gonçalves é um outro exemplo. Isto porque entendemos que eles estão acima da nossa mediania? Sim. Eu mesmo tinha essa ideia. Entendia que eles eram demasiado europeizados. Aliás, eles foram criticados por si em Consciencialização da literatura cabo-verdiana. Porque entendia que eles não nos forneciam elementos de base para compreendermos Cabo Verde. Foi um erro. Convenhamos, até o aparecimento do PAIGC e à africanização dos espíritos, os nossos intelectuais estavam virados para a Europa. Quanto mais não seja porque conheciam muito mal a África. Não conheciam sequer. Eu fiz-lhes o favor de dizer que conheciam mal África, realmente eles não conheciam África. Lembro-me do Baltasar que me falava de literatura senegalesa com base na leitura de um romance histórico, que falava dos senegaleses na primeira guerra mundial. Le Randonne de Samba Diouf, assim se chama. Mas a minha pergunta era como é que a cultura de São Vicente marca em especial as outras ilhas? Temos de ver esse assunto sobretudo depois da independência. Antes era uma coisa totalmente diferente. A independência trouxe uma socialização em vários domínios que enriqueceu, sobremaneira, a nossa maneira de ver uns aos outros. É com a independência que nos passamos a conhecer melhor uns aos outros. Mas por que diz isso? Antes de mais, a independência nacional trouxe uma grande mobilidade de pessoas dentro de Cabo Verde e isso é algo importante para definir, hoje, o carácter de cada ilha e de todas as ilhas ao mesmo tempo. Basta para isso ter em conta como as


pessoas se misturaram, quer através do convívio social, quer por via de casamentos, etc. Além da circulação entre as ilhas, a comunicação social é também ela responsável pela nossa nova cultura e maneira de estar enquanto cabo-verdianos. Sobretudo a televisão, ela traz-nos todo o Cabo Verde e o mundo para dentro de casa. Isso é algo extraordinário.

40 ANOS, “DIMENSÃO NACIONAL”

Ninguém pode dizer que Cabo Verde é isto, é aquilo e ponto final. Cabo Verde, na verdade, é muito mais especificidades do que generalidades. Em cada ilha mora um tipo de caboverdiano que deixa nessa ilha um tipo próprio de expressão e uma história muito própria também.

Para si, quais são os principais ganhos do país nestes quase 40 anos de independência? Eu diria, nestes 40 anos, ganhámos tudo e perdemos quase tudo. Ganhámos a liberdade que nós não tínhamos; ganhámos também uma dimensão nacional que antes estava plasmada na cultura, na nossa maneira de ser e na língua, e que, com a independência, passou a estar plasmada de outras formas, desde logo, numa Constituição que nos define, que nos organiza, e que nos mete num colete de forças, como sociedade moderna que somos. Antes, éramos um conjunto de ilhas, onde estavam metidas pessoas, simplesmente. Hoje, não. Hoje temos responsabilidades, deveres, direitos e tudo o mais que temos de seguir. Este é o nosso colete de forças. É por isso que ganhámos tudo e perdemos quase tudo ao mesmo tempo. E para si, quais são os principais desafios que se colocam ao nosso futuro enquanto nação? Como Estado, ou como país, falamos em desenvolvimento, mas não temos nada, ou pouca coisa, que nos autoriza a falar em desenvolvimento como os outros países desenvolvidos. Neste ponto, eu digo, Cabo Verde é um milagre. Tivemos três primeirosministros e cada um deixou-nos a sua marca. Pedro Pires teve a responsabilidade de trabalhar e provar, por atos, que Cabo Verde era um país viável. Muita gente não acreditava nisso. Inclusivamente há o caso de um cientista francês que esteve cá, nos anos trinta do século passado, o Auguste Chevalier, cujo livro li quando estava em Paris, no qual

defende simplesmente que as ilhas de Cabo Verde deviam ser abandonadas. Para ele, éramos um caso perdido. Nessa linha, muitas pessoas lá fora, durante os primeiros tempos da independência, eu estava nas Nações Unidas, diziam-me que chegavam a Cabo Verde, desembarcavam no Sal e quando viam aquele mundo descampado, perguntavam logo, “mas é isto Cabo Verde?! Isto não dá nem para viver quanto mais para desenvolver”. Neste aspeto, Pedro Pires terá feito algo muito bom para retirar essa imagem. Depois dele, veio Carlos Veiga, que representa um período não menos importante de renovações sociais e politicas. Com Veiga temos uma resposta política e cabal com a democratização do país. Cabo Verde deu um importante salto para a sua modernização, e modernização nos mais variados sentidos, a começar pelo político. Com José Maria Neves, temos acima de tudo um visionário. Gosto dele porque é visionário. Este é um dos grandes valores que ele trouxe à política cabo-verdiana. Como político e como jogador, ele é do tipo que toca a bola sempre para frente. E temos que reconhecer que o José Maria fez muito para que este país chegasse ao patamar onde hoje se encontra, provou-nos que muito do que tínhamos como impossível é afinal possível, também na linha, de resto, do Pedro Pires. Mas Cabo Verde ainda não é um país desenvolvido, é, quanto muito, um país de desenvolvimento médio, como agora se diz. Mas há quem nos diga que estamos à beira da riqueza, mas não damos conta disso. O José Maria diz que por volta de 2030 seremos um país do primeiro mundo. Acham-no visionário, utópico, por causa disso. No entanto, há gente séria, cientistas ou economistas, que diz que Cabo Verde não só é um país possível, como é capaz de atingir grandes patamares do desenvolvimento graças ao nosso sistema político que funciona, graças à boa governação, graças à ausência de corrupção… É claro que, aqui, como cabo-verdiano, eu deixo os outros dizerem isso, mas eu não tomo isso ao pé da letra. Temos, sim, problemas de corrupção, também temos ainda [ 199 ]


problemas com o sistema político. Para mim, tudo é relativo, sobretudo quando comparados com os nossos vizinhos aqui ao lado. Comparados com os grandes países da Europa, o quadro não é tão bonito como querem que nós acreditemos. Já temos uma corrupção endêmica instalada? Com certeza. Existe um paternalismo que se instalou na nossa máquina estatal e que é produto de uma cópia do que se passava aqui no período colonial. O nosso sistema de partido vai explodir um desses dias, porque é feito em base clientelar. O partidarismo vai arruinar Cabo Verde se não dermos a devida atenção ao que se está a passar. Para quem está lá fora, está tudo a correr muito bem. Mas eu estou preocupado com o nosso sistema de governo. E muito preocupado mesmo. Sobretudo com o facto de que nós não analisamos a política, considerando-a como um facto que está em permanente desenvolvimento, que há uma dinâmica da política muito própria. Nós, simplesmente, não paramos para ver isso.

QUE ESTADO? Com isso, pergunto-lhe: que Estado para Cabo Verde? Primeiro, que Constituição para Cabo Verde? No momento da independência não fizemos uma Constituição. Nisso os homens do PAIGC foram muito mais cautelosos e avisados do que a gente pensa. A constituição é algo que amarra e o PAIGC não queria ser amarrado. Qualquer tipo de constituição, na altura, iria obrigar o PAIGC a fazer concessões ideológicas à sua própria linha programática, que o levaria a tropeçar de imediato. Quando chegaram a Cabo Verde, o que é que os fulanos do PAIGC traziam? Traziam o mundo ideológico a conquistar e já conquistado. A constituição iria meter o PAIGC num colete de forças, que ele preferiu evitar, ganhando tempo. De modo que o PAIGC governou o país sem constituição durante quase cinco anos, quando já não era mais possível continuar apenas com a LOPE (Lei do Ordenamento Político do Estado). [ 200 ]


O MpD, pelo contrário, depressa fez uma constituição [aprovada em Setembro de 1992]. E fê-la com gente que dedicava uma atenção particularmente jurídica à questão constitucional, esquecendo-se de normas políticas essenciais. De modo que a nossa atual constituição está viciada pelo peso do jurídico, porque Wladimir Brito, Carlos Veiga e outros era tudo gente jovem que queria não só fazer uma constituição cabo-verdiana mas deixar nela a sua marca, a sua impressão digital de intelectuais e de gente formada e conhecedora desse tipo de questão na nossa lei fundamental. Ora, quanto a mim, a Constituição devia ser expurgada desses elementos subjetivos, marcas deste e daquele. Por causa dessas marcas, a Constituição é um documento mais jurídico do que devia ser e menos político do que devia ser. Por exemplo, ela não resolveu, na raiz, essa coisa fundamental que é a diferença entre a nação e a localidade.

REGIONALIZAÇÃO, “PIONEIRO” Sendo assim, para si, quais são as reformas mais urgentes que o Estado cabo-verdiano ou o país precisa neste momento? A regionalização. Nós temos uma ideia de unidade nacional que está fortemente viciada pelo coletivismo que herdámos do PAIGC. Pensamos na unidade nacional como uma soma de indivíduos em vez de pensar na unidade nacional como uma soma de realidades, de diversidades, que são as ilhas e quem nelas vive. Não fazemos isso, pensando com essa política da avestruz que estamos a preservar a unidade nacional. Para mim, isso é extremamente grave. Em qualquer parte do mundo, constitucionalistas e políticos avisados dizem-nos de cara: “Se não regionalizarem, vocês vão ter problemas. Porque durante dezenas de anos tudo irá correr bem, mas o que vocês vão fazer é a concentração de riquezas numa região”. É o que já acontece em Cabo Verde, a concentração da riqueza na ilha de Santiago. Por isso é que eu falo em fundamentalismo. Com uma argumentação que se insere num

pensamento não expresso e que coincide com o que eu chamo de fundamentalismo. A república de Santiago, também? Sim. Eles falam-nos na necessidade de economia de escala, retiram tudo e levam para Santiago. Porque Santiago tem mais necessidades que outras ilhas? Nem por isso, porque nós todos temos as mesmas necessidades como sujeitos de um mesmo Estado, Cabo Verde. O poder está concentrado em Santiago. Os economistas consideram que isso é uma espécie de delírio dos aviadores. Você, quanto mais tem, mais quer. Dizem os técnicos que muitos acidentes de aviação acontecem por causa do delírio da queda. Sofreremos de delírio de concentração de riquezas, que passa pelo poder económico e político concentrado em Santiago. Estamos a cair, mas o momento da queda ainda não chegou. E, até lá, vamos criando assimetrias. O José Maria Neves era um homem brilhante quando chegou ao Governo, em 2001. Pensei que ele iria resolver o problema das assimetrias. Na formação do seu governo, ele tinha em conta a geografia, os vários grupos sociais, entre eles o género. Ele falava na harmonia, falava em combater as assimetrias, mas, depois, mergulhou também nas assimetrias. Hoje a harmonia, o chamado desenvolvimento harmonioso, deixou de ser uma meta. Mas isso de desenvolvimento harmonioso é retórica que todos os políticos utilizam. Infelizmente, é verdade, o desenvolvimento harmonioso deixou de ser meta para ser retórica. Mas, convenhamos, Onésimo, a regionalização já não é tabu em Cabo Verde. José Vicente, não sei se te lembras quando vieste a São Vicente, em 1994, quando organizamos um encontro no qual eu lancei a questão da regionalização. Nessa altura lancei o manifesto da regionalização, que eu penso ser um documento atual ainda hoje. Eu dava pistas. Já aí eu dizia que a nossa Assembleia Nacional

estava a funcionar muito bem para a conveniência dos partidos mas não do país. Por isso temos de pensar na regionalização, criando uma segunda câmara que desse representação às ilhas. Eu releio esse documento, de vez em quando, e constato que eu não disse grandes asneiras. Hoje, toda a gente fala em regionalização, ela tem muita paternidade mas ninguém diz que foi Onésimo Silveira a lançar isso no mercado político cabo-verdiano. Onésimo, em política não há direitos de autor. Pois é, parece que é verdade, em política não há direitos de autor. Eu já fui convidado para debates ou encontros sobre a regionalização onde os oradores falam de coisas que eu expus nesse meu manifesto e em nenhum momento têm a honestidade intelectual e política de dizer que foram beber em mim. Todos a olharem para mim como se eu não tivesse nada a ver com o assunto. Assim é Cabo Verde. Mas eu dizia que a regionalização já não é tabu, porquanto o PAICV e o MpD parecem ter chegado à conclusão que a via é essa. Sim, agora, qual a regionalização é que continua a ser problema. Parece que ambos estão de acordo na regionalização, que deverá ficar entre a administrativa e a plano. Eles dizem isso porque são homens de leis. Mas eu, como sou político, digo: administrativa, plano, política, chamem-na o que quiserem, a regionalização é sempre política. Não há regionalização que não seja política. De qualquer forma, neste momento, estamos diante desses três conceitos. Aqui chegados, qual é a sua posição? Iremos debater. Nós temos que considerar, porque assim é, efetivamente, cada ilha é uma região. Podemos não estar habilitados a ter parlamentos em todas as ilhas, senadores eleitos em todas as ilhas, mas isso é algo que um dia poderemos fazer. Desde já, devemos pensar numa forma de regionalizar [ 201 ]


gradualmente. Nisso devemos admitir a regionalização como princípio essencial. Isso já acontece na prática neste momento. Sem dúvida, mas como implementar essa regionalização? Isto ainda vai levar mais uns bons pares de anos. E nisso estou de acordo com o Governo que é preciso tempo para se fazer uma boa regionalização. Então admite que a coisa leva tempo? Sim, tenho que admiti-la. A regionalização pode gerar conturbações políticas graves. Uma coisa é certa: nós temos que pensar seriamente na regionalização. Felizmente, os dois principais partidos já admitem isso, levando tempo de mais. A duras penas é que passaram a admitir isso, quando na prática, e por natureza, já somos um país regionalizado. Lancei a pedrada no charco em 1994 e só agora, depois de muito insistir, é que o assunto deixou de ser tabu. Cabo Verde deveme mais esta. Mas nisso, no que toca ao PAICV, temos que ter muito cuidado com Pedro Pires, porque ele é um homem da “unidade e luta”, e nunca vai deixar de o ser. Eu conheço-o bem, desde o tempo em que fomos colegas de carteira aqui no liceu em São Vicente. A formação política dele é toda ela baseada na “unidade e luta”. Ele é pelo coletivismo e, se puder, vai impedir que o PAICV vá para a regionalização. Tirando a regionalização, há outros dossiês dentro do Estado de Cabo Verde que mereçam ser tocados? A justiça. A nossa justiça é deliberadamente afetada por situações familiares e clientelares. Isto decorre do quê? Decorre do meio pequeno e da cultura do tipo tribal que existe em Santiago. Para se protegerem uns aos outros, independentemente da qualidade dos assuntos, a justiça não acontece como devia. Tudo porque, em Santiago, mexer na família é mexer em tudo. [ 202 ]

Mas a justiça em Cabo Verde não está apenas concentrada em Santiago. Mas em Santiago é assim! E é de Santiago que vem o exemplo. As leis são criadas em Santiago, formatadas e socializadas, primeiro, em Santiago e só depois vão para as outras ilhas. É sabido que muitos dos males da nossa justiça começam na feitura das próprias leis que o juiz tem depois de aplicar. Questões sociais. Nós não nos transformamos num país com uma grande política social quando não temos nem recursos para garantir a nossa sobrevivência. Qualquer Estado tem que se endividar para fazer boa política social. Segundo os grandes economistas nenhum país produz para garantir uma política social como a que foi ensaiada na Suécia, na Noruega e no resto da Escandinávia, e que vem sendo abandonada, progressivamente, por ser arruinante. Nos EUA, quando os republicanos combatem duramente o Obamacare, fazem-no baseados neste princípio: mesmo os EUA, um Estado rico, não pode dar-se ao luxo de fazer uma cobertura universal no domínio da saúde nem no domínio da educação. Acha então que Cabo Verde comete o erro indo para o Estado social? Não, não é um erro, mas talvez uma imprudência. Nós não podemos, à la longue, aguentar isso. Porque somos um país pequeno, ainda vão nos dando tudo. Qualquer país põe na balança o que produz e o que gasta, nós não temos balança para pôr a nossa produção, apenas recebemos e gastamos o que nos dão. E gastamos de mais, ainda por cima. O nosso orçamento recebe dinheiro vindo de fora e é com esse dinheiro que vamos fazendo o Estado social. Isso não tem futuro. Mas a graduação de Cabo Verde a país de rendimento médio também está a fazer-nos aproximar da hora da verdade. Por isso é que digo, desde já, que estamos a cometer uma imprudência. Vai chegar o momento em que vamos nos dar conta de que nem o que vem de fora nos vai garantir a sustentabilidade.

Eles falam-nos na necessidade de economia de escala, retiram tudo e levam para Santiago. Porque Santiago tem mais necessidades que outras ilhas? Nem por isso, porque nós todos temos as mesmas necessidades como sujeitos de um mesmo Estado, Cabo Verde.


FUTURO Então em relação ao futuro é pessimista, otimista…? Eu sou pessimista porque passamos a vida a infraestruturar em vez de produzir. Se as infraestruturas que hoje temos, graças aos governos de José Maria Neves, não forem utilizadas para a máquina da produtividade, podemos estar tramados. Mas é isso precisamente que ele alega, quando diz que era preciso aeroportos para receber turistas e portos para pôr a produção a circular, coisa que antes não era possível. Eu não estou a dizer que isso não seja bom. E é por isso que digo que ele é visionário, está a levar o país para frente, mas haverá um momento em que vamos nos dar conta da realidade económica deste país. Há países infraestruturadíssimos mas conhecem períodos grandes de crise. Veja o caso da França. Há quem diga que a França vai passar pior do que Portugal, porque, precisamente, tem despesas que o Estado não pode cobrir. Em Cabo Verde também, gastamos mais do que produzimos. Ainda por cima, a população está a aumentar e por isso é que vamos aumentar o barco. Eu sou cautelosamente pessimista.

CEDEAO, “NOSSA SOBERBA” A nossa integração sub-regional como é que a vê? Nós, mesmo contra a vontade de muita gente, vamos ter que integrar uma África que instintivamente passamos a vida a rejeitar. Eu nunca passei tão mal no meu país como quando, depois de restruturar a praça Estrela, distribui quiosques aos vendedores da Costa de África. Havia gente que me ia ver, na Câmara, para perguntar o que eu andava a fazer ou o que é que pretendia fazer, e uns interpelavam-me na rua, para dizer, “cuidado, não vais lá meter os manjacos, se não vais ter problemas”. E isso, meu caro amigo, não é só uma questão de São Vicente. O mesmo se passa nas outras ilhas. Eu, que vivi em Dakar, em Abidjan, meses em Conakry e no interior de Conakry, conheço vários países da região e vejo a maneira como integraram os

cabo-verdianos, pergunto-me: Por que razão é que nós, cabo-verdianos, temos a soberba de nos considerarmos superiores aos outros? Mas Franz Fanon não estudou isso? Exatamente. Ele e o Pierry Meimi, um argelino, estudaram a questão da colonização, a questão do branco e do não branco, o mestiço pelo meio. Realmente, nós devíamos revisitar esses autores, para ver se conseguimos compreender o que se passa com o cabo-verdiano. Nós, cabo-verdianos, somos um produto histórico particular. Nós devíamos tirar proveito da nossa particularidade. Havia nesta África quem mais admirava o mestiço do que Senghor e Nyerere? Eles diziam que o caminho está indicado por Cabo Verde. “Com a pobreza que vocês têm e o que vocês são capazes de fazer, a crioulidade é uma coisa boa”, diziamme. E quando vejo um homem como José Tomás Veiga a dizer que nós não temos nada a ir buscar à CEDEAO, Cabo Verde deve abandonar a CEDEAO – isso é coisa que eu li. Eu ouvi gente do MpD a dizer que nós não temos nada que ir buscar à CEDEAO, nada temos lá a fazer. Alguns amigos souberam disso e me perguntaram: “Onésimo, vocês em Cabo Verde são bons da cabeça?” Isso aconteceu comigo em Lisboa. Ainda em Lisboa, como começámos a negociar a parceria especial com a União Europeia, patrícios nossos bem posicionados me disseram: “Ainda bem, assim vamos nos libertar dessa coisa da CEDEAO”. Eu, às vezes, ainda me dei ao trabalho de explicar: “Cabo Verde só tem valor para a Europa enquanto formos uma plataforma de penetração dos países da CEDEAO”. A Europa exige a nossa presença na CEDEAO para fazer progredir o nosso acordo com a UE. Enquanto não tivermos uma relação sólida, multifacetada, com a CEDEAO, a Europa não nos vai abrir as suas portas. Cabo Verde está preparado para enfrentar o mundo, no sentido de procurar espaços de afirmação? Cabo Verde está no mundo por causa das suas especificidades sociais e culturais. Hoje a nossa diáspora é respeitada, convidada inclusivamente a se pronunciar politicamente e fazer

uma maior integração nas sociedades em que vive. O presidente da Câmara Municipal de Roterdão disse-me, um dia, que ele lamentava que um povo com gente com tanta qualidade não mandava os filhos para a universidade, mesmo sabendo que isso era de graça, não tinha que pagar nada. A nossa emigração era feita sobretudo por gente iletrada, logo, gente sem referência. Mas isso hoje está a mudar. Começa a aparecer uma geração mais letrada, com os filhos na universidade. Na Suécia também. É com essa gente que talvez venhamos a tirar melhor proveito da emigração.

DIÁSPORA, ALÉM DA “RETÓRICA” A propósito de diáspora, temos o melhor relacionamento com a nossa diáspora? Temos uma relação institucionalizada, é preciso fazê-la funcionar. Como disse, podemos tirar um proveito imenso da nossa diáspora porque cabo-verdiano pode ser um embaixador de Cabo Verde no mundo, lá onde ele estiver. Cabo Verde tem sabido tirar proveito desse recurso? Nem sempre. Em Cabo Verde as pessoas encarregadas de fazer esse trabalho, na maior parte dos casos, não estão habilitadas para o fazer. A diáspora não é ainda vista como um recurso estratégico. Que contribuição acha que a diáspora pode dar para Cabo Verde? No domínio cultural, por exemplo, essa contribuição pode ser extraordinária. A nossa diáspora pode funcionar como sentinelas culturais, como observadores privilegiados no domínio da cultura, trazendo a nossa atenção aspetos não explorados. Precisamos galvanizar mais a nossa gente lá fora, fazendo-a envolver-se mais com o futuro de Cabo Verde. E isso não pode ser só retórica.

LÍNGUAS, “BORBOLETAS” A questão das línguas, como a vê neste momento? A pergunta é pertinente, o que fazer com as línguas? Ainda não vi em Cabo Verde uma coisa que me daria [ 203 ]


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imenso prazer, uma fundação ou uma instituição que cuide dos nossos crioulos. Sem isso vamos estar aqui como borboletas. Vejo apenas cores a esvoaçar. O Onésimo é pela oficialização ou não do crioulo? Quando tivermos o crioulo estudado, que abranja as ilhas todas, serei a favor. Eu sou patriota mas não quero um crioulo oficializado para danar os outros crioulos. Eu quero o crioulo como língua e não como instrumento de hegemonia política. Isso existe neste momento em Cabo Verde? Não existe, mas está a caminho. Que espaço vê para o português em Cabo Verde? O português já tem espaço próprio em Cabo Verde. O seu único problema é o acordo ortográfico. Eu já não sei escrever português com a reforma que fizeram.

O nosso sistema de partido vai explodir um desses dias, porque é feito em base clientelar. O partidarismo vai arruinar Cabo Verde se não dermos a devida atenção ao que se está a passar.

CIDADANIA, “PARTICIPANTE” No mundo de hoje que tipo de cidadania almeja para Cabo Verde? Participante, responsável e responsabilizada. Que valores defende para a sociedade cabo-verdiana? Há valores universais e há valores locais. Nós, como país cristão, amarrados ao Ocidente, ao judeucristianismo, pelas condições das nossas sociedades e da nossa história, devemos dar uma atenção particular a este aspeto da nossa história. Passamos a vida a rejeitar. Em vez disso, devíamos analisar, porque quem apenas rejeita acaba por recusar coisas boas. Há uma crise de valores em Cabo Verde? Neste momento, sim. A crise é sobretudo de valores morais. O que se passa em São Vicente, se a minha mãe estivesse viva, ela não acreditaria. Tenho comigo duas filhas neste momento, uma com quase 18 anos e outra com onze, eu noto que não tenho valores capazes de levá-las a pensar na vida como pensam já. Os jovens

ganham hoje, com muita pressa, uma independência que lhes fecha a porta ao diálogo. Já não esperam sequer pelos 18 anos para se irem embora. Este já é outro mundo que não é o meu. No tempo das minhas irmãs, quando elas eram convidadas a um baile, iam buscá-las à casa e eram depois levadas à casa por quem as convidara. Hoje não. Hoje basta um assobio, um sms, a dizer onde será o forrobodó e pronto. Hoje não há praticamente valores. A família cabo-verdiana foi ultrapassada pelos tempos atuais? Completamente ultrapassada. E é pena. A boa família cabo-verdiana podia ser uma fonte para a resolução de muitos problemas, sobretudo para a juventude. Eu penso que em Santiago a coisa deve ser um pouco diferente ainda. Lá a família ainda tem muito mais força do que aqui nas ilhas de Barlavento.

FIGURAS, “LISTA GENTE” Minha última pergunta: nestes quase 40 anos de independência

quem são as figuras que merecem destaque? A minha lista é grande, felizmente. E dela eu não retiro os nossos políticos. Eles são responsáveis por aquilo que há de bom neste momento no nosso país. Posso criticar o Pedro Pires em determinados aspetos, nomeadamente ideológicos, mas penso que ele resgatou-nos da escuridão como Estado. Pouco tempo depois da independência passei a trabalhar nas Nações Unidas, em Nova York, contatava pessoas que regressavam de missões a Cabo Verde, elas me diziam, “Cabo Verde não tem pés para andar”. O Pires, como você sabe, combateu isso. Mas há gente que só pensa nos defeitos dele, o ódio que parecem ter por ele não as permite ver o que esse homem tem de positivo. É problema dessas pessoas. Depois veio o Carlos Veiga. Ele é o homem da máquina institucional de recorte democrático. Ele também deu uma grande contribuição para Cabo Verde ser hoje um Estado, uma democracia moderna e respeitada. Temos ainda o José Maria Neves. Como disse, gosto dele por ser visionário, porque joga para frente. O Cabo Verde que temos hoje deve-lhe muito também. Concluindo, para mim, esses três homens são figuras que ajudaram a elevar Cabo Verde no patamar em que se encontra neste momento. Nem tudo são rosas, mas nem tudo são espinhos. Assim é a lei da vida. Na cultura, mais concretamente na música, é claro que temos Cesária Évora, Mayra, Orlando Pantera, artista para quem tenho um lugar reservado. Ele estava não só a socializar na música temas essenciais, como estava a crioulizar a ilha de Santiago. Infelizmente, morreu de forma prematura. Escritores. O Germano Almeida e o Arménio Vieira são as minhas eleições. E, por fim, na educação, não posso deixar de mencionar o eng. Albertino Graça, pelo trabalho dele à frente da Universidade do Mindelo, como prova de excelência. Creio que ele é caso único em Cabo Verde, por isso merecedor da minha consideração. Acho que ele ainda tem muito a dar a Cabo Verde. [Mindelo, 11-05-14] [ 205 ]


Gabriel Fernandes

“A República de Santiago não existe” Gabriel Fernandes, 50 anos, natural de Santa Catarina, integra a nova geração de pensadores e ensaístas cabo-verdianos, sendo autor, entre outros livros, de A diluição de África (2002) e Em busca da nação (2006). Reitor da Universidade de Santiago, nesta entrevista, refuta a existência de uma “República de Santiago”, dá razão a Baltasar Lopes ao recusar o dilema de Cabo Verde entre África e Europa, etc.

Antes de mais, sendo o reitor da UniSantiago, por que razão abraçou o desafio desta universidade? A educação é um dos principais recursos emancipatórios dos caboverdianos. Desde os primórdios da nossa existência como povo, ela desempenhou um papel crucial na ascensão social da nossa gente. No pós-independência, Cabo Verde só não passou por determinados constrangimentos experimentados por outros países, por causa do número de quadros, como houve uma reforma do sistema educativo com base na qual milhares de jovens passaram a ter acesso ao ensino, nos níveis básico e secundário. Só que quando se chega ao superior há um corte, uma ruptura. Aqui, no interior de Santiago, não havia nenhuma instituição de ensino superior. A situação tendia a ser mais grave do que em qualquer outra região do arquipélago. Por exemplo, São Vicente, com uma população [ 206 ]

estudantil semelhante à de Santa Catarina e São Salvador do Mundo, tinha cerca de seis instituições de ensino superior. Praia tinha seis também. Isso em 2004. Na altura, entendemos que sem acesso ao ensino superior estaríamos a criar condições para uma reprodução inter-geracional de desigualdades, agravando com isso as assimetrias sociais e económicas, com efeitos catastróficos no que toca ao processo emancipatório dos sujeitos. Foi por causa disso que apostamos na Uni-Santiago. Nos nossos estudos concluímos que um aluno do interior de Santiago gastava o dobro para ter acesso ao que seu colega gastava na Praia. No fundo, o nosso objetivo fundamental é o de capacitar sujeitos, torná-los competentes para participarem numa sociedade móvel e competitiva como a que temos hoje, enfim, prepará-los para serem cidadãos plenos e do mundo.

A Uni-Santiago já é uma aposta ganha? Ainda é uma aposta por ganhar. Começámos do nada numa região, culturalmente encravada, onde as pessoas não tinham visibilidade sociopolítica, porque era meio esquecida. Por isso, implantar uma universidade aqui era, à partida, problemático. O desafio é muito grande e vencê-lo não é nada fácil, antes de mais, passa por produzir um conhecimento que seja útil e com relevância social. Neste aspeto , funcionamos como um agente transformador da nossa realidade endógena nos mais variados sentidos. Quantos alunos têm neste momento? Cerca de 800. Uma parte da nossa estrutura é aqui, na Assomada, mas temos a Escola Superior de Turismo e Administração, no Tarrafal, e a Escola Superior de Tecnologias e Gestão, na Cidade da Praia.


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Qual é o nível de empregabilidade dos vossos formandos? Ainda não temos dados definitivos, porque só recentemente formámos a nossa primeira leva. Contudo, são vários os alunos que já nos procuraram para informar que conseguiram o seu emprego. É preciso ver que a demanda educativa em Cabo Verde hoje não visa apenas o nosso mercado. Entre os nossos alunos, alguns são oriundos de São Tomé e Príncipe. Se no passado tivemos quadros a gerir outros territórios isso deveu-se à formação dessa gente, que se formou e emigrou. Hoje, mais do que nunca, devemos formar o cabo-verdiano para ser cidadão do mundo. Devemos formar nem que seja para emigrar. A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) já nos veio alertar que a emigração [ 208 ]

cabo-verdiana, hoje, não é das mais qualificadas. A diferença entre uma empregada doméstica ucraniana e a cabo-verdiana é abissal. A ucraniana, em dois meses, em Portugal, é integrada, a cabo-verdiana é capaz de passar 20 anos sem inserção. E isso tem a ver fundamentalmente com a educação. Se o pagamento é o mesmo, prefiro ter alguém capacitado. Portanto, no mundo de hoje, vale a pena garantir formação aos nossos nem que seja para emigrar. Como reage à ideia de que uma proliferação de universidades em Cabo Verde vai levar-nos a um exército de gente formada no desemprego? Eu não acredito que haja proliferação de universidades. Caso houvesse, as universidades estariam vazias. Nisso, devemos ter em conta que somos um

arquipélago, com regiões encravadas e não podemos esperar que uma única instituição desse cobertura a todas as necessidades formativas do país. Mas, por outro lado, admito a desconfiança que existe, até é aceitável que ela exista. Estamos diante de uma nova experiência e tudo que é novo causa algum desconforto, quiçá, alguma incerteza, que leva a alguma insegurança e desconfiança. E nisso a desconfiança é sobre a qualidade da formação, não? Sim. É preciso ver que no mundo de hoje as universidades já não são entidades altamente elitistas, herméticas, que no passado garantiam a exclusão total. Vivemos num mundo inclusivo, onde já se fala em esperança de vida escolar. Os países com mais esperança de vida escolar são os mais


desenvolvidos, porque, precisamente, apostaram na formação dos seus recursos humanos. Em Cabo Verde, mesmo com as atuais ofertas, temos apenas 22% de cobertura. Isto significa que estamos aquém do desejável. Mas o problema, em Cabo Verde, tem a ver com a qualidade dos cursos que se ministram. A desconfiança em relação à qualidade existe mas nem sempre ela se justifica. Nisso temos de lidar com um ethos comunitário que, por questões sociopsicológicas, leva-nos a ter baixa estima em relação ao que é nosso, isso tem sido nefasto na percepção das instituições de ensino superior em Cabo Verde. Veja: Cabo Verde foi dos primeiros territórios colonizados, em África, a começar o seu processo de formação de quadros. Em 1570 já tínhamos instituições voltadas para o ensino; em Angola, no início do século XX, havia escolas primárias mas só para brancos. Em Cabo Verde, nessa altura, já tínhamos centenas e centenas de jovens se formando, já tínhamos o Seminário Liceu de São Nicolau, a Escola da Brava, o Liceu em São Vicente. Mas se fizermos uma analogia entre Cabo Verde e os outros países africanos, o que se constata é que eles nos ultrapassaram de longe. Angola, em 1962, já tinha universidade, Cabo Verde não. Hoje, em cada novo ano letivo, há um ingresso de cerca de 140 mil alunos em Angola. Moçambique também. Cabo Verde perdeu competitividade aqui? Sim, claramente. Nunca criamos universidades por achar que não éramos capazes de ter boas universidades. Isso num país que tinha centenas ou talvez milhares de quadros a se formarem no exterior. E hoje, quando se tenta inverter esse quadro, temos a sociedade a questionar a existência de instituições de ensino superior. Isso decorre, claramente, da baixa espectativa da nossa gente em relação ao que nós próprios caboverdianos podemos fazer no que toca à formação superior.

CABO-VERDIANO, “SEMPRE À PROCURA” Diante desse quadro, quem é o cabo-verdiano? O cabo-verdiano é um ser ambivalente o tempo todo. Temos uma identidade crioula genuína, sólida, mas ao mesmo tempo amputada de si. Mas por quê? É como se vivêssemos o tempo todo sob a marca da incompletude. A identidade cabo-verdiana é algo que existe para os outros, mas é como se essa identidade não tivesse consciência de si própria. Estamos sempre à procura de algo que nos possa completar. Por isso, ora estamos atrás da nossa origem africana, ora atrás da nossa suposta origem europeia, e nessa busca nós não nos apercebemos como uma entidade específica. Ou seja, o cabo-verdiano é e não ao mesmo tempo, é isso? Somos um povo ambivalente que vive sob a marca da carência. O nosso próprio processo de busca de identidade é algo que denuncia essa nossa fragilidade ontológica. Veja, o inglês, o americano, não se preocupa tanto com a questão da identidade. O cabo-verdiano busca, o tempo todo, a sua identidade, e se assim se comporta é porque ele ainda não se encontrou. Eu pergunto se é o cabo-verdiano, enquanto povo, ou se é a nossa elite que assim procede? O processo de construção da identidade traduz dinâmicas que normalmente têm a ver com a elite. Os outros segmentos sociais não têm a preocupação com quem somos, com quem deveríamos ser, etc., é verdade. A elite, sim, preocupa-se com isso porque a identidade não existe por si só, ela está atrelada a agendas e projetos sociopolíticos. Quem diz “não sou africano”, o faz, no fundo, rejeitando determinadas categorias, características, ou aquisições, supostamente negativas de África. Mas, quando a África virar uma referência, tornar-se-á chique ser africano; nesse dia, essa mesma pessoa dirá, “OK, eu sou africano”. (risos)

Mas nesse dia, não estaremos também a recusar a nossa parte europeia? No fundo, é a mesma coisa, agora em relação à nossa parte europeia. Há aqui um processo de automutilação. As nossas origens como povo, o nosso suposto hibridismo, que tem a ver com o nosso processo histórico e com as nossas transações étnicoculturais, nos dão azo para explorar essa duplicidade de consciência, a viver sem fronteiras. Você acha que está em “between”, circula de um lado para o outro, de acordo com determinadas dinâmicas e circunstâncias e interesses. Mas isso é próprio do mestiço. Há o célebre poema do santomense Francisco José Tenreiro [1921-1963], que dizia “Quando amo a branca / sou branco… / Quando a negra /sou negro”. Sim. Isso não deixa de ser uma vantagem na atual configuração mundial em que não há confrontações existencialistas. Não há aqui a lógica binária em que é-se negro ou é-se branco, coisa que atrapalha a existência mestiça, por assim dizer. No âmbito dessas confrontações de cunhos existencialistas, o cabo-verdiano sentiu-se manietado no seu potencial emancipatório. Se repararmos bem, na luta pela independência, os caboverdianos não conseguiram erigir uma pauta política mobilizatória de base étnica. Não puderam mover-se como os outros africanos, “somos negros, vamos combater os brancos!” O cabo-verdiano foi obrigado a associar-se à Guiné para ter um suporte suscitável de garantir a mobilização. Em Cabo Verde, não; o sentimento de que éramos portugueses, basicamente, inviabilizava qualquer mobilização de base étnica. Ciente disso, Amílcar Cabral, em 1963, alerta que a luta aqui não podia ser contra o branco (português), propondo em vez disso uma mobilização em torno da disputa pela terra e pelo salário. Ou seja, independentemente do que nós [ 209 ]


todos, inclusive Cabral, possamos pretender, Cabo Verde é uma realidade muito própria. Sim, sem dúvida. Forçosamente, aqui, a questão tinha de ser posta em base de dominação e não de pertença. Aliás, conversei há dias com um octogenário, lúcido, que me dizia que em Santo Antão, no período colonial, não eram portugueses que tiranizavam as pessoas. Eram caboverdianos. Sim, ele tem toda a razão. Por causa das nossas fragilidades, sempre precisamos de âncoras. A questão sempre foi posta em termos dilemáticos, isso desde o tempo em que os cabo-verdianos lutavam pela autonomia em relação a Portugal. Quando, em 1974-75, Teixeira de Sousa põe a questão, ele diz que Cabo Verde não se pode tornar independente sozinho, “para os do PAIGC a solução é a Guiné-Bissau, para nós a solução é Portugal”. Cabo Verde, para sobreviver, não tem podido contar com a sua peculiaridade. Ele é sempre obrigado a estar vinculado ou agregado a uma ou outra esfera, e, normalmente, são esferas inconciliáveis. De um lado, estavam aqueles para quem a solução era África, do outro lado aqueles que defendiam a Europa. Com isso, criámos uma descontinuidade absoluta dentro daquilo que podia ser a realidade homogénea. O tecido sociológico da nação existiu antes da luta pela independência, mas fomos obrigados a ignorá-lo. Quando você diz “somos africanos, o nosso destino é inexoravelmente africano”, temos os claridosos que dizem “somos uma coisa muito especial, nem Europa nem África…” Por causa disso, a nossa identidade ficou manietada e perdeu visibilidade como algo autónomo. Neste momento, há condições, sim, para assumirmos a nossa ambiguidade. Isso não é negativo, é compatível com as tendências da atual configuração histórica mundial em que tudo está em tudo. Enquanto povo e nação, estamos mais propensos para a globalização e para o cosmopolitismo, para forjar uma cidadania mundial do que aqueles outros povos considerados donos de si e que por isso se fecham, acabando por negar qualquer incerteza. [ 210 ]

Devemos formar nem que seja para emigrar. (…) A diferença entre uma empregada doméstica ucraniana e a caboverdiana é abissal. A ucraniana, em dois meses, em Portugal, é integrada, a cabo-verdiana é capaz de passar 20 anos sem inserção. E isso tem a ver fundamentalmente com a educação.

Com isso, não está a dar razão a Baltasar Lopes, para quem não tínhamos nada que encaixar Cabo Verde na Europa nem em África, porque somos uma entidade própria, Cabo Verde? Baltasar Lopes realmente foi o primeiro a defender a nossa peculiaridade. Essa peculiaridade nos torna porosos, significa que não podemos cair no autofechamento de cunho identitário. Quando Baltasar diz que não se pode pôr a coisa em termos dilemáticos, no sentido de sermos África ou Europa, mas cabo-verdianos, tout court, ele tem toda a razão. Mas isso foi uma fase subsequente. Na fase inicial, Baltasar quis mostrar que Cabo Verde era uma região de Portugal e que mesmo a suposta mestiçagem, nomeadamente aquilo que constituía o fenótipo do caboverdiano de ser africano, não podia ofuscar a nossa alma lusitana. Se quiser, na fase inicial, ele deixouse levar por esse lusitanismo meio existencialista. É na fase subsequente

que ele vem a ter esse ganho qualitativo, no sentido de reconhecer a peculiaridade da cultura caboverdiana, no sentido também de mostrar o carácter estratégico da pertença lusitana, quando ele diz para sermos “intransigentemente regionalistas para podermos ser inteligentemente portugueses”. Isso significa que você é regionalista mas não vai entrar numa situação de ruptura, sob pena de comprometer a própria sobrevivência enquanto povo como parte de um todo. Mas ele disse isso no início, nos anos trinta, portanto, não na fase subsequente, como você diz. Nesse momento, ele quis destacar o papel que o cabo-verdiano deveria merecer no universo colonial lusitano. Ou seja, ele tratou de mostrar que Cabo Verde deveria merecer um papel diferenciado. Isso nos anos trinta, realmente. Para Baltasar, a pertença lusitana de Cabo Verde é estratégica, não é substancial, não deriva de afinidades eletivas, como diria Max Weber, e não de algo que possa ser substancial e existencialista. Ele teve essa lucidez que hoje nós não temos. Às vezes, me deparo com afirmações, de figuras nossas, intelectuais, que nos dizem “nós temos uma África profunda em nós, temos raízes africanas, o nosso destino é africano!” A verdade é que se formos procurar África profunda em Cabo Verde é como se você estivesse a atribuir à identidade algo que ela não tem. A identidade é estratégica, é uma construção. Se repararmos bem, enquanto seres humanos, o que nos separa é praticamente insignificante. A ideia de nação é realmente uma invenção humana recente, tem pouco mais de 200 anos. Sim, por isso é que quem procurar uma África profunda no caboverdiano não vai encontrar jamais. Não há africano puro, não há caboverdiano puro, europeu puro, etc. Stuart Hall [1932/2014], pensador que estudou a diáspora africana, fala dessas historicidades mutuamente condicionadas. Segundo ele, a experiência da colonização marcou


indelevelmente tanto o colonizador quanto o colonizado. Quando os colonizadores chegaram à América, disseram “encontrámos gente tão complicada, gente que come gente, gente que lida com as coisas tão complexas, que, ou somos selvagens ou selvagens são eles, mas não somos iguais”. Isso visava colocar o colonizado numa situação de inferioridade absoluta para legitimar a colonização. É isso que hoje está a ser desconstruído. A África, enquanto construtu, e a Europa, enquanto construtu, estão a ser perpassadas por um outro tipo de discurso. É isso que constitui a perspetiva pós-colonial, que, no fundo, desmonta o existencialismo identitário. Relativiza essas pertenças. É isso que precisamos fazer também em Cabo Verde. Não recorrer ao existencialismo totalmente superado no mundo atual, em termos de debate. Por isso é com alguma reserva que vejo figuras ilustres a dizerem que devemos seguir para a África, porque “somos africanos!”, e nos apontam para vermos “isto e mais aquilo”, para comprovar que “somos africanos…” Gabriel, neste momento, o que queremos é correr atrás do crescimento económico africano… (risos) Se for isso, seria aceitável. Ancoragem a África, hoje, é mais uma “solução mágica” para os nossos eternos problemas de sobrevivência. É verdade. Não sei se você reparou na altura do acordo de parceria estratégica com a Europa, o nosso africanista de serviço desapareceu de cena, ressurge agora com o crescimento de África. Com as possibilidades que afinal existem no continente, surgem logo aqueles que apontam para pegarmos a nossa veia africana e reativá-la para procurar o lugar que nos pertence por direito. O cabo-verdiano, no fundo, é oportunista, onde estiver a mina ele lá aparece para tirar a sua parte. É verdade, e isso, se quer saber, é salutar. Nós conseguimos jogar com a dimensão estratégica da nossa identidade. [ 211 ]


Mas também cria confusões às pessoas. Do ponto de vista identitário, vivemos em permanente ziguezague. Mas o mundo atual é mesmo assim. [Jürgen] Habermas falou da intransparência, dizendo que hoje em dia as grandes metas narrativas estão perdendo peso, vamos construindo pequenas histórias que estão permeadas por várias outras histórias. É por isso que costumo dizer que a tal trajetória ambígua de que somos portadores pode funcionar como importante capital simbólico para uma nova ética cosmopolita, ou seja, você não se fecha em si, não tem uma identidade, de tal modo forte e autónoma, que possa condicionar-lhe no seu relacionamento com os outros. Não entramos no momento de autocelebração, porque estamos ainda à procura de âncora. Essa procura é que pode funcionar como referencial simbólico para uma nova ética cosmopolita. Pode dar a sensação de fragilidade, mas, no fundo, demonstra uma incompletude que garante a abertura e a inclusão. Quando você se considera dono de si, fechado em si próprio, você não se abre, tolera mas não aceita, não partilha. Cabo Verde, por esse prisma, pode funcionar como um patamar de reconciliação de algo que foi colocado sempre em termos polarizados e dilemáticos. Baltasar Lopes, quando alertou para não pormos as coisas em termos dilemáticos, no fundo, estava a dar esse sinal do hibridismo que hoje está em voga. Ou, pelo menos, construiu um ideal em termos teóricos.

SANTIAGO “EM” CABO VERDE Uma das questões que o meu roteiro coloca é que contributo especial a sua ilha – Santiago no seu caso – deu para o que Cabo Verde é hoje? Eu relativizo os contributos que cada uma das ilhas deu. São ilhas isoladas, pequenas, com histórias parecidas, todas tiveram o seu processo de formação atrelado à dinâmica de cruzamento de povos e culturas. Não vejo, por isso, nenhuma ilha que possa destoar-se tanto de outra no que toca ao seu processo de configuração mais substancial. [ 212 ]

Baltasar Lopes realmente foi o primeiro a defender a nossa peculiaridade. Essa peculiaridade nos torna porosos, significa que não podemos cair no autofechamento de cunho identitário. Quando Baltasar diz que não se pode pôr a coisa em termos dilemáticos, no sentido de sermos África ou Europa, mas cabo-verdianos, tout court, ele tem toda a razão.


Ainda assim, cada ilha tem as suas particularidades. A particularidade de Santiago resulta do facto de ela se ter constituído numa ilha de profundas transações étnico-culturais e de experiências governativas, experiências essas que, no fundo, acabaram por fazer com que Cabo Verde tivesse uma trajetória diferente dos demais países africanos. Isso porque, ao longo do período colonial, tivemos momentos, ainda que efémeros, de autogoverno – isso é paradoxal porque você está sob dominação, mas você conseguiu, com isso, condicionar a agenda política do território. Isso só aconteceu na ilha de Santiago. Designadamente, nos anos em que os governadores não puderam cá estar, quando cá estavam morriam, ou eram mortos, portanto, a câmara da Ribeira Grande assumia a direção do território. Essa experiência de autogoverno, a partir do regresso dos brancos reinóis, a meu ver, foi crucial para termos a propensão emancipatória ou para termos a propensão em não aceitar uma dominação que pudesse basearse na descontinuidade absoluta entre colonizadores e colonizados. Portanto, o cabo-verdiano, a partir desse tipo de experiência, sentiu-se cada vez mais próximo do colonizador. A meu ver ainda, essa experiência, quando transportada para outros espaços arquipelágicos como São Vicente, ajudou a criar uma espécie de consciência nacional. Se na ilha de Santiago tivemos um período de relativa estagnação e de relativa submissão ao poder colonial, a partir do Marquês do Pombal [16991782], nas outras ilhas, houve um redimensionamento dessa dinâmica emancipatória com base nos intelectuais. Portanto, em Santiago, a experiência de autogoverno é algo que esteve, no fundo, ligada a uma elite económica que foi depois desmantelada. Em São Vicente, temos uma elite intelectual que conseguiu alguma pujança. São processos que acabaram por contribuir para o surgimento da nação ou tornar problematizável a nação. Concluindo, tanto a experiência de auto-governação quanto a experiência emancipatória, com base numa dupla

interlocução, em que o intelectual procura posicionar-se entre o colonizador e o colonizado, fala em nome do colonizado mas procura desmontar as bases legitimadoras da colonização, mostrando ao colonizador que ele não tem suporte cultural ou civilizacional superior ao do colonizado. E muito menos competência técnica. Lembro-me de uma crónica de Nho Djunga [João Cleofas Martins, 1901-1970] a ridicularizar o engenheiro português que vem ensinar o cabo-verdiano a fazer calçada. Sim, no caso de Cabo Verde isso foi evidente. Se repararmos bem, desmoralizou na fonte, por assim dizer, a tal ciência colonial. Com base na ciência colonial, o colonizador dizia-se legitimado, fazia parte da sua missão histórica civilizar indígenas. O “ato colonial”, de Salazar, era isso. Absolutamente. Se em Cabo Verde não temos indígenas, ou se o suposto indígena atingiu patamar civilizacional e cultural do colonizador, significa que você desmontou a base legitimatória da colonização. Vem-me à mente o Gabriel Mariano, que dizia que Cabo Verde era um tiro que saiu pela culatra do colonialismo português. Sim, dizia. Você não subscreve essa tese? Apenas em parte. Aquela história do sucesso do mulato, quando transportada para o campo social, é de se relativizar. Aliás, o José Leitão da Graça corrige o Gabriel Mariano quando afirma que Cabo Verde não é o mundo que o mulato criou mas o mundo que o cabo-verdiano criou. No meu segundo livro – Em busca da nação – ponho em causa essa perspetiva de Gabriel Mariano. Isso porque a questão racional não se põe nesses moldes em Cabo Verde. Ademais, quanto a essa suposta excelência do mulato em relação ao colonizador, o sistema português tinha esse discurso. Sem saber,

Gabriel Mariano se apropriou desse discurso, como fez o Gilberto Freyre, quando lança a ideia do mundo que o português criou. O objetivo, no fundo, desse discurso não era destacar a excelência do dominado, por isso é que o tiro não saiu pela culatra, como pretende Gabriel Mariano. Pelo contrário, era estratégia do colonizador mostrar a experiência cabo-verdiana, ou mesmo a brasileira, para legitimar a sua presença nos outros territórios. Em relação a nós Marcello Caetano disse: “Nesse ponto de vista, Cabo Verde é uma missão cumprida, portanto, a nossa missão em Cabo Verde já está no fim, agora é para continuarmos o que iniciamos em Angola, na Guiné e Moçambique”. Ainda hoje vemos, em Portugal, uma certa satisfação ou orgulho pelo facto de Cabo Verde ser o que é, chamando a si esses setores parte do nosso suposto sucesso. Desde logo, a nossa democracia. Isso no fundo era altamente contraditório. Eles faziam-nos saber que já éramos europeus mas morríamos aqui de fome. Éramos abandonados. Estas ilhas foram vendidas ou entregues à Companhia Grão Pará e Maranhão, tivemos a emigração para São Tomé e Príncipe, etc. Tudo isso mostra que nós não tínhamos atingido o patamar que diziam que nós estávamos, não tínhamos nenhum tratamento especial por causa desse suposto patamar civilizatório. No entanto, esse era um discurso que convinha ao colonialismo, porque legitimava a sua presença nos outros territórios numa altura em que essa presença estava sendo contrariada. Os nossos intelectuais, no fundo, foram ingénuos, erigindo um discurso em torno dessa mistificação lusitana. E em relação ao mundo que o mulato criou, concordo com José Leitão da Graça. De facto, em Cabo Verde, ao contrário de outras colónias, tivemos a emergência do “branco da terra”, processo no qual o negro vira branco por se ter apropriado dos bens materiais e simbólicos do pai branco, logo, isso desmonta qualquer divisão de base estritamente racial. O mulato, nos moldes em [ 213 ]


que se referiu Gabriel Mariano, basicamente, não existe e não tem poder sócio-transformador. No lugar disso, temos uma elite, os chamados “filhos da terra”, que se contrapôs à apropriação dominadora do colonizador. O cabo-verdiano, com a ida dos primeiros brancos reinóis, começou a ter essa experiência. É o cabo-verdiano e não o mulato em si. Esse cabo-verdiano podia ser branco, negro ou mulato. Sabemos que em Cabo Verde branco não era necessariamente branco, branco era quem tinha bens, tanto mais que o cabo-verdiano se descobre negro quando sai de Cabo Verde.

CABO VERDE, 40 ANOS Dando um salto, na sua opinião, nestes quase 40 anos de independência, quais são os principais ganhos do país? Um dos grandes ganhos é a estabilidade social e política. Não obstante a nossa condição de arquipélago, não nos deixamos levar pelos discursos separatistas, não criámos fissuras intransponíveis. E isso tem a ver com a educação. Em Cabo Verde, tivemos dois recursos emancipatórios de peso, a educação e a emigração. A emigração possibilitou uma abertura do mundo, mas também garantiu que a sociedade não continuasse num processo de fragilização permanente, de que resultassem fomes, mortes, etc. Isso criou uma base para a capacitação de sujeitos no sentido de eles se tornarem, de facto, autónomos, quebraram a dependência a que estavam sujeitos. Pois, uma coisa é você estar completamente dependente de determinadas estruturas estatais, de certas estruturas intermediárias, e ficar na situação de permanente ou de potencial revolta, como acontecia no tempo em que a estrutura agrária fazia com que as pessoas ficassem gravitadas ou confinadas à plantação. Cabo Verde, devido à emigração e à educação, é uma sociedade em que as pessoas, paulatinamente, foram se libertando da plantação, deixando de viver da dependência do capataz e da esperança que lhe era trazida pelo padre. [ 214 ]

Neste aspeto , São Vicente apresenta uma outra história, a partir da sua industrialização. Também atrelada à educação, São Vicente teve uma trajetória sui generis que permitiu o despoletar da consciência nacional. Em Santiago, pelas suas características, dificilmente teríamos condições para pensar a nação. Aqui há uma elite que está atrelada ao poder, na Praia (Plateau), e há os chamados badios de fora, confinados ao campo, tendo que contar com a mediação do capataz e um padre como tutela. Em São Vicente, não, lá temos uma estrutura social diferente, há um segmento que conta com uma outra mediação, a mediação dos intelectuais, e uma orientação para a nação. Isto tem a ver, também, com a industrialização, e tem a ver, acima de tudo, com a educação. No período pós-colonial essas duas valências, outrora em vigor só em São Vicente, acabaram por se transpor para Santiago também. Através da educação conseguimos discutir e perspetivar a nação, participando no espaço público. Por isso, uma das rupturas paradigmáticas que ocorreu com a independência foi exatamente a capacitação de sujeitos para abraçarem a causa nacional, para abraçarem o processo de desenvolvimento e assumirem os destinos das ilhas. A mediação nos moldes anteriores acabou, o camponês deixou de ter o capataz e o proprietário como mediadores, o espaço público tornouse apropriável por todos, abriram-se espaços de transações culturais, onde as pessoas passaram a fazer valer as suas aquisições. É por isso que, a par das ajudas que nós recebemos, com a independência nacional, dois recursos de peso condicionaram esse processo, a emigração e a educação. A emigração por ter feito a nossa gente libertar-se do campo. O campo era um grande fardo, um inferno para o cabo-verdiano do mundo rural. Não tinha uma expetativa de vida muito alta. A educação, a par da emigração, possibilitou esse aumento de expetativa. O grande ganho adveniente da independência é o aumento da expetativa que nós conseguimos, e de que maneira. Em todos os níveis – políticos, culturais, económicos,

etc. Isso acabou por construir o caboverdiano capaz de ver o presente, mas capaz de se projetar no futuro.

REFORMA DO ESTADO, “SEM EMPATIA” Hoje há um grande debate sobre a reforma do Estado em Cabo Verde. Em primeiro lugar, o Estado precisa ser reformado ou isto é uma falsa questão? Entendo que devemos ir criando as condições para a refundação do Estado. Não sei se conseguimos, até hoje, um Estado que tenha a empatia do cidadão. A nossa matriz escravocrata impôs-se a partir da materialidade bruta, que teve os seus desenvolvimentos no período pós-colonial, com o partido único. Também no partido único não havia espaços para uma interlocução e que permitisse que o cidadão pudesse funcionar como tal. Com a democratização, há uma descompressão política benéfica, mas continua a haver os resquícios tanto da matriz escravocrata quanto do partido único. Contudo, o indivíduo ainda não é tratado como um agente, como entidade suscetível de merecer respeito, o reconhecimento; temos um Estado que, no seu relacionamento com o cidadão, está aquém das legítimas expetativas dos cidadãos. Em alguns países – caso da Inglaterra, por exemplo – houve reformas no sentido de levar o Estado a tratar o cidadão como cliente, como consumidor. Parte-se do princípio que a mesma dignidade, o mesmo tratamento que você gostaria de ter enquanto cliente ou consumidor, é o que você deve dispensar ao cidadão sempre que este solicita um serviço ao Estado. Em Cabo Verde, isso constitui ainda uma das nossas fragilidades. O indivíduo, chegando às estruturas do Estado, não aparece como cliente, mas como pedinte. Isso é algo que deve merecer a nossa atenção, e quiçá provocar uma espécie de reforma para se garantir o exercício pleno da cidadania. Por outro lado, devemos criar condições no sentido de condicionar ou fiscalizar o poder político. Isso passa pela capacitação dos sujeitos,


almejar no quadro que temos neste momento e que poderemos ter? É fundamental que se quebre a apatia social. A cidadania ativa não se compatibiliza com a lógica do deixa estar como está para ver como é que fica. “Não posso continuar, ad infinitum, a não pôr em causa determinadas estruturas, a deixar o statu quo como está, porque, senão vou ser considerado persona non grata”. A meu ver, um dos caminhos possíveis passa pela valorização do quadro legal, batalhemos para que determinados critérios objetivos sobreponham-se sobre determinadas vontades.

nomeadamente a educação e a formação, tornando o cidadão mais emancipado, para ele garantir uma maior fiscalização do sistema. No quadro de dependência em que o Estado aparece como o Grande Empregador, o cidadão vai se sentir sempre manietado, incapaz ou coagido a não fazer determinadas coisas, sob pena de sofrer as consequências. Diante disso o que fazer? Pessoalmente, não sei se a resolução desses problemas requer ou não uma reforma do Estado, mas devemos apostar, cada vez mais, na capacitação dos sujeitos para se tornarem mais autónomos, com maior potencial fiscalizador, e melhorando, necessariamente, a qualidade da nossa democracia. Porque num Estado onde os cidadãos aparecem como tendo tutela permanentemente, com redes clientelistas, principalmente a nível do poder local, as pessoas tornam-se subservientes. A subserviência não é compatível com a democracia, as pessoas não ficam ciosas dos seus direitos e deveres, e isso vai criando uma cúpula que, no fundo, vai se sobrepor ao tecido social, anulando o potencial sóciotransformador desse mesmo tecido social. É isso que, a meu ver, deve ser levado em consideração. Mas temos também a questão da meritocracia, se você me permite. Se se não apostar no mérito – e isso é típico dos meios pequenos em que a suposta universalidade da lei acaba por perder consistência a partir das relações rotineiras em que as amizades acabam por fazer com que perca a pujança o caráter abstrato da lei – o Estado não vai conseguir funcionar como tal. Não vamos também conseguir acabar com determinadas nódoas da nossa administração se não valorizarmos o imperativo que a lei se sobrepõe aos interesses mais imediatos e aos vínculos estabelecidos nos campos informais de interação social.

CIDADANIA, “ATIVA” E “SEM TUTELA” Daí a minha pergunta também, que tipo de cidadania podemos

São Vicente teve uma trajetória sui generis que permitiu o despoletar da consciência nacional. Em Santiago, pelas suas características, dificilmente teríamos condições para pensar a nação. Aqui, há uma elite que está atrelada ao poder, na Praia (Plateau), e há os chamados badios de fora, confinados ao campo, tendo que contar com a mediação do capataz e um padre como tutela.

Em Cabo Verde, há lei para quase tudo, no entanto, temos a realidade que temos. Hoje em dia, quando se fala da esfera pública significa que estamos a falar de um espaço de publicitação de agendas, negociação de pautas, de explicitação de diferendos e de reivindicação permanente. Isso só é possível, só tem consistência, numa sociedade em que a dependência dos indivíduos em relação ao Estado reduz-se ao mínimo. Nos países europeus conseguiu-se isso através da implantação do welfare state, o Estado de bem estar social. Que está condenado também. Está condenado por falta de dinheiro. Seja como for, no welfare state o indivíduo tem o básico para se manter. Ele não tem a sua vida nas mãos de um pequeno grupo ou dependendo do voluntarismo alheio. Em Cabo Verde, a quebra do indivíduo em relação ao Estado pode ajudar-nos a fazer com que aquilo que está regulamentado seja efetivado realmente. O indivíduo, ou a sociedade, como um todo, oporse-ia a quaisquer desvios em relação ao quadro legal e regulamentar. É um dos caminhos. Isso passa pela capacitação dos sujeitos, pela emancipação, pela educação e pela conscientização dos cidadãos. Portanto, é um processo longo… Sim, longo. Porque isso tem a ver com o ethos, com a mudança de mentalidade, coisa que não se resolve a curto prazo. A pessoa é sempre levada a pensar o que é que “eu ganho com isso”. [ 215 ]


(...) num Estado onde os cidadãos aparecem como tendo tutela permanentemente, com redes clientelistas, principalmente a nível do poder local, as pessoas tornamse subservientes. A subserviência não é compatível com a democracia, Temos então uma sociedade civil adiada no tempo? A sociedade está a despertar, mas de forma ténue, quase imperceptível. No espaço público a subpolítica pode condicionar a política. Há países onde duas ou três pessoas podem pôr em causa o sistema. Na nossa estrutura atual, africana e mesmo a cabo-verdiana, a subpolítica ainda não consegue condicionar a política. Por isso, a sociedade civil precisa despertar. Num meio pequeno em que todos se conhecem, onde a abstração da universalização a lei acaba por ser ofuscada por esse medo, isso dificulta o tempo todo a nossa democracia, o que acaba por dificultar a afirmação da cidadania. Um cidadão do século XXI precisa perder a tutela, precisa quebrar a rede clientelista, precisa de ser autónomo. O exercício da autonomia, da liberdade e a capacidade para desenhar a vida a partir daquilo que constitui os seus próprios projetos é crucial para uma sociedade mais forte e também indivíduos mais fortes.

REGIONALIZAÇÃO, “CLARIFICAR O DEBATE” Um tema que está lançado para o debate é a regionalização. Qual é a sua opinião? A regionalização nos moldes em que vem sendo destacada por alguns atores não é viável. O princípio da regionalização pode ser bom, mas o modus operandi pode ser problemático. E nisso os pressupostos e propósitos, nem sempre confessáveis, podem ser também problemáticos. Regionalizar a qualquer custo pode ser nefasto. Tornar uma ilha uma região é inviável em Cabo Verde. Já imaginou Indonésia com 18 mil ilhas? Fazer de [ 216 ]

cada ilha uma região é um suicídio. Isso aumentaria de tal modo as estruturas que anularia o potencial emancipador dos indivíduos. A regionalização, tal como está sendo apresentada, não significa o aumento das estruturas individuais, mas sim o aumento das estruturas de controlo, de gestão, etc. Nisso vamos ser obrigados a alocar mais recursos para determinados agentes, com risco de criar outras tantas redes clientelistas sem o controlo central. Enfim, são riscos que obviamente podemos correr, por isso devemos explicitar as bases a partir das quais estamos a projetar essa regionalização. É um debate que carece de aprofundamento. Havendo propósitos não confessáveis devemos procurá-los até explicitar as verdadeiras bases disso. A seu ver, quais são esses propósitos não confessáveis? Vejo, em primeiro lugar, a questão do poder. Temos uma elite que não se sente devidamente representada ao nível político ou que, de alguma forma, perdeu pujança económica e procura o resgate da sua dignidade perdida. Não quero generalizar, mas podemos ter essa situação também. Por isso é que convém explicitar as bases da regionalização de que se fala. Se formos regionalizar com base em projetos baseados em ressentimentos de grupos específicos, de alguma forma ultrapassados, por causa de dinâmicas outras, estamos a avançar para uma péssima regionalização, nefasta para a própria população que supostamente pretende servir. Quero com isso dizer que o impulso para a regionalização pode ter a ver com questões mal resolvidas, no fundo. Por vezes, há discursos, insinuações,

que passam pelo resgaste de uma determinada região, recuperação da sua história, da sua cultura, etc. Isso passa, por exemplo, pelo discurso “nós em São Vicente não temos nada a ver com Santiago, que é África, vamos recuperar a nossa dinâmica passada que tem a ver com os nossos antepassados europeus”. Essa pode ser uma das bases enviesadas dessa reivindicação regionalista. Os defensores da regionalização, em São Vicente, queixam-se da centralização que existe na Praia. A reclamação faz sentido ou não? Feliz ou infelizmente, somos um arquipélago, há reivindicações que podem emanar de um ressentimento histórico que independe dos recursos alocados ou a alocar. A suposta decadência de São Vicente pode não ter necessariamente a ver com medidas endógenas ou uma desaceleração de investimentos em São Vicente. Pode, nomeadamente, ter a ver com dinâmicas outras e que passa pela decadência do seu porto. Eu ia com alguma regularidade a São Vicente. A última vez que lá fui, confesso, não gostei do que vi. Achei que São Vicente merece mais. Mas merece mais em que sentido? Se está perdendo pujança, isso pode ter a ver com uma mobilidade outra dos seus quadros. Se os quadros se estão fixando na Praia, construindo aqui a sua vida, pode ter a ver com dinâmicas que não têm a ver com investimentos, mas com a vocação de uma determinada região ou local. A capital, em qualquer parte do mundo, acaba sempre por atrair gente de todos os lugares. Não é por causa de indústrias ou de investimentos feitos no período póscolonial. Se repararmos bem, depois da


independência, não se priorizou Praia, não se priorizou Santiago, em matéria de certos investimentos. Eu se for falar com os naturais de São Vicente, eles vão dizer o contrário. Podem até dizê-lo, mas os factos mostram que o programa de infraestruturas, neste momento, por exemplo, perpassa por todas as ilhas, mesmo lá onde o retorno desses investimentos é incerto. No cômputo geral, ainda hoje, Santiago não é a ilha que tem prerrogativa nisso. Existem ainda muitas zonas encravadas, as regiões mais pobres do país estão em Santiago. Santo Antão, Fogo, São Nicolau também padecem do mesmo problema. Então, no caso de Santa Catarina e todo o interior de Santiago, poderíamos fazer uma manifestação para exigir a regionalização. É por isso que o problema não tem a ver com a alocação de recursos, há questões que nos transcendem e que têm a ver com a pequenez do nosso mercado, com dinâmicas outras relativas a investimentos externos. Ninguém pode obrigar um grande operador a construir hotéis em Santa Catarina se ele sabe que tem o retorno do seu investimento mais rápido no Sal ou na Boa Vista. Nem faria sentido nos dias de hoje. É por isso que eu entendo que se deve dar a devida atenção a determinadas manifestações, só não sei se isso passa realmente pela mudança da estrutura administrativa ou pela reformatação do Estado. Passaria por o quê, então? Passaria, por exemplo, pela fixação das pessoas no campo. Neste momento, sem dúvida, estamos a ter melhorias significativas. No caso de Santa Catarina e todo o interior de Santiago, por exemplo, já temos alunos que não precisam deslocar-se à Praia para fazer a sua formação superior. Hoje assiste-se a um outro tipo de fixação em Santa Catarina. Eu próprio fiz uma casa em Entre-Picos, vários emigrantes estão a fazer o mesmo. Por quê? Porque hoje já há estrada, energia, telefone, água,

internet, a vida é possível mesmo em lugares como Entre-Picos. No campo, a vida já não é um inferno. Ou seja, precisamos criar condições para as pessoas se fixarem nas suas ilhas, não terem a necessidade de procurar centros como Praia ou Mindelo para a sua realização pessoal. E, neste debate, se formos fazer uma avaliação de quem é que está a garantir o suposto centralismo em Santiago, mais concretamente na Praia, iremos descobrir que os que dirigem Santiago não são necessariamente de Santiago. Praia é uma cidade que se tornou cosmopolita e se deixou apropriar por todos, e se formos fazer uma análise de ganhos todas as ilhas acabaram por ganhar. Onésimo Silveira fala numa república de Santiago. Com esse tipo de discurso ele está apenas a exponenciar fissuras ao invés de explorar os elos que nos unem. No caso dele, o problema tem mais a ver com Praia e não Santiago. Se assim não fosse, nós no interior de Santiago poríamos as mesmas questões que são postas pelos regionalistas de São Vicente. Nós, aqui no interior, não usufruímos daquilo que é Praia; pelo contrário, também sofremos dos mesmos supostos males que levam São Vicente a reclamar. Não temos, aqui, instituições de ensino superior do Estado, não temos indústrias, não temos atividades turísticas, não temos investimentos sólidos. Portanto, a questão não é a república de Santiago, quanto muito, seria a república da Praia. E mesmo essa suposta república da Praia é uma república em que, chegando lá, você encontra os recursos a serem apropriados por atores de todas as ilhas, de outros países inclusive, e os praienses, naturais, estão basicamente numa posição periférica. O que a Praia é, por um lado, resulta daquilo que Cabo Verde conseguiu ser. E, por outro lado, o que a Praia é não traduz jamais ganhos exclusivos para praienses, são ganhos para cabo-verdianos. Na Praia, encontramos milhares de pessoas do interior de Santiago, de São Vicente, de São Nicolau, de Santo Antão, do Fogo, etc. Praia é, sem dúvida, a cidade mais cosmopolita de Cabo Verde hoje. E isso devia ser

valorizado. Uma cidade que conseguiu congregar no seu interior pessoas provenientes de várias origens e conseguiu gerir essa presença sem traumas. Diferentemente de algumas outras ilhas, em que encontramos a descontinuidade absoluta, pessoas que chegam e se veem manietadas na sua cidadania. É só ir à Boa Vista e ver como vivem os que lá chegam, de Santiago e do continente, por exemplo; em pouco tempo, você se dá conta da descontinuidade e a fissura nítida que se estão criando. Há claramente pessoas excluídas. No Sal, é a mesma coisa. Estamos numa ilha turística com fenómenos outrora inimagináveis em Cabo Verde. Do tipo? Bairros de lata que albergam duas, três ou quatro mil pessoas, pessoas que trabalham para os hotéis, a viver em condições sub-humanas. A discrepância e o desequilíbrio que estamos a ter é algo que não aconteceu nem marcou a trajetória da Praia, enquanto capital. Aqui, os que chegaram conseguiram, paradoxalmente, melhor projeção, o melhor enquadramento, a melhor habitação, dos que os que lá estavam ou estão. Nós, que saímos da Assomada e vamos para Praia, conseguimos melhor conforto, em termos habitacionais e de emprego, de projeção pessoal ou social, do que o próprio natural da Praia. Os de São Vicente a mesma coisa. Os do Fogo idem. Ou seja, na Praia, todo o mundo conseguiu espaço, ninguém foi manietado na sua aspiração. Portanto, essa república de Santiago, de que tanto fala Onésimo Silveira e que não existe, seria a república da Praia, e mesmo a república da Praia é uma república cabo-verdiana, afinal.

ÁFRICA E EUROPA, “SEM EXCLUSÃO Temos ainda o problema da integração sub-regional de Cabo Verde na CEDEAO. Qual é a sua posição sobre o assunto? Eu sou favorável a essa integração. Cabo Verde, pela sua vocação e pela sua história, é um país posicionado [ 217 ]


para ter vários pontos geopolíticos aos quais aliar-se. O único problema é quando a integração se põe em termos dilemáticos, exclusivistas. Se entrarmos nessa dinâmica de polarização, de incluir inexoravelmente Cabo Verde no destino africano, por considerarmos que não há outra saída, que somos obrigados moralmente, politicamente, historicamente, eu discordaria desses pressupostos. Uma integração estratégica, que tenha como preocupação a inserção no mercado, com a exploração de potenciais ganhos, desse mercado, é bem vinda. Mas considerar uma integração em termos polarizados, do tipo ou isto ou aquilo, e não isto e mais aquilo, para mim, é problemático. É problemático por quê? Antes de mais, porque não resolve o problema de Cabo Verde. Essa opção deixar-nos-ia numa situação de vulnerabilidade permanente, com destinos atrelados a âncoras, a meu ver, também frágeis. Quando agora se fala na ancoragem africana, eu vejo países africanos que, para sobreviverem, precisam de âncora. A África, por si só, não pode ser considerada uma âncora exclusiva para o Cabo Verde atual. No fundo, a África, por si só, não resolveu os seus problemas, é isso? Sim. Basta ver que o mercado da CEDEAO é frágil, as transações comerciais são com os países europeus, que por si funcionam como âncoras desse grande mercado que é a CEDEAO. Obviamente que devemos ser pragmáticos o suficiente para explorarmos as potencialidades do nosso mercado regional, mas não a ponto de pensarmos que os nossos problemas se resolvem virando as nossas relações com a CEDEAO. Importa, portanto, prosseguir com certas potencialidades que já são ganhos. Não podemos descurar da nossa relação com a Europa, quando já a temos. É sempre mais uma parceria. Explorar a nossa relação com o Brasil é, também ela, super salutar. Portanto, colocar a coisa em termos dilemáticos – África ou Europa – é que pode ser altamente pernicioso. E fragiliza-nos. [ 218 ]

Fragiliza por quê? Cabo Verde sempre viveu disso. Ao longo da nossa história, nunca estivemos atrelados, única e exclusivamente, a uma única região. Mesmo no período colonial. Na Ribeira Grande, a transação era com a África, com o Brasil e com a Europa. Hoje, mais do que nunca, devemos explorar essa nossa vocação, buscar e garantir uma espécie de múltipla inserção. Ficar isolados, não temos condições; ter que escolher entre um e outro é reforçar o isolamento. Além disso, enquanto país diaspórico, devemos continuar a procurar e explorar a nossa disseminação pelo mundo. Qualquer diáspora é sempre uma espécie de região. O mercado que queremos explorar em África, podemos explorar com o mercado cabo-verdiano em Portugal, por exemplo. A mesma coisa com os cabo-verdianos que estão nos EUA. Esta tem sido uma dimensão subvalorizada mas que pode trazer mais valias na potencialização das nossas transações comerciais. Cabo Verde é uma nação que não cabe no seu território, transcende as suas 10 ilhas. Somos dos poucos países com uma diáspora tão significativa. Precisamos explorar isso mais e bem. Este é também um dos caminhos possíveis a explorar. E em relação à Europa, as nossas relações estão no melhor ponto? Aqui temos altos e baixos. Tivemos um período de ufanismo com a parceria especial; a Europa entrou em crise, agora, está todo mundo a virar-se, com vigor, para a África. Daqui a pouco, mudando o vento, nos sentiremos confortados com a Europa de novo.

DIÁSPORA, “POR DESCOBRIR” Há pouco referiu-se à diáspora. Na sua opinião sabemos lidar com a nossa diáspora? A nossa relação com a diáspora ainda está longe de ter sido explorada até à exaustão. O que falta fazer? Entendo que, por um lado, devíamos estar mais aptos para colher dividendos da nossa diáspora bem sucedida e mais atentos às vicissitudes da nossa

diáspora fracassada. Não devemos trabalhar como se tivéssemos uma diáspora homogénea. Vejo um subaproveitamento dos quadros e empresários espalhados pela Europa, EUA, que nós, no fundo, desconhecemos. Há trabalhos consistentes sobre Cabo Verde e os cabo-verdianos feitos a partir da diáspora que nós não publicamos ou que não damos visibilidade, isso é nefasto. Precisamos, pelo menos, de uma ponte que possibilite a essa diáspora o mínimo de identificação com as suas origens. Criar esse vínculo significa abrir as portas ao Cabo Verde cosmopolita. Mas, por outro lado, temos uma diáspora que vem experimentando das maiores catástrofes humanitárias da atualidade. Quando a gente pega os cabo-verdianos que vivem em São Tomé e Príncipe (STP), obviamente que há algumas medidas que estão sendo tomadas, mas entendo que enquanto cabo-verdianos, enquanto pesquisadores e enquanto decisores, precisamos colocar isso na agenda internacional, talvez. Não podemos deixar um povo completamente encravado, com perda da sua cidadania, à margem de tudo, porque não são cidadãos de STP e são subcidadãos de Cabo Verde, deixar a situação como está, no fundo, é ser cúmplice com uma tragédia humanitária. Neste ponto de vista, a nossa diáspora ainda está por descobrir e por se descobrir. Temos jovens que estão completamente encurralados nos países de acolhimento, não conseguem dar continuidade aos estudos a partir de determinado ponto, porque são excluídos das bolsas de estudo. Por exemplo, aqui na Uni-Santiago, recebemos 20 jovens que vieram de STP, 10 dos quais com isenção total de propina, porque, pelo sobrenome, no seu país, eles são excluídos, à partida. Precisamos por isso de fazer o mapeamento desses nossos jovens tornados subcidadãos e se não fizermos isso estaremos a sufocar uma parte de nós. O momento de autocongratulação que nós temos enquanto povo, que conseguiu se dar bem com a independência nacional, é manchado por essa diáspora mal sucedida.


É preciso não esquecer que esses cabo-verdianos foram para STP como contratados, deixaram de ser contratados, mas não se tornaram cidadãos, estão completamente desguarnecidos de qualquer sistema de proteção, isso é prejudicial para a nossa imagem. É preciso responsabilizar os atores concretos, levar isso para arenas específicas de transações internacionais era um dos caminhos. Isso passa pela responsabilização do Estado português ou é um problema apenas de Cabo Verde? A responsabilidade é de todos nós, mas do Estado português acima de tudo. Veja, fala-se tanto de solidariedade africana, por isso é que a gente acaba por ficar cética em relação a essa solidariedade. Veja, no caso de STP, nós nos podemos insurgir contra a situação dos nossos conterrâneos, mas amigos meus santomenses me dizem que o problema da miséria em STP é global, não afeta apenas os cabo-verdianos. É verdade. O subdesenvolvimento perpassa toda a sociedade santomense, não afeta apenas os cabo-

verdianos. Só que os cabo-verdianos, de facto, estão confinados. Dando ainda conta da conversa que cheguei a ter com um santomense, eu respondi-lhe que é verdade que há toda uma população em STP com graves problemas sociais, mas que os cabo-verdianos que lá estão são nosso problema e, como tal, tudo que pudermos fazer por eles está dentro das nossas obrigações, como Estado e como nação. Realmente, é como você disse a essa pessoa, é “nosso” problema. Isso passa pela recuperação dessa diáspora, responsabilizando atores concretos. O Estado português é um desses atores. Podemos não cobrar muito ao Estado santomense porque a situação social é catastrófica para todos. Mas a situação é mais dramática para os caboverdianos. Por isso é que devemos trabalhar no sentido de dar uma atenção a essa diáspora e fazer com que esse conceito se torne operatório, de facto. Isso passa por que medidas? Passa por garantir um acompanhamento atento, sistemático, politicamente

consistente, da nossa diáspora. Não é com medidas pontuais, nem com encontros periódicos, que nós criamos vínculos. Os nossos serviços – embaixadas e consulados, por exemplo – devem trabalhar para que a diáspora tenha consistência no país de acolhimento. Desde logo, precisamos do tal mapeamento para sabermos onde estão os cabo-verdianos bem sucedidos pelo mundo, nos mais variados campos – político, cultural, empresarial, desportivo, etc. Ora, já é altura de garantirmos consistência política à diáspora, trazer a diáspora até nós, mas levar Cabo Verde à diáspora também.

LÍNGUA, “UMA MANCHA” Um dos temas da nossa vida é a língua, nomeadamente a oficialização ou não do crioulo. Qual é a sua opinião sobre o assunto. Para mim, a não oficialização do crioulo é a maior mancha de Cabo Verde pós-colonial. Em vários países encontramos línguas forjadas – francês, o italiano, o alemão, o inglês, etc. – a partir de [ 219 ]


variadíssimos dialetos. Nós, em Cabo Verde, conseguimos um veículo de comunicação, que foi se moldando ao longo dos tempos, com as suas variantes, e, em vez de tirar proveito disso, ficamos às voltas. É uma coisa impressionante. Quando Cabo Verde se tornou independente a nossa língua já estava como está hoje, híper-consolidada, mesmo assim, não conseguimos, até hoje, torná-la nacional. Isso não passava por tornar o crioulo apenas como língua oficial, significaria tê-la como oficial, sem descurar o português como língua oficial também. Em vez disso, temos o crioulo relegado para o segundo plano, para os subterrâneos, para a informalidade, para a componente folclórica da nossa cultura. No fundo, isso tem a ver com opções políticas de uma determinada elite. É a forma que se encontrou de continuarmos a nos distanciar, tem a ver com o legado do colonialismo. Independentes, democratas, mas nem tanto. (risos) Isto é, podemos estar nivelados pela condição socioeconómica mas, na dimensão simbólica, vamos manter o distanciamento, porque a dimensão simbólica tem um peso político muito forte. É isso que acaba por fazer com que haja essa discrepância e isso é uma anomalia muito grande. Não dá para nos gabarmos de sermos uma nação e você descorar daquilo que é o marco indelével da sua nacionalidade, ou da sua pertença nacional, que é a língua. Ter o português como a única língua oficial de Cabo Verde, não atribuindo o mesmo estatuto ao crioulo, é uma das maiores manchas do Cabo Verde pós-colonial. Neste debate, há a disputa – mais uma vez – entre as variantes de Santiago e de São Vicente. Para si, isso constitui ou não um problema? A língua nacional cabo-verdiana, que todos desejamos, é algo que tem de ser negociado por todos. Nessas situações deve haver cedências e não podemos criar comissões cujos membros são chamados por critérios que nada têm a ver com a verdadeira natureza do problema. [ 220 ]

Você disse que no passado as línguas foram forjadas. Certo. Mas mais do que forjadas elas foram impostas pela espada e pela bala. Sim, é verdade.

… se formos fazer uma avaliação de quem é que está a garantir o suposto centralismo em Santiago, mais concretamente na Praia, iremos descobrir que os que dirigem Santiago não são necessariamente de Santiago. Praia é uma cidade que se tornou cosmopolita e se deixou apropriar por todos, e se formos fazer uma análise de ganhos todas as ilhas acabaram por ganhar.

Hoje isto não é mais possível. Nos vários países europeus houve um processo de assimilação. Pela força. Com certeza. “A língua é esta e você vai se sujeitar a ela”. Nos dias que correm é impossível isso. Há vários mecanismos, que não passam pela força, necessariamente. No Brasil, a língua portuguesa chegou a ser imposta, ainda no tempo de Getúlio Vargas. Ele decidiu que a língua era a portuguesa e que quem falasse italiano, alemão, ou seja lá o que fosse, ia para a cadeia. Por causa disso, as outras línguas ficaram confinadas ao espaço privado dos seus utilizadores. Foi, mais uma vez, uma solução autoritária. É por isso que no caso cabo-verdiano, o problema não é tão grave, porque já temos uma língua, o crioulo, com valências, mas que não deixa de ser o crioulo. O problema é negociar. Essa negociação implicará necessariamente cedências, a busca de bases científicas e busca de propostas tecnicamente aceitáveis, e não impostas. Ou seja, se formos analisar a língua, definimos a estrutura dessa língua, mas uma estrutura aceitável por todos, não vamos ter dois crioulos. Um dia vi uma apresentação, que não sei se era aula ou não, onde para o urso, havia duas versões, uma que dizia ursu e outra urse. No Brasil não temos uma grafia carioca para eu tchivi e outra, mineira, para tive, da mesma forma que não temos homi ou muiê, para o nordeste, e homem ou mulher para outros lugares. A língua é portuguesa. O mesmo poderia acontecer em Cabo Verde, com o crioulo. Prefiro acreditar que há condições, sim, para consensos no que toca ao crioulo. Uma coisa é a estrutura formal e outra coisa são as formas idiomáticas, idiossincráticas também, a serem salvaguardadas, inclusive pelos


meios informais de comunicação. Porque, mesmo no Brasil, uma coisa é o carioca a falar, outra é o nordestino, o baiano, ou mesmo o gaúcho, a falar, mas nem por isso a língua e a escrita deixam de ser uma só, o português. O mesmo se passada em Portugal. Sim, a forma de falar do alentejano nada tem a ver com o seu irmão do Norte. O fulano diz binho e nem por isso deixa de escrever vinho. Portanto, no caso do crioulo, não é tão difícil assim. Todos temos de aceitar que o sujeito de Santiago diga nhôs enquanto o de São Vicente diz bzôt. Com essa história do crioulo, criamos barreiras intransponíveis quando isso era desnecessário. Repare, já no início do século XX, o jornal Notícias de Cabo Verde trazia debates sobre o crioulo. Lembro-me de Pedro Cardoso a defender o crioulo e do outro lado um tal Augusto Miranda a dizer “crioulo, expressão efeminada, não tem pujança, não tem poder, a língua portuguesa é máscula! É uma língua que manda. Crioulo é como a morna, não presta”. Isto nos anos trinta. Ainda hoje, bem vista a coisa, o português é a língua do poder. Sim, ainda hoje, quando nos dirigirmos a alguém em português, estamos a marcar distância e temos o crioulo como uma espécie de resistência. Quando alguém se dirige ao outro em português esse alguém faz questão de responder em crioulo e se eu me dirigir a alguém em crioulo ele me responde em português. É sempre preciso muito cuidado.

FIGURAS, “UMA CADEIA DE ACRÉSCIMO” Nestes quase 40 anos que figuras destacaria para ilustrar o Cabo Verde de hoje? No campo cultural, no que toca a Santiago, destaco Katchass [Carlos Alberto Martins], que conseguiu tirar da periferia o funaná. Eu me lembro, quando garoto, eu fugia dos tocadores de gaita. Isto porque a minha mãe, mentalizada pelos padres, dizia que aquilo era obra de Satanás. Isso foi uma das medidas mais trágicas, na

medida em que se procurou apagar do imaginário uma das aquisições mais fortes da nossa identidade, o funaná, a tabanca, o batuque, o crioulo. Isso tinha a ver com propostas de poder que, no fundo, não eram coisas novas, aconteceu em vários outros espaços, onde você tem uma cultura prototípica, a seguir por todos, em contraponto a outras manifestações, que não são consideradas culturas mas subculturas, e que por isso deviam ser banidas. E Katchass conseguiu reavivar manifestações que tinham sido banidas ou votadas ao ostracismo. Infelizmente, o crioulo não conseguiu, até hoje, igual dignidade. Mas sobre isso já falamos. Além do Katchass, cito também o Norberto Tavares. Além do trabalho de resgaste musical, Norberto teve também a coragem de pôr em causa o statu quo, ele fez uma música que apontava contra a instrumentalização da arte, exponenciando o trabalho dele. No campo político, dos primeiros dirigentes, cito Aristides Pereira, que foi uma grande figura. Ele conseguiu, juntamente com os seus pares, garantir a estabilização política de Cabo Verde. Obviamente que tivemos uma agenda revolucionária, que acabou por se consolidar como uma agenda de vencedores sobre os perdedores; ainda assim, a religião manteve-se, ainda que em situação latente, a iniciativa privada manteve-se também, não houve a preocupação da anulação total do resto. Isso foi um ganho em Cabo Verde. Embora em situação de ruptura, houve determinados valores que foram salvaguardados, determinadas figuras que foram preservadas. Isso contribuiu, de certa forma, para o reforço do tecido social. A par disso houve também a credibilização do país, o que fez com que Cabo Verde pudesse manter uma interlocução com vários atores. É por isso que destaco Aristides Pereira. Mais recentemente, cito Carlos Veiga e outros pelo seu papel na luta pela democratização de Cabo Verde. Hoje temos o José Maria Neves. Todos são indivíduos que fazem parte de uma cadeia, de acréscimo. Como vê, eu não sou apologista do código binário, ou branco ou negro,

ou centro ou periferia, ou PAICV ou MpD… Por convicção, busco pontos convergentes. Portanto, nessa base, e na perspetiva de continuidade, as figuras políticas que mencionei conseguiram assumir determinados desafios concretos e que de se certa forma contribuíram para a valorização de Cabo Verde, enquanto país e Estado, para atingirmos o patamar ora atingido. Dos novos líderes considero José Maria Neves alguém que conseguiu ter uma agenda para Cabo Verde, um Cabo Verde para lá do hoje, do imediato. Antes fazíamos coisas para responder a situações emergenciais. O longo prazo começou com JMN, desde logo, a nível das infraestruturas. No campo educativo, formámos muita gente, mas continuamos com grandes necessidades em muitas áreas, precisamente, por causa do défice de planeamento estratégico. Ainda no campo cultural, temos a Cesária Évora, um marco indelével, que deu essa imensa projeção para Cabo Verde. Na cultura temos a sorte de ter figuras que acabam por engrandecer-nos a vários níveis. E precisamos de valorizar essas figuras. Em Cabo Verde somos renitentes em destacar as qualidades, preferimos privilegiar sempre os erros, remetemos facilmente as pessoas para a invisibilidade. Temos um ethos muito auto-mutilador, mas, paulatinamente, vamos sendo obrigados a valorizar o que é nosso.

FUTURO, “OTIMISTA” Minha última pergunta: qual é a sua posição em relação ao futuro? O nosso grande desafio é tornarmonos cidadãos do mundo. Isso passa pela formação, mas também pelo reforço do tecido social, com a busca e a exploração de tudo o que nos une. Passa também pela busca de uma maior solidariedade, de abertura permanente ao outro. Na relação com o mundo devemos nos deixar apropriar pelos outros, no bom sentido, no sentido de não ter medo do mundo. Portanto, sou otimista. [Assomada, 23-05-14] [ 221 ]


Entrevista com um José Maria Neves, cidadão, que, às vezes, sente pena do Primeiro-ministro de Cabo Verde face à “insatisfação permanente” dos cabo-verdianos. Mas também com um JMN, quadro e político, que não deixa de refletir sobre o passado, o presente e o futuro destas ilhas. E, nesta linha, entende que o desafio passa por “repensar o Estado para um pequeno Estado”, arquipelágico e diaspórico, como o cabo-verdiano.

José Maria Neves

“Às vezes, sinto pena do Primeiro-ministro” [ 222 ]


[ 223 ]


Entre os meus entrevistados, quando se fala em José Maria Neves, uns consideram-no megalómano e outros visionário. Para começar, qual deles prefere? Quem tem uma perspetiva mais de longo prazo vê-me como visionário, quem tem uma perspetiva imediatista vê-me como megalómano. As duas perspetivas são convergentes, encaixam-se bem. E isso não o afeta? Não, estou tranquilo no retrato que me fazem (risos). Ainda de acordo com os meus entrevistados, temos um Estado impessoal, insensível, que não reage às reclamações dos cidadãos. Antes de mais, o Estado sensível é aquele que responde às necessidades das pessoas, nomeadamente na educação, na segurança social e em vários outros níveis. Basta dizer que quase 24% do nosso orçamento vai para a educação. Na segurança social, enquanto em África o nível de cobertura do sistema contributivo é de cerca de 8 a 10%, em Cabo Verde a cobertura é de 28%. E temos ainda um sistema não contributivo, através de pensões sociais. Veja ainda o sistema de ação social, FICASE etc. Pode ser que haja, num ou noutro nível de administração, alguma burocracia, o que leva a que os serviços respondam tardiamente, por exemplo, a requerimentos, petições, etc. É exatamente a isso que me estava a referir. Isso não tem a ver com insensibilidade, mas com a excessiva burocracia, dispersão geográfica do país, etc., etc. Mas, mesmo aqui, Cabo Verde já deu saltos importantes, com a Casa do Cidadão, as certidões online, a empresa na hora, o esforço que se está a fazer a nível dos serviços de registos e do notariado, etc. Aliás, o facto de sermos um país altamente instruído e aberto ao mundo, com uma grande diáspora, faz de nós uma sociedade muito exigente. Uma cidadã, por mim entrevistada, diz que enquanto o computador americano tem uma [ 224 ]

(...) o Estado sensível é aquele que responde às necessidades das pessoas, nomeadamente na educação, na segurança social e em vários outros níveis. Basta dizer que quase 24% do nosso orçamento vai para a educação.

memória, o computador da nossa administração tem uma vaga ideia. Veja, em Cabo Verde a nossa administração responde muito mais rapidamente do que a administração norte-americana. Quando os responsáveis do MCA vieram a Cabo Verde e visitaram a Casa do Cidadão, viram o nosso sistema integrado orçamental (SIGOF), decidiriam que Cabo Verde faria a gestão direta dos fundos do programa. Poucos países têm essa prerrogativa. O que se passa é que nós temos, às vezes, uma avaliação errada da nossa administração pública e do nível de serviços que ela presta. Recentemente, Portugal passou a ter Lojas do Cidadão de terceira geração. E são o quê? As nossas Casas do Cidadão. Em muitas coisas estamos muito mais avançados, em termos de administração integrada, do que vários outros países. Há um operador que me contou que passa boa parte do seu tempo a resolver pequenos problemas, com deslocações do Mindelo à Praia, batendo a uma série de portas, por causa de coisas que podiam ser resolvidas de forma mais simples. As questões, muitas vezes, têm a ver com o próprio cidadão e as empresas. Eu, por exemplo, fiz uma reunião com os bancos, tendo em conta as muitas reclamações em relação ao setor, e os bancos me disseram: “O nosso negócio é dar crédito. Todavia, as pessoas chegam e a única coisa que sabem que efetivamente querem é o crédito. Preparar toda a documentação, com todos os dados, é mais difícil”. Muitas vezes, é o emigrante que chega, não traz o dossiê completo, chegando a Cabo Verde, por ser emigrante, quer que a administração lhe entregue imediatamente o que trouxe, independentemente de qualquer formalidade. De acordo com vários cidadãos com quem conversei, há situações em que as pessoas colocam problemas e o Estado simplesmente não responde. Eu não quero dizer que não haja dificuldades da parte da administração. O que precisamos é de uma profunda mudança de atitude e de comportamentos. Precisamos


qualificar muito mais o nível de gestão das nossas empresas, desde logo a prestação de contas, mas também elevar muito mais o nível de confiança entre as partes. A confiança, pelo que vi, está muito baixa. O grande problema das empresas com a banca realmente é a reduzida confiança que os bancos têm em relação a elas. E isso não acontece por acaso, convenhamos. São as próprias empresas que precisam organizar-se melhor, com contas mais claras, saldando os seus compromissos e obrigações. Mas o cidadão tem também uma baixa confiança em relação ao Estado. Não necessariamente. Os diferentes estudos de opinião mostram que a confiança nas instituições é relativamente elevada. Como já disse, por sermos um país muito pequeno, somos muito severos em relação aos desvios. E isso não podemos negar, há pequenos desvios. Como somos uma sociedade de interconhecimento, dáse sempre um jeito para o agente que aplicou a multa retirá-la; nas alfândegas é a mesma coisa, há sempre alguém a tentar, por vias não transparentes, tirar o produto por um preço mais baixo; e, muitas vezes, o cidadão que consegue fica feliz da vida, aquele que não consegue desenvolve críticas ao funcionamento da administração, mas, se puder, faz o mesmo. Isto faz parte da mentalidade do cabo-verdiano. A propósito de amiguismo, nepotismo e outras mazelas. Um dos meus entrevistados reclama que só a meio do terceiro mandato é que o seu Governo vem falar em promoção por concurso e mérito. Esse cidadão entende que isso já chega tarde. Temos que ter em conta a evolução das coisas. Há todo um processo até ter todas as condições reunidas para que certas medidas sejam adotadas e implementadas. É o caso da introdução do concurso e mérito na administração pública. Esse cidadão chega até a dizer que pelo facto de o PM ser formado em administração, ele esperava que

essa questão fosse, desde a primeira hora, uma das suas urgências na normalização do Estado em Cabo Verde. Mas já fizemos muito. A nível da administração as mudanças são profundas. E sem falta de modéstia, o facto de eu ser formado numa escola de administração e negócios tem influenciado, sim. Se repararmos, uma das primeiras medidas que eu tomei foi criar as direções-gerais de planeamento e gestão para melhorar grandemente a gestão a nível da administração pública. Promovemos um curso de pós-graduação em Cabo Verde sobre a gestão pública. Depois, houve a criação do NOSi, para promover a governação electrónica e hoje a governação integrada. Criámos também a comissão interministerial para a sociedade de informação e inovação, daí surgiram novos produtos, um deles o SIGOF, que ganhou o primeiro prémio em inovação e gestão pública a nível de África, a Casa do Cidadão, com certidões online, empresas no dia, etc. Veja ainda. Hoje temos uma nova lei de estruturas, os ministérios e a administração pública estruturamse de forma diferente. Há um novo PCCS, uma nova lei de bases da Função Pública. Pela primeira vez revogámos, totalmente, e isso desde a independência, o Estatuto de Funcionalismo Ultramarino, com a aprovação da lei de bases da função pública, depois o novo PCCS para a administração pública e estamos a trabalhar um novo PCCS para os chamados quadros privativos com mudanças e inovações radicais. Neste momento estamos a aprovar o novo estatuto do pessoal dirigente, o novo estatuto do quadro pessoal e estão criadas finalmente as condições para fazer concursos. É um processo, há coisas que eu não podia fazer em 2001. Primeiro tínhamos que criar as condições para que pudéssemos chegar aonde nos encontramos neste momento.

Verde e outra é na emigração. A ADECO, entre nós, diz que há um subsídio a que ela tem direito mas que esse subsídio, quando sai, chega tarde, o que lhe cria dificuldades na sua missão. Como responde a esta entidade em concreto? O Estado é confrontado, no seu dia a dia, com uma grande escassez de recursos, vivemos sempre no fio da navalha. Eu, muitas vezes, não consigo desenvolver algumas atividades do meu gabinete por falta de recursos. Para o presidente da ADECO, há dinheiro para os mais variados workshps e encontros, e não há mil contos para ela, um dinheiro que lhe é consignado pelo OE. Como ficamos? Muitas vezes temos um workshop financiado pelas Nações Unidas, pelo Banco Mundial, entre outras entidades externas, são elas que financiam esse tipo de coisa. Normalmente, o dinheiro é atribuído a Cabo Verde num contexto ou programa próprio. Quanto ao resto, somos confrontados com uma grande escassez de recursos. Infelizmente, em Cabo Verde, tudo depende do Estado. Mesmo uma associação de defesa dos consumidores, que devia ser antes de tudo sustentada pelos consumidores, depende do OE. A ADECO diz que tem recursos próprios, apenas exige que o subsídio que é dela por lei lhe chegue a tempo. Convenhamos, aqui ela não deixa de ter razão. Claro. Mas, no geral, associações, fundações, ONGs, quase todas, canalizam as suas demandas e exigências para o mesmo OE.

SOCIEDADE CIVIL

Eu insisto, sendo uma obrigação do Estado, por que razão o Governo não envia o dinheiro, a tempo, ao seu dono legítimo? O Estado faz um esforço nesse sentido. Eu, muitas vezes, penso que essas associações deviam ter uma perspetiva mais construtiva, de construir soluções, e não de ter uma perspetiva de permanente oposição ao Estado.

Há duas associações cujas reclamações ilustram o malestar existente entre o Estado e a sociedade civil. Uma é em Cabo

A ADECO faz isso? Sim, faz. A ADECO é menos uma associação de consumidores e mais uma plataforma de oposição [ 225 ]


a quase tudo o que se faz. Ela poderia desenvolver um papel muito mais pedagógico, mais educativo, em relação à problemática do consumidor. Em vez disso, prefere a crispação no seu relacionamento com o Estado. A ADECO diz que não é uma organização política. E entende que os consumidores estariam pior, caso ela não existisse. Desde logo porque alguns serviços que “massacram” os consumidores são do Estado. Talvez sim. Mas aqui a fronteira entre a política e o impolítico é muito ténue. Quer dizer que tudo é política em Cabo Verde? Quase sempre, porque as pessoas atuam em função de quem está a governar e das suas simpatias políticas. Temos de ganhar mais maturidade neste aspeto. A ADECO não é política realmente, mas as intervenções dos seus responsáveis, muitas vezes, pela sua natureza, acabam por ser eminentemente políticas. Querendo, na vida, tudo é política. Certo. E isso tanto em relação à ADECO como em relação às ordens profissionais. Eu vi numa altura, aqui, o bastonário da Ordem dos Advogados de Portugal [Marinho e Pinto] chamar a atenção dos seus colegas de Cabo Verde, numa entrevista, lembrando que a OACV era uma ordem profissional e não um sindicato ou um partido da oposição. De qualquer forma, estaríamos pior se tudo ficasse como o Estado ou o Governo quer ou gostaria. Claro que sim. Neste ponto de vista, a existência da ADECO é um ganho e defendo que mais vale ter excesso do que não haver. É um avanço, mas temos de trabalhar para ir ganhando maturidade. Aliás, o presidente da ADECO chama a atenção que há um conjunto de entidades reguladoras que, por lei, deviam ter representações da sociedade nos seus conselhos, mas que essas agências simplesmente [ 226 ]

ignoram isso. Estamos ou não, com isso também, diante de uma insuficiência do Estado? Sim, porém, pela sua natureza, associações como a ADECO deveriam ter mais humildade. Eu vejo intervenções do seu líder sobre muitas questões de regulação, com uma componente técnica muito forte, e que constituem desinformações à sociedade e aos cidadãos, porque acaba por pronunciar-se sem conhecimento aprofundado da realidade das coisas. Por exemplo, a ADECO está a promover uma campanha contra o preço da água nos chafarizes. Nada mais político do que a água, sobretudo quando se diz que os pobres pagam por ela mais do que os ricos. Entende que essa campanha é errada? Ela pode ter até razão. Essas associações têm o mérito de chamar a atenção da sociedade e das autoridades para determinadas questões, às vezes, mesmo exagerando. Não tenho dúvidas em relação a isso. O caso externo reporta-se à Associação Cabo-verdiana de Setúbal, em Portugal, diz ter um pendente com o Estado caboverdiano, na medida em que assumiu compromissos e que quando menos esperava Cabo Verde retirou-lhe o seu apoio. A sua presidente, Felismina Mendes, disse-me que já colocou o problema a várias pessoas, inclusive a si, mas que o problema se arrasta até hoje. É isso verdade? Sim, é verdade. Nós temos um OE e quando uma associação diz que assumiu determinados custos que ultrapassam de longe as possibilidades de financiamento, eu tenho primeiro que mobilizar recursos no quadro do OE para satisfazer as necessidades dessas associações. Temos feito um esforço para ir apoiando as nossas associações que têm problemas. E isso tem gerado controvérsias no seio de associações. Eu, por exemplo, apoiei fortemente duas associações, mobilizando recursos para esse fim. A Associação Cabo-verdiana de Lisboa, que tinha

problemas com a gestão de projetos da União Europeia e que ia perdendo a sede e outros problemas graves. Nesse caso concreto, tivemos que apoiar com cerca de 70 mil euros. Também a CACD, em New Bedford, EUA, que estava prestes a perder a sede, um edifício histórico da nossa comunidade, foi apoiada, com cerca de 36 mil dólares. São várias outras associações espalhadas pelo mundo, casos de duas associações em São Tomé e Princípe (STP), uma em São Tomé e outra em Príncipe. Os pedidos são vários e nem sempre podemos ajudar como gostaríamos de poder fazer. No caso de Setúbal, a Felismnina realmente me colocou o problema, e isso tem a ver com o seu relacionamento com a nossa Embaixada em Portugal e com o orçamento da embaixada, e veja que, em Cabo Verde, nós contamos todos os tostões. Mesmo assim, a orientação que eu dei é para a embaixada, dentro das suas possibilidades, ver até onde o Estado poderá assumir os custos que essa associação terá assumido e resolver o problema. De qualquer forma há ideia de uma incompreensão por parte do Estado de Cabo Verde relativamente aos emigrantes, o que passa pelos problemas com as associações. Eu não comungo dessa ideia. Esperase do Estado de Cabo Verde mais do que ele pode proporcionar. Temos uma diáspora enorme. Famílias são desalojadas em Setúbal, ou na Amadora, as pessoas acham que o Estado de Cabo Verde tem competências e meios para chegar lá e resolver tudo no dia seguinte. Mas você tem famílias em Angola, em STP, em Moçambique, entre outras, mas tanto os deputados da oposição, como algumas outras pessoas, acham que relativamente a tudo que diga respeito aos cabo-verdianos o Governo de Cabo Verde, no dia seguinte, tem de chegar e impor uma decisão às autoridades portuguesas. Veja também o drama das deportações nos EUA. Há países europeus e da América Latina com o mesmo problema e não conseguem resolver o problema dos seus cidadãos. Mas


A ADECO não é política realmente, mas as intervenções dos seus responsáveis, muitas vezes, pela sua natureza, acabam por ser eminentemente políticas. há gente de Cabo Verde que acha que este Estado pode chegar e dizer ao Obama, “olhe, você tem que resolver o problema dos cabo-verdianos”. Há, muitas vezes, espectativas que são muito elevadas relativamente ao que Cabo Verde pode realmente fazer em certas circunstâncias. Mesmo assim, já fazemos muito, do nosso ponto de vista, é claro. Mesmo assim, as reclamações existem. Certo. E veja o que se passa em relação às nossas comunidades em STP, Guiné-Bissau, Moçambique... As despesas que nós temos com o recenseamento eleitoral, que são enormes, para garantir a participação dos cabo-verdianos na nossa vida política! Nenhum país faz o que nós fazemos. As nossas comunidades na Holanda, França, Luxemburgo ou EUA, reconhecem o nosso esforço, elas são reconhecidas pelas autoridades desses países e da parte de Cabo Verde recebem visitas do Presidente da República, do Primeiro-Ministro, membros do Governo, etc.; em Cabo Verde a comunicação social sempre que pode fala dos seus problemas.

Somos dos poucos países que têm acordos de segurança social com um grande número de países de acolhimento, inclusive Angola, Itália, Holanda, Portugal, etc. Ainda assim, há quem considere que o Estado de Cabo Verde vive de costas para a sua emigração. Se isso fosse verdade seria um autêntico paradoxo. Apontou as ajudas que dá aos caboverdianos em STP, Guiné-Bissau e Moçambique. Também aqui há quem considere que isso não passa de “pomada” para o verdadeiro problema das pessoas nesses lugares, com realce para STP. Os problemas são tão graves e complexos que você não os consegue resolver de um dia para o outro. Eu fui a STP e fiquei indignado com o que lá encontrei e foi a partir disso que passámos a dar um complemento de pensão a essas pessoas através do sistema não contributivo da nossa segurança social. E o Estado, hoje, a nível nacional e exterior, já mobiliza um milhão e 300 mil contos para o sistema não contributivo. Fui ao Luxemburgo, discuti com o primeiro-

ministro Jean Claude Juncker, na altura, um complemento do nosso programa indicativo de cooperação para a nossa cooperação com STP. Em STP mandámos professores para abrir um liceu na ilha do Príncipe. Financiamos projetos agrícolas, construímos 12 casas em Maputo para apoiar cabo-verdianos que estavam a viver em condições de indignidade. Aliás, a situação dos cabo-verdianos em STP é um drama humanitário. Nessa linha, dois dos meus entrevistados entendem que o Estado de Cabo Verde deveria responsabilizar Portugal por essa situação. Nós já colocámos a questão a Portugal. E qual foi a resposta? Portugal também diz que tem muitas questões, dos seus nacionais em Angola e em Moçambique, de propriedades que foram nacionalizadas por altura da independência e cuja resolução também não conseguiu até hoje. Foi-me dito que não é fácil, para Portugal, reabrir certas questões que [ 227 ]


não foram resolvidas por altura da independência. Da nossa parte, esta questão deve merecer um consenso nacional, no sentido de levar Portugal a assumir as suas responsabilidades em relação aos cabo-verdianos em STP, mas, para isso, é preciso que haja vontade das autoridades portuguesas. Sente essa vontade? Sinceramente, a resolução do problema não é fácil, tendo em conta a sua complexidade. E o problema não é só Portugal, mas também STP. Por causa dos cabo-verdianos, tive discussões muito duras e azedas com as autoridades santomenses. Chegaram a dizer no parlamento, na véspera da minha segunda visita àquele país, que eu era “persona non grata” dada a forma como coloco o problema dos cabo-verdianos. O presidente Fradique de Menezes chegou a dizer-me, no gabinete dele, que não há santomenses de primeira nem de segunda e que eu queria fazer dos cabo-verdianos santomenses de primeira, e que não aceitaria qualquer tratamento diferenciado dos caboverdianos em relação aos santomenses. De modo que nestas situações é [ 228 ]

preciso conhecer a história toda. Da parte de Cabo Verde vamos fazendo o que pudermos para melhorar a vida desses cabo-verdianos. Temos dado bolsas de estudo a dezenas de descendentes de cabo-verdianos em STP para estudarem aqui, há estudantes em outros países através de bolsas de Cabo Verde. Este é um trabalho que, pela sua intangibilidade, as pessoas não avaliam convenientemente. De qualquer forma, pela primeira vez nestes anos todos, houve um governo em Cabo Verde que resolveu agir em favor desses patrícios. A situação deles é realmente muito má e interpela-nos a todos.

JUSTIÇA, “MESMO SENTIMENTO” Um outro setor que as pessoas manifestam uma profunda insatisfação é o da justiça e da segurança. O que está a fazer para melhorar os níveis de desempenho nesse setor? Eu tenho o mesmo sentimento de todos os cabo-verdianos relativamente à justiça. É uma área em relação à qual ainda não conseguimos o salto desejado para que a justiça responda,

mais rapidamente, às necessidades do país. O sistema cresceu muito. Em 1975, tínhamos o tribunal da comarca de Barlavento em São Vicente e a Comarca de Sotavento na Praia. Eram dois juízes e dois procuradores. É claro que tínhamos os julgados da paz a nível dos municípios e que eram presididos pelos administradores dos concelhos. E tínhamos, também, duas conservatórias de registos e notariado, uma na Praia e outra no Mindelo. Neste momento, temos tribunais de comarca em todas as ilhas e municípios, temos mais de cem magistrados, um Supremo Tribunal de Justiça, já temos um novo Código Penal, um novo Código de Processo Penal, novo Código Civil, novo Código do Processo Civil, fizemos reformas importantes a nível das secretarias judiciais, formámos magistrados, mas, mesmo assim, temos uma justiça que é lenta e que não responde a tempo às necessidades dos cidadãos e das empresas. Eu também comungo desse sentimento. O problema é meios materiais ou recursos humanos? A questão tem a ver com o sistema em si. Neste momento devíamos refletir sobre o sistema da justiça em Cabo


Verde e aqui os consensos são muito complexos. Basta ver a dificuldade que foi a última revisão da Constituição da República. E veja, um país com 500 mil habitantes tem tribunais de comarca, vai ter dois tribunais de relação, um STJ e ainda um Tribunal Constitucional. Tem um Conselho Superior da Magistratura Judicial e um Conselho Superior do Ministério Público, todos com grande autonomia e independência.

Você pode até ter razão, mas a bipolarização política reflete-se também nas pessoas, na sociedade. Claro. Mas isso tem a ver com o nosso processo histórico. Tivemos um movimento de libertação, uma vez no poder, a partir de uma determinada altura, surgem divergências, disputas e conflitos, os dois principais partidos políticos atuais – o PAICV e o MpD – resultam desse conflito e as coisas ainda não se acomodaram.

A questão passa por quê então? Passa por pensarmos num sistema que sirva um pequeno Estado insular como é o caso de Cabo Verde. As soluções que temos são decalcadas de realidades completamente diferentes, fundamentalmente de Portugal.

Eu, pessoalmente, não vejo a hora de chegar os próximos 50 anos. Nessa altura, o 5 de Julho e o 13 de Janeiro, se feriado forem, serão apenas dias para se ir à praia. Sim, mas até lá, cada um quer impor o seu sentido da História. Quer mostrar que ele é que tinha razão nas disputas.

Diante disso o que fazer? Entendo que medidas de fundo passam por uma mudança radical em termos dos seus paradigmas.

O presidente Fradique de Menezes chegou a dizer-me, no gabinete dele, que não há santomenses de primeira nem de segunda e que eu queria fazer dos cabo-verdianos santomenses de primeira...

Logo, as coisas não vão mudar tão cedo. Isto depende de entendimentos entre os partidos políticos. E aqui põe-se também a questão da confiança. Não sei se foi por causa da forma como foi feita a transição para a democracia, mas o certo é que temos uma baixa confiança entre os partidos e os atores políticos. A elevada crispação política em que vivemos inviabiliza consensos ou entendimentos. Com isso está a me dizer que temos uma sociedade manietada, refém dos partidos políticos, não? Um pouco refém, sem dúvida, dada a reduzida confiança dos atores políticos. Há gente que diz que em Cabo Verde nós temos um “povo” da independência e um “povo” da democracia. Jorge Carlos Fonseca chegou a escrever sobre isso. Lembro-me. Sim, várias vezes. Isso leva a um aumento de crispação. Mas há ou não duas “nações” em Cabo Verde? Não, não, temos de evitar esse tipo de leitura, há uma interpenetração muito grande entre os partidos políticos. Os partidos em Cabo Verde têm a mesma base.

VERDADE E RECONCILIAÇÃO Precisamente, um dos meus entrevistados diz que faltou a Cabo Verde um momento de verdade e reconciliação nacional. Não sei se é isso. Eu acho que se o nosso processo de transição fosse mais longo e menos conflituoso, menos crispado, poderia levar a um outro entendimento entre os partidos políticos. Essa mesma pessoa entende que faltou esse momento de catarse e a consequência é este arrastar da animosidade, as contas por saldar, que acabam por afetar o nosso presente. Neste aspeto essa pessoa tem razão. Faltou realmente essa catarse. Mas ela também diz que essa catarse não aconteceu porque faltou ao PAICV, herdeiro do PAIGC, hombridade para dizer aos caboverdianos que, primeiro, errou na forma como levou Cabo Verde à independência, depois o falhanço que foi a unidade com a Guiné e, finalmente, o partido único em si. Não é só isso. No momento da independência praticamente todos estavam juntos. Todos os principais dirigentes do MpD estavam no PAIGC e as disputas que levam à saída deles não tinham nada a ver com o multipartidarismo. Eram outras [ 229 ]


(...) você não pode analisar o passado, (...) com os dados de hoje. Houve erros e excessos, sim (...), mas desses momentos revolucionários, em que todos estavam juntos, você não pode vir depois responsabilizar este ou aquele, deixando outros de fora. questões, nomeadamente ideológicas. Esses fulanos, na altura, tinham Aristides Pereira como um conservador, pequeno burguês, porque tinha posições mais moderadas, mas depois, com a abertura, vieram apresentar-se como liberais. Todos estiveram juntos, em uníssono, por altura da independência. De qualquer forma, foi uma independência que passou por cima de outras vontades, nomeadamente daqueles que estavam com a UDC e a UPICV. Isto também é História. Sim, sem dúvida. Mas você não pode analisar o passado, o 5 de Julho de 1975, com os dados de hoje. Houve erros e excessos, sim, sobretudo nos primeiros cinco anos da independência, mas desses momentos revolucionários, em que todos estavam juntos, você não pode vir depois responsabilizar este ou aquele, deixando outros de fora. Para todos os efeitos, estavam todos juntos. No fundo, por aquilo que percebi, essa pessoa gostaria de ver um pedido público de desculpas do PAIGC/CV por aquilo que aconteceu em Cabo Verde nos primeiros anos da independência. Também em 1991, após a vitória do MpD, houve muitos excessos e erros. Eu considero que se houvesse mais maturidade não se teriam cometido tantos erros de novo. O cabo-verdiano está sempre pronto para a revanche? Prefiro não ser tão peremptório. Mas nos momentos de mudança temos que ter muita cautela. Eu, quando assumi o governo, em 2001, foi essa a minha preocupação. Lembro-me das minhas preocupações em relação à bandeira, [ 230 ]

ao 13 de Janeiro, a este ou aquele que ainda estava num determinado cargo. Nalguns momentos tive de assumir posições muito firmes, dizendo: “No Governador do Banco de Cabo Verde [Olavo Correia] não se mexe, ele vai cumprir o seu mandato até ao fim; o Procurador-Geral da República [Henrique Monteiro] também fica até o fim do seu mandato; os embaixadores terminam a sua comissão... Não houve em Cabo Verde uma revolução, houve apenas uma alternância de governo e temos de ter cautela”. E eu ia sempre dizendo às pessoas, “talvez no meio é que esteja a virtude”. E eu agi assim, confesso, porque tinha presente os ensinamentos de 1991, que vivi na pele; em 1975 eu era um adolescente. Em 1991, não, eu vivi determinadas coisas que me marcaram para sempre. Por isso, quando ganhámos em 2001, apesar das pressões, até de gente que eu não esperava, gente mais madura e que hoje se apresenta como mais moderada, me pressionou no sentido de tomar esta ou aquela decisão. Entendi que era tempo de quebrar o ciclo da vingança, da revanche, que tantos traumas já causaram a este país, desde 1974. Prosseguindo. Além da justiça, há também o problema da segurança que inquieta os cidadãos hoje em dia. Aqui o grande problema tem a ver com a pequena criminalidade e o sistema de justiça, que é muito garantístico, coisa que as pessoas não entendem. Por exemplo, há um grupo de jovens delinquentes a polícia identifica, prende, mas chegando ao tribunal são libertados, porque não foi prisão em flagrante delito ou porque a polícia não tem todas as provas para que o

tribunal mantenha a prisão, ou porque a leitura dos magistrados é muito mais benevolente do que a leitura da polícia. As pessoas não entendem por quê esse delinquente no dia seguinte é libertado. E dá para entender? Essas questões têm a ver com as leis que nós temos, com a independência da justiça. Mesmo assim, temos feito muito para que Cabo Verde continue a ser um país seguro. Até porque, tirando essa pequena criminalidade, que ainda é uma batalha por vencer, temos um país seguro. Enquanto isso persiste o sentimento de insegurança, convenhamos. E isso só se resolverá se conseguirmos, no futuro, tribunais de pequenas causas. Aqui acho que devemos voltar aos julgados da paz, para dirimir determinados conflitos nas comunidades e libertarmos os tribunais para as grandes causas e trabalharmos no sentido de encontrar soluções para uma maior eficiência e celeridade da justiça que nós resolveremos esses problemas. Ainda relacionada com a justiça, neste caso laboral, falei com um sindicalista na ilha do Sal que me traçou um quadro extremamente negativo. Diz que os trabalhadores estão praticamente entregues à sua sorte, já que as instituições não funcionam, a começar pelo Tribunal e a Inspeção Geral do Trabalho. O que me diz a isso? No fundo, o problema é o mesmo. Mas, mesmo assim, é claro que não posso concordar com essa pessoa. Nos últimos 10 anos houve uma grande evolução em relação ao que antes existia. Periodicamente, passou a haver inspeções, e cada vez mais, precisamente, para corrigir os


problemas que existem. Só nos últimos meses cerca de mil empresas foram inspecionadas. O Estado, da sua parte tem procurado cumprir a sua missão, na medida do possível. Apesar de tudo que acaba de dizer, segundo esse sindicalista, no Sal, ele tem hoje uma situação pior do que no tempo em que a ilha não tinha representações ligadas ao Trabalho. É claro que a situação não pode ser igual. O simples facto de haver representações, hoje, do Trabalho é uma evolução, é coisa que antes não existia. Nós não podemos resolver tudo de um dia para o outro. O importante é que continuemos todos empenhados para resolver os conflitos e os problemas que existem.

ENSINO, “PRESSÃO BOA” Um outro setor é o ensino. Todos reconhecem que houve uma generalização louvável, mas a qualidade, inclusive das universidades, está na rua da amargura. Tem essa percepção? Geralmente, nós exigimos muito de certos setores da nossa vida e essa pressão, se quer saber, é boa. No caso do ensino, nós estamos num processo e temos que ser cada vez mais exigentes para irmos melhorando a qualidade. Mas devo dizer que tem havido ganhos importantes, em termos de qualidade. Os estabelecimentos de ensino secundário que eu encontrei em 2001 e os que nós temos agora, além do grande alargamento, são completamente diferentes. Entre a massificação e a qualidade como é que se vai resolver essa equação? As reformas que estão a ser feitas, as novidades que estão a ser introduzidas, vão, com certeza, trazer muito mais qualidade. A qualidade passa pelo aperto do crivo? Vamos ter uma agência de regulação do ensino superior em Cabo Verde. Vamos ter provas de acesso e temos sido muito rigorosos em relação à abertura de novos cursos superiores. As universidades já estão a trabalhar

para melhorar a qualificação dos seus professores. Até 2030 teremos um quadro diferente. Mas há quem diga que as universidades estão por sua própria conta. Aliás, em Cabo Verde, tudo que seja fiscalização não funciona. Não é verdade. No caso das universidades, houve um ganho enorme com a criação do Ministério do Ensino Superior, Ciência e Inovação. Hoje há uma supervisão, o acompanhamento dos cursos, há permanentes conflitos que nós temos gerido. Ao contrário do que pensa, as universidades não estão por sua própria conta. É verdade, reconheço, a qualidade ainda não é a que nós desejamos, mas temos que considerar que temos um sistema de ensino superior muito jovem, que começou na década de 2000 e está a dar os seus resultados. Repare, um quadro mal formado nem em Cabo Verde tem futuro, quanto mais lá fora. Eu sei disso. O ensino superior é hoje uma realidade e estamos a trabalhar para a sua qualidade, para que os formandos cabo-verdianos tenham qualidade aqui ou em qualquer outro lugar do mundo. Falou há pouco da segurança social. Alguns dos meus entrevistados entendem que um Estado de bem estar social em Cabo Verde é algo que mais tarde ou mais cedo nos poderá trazer problemas. Concorda? Se continuarmos a trabalhar no sentido de garantir a sustentabilidade do sistema acho que continuaremos a ter cada vez uma melhoria da qualidade de vida das pessoas e do bem estar. Nós, neste momento, temos um sistema nãocontributivo que é muito generoso. Precisamente por isso. Nenhum Estado sem recursos é muito generoso. O problema põe-se realmente. Veja, para todos os combatentes da liberdade da pátria fixámos, no mínimo, um rendimento de 75 contos. É sistema não contributivo. Cerca de 22 mil cabo-verdianos – idosos e deficientes – já recebem uma pensão

mínima de 5 mil escudos todos os meses. E temos ainda o sistema de ação social escolar. Cabo Verde é dos poucos países em desenvolvimento que assume totalmente o programa das refeições quentes nas escolas. É um esforço social muito grande. Agora, com o sistema adotado, temos de fazer crescer o sistema contributivo, de modo a reduzir, gradualmente, o sistema não contributivo. Desde já, coloca-se o problema de onde buscar o dinheiro para isso? O problema coloca-se realmente a longo prazo. E aí como é que será? À medida que a economia for crescendo teremos de aumentar o sistema contributivo, de modo a garantir a sustentabilidade. Mas aqui é que está o nó górdio do problema. A economia está a crescer abaixo do crescimento populacional e o endividamento público é o que se sabe. É uma fase. Cabo Verde, com os alicerces que já foram colocados, neste momento, está na transição do seu desenvolvimento. Com a crise internacional e os seus efeitos, o crescimento reduziu, sem dúvida, mas estão a ser criadas as condições para que, nos próximos anos, haja uma aceleração do crescimento da economia. E por isso eu não temo o colapso do sistema de segurança social se tomarmos as medidas necessárias. Fala-se agora em subsídio de desemprego. Um Estado como Cabo Verde, com a economia que tem, pode ter subsídio de desemprego? Se trabalharmos bem é possível sim. É verdade que será preciso muita cautela, muita ponderação, mobilizando o concurso de todos. É importante não ceder à demagogia.

ESTADO, “VISIONÁRIO E REGULADOR” Diante disso tudo, que Estado pretende para Cabo Verde? O Estado que estamos a construir é cada vez mais um Estado visionário, regulador e catalisador da dinâmica [ 231 ]


do desenvolvimento do país. E pela natureza do país, pela exigência dos cabo-verdianos, tendencialmente, teremos um Estado de bem estar social. Mas um país com os níveis de produção que tem, que mal consegue produzir para o seu próprio sustento, consegue sustentar um Estado de bem estar social?! Mas o país vai gradualmente melhorar o seu crescimento e o rendimento das pessoas. Eu sou otimista. Estou a ver que sim. E vejo que dentro de dois ou três anos, se tomarmos as opções corretas, que poderemos debelar o problema estrutural que temos em Cabo Verde que é o desemprego. Com que medidas em concreto? Com o desenvolvimento das pescas, do agronegócio e do turismo.

UE E CEDEAO, Falemos das pescas. Um dos meus entrevistados diz que o Estado caboverdiano é subserviente em relação à União Europeia por causa dos acordos de pescas que mais não são que uma pilhagem dos nossos mares. Até agora não há ainda o novo acordo porque, precisamente, estamos a procurar defender os nossos interesses. Todos os nossos vizinhos já assinaram e nós ainda não. As pessoas nem sempre acompanham os detalhes das negociações e em muitas questões há organismos internacionais que fixam as diretivas. Relativamente ao atum, por exemplo, há uma instituição que regula essa captura no Atlântico. Aqui temos reduzida margem de manobra. Aliás, com a globalização, há uma precarização da soberania em muitas questões. E muitas das negociações estão sujeitas a regras e a parâmetros de diretivas já decididas por essas entidades. Ainda não há acordo por causa do insurgimento dos cabo-verdianos em relação à forma como os operadores europeus andam a atuar nas águas de Cabo Verde? Porque temos mais conhecimentos, mais capacidades para fazer negociações internacionais. Desde [ 232 ]

a década de oitenta que vínhamos assinando acordos com a UE, muitas vezes sem ter todo o domínio da implicação desses acordos, como na altura era natural. Hoje, não; hoje temos mais dados sobre os nossos recursos, mais experiência, conhecemos acordos dos outros países e estamos, acima de tudo, a querer defender melhor os nossos interesses. Ainda nas nossas relações com o mundo, nomeadamente com a CEDEAO. Aqui há quem questione o problema da livre circulação. Como estamos nisto neste momento? As coisas não são muito explícitas. O último tratado foi revisto e assinado em 1996. Temos a circulação de pessoas e bens e temos a cláusula do tratamento específico aos estados insulares. Mas temos é de ir afinando os mecanismos para poder chegar a entendimento com os nossos parceiros da CEDEAO. Não devemos ter uma perspetiva de curto prazo na nossa estratégia de inserção da CEDEAO. Isso significa o quê? Que devemos pensar a longo prazo. O futuro de Cabo Verde passa pela sua inserção na CEDEAO para podermos gerir os passos que damos neste momento. Por isso, devemos ter as necessárias cautelas. Veja que nas décadas de cinquenta e sessenta tivemos um fluxo migratório muito forte para a região e em resultado disso hoje temos uma comunidade de cerca de 30 mil membros no Senegal. É um recurso estratégico. Por isso temos de conhecer um pouco essa história e com ela ter em conta que Cabo Verde só terá importância estratégica para o mundo se se posicionar como uma plataforma na costa ocidental africana. Cabo Verde terá que se posicionar um pouco como a Singapura na sua região. E é nessa linha que devemos trabalhar. É claro que há muitos problemas, muitos constrangimentos, muitos meandros e escolhos que precisamos conhecer, mas temos de considerar como horizonte estratégico da nossa inserção competitiva para, gradualmente, irmos fazendo a gestão deste processo.

IUR, IVA... Voltando à casa. Uma das reclamações que vários dos meus entrevistados colocaram é já o velho problema da devolução do IUR e do IVA, isto como sinal até de falta de palavra por parte do Estado. Este assunto já foi colocado inúmeras vezes e no entanto tudo continua na mesma. Falta dinheiro? Não. Pela primeira vez estamos a montar, em Cabo Verde, um sistema de contribuições e impostos mais rigoroso e mais transparente. Mas já estamos nisso há mais de três anos. A grande questão é o cruzamento dos dados para a fixação dos impostos que as empresas devem pagar. A dificuldade de pôr esse sistema a funcionar, de uma vez por todas, está a dificultar a vida das pessoas e das empresas. Porque, muitas vezes, as empresas não prestam as informações. O simples cidadão também está a ser prejudicado, não são só as empresas. Sim, e tem prejudicado o relacionamento com a administração do Estado. E nós temos feito absolutamente tudo para resolver essa questão. Inclusive as mudanças que nós estamos a fazer nos códigos de impostos sobre pessoas coletivas e singulares vão ajudarnos a ultrapassar a subjetividade do fisco e a criar uma outra dinâmica de relacionamento entre o fisco e as empresas e os cidadãos. Vão entrar em vigor novas leis que vão definitivamente regular essas questões. Ao fim e ao cabo, é o cidadão que acaba por pagar pela ineficiência do Estado. Não é justo, ninguém merece isto. Eu tenho consciência disso e tudo está a ser feito para resolver, ainda no horizonte deste ano, os problemas que esta reforma está a criar. Mas nem sempre por culpa do Estado. Se todas as empresas prestassem informações corretas... Temos também aqui que ser claros. Há muita fuga aos impostos em Cabo Verde.


ainda temos um grande vazio a nível inframunicipal. E a criação de juntas de freguesia contribuiria, por um lado, para o exercício da autoridade a nível das localidades para a regulação de determinados conflitos, para a descentralização do poder municipal e para um maior equilíbrio para a distribuição dos recursos a nível de cada município. E também daria mais poderes aos municípios, mais recursos e desenvolveria um programa de modernização da administração municipal. Os municípios precisarão de um choque de gestão. Em termos de descentralização, seriam essas as medidas que eu tomaria neste momento. Arrepende-se de ter criado a última leva de municípios? Não. O que precisamos é criar mecanismos de discriminação positiva para os municípios que não têm base tributária. Mas há outros municípios na mesma situação, casos do Paul, da Brava, dos Mosteiros, pequenos municípios também que têm grandes dificuldades para um funcionamento autónomo.

Mas também há muita ineficiência do Estado na cobrança de impostos. Pode ser. Só que sempre que o Estado tenta aumentar a eficiência há reclamações, nomeadamente, dos partidos da oposição e das empresas. Imediatamente se juntam para que tudo continue na mesma.

REGIONALIZAÇÃO Há um tema que é incontornável nos dias que correm que é a regionalização. O seu pensamento já evoluiu para uma posição ou continua naquela de aceitar o que for a melhor proposta? Eu sou muito aberto às propostas. Mas o conhecimento que eu tenho do país hoje leva-me a ser muito ponderado relativamente a esta problemática. Neste momento devemos reforçar a descentralização, designadamente

através do reforço do municipalismo e criação de autarquias inframunicipais. As autarquias inframunicipais seriam muito importantes para garantirmos a aproximação do poder às pessoas e para termos instâncias de regulação de conflitos a nível das comunidades. Antes da independência tínhamos os cabos-chefes e os regedores, a nível das freguesias e das comunidades. Depois da independência, passámos a ter comissões de moradores, tribunais de zona, milícias populares, quer queiramos ou não, eram instâncias de exercício de autoridade e de resolução de conflitos a nível das comunidades. Desde 1991 deixamos de ter essas instâncias. Com isso o Estado entrou em colapso a esse nível? A esse nível sim. Tivemos um grande sucesso na criação de um poder local democrático, os municípios, mas

Por serem pequenos municípios, sobretudo os mais recentes, poder-se-ia ter ido para a via da inframunicipalização como se pretende agora. Por isso, foi um erro ou não criar os últimos municípios? Esses municípios a que se está a referir podiam ser freguesias realmente, mas nessas questões há uma dinâmica de desenvolvimento institucional que levou à sua criação. Hoje, tendo em conta a realidade, devemos é criar as condições, no quadro da nova lei de finanças locais, para discriminar positivamente esses pequenos municípios, garantindo-lhes recursos para o seu funcionamento e desenvolvimento. Mas não sou apologista e nem defendo a criação de novos municípios. É precisamente o que eu queria saber, nomeadamente em relação ao caso de Santa Maria na ilha do Sal. Eu não defendo a criação do município de Santa Maria. Há outras reivindicações – por exemplo, no Porto Novo há quem [ 233 ]


defenda o município de Santo André e São João Baptista, na Ribeira Grande de Santo Antão, há quem queira o município de São Pedro Apóstolo. Em Santa Catarina de Santiago há uma petição para se criar um município formado por Chã de Tanque e Engenhos. Neste momento, o mais avisado seria passarmos para a criação de autarquias inframunicipais. Teríamos freguesias, juntas de freguesias, criaríamos a nível das freguesias, os julgados da paz que iriam permitir resolver os conflitos a nível local e ter instâncias de regulação de conflitos também a nível das comunidades. Mas eu não avançaria também, imediatamente, para a criação de autarquias supramunicipais. O que se tem dito sobre a regionalização e as propostas que estão sobre a mesa visam a criação de autarquias supramunicipais. Há a Associação Pro Regionalização, com sede em São Vicente e que envolve gente também da diáspora que fala em regionalização política. Mas a maioria dos interlocutores em relação a esta matéria refere-se à criação de autarquias supramunicipais. O principal partido da oposição colocou sobre a mesa uma proposta de criação de autarquias supramunicipais. É preciso ver que as autarquias supramunicipais não são poder regional. São poder local. No poder local não há poderes legislativos, não há autogoverno, no máximo, há autoadministração. Os poderes são meramente deliberativos e regulamentares. Todas as decisões políticas seriam a nível do governo nacional. Isto porque o poder local não tem estatuto orgânico próprio, nem sequer participa, ainda que parcialmente, na formatação da vontade política do país. De modo que é criar mais um nível de poder local, que teria mais poderes que os municípios, mas poderes administrativos e autoadministração e não autogoverno. O MpD fala em regionalização administrativa. Sim, que é poder local. Se você ler com atenção o documento do MpD, este refere o tempo todo em poder local. Não há ali poder regional. Mas também há outras pressões e outras propostas para se ir mais [ 234 ]

além. E, no meio disso tudo, qual é a sua proposta, JMN, ou a do PAICV, embora esteja de saída? Eu, enquanto ministro da Reforma do Estado, vejo o seguinte: as ilhas precisam de mais dinâmica de crescimento e de desenvolvimento. De mais autonomia política também. Isso eu não sei, precisam sim de uma participação mais efetiva na formatação da vontade política nacional.

Eu costumo brincar, dizendo que às sete da manhã oiço o Pulsar das Ilhas, da Rádio de Cabo Verde, mas quem ouve é o José Maria Neves. E este JMN tem uma pena enorme do Primeiro-ministro.

E isso é política. Sim, mas isso pode-se fazer via Parlamento. Não necessariamente através da criação de autarquias supramunicipais. Através de um senado? O que vejo neste momento é um forte desenvolvimento dos transportes marítimos para unir o país e criar uma grande dinâmica de circulação de pessoas e bens. O que entendo é que há problemas na organização e formatação do nosso Estado e as pessoas andam à procura de uma solução. É claro que sim. E para certas pessoas a solução é a regionalização. Sim, e é por isso que temos de aprofundar o debate, colocando os problemas e as soluções sobre a mesa, perguntando que regionalização. Precisamos saber o que é que isto contribui para a resolução dos problemas atuais com que as ilhas e as pessoas são confrontadas. A resolução dessas questões não passa pela criação das autarquias supramunicipais, que é o que se tem chamado de regionalização. Eu entendo que a resolução de certos problemas – por exemplo o excesso de centralização – esvaziaria o apelo à regionalização. As pessoas acham que vão resolver os seus problemas pela via da regionalização. É precisamente aí que eu queria chegar. Podemos lá chegar através de uma forte dinâmica de mobilidade de pessoas e bens entre as ilhas, através de um desenvolvimento dos transportes aéreos e marítimos, reduzindo os custos, aumentando a


eficiência e a qualidade, através das tecnologias informacionais, prestando serviços muito mais eficientes às pessoas e desconcentrar da capital um conjunto de serviços... Eu, por exemplo, vi com muito agrado o surgimento da Universidade de Santiago, em Santa Catarina, e da Uni-Mindelo, em São Vicente, e eu trabalharia, ainda, para a criação de uma universidade católica em São Nicolau. Acho que devemos apoiar essas universidades. E eu apoiaria também a criação de empresas para explorarem as diferentes vocações e potencialidades das ilhas. E com o desenvolvimento dos transportes e conectividade entre as ilhas, através das tecnologias informacionais, mudaríamos gradualmente, criando dinâmicas de relacionamento entre as ilhas, ultrapassando os problemas e os constrangimentos atualmente existentes. Isso tudo em vez de investirmos na burocracia e nas despesas administrativas. Eu criaria outras dinâmicas institucionais e sociais, económicas, para integrar o país e para que houvesse um melhor aproveitamento das potencialidades de todas as ilhas.

SENADO, “POR QUE NÃO?” Isto também passa pela resolução dos níveis de insatisfação que resultam do tipo de representação política que temos em Cabo Verde. Daí a necessidade de um senado, como defende o Onésimo Silveira e outras pessoas com quem eu falei. A propósito, o que pensa disso? Inicialmente, confesso, vi isso com alguma desconfiança. Mas, refletindo bem, é uma ideia que deve ser analisada e aprofundada. Por exemplo, temos um parlamento de 72 deputados, 66 internamente e seis pela emigração. Mas poderíamos ter um parlamento com 50 deputados e 22 senadores. Com isso teríamos um maior equilíbrio das ilhas, porque todas elas estariam representadas na segunda câmara com o mesmo número de deputados e poderia haver uma discussão mais equilibrada de determinadas questões e as ilhas sentirem-se muito melhor representadas. Nós temos de pensar a reforma do Estado em Cabo Verde tendo em conta a nossa condição arquipelágica.

E já agora por que diz 22 senadores? Nesse cômputo poderíamos ter as nove ilhas, inclusive Santiago, com dois senadores cada e quatro para emigração. Essa segunda câmara seria um espaço de representação dos interesses nacionais e da diáspora. Mas é precisamente isso que o Onésimo defende. Por isso é que eu acho que o que ele defende não é totalmente descabido. Pelo contrário, deveríamos pensar esta matéria. Mas ele está a apregoar isso desde 1994 e é a primeira vez, nestes vinte anos, que vejo alguém do PAICV a subscrever esse ponto de vista. Eu não estou a subscrever, estou a dizer que devemos refletir e admitir essa solução como possível em Cabo Verde. O certo é que a proposta dele tem outros contornos, outros ruídos. Mas, concluindo, eu não iria para a criação de autarquias supramunicipais, mas repensaria, por exemplo, a questão dos ministérios. Eis um outro problema que alguns dos meus entrevistados colocam. Redistribuiria os ministérios pelas diferentes ilhas. Até há pouco tempo eu tinha uma posição diferente. Hoje acho que sim. Não é de descartar a possibilidade de levar ministérios para várias ilhas, descentralizar as sessões do Conselho de Ministros, pensar eventualmente numa segunda câmara. O desafio é pensar o Estado para um pequeno Estado, um pequeno país insular e para uma nação diaspórica, que é Cabo Verde. Um dos grandes problemas que se colocam ao mundo inteiro, e em África isto é dramático, é a questão pura e simples da distribuição do poder, o que passa pela conformação do Estado que se quer. Sem dúvida. Não estamos livres disso, temos também de repensar nessas questões e com isso faríamos as mudanças que se mostrarem necessárias. O que se tem colocado sobre a mesa, no que toca à regionalização, é uma fuga em frente. Em vez disso, devemos discutir muito mais aprofundadamente sobre as [ 235 ]


questões e repensar o Estado. E, nesse debate, eu repensaria também o sistema de governo.

por círculos uninominais, com um círculo nacional para o equilíbrio de todo o sistema.

Iria para o sistema de chanceler, alemão, como me disse uma vez? Sim. Sou contra o sistema presidencialista, porque exige um desenvolvimento político e institucional muito mais forte daquele que temos, para evitar a excessiva personalização do poder. Aliás, esse sistema só funciona bem nos EUA. Nos outros países abre espaços a clientelismos, a compadrios, a jogos de bastidores, a fragilização dos partidos políticos, o que seria muito prejudicial para Cabo Verde. Mas devemos ter um PR enquanto árbitro e moderador, eleito pelo parlamento, e termos um regime de chanceler. Isto independentemente dos atores que estão em presença neste momento. E, nisso, eu ponderaria o parlamento bicameral, com um senado, o que criaria mecanismos para que as ilhas tivessem mais poder e mais possibilidade de participar na conformação da vontade política nacional.

Eu pergunto: por que não procurou introduzir, antes, essas ideias no sistema? Repare, você já está de saída. Esta entrevista está a funcionar, um pouco, como uma oportunidade para apresentar ideias, até porque há questões que me estão a ser colocadas pela primeira vez. Mais do que isso, neste debate temos que ir para além do óbvio e do evidente. A regionalização em si é um debate óbvio, simples, traz muitos mais ganhos eleitorais para quem quiser embarcar nela.

Isso esvaziaria, do seu ponto de vista, o movimento pro regionalização? Eu acho que sim. Até porque muitos dos dados lançados para a arena, hoje, vêm do tempo de Luiz Loff Vasconcelos, de Eugénio Tavares, etc. Muitas vezes estamos a repetir discussões que vêm de há muitos anos. Andamos a perder tempo também. Claro, o facto de sermos ilhas, muitas vezes os partidos políticos ou os governantes não pensam a governabilidade do país tendo em conta a nossa condição arquipelágica. Temos de fazer um esforço grande relativamente a esta matéria.

SISTEMA ELEITORAL, “SISTEMA MISTO” Tudo o que disse mexe ou não com o sistema eleitoral? Poderia mexer também. E aqui eu defendo o sistema misto. Metade do parlamento seria eleito através do sistema proporcional e a outra metade [ 236 ]

Falta a Cabo Verde um recuo, a frieza para se discutir serenamente os seus problemas. Sim. Eventualmente, faltou esse momento na altura da transição em 1990/91. A transição deveria ser de três a quatro anos, para se discutir as questões, para construir pontes, consensos e não a perspetiva dualista que nós criámos. Veja que o MpD aprovou sozinho, em 1992, a Constituição. Porque o PAICV abandonou a sala. Mas o MpD não construiu consensos. Tinha os votos necessários e entendeu ir para frente sozinho. A nossa CR não nasce a partir de um grande consenso nacional. É um facto. Aliás, naquela altura, havia uma corrente forte para suprimir o PAICV da cena política cabo-verdiana. Claro. Veja a mensagem do presidente Mascarenhas Monteiro por altura da promulgação da CR, em 1992. As razões do PAICV eram de fundo. A forma como o MpD fez a revisão da CR levou à exclusão do PAICV. O MpD tinha maioria qualificada. Este foi um dos grandes prejuízos para o processo de democratização de Cabo Verde. Passámos do partido único, institucionalizado constitucionalmente, para um sistema de partido único, de facto. Entendo que um partido dominante, hegemónico. Não só dominante, mas um partido que assumiu como estratégia essencial eliminar o PAICV do espaço político

cabo-verdiano. Aquele célebre artigo do Eugénio Inocêncio, “Ternura pelo adversário”, é uma grande pérola da democracia cabo-verdiana. E há discursos do presidente Mascarenhas Monteiro a defender os partidos, que era preciso moderação, não ir a extremos. Lembro-me, a propósito, de Mascarenhas Monteiro a defender que devia haver, sim, subsídio para os partidos políticos, coisa que o MpD era contra. Sim, é verdade. São inúmeras outras situações. O PAICV viveu os primeiros anos praticamente confinado, com uma pressão enorme do MpD, e esses elementos até hoje condicionam a vida política nacional. A forma como fomos para a independência condiciona, a forma como fomos para a democracia, também condiciona. Somos, ao fim e ao cabo, vítimas do nosso processo histórico. A história é a que nós temos, e é bom ter-se em conta certos momentos para, inclusive, nos permitir refletir em relação ao futuro.

CABO-VERDIANO, “CIDADAO DO MUNDO” Posto isto, esta entrevista entra numa segunda parte, embora pudéssemos passar muito mais tempo com as preocupações dos outros entrevistados. Vou colocarlhe, na medida do possível, as mesmas questões que coloquei aos demais entrevistados. No seu caso, para si, o que é ser cabo-verdiano? Ser cabo-verdiano é ser cidadão do mundo, à procura da dignidade e da felicidade. O cabo-verdiano é permanentemente um insatisfeito. Sente isso no dia a dia, como primeiro-ministro? Claramente. Eu costumo brincar, dizendo que às sete da manhã ouço o Pulsar das Ilhas, da Rádio de Cabo Verde, mas quem ouve é o José Maria Neves, cidadão. E este José Maria Neves tem uma pena enorme do Primeiro-ministro. (risos) Mas a insatisfação do cabo-verdiano não é negativa. É algo que impulsiona


o país. Se Cabo Verde é hoje o que é, tendo conseguido viabilizarse enquanto país, deve-o a essa insatisfação permanente. A identidade cabo-verdiana é algo que se coloca, na sua opinião? Não, porque a identidade é uma construção permanente. O caboverdiano vai criando-se e, neste processo, é natural que haja momentos de dúvidas, angústias, etc. O facto de Cabo Verde estar sempre à procura de âncoras, sempre à procura de algo mais, tem a ver precisamente com essa busca e com a incompletude que caracteriza o cabo-verdiano. Sendo natural de Santiago, qual é o principal contributo que esta ilha deu para Cabo Verde ser o que é? Sendo a primeira ilha a ser povoada, Santiago é a ilha mãe de Cabo Verde. As experiências que aconteceram aqui foram fundamentais para a formação contínua da identidade cabo-verdiana.

CABO VERDE, 40 ANOS Cabo Verde caminha para os seus 40 anos de independência. Do seu ponto de vista, quais foram os principais ganhos que nós conseguimos neste lapso de tempo? O principal ganho é ter transformado este país improvável num país possível. Tivemos também ganhos em termos

de dignidade, de decidir o nosso próprio destino. A pior coisa que existe é a subjugação. E se nós considerarmos a liberdade como não subjugação, a independência foi o momento zero da liberdade em Cabo Verde. Esta foi uma das nossas maiores conquistas. E quais são os desafios que se nos colocam em relação ao futuro neste momento? Neste momento Cabo Verde está a emergir e precisa, acima de tudo, de uma forte cultura de trabalho, produtividade e responsabilidade, para poder dar o salto. Temos tolerância, porque Cabo Verde é um ponto de culturas e civilizações, somos um país de liberdade, de não violência. Neste momento teremos de conseguir uma profunda mudança de atitudes e de mentalidades para podermos ter as energias necessárias para que o país possa realizar com sucesso o take off e poder gerar riquezas e construir a prosperidade. Diante do que acaba de dizer, que tipo de cidadania almeja para Cabo Verde? Temos de trabalhar para transformar as pessoas em cidadãos conscientes dos seus direitos e deveres. Um cidadão capaz de reivindicar para si a realização plena dos seus direitos, mas um cidadão profundamente comprometido com os destinos do

seu país, profundamente engajado na construção da nação cabo-verdiana.

LÍNGUAS, “PELA OFICIALIZAÇÃO DO CRIOULO” Sabemos da relação que existe entre o crioulo e o português. Um dos problemas que se colocam é o da oficialização da língua caboverdiana. Qual é a sua posição? Sou um defensor acérrimo da oficialização, já, da língua caboverdiana. Acho que seria um grande ganho para o país e para o sistema educativo, e devemos trabalhar, construindo consensos, para que, por altura dos 40 anos da nossa independência, possamos oficializar a língua cabo-verdiana. E qual o lugar ou papel da língua portuguesa em Cabo Verde? A língua portuguesa é um património nosso. Com a oficialização do crioulo teríamos duas línguas oficiais – a língua portuguesa e a língua cabo-verdiana. E, sendo assim, devemos tratar com o mesmo carinho as duas línguas. Para sermos gente que cultive muito bem o português teremos que, antes de mais, desenvolver a nossa língua materna. E em relação à diáspora o que espera dela? Espero um grande contributo nesta nova fase do desenvolvimento [ 237 ]


que o trabalho é a base de tudo, nós podemos construir uma grande nação. Teremos por isso de orientar toda a nossa ação para fazermos as melhores escolhas num ambiente de paz, tolerância, estabilidade, mas com muito trabalho, com uma grande capacidade de criar, inovar e com níveis elevados de produtividade para poder competir com os outros.

Sou um defensor acérrimo da oficialização, já, da língua caboverdiana.

de Cabo Verde. A diáspora deu um grande contributo enviando remessas, fazendo pequenos investimentos, mas gostaria de ver uma maior implicação dos quadros cabo-verdianos na diáspora no desenvolvimento da academia, da investigação e das nossas universidades, no desenvolvimento das economias criativas. Cabo Verde deve afirmar-se, cada vez mais, como nação global que é, considerando sempre a sua gente espalhada pelo mundo. Uma das críticas que ouvi de um emigrante é que até hoje Cabo Verde não foi sequer capaz de realizar um recenseamento dos quadros caboverdianos espalhados pelo mundo. Como reage a isso? Isso está em curso. Há muitos projetos em curso neste momento, têm vindo vários quadros da diáspora para participarem em projetos [ 238 ]

FIGURAS, “POLITICOS”

de desenvolvimento do país, nas universidades, em institutos, etc. Então recusa que Cabo Verde viva de costas para a sua emigração? Isso é coisa que não existe. Há uma interação muito forte hoje com a diáspora e as ilhas. Embora tenhamos, ao longo desta entrevista falado várias vezes no assunto, que Estado almeja para Cabo Verde? Um Estado necessário e suficiente para um país insular e diaspórico, capaz de visionar o desenvolvimento, regular esse processo, ser catalisador de toda a dinâmica transformacional do país. Que valores defende para a sociedade cabo-verdiana? Fundamentalmente a tolerância, a não violência, a responsabilidade, o trabalho, a produtividade. O homem deve viver do seu trabalho. Se cada um se compenetrar

Nestes 40 anos quem são as figuras que mais marcaram a nossa vida? Eu veria mais os políticos que nós tivemos. Aristides Pereira, do meu ponto de vista, é uma grande referência. Pedro Pires também. Mas tenho outras referências: João Pereira Silva, José Tomás Veiga, José Luís Fernandes e Renato Cardoso. São pessoas que quiseram inovar, criar, provocar rupturas, fazer reformas. Muito do que nós temos hoje no sistema de previdência social, por exemplo, devemo-lo ao José Tomás Veiga, que trabalhou nesse sentido no pouco tempo em que esteve no Governo após a independência. Muito do que temos, na administração pública, em termos de reformas, devemo-lo ao José Luís Fernandes e ao Renato Cardoso. João Pereira Silva foi um governante ousado, corajoso e empreendedor, com uma grande capacidade de ação governativa. São pessoas que muito admiro. Há outras pessoas que eu admiro, pela sua integridade, coragem e doação à causa pública. O Olívio Pires é uma delas, o Adão Rocha também e o Luís Fonseca a mesma coisa. São três grandes referências para mim, nomeadamente, pela honestidade e decência com que assumiram a causa pública cabo-verdiana, trabalhando para o desenvolvimento deste país. Neste exercício terei cometido alguma injustiça, mas estas são as pessoas de quem eu me lembro neste momento. E o futuro, é otimista? Eu sou muito otimista. Cabo Verde pode dar, nos próximos anos, um grande salto. Hoje eu tenho mais certezas do que dúvidas quanto ao futuro de Cabo Verde. [Praia, 17-07-2014]


Carlos Santos

Secretário Executivo da Unidade de Coordenação da Reforma do Estado

Posfácio

Dar voz à cidadania

C

abo Verde encontra-se, como sabemos, num processo de mudanças profundas, visando a sua transformação num país desenvolvido, centro internacional de prestação de serviços. Para isso almeja um Estado moderno e competitivo, capaz de responder em tempo útil às demandas dos seus cidadãos e empresas, incluindo os estrangeiros que queiram investir e viver no seu território. Este desafio passa, cada vez mais, por uma Administração Pública eficiente em todos os tipos e setores de serviço que presta. Na prossecução de tal meta de longo prazo, a atual liderança política do País elegeu e lançou mãos à Reforma do Estado nas suas mais variadas vertentes. Esta reforma inclui a melhoria e a consolidação da qualidade da democracia e cidadania e o reforço da transparência e descentralização do aparelho público. Isso passa, necessariamente, pela modernização da organização e do funcionamento das instituições e serviços públicos, através da governação eletrónica e outros meios e instrumentos de gestão. A Reforma do Estado compreende, no essencial, intervenções nas duas

esferas de governo (central e local) e nos três poderes do Estado (executivo, legislativo e judicial), assim como em áreas cruciais que têm por missão garantir a Segurança, a Justiça, a Regulação, a Fiscalização e o Fomento socioeconómico e melhoria do ambiente de negócios. Seletivamente, procura-se reforçar o Estado lá onde ele é realmente necessário, isto é, onde o cidadão, as empresas e as organizações da sociedade civil não possam intervir melhor. Este esforço passa por abandonar a lógica de funcionamento em silos, privilegiando em vez disso a atuação em rede, com o envolvimento e a participação ativa dos sujeitos e atores sociais, inclusive empresariais, elegendo muitas vezes a parceria público-privada. Felizmente, tal esforço e investimento há muito começou a dar resultados. Hoje é muito mais fácil obter certas prestações por parte do Estado, de uma simples certidão de nascimento à criação de empresas, por exemplo. Em resultado disso também, Cabo Verde registou, nos últimos anos, melhorias substanciais em vários rankings, com realce para o ranking das liberdades políticas e civis

da Freedom House (EUA), onde se situa na 1ª categoria de países livres. Cabo Verde é hoje considerado o País mais Livre de África, política e civilmente, segundo os critérios da Fundação Mo Ibrahim e da Millenium Chalenge Corporation (MCC), sendo a 26ª melhor democracia do mundo, a segunda melhor democracia africana e a melhor democracia da Lusofonia. Igualmente, somos considerados o segundo país mais bem gerido e mais transparente de África nos rankings dessas duas instituições. No que respeita ao ranking liberdades económicas, Cabo Verde encontra-se na 3ª posição entre os 46 países da África subsaariana e a sua pontuação geral é maior do que as médias regionais e globais, estando na lista dos Top 20 dos melhores reformadores pela Heritage Foundantion com uma subida de 16,4 pontos nos últimos 20 anos. Cabo Verde é ainda o 121º melhor país do ranking da Doing Business, do Banco Mundial, e está entre as economias que apresentaram os melhores progressos de ambiente de negócios no mundo, integrando a lista de melhores reformadores nos anos 2010 e 2011. [ 239 ]


Destaca-se ainda o facto de Cabo Verde ter vencido o Prémio Africano de Inovação para o Setor Público (3.ª edição AAPSIA 2012), na categoria de inovação nos sistemas e processos governativos e estar com a melhor esperança de vida africana – 73,9 anos, segundo os dados da Mo Ibrahim e das Nações Unidas. Enfim, a linha orientadora da Reforma do Estado em Cabo Verde tem sido baseada em cinco (5) aspectos chaves de intervenção: 1) Inovação, 2) utilização intensiva da tecnologia; 3) capacitação dos recursos humanos; 4) reorganização dos serviços; e 5) integração de sistemas. Munir o Estado de meios necessários no sentido de permitir aos seus cidadãos participarem no processo de desenvolvimento é um dos objetivos desta revista, Vozes das Ilhas, que ora se dá à estampa. As “vozes” aqui ouvidas vão do agricultor ao intelectual e académico, passando por ativistas sociais e religiosos, sem deixar de fora a emigração, já que somos, como sabemos, e cada vez mais, uma Nação global e diasporizada. A pensar nisso, a Reforma do Estado, através da sua Unidade de Coordenação, concebeu e promoveu este projecto editorial como algo tendente ao reforço da cidadania e democracia. Este objetivo passou por ouvir um conjunto de vinte (20) individualidades, residentes e na diáspora, sobre dez (10) questões espelhadas nos seguintes objectivos: Promover uma reflexão aprofundada sobre a reforma do Estado, identidade, cultura, cidadania e desenvolvimento; Incentivar a participação activa dos cidadãos com diferentes perspectivas, opiniões e visão do país na recolha de informações que irão ajudar na definição das políticas públicas direcionadas à Reforma do Estado; Promover a boa governação e a melhoria da qualidade dos serviços prestados aos cidadãos, tornando a administração pública mais próxima e dialogante com o cidadão;

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Recolher subsídios para apoiar na formulação das políticas públicas ao nível da Reforma do Estado; Consensualizar opiniões sobre os temas através da divulgação de uma publicação em jeito de revista de compilação de todas as entrevistas, em edição e tiragem única; As entrevistas foram conduzidas pelo jornalista José Vicente Lopes, profissional de reconhecido mérito. Na realização do seu trabalho o mesmo teve carta branca, seguindo apenas as linhas de orientação estipuladas pela Unidade de Coordenação da Reforma do Estado – UCRE, relativamente ao conceito, objetivos, questões propostas e o produto final. Não sendo um questionário estanque ou fechado, as entrevistas variam em função de cada entrevistado. Pelo resultado final que o leitor tem agora em mãos, pensamos ter conseguido uma revista útil, de edição única, cujo conteúdo vem enriquecer o debate de ideias em Cabo Verde. Isto porque os entrevistados não só refletem sobre o tempo e os problemas atuais, como nos legam o testemunho do seu/nosso passado comum e o que esperam do futuro. Na busca de um melhor Estado para Cabo Verde, estas “vozes” nos legam também as suas críticas e sugestões, o que, desde logo, atesta ou reforça a pertinência desta publicação. Aliás, pelo seu conteúdo, Vozes das Ilhas háde servir para a análise e a exploração de vários especialistas e entidades públicas e privadas, nacionais e internacionais, que se preocupam com o desenvolvimento e o futuro deste país arquipélago. Ao estimado leitor, desejamos que esta revista possa ajudar a responder a alguns dos questionamentos que internamente e em espaços de diálogo se têm colocado.

Agradecimentos Finalmente, aproveitamos este espaço para, institucional e pessoalmente, fazer um especial agradecimento a José Vicente Lopes, que coordenou com a qualidade que habitualmente lhe é conhecida, a edição e produção da revista. Agradecer a todas personalidades que acederam dar os seus valiosos contributos, através desta revista Vozes das Ilhas. Da mesma forma queremos agradecer a Sua Excelência o Primeiro-ministro – Ministro da Reforma do Estado – , Dr. José Maria Neves, que se dignou a responder aos entrevistados e esclarecer sobre todo o processo da Reforma do Estado que vem sendo implementado sob a sua liderança política e técnica. Aliás, ele próprio, enquanto cidadão cabo-verdiano, não deixou de responder também ao questionário submetido aos demais entrevistados. Os agradecimentos são extensivos a todo o pessoal da Reforma do Estado e toda a equipa técnica de edição e produção, que, com muita dedicação e determinação, se engajaram desde a primeira hora na consecução deste projecto que ora resulta num produto de qualidade e de valor geral. Caboverdianamente




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