ARCANOS URBANOS: Rastros de uma caravana (2019)

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arcanos urbanos rastros de uma caravana

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ZErO I II III IV v vI vII vIII IX X XI XII XIII XIv XV XVI XVII XVIII XIX XX XXI 4

11 27 67 97 133 157 179 199 215 239 263 287 323 355 373 399 425 453 477 497 513 535

a cIGana do orIEnTe INvISÍvEL a caravana os NaVeGaNtES o carTeIrO o ÔNIBus aLuGa-SE o MOnUMEnTo a POLIFOnIa a FLor No asFaLTo o oreLHÃo a LISTa DO suPer a escaDarIa a POrTa aQuI É arTe os CamINHOS o cEMItÉrIo a rUa a HIPErBoLoIDE de rEvOLUÇÃo a cHuVa a esQUINa o vIaduTo o SILÊnCIO 5


aSsITe o nOSso FILme :) yoUtU.Be/8rjO7fH9BX0

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Eis o fruto fecundado pelo movimento da cidade, que agora vamos repartir. Abra sua mão, tome este corpo, abra sua boca, arranque-lhe um pedaço, esmague com a mandíbula a esponjosa polpa vermelha, sinta como se desmancha, doce, líquida, beba, beba esse suco abundante, deixe-se babar, deixe escorrer, manche sua roupa, engula sementes sem querer, pode limpar sua mão aqui, bem-vindo, bem-vinda!

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BeatrIz arruda LuIS nEnUnG daNIEL FErNaNDES TaIná suPPI LEoNarDO IzOtOn BraGa EDUarDO LaNIUS ana PaULa VIEcELI GUSTaVo DE OLIvEIra nUnES Leandra TaVares de MIranda marIana VaNuza vIeCeLI jesSE CarDOSO juLIana marIa VIEcELI

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daNI amorIm LuCIana UrBIm deIvIDsoN GoULarT BárBara de BárBara HyPOLItO xaBLO LuTz LaUra PujoL aNa LUísa FIGUeIrEDO NoÉMIe GUeNoUn denIse auGustO de MaGaLHãES MatHeUS GOMES cHemeLLO aManda STrOzak

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arcaNo zErO a CIGaNa do orIEnTe InVIsíVeL


Outrora e alhures Sem começo e sem fim Nem dia e nem noite

Fogo divino, fogo de Egunitá Sua chama é consagrada, purifica este congá Não se sabe se é ela quem chama, ou se ela é chamada, mas ela carrega uma chama. Chama que manifesta a divindade do fogo sagrado, a força que habita as profundezas da terra, que emerge incandescente e flamejante.

Fogo divino, fogo de Egunitá Sua chama é consagrada por ordem de pai Oxalá (quando eu sou seu filho Egunitá) Vem de Aruanda, vem pra me purificar

Força ígnea da lava de vulcão.

Sou membro da caravana, sou teu filho Egunitá

Fogo rubro apaixonado,

Vem de Aruanda, vem pra me purificar

braseiro que cura pela queima

Sua chama é quem me guia na paz de Pai Oxalá

e irradia o desejo capaz de transformar a matéria.

Dama do fogo descarrega meu congá

Kali-yê!1

Purifica este terreiro pro seus filhos trabalhar Vem de Aruanda, oh mãe guerreira Egunitá Ilumina nossa banda, vem na caravana trabalhar.

1. Saudação à Oroiná, Orixá da tese. Orixá que rege a linha dos Ciganos na Umbanda, também conhecida como Egunitá, a dona do fogo. Ouça o ponto: <https://www.youtube.com/watch?v=4DItubBkSrI>; <https://www.youtube. com/watch?v=iEnKWJhEIfE&list=RDQMgnyUQBaJm_4&index=3> 12

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Não se sabe se é ela quem chama, ou se ela é chamada. Dizem que chega inesperadamente e causa uma comoção que atravessa o corpo: põem-se a dançar todas as matérias não formadas, e ela chega. Dizem que entra pelo eclipse. Dizem que ela chega para aqueles que dizem sim. Para aqueles que dizem sim pelo prazer de dizê-lo. Pelo prazer de afirmar a vida.

Não se sabe se é ela quem chama, ou se ela é chamada. Quando vem, uma cigana nunca vem sozinha. Seu nome nunca evoca um indivíduo, mas uma caravana inteira.

Não se sabe se é ela quem chama, ou se ela é chamada.

*

Uma cigana, portanto, é sempre uma caravana.

Mas ela vem. Ela de repente já está.

Ori-ô! Ori-ô!2

De repente você está carregando uma cigana.

Não se sabe se é ela quem chama, ou se ela é chamada. Para nós, ela se chama, ou por nós foi chamada, Cigana do Oriente Invisível. Assim como sussurrou-nos o vento. Seu nome é uma direção, que aponta para o leste, mostra-nos o nascer do sol e da lua. Aponta para um nascente, um levante invisível.

2. Assim dizia-me no passe, Ori-ôooo Ori-ôoooo, que sorriso lindo, disse. Sacudia suas pulseiras nos meus ouvidos e eu via estrelinhas no escuro dos olhos fechados. Passou fumo de incenso perfumado em mim, segurou-me a mão, sorriu, me fez rir. Agarrou meu braço forte, disse que não era pra deixar ninguém roubar minha alegria, disse, você entendeu o que eu disse menina? Você já tem muitas coisas, basta botar toda essa luz no mundo, a tristeza te fecha, a alegria te abre. A cigana te quer aberta. Bote no mundo isso que você tem aí dentro! Orio-ôooo Ori-ôooo, e chamou pra dançar. 14

Ela diz: Maktub!3 Está escrito! Ela aceita e ama o destino ao olhar para o presente. Mas ao olhar para o futuro, não vê nada escrito, vê uma escrita por se fazer. O amor fati4 de uma cigana, o amor ao destino se converte também no amor pela destinerrância5, que é a condição do movimento do desejo, a possibilidade para um gesto de não chegar a um destino estabelecido. O futuro, para uma cigana, é sempre aberto.

3. Maktub em árabe significa carta, ou “está escrito”. Expressão utilizada pelos ciganos. É a aceitação do destino. 4. “Amor fati: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz sim!” (NIETZSCHE, Friederich. Gaia Ciência, p. 276). 5. “A destinerrância, a possibilidade que tem um gesto de não chegar nunca ao seu destino, e a condição do movimento do desejo que, de outro modo, morreria de antemão” (DERRIDA, Jacques. Horizonte de pensamento. Entrevista a Jacques Derrida de Catherine Paoletti no programa A voix nue de 18 de dezembro de 1998. Disponível em: <https://redaprenderycambiar.com.ar/derrida/ audio/derrida_paoletti_5.htm> 15


(...) Me curvo ao destino das caravanas, com cheiro de jasmim, alecrim e funcho. O destino das estradas, que cruzam destinos, que descortinam o mundo. (...) Maktub, o que as estrelas escrevem, em fios bordados de ouro, os céus cumprem, a terra recebe, os homens se curvam, e uma cigana dança.6

6. Direto da blogosfera cigana: RROMÍ ZERAFIM. Maktub. Postado em 16/10/2011. Disponível em: http://zerafimcontosdeumanjo.blogspot. com/2011/10/maktube.html 16

Nas noites de lua cheia, ela acende a fogueira e dança. Quando dança, faz rodar a saia e o mundo todo gira. Ela se auto propaga no espaço, irradiando alegria com olhos de malícia. É então que ouvimos sua gargalhada e aceitamos beber do vinho e comer as frutas vermelhas e somos arrebatados pela música híbrida da terra. Há prazer em conhecê-la. Há prazer em rodar com ela.

*

Ela disse não. Seu ponto de partida nasceu de uma recusa. Seu ponto de partida não está em nenhum lugar e em nenhum tempo. Seu ponto de partida é uma rebelião interior, em qualquer tempo, em qualquer lugar. Deixando de se submeter aos modelos, ela se rebela contra as estruturas de poder que aprisionam, contra aquilo que a oprime – as amarras, os dogmas, tudo aquilo que pesa, tudo aquilo que ela não precisa carregar. Então ela afronta. Ela debanda. Com poucos pertences numa trouxa, ela parte em caravana, parte para numa viagem mística, artística. Assim ela vai viver, vai viajar em práticas da arte. Diante da opressão, uma cigana conjura um mundo impossível. Ela dá partida em uma linha de fuga pela liberdade. Ela não é uma pessoa, ela é um fenômeno social. Sai para o mundo na busca de viver plenamente a sua potência de existir. Ela conjura um caminho legítimo de ser no mundo, de fazer valer a sua existência. Assim, ela ama e cria seu próprio modo de vida nômade e faz disso um exercício permanente na sua vida. 17


Sua mística é recolhida na experiência da viagem. A mística se contrai no caminho, e o caminho se faz ao caminhar. Os caminhos também são feitos de paragens, de acampamentos, de tendas bonitas, de esperas. Ao dar seu sim para os caminhos, a cigana dá outro sim, que reafirma seu espírito através da comunhão, da celebração, dos encontros, do estar juntos. Fé no sol, fé na lua, fé na terra, fé nos caminhos, fé nas paragens em noite de luar. Fé na caravana. A cigana está sempre ao lado dos degredados, dos marginais, dos esquecidos, dos filhos de ninguém, dos perseguidos, dos imigrantes, dos místicos, dos lunáticos, dos poetas, dos piratas, dos que tem coragem, e que apesar de tudo, ainda acreditam na alegria. Ela os recebe a todos, com festa, música, vinho, dança, frutas, saias rodadas e fitas coloridas.7

7. Depois de “inventar” uma cigana que abre e bota esse jogo, acabamos descobrindo que a Linha dos Ciganos surgiu nos terreiros há poucas décadas, menos de 30 anos. É uma vanguarda mística, recepcionada nessa tese como na Umbanda, mas que, no entanto, não pertence a nenhuma delas. Não pertencem a ninguém. São do mundo, livres como o vento, são das estrelas. Frutos da terra, têm o fogo como um sagrado e que os aquecem nas noites frias. É um povo espiritual nômade, que paira e desce sobre os lugares onde são aceitos e bem-vindos em liberdade. Estão aí para compartilhar seu ouro, os seus valores, a celebração da alegria, da liberdade e da comunidade. Ensinam os antídotos para as tristezas, são anárquicos, autônomos, musicais e anti-capitalistas. As pesquisas foram realizadas nas aulas de Umbanda EAD, junto ao Pai Rodrigo Queirós: <https://www.youtube.com/watch?v=hFI_9G0bdAY&t=2348s> e <https://www.youtube.com/watch?v=pysU5S1F9bw> 18

E ela vem. Ela invade. Ela vem hoje e virá amanhã. Ela vem. No eclipse. Ela vem. Para cidade. Ela vem. Para nós. Ela vem. Ela vem para nos ensinar, no chão urbano, na nossa morada, como manter a chama acesa, viva, pulsante, irradiante. Ela vem para lembrar de algo muito importante que nos fazem esquecer a todo custo. Ela vem hoje, e talvez justo hoje, porque hoje se tornou muito necessário, reafirmar, mais uma vez,

a aLEGrIa, a LIBerDaDE, a ComuNIdade.

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OPTcHá! Entre eclipses, o reinado dos ciganos teve seu lugar entre os lugares da cidade. Um lapso mágico, uma pequena sabotagem nas engrenagens de Cronos e pudemos expressar nossa vagabundagem errante, nossa vontade de cidade, nossa mania de perseguir invisíveis. Entre eclipses, ela esteve materializando-se por aí, nos nossos corpos, nas coisas, nos lugares, no pensamento, na imaginação. Personagem misteriosa. Ela que não sou eu, que não é você, mas que também não é ela mesma sem a gente. Ela é, portanto, a gente. Ela é agente. Cigana é a gente enquanto agente. Ela é o movimento, ela é um tempo. Ela é a caravana. Ela precisava de uma mensageira, precisou se hospedar em um blog roxo cheio de estrelas, depois precisava de jogadores, receptores dos seus sinais emitidos a cada nova fase da lua. Ela teve tudo isso para vingar presença, tomar corpo e deixar as marcas da sua passagem. Peixes, pássaros, pessoas, formigas, deusas e deuses, cavalos pretos, seres fantásticos, nuvens e flores foram hospedeiros e hóspedes, corpos errantes e brincantes que, dentro do possível de cada um, à maneira de cada um, fizeram disto que se apresenta hoje, algo possível. Um jogo, uma rede movente, efêmera dança urbana que dá visibilidade ao sagrado nós no agora. O nosso tempo, a nossa cidade, o tempo compartilhado, os diversos tempos criados e os caminhos cruzados. Cento e setenta e sete dias isso durou. Viente e cinco intensas 20

semanas. Vinte e cinco arcanos urbanos. Depois continuou, afinal, os eclipses se abrem o tempo todo. Ciganas entram o tempo todo8. Então continuamos a jogar, mesmo que por fora do espaço-tempo anunciado. Esse jogo não tem fim. Apresentamos aqui nossa melancia sagrada cheia de sementes. Uma seleção de vinte e um arcanos urbanos, dentre os quais, dezenove foram lançados no blog, dois foram realizados fora dele. No encalço da caravana, há um arcano que circula entre todos por justiça9, e há também um espectro, um Gmork10, es8. Assim disse aquele que passou assoviando na orla, malabarizando uma garrafa de cerveja, aquele que parou próximo a onde eu estava, olhou para a lua eclipsada de janeiro de 2019, e disse: As ciganas estão vindo. Como se não bastasse dizer uma única vez, ele repetiu: As ciganas estão vindo. A narrativa dessa madrugada em que meu coração chorava ausências, permanece guardada. Os sinais do oriente invisível também são histórias sem fim. 9. Fazemos justiça aqui ao Arcano da Flâneuse, disparado no blog, que não teve nenhuma entrada, nenhuma resposta narrativa. Neste arcano, a mensageira identificou a ausência histórica de um flâneur feminino e convocou a mulherada a flanar e narrar. Pensou o arcano junto a Rebecca Solnit, que, em seu livro, A história do caminhar (2016) nos provoca: onde está você flâneuse? E o arcano da flâneuse continua a chamar. Vem flâneuse, vem existir. Não tendo recebido nenhuma entrada, esse lugar é ocupado aqui pela Filha da Lua, jogadora primitiva que inspirou esse jogo. Então, a experiência do primeiro Sinal do Oriente Invisível, aquele do primeiro eclipse, atravessa esse jogo junto com a caravana, por justiça a essa figura quase invisível e interditada, historicamente, pela própria cidade. O chamado segue chamando em: <https://arcanosurbanos. wordpress.com/2018/05/16/arcano-11/> 10. O Gmork é um personagem do livro A história sem fim, de Michael Ende (2010). É um ser hibrido, diferente dos outros seres de Fantasia, pois ele pode cruzar entre os mundos. Se apresenta como servidor do poder, e está em Fantasia a seu trabalho, para impedir que Atreyu, o menino índio que busca a cura para a Senhora dos Desejos, encontre a criança humana capaz de renomear o coração de Fantasia e salvá-la do Nada, verdadeiro vilão da história. No encalço de Atreyu, em quase toda sua jornada, Gmork o persegue sorrateiro e silencioso. Eles finalmente se encontram na Cidade Fantasma, onde Gmork 21


pírito zombeiteiro que a persegue.

agoniza morimbundo. “Em qualquer ponto das redondezas ressoava um uivo rouco e gutural, tão triste, tão desesperado que cortou o coração de Atreyu. Esse som plangente, que parecia não ter fim e ecoava nas paredes dos edifícios mais longínquos até se transformar no uivo de uma alcateia dispersa de gigantescos lobos, exprimia toda a solidão, todo o desespero das criaturas da noite.” Nesse encontro, Gmork zomba da esperança e revela a Atreyu o verdadeiro segredo das forças que estão destruindo Fantasia. Ao mesmo tempo que vilão, esse ser hibrido também é o único personagem que revela o verdadeiro inimigo de Atreyu. Em nossa caravana também somos perseguidos por um Gmork, uma cidade fantasma, um espectro de cidade, da qual não conseguimos nos esquivar, pois ela está aí, sem rosto e sem nome, está aí. Os táticos sempre circulam sob as estratégias do poder. E aí estamos nós, agindo sobre e apesar de uma cidade fantasma que nos persegue, que avança, que toma cada vez mais espaço. A caravana multiplica estrelas, na batalha conta nosso obsessor zombeteiro – a cidade fantasma, cidade neoliberal, espírito Gmork que se introjeta em nós – do qual não podemos nos livrar completamente pois todos somos parte do jogo dele, todos jogamos esse jogo do poder que quer nos alienar, quer nos individualizar, nos separar, nos conformar. É contra esse obsessor zombeteiro que lutamos, dele desviamos, no território dele que agimos e extraímos daí, ainda assim, a nossa alegria de viver, de estar juntos e de compor. Assim acreditamos inventar nossas próprias histórias e sermos protagonistas em alguma coisa e não somente fantoches ou bonecos reprodutores da lógica que combatemos.

aBrE-se o POrTaL do eCLIPse. Lua CHEIa somBreaDa. eLa vaI ManIFESTar.

Nós não gostamos dos espectros, não gostamos nem da forma como eles se escrevem, e por isso eles vem em pequenos fragmentos no encalço da caravana. Tomar um obsessor em dose única é perder potência demais. Retiramos assim sua força e pusemos ele a correr atrás de nós, para cansá-lo, para exauri-lo, para que a luz das estrelas que geramos pudesse quiçá espantá-lo, fazê-lo mudar, transforma-lo em outra coisa. De qualquer maneira, é importante que os espectros estejam visíveis, mais ou menos, aqui e ali, entre os arcanos, ainda que de forma fantasmagórica, quase ilegíveis. Assim como Gmork, agente do poder, é um vilão de fantasia, que revela a verdade por traz da angústia do Nada, e nosso espectro é um quase vilão, que revela as angústias da cidade neoliberal. Gmork ladra, mas a caravana passa. 22

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[primavera de 2015] Dentre tantas cores de caneta, quis a azul. Azul escuro, cor da noite. Azul sobre este amarelo vivo do papel, quase alaranjado, como o eclipse que não vi ontem. Não vi. Às dez da noite bati o portão, decidida. Em busca da lua, subi a Rua Liberdade, carregando comigo apenas as chaves de casa, um maço de cigarros e uma cerveja, que prometi beber apenas no “momento certo”. Momento que eu julgava ser logo, eu ia até ali. Mas, ao que parece, em noites de eclipse, tudo o que era pra ser certo vira incerto, e as cervejas esquentam nas garrafas. As coxas queimavam na ladeira, o batimento cardíaco retumbava nas veias e, com alvéolos dilatados, sorvi o ar misterioso daquela subida. Eu era um pulso ao chegar no muro do IPA. Eu ia até ali. [continua]

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arCaNo I a caraVana


Disparado em 24 de janeiro de 2018 às 20:00 por arcanosurbanos Lua Crescente

Bem-aventurados jogadores! Bem-vindos aos Arcanos Urbanos, o jogo dos errantes. Sob uma atmosfera de julgamentos e condenações, com o exército nas ruas, helicópteros, atiradores de elite, bandeiras agitadas, manifestantes rivalizando o espaço da cidade, acompanhamos o jogo dos podres poderes, um jogo já jogado, fechado, mofado. Um jogo de cartas marcadas.1 No entanto, um outro jogo vai começar. Na noite de hoje, apesar da chuva, no céu brilham as estrelas e a lua está crescente. O universo inteiro é testemunha do começo do começo daquilo que há de vir. É assim que começa, antes de começar. A Cigana ainda não está entre nós. Hoje, com antecedência de uma fase da lua, vamos preparar nossos corpos para o jogo. É assim que o sem forma começa a encontrar os primeiros pontos no mapa, pontos que ligarão as primeiras linhas, que farão os primeiros laços, que vão permitir o desenho dessa bonita errância, onde a Cigana virá fazer corpo, virá habitar. 1. Nesse dia, em Porto Alegre, acontecia o julgamento do recurso apresentado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no processo do triplex em Guarujá na sede do Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4). A sentença de condenação foi confirmada e a pena aumentada de 9 anos e meio para 12 anos e 1 mês de prisão. https://www.sul21.com.br/areazero/2019/01/ha-um-ano-trf4-condenava-lula-em-2a-instancia-e-abria-caminho-para-prisao-politica/ 28

A Cigana está chegando2. É por isso que estamos aqui reunidos nessa noite de hoje. Hoje, na lua quarto crescente, vamos realizar o ritual de abertura do corpo, essa paisagem epitelial, esse lugar I, para dizer sim ao chamado da Cigana, para nos apresentarmos a ela, para que ela nos chegue e adentre. O Arcano I é a preparação de um corpo para o jogo. Então jogadores e jogadoras, aproximem-se! Vai começar!

[INICIO DA GRAVAÇÃO] Arcano I, ritual de preparação do corpo. Você pode começar esse jogo por qualquer lugar, desde que tenha um corpo. Se você está me ouvindo agora, é porque você já escolheu sabiamente um espaço íntimo na casa, e você está nu(a) aguardando minhas palavras. Você deixou perto de você uma câmera e uma caneta. Você se sentou confortavelmente no chão, numa almofada ou tapete, e você está de frente para o leste, a direção de onde nasce a lua, a mesma direção de onde vem a Cigana, o oriente invisível. Agora, coloque suas mãos sobre as pernas nuas, mantenha as costas bem eretas, e rigorosamente imóvel, fique em silêncio

2. Até o lançamento desse arcano, ninguém sabia ainda quem ou o que era a Cigana. “Mas então, quem é a Cigana? O que é? Onde está? De onde vem? Calma, quando menos esperarem, ela se revelará. Até agora, sabemos apenas isso: que ela está chegando.” 29


por um bom tempo... Olhos abertos ou fechados, fique aberto ao que se passa, ainda que pareça não acontecer nada. Abra-se ao que está a sua volta. E o que você percebe? Tudo isso é o presente. E se você prestar bem atenção, você verá que o presente permanece presente. Se você for capaz de se entregar ao presente, viverá, assim, alguns minutos de eternidade. O presente nunca falha. O presente sempre está aí, inteiro. Só você pode se apropriar de seu tempo. E se apropriar de seu tempo, é viver o presente. Se pode dizer que o presente existe para nós, já que nós sempre existimos no presente. Se me lembro de algo do passado, não vou até o passado, é agora. E quando imagino o futuro, é uma imaginação no presente. O presente é o mistério do tempo. Bata palmas agora. Quando você bateu as mãos, era presente, mas, já não é mais. O passado já não existe mais, pois passou, nem o futuro, pois ainda não aconteceu, e o presente só é tempo enquanto não cessa de, instante a instante, a se anular. Quer ver uma coisa? O que é o presente? O intervalo de um ano? O intervalo de um mês? Uma semana? Um dia? Uma hora? Um segundo? Um milésimo de segundo? Nessa progressão, o presente se reduz, se reduz, se reduz. Se reduz ao que chamamos de um instante. Ins30

tante é um tempo indefinido pois, alguém poderia dizer quanto dura um instante? O instante não existe no seu limite. Divida o tempo infinitamente e você chega onde? Você chega num aqui-agora que você não pode pegar, não pode parar. Poderíamos dizer que o instante não existe, ao mesmo tempo que é tudo o que existe. Tudo que está no tempo, por definição, vai desaparecer. Menos a única coisa que não desaparece: o presente. Mais uma vez, desde que você nasceu, que eu nasci, o presente nunca nos deixou. Nós nunca deixamos o presente. O tempo não deixa desaparecer o presente, quer dizer, o tempo não deixa desaparecer o próprio tempo. Você está esperando a Cigana. Agora que você está aí atento ao presente, você vai abrir uma porta para a Cigana entrar. A Cigana não entra pela porta de casa, nem pela janela. A Cigana vai entrar pelo seu pé. Então pegue a caneta que está ao seu lado, e com ela faça uma incisão na planta do seu pé: um risco, em cada um de seus pés. Ao riscar, você está abrindo a fenda por onde a Cigana vai entrar. E assim, com os pés abertos, vamos dar sequência ao ritual. Se você chegou até aqui, é porque já escolheu seu nome de jogador. Então agora, com a mesma caneta que abriu seus pés, escreva seu nome na palma da sua mão. Essa é a mão que a Cigana, rainha da quiromancia, vai ler. Agora você estende suas pernas para o leste, expõe seus pés, seu portal aberto e mostra também a sua mão com seu novo nome 31


escrito, aponte suas mãos para a mesma direção. E assim, diga em voz alta quem você é no jogo, diga seu novo nome! e repita: -Estou nu(a) esperando a Cigana. Cigana, entre pela planta de meus pés! Além de querer saber seu nome, a Cigana quer saber que corpo é esse ao qual ela está sendo convidada a entrar. Mas ela não quer saber de seus órgãos, de seu organismo funcional, sua forma, sua fisionomia, sua estatura. A única coisa que interessa a Cigana é a topografia da pele, da superfície do seu corpo. Para a Cigana, o mais profundo é a pele. Para que ela conheça a paisagem do seu corpo, pegue agora a câmera que estava aí o tempo todo. Configure o máximo de zoom que a câmera permitir, e comece a filmar, bem devagar, partes do seu corpo, filme de muito de perto, tão de perto quanto o foco da sua câmera suportar. Bem devagar. Vá deslizando a câmera pelo seu corpo, observando suas diferentes texturas, suas planícies, o desenho das veias por onde flui seus rios de sangue, observe os pelos, essa vegetação ciliar, observe as dobras, pequenos morros, vales, a formação das unhas e cutículas, a coloração das pintas, as manchas, as pequenas erupções, as inflamações, as feridas, as cicatrizes, as tatuagens, filme também seu pé aberto e a palma da mão batizada. Filme de tão perto a ponto de que o corpo se mostre outro, corpo paisagem, corpo abstrato. Olhe para o que você está filmando. Que corpo é esse? Esse é você jogador. Esse é seu corpo errante. Esse é o corpo que a Cigana vem animar. Não tenha vergonha. Seu corpo é lindo, é natural, é humano, é animal, vegetal, mineral, é topográfico, é também afetivo, mágico e espiritual. Agora, para finalizar, faça uma costura na incisão que você fez 32

nos seus dois pés. Para costurar a pele com a caneta, faça o desenho dos pontos, como linhas perpendiculares ao corte. A incisão cicatrizará ao longo do jogo e não inflamará. Você está pronto. Você está pronto para incorporar a Cigana! Você está pronto para jogar! [FIM DA GRAVAÇÃO]3

As estrelas do Arcano: (6 estrelas): apresente-se para Cigana, conte a ela quem é você, ou conte quem você quer ser no jogo. Escreva um parágrafo, e apresente-se com a emoção que vier no momento. (5 estrelas): Marque no mapa o ponto onde você esteve essa noite. O mapa mostra de onde você parte e para onde retorna durante as idas e vindas do jogo. A Cigana ficará feliz em ver no mapa os primeiros pontos de onde surgirão os movimentos do jogo que está por vir. (4 estrelas): sua paisagem epitelial, sua voz invocando a Cigana (2 estrelas): a palma da sua mão batizada, e a planta do seu pé cortado ou costurado. 3. ARCANOS URBANOS, 2018. Arcano Zero, Ritual de preparação do corpo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Oj3BIi1CbRo 33


BrUjOS y CIEnTIfICos

E assim termina o começo do começo. O ritual de iniciação ao Arcanos Urbanos está concluído. Na próxima lua cheia, dia do eclipse, estaremos aqui novamente reunidos! Jogadores de Porto Alegre, preparem-se para o primeiro Arcano Maior!

oPtCHá!

Esos poetas indeseables, los que parecen vagabundos, los delirantes desdentados, son las antenas de otros mundos, Están viajando en una escoba lejos del día intransitable, por no morirse en una pieza con su guitarra miserable. Hay otra radio en su cabeza. Lo que los nutre los devora. El tiempo pasa, pisa y pesa y la ciudad que los ignora. Ellos le apuntan y abren fuego con azucenas y glicinas, pero ella es un soldado ciego, que te acribilla en una esquina. Por fuera de las luces de la calle principal siguiendo alguna órbita secreta, rompiendo el pentagrama de ésta jaula universal llorando cuando ríe la careta. Pateando la basura que dejó la bacanal, corriendo a contramano de la meta. Rompiendo las vitrinas con un grito de animal, riendo cuando llora la careta. Brujos ladrandole a la luna; perros flacos, científicos paganos, pajarracos al borde del pretil, colgándole al añil, estrellas4 4. Orquesta Típica Fernández Fierro - Brujos y científicos. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VAZU9IqjsIw>

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encantado

são leopoldo BeLo HOrIzOnTe paris

são carlos

cachoeirinha

bento gonçalves porto alegre

pelotas

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Mercúrio [Porto Alegre-RS] Sou Mercúrio. Sou planeta: o menor deles, o mais rápido. Trago em mim a elegância dos movimentos planejados somada à trêmula instabilidade da ansiedade. Em parte, sou alquimista que assea o templo, prepara os ingredientes, confere as condições climáticas, aplica a pressão prescrita, ajusta o foco na mão. Meu cotidiano são sobreposições de rituais executados meticulosamente. Noutra parte, sou mediadora. Sei defender ladrões e sei ser ladra. Nunca fui pega, aprendi a mentir assim que cheguei aqui. Tal método de sobrevivência me mantém hesitante, já que acredito e desconfio de todas as minhas verdades. Essas práticas forjaram o meu corpo: sou prata líquida. Minha forma oscila, mas tende ao círculo, à gota que escapa por entre os dedos. Deixo transparecer a superfície lisa, homogênea, reflexiva. Espelho quem tenta ver.

Dragoberto [Porto Alegre-RS] Dragoberto nasceu do choque de dois ovos na terceira curva entre o cotovelo de Júpiter e o delta da Vênus > ricocheteia entre as paredes da aparência fazem 234 anos mas ainda assim insiste em usar palavras e gestos pra comunicar o que não existe. Um persistente. Ama as cartas e as ciganas que prometem não saber sua vida pra daqui a duas horas ou menos. Escreveu dois livros, um pras traças e outro pra sua cachorra que deita sobre ele e ronrona toda santa noite. Um vitorioso sobre suas solas. Acredita na ressurreição dos coelhos.

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Traditore [Porto Alegre-RS] Formigas. Formigas invadiram o instante, andaram pelo presente, presentificaram-se ainda antes de qualquer movimento. Seguia a voz da mensageira e as formigas. Quem era esse novo, que se dava o nome Traditore? Talvez as formigas – sempre o plural, formigas – mais saibam. Retomo um pensamento de antes do jogo (mas seria antes do presente do jogo?) – lembrar mais ser conexões que algo outro. E formigas surgem quando de um batismo para lidar com mistérios que habitam a cidade… deseja-se ser formigas (sempre o plural). Pontos de algo que cria os mais diversos desenhos, emergência de algo complexo nas ligações de unidades (talvez) indistintas…

Minerva [Cachoeirinha-RS] Busco prosar. Entre universos sonoros ecléticos, entre luzes complexas e excêntricas, sou amante do círculo, do coletivo, do início e fim. Escuto o som que jamais se destrói, o som que avança Cosmos adentro. Me faço de tempo, de poesias, de amor, de recortes e de tropeços. Curiosa e namoradeira, caminho em cordas espirituais e periféricas. Aprendiz-eterna, nômade, hermana, filha, mulher, brasileira, latina, bruxa, louca, la luna, guerreira da mata, estrela da manhã, criança, noturna, diurna {sou algumas borboletas}. Talvez, uma borboleta arquitetada de mistérios, mistérios claros. Um lugar que desocupei. Alguém que fui, 40

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Alguém que sou, Alguém que serei. E nessa colisão de encontros e estranhamentos, danço com o coração aberto e sem chinelos. Assim, minervo-me.

Joaquim [Belo Horizonte-MG] Vinha de lá. Híbrido, meio judaicocristão, meio ameríndio-negro. Gostava de palavras e imagens. Gostava de riscar e andar pelas ruas da cidade. Percorria o livro do mundo, a escrita-cósmica. Se detia em frases. Se tornou um livreiro de rua, daqueles que vendem na calçada. Um dia abriu um sebo. Às vezes, levava a banca pra rua. Gostava do conforto do dentro e da liberdade do fora. Percorria a cidade em busca de fragmentos e novos exemplares. Um dia quis ser professor. Manteve o sebo, por vício ou virtude. Queria continuar entre os livros, a imaginação e o mundo. Achava que todos fazem mundo. Multiversos. Pensa demais, se confunde, tropeça. Então, às vezes, anda e lembra de respirar. A cidade é pretexto para fazer vida e a vida é pretexto para fazer cidade.

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Orapiés [São Leopoldo-RS] Orapiés é meu nome nasci sob o signo do mercúrio e por este sou regido e orientado meus pés não tem asas eles tem fome de curiosidade para andar desorientado. Estes pés de ouro são filhos da necessidade da necessidade do andar da necessidade de trazer e levar. Mensageiro de mim mesmo onde cada saída, cada incursão é uma rota de conhecimento os pés de ouro me levam longe mas a mente sempre vai mais além. Ora ora passo que doura curva-te e ora quando sentires que a cidade chora. Minha sola de metal contra a pedra onde meus passos douram mas na sola se deixam marcar pelas rugosidades e pelas pontas das pedras se deixam polir pelos gramados se deixam ofuscar pela poeira da terra se deixam mesclar com a variedade do chão se permitem suar a cada passada que enterra uma semente de curiosidade e de sim à vida. Sou pés de ouro Orapiés. Estou nu virado para onde os raios de ouro nascem todos os dias e invoco-te, ó Cigana, clamando pela tua

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guia. Senhora das errâncias, Faço do meu corpo um vale fértil para receber tua caravana tingida de vermelho, azul e ouro. Entre por este corte! Passeie pelas minhas linhas e através delas me guie pelas linhas urbanas nas tuas andanças. Doure meus pés como és, como são a tua boca e as pulseiras que chacoalhas no caminho. Abra estes olhos para aquilo que não pode ser visto, e enalteça meu tocar onde não se costuma tocar. Doure meus pés, e assim serei Orapiés. Salve Cigana!

StellaDiver [Porto Alegre-RS] mergulhadora de abismos, pesquisadora de estrelas (de) cadentes, quase sempre submersa. submersa, submundo, submarino sob pressão de fundos. estrela marinha mutante, regenerante das partes que quebram. céu no mar, inferno na terra, pretensão de arcano 17 com nadadeiras de neoprene. na velocidade da onda, parte sem dizer adeus. refugia-se na escuridão da zona da meia-noite onde acaricia fendas com os dedos. corteja cobras azuis elétricas que incham, contemplando os lampejos dos minúsculos bioluminescentes. adotada pela família das baleias cachalotes, torna-se assídua das frequências inaudíveis percorrendo migrações melancólicas. não dá confiança a tubarões e despreza tanto enguias venenosas quanto as moreias mafiosas. tem profunda admiração pelas anêmonas, masturba pepinosdo-mar e se arrisca com águas vivas, pelo prazer de vê-las flutuar. ouvindo o chamado da cigana, ela emerge das águas para se tornar caminhante. já na subida fica doente da descompressão. desorientada, com dor no peito e 46

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quadros de asfixia, afunda com peso na superfície da cidade. é atropelada por uma moto no primeiro dia. debate suas nadadeiras no asfalto escaldante. sem máscara e sem cilindro, o mergulho urbano é livre e paranóico. as paredes a perseguem, há olhos por toda parte. desidratada e cheia de aftas na língua, vem a óbito em poucos dias. renasce, a cada vez, no fundo do mar.

Coletor [Pelotas-RS] Sou Coletor. Coletor é meu nome. Batizado pela lua, aberto pelo/para o mundo. Coleto partes de mim por meio do outro. Sou colcha de retalhos que sempre cabe outra costura. Patchwork. Do óvulo da mãe. Do esperma do pai. Do encontro das células surgi. Do primeiro encontro ao próximo, e ao próximo, e ao próximo e ao próximo, assim tenho sido forjado, fundado, marcado, criado. Sou célula solta no universo, sou parte da terra, sou deste planeta. Sou a carne do mundo. Sou um corpo que foge, que erra, que desvia, que para, que caminha, que se apaixona, que se deslumbra, que sente, que pensa. Que pensa que pensa. Sou meus pêlos que arrepiam. Coleto sensações. Dou-lhes nome, ora ou outra, quando preciso me fazer espaço. Se me espaço é porque me fujo, e me fujo para não me espaçar demais, fazendo o peso que a gravidade tende a manter em inércia. Sou como todas folhas: o vento. No verão me queimo, no inverno me recolho, no outono me solto e na primavera atinjo a cor. Sou/quero ser cada dia mais movimento. Movimento puro, que acontece por baixo e que quando se torna visível é porque já aconteceu. Porque já acon-

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teci. Porque quero me acontecer, me enrubescer, me enfurecer, me esquecer, me amanhecer e me anoitecer. Quero querer. Quero escrever. Quero transar. Enlaçar. Galopar. Flutuar. Voar. Por ai. Modo finito da substância infinita. Filho de todos os deuses, de todos os nomes, de todas as putas, de todos os bêbados, de todos os nômades, de todos aqueles que fogem. Fugir é a coragem dos justos. Ou o abandono dos fortes. Parar para respirar, suspirar e retomar: o fôlego. Viver convoca os pulmões, os nervos, as veias, os orifícios (todos), as peles (todas), as mãos, os pés. Chamo para a superfície o tato, o olfato, os ouvidos, os olhos, a boca e o meu sexo. É com elas que coletarei: uma questão de método.

Fiori [Encantado-RS] Flor, flora, florescência. Terráquea, terrosa no chão. Natura visível em cores. Espírito invisível de amores. Caule, folha, raiz, perfume Beija-me pássaro, voa-me vento Arranca-me a mão teu tormento violento Perdoo, logo recomeço; Flor, flora, florescência. Terráquea, terrosa no chão. Da luz direção força convicta. Cálice, corola, gineceu, oração Fecho, abro, contemplo em silêncio. Frutífera benção por novos sonhos e começos Disperso pólen pelos ares Amo, logo floresço. 50

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Corredeira Mágica [São Leopoldo-RS] Dizem: Não se banhará da mesma água... eu bebo dela em si, sou ela sempre em si. Outra. Banho-me e faço jorrar em sua esplendorosa força. Aceito a finitude dos processos da existência e, não sem dor, reconstruo meus fluxos, meus desvios. Peço apoio dos reis Vento e Terra para me lançarem por entre brisas e fendas terrestres e me despeço de mim... me entrego... lá sou eu e o universo! Corredeira Mágica Irreversível! Eu... no jogo e na vida me apresento, certa de toda a vida em mim, mais certa da finitude e da irreversibilidade da mesma, por isso mágica... Lua Vermelha [Porto Alegre-RS] Lua vermelha é um personagem que tem dentro de si um grande mistério, impulsionado pelo poder espiritual da lua e ao mesmo tempo tem uma grande dor, representada na vermelhidão da lua. Essa dor é o que impulsiona a busca por uma elevação espiritual, é o que busca encontrar a lua vermelha que está dentro do personagem e que lhe dá poder extra quando mais precisa se pôr a prova.

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Cavalo.Preto [Encantado-RS] Sou cavalo. Cavalo Preto. Preto, preto, preto. Gosto de passear e de comer pastos verdes nas varandas. Eu corro por aí. Brinco. Sou amigo, sou simpático, de sagitário, dou risada, choro. É muita adrenalina. Ação. Movimento. Eu sou esse cavalo. É verdade. Verdade verdadeira. Eu sonhei. Sou como um cavalo desses, de quatro patas, mas também venho com um arco e flecha. Sou um centauro. Preto. Preto. Preto. Dois braços, duas mãos, dois olhos, um coração forte. É exatamente isso. Eu sonhei.

Cristal Kandisnki [Porto Alegre-RS] Sou a energia pulsante da fagulha que dá início a tudo que não se encerra. Dragão Solar Vermelho que navega pelos ares e pelas águas, e utiliza a força da propulsão solar para a troca de energias com a terra e suas criaturas. Ser do dia, porém se a noite me chama, lhe dou todo meu afeto. Trago a energia do início, mente desperta e intuição reforçada. Sou a cobra que não morde o próprio rabo, por que não alcança, mas com parceria para encerrar o ciclo, faço a renovação acontecer.

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Ana Luz [Porto Alegre-RS] Ana luz. Amar e iluminar. Ser iluminada pelo instante que chega, pelas cores, formas e sons que se criam no oceano da cidade. Ser farol, ser mar, ser. Fazer da rua o caminho do sentido, da descoberta. Aventura de viver e se entregar. Amar e ser luz na escuridão que habita o espaço, de dentro e fora. Buscar frestas e encontrar estrelas.

Dóris [São Leopoldo-RS] Sou Dóris, sou curiosidade e observação. A cá da vida, nesse externo, no presente, só quero evoluir e ler as coisas, enquanto que, dentro de mim, tento desenvolver sabedoria suficiente pra manter uma tormenta sob controle. Porque quero muito do futuro, mas não consigo desenvolvê-lo a partir do presente, e esse abismo me deixa perdida. Então, sou errante.

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Aurora [Pelotas-RS] Me chamo Aurora, nasci com o primeiro raio de um dia qualquer, pois meu nascimento importa menos do que meus renascimentos diários, meu reflorescer cotidiano. Como aquele quando refloresci num arcano, que me lançou à experiência com a cidade desconhecida. Dessas coisas que a gente não espera e quando vê surgem, e implicam corpo disposto a caminhar, a se encontrar com os afetos urbanos, seus conflitos e seus acolhimentos. Me interesso por texturas e fragmentos, por peculiares coisas mínimas, que em mim produzem tamanha diferença. Gosto do que invade o corpo em sensação, que faz vibrar, que joga pra ação... que depois de atravessar o corpo me constitui outra Aurora emaranhada de linhas e forças. Curiosa que sou, sigo o mapa, das linhas, me envolvo e transbordo o quanto posso até caber de novo em mim. Sou urbana, política e coletiva. Toco as paredes, piso as calçadas, desvio dos buracos, enfrento e resisto ao medo do território engendrado em nós a cada dia, pois acredito na construção de outras realidades, produzidas a cada micropasso, a cada microrrevolução molecular desse pequeno corpo Aurora disposto a dar as mãos e não soltar.

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Astronauta Cigano [Porto Alegre-RS] De astronauta, bem pouco. De cigano, bem mais. Como astronauta vago em busca de um objetivo distante. Um? Não, muito mais que um. Diversos objetivos que mutam ao longo dos meses e anos. Um constante movimento. Como cigano e nômade, vou de um grupo a outro: dos hippies aos punks, sem passar pelo Rajneesh. Como todo bom cigano gosto da rua, do movimento público, da dança, da arte e da ocupação do passeio.

Luna [Goiânia-GO] Mulher lua. A outra face, a face nua. Mulher terra. O que é mistério, o que se espera. Mulher natureza. O que é firme, o que é beleza. Mulher força. A gravidade, a correnteza. Mulher água. O nascimento, a incerteza. Mulher vida. Por toda parte, a tua semente. Mulher gente.

El Hotel [Porto Alegre-RS] Eu poderia ser alguém, uma pessoa, um objeto insólito. Eu poderia ser Stephanie Queen, os viajantes, o pesquisador, a Maga, ou Oliveira. Eu poderia ser uma mistura de tudo isso, eu poderia ser. Eu poderia começar dizendo: “Disfarçadas do que elas realmente eram, duas pesquisadoras adentram o Hotel Lar Residence, às 14h do dia 2 de fevereiro de 2019. Munidas apenas de cartas ciganas, uma garrafa de água, e algumas bolachas velhas na bolsa, iniciaram assim sua peregrinação.” Mas vou preferir entrar pela janela dos seus olhos com meus letreiros em néon, e vou colocar dentro de sua casa uma recepção, vários hóspedes: esperas que desejam aproximação. Quero receber, quero fazer parte para receber, ofertar em troca, tempo da pós-prosperidade, abundantemente, receber a qualquer um que chegue, é assim que posso ser alguém no mundo.

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Barquinho Francês [Paris] De papel meu barco, de papel meu barco criança. Criança de giz amarelo amarelinha fiz na calçada. Pula pra mim, pula. O barquinho vem, o barquinho vai. De papel meu barco. De giz meu barco. Na parede azul da praça.

Denise-Árvore [Porto Alegre-RS] primeiro as coisas primeiras.

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Nuvem [Porto Alegre-RS] Sou agregado visível de minúsculas partículas de água suspensas na atmosfera. Revelo-me no horizonte vertical dos muros e dos tapumes. Não digo nada. Apenas chovo. Sou pesada, mas rarefeita, flutuo no céu ao sabor do vento, bem acima da sua cabeça. Você me vê, mas sempre sem contornos, sem superfícies. Olho para você. Te chamo. Outro dia, outra esquina, outra rua, e novamente encontro você. Me anuncio, insisto e me insinuo pelas duras superfícies das fachadas, atraio você para dentro do rarefeito, arrastando seu tempo num rastro de pixo. Sou assim... informe, evasiva, transitória. Sou nebulosa e indefinida, sou objeto indeterminado, assim como resta o olhar que se atreve a olhar para o céu e se deixa levar para longe, para fora de si. Você pode apenas me adivinhar, sem jamais me apreender inteiramente. Você me vê, mas como poderia me capturar? Efêmera no céu, efêmera na cidade, efêmera como a vida, sou puro rastro. “Eu sou a nuvem que chove?” Eu quem? Eu-você? você-você? Quem é você?

Filha da Lua [Porto Alegre-RS] Corada face, impulsivo coração caminhante, fui entregue aos desígnios da deusa. A deusa olhou-me e disse: gosto dessa criança. Corada face, impulsivo coração caminhante. Encontrei-me perdida entre fótons e sombras. Encontrei-me perdida. A cidade chamava e eu não sabia o que fazer. A cidade chamou mais uma vez e eu fui. Só fui. Corada face, impulsivo coração caminhante, fui entregue aos desígnios da deusa. A deusa olhou-me e disse: gosto dessa criança. E eu fui. Só fui. Busquei na cidade aquilo que me chamava. O acaso me mostrava. Corada face, impulsivo coração caminhante. Gosto dessa criança.

Baco da Serra [Bento Gonçalves-RS] Embriago-me e desapareço Você não vai me encontrar

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De que adianta tanto saber sobre a cidade, tanta significância e interpretação, se no fim das contas, continuamos a recusá-la? Como bem sugere nosso amigo cigano Jorginho Perec, melhor seria cessar de falar tanto sobre ela e passar a vivê-la1 . Sair um pouco desses lugares embolorados e fechados que se converteram nossas universidades, para finalmente apostar na cidade. Quem sabe damos um rolê ao invés de ficarmos sentados entupindo ouvidos com ideias que nunca descem para o chão?

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1. Perec, 2001, p.99

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Mas não parei na esquina. Não quis voltar de jeito nenhum. Era pra frente a direção. Era pra cima. Seja lá o que tenha sido, foi pela respiração que entrou, eu tenho certeza. Aquele sopro de ar misterioso abriu o caminho, me abriu para os caminhos. Eu ia até ali. [continua]

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arCaNo II OS navEGanTes


Disparado em 31 de janeiro de 2018 às 20:00 por arcanosurbanos Lua Cheia

É lua cheia terráqueos jogadores! Saudemos o satélite prateado, a mãe de todos os lunáticos que hoje mostra sua plena face, refratando a luz do sol. Salve Selene, deusa do inconsciente e da loucura, do feminino e de todos os amantes e poetas! Em Porto Alegre, são 20 horas, 25°. As nuvens se dissolveram no céu para que fosse possível contemplar o desbunde lunar. Uma lua plena em leão, surgindo do leste, abrindo a noite e estendendo o tapete de prata por onde a Cigana do Oriente Invisível vai passar. Pelas 11 horas da nossa manhã de hoje, a Terra sombreou a lua, e desse eclipse que não vimos – porque dentro do dia estávamos – abriu-se o portal definitivo desse jogo. Bastou que um eclipse durasse 76 minutos de puro sombreamento, para que toda sombra na terra tivesse um tremor de regozijo. E foi assim que ela entrou. Pelo portal do eclipse invisível...

Eis o encontro efetuado! A Cigana está entre nós! Caindo, rapidamente ela joga uma carta na sua cara. Ela vai direto ao ponto, ela não faz rodeios. Eis o primeiro Arcano Maior do jogo: Explodem três distintas imagens: Maria, Iemanjá, e uma suculenta melancia cheia de sementes, carregadas por um barquinho que vaga no mar. Em seguida, a Cigana mostra um mapa, cuja coordenada não se mede apenas em graus de latitude e longitude. Lê-se o título provisório do arcano: 143 Navegantes. O que temos é uma coordenada espaciotemporal. É data: 2 de fevereiro. E é, ao mesmo tempo, lugar. Lugares. Afinal o Arcano dos Navegantes é um acontecimento que recebe muitos nomes, mas repete um movimento semelhante que se efetua em muitas cidades. Esse Arcano tem uma profunda relação com o elemento água, com a emoção, com a espiritualidade. Ele mostra um habitante da cidade mergulhando num fluxo festivo que celebra um mistério. A Cigana só pode estar se referindo a esta que é considerada o primeiro patrimônio imaterial da cidade de Porto Alegre, a Festa de Navegantes, que esse ano repete o ritual pela 143ª vez. Patrimônio imaterial... de que pode ser feito?

Bum! A Cigana cai na terra pela primeira vez.

Ninguém viu, ninguém percebeu. Ela já correu pelas superfícies das cidades e se embrenhou em meio aos corpos, já adentrou as feridas abertas de pés recém suturados que estavam à sua espera. 68

E a Cigana simplesmente quer saber: qualé a do rolê? Que fluxo é esse que escoa pela paisagem? Qualé a dessa multidão de corpos humanos devotos, alguns de pés descalços, que entoam cânticos enquanto deslizam no mapa por quase cinco quilômetros dando vazão à um barquinho que carrega uma mulher de azul e branco que veio da Europa com seu filho nos braços? Azul e branco que paralelamente se acopla à celebração de ou69


tra imagem de mulher, também no barco, dessa vez negra, vinda da África, usando uma coroa estrelada na cabeça enquanto pérolas caem das suas mãos. Maria é mãe de Jesus. Iemanjá é o orixá da maternidade. Ambas protetoras dos que navegam. Dos que vagam mar adentro, que enfrentam a vastidão das águas e os tormentos do caos. Iemanjá é mãe das cabeças, dona do pensamento. Ambas expressam o princípio doador e amparador da vida. O Guaíba, água doce, desagua no mar, a grande mãe da vida nesse planeta. No Arcano dos Navegantes, um grande rastro é deixado entre duas coordenadas: a primeira, Santuário Nossa Senhora do Rosário, de onde, às 8:00 da manhã parte uma procissão que vai até a nossa segunda coordenada: Santuário de Nossa Senhora dos Navegantes, onde as 10:30 o barquinho é recebido e a festa se estende até a noite. Diz a Cigana que é quando o sagrado revela o profano, e o profano se mostra sagrado.

O amuleto do jogo O movimento da água emulado em terra faz abrir as melancias, suculento, vitaminado vermelho que carrega as sementes.

Então agora respira, porque lá vem o convite oficial do primeiro arcano de lua cheia do jogo.

A melancia, Citrullus lanatus, uma planta trepadeira e rastejante da família Cucurbitácea, é originária da África, e foi trazida para as américas, cruzando o mar. Ela veio pela água, ela navegou. Ela mesma traz em si muita, muita água: 92% da sua constituição. Sua polpa vermelha é uma riqueza vitaminada, A, C, B6, potássio e citrulina, essa última que é pura saúde cardiovascular!

Proposição do arcano

Historicamente, na festa de Navegantes, a melancia sempre esteve presente. Ela é o fruto que integra os fiéis de diversos

A Cigana convida a mergulhar no azul e branco da festa, em qualquer momento dela. A programação vai da manhã até sabe-se lá que horas da noite. Você decide sua rota, e decide o tempo que dedicará à experiência. A proposta de ação desse arcano é interceptar os fluxos que provém da festa. Ir aos santuários, acompanhar a procissão terrestre, tomar uma cerveja nas barraquinhas, presenciar um milagre, cumprir uma pro70

messa nunca feita, andar a procissão na contramão com um boné de veludo verde5... O que mais pode ser feito no Arcano dos Navegantes? Qualé a do rolê? Lembre-se: você é que carrega a Cigana no corpo. Encontre a festa e viva um pouco o seu movimento. Feito um convidado alienígena, sem nenhum julgamento, nenhuma moral, nenhum peso, apenas experimente ir com as águas. Vamos navegar na melancia.

5. Referência ao artista Flavio de Carvalho que, em uma de suas peripécias, narra e analisa a experiência de percorrer uma procissão de Corpus Christi na contra-mão, usando um boné de veludo verde. O artista provoca os fiéis, se envolve numa confusão, apanha e vai preso. No dia seguinte, sai uma notícia no jornal. (CARVALHO, Flavio de. Experiência n.2: realizada sobre uma procissão de Corpus Christi: uma possível teoria e uma experiência. Rio de Janeiro: Neu, 2001) 71


credos e também os não religiosos. Assim como Maria carrega Jesus, Iemanjá as pérolas, a melancia carrega suas sementes. Então este arcano também convida a saborear um pedaço de melancia na Festa de Navegantes, e guardar algumas sementes. Elas serão o seu amuleto no jogo. Você pode guardá-las num saquinho, num envelopinho, você inventa como armazenar as sementes, para que elas estejam com você em errâncias vindouras.

Estrelas do arcano: (6 estrelas): Carregue consigo um bloquinho, um caderninho, uma caneta. Enquanto desliza pela cidade na busca do arcano, escreva ali, sem esforço algum, as coisas que surgem para você nesse movimento. Vá andando com o caderninho e vá escrevendo. Anote o que estranhar, o que surpreender e, se nada acontecer, escreva o que não acontece. Deixe o texto vir como vier. Apenas repare, escreva e ande. (5 estrelas): Ative o aplicativo Strava no seu celular. O aplicativo registrará o percurso da sua procissão pessoal.

…pelas portas do eclipse a Cigana caiu na terra, pelas portas dos pés ela adentrou nossos corpos, pela leitura da mão ela nos chamou pelo nome. Os jogadores, agora, pela porta de casa, saem de si para chegar ao outro que logo somos, outro que somos com ela: a Cigana – seja lá o que ela for. A Cigana é a gente! A Cigana é agente! (e a mensageira vai ali ver a lua)

Ave Maria! Odoyá! Sementes de melancia!

oPtCHá!

(4 estrelas): Capture pequenos fragmentos de vídeo da sua experiência arcânica. Revele o mistério do movimento que transforma a paisagem. (2 estrelas): Capture a imagem de um profano que se mostrar sagrado.

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São 07:41 – É cedo. Cachorros e seus donos habitam a rua silenciosa da manhã. Um homem corre. Uma voz de dentro me indaga enquanto olho fixamente o letreiro do zaffari: – No que tu acredita? Sigo em meus passos acelerados em direção à Igreja do Rosário. Numa dessas bancas de revistas da Borges, o vendedor dá informações a um passante. No viaduto, os moradores de rua acordam e dão bom dia. A essa hora da manhã do feriado a rua está deserta de carros, e eu, com a sensação de atraso. A Salgado Filho por sua vez já está desperta de motores. Vejo mais pessoas e pressinto que elas também estão indo (en)caminhar o barquinho. Da parte de cima da Floriano Peixoto avisto a multidão em perspectiva. Será que já começou? Te amarei senhor, te amarei senhor. Aplausos. O senhor esteja convosco! Erguem-se celulares sobre as cabeças. Acho que a imagem vai sair da igreja. Ave maria cheia de graça. Ainda não. Percorro o olhar pelos letreiros das fachadas, me distraio sentindo cheiro forte de mijo. Na parede de pedra da igreja, um pixo eterno6 diz: deus é gay. Aparentemente foi contestado por um spray de outra cor, que deve acreditar que deus é hétero, quando na verdade, tudo leva a crer que deus só possa ser pan. Abandono a questão – pétalas vermelhas me convidam a olhar para o chão.

6. Pixo eterno é o termo idiossincrático empregado por alguns pixadores de Porto Alegre, para designar todo pixo feito em superfícies de pedra aparente, que é quase impossível de apagar. 76

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Saiu ela! Chuva de papel! Que euforia, a banda é muito boa. Vamos andar! Eu quero ir no meio da rua. Mas onde está a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes? Onde está o barquinho? Fiquei para trás, não vi nada. Também não tem mais banda, não tem mais música. O que se ouve são rumores de passos e pessoas conversando. Muitos, com grande sabedoria, vieram de chapéu. Tem gente de tudo o que é tipo, tudo o que é idade, crianças, jovens, senhoras, senhores. As pessoas caminham devagar. Na esquina com Otávio Rocha já tem ambulante de cerveja e água. Vejo muitos pés descalços. Água! Água! Bem gelada! Ouve-se o tempo todo entre as rezas. Entramos na Mauá. Três escapulário é cinco. Dois helicópteros circulam no céu. Tá chegando o viaduto.

Estou impedida de circular facilmente por ai! A TARIFA DO METRÔ SUBIU DE 1,70 PARA 3,307, dificultando a vida dos regionais metropolitanos. Peguei trem com Orapiés, amigo de longa data. A cabeça estava tão cheia de desilusão/preocupação/medo/rancor que quase não vi a paisagem. Conversas, conversas, tentativa de me entender, de ver o todo (impossível!). Então me espantei quando Orapiés disse, chegando na estação São Pedro: Olha, que lindo! Quanta gente! E eu me impressionei.

7. Em março do ano seguinte ocorreu mais um reajuste. O direito ao transporte público sendo abandonado em queda-livre. Hoje pagamos 4,20. 78

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Um calor típico de fevereiro me aguardava na saída de casa. Sabia que em pouco menos de uma hora estaria em um acontecimento novo pra mim. A Corredeira estava comigo. Antes mesmo de descer do trem a visão da janela mostrava algo inédito: Uma multidão que passava em lentidão ritmada numa avenida geralmente dominada pelos carros e pela velocidade. A lata pela carne. O objetivo agora é mergulhar nessa multidão, entrar na corrente e experimentar. Saio apressado e vou seguindo paralelamente à avenida tentando entrar, assim que possível, no fluxo.

Saímos da estação e percorremos a procissão pela rua paralela. Fora... mas dentro! E, novamente, senti meu corpo sem forças para me puxar para a experiência. Devaneios... Até que vejo ela, Nossa Senhora dos Navegantes... e o foco foi nela. A multidão em ritmo pacífico, contemplativo era belo... movimento de vai e vem... proximidades...

Me chama a atenção o silêncio da caminhada. O local é sempre muito barulhento por causa dos carros, hoje cancelados em prol da tradição e da crença, mas, mesmo em lo-

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cais com muitas pessoas, há sempre muita produção sonora. Neste caso, as pessoas cochicham, falam mais baixo, sem grandes demonstrações de euforia. Me tranquilizo ao perceber que há ali uma ordem implícita imposta por cada um, não por grandes esquemas de segurança, e essa sintonia entre as pessoas forma um território aparentemente seguro, mas não livre de todo o caos – o que torna tudo ainda mais interessante.

Estamos na avenida da Legalidade e da Democracia8, de um lado os mourões de concreto, de outro, a vila. A procissão mescla todas as cores, mas tem a forte marca da presença da negritude. Há crianças vestidas de anjinhos com mães envaidecidas. Água bem gelada o tempo todo entre rezas e silêncios. O clima é bem amigável. As pessoas sorriem. Eu sinto vontade de sorrir também. Mas eu não gosto de helicópteros. Estamos agora em linha reta até o templo. O sol começa a torrar. – É repórter ou é pesquisa? – É pesquisa. É pesquisa mesmo. Continuei meu fluxo filmando o chão, os pés das pessoas, desses viandantes

8. Alguns meses mais tarde, no dia 26 de abril, a 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça, por maioria de quatro votos a um, derrubou a lei que alterava seu nome para Avenida da Legalidade e da Democracia, devolvendo à esta avenida o nome que homenageia o ditador Castelo Branco. 82

descalços, silenciosos, focados na caminhada, ou no estar com os seus. Amigos, pequenos grupos familiares, cada um caminha do seu jeito. Cada um tem um jeito de caminhar. A solidez do pavimento, dos muros, dos moirões do metrô, dos arames farpados, das calhas no acostamento, da arquitetura industrial, dos guindastes, dos cilindros, das treliças, dos silos de concreto, ladeava o movimento organizado pela celebração da fé. Pés descalços, rosas brancas, um rastro de metrô passando de quinze em quinze, a brigada militar, os helicópteros sobrevoando, e nós, num mergulho de superfície.

O caos é revelado pelo vai e vêm de pessoas principalmente no final da avenida, chegando na igreja, onde há uma dispersão. Alguns seguem o fluxo, outros não se demoram e tomam outro caminho para ir embora.

Já estou aqui nas redondezas de Navegantes. A procissão diluiu. Eu não sei por que ainda estou seguindo a multidão, o templo ficou lá pra trás. Acho que vim seguindo as pessoas, mas elas estão a caminho de casa. Chegamos na Sertório. Ahhh... todo mundo pega ônibus aqui! Então tchau pessoas. Vou voltar, quero comer melancia. Olha só! Cata-ventos coloridos! Acabei de receber um panfleto fresquinho: 94% DE AUMENTO DA PASSAGEM DO METRÔ.

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Nessa dispersão, já bem mais ruidosa, há o mercado informal, sempre presente nas festividades de rua, vendendo todo tipo de coisas. Muita água, muita fita, muita flor. Queria ver a santa. Impossível quase, tamanho o volume de pessoas. Mas com jeito, sentindo o fluxo é fácil se embrenhar. Ali é o único ponto em que noto uma maior agitação e tensão no ar. É de se entender, pois o motivo de toda a festa está ali, dentro de um barquinho, coberta do sol, exuberante em tons marinhos e florida como a primavera. Flores voam em sua direção e outras tantas são distribuídas, desta vez, imantadas com os poderes da imagem de feição amorosa e terna.

Vou levada pelo fluxo de gente, que ora me deixa ir pela direita, ora esquerda... ora eu furo, vou reto, ultrapasso... Chego então próxima do destino... impossível alcançá-la. Mas lá... contemplo e admiro suas costas, cabelos ondulados, e ela me dá uma rosa branca... como para que eu aquiete meu coração... e eu aquieto momentaneamente. Daí vêm a melancia. Retiro meu amuleto: 10 sementes guardadas e tantas que nem sei, engolidas.

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A melancia foi meu segundo objetivo (depois eu esqueci dos objetivos e procurei me deixar levar). E encontrei muitas. Muitas melancias roídas, outras tantas esperando dentes. Os meus avançam, me babo, não estou nem aí. Fevereiro é impiedoso em representar o verão. Entendo a razão da melancia fazer sucesso ali: hidrata com sabor. O ambiente me acolheu com conforto e até me senti em casa. Pessoas simples me deixam confortável. Decidi: a primeira semente que for parar na minha boca será meu amuleto. Cato a danada, seco ela, e vai pro bolso. Agora me acompanhará. Caretas, reza, suor, sol a pino, rezas, pedidos, choro, velas imensas, velas derretidas, guaíba invisível, asfalto e caldo de melancia, turba, sol ainda mais a pino, cheiros bons e outros nem tanto, risos, fila, mais fila, salves, uivos, uma igreja de decoração simples, de portas abertas, bênçãos e dispersão. Silêncio e comoção, banheiros químicos, saguão e pavilhão, frango cebola e tomate, fila, lembranças, toalha xadrez e fastio, zona norte, mistura. Chega a hora em que tudo se aquieta mais, a multidão se dispersa, pois a tarde chega.

Navegantes quem? Antes de toda a rua, o corpo se mostra sem marcas. Nada para o guiar, se descobre perdido. Lançado por mares de ideias, palavras e pensamentos, foi jogado fora de curso e encontrou-se longe, perdido. Reencontrar o destino implicara lançar-se contra a corrente. É sábio isso? Contra a corrente se encontram os que voltam de onde se vai. Contra a corrente se percebe que quem mija nos muros da cidade pode fazê-lo enquanto canta com uma voz maravilhosa. Contra a corrente se percebe o louvor de um culto lado a lado com o chamariz da meretriz (e não são a mesma coisa?). A corrente começa a criar forma - de polícia. Entre luzes, música, odores, o que se destaca são os “homens e mulheres da lei”. Um cadeado não fecha, e quando fecha não abre. Escrever em trajeto também mostra-se contra a maré, quando os instrumentos para tal se perdem no caminho. Contra a maré, até se vai. Mas não se para. Contra a maré, só em movimento. E é dia de respeitar a maré (ir de encontro também pode ser com respeito). Assiste-se uma briga, uma contenção. [A polícia, sempre e de novo.] Volta-se ao sabor e favor do vento, que corre do rio. O rio que a cidade nega e renega, mas festeja na figura de sua mãe. Ao sabor do vento, ainda à nossa direita o que nos acompanha não é o rio, mas o muro. 20:00 na cidade com nome de porto que dá as costas pro seu rio que é um lago. 2 de fevereiro, Navegantes.

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Cai a noite. Acabo de embarcar no ônibus em Ipanema em direção ao centro. Hoje é passe-livre. Que sonho se fossem sempre livres os passes na vida. Vim saudar Oxum e Iemanjá no fim do dia de Maria. Deixei pra ela a flor que ganhei em Navegantes. Saudei Oxalá no pôr do sol. Vim agradecer, diante da mãe invisível. Em Ipanema, areia grossa prendendo nos chinelos. Luz amarela e laranja do entardecer. Pequenas ondas. Flores na areia. Barquinhos azuis. Que dia. Um arcano maior vivido intensa e extensivamente. A rua, as pessoas, a multidão, o sagrado, o profano, os ícones, os sorrisos doces, a população. A gente... Dois de fevereiro em Porto Alegre, o amor nasce. As marcas ficam. A viagem da Cigana começa e “Maria mãe dos caminhantes, ensina-nos a caminhar. Nós somos todos viandantes mas é difícil sempre andar.” Felicidade suave. Cansaço turquesa no ônibus lotado balançando na escuridão da noite. É a volta pra casa.

Para muitos, o objetivo foi cumprido ao louvar e agradecer e pedir. Para nós também, que ganhamos experiência e vivemos um fluxo da cidade com uma cicatriz na sola do pé.

Respondo àquela voz de dentro que me indagava de manhã diante do letreiro do supermercado: 90

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– Acredito em tudo o que eu sinto.

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rip e r e o e uornar. e outrao, l i u a o d r uo de id ar odce . De muumrojdeoitsoeuoucondomoírniod,e peo importa a altura doocê instalar ao read, quer

nã eir es v você qu r as grad e t sua u n q a u , q ou ndo. A orque u P m . o a d z e tal um que da alma sua for mais com ilhamos a t s r i a o p c m o a todas é não, c adoece, , a alma a e u d s a d é i c o alma nã alma da m ela. uando a Q . e t ouco co s p m exi u m e s adoec as alma


Eu ia até ali. Mas, com força repentina, desejei seguir. Deixei o corpo escolher sozinho a direção dos passos, deixei o medo, deixei-me guiar pelos sentidos, pelo faro, pelo acaso. Estava num estado assim, determinada a me perder para encontrar algo naquela atmosfera de eclipse, alguma coisa. Alguma coisa talvez quisesse me encontrar. [continua]

III 95


arCaNo III O cartEIro


Disparado em 7 de fevereiro de 2018 às 10:00 por arcanosurbanos Lua Minguante

Optchá! Salve, jogadores errantes! A lua quarto minguante está em escorpião e, desde o último arcano urbano, a tarifa do Trensurb sofreu um simbólico reajuste de apenas 94%; Em Brasília, os deputados já vazaram antecipadamente para o carnaval; um viaduto de concreto desabou parcialmente; e no aeroporto uma televisão caiu arrastando consigo parte do teto. Nesse contexto energético, é válido recomendar que protejamos as nossas cabeças. Hoje a Cigana apresenta mais um arcano menor, invocando as forças de Mercúrio, que, no céu de hoje, está velozmente atravessando o signo de aquário. Mercúrio para os romanos, Hermes para os gregos, nasceu sem medo e pronto para cortar a imensidão dos ares com suas sandálias aladas. Inteligente e eloquente, é o deus da comunicação, do discurso, da sagacidade, das metáforas e da ambiguidade. Ele também é conhecido pelas suas façanhas no jogo de dados e é patrono dos ladrões. Acima de tudo, Mercúrio está sendo lembrado, aqui hoje, por ser o grande deus mensageiro. Com disciplina, é ele que conduz as mensagens dos deuses e seu ofício é mediar o visível e o invisível. Com a graça de Mercúrio, abrimos os trabalhos dessa lua quar-

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to minguante (que se eleva no leste só depois da 1:00 da manhã). Para começar, em um minúsculo vilarejo siciliano localizado na ilha de Salina, encontramos o carteiro Mario Ruppolo em uma de suas conversas com o poeta chileno Pablo Neruda, exilado então naquela ilha.

[Cena na casa de Pablo Neruda. O carteiro, com timidez, puxa conversa] – Também gostaria de ser poeta. – Não. É mais original continuar a ser carteiro. Ao menos caminhas muito e não engordas. Nós poetas somos todos gordos. – Sim, mas com a poesia podia fazer com que as mulheres se apaixonassem por mim. Como é que uma pessoa se torna poeta? – Tenta caminhar lentamente pela costa até a baía, olhando à tua volta. – E me virão as metáforas? – Certamente. – Eu adoraria, isso seria maravilhoso. Poderia dizer

tudo o que eu quisesse. – Mas mesmo que não sejas um poeta podes dizer o

que quiseres.

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– Sim, mas não tão bem quanto...

– Exatamente! Como o mar.

– É muito melhor dizer mal uma coisa de que estás convencido, do que ser um poeta e dizer bem o que os outros querem que digas.

– Esse é o ritmo.

– Don Pablo? – Depois falamos mais disso. Outra hora. – Eu não quis dizer agora... Adeus Don Pablo.

[próxima cena: Mario encontra Neruda na praia e lhe entrega uma correspondência] – Senta-te. Aqui na ilha, o mar, tanto mar. Ele trans-

borda de tempos em tempos. Diz que sim, diz que não, então não. No azul, na espuma, num galope, diz não, então não. Não pode estar tranquilo, “chamo-me mar”, repete, batendo na pedra sem convencê-la. Então com sete línguas verdes de sete tigres verdes, de sete cães verdes, de sete mares verdes, ele acaricia, beija, molha, e bate em seu peito repetindo seu nome. Então? Que te parece? – É estranho. – Como assim, estranho? És um crítico severo... – Não, não o seu poema. Estranho... estranho é como

me senti quando estavas a recitar

– Mareado! – Porque... não sei explicar, senti como um barco balançando na volta dessas palavras. – ...como um barco balançando na volta das minhas palavras? – É. – Sabes o que acabaste de fazer Mario? – Não, o que eu fiz? – Uma metáfora. – Não! – Sim. – Mesmo? – Claro! – Ah, mas não vale, porque eu fiz sem intenção. – A intenção não é importante. As imagens nascem espontaneamente.

– Não sei... as palavras iam pra frente e pra trás.

– Quer dizer então que... por exemplo, não sei explicar... quer dizer que o mundo inteiro, com o mar, o céu, com a chuva, as nuvens...

– Como o mar?

– Agora podes dizer etc., etc...

– E como foi isso?

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– Na verdade me senti mareado.

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– Etc., etc... o mundo inteiro é metáfora para outra qualquer coisa? Desculpa, estou dizendo bobagens... – Não, não estás não. Não estás mesmo. 9

***

Seguindo o rastro de simplicidade do carteiro Mario, lemos agora uma carta que a Cigana recebeu essa semana. É um e-mail, na verdade, escrito por um carteiro com nome de anjo mensageiro. É abrindo esse e-mail para o jogo que a Cigana apresenta sua nova proposição arcânica:

De: gabrielarcanjo@correios.gov.br Para: arcanosurbanos@gmail.com Em: 5 de fevereiro de 2018 16:33 Assunto: O ofício de carteiro Prezada Cigana, Meu nome é Gabriel, sou carteiro. Sou homem rude, sem grande instrução, apenas o segundo grau. Mas gosto

9. RADFORD, Michael. O carteiro e o poeta (Il postino), 1994. Trechos selecionados entre os minutos 29:08 e 36:07. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=8G2XBVeURVE 102

muito de ler. Leio o que me cai nas mãos, livros, revistas, jornais, panfletos. Tudo, menos o conteúdo dos envelopes que entrego, só o sobrescrito. Por isso sou leitor frustrado. Deveria ter o direito de abrir essas correspondências todas, decifrar e depois liberar para o julgamento da posteridade, mas não sou autorizado. Sinto vontade de roubar um malote e dizer que fui assaltado. Mas o risco de ser descoberto é alto. O meu trabalho não é fácil, ainda mais para alguém curioso como eu e encarregado de tantos segredos. Gostaria de obter informação sobre quase tudo, mas estou condenado à simples entrega, ainda que seja no fundo, a mais bela das tarefas. Todo anjo é mensageiro, mas nem todo mensageiro é anjo… Dotados de grande poder, desde a mais longínqua antiguidade, nossa função de portadores é na verdade limitada. Mirando esses selos e carimbos, temos vontade de trocar tudo, embaralhar os remetentes e destinatários, confundir as coordenadas. Isso também é proibido. Sou responsável pela boa destinação das missivas em domicílio. Vivo de expedir, faço grandes expedições diárias ao redor dos quarteirões. Sem mim, muitos destinos se perderiam, muitas vidas deixariam de se conectar, sumindo no poço sem fundo do acaso. Por vezes me sinto um pequeno deus, meu trabalho dura cinco ou seis dias da semana. Preciso descansar pelo menos um, para poder levar adiante a criação do mundo via postal, carta comum, registrada, sedex simples ou sedex 10. 103


Trago o mundo na sacola e não controlo jamais a procedência. Muito menos a meta, a causa, o porquê de tantas palavras cruzadas, os hinos de amor ou as ameaças de morte, os papéis passados, alguns fora de prazo. São cantos do planeta inteiro, escritos com letra dourada, cinzas ou rastro de sangue. Tantos pacotes maravilhosos, outros simplezinhos, alguns volumosos, anunciando a precisosa encomenda. O invólucro já mostra muita coisa, mas não tem como adivinhar o que vai dentro, aparências disfarçam. O meio é a mensagem? Talvez: o meio faz a mensagem. Sou retinto, como dizem. Se cruzam comigo à noite, gato negro na penumbra, atravessam a rua, para supostamente evitar o assalto. Pequenas humilhações, somente quem tem pele escura conhece. Poderia quem sabe obter cargo mais alto, só que prefiro trabalhar na rua. Prezo a liberdade e o contato humano, apesar ou por causa da sólida solidão. Na área onde atuo sou chamado de Anjo Negro, o emissário dos céus. Até os cães me respeitam, quase não ladram quando passo, meus amigos. De noite, mal chego em casa, pego um volume que retirei na biblioteca do bairro – livro custa tão caro! Quero entender o que dizem os escritos, um afã, e quando vejo já devorei as páginas, num relance. Depois passo regurgitando. Primeiro é preciso pastar para depois ruminar, desculpe a comparação, vem de minhas origens rurais, no Estado do Rio. Me pergunto se os romances e contos que degusto não seriam também uma correnspondência, os escritores se comunicando uns com os outros à distância no tempo, no espaço. 104

Esses dias, no trabalho, cara Cigana, imaginei a mim mesmo escrevendo as cartas que entrego. Ao invés de andar de endereço em endereço por coordenadas específicas, tomaria rotas desconhecidas e faria desvios, o deus da errância guiaria. Multiplicaria as palavras dentro de envelopes e ali esconderia também outros papeizinhos misteriosos. Cartas que enviaria aleatoriamente aos meus co-habitantes da cidade, aos meus irmãos. Faria tudo isso sem pretensão: nas caixinhas de correio dos edifícios, elas esperariam encontrar um destinatário possível. Muitas iriam diretamente para o lixo, eu sei, mas ainda assim, há chances de tocar alguém, fazer brotar um quase imperceptível esboço de sorriso, uma sensação, um pensamento. Assim, eu seria o mensageiro do meu próprio coração. Att Carteiro Gabriel10

Proposição do arcano Essa é a carta da carta, mas também é a carta do carteiro. Melhor ainda: a carta da carta do carteiro. A proposta da Cigana para esta lua é escrever cartas para os habitantes da cidade. Multiplicar uma carta e fazer uma deriva de entrega pelas cai10. Roubo, reprodução, torção e traição do texto Altamente Confidencial de NASCIMENTO, Evando. Cantos Profanos. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014, p. 45. 105


xinhas de correios dos edifícios dos seus arredores. Você pode assinar a correspondência com seu nome de jogador e, se quiser, deixe a pista: o site arcanosurbanos.wordpress.com para que o destinatário descubra que foi tocado pela Cigana Invisível e por você.

As estrelas do arcano: (6 estrelas): mande uma das cartas para a Cigana. Você pode fazer a entrega neste endereço onde a Cigana está hospedada: Rua Fernando Machado, 455/207, Centro Histórico, Porto Alegre. O CEP é 90010-321. Pode colocar pessoalmente a carta na caixinha ou mandar pelo correio. Se quiser, escreva seu endereço para que a Cigana possa corresponder. (5 estrelas): Ative o Strava e mande para Cigana o seu percurso entre caixinhas e edifícios.

Saudações a todos os carteiros poetas!

oPtCHá!

(4 estrelas): Filmae fragmentos desse seu andar-carteiro, capturando cenas no seu percurso. (2 estrelas): Mande imagens das cartas ou do que você encontrar no percurso

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Bom dia queridx vizinhx de cidade! Estou escrevendo da sala de minha casa, ouvindo As canções que você fez pra mim, da Bethânia. O carnaval acabou e hoje, sábado, fiquei em casa para escrever. E queria escrever um tanto de coisas, compartilhar um pouco desse urbano que vive em todos nós. A mesma cidade, tantas singularidades localizadas em apartamentos e casinhas... indo e vindo todo dia, alimentando e alimentando-se do movimento. Parei aqui e pensei nestes olhos aí – que exatamente agora lêem esses caracteres forjados à jato de tinta preta. Estes olhos que fazem parte de um todo que é complexo, que chamam corpo, que chamam carne, que chamam espírito também. E me perguntei: o que esse espírito estava a pensar, o que esse corpo estaria a sentir, antes de abrir sua caixinha do correio e encontrar esse estranho envelope no ninho das contas a pagar. Parei aqui e pensei que essa carta também tem chance de não ser lida. Descartada no lixo dos lixos nos fundos das latas, molhado da chuva decompondo o papel, sem nunca ter chegado a um destino e, então, tudo isso teria sido em vão. Acho que essa carta já nasceu para ser em vão, chegando ou não no destino, ela sempre será em vão. Para nada. Não tem objetivos nem quer nada em troca. Ela só quer passar. Deslocar no espaço e chegar em uma caixinha apostando na sorte de ser lida.

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E a chance é grande desses olhos existirem mesmo. Esses olhos que agora só posso imaginar. Imagino. Imagino um outro ser num outro agora acompanhando a linearidade ondulante disso que aqui se apresenta. Eis! Sou sua vizinha, de perto ou de longe, e hoje andei pelas ruas e entreguei 50 cartas. O conteúdo de cada uma delas é singular e foi uma coleta de tudo o que eu encontrei de belo e estranho nos sebos do centro. Garimpo de uma tarde. Neste envelope você poderá encontrar nudez, receitas, partitura musical, comercial de revista italiana, e imagens de obras de arte. Cada carta possui também um fragmento de oito confissões. Este papel que você tem em mãos é o único elemento que se repete em todos os envelopes. E foi escrito pra você. Você pessoa-corpo-mente-alma-espírito que existe, ou que existiria. E se existir, assim como eu, é um morador do terreno dos arredores. Nem tudo o que eu queria enviar coube no envelope. Espero que o que quer que contenha esse envelope lhe traga de algum modo, um momento lúdico.

Saudações aos arredores!

Stella.Diver (Jogadora errante faixa amarela)

*ouvindo agora Mistério do Planeta, de Novos Baianos

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E no caminho das entregas tinha um pé de acerola...

Ao entregar as mensagens na última semana acabei passando por situações de assédio. Resolvi aproveitar a atividade para andar até a casa de uns amigos onde minha cachorrinha fica (longa história) e na metade do caminho rolou o primeiro desconforto: na rua mais erma, um motoqueiro passou me olhando e seguiu virando a cabeça para trás várias vezes. Com medo, recuei e mudei de rota. Atordoada, resolvi que voltaria para casa e, já na rua da minha casa, dois quarteirões antes, aconteceu o segundo desconforto. Sobre esse, que foi além do “normal”, fiz um texto que publiquei em minha conta no Facebook. Compartilho ele com você:

“Tem coisa que você sabe que vai acontecer. Quando ouve o barulho de um caminhão já tem certeza que, se olhar para os ocupantes da carroceria eles vão estar olhando pra você, ou quando, parada na faixa de pedestres, passa um carro com a janela aberta reduzindo a velocidade. Isso acontece todos os dias. Ago-

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ra tem coisa que você espera que nunca vai acontecer no quesito assédio e uma delas é ouvir um “menina gostosa” repetidamente de uma criança, sexo masculino obviamente, de dentro da garagem da sua casa ao lado do seu pai. “Menina gostosa, menina gostosa!” Correu enquanto eu passava e subiu na grade como sobem torcedores fanáticos nos estádios de futebol e eu, ao entender o que ele falava, parei e fiz questão de voltar e enfrentar o pai que estava arrumando alguma coisa no carro. “É assim que você tá criando o seu filho?” “Eu falo pra ele que não pode, mas ele escuta na rua...”. Falei um monte, educadamente, claro. Mas vim bufando pra casa, incrédula. Uma criança de no máximo 4 anos! Isso na minha rua, meia hora atrás. Haja paciência. 8 de fevereiro às 16:43”

No dia 27 de fevereiro o e-mail da Cigana recebeu duas mensagens de pessoas que haviam recebido cartas e queriam saber do que se tratava, bem como entrar no jogo. A rede mística ampliava-se.

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De: arcanosurbanos@gmail.com Para: traditore@formigas.com Em: 16 de fevereiro de 2018 2:02 Assunto: arcano do carteiro

wewwwwww Que massa, que massa! O baita rolê, o desenho desse movimento! Massa também chegar de viagem e abrir a caixinha do correio e lá ver a letrinha desse que se invoca pelo nome Traditore :) E adorei os pedacinhos, as peças que só posso montar a partir da união das peças de quem mais recebeu as cartas! Um quebra-cabeça de medidas métricas que precisa das pessoas todas se quiser ver o desenho total! Obrigada. As mensagens vieram brilhantes, compondo com as últimas experiências de vida pessoal também, é muita mágica! Na viagem olhei muito as estrelas no céu, acho que é a melhor recompensa que a Cigana pode dar mesmo. Muitas estrelas pra você! O caminho do jogo está muito bonito graças ao que dele tem surgido! “Sentir é compreender. Pensar é errar”. Gostei muito da tua carta manifesto! Fico imaginando só o que as pessoas vão sentir! Ai adorei o selo. Olha o jogo dentro do jogo! O quebra-cabeça dentro. Daí comecei a jogar tua carta: Esse jogo chama selfie no selo melanciânico:

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E o outro é um sacrilégio quase, caro Traditore. Uma operação delicada: abrindo um selo ferida: Descobri Minas Gerais! Sem mapa. A ferida foi observada e devidamente selada. E minas gerais ficou invisível outra vez na cartografia da carta. E isso são só os brinquedos de fora. É o vão entre as estrelas. Presentes da caravana, presente da Cigana, pra eu brincar! Dá uma pista só, da tua caixinha, pra eu mirar e corresponder. Um beijo da mensageira. E boas metáforas.

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s oue iroác o pre ar a ros daquela so dos ten o de tod e co que de os. É veria mai s

er a c s fáci claro. l fing Mas a c idade ir-se idade e acoplad d e s t s á urdo, a ao po sitiada der púb . Há um que te lico, v a máfia encurra endido, la. Pa compact traidor ra ess uadas, , a s duas a cidade nostra, esferas s e uma co t r a n sformou isa, s “entre em cosa obre a amigos” qual s . Amigo crimino e s decide falsos, sos, al iados p interes quecime elas va seiros, nto sem ntagens consequ a ser do enri ência. pornogr A cidad áfica ou falá na exi e chega cia da b i ção da democra era pra falênci cia. A ser púb a f elizcid l i privati c a , a de, que é sempr zada. e cada vez mai s


A cidade estava vazia. Cruzei bairros sidenciais de uma classe que não é a nha. Eram os arredores, na direção territórios nunca antes percorridos leste, pra cima. Queria andar. Queria pandir o mapa. Queria encontrar.

remidos pro ex-

[continua]

IV 131


arCaNo IV O ônIBUS


Disparado em 16 de fevereiro de 2018 às 00:28 por arcanosurbanos Lua Nova

Optchá Jogadores! Salve! “O luar da lua nova, invisível… é a luz da boa fortuna!”. Já canta, lindamente, ela, a cigana Bethânia. Luz completa nua e uma Incide sobre a estrada, sobre a duna Sobre a alcova noutro nível Incide sobre esta trova Que se diz intraduzível Incide sobre a coluna Que sustenta o fio do crível.11 Agora o jogo põe tudo à prova. Vamos nos perder! Vamos nos perder em velocidade, nos perder dentro das paisagens de fora e, quiçá, trazer para dentro esse labirinto que é a cidade, estendida para suas periferias invisíveis. Já estivemos juntos com o carteiro Mario aprendendo com o poeta sobre o poder e a beleza da metáfora. E o arcano de hoje traz apenas mais uma:

11. Maria Bethânia. Invisível. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Wa-noER1Sr8 134

Sabiam vocês, jogadores, que na Atenas contemporânea, os transportes coletivos se chamam metaphorai? Lá, para ir trabalhar ou voltar para casa, toma-se uma metáfora – um ônibus ou um trem. Todo dia, tanto o ônibus quanto as nossas metáforas narrativas se atravessam e organizam lugares; eles os selecionam e os reúnem num só conjunto; deles fazem frases e itinerários. São relatos de espaço.12 Pegar um ônibus, transporte coletivo, seria como pegar uma metáfora para fazer a transposição da experiência do cotidiano em linguagem, e, por que não, da linguagem cotidiana em experiência.

Proposição do arcano: A proposta desse arcano é pegar uma metáfora que leva a um lugar qualquer. Pegar um ônibus errado. Ir ver até onde ele dá, ir até o fim da linha e voltar13. Descobrir a periferia, descobrir o que ainda está invisível no nosso mapa pessoal da cidade. Vamos na velocidade do trânsito, olhando pela janela, sacudindo e balançando junto aos demais, coletivamente transportados de um lugar a outro. Até onde você sabe onde está? Onde você se perde? E o que acontece quando você se permite perder-se? O que se mostra nesse percurso perdido? Que mistérios se levantam após girar a roleta que leva ao lugar qualquer? E o que se passa nesse qualquer? 12. Relatos de Espaços, in: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.182. 13. Inspirado nas práticas errantes do cigano Hélio Oiticica. 135


Se alguém se sentir perdido demais, é importante cantar: Tem uns dias Que eu acordo Pensando e querendo saber De onde vem O nosso impulso De sondar o espaço A começar pelas sombras sobre as estrelas E de pensar que eram os deuses astronautas E que se pode voar sozinho até as estrelas Ou antes dos tempos conhecidos Vieram os deuses de outras galáxias Ou de um planeta de possibilidades impossíveis E de pensar que não somos os primeiros seres terrestres Pois nós herdamos uma herança cósmica Errare humanum est! Errare humanum est! 14 Errar é humano, errar é urbano! Vamos errar com o arcano metáfora, o arcano ônibus. Sondar o espaço. Não tenham medo das sombras entre as estrelas. O Cigano Jorge Bem está conosco na trilha, no caminho. Escolham uma linha de ônibus desconhecida. Subam nele. Passem a roleta. Podem falar com o motorista, com o cobrador, com as pessoas que estão a bordo... ou não falem nada, fiquem na bolha do banco e absorvam os

14. Jorge Bem Jor. Errare humanum est. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=p7cTTKkMgT8> 136

sentidos, os gestos, a paisagem que vai se mostrando. Levem um bloquinho, uma caneta para anotar o que vier à tona, uma seleção de imagens verbais fragmentadas. Ou então fique apenas atento ao que se passa, dentro e fora do arcano, do ônibus ou da metáfora. As estrelas deste arcano: Apenas por pegar um ônibus desconhecido e ir até o fim da linha você ganha três estrelas da modalidade transporte coletivo! (6 estrelas) – Embarque numa metáfora. Escreva, em garranchos sacudidos pelo percurso, uma escrita errante, sobre o perder-se, sobre o que a paisagem revela pra você. (5 estrelas) – Ative o strava, mas esqueça dele. Tente evitar saber ao certo no momento da experiência, onde, exatamente, você está passando. Deixe para ver depois, e faça uma cara de espanto quando descobrir! (4 estrelas): Capture cenas fílmicas da sua errância. (2 estrelas): Mande imagens.

Boa estrada! Boa nova! Invisível!

oPtCHá! 137


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Preparação. Abro meu caderninho no Tudo Fácil do centro de Porto Alegre. Esse lugar aqui é como qualquer lugar popular de atendimento, bancos enfileirados lotados de pessoas sentadas diante de muitos guichês. O piso é uma cerâmica que imita basalto e reveste sem distinção paredes e pilares. Espero com a senha 121. Chamaram o 88. Estarei aqui talvez a manhã toda, perdida na minha própria miséria de espírito. Inferno astral, dizem. Meu gato fugiu pela janela. Me roubaram bolsa, carteira, câmera fotográfica, óculos de sol e muitos outros benzinhos de valor afetivo. A raiva é tanta, hoje, que vasa pelos olhos. Carrego comigo uma dor de cabeça de quem sai pro sol com uma recessiva ausência de melanina e com o esgotamento de quem está, de manhã, na sua madrugada, esticando o horário da vigília pra aproveitar o dia das pessoas normais. Meu pescoço dói. Há muitas crianças aqui hoje. Correm e brincam entre os bancos, alheias ao tédio da espera e aos infernos astrais. E o arcano do ônibus? Senha 96. Guichê 10. No caminho pra cá, um mendigo da minha rua me viu passando e disse “sai de perto de mim, sai de perto de mim!”15. Na sequência, um homem albino veio na minha direção me olhando e ao passar por mim me dirigiu sussurros que me deram nojo. Assédio nosso de cada dia. Merda de cultura. Chateia meu corpo. Me achata. Quero fugir pra longe de mim. Inferno astral, dizem. Senha 104. Guichê 10. Para de chorar no tudo fácil! Deixa de ser ridícula, presta atenção no guichê. Vai ficar com a cara feia e daqui a pouco tem que fazer a foto da identidade.

Senha 108. Guichê 10. E o arcano do ônibus? Como é que vou “me abrir ao presente” neste dia, nesse estado? Antes de errar já estou toda errada. Fluirei no ônibus qualquer como fluiria em qualquer lugar na minha introspeção de sentimentos odiosos? Eu posso também refazer esse arcano posteriormente. Se por acaso hoje ficar limitado ao meu estado péssimo. Isso aqui não parece um arcano que se apresente. Senha 110. Guichê gélico-sertaneja Aglutinando essas a vitória chegou.

10. Alguém está ouvindo música evanatrás de mim. Uma coisa assim ó. coisas na minha volta. A música diz: Parece que tudo me zomba.

Senha 117. Guichê 11. Daqui vou direto pra avenida Salgado Filho e às cegas entrarei no primeiro ônibus estacionado. Não vou olhar o destino. Vou ficar na bolha do banco hoje. Se for insuficiente eu repito. Hoje estou derrotada. Vou carregar a derrota pelo mapa de Porto Alegre. Senha 120. Eu sou a próxima.

“Fui-me Do efêmero ao estável Do concreto ao abstrato.

Passou criança! Passou bichinho!

15. Este personagem ganha nome e volta a aparecer no arcano da rua. 140

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Passou doutor!

“Corre, tia!

Passou criolo!

Vira a esquina

Passou estudante!

O ônibus está passando

Passou madame!

A rotina está tragando.

Passou guria! Corre, tia! Ah, passou (...)

Solta o sinto

Andamos passando tanta coisa

Larga o arame.

É tanta coisa que tudo ancora Porto Alegre ancorou no coração de uma Minerva”.

Vem, tia! A vida tá aqui. Abre a janela. Escuta os rumores.

Ontem peguei o ônibus certo, mas foi o errado. Estamos em um regime de emergência com o transporte público aqui em São Carlos, a prefeitura não renovou o contrato com a empresa que presta o serviço, então estão sobrepondo as linhas. Entrei num dos ônibus costumeiros, sentido bairro, que normalmente pega as vias principais. Agora ele entra no bairro e faz um percurso maior, mas também “não volta”. Tive que descer em frente a uma escola municipal e caminhar até meu destino… Quase me perdi nessa cidade-bairro.

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Escuta os motores.

Vai, tia! Só, por favor, não deixa a esquina atropelar”.

Entrei no ônibus. A linha desconhecida se chama Santa Maria. Me acomodei sentada de costas para onde estamos indo, enquanto uma criança chorava no colo da mãe. Olho pela janela para trás enquanto o ônibus anda para frente. Saindo do centro, mais ou menos meio-dia, o trânsito está insuportavelmente barulhento.

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Essas buzinas são estúpidas, quê isso? Essa carreata de carros brancos? Estou na Loureiro prestes a passar por baixo do viaduto. O viaduto estava vazio como eu. A linha 270 se chama “grutinha” - onde será que leva? O sol está quente. Parque da Redenção. João Pessoa. Cruzando a Venâncio. Dermatologia sanitária: testes rápidos de aids, sífilis, hepatite B e hepatite C. Platibandas balaustradas. Cruzou a Ipiranga. Vai pra Bento? Sim. Entrou na Bento. Pixo. Grafite. Muitas pessoas caminhando nas calçadas. Saímos da Bento, mais além do colégio Marista. Ruas mais locais. Cachorros latindo. Não sei onde estou. Estou no ônibus, oras, onde há cheiro azedo de chulé. Escolhi só ver um lado do trajeto. Casas, casas, casas. Uma rua toda de casas. Viramos na 25 de dezembro? Eu olho as placas. A minha identidade vai levar 22 dias. Porque furto não é roubo. E tomei no cu. Uma rede balança no jardim de uma casa. Alguém se balança depois do almoço. Minha barriga também precisa de uma siesta. ETERNA. Pessoas reclamam do calor. Subindo! Subindo alto na topografia! Ai que bom! Subir muito! Não sei se já estive tão elevada em Porto Alegre. Parece que aqui é o Bairro São José. - Aqui é o fim da linha, moça. Desci do ônibus. A rua tem cheiro forte de lixo. Há muitos portões mistos de madeira e metal. Um muro onde uma pintura colorida diz: doces e salgados da Paula. Duas árvores. Um mourão de concreto que oculta duas quadras de algum esporte. O céu azul com nuvens pesadas. A Escola Municipal Morro da Cruz. O asfalto esburacado da rua. A argamassa e brita da calçada. O caminhão de fretes. A vista dos morros verdes com antenas. A gente na parada de ônibus, compartilhando a sombra.

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Corpos, corpos em movimento, que corpos são esses que andam comigo a um trajeto desconhecido e cotidiano ao mesmo tempo? Cotidiano descotidiano, o ônibus não muda muito, os bancos são os mesmos, existe o cobrador, o motorista e as pessoas que querem chegar a algum lugar. Talvez seja à TV nova, ao computador última geração, ao rolê de final de semana, ou mesmo a casa, ao chuveiro ou à cama. Quantas aproveitam esse espaço para ter vivências novas? Sair desse compasso que suga as nossas vidas, respirar o ar compartilhado do ônibus e ver o quanto esse meio coletivo de locomoção proporciona oportunidades únicas de conhecer pessoas novas, de ser tocado por elas e de tocá-las. Ou simplesmente de perceber a cidade em movimento, esse movimento incessante que ao mesmo tempo pode ser belo pela sua diversidade, mas também pode fazer esquecermos de nós mesmos, pode fazer entrarmos na massa, na moda, no comum, no normal e esquecermos quem somos e o que de mais singular temos a trazer ao mundo. Ir à periferia é conhecer o mundo na sua grandeza e complexidade, é perceber que ela tem muitas coisas boas que o centro não tem, as vezes um silêncio profundo e transformador, às vezes uma ligação com a natureza que há muito se perdeu, vacas, cavalos, árvores e mais árvores. Queria ir de bicicleta para aproveitar tudo isso de forma mais intensa. Mas ao mesmo tempo tem o ônibus, um espaço de convívio com outras pessoas que podem compartilhar comigo como é viver e passar por lugares tão belos. Será que elas reparam nessas coisas ou só na cama, no sofá, na televisão ou computador? Acredito que tenham pessoas que reparam sim, assim como agora estou reparando.

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{Vastidão} “Na selva urbana O morro toca o céu A casa toca o morro O homem toca a casa E eu aqui, espreitando, será que toco os três?” “Entre as pirâmides de vida arquitetônicas há tanta decoração sortida, há tanta janela singular. Incógnitas. Inexplorável. (Eu fito da janela e em um olhar o mundo gira 500 vezes) É, Porto (belo) Alegre... Há tanta gente que a gente não sente. Mas, mesmo assim, unidos por um som maior.

Já estou no ônibus, voltando. Perco meu olhar no movimento da cidade que roda pela janela. Estou cansada. Mas gostei. Subi a topografia. Fiquei querendo mais. Me senti como que descobrindo a roda (gigante), montanha russa na linha Santa Maria. E agora retorno ao chão do centro.

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“Alguns passam indiferentes outros introspectivos. Mas uma coisa eu garanto: há muita tinta transfixada nos muros há muitas vozes do in(consciente) eternizadas”.

Os arcanos são realmente acompanhados pela força que anunciam. Comigo funciona. Acho que tenho a capacidade de me autosseduzir com esse jogo. Mesmo no esgotamento e no arrasto de uma mergulhadora que se recusa, uma surpresa lúdica de parque de diversões, sensações adrenalínicas e ativadoras de memórias do corpo, micro explosões ventiladas de alegria. A criança tem um sobressalto, o animal desperta, a atenção se orienta pelo desejo de coletar, de coletivizar, de trazer a paisagem e o movimento pra dentro, com imagens e palavras. Tudo é filmável? Tudo é escrevível? É tudo aparentemente tão banal e, de repente, tudo adquire um brilho surpreendente, que hipnotiza, que carrega, que acontece. E daí em diante somos famintas por registros. Espiar a subida pela lente de plástico e deformar a experiência. Oscilar entre ser peixe e pessoa em tempo real. Deixar passar tudo que tiver força pra vir-a-ser em palavras e imagens, garranchos e enquadramentos. Essa coisa dessa Cigana, que vem e que abre canais pelos mistérios do acaso. Joga-se os dados. Leva-se a sério. Pega-se um ônibus aleatório. E vai-se. E é tão boa a tensão de já não saber mais

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onde se está. E ir acompanhando as subidas, sentindo o sofrimento do motor do ônibus, o tremor da lataria e dos vidros das janelas. Subir, subir, ter o corpo inclinado para trás e ir fazendo a curva nas esquinas. Aquele vento no rosto, aquela subida, aquele motor. Aquela sensação logo acima do umbigo, a supra-renal em festa, as microexplosões acontecem. O estado muda, você se altera, a coisa toda altera você no espanto, você se fascina. Você é tocado.

Uma boa dose do desejo que as crianças têm de se fascinarem é sem dúvida requisito essencial. E esse desejo eu possuo aos montes. O fascínio é o sal da terra. -Escher

Sempre tem uma mágica envolvida. Mesmo que você esteja despreparado, pesado, rastejando na amargura, o corpo que joga adquire um corpo fantástico. O corpo entra em estado lúdico. As cenas do Tudo Fácil não eram arcânicas, a não ser para aquelas crianças que corriam alheias ao tédio. Pra mim, a mágica aconteceu no ônibus. Quando cheguei em casa desabei exausta, escrevi apenas isso: Escovar os dentes e ir dormir. São 13:36. Estou no meu limite. Vou parar por aqui. Não vou registrar mais nada. Acabei encontrando meu gato na churrasqueira do condomínio. Vivo e bem.

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pa ue pa ue pa ue pa ue pa ue pa ue pa ue pa pa ue ue pa ueue pa ue pa pa ue pa ue pa pa ue pa ue ue pa ue


Subindo e descendo ruas silenciosas, ouvia as folhas mexerem com o vento, ouvia meus próprios passos ecoarem e a minha respiração continuava a me dilatar. O ar entrava e saia do corpo quente em movimento. Todo medo fora eclipsado pela penumbra temporária do planeta. Feito a lua, que (des)via. Estava nublado. Não localizava nenhum ponto luminoso no céu. As nuvens ocultavam o acontecimento lá em cima. Contra minha vontade, entrava com ela no rastro da sombra. Eu a imaginava toda grande e misteriosa no céu. [continua]

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arCaNo v aLUGa-se


Disparado em 23 de fevereiro de 2018 à 01:03 por arcanosurbanos Lua Crescente

Saudações, jogadores! É 23 de fevereiro, a lua está crescente e os militares estão nas favelas do Rio de Janeiro.16 Nessa semana, o jogo nos encaminha não só a circular por aí em derivas urbanas, mas nos encaminha também aos interiores de um lugar. Nas mesmas cidades onde juízes ricos recebem auxílio moradia de 4.377,73 reais (e se mostram dispostos a fazer paralização para não perdê-lo17), há tanta gente sem casa, há tanta casa sem gente… No centro mais que nas periferias, há muitas casas vazias à espera, espaços vagos, alguns para especular, muitos para alugar. No ano 2010, existiam, no país, mais de 10 milhões de domicílios alugados formalmente, onde residiam mais de 30 milhões 16. Na mesma semana desse arcano, entrou em vigor o decreto assinado pelo então presidente-golpista Michel Temer que estabeleceu a intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro. Notícia do dia disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/24/politica/1519433345_411126. html>. 17. Após ter sido marcada a data para o julgamento que poderia extinguir o benefício de auxílio moradia para juízes, os mesmos ameaçam uma paralização. Notícia do dia em: <https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/ pol%C3%ADtica/associa%C3%A7%C3%A3o-de-ju%C3%ADzes-prop%C3%B5e-greve-para-discutir-aux%C3%ADlio-moradia-1.254877>. 158

de pessoas, cerca de 16% da população brasileira. A concentração maior é sempre nos grandes centros urbanos, onde muitas vezes essa porcentagem aumenta e onde os valores dos aluguéis ocupam quase 30% do orçamento do locatário.18 Nesse arcano, são os espaços vagos de moradia que se ocuparão do mistério da semana. Haverá uma chave na cidade, esperando por você. Chave que abre uma porta, porta que leva a um interior ainda vazio, um lar vacante, uma possibilidade vaga para habitar. A Cigana Invisível então convida os jogadores e convoca seus corpos performáticos! Cada corpo já é um tempo, já é um lugar, já é um lar, é superfície e é também profundidade. Seres entre-abertos que somos, atentos ao presente, em pleno luar quarto crescente, no vazio vamos fabricar movimento.

A proposição do arcano: A proposição dessa lua quarto crescente é ir até uma imobiliária qualquer e, como se você fosse alugar um imóvel, pegar uma chave e ir visitar um ap, uma casa, um lugar que está vago temporariamente na cidade. Que tipo de casa você quer conhecer? É você quem escolhe. E ao chegar lá, o que fazer? 18. PASTERNAK, Suzana; BOGUS, Lucia Maria Machado. Habitação de aluguel no Brasil e em São Paulo. Cad. CRH, Salvador , v. 27, n. 71, p. 235-254, Aug. 2014. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792014000200002 159


É aí que cada jogador entra, com seu modo particular de habitar. Como se pode habitar temporariamente uma casa vazia?

E mandar pra Cigana, fotografado, escaneado, ou reescrito.

Dizem que habitar não é estar passivamente em um lugar, habitar pressupõe criar sentidos, criar relações, desdobramentos e aprofundamentos na espacialidade onde você está. Habitar, antes de ser apenas um posicionamento em algum lugar, é uma experiência de amorosidade, de afetividade e é também um processo de imaginação.19

(5 estrelas): Ative o strava, registre seu percurso.

Mas não se trata somente de habitar a casa, essa construção de paredes, piso, teto, portas e janelas. Por que não estender essa noção à toda cidade? Todo e qualquer espaço que for verdadeiramente habitado, ou seja, todo e qualquer espaço com o qual se estabeleça um laço afetivo, trará consigo a noção de casa. Performe seu lar. Habite um espaço com seu corpo, seu movimento, sua amorosidade, sua afetividade, sua imaginação.

As estrelas deste arcano: (6 estrelas): Leve um bloquinho, um caderninho e escrever. Escrever sobre os estranhamentos do espaço vazio, sobre os impasses da ação, sobre o que você sente no vazio, sobre o movimento que você fará na tentativa de habitar. Se quiser, pode escrever sobre os movimentos que se fizeram em você nessa ação.

19. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. 160

(4 estrelas): Você pode filmar fragmentos do seu habitar efêmero. Inclua-se no vídeo sem pudor. (2 estrelas): Mande suas imagens do habitar.

O jogador se move, e leva consigo uma chave. Abre e entra. E ali está o jogador, num vago espaço temporariamente transformado em seu, para povoar com gestos. As imagens da casa estão em você, assim como você estará na casa. Evoque as suas lembranças e acrescente a elas valores oníricos e afetivos, capazes de traduzir a poesia do espaço através dos valores que marcaram você em sua profundidade.

[Pela inspiração desse arcano, gratidão à nuvem que chove!]

Boa lua! adentremos! habitemos!

oPtCHá! 161


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Ainda não tinha dormido. 10:30 saiu de casa com sua máscara, seu cilindro de oxigênio, uma mochila e uma sacola na direção da imobiliária que fica na Cidade Baixa. Levava um lençol branco, um celular, um olho de peixe postiço de plástico e sua boneca vodu, miniatura de si mesma. Pegou as chaves. Dirigiu-se até o apartamento que ficava na Borges de Medeiros, subindo a escadaria, pelo lado do Passeio Inverno, quase esquina com a Fernando Machado. O porteiro a viu no seu controlado panóptico de câmeras. Abriu. Entrou num corredor largo e chegou numa espécie de recepção. Deixou nome falso, mostrou as chaves e subiu. Era no quinto. Tinha elevador. O corredor era escuro.

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Abriu o portão metálico externo e viu que a porta de madeira estava aberta. Empurrou. A porta emperrou feio no chão, fazendo um ruído desagradável de coisa que não funciona. Descobria então um apartamento imundo. Uma ruína de vidros quebrados, dejetos de madeira comida de cupim, fiação elétrica exposta, piso detonado, tudo detonado, muito pó, muito pó, muito pó. Tirou a roupa, andou descalça pra cá e pra lá, vestida de lençol branco abraçada em sua boneca vodu. Seus pés ficaram pretos. Encontrou uma bola murcha carcomida pelo tempo, uma bíblia, uma lata de gimo cupim e um detergente. Investigou as coisas esquisitas e amarelas que estavam no ralo da pia da cozinha. Não ousou tocá-las. Havia muitas teias de aranha, e muitas aranhas em todo lugar. Esforçou-se para abrir as janelas guilhotinas que travavam. Respirou então na janela cuja vista dava para o estacionamento do supermercado. Ficou ali, fantasmagórica pela casa-ruína, chutando a bola murcha, lendo a bíblia, reparando em cada detalhe daquele lugar absurdo.

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Minervooooooou SUSpiros} Segues por aí com a intuição em mãos e a cabeça entre os pés. Segues entre afagos, afetos, e estações. Camaleoa, saístes da casa, da casca, há muito tempo. E entre o colorir do mundo, da rua, da lua, encontrou abrigo. Abrigo no tempo. Abrigo no cordão umbilical. Abrigo no canal do mundo. Abrigo, enfim, na chordé da mulher. O caminho do olhar habita um espelho, O reflexo é uno, é um. Ela, ali, paralisada, congelada,

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encara. É pele que habita É história que constrói É contorno que sufoca É melodia em cada sóis E nesse olhar nu, foi fragmento pra todos os lados. Uma luta desigual foi assistida sob a janela, Miséria de atitudes, talvez. Políticas estagnadas, quem sabe. Entretanto, as crianças acordaram, acordaram para cursar os dias Montar estratégias, Criar gestão, Inflamar bandeiras. As crianças estão aqui para cantar as canções proibidas ...este mundo que nos deram já não basta (dance of days). Minerva! É a janela da alma despida de roupas, Ilimitada, ocupando espaços desconhecidos e acendendo. Aqui há resposta em corpos, portas, janelas, almas. (...) respostas no templo.

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O apartamento era bonito, grande, espaçoso, bem conservado, excelente acabamento dos revestimentos. Custava bem caro. Tinha três quartos, dois banheiros, uma sala enorme, cozinha e área de serviço bem iluminadas e limpas. De dentro de uma sacola tirou uma pilha de papéis – seleção de imagens remanescentes do arcano do carteiro. Eram receitas, imagens de obras de arte, e nus. Tirou também o livro de cartas de Artaud que ainda não tinha lido. Colou as imagens na parede com fita crepe. Montou uma exposição. Andou pela casa, visitando a exposição fazendo cara de intelectual das artes.

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Os pés descalços descobriram o parquet, depois a pedra na cozinha, depois a cerâmica na área de serviço. Era muito gostosa a casa. Caríssima. Enorme. Mas ela estava nervosíssima ali. A exposição tinha sido um fracasso. A autocrítica estava no modo severa. Sentou no chão, tentou ler Artaud, mas não teve saco. Então não sabia mais como habitar aquele lugar. Abriu as persianas dos quartos e, num deles, posicionou a câmera e deitou-se no chão. Estava de virada, no limite do sono, não sabia mais o que fazer para tentar habitar aquele espaço. Ali adormeceu por alguns minutos. Despertando decidiu voltar para casa e recarregar o cilindro para o próximo mergulho. Mais tarde assistiu-se no vídeo que mostrava treze minutos dela mesma dormindo no chão enquanto os raios solares passavam por cima do seu corpo. Habitou com o carinho de Oxalá?

Entregou as chaves na imobiliária. A atendente perguntou o que ela tinha achado. Ela disse que ia pensar. Agradeceu e foi embora.

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Você está perdendo a cidade. nunca parou de perdê-la para uma economia urbana que

te escraviza sem você notar; ela te expulsa para as margens; ou te aprisiona em fortalezas condominiais; ela te separa; te classifica nas castas territoriais; ela te esmaga nas carrocerias de transporte público, ou te incentiva a se torna mais um motorista nervoso, ocupando 70% do espaço viário, fazendo a indústria automobilística feliz; ela te faz pagar caro pra ter acesso o que era pra ser de todo mundo. Quem pode pagar pelo acesso a cidade? Você paga.

a c dade u aita e na os de poucos.

co


A um certo ponto do caminho, tudo, de repente, começou a me acompanhar. Eu sentia vivo o que era inanimado. Sentia a existência desperta de tudo ao meu redor, o latejar das coisas junto a minha pulsação. Uma sensação de presença plena. [continua]

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arCaNo vI O moNumeNtO


Nunca disparado por arcanosurbanos 27 de agosto de 2018 Lua Cheia

a partir de agora estamos em outro lugar e temos outro tempo.

retornamos ao início, mas retornamos totalmente irreconhecíveis.

um blog oculto do sem nome. novo plano de fundo para paisagens novas. depois do fim, baixamos a saturação. a fachada é sul. estamos sempre diante dessa janela. dessa janela que não vemos a lua cheia. e, para encontrá-la, precisamos buscar na cidade.

e será sempre lua cheia por aqui.20

a cigana se dispersou em sementes novas. são muitas. elas aguardam no oculto calor do interior da terra. é sempre noite. é sempre lua cheia. e tudo sempre se desfaz e se transforma.

mesmo que ninguém saiba, somos a continuação. continuamos sendo sempre a gente.

invisível mesmo. agente. aqui tem eu, tem você, tem eles, tem todos e não tem ninguém. aqui a concordância falha. aqui não vamos ter esses cuidados. o único cuidado será o de manter esse lugar oculto. sem anúncios, sem brotar nos e-mails das pessoas desavisadamente, sem ter que chamar atenção. sem fazer barulho, sem gritar e sem fazer anúncios escandalosos. já não é mais assim que se propõe. já não se é mais assim. já se ficou menos a vista, já se dobrou a esquina pra dentro do cinza.

somos rastros de um mover. esse é o nosso pequeno teatro invisível, esse é o novo jogo sempre pretensiosamente urbano e esses são os nossos outros – e também mesmos – personagens.

20. Esse arcano inaugura a sequência de arcanos invasores, realizados postumamente, divulgados num blog que jamais será revelado. 180

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abre-se o portal da lua cheia. domingo. é outra temporada de arcanos. você não a conhece. são arcanos silenciosos, escondidos, tramados estrategicamente para compor um a-gente na cidade, sustentar os mistérios que costuram as nossas solidões. a lua sobe, não quero vê-la, não me esforço, não a busco com os olhos. sei que ela está lá. o que ela ilumina marca um retorno. mais um. retorno ungido e bento, as mãos dobradas em concha, o acolhimento das águas nas mãos da casa. o cuidado. as mãos postas, a oração feita, o carinho nos gestos. a metamorfose completa. uma cigana entra em estado oblíquo e dissimulado. (e estão alterados todos os modos de participação. em off – a convite – a proposta é pessoal, e se faz em composição com um outro. que outro? aquele que eu alcançar disposto.)

PROPOSTA DO ARCANO: encontrar um monumento na cidade. profanar o seu significado. criar-lhe um novo culto. outra referência histórica ancorada no presente. ESTRELAS DO ARCANO: a pontuação do arcano segue a pontuação clássica das estrelas (texto, mapas, vídeos, fotos).

lua cheia em peixes. os peixes sobem à superfície insones. olhos vidrados nos brilhos que explodem na borda entre o real e o imaginário, o sono se transforma em uma fábrica de diálogos imaginários, e o conjunto de imagens tem a força de uma existência dérmica. mas, então, tua face, é outra face, e percebo que é preciso ainda escapar daquele delírio de você.

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Monumento à pororoca; O encontro de rio e mar, quando o mar é que sobe.

Depois de um jejum as palavras nascem certeiras.

Líquida paisagem Olho para a cidade Com olhos de cigana Entrevendo o mundo Em meio a gentes,

A gente queria ir juntar nossas mães. A mãe água doce com a mãe salgada. As mães d’águas. Queríamos fazer saudações e oferendas para estas nossas mães que nos colocam em estado de irmandade. Somos irmãs de descompassos cardíacos e nossa emoção descontrolada em comunhão e reciprocidade. Nossos encontros são ondas que acontecem quando o mar avança pra dentro do rio. É um fenômeno. É a pororoca. Já de saída, desviamo-nos do planejado encontro na orla. Estava muito frio lá, segundo nossa meteorologia empírica. Então fizemos chá de mate e menta com limão, e resolvemos que iríamos levar a nossa pororoca para outro lugar. A primeira coisa que fizemos, devido ao nosso estado natural de filhas das águas, foi desaguar verbo com eventuais lacrimejamentos. Alteramos nossa rota com a força das nossas alterações emocionais compartilhadas. E fomos.

Mas sozinha Feito lua cheia no céu escuro da noite. Ando, flutuo, navego: A cidade também é mar E nela transbordo, Dissolvida em sua imensidão Torno-me uma só com ela. A cidade sou eu, Oceano dos homens

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Saímos de casa após o chá e após oferecermos uma a outra nossas águas agitadas. Antiga Arvoredo. Coronel Fernando Machado. (O sol toca nossa face) Subimos a escadaria e nos faltou ar enquanto falávamos. Escadaria João Manoel (Dissemos coisas que nunca dissemos antes) Quando chegamos no último degrau parecia que tínhamos chegado no céu, nos elevamos com palavras e coxas. 187


E logo depois, tomando fôlego e caminhando bem devagar no meio da rua, uma peninha veio descendo, caindo, voando para baixo, voando para nós pegarmos na mão. E nós sempre queremos pegar essas coisinhas que voam ou que caem de vagar flutuando. Tentamos pegá-la, mas ela escapou entre os nossos dedos e, assim, parecia que a deixaríamos na passagem. Mas voltamos pra juntá-la do chão. Era uma peninha bem pequena. Branca e cinza; era uma coisa leve, leve e pequena. Que caiu do céu, em sincronia com os nossos passos lentos e com o nosso olhar. Rua Duque de Caxias Com a pena na mão seguimos em aquosos derramamentos verbais. Assim somos analuz-stella. Assim caminhamos até a praça. Praça da Matriz O monumento a Júlio de Castilhos21 Passamos pelos cães e assim que vimos o dragão em plena praça pública entendemos onde estava o nosso mistério arcânico urbano, e lá fomos apalpá-lo. Sentamo-nos

21. A sua construção foi decidida logo após a morte de Júlio de Castilhos, em 24 de outubro de 1903, sendo o projeto de autoria do pintor e escultor Décio Villares. Contudo, sua realização sofreu vários atrasos e o projeto inicial passou por várias alterações. Os trabalhos finalmente iniciaram em 27 de julho de 1910. As obras encontraram dificuldades diversas e, em certa altura, seus andaimes desabaram, destruindo o que já existia e obrigando ao recomeço de toda a empreitada. O monumento pôde ser inaugurado em 25 de janeiro de 1913. 188

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na pedra diante do dragão preto de garras afiadas. Subimos rápido os degraus com uma euforia estranha. Era bom. Sabíamos que era ali o lugar catalisador das ondas fenomênicas. Primeira estação: a boca do dragão. Local de oferendar a pequena pena para a fera com asas de morcego e rabo de peixe. E a pena voou e a fera engoliu a oferenda conceitualmente. E então acariciamos suas garras e acariciamos os músculos entalhados em bronze. E então começamos a olhar para as coisas e dizer outras, e vimos que o sol estava se pondo porque as paredes dos prédios estavam amarelando. Era fim de tarde em agosto. A boca aberta, os caninos afiados, as escamas de peixe, o rabo da baleia. Quando vimos os nossos corpos já tinham encontrado uma forma de encaixar uma perna depois a outra e nos seguramos nos caninos da fera e depois agarramos o seu pescoço e montamos. Um arcano da força alada. Queríamos que ela voasse, ou mergulhasse. Mas ela apenas ficou fazendo o que sempre faz, esticando uma pata na direção do monumento, com a boca aberta.

Eu me senti em estado lúdico. Cheguei no estado ótimo em meio a um transbordamento. Diante de nós, o Teatro São Pedro, o Palácio da Justiça, a perspectiva de chegada da Rua da Ladeira, dali também podíamos ver a Biblioteca Pública. Nas nossas costas cegas, a Catedral e o logo ali o Piratini. Crianças, cachorros e nós. Éramos já muitos os que jogávamos naquele lugar arcânico. Texto ecoando, câmera na mão. Um avião passa

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cortando o céu com fumaça branca. Nos surpreende tratando de ficar bem em espaço público. A cidade é nossa cura. Comunhão das irmãs de água. É para derramar água na cidade que a gente veio. Nossos desvios de lua, nossa pororoca abstrata em tempo e espaço reais.

Nossa pororoca encontra o monumento positivista, onde as formas esculpidas contam sobre Coragem e Prudência, refreando os ímpetos uma da outra.

O dragão que sobe rastejando o solo da pátria, com rabo de baleia e garras afiadas, foi concebido para lembrar os perigos e dificuldades da aplicação prática da ideia abstrata. Nosso dragão quer relembrar também a ameaça de retorno da antiga ordem.

O conjunto do monumento, de 22 metros e meio de altura, é uma cartilha positivista, e foi concebido em uma feição idealista e mesmo mística, como um altar público onde se pudesse venerar a memória de um líder paradigmático e conhecer seus princípios doutrinários. E nós nos interessamos menos por Júlio, e mais pelo dragão, alien, baleia, cão, morcego: nosso misterioso catalizador de águas. Fomos nos abrigar do perigo, no perigo de um outro histórico. Petrificado. Fomos oferendar nossos corpos. Nosso afeto desmedido. Água para o dragão beber. Pena que caiu do céu para ele lembrar de sonhar... que voa.

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Não nos identificamos com os monumentos do poder. No dia seguinte: Intervenção no dragão. Notícia da Zero Hora: Vandalismo: O monumento a Júlio de Castilhos amanheceu coberto de tinta vermelha. A placa da Av. Castello Branco amanheceu como?

“Assistimos primeiramente a queda do anjo que, ao nascer, negou-se a ser escravo, e produziu na noite uma chuva de sóis e estrelas devido à atração da sua glória: mas Lúcifer, a inteligência proscrita, dá à luz duas irmãs, Poesia e Liberdade, e o espírito de amor usará os seus traços para dominar e salvar o anjo rebelde” (...) ‘O anjo Liberdade, nascido de uma pena branca, perdida por Lúcifer durante sua queda, penetra nas trevas; a estrela que usa na fronte cresce, torna-se primeiro meteoro depois cometa e fornalha’. Vê-se como, apesar da sua aparencia ainda vaga, essa imagem se precisa: é a própria revolta, a única revolta criadora de luz. Essa luz só pode passar por três vias: a poesia, a liberdade e o amor, que devem inspirar o mesmo zelo e convergir para traçar o próprio perfil da eterna juventude, no ponto menos descoberto e mais iluminante do coração humano.”22

22. BRETON, André. Arcano 17. 1985, p. 87-88. 194

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Você está perdendo a cidade. nunca parou de perdê-la enquanto é silenciado em seu

corpo, agredido em sua alma, assassinado em sua existência singular e suicidado pelas repressões da sua diferença. Você é domesticado para achar que isso tá certo, e se não resiste, logo aprende a domesticar os outros, apaziguar seu mal-estar suprimindo, ou mesmo sabotando, tudo aquilo que quer, em você ou no outro, ser livre para criar outra coisa que escape a essa medonha e fajuta realidade.


A primavera não me deixava esquecer dela. Tanta vida explodindo na minha cara, acabou por me polinizar. Sorri pra árvore na calçada que exibia suas pequenas florezinhas brancas, cheirosas, abundantes. Ela me ofereceu uma flor, eu aceitei. Era para pôr no cabelo. Eu botei. A árvore disse: Te enfeita. Te enfeitiça. Te protege. [continua]

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arCaNo vII a PoLIfoNIa


Disparado em 9 de março de 2018 às 14:53 por arcanosurbanos Lua Minguante

PO.LI.FO.NI.A (substantivo feminino) (música) É uma técnica compositiva que produz uma textura sonora específica, onde duas ou mais vozes se desenvolvem preservando um caráter melódico e rítmico individualizado, em contraste à monofonia, onde só uma voz existe ou, se há outras, seguem a principal em uníssono. As partes de uma polifonia são independentes, mas de igual importância. A palavre deriva do grego polyphonia, e significa abundância de vozes.

A polifonia está presente na oralidade, nas falas, gritos, brados, anúncios, nos diversos sons de suas máquinas, de seus instrumentos, também está presente nas regras, na sinalização, nos ícones, nos textos, nas músicas, na arquitetura e em suas diversas imagens. As composições desses diferentes signos integram um imenso coral urbano e cada elemento pode ser considerado uma voz que canta num tom particular, um fragmento de uma mesma canção polifônica. Para muitos, o cenário polifônico é caótico, sombrio, ameaçador. A polifonia pode ser um verdadeiro inferno! É aí que o cigano Italo Calvino nos aponta duas vias:

uma cidade narrada por um coro polifônico, no qual os vários itinerários musicais ou os materiais sonoros se cruzam, se encontram e se fundem, obtendo harmonias mais elevadas ou dissonâncias, através de suas respectivas linhas melódicas23

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.24

23. CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: Ensaio sobre a Antropologia da Comunicação Urbana. Editora Studio Nobel, 2004, p.15

24. CALVINO, Italo. As cidades Invisíveis. Editora Companhia das Letras, 1990, p. 150.

Polifônica. É assim que o cigano Canevacci entende a cidade: feita de muitas vozes, nem sempre consonantes, mas sempre copresentes.

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Na polifonia, vozes se cruzam, relacionam-se, sobrepõem-se umas às outras, isolam-se ou se contrastam... Elas são co-presentes nas ruas, avenidas, lojas, centros culturais e outros espaços da comunicação urbana.

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Para muitos, são ruídos desagradáveis; para alguns, uma sopa de possibilidades, o coaxar dos sapos numa lagoa de sentidos.

A proposta do arcano: Apesar do conceito de polifonia ser aberto a todos os signos da cidade (sonoros, visuais, espaciais), o arcano menor dessa lua está interessado nas “vozes” que constroem o caráter polifônico da cidade. Nessa lua quarto minguante não há que se dizer nada. Porém, há que se capturar o que já é dito, proclamado, verbalizado, vocalizado na cidade. O arcano da Polifonia nos coloca à caça dos sons que a cidade emite, as ondas sonoras humanas que anunciam, publicizam, compram vendem ou trocam. Procuraremos identificar algumas das “vozes” que fazem parte do grande “coro” urbano, esse jogo de ecos. Artistas de rua, passantes que falam… As vozes estão por toda a cidade. Nos centros comerciais é onde pensamos encontrar maior variedade de anúncios vocais. Então vamos a eles! Mergulhemos no “inferno” e, tal como Calvino propõe, procuraremos reconhecer aquilo que, no meio do inferno, é paraíso.

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As estrelas do arcano: (6 estrelas) - Gravar um áudio de voz, no meio da experiência, durante a ação, enquanto se desloca no mapa. Misturar a sua própria voz no meio de outras tantas vozes. Pode falar o que quiser, pode falar sobre o que vê, sobre o que sente, sobre nada. Pode anunciar, cantar, pode ler, pode gritar. (5 estrelas) - Antes de sair para a caça de vozes, ative o Strava no seu celular. (4 estrelas) - Capture as vozes encontradas no percurso, em áudio ou vídeo.

Que a lua minguante faça minguar os infernos!

oPtCHá!

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– São todas fotografias analógicas, eu fotografo com filme preto e branco, eu mesmo revelo, só depois a impressão é em PVC (uuhum). Daí são cenas da Patagônia, desde assim, no norte da Patagônia Argentina, Rio Gallegos começa, até ali a região de Puerto Williams, que fica ao sul do Ushuaia né (uhum), daí eu fui quatro verões pra lá e são produto desses quatro verões (massa).

Tatuagem piercing Sandalô! Sandalô! Sandalô! Lo-to-fá-cil-mega-sena! Lo-to-fá-cil-mega-sena! Lo-to-fá-cil-mega-sena! Sessenta e dois milhões! Só deiz ala minuta treze o buffet livre! Tá barato o almoço Lo-to-fá-cil-mega-sena!

Almoço! Almoço! Almoço!

Me ajuda que eu te ajudo

Quatro reais o cortador de unha! Cortador é quatro! Cortador de unha!

A dois a água

Ala minuta apenas onze reais! O prato da casa apenas dez reais! Almoço! Almoço! Almoço!

Lo-to-fá-cil-mega-sena!

Água gelada é dois

Compro ouro! Compro ouro! Compro ouro! Dez pila ala minuta! ...a um real por dia na parcela! Corto cabeloooan! Corto cabeloooan! Vamos aproveitar as promoções da loja! ...e muito mais pra você! -Ela foi! -Aham! Piercing tatuagem! -Guria, o volume do cabelo, tem interesse? Tatuagem manicure pedicure corte de cabelo feminino Design sombrancelha piercing

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...sonhos bem fresquinhos e deliciosos. Sonhos por um real e cinquenta centavos. E a promoção: leva cinco sonhos paga só cinco reais. É o carro dos sonhos freguesia. Sonhos de creme, sonhos de chocolate, sonhos com mumú e goiabada ao sonho. Sonhos bem fresquinhos e deliciosos. Sonhos por um real e cinquenta centavos. E a promoção: leva cinco sonhos paga só cinco reais. É o carro dos sonhos freguesia. Sonhos de creme, sonhos de chocolate, sonhos com mumú e goiabada ao sonho. Sonhos bem fresquinhos e deliciosos. Sonhos por um real e cinquenta centavos. E a promoção: leva cinco sonhos paga só cinco reais...

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– Essa aí é um retratinho da placa de Puerto Toro. Puerto Williams já é isolado. Um pouquinho mais ao sul de Puerto Williams tem uma comunidade que é mantida pelos carabineros do Chile, são em média trinta pessoas, que ela fica ainda mais ao sul da ilha, ela é o povoado mais austral do mundo, a balsa vai uma vez por mês e é o fim do fim.

Composição cafeína, diclofenaco sódico e paracetamol. Todos juntos atuam no relaxamento muscular e também são de efeito anti-inflamatório e analgésico. Torcilax aqui na farmácia! Dez comprimidos de torcilax, presta atenção aí ó, dez comprimidos de torcilax por apenas 6,99, dez comprimidos de torcilax por apenas...

capinhas para... Barato barato filmêe! Quatro caixa é dez o morango! Tem também o entrevero agora, o novo produto Tchê Coxinhas que é uma delícia gente! É um conjunto de especiarias da Tchê Coxinhas que faz toda diferença. Tem o frango frito, as fritas Tchê Coxinhas, e também as tradicionais coxinhas. A Tche Coxinhas é assim: surpreende a cada dia! É o pacotão! -Fala guria! Vai terminá! Vai termina o pacotão! -Vão roubá esse celular aí. Pimentão cebola tomate! Barato moranguinho! Barato o alho! Barato o alho! Três milhões e meio na quina pra hoje!

Quatro abacate é cincôoo Chip da claro na promoção Chip da claro -Atá, ta bom. Muito obrigado! Tomate cebola e batata! A um real o pacote de legumêe Você compra a antena e conversor digital! Preço justo é na Celcomp! Bateria portátil nós temos aqui na Celcomp, bateria portátil. Aproveite! Celcomp! Preço justo é aqui na Celcomp! Vários modelos de

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Nós decidimos aqui lembrar desses esquecidos animais e todos os outros.. é muito fácil nós sentirmos empatia com o cachorrinho machucado, com o gatinho perdido, até mesmo com a vaquinha separada da maezinha... Mas peixe também! não existe pra nós, nada foi feito para o seres humanos... Fóoo-tos! Fóoo-tos! Pão de leite e de nata é três, salamito por dez! 209


– Aí tu tá vendo toda Puerto Williams (hahaha) aqui tá a igrejinha, aqui é a Terra do Fogo, onde fica Ushuaia, onde é o dito fim do mundo né. Aqui é a cidade de Puerto Williams ela é toda de casinhas padrões assim, foram instaladas pelo exército chileno né, na década de cinquenta e é uma base naval com meia dúzia de civis loucos que tão lá, e meia dúzia, mais loucos ainda, que vão lá passear.

Ôoooôooooôooo Melancia! Melancia! Ôoooôooooôooo Da docinha! Da docinha! Eu hoje quando saí da folia, Quero chupar melancia docinha

Quero chupá melanciiiiiia, com você! Quero é chupá melancia, só com você Ôoooôooooôooo Melancia! Melancia! Ôoooôooooôooo Da docinha! Da docinha!

Esse é pra você que tem tremedêra, gosto de sangue na boca, olha aqui pra você que levanta de manhã cedo escova os dente a gengiva saaangra. Ah ce qué leva pra bebê em casa? Tremedêra, tem home aí que pega uma caneta pra escrever o nome dele, se o nome dele Adão de Carvalho ele escreve ladrão de cavalo, todo nervoso. Tem home que é tão nervoso que na hora de namorá, ele mal começa tá terminando. Aí ó, dez reais o pacote. Dois pacote é vinte ganha uma.

Vou lá chupá, ela tá docinha Vou lá chupá, ela tá docinha Vem chupá! Doceee!

Eu tô aqui, Eu tô aqui. Ó, qualquer dúvida pode vim aqui. Eu chego aqui nove e meeeeia deiz hora. Aí eu fico assim aqui até três hora, três e meia. Que hora que é? Já é três hora? Já vô pará já. Três hora já?

Melancia doooce! Tá doce! Tá doce? Tá? Doceeeee Doceeeee Tá doce Tá doce Quero chupáa Eu quero é chupá a melancia com vocêeee Eu quero é chupá a melancia com vocêeee

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a o d n u dede e d r e p parorançoso ra á t aseu vício iras e pa de s c e n u ê n Voidcade.la parainohas costumseeu hábistocamic erdê- as por l , para o meios do iste da p ar apen epressa e pelos ndo des tética

d pa and ment ade qua lá se ea e ivel d ar n s i g í n c e como e l e h i , s c a t s n e a i ar erde de r compens animal d pass cê p serieda o re m V ixa . s e ou u e de , , s nhos ra pela rigaçõe o i o tu atór , nã atia ob aven veres, abor envolve ra a ap l e d s do e de pa gare dos rato . Não s cidade u l m u s sene do e a a do mato in sa d foss adestra d r i e c ê p o ute recu autô circ er. Voc ão embr que ser er , o m v ç d u l as s a ur a l s n rcep e envo r e m o p é n or a se t o, tamb ou p r, seja para g ocê s e V a ou c a s . l i m cu co dar que r i s r s comu c i e a a de o. o qu l, m car ê nã er espaç síve r e to a forma c o v n ra ar, perd chei . Seja cion meça a a l o e d o se r toca ão c a de po, ent m r o f em er t perd


Os passos seguiam firmes, certos de errar numa direção não exata. E esse corpo feminino foi respeitado. Todos os gestos que eu lia eram de deixar passar: um passo para trás, nenhuma intromissão verbal, nenhum olhar objetificante ou ameaçador de liberdade. Impressionante. Alguma coisa me mantinha o caminho seguro, uma companhia invisível. Um poder passar. [continua]

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arCaNo vIII a fLOr nO aSfaLtO


Disparado em 17 de março de 2018 às 22:00 por arcanosurbanos Lua Nova

Em Porto Alegre, são 22 horas, e uma lua negra se oculta no céu, sangrando. Fazem três dias que perdemos Marielle. Hoje a Cigana deixa espaço para a pessoalidade de uma mensagem em primeira pessoa. Nos últimos dias, esse jogo parou. Paralisou. Foi como se a Cigana tivesse ido embora, fiquei sozinha com um jogo na mão. Pensei que não havia porque continuar, diante dos fatos, o jogo se sentiu pequeno, insignificante. Não haviam mais cartas, nem proposições, nem ações, nem palavras possíveis… apenas a paralisia de uma profunda tristeza. No Arcano Aluga-se, vimos o presidente não eleito decretar a intervenção militar nos morros do Rio de Janeiro. Três luas depois, aqui estamos, à distância, somando mortes, relatos de truculência, abuso de poder, restrição dos direitos básicos e uma atmosfera de autoritarismo e violência que se espalha mais rápido que uma bala. À distância, tudo isso é invisível para nós, habitantes da cidade branca, da cidade formal. Formal, informal… falou-se sempre como se fossem duas cidades… mas não são duas cidades, é a mesma! É a mesma cidade que conforma espaços marginalizados, empurra, delimita o território preto e pobre, divide, fragmenta. Depois vira as costas, não estendendo a infraestrutura básica urbana, não estendendo as políticas sociais. Escola, es216

goto, pavimentação, posto de saúde, creche? Esquece. Quando a intervenção chega ali, ela é militar. Se a cidade é a mesma, esse lugar é nosso problema também, simplesmente pelo fato de que pessoas (r)existem ali. Todo esse acontecimento da semana me fez olhar para os números, para os dados. É assustador, são números de guerra: em 2015, no Brasil, foram registrados 59.080 homicídios, sendo que desse número 41.592 são homicídios de pessoas negras. Em cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras, em sua maioria, jovens, do sexo masculino e de baixa escolaridade. Esse grupo social vem sendo assassinado todos os anos como se vivêssemos em situação de guerra e, pelos meus cálculos, em cima desses números de 2015, a média fica assim: a cada 13 segundos, um negro é assassinado. O feminicídio, isto é, o assassinato de mulheres por sua condição de gênero, também tem cor: 65,3% das mulheres assassinadas no Brasil no último ano eram negras, entre 2005 e 2015, o índice subiu 22%. A combinação entre desigualdade de gênero e racismo é extremamente perversa.25 Olhar para esses dados é importante: enxerguemos o fenômeno e nos recusemos a naturalizá-lo, como tem feito o poder público. A naturalização desses números só é característica de uma sociedade que não se identifica com a parcela que mais sofre e que está vulnerável (veja-se como muitos trataram a morte de Marielle nas redes sociais, naturalizando como apenas mais uma, como se isso apaziguasse a situação real da violência, já 25. ATLAS DA VIOLÊNCIA 2017. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública: disponível aqui: https:// drive.google.com/file/d/0BzuqMfbpwX4wOGQtTmp1SWdXWmM/view 217


que acontece com um outro).26 O terrorismo do estado é inaceitável, jogar os militares contra uma população vulnerável é muito criminoso. O Temer lá quietinho, soltando peidinhos no trono de imperador cínico, não vai pisar o chão onde a guerra acontece. Falo eu mesma a partir de um território seguro, privilegiado, branco. Conforme seu lugar na cidade, sua vida vale mais, ou menos, ou nada. É importante enxergar isso. Que território você habita? Uma mulher, negra, favelada, guerreira, militante, inserida e engajada na comunidade que a elegeu vereadora, corajosa, insubmissa, que mesmo em situação de vulnerabilidade ensina a denunciar, a não se calar, a resistir, a lutar. Marielle tinha aquela voz, aquele sorriso, aquela força que muitos, como eu, vieram a conhecer só agora. Agora que partiu. Agora que partiram com ela. Assassinada por ser quem era, por fazer a política que fazia, por ser a liderança de movimentos sociais, de minorias, por promover a visibilidade da mulher, negra, LGBT, por ter a força que tinha, por ousar tentar mover as estruturas. Em três dias fiquei processando tudo isso, meu luto foi doloroso, fui atingida diretamente na esperança, essa parte que se não cuidar inflama e vira medo, que depois de um tempo pode calcificar e virar concreto, virar puro asfalto. Eu sei que não foi diferente pra nenhum jogador errante, falei com muitos, pedi ajuda ao ver o jogo morrer junto com Marielle.

26. Dá pra encontrar mais números gritantes nesse portal: http://www.ipea. gov.br/atlasviolencia/ 218

Na tarde de ontem, quase desistindo do arcano dessa lua, considerando silenciar, encontrei o pdf do capítulo do livro que tem coautoria de Marielle e, como se ela mesma olhasse pra mim, viva, com aquele sorriso, enfim, uma carta surgiu. Foi uma frase simples, ela diz: Quando a flor rompe o asfalto. E começa assim: Na contramão de um caminho pavimentado pela descrença ou pela mesmice, nesse período de golpe, outros elementos pulsam na cidade (…)27 Com as lágrimas irriguei a imagem. Tomei consciência mais uma vez da pequenez do jogo, e assumi a escala da semente. Small and slow, disse a jogadora Luna. A Corredeira me ajudou a renascer para a palavra resistência. Dragoberto abriu 3 cartas de tarô: A lua, O diabo, A morte. Orapiés, Traditore… agradeço de coração a todos que ajudaram a sustentar o momento e compor esse arcano, é bom saber que juntos a gente se fortalece. Ela que não víamos antes, a vemos agora. Ao perdê-la também a ganhamos. Fazem três dias que perdemos Marielle, mas

27. Marielle Franco. A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada. Artigo que compõe o livro Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil Parte II: impeachment e resistência. Disponível em: <http://www. editorazouk.com.br/Capitulo-MarielleFranco.pdf> – também deixo aqui mais um rastro do trabalho dessa mulher negra pesquisadora, sua dissertação de mestrado em Administração: FRANCO. Marielle. UPP – A redução da favela a três letras: uma análise da Política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/1VtTgFxwVUQ36qmnPQESc1K_3HSlNT27b/view>. 219


igualmente são três dias em que Marielle está absolutamente presente. E enquanto presente, ele invade um jogo como este, que tem o presente como seu primeiro mistério. Então, reunindo as imagens poéticas e os gestos mínimos da resistência, o arcano menor número cinco vai ser assim:

Quando a flor rompe o asfalto28:

Vem a luz do oriente quando, do tapete de asfalto feito, uma flor ascende e se desdobra a desabrochar. Para os lados, racha o asfalto, rompido pelo assim tão brusco nascimento de um único caule e botão aberto, esse que pode decidir manter-se dobrado de dia, desdobrado à noite, ou vice-versa, o importante é que notem que ele está a abrir e fechar, abrir e fechar, como se pulsação fosse de um coração que não lhe foi projeto. Essa, contudo, surgiu assim do nada, brocou asfalto acima com súbita força, como uma criança que àquela mesma hora estava sentada à carteira da escola e havia acabado de fazer um risco verde no papel, risco rápido esse que fazia vésperas às formas da flor que lhe formava na cabeça. Não fosse isso tão insólito, e qualquer um há de concordar no estranhamento dessa súbita vida parida do con28. Roubo, reprodução, torção e traição do texto de Uldiceia Oliveira Riguetti. A flor que rompe o asfalto. A versão completa e original está disponível em: http://www.jornalolabaro.com.br/web/variedades/a-flor-que-rompe-o-asfalto/ 220

creto, basta olhar para as lascas de concreto ao redor, as fissuras abertas por tão recém-pavimentada via, afinal todos queremos que nasçam flores, pois desde cedo somos ensinados a vê-las com doçura de bons olhos, mas quem de nós há de querer que danifiquem o patrimônio tão bem valorizado de nossas ruas, essas que não bastassem estar tão feridas, são agora assaltadas pela violência de uma flor súbita e bandida que quis nascer repentina, forma essa que qualquer cálculo físico há de chamar de mais prejudicial. Ora, os carros que ali passavam nada viram, afinal estão as pessoas tão atrasadas, tão estressadas, tão sonolentas, não vamos pedir agora que os motoristas que passavam por aquela avenida dessem atenções para o que brotara em pleno asfalto, logo eles que nunca pararam para ver quão saudável estava a cidade vidro afora, que preferiam chegar rápido às casas ou trabalhos para pensar em outras paisagens e, definitivamente, mais estranhos jamais conseguiriam ser em relação àquela flor pela qual passavam, que carro por carro ameaçava espremer contra o chão. Felizmente, são os passantes mais tranquilos, uns com certeza haveriam de passar por ali sem fazer notar que, no meio da paisagem, há uma flor, afinal não precisam de máquinas apressadas quando têm seus próprios corpos bem regulados e acelerados para não perder um minuto que seja nos cubículos em que trabalham, o que se contrapõe ao senhor negro de chapéu de palha, que vê a flor e suspira, à jovem de fone de ouvidos tampados por música, que vê a flor e geme uma nota, ou à mulher 221


com a bebê de colo, que vê a flor e sorri, a criança, que vê a flor e se cala do choro, ou ao homem que segura a mão de outro homem, o primeiro vendo a flor e sentindo-se estremecer, o outro apenas aborrecido pelo passo do companheiro que se deixa vagar, mas pelo menos há de compensar o casal que passa dali uma hora e meia, cujos olhos veem as flores e sentem as mãos chorarem uma para outra. A menor das leituras haveria de perceber que, se faz isso uma flor, não se trata de broto e caule quaisquer, não não, é esta flor diferente porque faz isso nas pessoas que passam, uma mulher negra chegou até a derramar uma lágrima, se passam e veem uma flor rompendo o asfalto, aflitos pela delicadeza toda da silhueta acompanhada do pavimento trincado tão violentamente, se deixam abalar e fazer na caminhada de seus cotidianos algo que não estão a fazer, é porque algum sentido leem daquela paisagem. Sentem-se duras e de repente uma flor brotou em todas, fez com que uma chorasse, outro risse, afinal basta pensarem em si mesmas, tanto essas que prestaram atenção na flor quanto aquelas que passaram reto em seus caminhos, e verão que todos subestimamos a nós mesmos quando nos vemos duros em carcaças de asfalto, que no final somos todos por inteiro como aquela flor e a lógica, essa que nos faz caminhar rápido e dirigir sôfregos, é que verdadeiramente é baixa como asfalto, até que um dia furamos a superfície, beijamos o sol, nos viramos do avesso para mostrar o interior de nossos botões e somos, ali, frágeis como nada, simples organismos estranhos, milagrosos, desafiadores de todas as leis 222

biológicas e que estão expostos aos venturosos pneus e a ser ora ignorados, ora fazedores do riso e da lágrima, desculpas para estremecimentos e gemidos. Se sentiram os transeuntes isso dentro de si, tudo indica que são frágeis e delicados, que suas naturezas humanas, se alguma hora pareceram como o concreto, foram enganadas, são todos apenas flores e basta que nasçamos todos juntos pra transformar as avenidas pavimentadas de nossas vidas nas disformidades naturais e primitivas de nossos jardins. Mas antes que esse pensamento se conclua e dê aquela flor a sua primeira semente germinativa, que quem sabe conseguiria abrir outro furo no solo para gerar mais uma sua igual, um carro saiu do seu caminho tradicional e um pneu, enfim, amassou-a contra o solo, e este momento que haveremos de imaginar como longo, dramático, certamente a ser filmado nos frames cuidadosos de uma câmera cara, durou talvez menos de um segundo (…).

Proposição do arcano: Para lembrarmos das Marielles e lembrarmos de nós mesmos inseridos nessa realidade, nesse presente, a ação proposta pelo Arcano VIII é encontrar na cidade imagens das flores que brotam no asfalto. Uma captura poética e mínima, porque é preciso lembrar das flores que brotam nas periferias e nos asfaltos da existência, da resistência que existe em nós, mesmo que ela seja pequena.

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Saia essa semana em busca de imagens da resistência em superfícies aparentemente impenetráveis. Há flores brotando por toda parte, nos ambientes estéreis e pavimentados, impermeabilizados, nos muros, nos concretos, no asfalto, nas instituições, em nossas casas. Basta que estejamos atentos. Encontre a resistência vegetal e de outras naturezas pelos concretos duros da cidade e olhe para isso. Olhemos para fora e para dentro, reconhecendo que a força da flor é força da vida, que mesmo pavimentada, aparentemente morta, ela está em nós e volta a brotar sempre. Ela nunca desiste de tentar outra vez. A flor que nasce no asfalto é uma força que está para além de todo sofrimento e do medo, da situação política se mostrando cada vez mais insustentável, para além daquilo que o estado nos oferece como condição de vida precária e desértica. Vamos dedicar essas flores à Marielle e a todos os que ousam lutar e resistir. Tenhamos em mente seus gestos de vida. Por isso, junte imagens, com textos, coloque sua voz, faça vídeos, mande para a Cigana seu recado, sua manifestação, sua homenagem, sua perplexidade. Repare em você como espelho desse broto, provocando fissuras naquilo que é fixo, duro, impenetrável. Apesar do asfalto, resistimos. O momento pede. A vida sempre há de passar. Que sejamos agentes da vida. Coragem em todas as lutas! Solidariedade com todas as lutas! É preciso lembrar. Dos números, das flores, das pessoas. É preciso enterrar os mortos. Mas nunca esquecer.

As estrelas do arcano: A pontuação do arcano segue a pontuação clássica das estrelas (texto, mapas, vídeos, fotos, áudios, desenhos). Mande o que você pode fazer dentro do seu pequeno possível.

Pois quem será capaz de dizer que alguma coisa querida que foi rasgada e retalhada morreu de verdade? Quanto a qualquer mulher arrasada, quem poderá um dia começar a avaliar que grande vida acabará por brotar dos seus cortes, dos seus ferimentos – da eletricidade empurrada para cima a partir do seu cerne oculto, aquele estopim dourado? Por mais que ela tenha sofrido mutilações profundas, sua raiz radiante ainda está viva, ainda está produzindo e sempre estará à procura de vida significativa a céu aberto.29

oPtCHá! MarIeLLE, PrESEnTe! 29. ESTÉS, Clarissa Pinkola. A ciranda das mulheres sábias. Rio de Janeiro, Rocco, 2007, p.41.

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No alinhamento geométrico da cidade... ela vem incorruptível e se alastra ao seu bel prazer. Não sem dor, mas com calma, se alastra!

Quando vi a florzinha nascendo de dentro da boca-de-lobo eu lembrei dos racionais que cantavam: Levanta a cabeça truta, onde estiver seja lá como for Tenha fé porque até no lixão nasce flor - Racionais MCs - Vida Loka / Parte I

Buscando flores na calçada... Andei e busquei. Um dia de chuva, um dia em que o tempo chorava. (e choramos semanas, e choraremos o tempo) Muitas caminhadas, duas jornadas, e os olhos não viam viva flor (mortas, muitas) A primeira rosa fora uma bituca de cigarro descartada, manchada de batom (insinuação de uma pétala urbana) isso que buscava outros jardineiros que sustentam um tanto de vida nesses muros mas não flores em uma primeira jornada na segunda... uma típica flor que nasce na cidade pós-chuva. Descarte de algo que já fora

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proteção mas algo lá se encontra, em frente a um portal. A porta não mais abre. Cuidado? Bloqueio? Ainda choraremos. Ainda buscaremos flores e plantaremos

>>> Flo-oor, alguma flor aí junto as graminhas? Nenhuma flor se esconde? Responde tu por flor? Flor no asfalto? Parece que hoje em dia anda nascendo asfalto nas árvores. Concreto.

Ode ao luto (LUT{AMO}S) Capturar palavras e externalizar esse sentimento é um exercício duro. Talvez, não há letras, não há espaços, não há sinônimos e muito menos linhas para esquadrinhar a tristeza que habitou e habita um coração. É inominável. Passei a semana digerindo, urrando, vomitando sensações e sentimentos de incredulidade. O medo silencia, machuca e suga energias. Tive a oportunidade de criar raízes em um quarto durante o sábado. Pensei, oscilei, espaireci, flutuei, enfim. Cruzando o limiar da consciência: “Oh, senhor cidadão Eu quero saber Com quantos quilos de medo

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Se faz uma tradição?” “Oh, senhor cidadão Eu quero saber Com quantas mortes no peito Se faz a seriedade?” Perder a Marielle é perder uma flor, é perder uma FORÇA, uma IMPERATRIZ. A perda da Marielle esvazia um lugar na nossa ciranda; a ciranda das mulheres que lutam, resistem, existem, e sabem fazer poesia e cor em um mundo estilhaçado. Perder a Marielle é perder alguém na vida, no sentido mais sutil e cru da palavra. Assim sendo, mais uma vida que foi embora de forma violenta e sem pudor algum. Sabe, até quando?! Eu desejei e pedi com o coração, fiz as minhas rezas e orações. Precisamos enxergar além do contexto político, precisamos enxergar o social, que o véu possa cair. 2018 já está sendo um ano turbulento e carregado de energias. Entretanto, os errantes estão aqui, as flores da vida encontram-se presentes. Algumas machucadas, carregadas, mas há O Fôlego de vida, o grito. Que possa existir potência, existir destruição, existir ensaios e nuances. O coletivo é necessário em momentos assim, não precisamos andar sozinhos, e nem podemos. Afinal, somos ramificações e redes de uma mesma essência, não é? Uma flor morreu, mas que possamos extrair algumas mutações e transformações. Marielle vive. Feministas. Negras. Faveladas. Militantes. Human@s. Vivem. “Senhor cidadão Temos coisas até parecidas

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Parecidas Por exemplo, nossos dentes Da mesma cor, do mesmo barro Senhor cidadão Enquanto os meus guardam sorrisos Senhor cidadão Os teus não sabem senão morder Que vida amarga”

Resistência. Segurar firme, aguentar, não desmoronar. Mais do que isso até. É o ato de prosperar onde não há fé. onde apartentemente não há terreno. Um buraco é uma potência. Uma rachadura esperança Uma fenda, um universo por onde posso passar Respirar passando, trepando, subindo ou descendo expandindo mantendo ou até subvertendo uma ordem que não é minha mas resisto em criar em cima dela uma outra melhor ainda.

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to e r o d oVa i oree oeus ree o o sedo outlro or odeVu nerรก elo p o e t a a s derru e oe u cora ac u u


Sentei na calçada. Me recostei e bebi a cerveja quente do “momento certo” que não tinha chegado. Fumei um cigarro e olhei pro céu. Esperei o sinal dela. Vem lua. Que horas são? Abandonei o tempo, abandonei os relógios. O eclipse já tinha começado. Foi o que achei. Ela não vinha. Nada aconteceu. [continua]

IX 237


arCaNo Ix O OrELHãO


Disparado em 24 de março de 2018 às 19:21 por arcanosurbanos Lua Crescente

Andava à noite. Andava na direção obscura dos pensamentos rumorosos: caos recolhido pela derme sensível. Andava. A noite fazia subir-lhe a multidão de dentro. Andava mais. Queria abandonar coisas no caminho. Queria livrar-se do barulho inaudível. Queria abandonar as palavras de ordem, esquivar do estado de gaiola, ignorar as respostas exatas, romper o molde de gesso. Queria cuspir palavras inteiras, vomitar sentenças, na tentativa de esvaziar-se um pouco. Queria silenciar. Por isso andava. Mas havia outra multidão fora. E sua caixa sensível abrindo demais, expondo demais a pele à luz daquela noite latejante. Perdeu-se no meio dos sinais. Quem são? O que dizem? Por que o dizem? Os olhares. Os olhares e os gestos perversos e ameaçadores. A amada noite lhe era hostil. Fugia portanto. Fugia. Tudo se movia mas o tempo parecia não passar. Noite crônica. Fugia. O tempo ficou louco e o espaço perdeu significado. Fugia.

Então bem ali, uns passos mais adiante, aguardava-lhe uma vulgar e quase esquecida cabine telefônica, uma casca fibrosa, uma orelha, um orelhão. Andou até ele e nele se instalou. Não fez chamadas, não fez 240

da cabine o objeto designado pelo seu projeto. Abrigou-se na forma do ovo, descansou em sua curvatura uterina, respirou em sua inflexão, e silenciou na grande orelha acústica da cidade: a noite escutava. Orelhão transmutado, desprovido de sua função original, emprestou sua forma para tornar-se o abrigo, receptáculo de um momento, protagonista urbano do crivo que corta o caos, fez um dentro no fora. Redobrou-se a noite. Desdobrou-se em um outro lugar. Encontrou-se com o grande abraço do inanimado, e com ele pôs-se a conversar. Em silêncio agora. Fora trazida de volta ao espaço, ao tempo, a respirar. Era a mesma noite e ao mesmo tempo outra. Compuseram-se em concavidades recíprocas. E continuou andando à noite.30

Você o conhece. Ele está por toda a cidade. Ele é um querido: obsoleto, cotidiano, vulgar e todo trabalhado no design. Ele é setentista, retrô, e inimigo dos cegos, cujas cabeças nele chegam antes que a bengala. Difícil encontrar os que ainda telefonam. Alguns quebrados, já nem mais telefone contém. Muitos servem de suporte para todo o tipo de intervenção gráfica: lambes, sprays, canetões, adesivos, toda uma constelação de tags diversas.

30. Roubo, torção e reforma de VIECELI, A. P. Um orelhão. In: Vieceli, Ana Paula; Fuão, Fernando Freitas. (Org.). Coleção Querências de Derrida, moradas da arquitetura e filosofia – Vol. 5: A Porta, a ponte, o buraco, um orelhão. Porto Alegre: Pallotti, 2016. 241


Tecnicamente, o orelhão é um protetor para telefones públicos. Foi projetado pela arquiteta e designer brasileira Chu Ming Silveira e lançado em 1972, inicialmente nas cidades do Rio e São Paulo, sendo posteriormente incorporado ao mobiliário urbano brasileiro. Nosso queridão é premiado, ganhou o título de ícone do design mundial, tornando-se um símbolo do Brasil. Em seu projeto, Chu Ming Silveira partiu da forma do ovo: segundo ela, a melhor forma acústica. A curvatura da cúpula oferece a todo usuário que se instale sob ela, proteção acústica de 70 a 90 decibéis. A maior parte do ruído que atinge o protetor é refletida para fora, o restante converge para o centro do raio de curvatura, localizado bem abaixo do ouvido do usuário médio, de forma a minimizar a interferência na comunicação. Funciona como uma bolha que reduz o ruído, isola sem necessidade de fechamento, para que possa haver um encontro auditivo, telefônico, entre duas pessoas distantes. Com a intenção de criar um produto forte, leve, barato, resistente ao sol, à chuva e ao fogo, ela designou a fibra de vidro como material para a feitura do nosso amigo, o grande orelha. Após o sucesso da telefonia celular, o orelhão caiu em desuso e a exigência da sua implantação nas cidades diminuiu. Porém, nos grandes centros urbanos, ainda que quebrados, eles ainda estão dispostos a menos de 300 metros de onde quer que se esteja. Aquela que caminhava à noite se encontra a forma do orelhão e nos traz a imagem do ovo. O ovo nos direciona à primeira forma do acolhimento humano: o útero, que é o primeiro interior, o primeiro invólucro protetor, primeiro receptáculo que nos é oferecido em nossa existência. Ele abraça e envolve, tor242

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nando-se mais que um recinto: ele é um (re)sinto. A forma-orelhão é um abraço que acolhe. Mas repare! Ele não é um ovo qualquer, fechado, lacrado, separado do mundo. Ao contrário, o orelhão é um ovo outro, um ovo público. Ele apresenta uma abertura, um elemento de comunicação com o mundo, de relação direta e entre um dentro e um fora. É através da abertura que aquela caminhante noturna se apropria da forma oval, é através dessa abertura que ela entra para reduzir suas velocidades e, posteriormente, sai, num movimento que permite a continuação entre um recolhimento e uma exteriorização. O acolhimento do orelhão é, pois, uma inflexão, uma dobra do espaço, uma concavidade que permite se tornar receptáculo. É um sucesso de espaço dentro de espaços, de dobra dentro de dobras, dentro de outras dobras...

pode cantar, pode fofocar, pode passar um trote. E o que mais se pode fazer embaixo de um orelhão? Se não tiver ninguém pra ligar, liga pra esse número: 51 3099-3141. Fale diretamente com a Cigana, se tiver sorte.

As estrelas do arcano: A pontuação do arcano segue a pontuação clássica das estrelas (texto, mapas, vídeos, fotos). Mande o que você pode fazer dentro do seu pequeno possível.

A proposição do arcano: Nessa lua quarto crescente, a Cigana propõe que nos instalemos provisoriamente nesse quase abandonado mobiliário urbano, o querido orelhão. A primeira tarefa, talvez a mais difícil delas, é encontrar um orelhão que ainda contenha, em sua barriga oval, um telefone operante. Depois é mais simples: sem fichas ou cartões, vamos telefonar de graça. Sim! É de graça! Para todos os números fixos, números do Brasil todo. A ideia é que seja feita uma gravação de áudio ou vídeo dessa ação. E cada jogador está livre para conversar sobre qualquer assunto com qualquer pessoa: pode aproveitar o momento para também ler um texto, uma notícia do dia, uma poesia, 244

Boa semana! Boas orelhas! Bons ovos! Boas ligações!

oPtCHá! 245


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Descobri que o obsoleto é capaz de abrigar muitas coisas, e dentro desse abrigo há fuga e criação. Assim sendo, olho a cidade diferente. Te liguei, Cigana, mas você não estava. Deixei um recado com a mensageira.

-Alô? A penumbra do banheiro fedia a sangue, a mentiras, e a descasos. Entre o universo escarlate nasceu a morte. Nasceu a saudade, a curiosidade, e a cruz de uma vida bloqueada. Então, recebi o gatilho: qual o momento mais vivo? Pensei bastante sobre, acredito que não há uma ordem cronológica muito popular ou convencional. Esse tempo deu saltos, se fez em partes {um porvir, um devir} mas retém conexão. (Noite, Cai o absurdo sobre o vazio) Ao som de Kings, percebi quão tirano o mundo é; o mundo é tirano, mas o tempo sabe ser bom, o tempo tem potência para dar abraços e fazer recortes. Alguém me tirou do eixo e essa realidade maciça congelou. Então, paralisada, mergulhei em uma estabilidade quase que celestial. Enxerguei pessoas, espreitei os conselhos, lembrei de tudo, fui-me.

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(Por isso me preencho de inícios, processos e fins -) Fui-me, revisei a vida em velocidade e no auge da paralisia, no auge de um bloqueio puro e sincero. Lembrei dos abraços, dos amigos, vi a beleza da vida em um quarto meu. Eu não precisava de muita coisa, ali, naquele momento, eu tinha tudo. Tinha os meus papéis, tinha as minhas músicas, tinha os meus desenhos, tinha os meus livros, eu podia controlar e produzir. Sabe, talvez foi o primeiro encontro! Ela com ela, estrela com estrela. O universo escarlate ascendeu da dor, do vazio, e isso foi um choque de vida, quiçá, entre os poros, o sopro da vida. o fruto proibido. a torre de babel (inatingível em coletivo). fui-me sozinha. (Para que, ao cair, arrastando o nada, a noite já me encontre plena e não adormeça em minha escuridão) -Tchau! -Tchau!

Estávamos as três. Fiori, Cavalo Preto e Corredeira Mágica. E foi bem interessante e divertido. Observei que nem tudo é dito num orelhão, nem todos respondem ao atender, não se identificam. Mas também tem algo 250

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maravilhoso, que podemos transmitir palavras de conforto, ânimo para quem não está bem. Ouvir a voz da pessoa de quem se está com saudades e confiar situações que se está vivendo. Partilhar notícias boas, desejar felicidades... Mas o melhor de tudo mesmo é sentir que o outro que recebeu a ligação ficou mais feliz. E está feliz por causa de você.

-Alô? A noite encontrou o corpo novamente, mais uma vez. Houve visita e reflexão. Alguém me tirou do eixo e essa realidade maciça congelou. A borboleta fez metamorfose no choro, na matéria e no coração. Não nego, portava cacos em um chão ao fechar a porta. Dançava com o caos em paz, e foi aí que compreendi. Depois de tanto tempo, depois de tantas relações e tentativas, eu realmente consegui me encontrar mais uma vez (e ainda há tempo). Então, respondi: o momento mais vivo foi receber esse encontro! Claro que carrego o mundo que me foi dado, carrego o estranhamento e as vivências. O cálice era algo bem claro, ele estava comigo. Fiquei feliz ao elucidar, e entristeço na tentativa. A vida em libido foi constatar que só dependo de mim, escuto o mundo o tempo todo, mas enfim e no fim, depois de um bom tempo, eu ainda não desisti de mim. (Porque agora vemos por espelho em enigma, mas 252

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então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor) 1 Coríntios -Tchau! -Tchau!

Andaram juntos e resolveram fundir seus personagens. Era noite. Stella-Piés caminharam por mais de uma hora pelo centro de Porto Alegre buscando orelhões. Confirmaram o esperado: poucos funcionavam. E quando funcionavam, que surpresa! Ninguém atendia as ligações. Levaram tão a sério o jogo que a impaciência começou a pesar e StellaDiver ficou carrancuda. Mas persistiram. Eles são assim. Orapiés tem a leveza complementar aérea que dá a StellaDiver a diversão nos momentos em que ela se deixa apossar por pura austeridade. Para ele, ao contrário, a caminhada era leve, a brisa fresca ajudava a soltar os passos. E como dádiva, foi a Orapiés que a Cigana concedeu a primeira ligação completada. Fez o sinal de positivo com o polegar, se posicionou dentro da cabine oval e, sem se identificar, leu um de seus três textos selecionados para o arcano daquela noite. Barulho. máquina de cortar grama, serralheira, ruído, escapamento, falação, britadeira, sussurro, helicóptero, motor, avião,

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murmúrio, grito, sirene, gargalhada, socorro, assovio, freada, arrastão, funk pancadão, ronco, respiração, conversa, enguiço, apito, bateção, radio, auto falante, televisão, assunto, discurso, batucada, sax, vizinho que dá aula de violão.31 Ao final desse feito, deram três voltas no orelhão operante. O GPS trataria de fazer a marcação e o desenho no mapa. Comemoravam. Mas ninguém atendia Stella. Então ela trapaceou no jogo e começou a simular as chamadas só para ter o gosto de ler também os textos que havia selecionado. Stella declamava, falava mais alto e na direção da rua, se apropriando do novo sentido que, naquela noite, descobria para o orelhão-palco. Descontraíram-se e passaram a curtir o rolê pelo rolê. Desfrutaram das diversas pixações que encontravam pelas paredes entre um orelhão e outro, especialmente uma, que aparecia aqui e ali, repetidamente. Um filhote de baleia cachalote, encontrada em linhas vermelhas, verdes, azuis e amarelas. Continuaram na emoção da busca e da expectativa de efetuar outras ligações. Na Rua dos Andradas, StellaDiver leu um trecho do texto A rua, de João do Rio. Ela abriu o livro e escolheu aleatoriamente um parágrafo.

31. FARINA, Juliane. in: FARINA, J.T.; GARAVELO, L.M.C.; FONSECA, T.M.G. Exercícios de uma literatura menor: Um olhar atelial. Porto Alegre: Museu da Ufrgs, 2014, p.63. 255


Ora, (...) a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! (...) a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. (...) A rua é generosa. O crime, o delírio, a miséria não os denuncia ela. A rua é a transformadora das línguas.32 Ao longo da leitura, atrás dela, alguém chegou e sentou na calçada. Logo que interrompeu sua chamada telefônico-literária, esse alguém aplaudiu. Era um morador de rua. Ele lhe disse “muito bom”. Stella olhou para ele, agradeceu, deu três voltas no orelhão e, na linha de saída, olhou de novo perguntando “curtiu?” Mostrou-lhe o livro e disse “quem escreveu foi João do Rio”. Sentado num recuo da fachada do prédio, com semblante sério, muito calmo, ele repetiu “muito bom”. Não disseram mais nada. Tudo isso se passou muito rápido, no tempo do tempo correndo, mas fixou-se, em Stella, como uma questão que se manteve interrogativa ao longo dos caminhos entre orelhões. A expressão dele era toda plana, com dois olhos muito vivos. Um parágrafo aleatório, ao que pareceu, dizia respeito a todos que o ouviram ser lido naquela noite. Dizia menos de Stella-Piés, e mais daquele que, ao acaso, chegava pra compor, com seus ouvidos atentos e seus olhos vivos. Talvez o amor da rua os agremiasse. Stella-Piés seguiram.

32. RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das letras, 2008, p. 29. 256

Orapiés conseguiu ligar para três pessoas, sua missão estava cumprida. Riram quando ele leu a letra de uma música sertaneja. Riram quando Stella efetuou sua única ligação, roubando um dos números que estavam na lista do Orapiés, o número da sua mãe. Orapiés, achou que esse arcano lhe trouxe um velho sentimento de travessura infantil, ele sempre gostou de passar trotes. Stella achou muito engraçada a sensação retrô de segurar o telefone entre a cabeça e o ombro, digitar os números, se sentiu num filme dos anos setenta. E, apesar do peso da sua disciplina sisuda, os dois encontraram tempos lúdicos e descobriram bons ângulos para filmar o orelhão de dentro. A experiência de entrar e sair de tantos orelhões, ainda que não estivessem funcionando mais como telefone, lembrava aos seus corpos do acolhimento. Entravam, saiam e circulavam às voltas desses micro espaços de redução de decibéis dentro da urbe agitada, pequenas acústicas aqui e acolá.

Ainda em março se fizeram buscas. O trajeto abaixo é um deles. De dez orelhões passados, só um funcional. E mesmo assim, em nenhum rolou um encontro de tempos. Todo número chamava sem ser atendido, em todas as tentativas ao longo de vários dias, ao longo de vários trajetos, paradas, buscas. Não vivemos mais um tempo de conversas síncronas. Whatsapp, messenger, instagram, signal, telegram, o que for - manda-se, lê-se, responde-se. Mas os sinais são assíncronos. Não se tem mais a voz esfarelando-se no tempo como fumaça (fumaça de outra comunicação que ganhava distâncias). E a única conversa que consegui num

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orelhão ao fim foi esse grito direcionado a deus. (talvez o mais certo fosse queimar aquele orelhão, para ver se a fumaça era agradável ao deus ignorante).

Não consigo explicar essa resistência pra sair a jogo. StellaDiver às vezes não sobe à superfície. A cada momento que estou prestes a sair o corpo pesa. Pesa muito. Quando venço a inércia, já em movimento, arrasto esse peso de um corpo que não parece saber brincar. No arcano de hoje, na conjugação stella-piés, quis ser perfeita nos gestos, mas eu estava irritadíssima, como no arcano do ônibus. Sempre fico tensa para executar as cartas. Uma resistência de corpo organizado, corpo sedentário resistindo à cigania. Uma coisa, assim, que eu não esperava que fosse acontecer comigo nesse jogo. Stella é que às vezes não vem. Vem Stella, vem. Vem jogar comigo, vem brincar.

-Alô? Não desisto por amor “Lá estão eles” disse ao seu coração, “Eles estão rindo, pois não me entendem. Não sou boca para esses ouvidos. - Friedrich Nietzsche

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Então fui cada vez mais longe, eu queria ir longe, queria ver o não visto, queria saber até onde podia, e não fazia questão de saber exatamente onde estava. Parecia longe de casa. [continua]

X 261


arCaNo X a LIsta do suPer


Disparado em 9 de abril de 2018 às 02:30 por arcanosurbanos Lua Minguante

Uma lista de possíveis nomes para este arcano: - O super - O supermercado - A lista do super - Listas perdidas no super - Perdidos no super - Super lista perdida - Mamãe cadê a lista - Lua, o Lula tá em Curitiba - Cadê a lista Lula minguante - Tá no supermarket - No chão - Pra ser varrida - Pra ser pisada - Por alguém que bateu o cartão - Por quem paga com cartão - Débito ou crédito - Arcano menor - Qualquer super - Uma lista - Mas não qualquer lista - Uma para ser achada - Uma para ser perdida - Para potencialmente explodir - Perigosas coisas coloridas 264

Optchá, jogadores errantes! São duas da manhã e a lua em sua fase quarto minguante faz abrir mais um arcano menor sobre a mesa! Difícil tarefa essa de compor uma singela carta, leve papel na imaginação, pesada com afetos dos acontecimentos da semana, mas vamos jogar como se deve, ao contrário dessa nossa justiça que joga sujo33, que faz sua própria narrativa numa língua 33. Uma nota de rodapé que é puro expurgo, invasor de arcano: o supremo... que não faz questão de COMUNICAR PRA MIM, NUMA LÍNGUA QUE EU COMPREENDA? É muito filha da putisse falar em códigos, pura técnica, fórmula furada, tudo x y = k 010101 traduzido em latim o que que tá rolando que palhaçada é essa quem são esses cretinos caquela ropa lá de supremo? NADA DEMOCRÁTICO. “Negócio deles”. Isso é claro, A COMEÇAR PELA LINGUAGEM. E o juiz… o movimento antecipado, o protocolo é não sei daonde, protocolo americano? FBI? CSI? Netflix? Que? Atropelos, antecipações, suposições e conjecturas* com base em depoimentos e “documentos rasurados” em nome de uma punição exemplar, seletiva. A justiça nesse caso foi expressa, ágil como nunca antes nesse país. Na lista de tanta corrupção a combater, alguns itens são prioridade. Por quê? A narrativa é: tudo se justifica porque quem julga o justificável é a justiça, e ~PORFAVOR VAMOS RESPEITAR A JUSTIÇA PELO BEM DA DEMOCRACIA, SE VOCÊ QUESTIONA A JUSTIÇA O SISTEMA CAI, NÃO VAI PURAÍ – foi isso que escutei no g1. Alexandre Garcia. Depois um amigo falou aqui na minha casa. Então você cai numa de se sentir culpada por um possível golpe, que na verdade JÁ ESTÁ DADO. Institucional. Lula preso. Verde-amarelos paneleiros comemoram. Eu que já tinha me desconectado dessa imagem dele, olho pra essa podridão que aí está, esse desabamento de teto constitucional e penso: tomara que tenha mesmo eleições esse ano. (Paira no ar essa sensação de impossibilidade de saber realmente o que se passa, pra vocês não? A Cigana está um pouco confusa. Primeiro, pelo uso de uma lingagem toda cifrada, jurídica, técnica, codificada, aquela galera ali do 6×5 não fala comigo. Não falo aquela língua. É um só um vento na minha cara. Segundo, quem traduz? A nossa imprensa imparcial? Bem… eu nem quero falar de tv. Caso perdido. Mas parece-me que há uma guerra acontecendo no território virtual. Uma amiga chamada Estrela (!) escreveu ontem de manhã: “ganha quem controla a narrativa e pra isso, a verdade não é tão importante quanto a força que mentiras e exageros têm para instigar a massa a repercutir 265


desconhecida, que tem pressa, que atropela, e tem as suposições e tem as conjecturas34, tem a sua playlist selecionada, seus próprios hits da corrupção… Contudo, nós aqui continuamos! Com tudo! Com o supremo, com tudo. Então vamos espaçar um pouco e adentrar agora o mundo lúdico, nessa nossa ficção que se sobrepõe na marra a esta grande outra ficção que aí se apresenta, toda cheia de armadilhas. Prestenção! O arcano menor dessa lua traz novamente ao tabuleiro o nosso velho amigo Mercúrio, que no nosso céu está retrógrado até o dia 15. É o momento perfeito pra dar zica: mensagens e comunicações podem se extraviar, atrasar ou serem mal compreendidas. Também há a chance dos nossos aparelhos cotidianos pifarem, nossos caminhos se obstruírem. Tá condizente. Tá condizente.

Lista de recomendações para mercúrio retrógrado extraído de três sites de astrologia sobre o assunto “mercúrio retrógrado”: - Checar os fatos - Confirmar as fontes - Averiguar se houve compreensão nas trocas de informação importante - Ouvir mais determinados conteúdos”. Esse jogo realmente não é para principiantes. E esse espetáculo é emburrecedor, entristecedor. Fecha parêntesis!) 34. Estou usando essa palavra pela primeira vez: substantivo feminino. Ato ou efeito de inferir ou deduzir que algo é provável, com base em presunções, evidências incompletas, pressentimentos; conjetura, hipótese, presunção, suposição (freq. us. no pl.). 266

- Cultivar a integridade com a palavra - Rever - Revisar - Repensar - Retomar - Refazer - Aprofundar - Aperfeiçoar - Corrigir - Checar os aparelhos de comunicação - Sair com tempo de sobra para os compromissos

O lugar qualquer do arcano: o supermercado Um supermercado é uma loja que vende diversos produtos e onde o próprio cliente se serve, pagando na saída. É formado pelo prefixo super (abundância, excesso) e pela palavra mercado que vem do latim mercatus, derivando de mercari, verbo comprar. Mercado também vem de merx (mercadoria) e por isso está associado também com Mercúrio, nosso companheiro de jogo, que já apareceu no Arcano III, na figura do carteiro, e que volta aqui hoje para mostrar-nos sua segunda faceta, a de patrono do comércio e dos ladrões. O qualquer-lugar de jogo é o supermercado. Mas o que a Cigana propõe? Antes de mais nada, peguemos a trilha deixada por nosso escorregadio jogador, El Hotel:

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Listas e índices exercem sobre nós, humanos, uma estranha atração. Sumário de livro. Catálogo de compras. Lista de super. Índices remissivos. Cardápios. Lista de filmes no Netflix. Canal de apresentação dos programas do dia. Cardápio de pessoas no Tinder. Lista de coisas pra fazer. (…) Acho que as listas são como espécies de micropílulas das potências do que as coisas poderiam ser se viessem a ser o que anunciam. Tipo mini big bangs. O infinito contido num ponto. Cada item de uma lista. (…)

(…) Mas o que me assusta mesmo com tantas listas, cada vez mais em ascensão e proliferação, é na hipotética situação de que, se todas as listas e cardápios e catálogos do mundo, em um grande acordão, resolvessem despertar e realizar suas potências de súbito, todos os big bangs das listas de compras e filmes de netflix e capítulos de livros e ácidos cítricos e nítricos e goma xantana de uma só vez explodindo em cores sons e cheiros ao mesmo tempo?

Isso sem dizer que sair da lista, ter o nome na lista, não ter o nome em uma lista, pode salvar uma vida ou arruiná-la. Vide exemplos históricos como a lista de Schindler, ou sucessos como seu nome no listão do vestibular, ou o alívio de ver o nome de um filho na lista de sobreviventes do desastre…. As tragédias começam e terminam em listas. Os grandes turning points da humanidade.

Quem sobreviveria de nós? Eu chego à conclusão que:

O sucesso do seu dia dependendo de dar conta daqueles itens que você planejou, tarefa dos realizadores. Nos medimos assim. Mas o prazer neurótico da lista é olhar pra ela como quem aprecia uma berinjela que acha bonita, mas não a come. Ou morangos que mofam. Obter o gozo justamente na impossibilidade de vivê-lo, na negação da realização da potência da coisa através de mim. Uma tentativa vã de controle. Um gesto invejoso e mesquinho.

3. a lista cuida do nome da coisa, que contém a própria coisa apertada dentro até o último instante, até que não aguenta e morre,

Ou ainda a admissão do desejo enquanto falta: todas as coisas que poderia ter e não tenho. Como medida de fracasso. Como produção: todas as coisas que poderei fazer amanhã. Listas. Uma das coisas que nos diferenciam de outros animais, que só foi possível com o advento do polegar opositor 268

e do movimento de pinça.

1. as listas foram feitas pra evitar a realização de todas as coisas ao mesmo tempo (que certamente nos mataria e ao resto dos animais), de súbito, 2. para impedir que muitas coisas se realizem existem as listas que resolvem o problema da existência provisoriamente,

4. quando algo é riscado de uma lista é porque passou a existir no mundo, e deixou de existir naquela lista, para logo brotar em uma outra lista de outra pessoa Ainda resta, no entanto, o problema das listas que se perdem e são encontradas por outras pessoas, que não sabem se devem ou não trazer essas perigosas coisas coloridas e potencialmente explosivas à tona. E, por fim, que nunca temos a humildade de perguntar para a própria coisa na lista se ela tá mesmo a fim de sair dali e 269


dar uma banda ou se ela não tá mesmo muito cansada hoje e não tá a fim de ficar ali de boas, deitada no papel.

A proposição do arcano: Neste arcano vamos elaborar uma lista e perdê-la no supermercado. Mas não uma lista qualquer! Uma lista divertida! Se você não der risada dela, não vai funcionar. Em primeiro lugar, jogador, você precisa se imaginar um mago muito poderoso prestes a realizar uma magia muito louca, no sentido de: muito foda. O direcionamento dessa magia, dessa mandinga, dessa macumba, é você que dá! Na lua minguante, o movimento é minguar, então expulsar, limpar e purificar algo, alguma coisa. (Dica das bruxas errantes mais avançadas em magia geral) Já que estamos em pleno Mercúrio retrógrado, vou tentar explicar bem direitinho fazendo uma… lista. Então é assim: -Faça uma lista de “perigosas coisas coloridas e potencialmente explosivas”, uma lista louca, viandante, errante, cigana, embruxadora, lunática, uma lista impossível de elementos materiais e/ou imateriais, elementos mágicos, místicos, abstratos, raros, que não se encontram na camada real do supermercado. Serão itens de livre criação e escolha, a melhor escolha para sua melhor magia. -Reproduza essa lista (Faça várias de uma, ou várias de várias, imprima, faça xerox, como preferir. Se você preferir perder uma só, tudo bem. Faça valer.) 270

-Vá até o seu supermercado favorito (o mais próximo, o mais caro, o mais robusto, o mais desconhecido ou o mais odiado) -Perca as listas entre os detergentes coloridos, refrigerantes dietéticos, sabonetes e legumes. Perca-as com a esperteza de Mercúrio! Pelo chão, pelos caixas, pelos carrinhos e cestinhas, entre as bolotas de carne moída de terceira. Perca-as também pelo caminho, na rua, por aí.

As estrelas do arcano - (8 estrelas): Mande uma foto da lista para a Cigana - (5 estrelas): Registre seu percurso no STRAVA - (4 estrelas): Faça sorrateiramente, discretamente, um vídeo no super enquanto você está em ação - (2 estrelas): Mande fotos. Mande o que você pode fazer dentro do seu pequeno possível.

Perdoem o atraso do arcano, turbulências no vôo. *E lembrem-se: apesar de tudo, amanhã há de ser outro dia, porque assim nós o faremos ser!

oPtCHá! 271


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Cabe contar uma breve história de como, na conjugação de dois arcanos, produziu-se um encontro e se brincou com o vento. Aquele que, no jogo, responde por quem trai e traduz, montou uma lista de coisas que cabia buscar no comércio local e foi às compras. No caminho, topou com um orelhão. Não que não topasse sempre – de tempos tem buscado entre esses hoje já quase misteriosos totens em meio a cidade um que ainda guardasse seus poderes místicos de comunicação a distância (em uma primeira saída, havia contado que de onze aparelhos averiguados, apenas um funcionava). Daquele tronco de metal brotavam duas dessas flores que só parecem crescer no concreto. Uma não mais possuía aquele mediador que permite que os sinais elétricos se recomponham em voz (o que talvez abra ainda outras possibilidades de tradução), mas eis que a outra funcionava! Como da outra vez, nosso herói tomou um de seus cadernos de notas para ir tentando as sequências de números que ainda hoje parecem ligá-lo a um possível ouvinte. No arroubo, não atinou-se que no mesmo caderninho estavam contidos os filetes de papel que guardavam a memória do que iria buscar no mercado. E quis o acaso que um pé de vento batesse bem no momento em que abriu o caderno, espalhando listas com objetos tão úteis e desejáveis como absurdos pelo ar. Quisera o patrono dos ladrões me roubar da oportunidade de distribuir por própria mão e fazer o serviço, ele que invoca a leveza desse pé de vento em suas

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sandálias aladas? Que fosse, havia ao menos um traidor que não aceitara essa jogada, e qual criança, saíra a buscar os ditos papéizinhos enquanto o danado os fazia fugir. Quisera o acaso – sempre o acaso – que um senhor estivesse falando ao telefone dentro de um estabelecimento comercial em frente aos orelhões. E algo o fez desejar interromper sua conversa para me instruir onde, a partir de sua posição fortuitamente estratégica para traçar o plano de vôo dessas listas pelos ares, pareciam encontrar-se as perdidas coletâneas de objetos. As que melhor se perderam (e, portanto, mais tempo sustentaram a brincadeira de serem catadas) quiseram refugiar-se abaixo de rodas – uma de um automóvel estacionado, a outra de um carrinho de – surpresa! – supermercado que uma dessas senhoras que diz-se que moram na rua levava consigo. Essa interrompeu a laboriosa operação na qual estava metida – literalmente metida em um contêiner de lixo – para livrar o papelete de seu veículo e devolver ele ao jogador (que nem se considerava seu posseiro, mas o recebeu quando viu que ela não tinha intenção de guardá-lo). Seguira ela fazendo sua coleção de outros tantos objetos fantásticos retirados do descarte de outros, seguira o homem em sua ligação pontualmente interrompida, seguira o jogador em sua função de registrador, consumidor e clandestino esconderijador de coisas. Dez listas e dois mercados (e não é a cidade um mercado entre mercados também?)

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e urba mo s idam – e nist cialist e e d fala os únic a de a s s e . , o s m m s ou au m aque tros t torizam uito – que pod as até em f er le q os ala nári s sabe ritóri sabe uando os res a ex desc r r e s d obsc o p pe onquan que en u do o riênci a ur ros que sar, s provém rumo urba bana obre re nist . Vo provém tu se a s, qua a n c ã d nd ê f o qu a or do er e perde d quan eta pel o recus a ci iscut a o a pr do s d l á e ó ade esqu abir -la pria preo ece i e de a cupa ma matéri nto, qu m seus a qu a má-l is e e in ndo não a. m sa ber vest a ci i dade ga, e se


Havia guaritas, muitas guaritas e guardas locais. Luzes que acendiam de repente, automáticas. Havia o ruído hipnótico das máquinas, bombas de reservatório, ventilação mecânica dos subsolos, os transformadores, os fantasmas, a música das folhagens. Eu olhava pra dentro de cada saguão, de cada prédio. Vi cenários muito limpos, muito brancos, organizados, decorados, iluminados. Vazios. [continua]

XI 285


arCaNo XI a ESCadarIa


Disparado em 17 de abril de 2018 às 12:27 por arcanosurbanos Lua Nova

Não pensamos muito nas escadas. (…) Deveríamos aprender a viver muito mais nelas. Mas como? -Geoges Perec Esse é um arcano ótimo para dizer: ainda bem que a terra não é plana! Nem as cidades! Assim, a variação da topografia nos conduziu a inventar um elemento fantástico de conexão entre diferentes níveis em uma paisagem. Se a sua cidade possui algum desnível topográfico, então é muito provável que exista nela alguma deliciosa ou misteriosa escadaria. Objetivamente, uma escadaria é um elemento de construção arquitetônica formado por uma série de degraus, destinado a ligar obliquamente dois planos que estejam em níveis diferentes. Ela tem piso, espelho, patamar. Quando está na norma possui guarda-corpo, corrimão e expressa a fórmula clássica de Blondel: 2e+p=64, regulando altura do degrau e sua profundidade. O plural de degrau é degraus e não degrais, e a sua largura é medida em unidades de passagem, ou seja, múltiplos de 60 centímetros, que dizem ser o espaço que o homem médio precisa para se locomover confortavelmente. Mas definida assim, tão anatomicamente, não tem graça nenhuma, parece esgotar-se o mistério que existe nesses maravi288

lhosos e oblíquos espaços urbanos. O que há nas escadarias que nos comove? Existem escadarias de tudo quanto é tipo: tem as retas, em U, em L, em curva, tem as circulares, as helicoidais, tem as de alumínio, as de madeira, as de pedra, de tijolo, e tem também as de concreto. Algumas tem aura, valor histórico, projeto arquitetônico e nome. Outras são improvisadas, ordinárias, obscuras, anônimas. Algumas viram cartão postal, ganham tratamento artístico, iluminação, mosaico, poesia. Outras são ignoradas, degradadas, escuras, esquecidas. Algumas são íngremes, outras suaves, algumas são meramente funcionais outras são escultóricas, com plásticas intenções. Algumas exalam odores de flores da estação, outras exalam odores de mijo. Algumas são dramáticas, anunciadoras, monumentais. Outras são tímidas, estreitas, penumbrosas, escondidas. Algumas são claras, cômodas, convidativas. Outras são assustadoras, fantasmagóricas, sinistras. Muitas são abandonadas, inseguras e perigosas. Muitas são desconhecidas. No centro, nos bairros, em praças ou entre muros e edifícios, conectam sempre um lá embaixo a um lá em cima pra quem anda a pé. As escadarias são passagens oblíquas, espaços de mobilidade, articuladores essenciais nas nossas cidades. Para as topografias mais acidentadas, elas representam importantes conexões e atalhos na rede da mobilidade pedestre. Mas uma escada é muito mais que uma simples sobreposição de degraus que, organizados de uma determinada maneira, nos permite aceder a um outro nível qualquer, vocês não acham? Mais do que meros objetos funcionais e utilitários, elas apresentam um potencial incrível para a criação de uma rede de es289


paços públicos abertos, para conectar comunidades e oferecer locais para que as pessoas possam se encontrar, relaxar, brincar, jogar, se exercitar, fazer parkur, cair, se quebrar e desfrutar vistas deslumbrantes. Além de subir e descer, pode-se sentar, ficar aí, fumar um crivo, pensar um pouco, um béqui talvez, conversar, beijar, fazer um grau, ser assaltado, encontrar amigos, conviver, ou estar em estado de puro e delicioso ócio. Um degrau pode vir a ser um banco, um patamar se transforma num palco, um lance inteiro de degraus vira uma plateia! Toda corriqueira travessia de escadas é uma potencial experiência estética já que há um envolvimento de todos os nossos sentidos, atuando de forma sincronizada. Para além da sua forma, do seu tamanho, ou daquilo que também encerra, a escada é um elemento que introduz uma outra dimensão na maneira como ocupamos o espaço. Na verdade, seja para a percorrer, seja para nela permanecer, a escada obriga a um movimento e a um contato deliberado com o corpo do seu utilizador. É nesse contato que cada escada encerra uma experiência própria.35 Na subida, há um movimento quase involuntário do seu corpo, que se inclina ligeiramente para a frente, mantém uma perna apoiada e equilibrando todo o peso, enquanto a outra perna

35. RODRIGUES, Sérgio Fazenda. A casa dos sentidos: crónicas de arquitectura. Lisboa: Uzina Books, 2013. 290

se levanta e vai apoiar-se no degrau acima. O movimento se repete enquanto os seus olhos passeiam pela perspectiva ascensional. Você sobe. Você não tem espírito esportista, é fumante, a respiração se acentua, o coração bate forte, o sangue circula, a face enrubesce, a axila transpira. Já ofegante, você para. Toca o corpo da escada, segurando um firme corrimão de madeira ou uma frágil guarda metálica, na tentativa de recuperar rapidamente o fôlego. Você para, olha e respira, e torna a subir, esforçando os passos à altura dos degraus. Deslizando na pedra já amaciada pelo tempo ou hesitando perante um possível assento. O movimento que a escada gera é uma repetição: Subir e parar. Parar e girar sobre si mesmo. Voltar a caminhar uns passos e continuar a subir. Subir e parar. Uma noção de tempo semelhante ao processo de purificação em algumas religiões. Ascender.36 A ascensão de uma escada, esse movimento de subida, de elevação, é símbolo místico e onírico de tudo o que liga o debaixo com o de cima, o céu à terra, o profano ao sagrado, o corpo ao espírito. As escadarias imensas que levavam a templos antigos localizados em morros ou colinas, faziam a transição entre vida terrena e espiritual. Ao mesmo tempo, a escada monumentaliza o templo, ela compõe os cenários da grandeza, ela é cerimonial e, mais que um objeto arquitetônico prático, se consagra também como símbolo de poder. Quem está em cima e quem está embaixo?

36. Pedro Cabrita Reis, escultor, citado no livro de Sérgio Fazenda Rodrigues. 291


As escadarias têm esse estranho poder de provocar sensações: quando você chega ao pé de uma escadaria, ao olhar para cima, você vê aquela grande quantidade de degraus posicionados à sua espera. O que você sente? Muitas vezes as escadas abandonam a racionalidade utilitária para se transformarem em um personagem fantasmagórico, misterioso, dramático. Jogo de luz, penumbra, um vulto se aproxima, ouve-se o som dos passos de outrem. Estranhamento, desconforto? Você fica atento. Adrenalina, endorfina, serotonina… substâncias que compõem o movimento de atravessar uma escadaria. A atenção ou o tempo que a escada nos requer, o esforço ou o prazer a que ela nos entrega, não nos remete o olhar, apenas, para lá dela mesma. A escada, de uma forma mais evidente, no tempo que se demora a percorrer, na forma como somos conduzidos, ou no toque a que estamos obrigados, cria uma relação própria que nos impele a olhar com ela, ou através dela.37 Seriam elas elementos mágicos na cidade? Elas estão ali, num plano diagonal, esperando para serem percorridas, cumprindo sua missão de nos elevar do chão. Mas não é só isso: ela sempre nos esconde algo e subitamente pode nos surpreender com o inusitado. O que pode numa escadaria acontecer?

A proposição do arcano Muito simples: Nessa lua nova, a Cigana propõe que as escadarias sejam interrogadas, examinadas, tateadas. O que há nas escadarias que nos comove? Subir, descer, parar, ofegar, é a proposta. Que outros movimentos mais são possíveis? Um mapa interativo38 foi construído pelos arcanos urbanos39 na tentativa de ser percorrido e ampliado. Veja como Porto Alegre possui muitas escadarias conhecidas, mas muitas desconhecidas também. Escolha seu circuito, inclua alguma escadaria desconhecida nele, e voilá! Habemus arcanus! As estrelas do arcano A pontuação do arcano segue a pontuação clássica das estrelas. Mande o que você pode fazer dentro do seu pequeno possível.

Boa nova! Invisível!

oPtCHá! 3 8 . h t t p s : / / w w w. g o o g l e . c o m / m a p s / d / u / 0 / e d i t ? m i d = 1 E A e Q N Wu VG8B_t9pGoXeS_SQq71Rw0HoQ&ll=-30.035261832114287%2C-51.21090655456692&z=12

37. Sérgio Fazenda Rodrigues. A casa dos sentidos: crónicas de arquitectura. Lisboa : Uzina Books, 2013. 292

39. Eu gostaria de agradecer a tribo de bikers que se tornou usuária de todas as escadarias possíveis da cidade. Graças à essa tribo que escuta Nirvana, encontrada ao acaso, esse mapeamento foi possível! Estrelas para eles!!! Eles foram encontrados aqui: https://www.youtube.com/watch?v=o-1n3NG6G88 293


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Saí de casa disposto a intervir. Pensando na textura rugosa dos degraus de pedra, peguei uma graxa de sapato e coloquei na bolsa. O encontro com as escadas completaria a ideia do que fazer. Alguma emoção me tomou enquanto me aproximava daquele lugar – escadaria da minha infância, que me fora revelada em passeios com a família, em derivas que fazíamos para descobrir o bairro, então novo. Poucas vezes voltei a ela. O fim da tarde quente e limpa me lembrou desses passeios de outrora. Tudo está igual, mas está diferente. A vegetação ficou mais densa e verdejante depois de uma limpeza que fizeram na orla, há alguns anos atrás. O local se transformou. Se parecia muito com o que eu conhecia, mas, ao mesmo tempo, parecia outro lugar. A escada, na verdade, são duas e, entre elas, há uma ponte sobre um riacho, o Kruze. Ao chegar, fui surpreendido por um grupo de quatro motoqueiros fazendo um rally. Eles desceram ruidosos pela rua do outro lado do riacho e Kruzaram inesperadamente pela escada. Esse local, apesar da importância da passagem, é praticamente deserto e, além dos motoqueiros, ninguém passou por mim enquanto estive ali. Absolutamente ninguém. O silêncio ribeirinho era quebrado apenas pelo marulho do riacho. Meu corpo entendeu que não havia perigo algum, se a mente ainda tinha dúvidas. Aproveitei então para sentir bem o ambiente. Sentir a subida e a descida. Fiz isso três vezes. Haja resistência, poucos aguentam subir e descer três lances de escada toda hora. Isso me inspirou a escrever com a graxa, quase no topo da 296

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escadaria, a frase “tá quase”, na esperança de servir de incentivo para o passante cansado. O clima e até mesmo a vegetação mudam na ponte. A ponte representa o alívio e o convite à contemplação. A vista é bonita! O arroio foi limpo mas ainda conserva um aspecto selvagem. Se aproximando da ponte, chama a atenção um cheiro, difícil de definir. Um cheiro molhado. Com notas de esgoto. Nem tudo é como parece: apesar do aspecto limpo, o arroio é extremamente poluído. Na chegada da ponte, escrevi “respire”, afinal, uma etapa da subida termina ali (pronto, pode respirar), e assim, quem respira acaba também apreciando aquele odor que, mesmo incômodo, faz parte dessa paisagem, desse lugar tão particular, tão improvavelmente agradável. Uma última olhada para trás. Uma foto.

Sob um sol de setembro, nos pusemos em fila aguardando. Tínhamos ido ver uma peça itinerante a zero reais – bem de acordo com nosso bolso. O ponto de partida era a escadaria da Igreja das Dores. Chegamos as duas, aquosas StellaDiver e Ana Luz, pela Riachuelo. Entramos por trás, mas não conseguimos chegar a tempo de pegar os fones que nos conectariam com a narrativa da peça. Éramos muitos, éramos ali o excesso do público. O que fazemos Ana Luz? Entramos na igreja. Era fresca. Escura. Bolha de silêncio com ecos e estalidos dos bancos, algumas senhoras a rezar de joelhos e de olhos fixos em alguma imagem de deus que eu não via.

Decidimos acompanhar o grupo mesmo sem fones. Irrompemos fachada a fora e caímos na luz do sol. La estava ela: Arcânica escadaria. Descemos um lance. Olhamos pra cima. Vimos a igreja toda branca, venerável ordem de nossas dores. Sentamo-nos então nos degraus. Não sabíamos ainda se seria possível acompanhar a peça. De toda forma aguardamos, queríamos andar com ela. Nos fazia falta esse ar de teatro. Parada 1. O movimento cênico começa nas escadas e já sentimos a atmosfera da expressão transformadora se aproximando. A escada vira palco. Uma mulher entra em cena. Usa uma saia longa que se esparrama nos degraus. Gesticula lentamente, move braços e tronco com delicadeza, sem sair do lugar. Mas quando olha para trás, vemos que parece ter os olhos machucados. Cristal Kandisnky chega tarde e, como não distingue os contornos demarcados de um palco, preocupa-se com a nossa posição na escadaria: “será que a gente tá interferindo na peça?”. Digo que não, mas ela duvida e, assim, nos separamos pois ela não se conforma com aquela irregular maneira de ser plateia. Há corpos e colchões no patamar da escada. Os corpos se movem, nós não ouvimos a narrativa. Apenas assistimos os gestos, ouvimos os ruídos que emitem os corpos dos atores e bailarinos no atrito com o chão. Há disputa. Há conflito. Os corpos parecem querer ficar juntos. Mas ao mesmo tempo parece que lutam entre si. Não entendemos. A peça segue seu itinerário pela Andradas. Saímos andando com ela. Quem tem fone escuta. Nós não.

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\alguns movimentos são tão pequenos que chegam a ser uma afronta. ou /“a arte evoca um mistério sem o qual o mundo não existiria.” -rene magritte

26/09/2018 {nem sabiam que eram ali, o encontro de personagens oceânicos. então, quando novamente a cidade foi mar, eles nem perceberam.} \ tão emaranhados estavam os fios da minha rede e eu nela presa, afundando com o peso das demandas do mundo e me debatendo em graves tons de revolta contra a ignorância imperante em todas as esferas. não há ignorância maior do que aquela que nega a liberdade. haja luz para produzir uma tese, haja clareza em meio a tanto absurdo. essa tese chora quando tem que chorar, grita quando tem que gritar, cala quando sente que não é obrigada, e sorri sempre que pode. e hoje foi dia de stella ir pra rua por tempo indeterminado. a cidade, dei pra ela. ela finalmente vestiu sua pele neoprênica. mergulhadora. um personagem difícil, que se recusa, às vezes, a estar na superfície da vida, a ser encontrada, incorporada. como dar a stella uma existência possível? o que pode uma mergulhadora de abismos querer na cidade? o que ainda pode ser desejado

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nessa coisa que chamamos cidade? porque ainda, e apesar de tudo, cidade? {a cidade sertão, num piscar de olhos, tornou-se mar, ou foi num leve desvio do olhar?} / tinha medo de escrever, de não saber, mas só se escreve movido por isso. assim, se escreve, como o fogo que queima. aconteceu. em busca dos outros, apenas ia, em tempo que não conseguia sair do lugar, mas o lugar se moveu. era urbano, era outro, ainda não tinha forma. um movimento brusco, uma queda de latitude. quando já era sul, fui me encontrando. não era fácil, era outro lugar, mas também não era difícil, estava só sendo. dias atrás tinha conversado com uma estrela, dizia ela que ia ser coisa de jogo, papo de carta, vida de troca. ela disse que seria. assim começou, lá pelas bandas do sul, em meio ao desconhecido e uns lapsos de lembrança. a conversa era menos sobre e mais pelo espaço. mas não era próprio, era estranho e, ao mesmo tempo, comum. chamam cidade, chamamos cidade e a cidade nos chamou.

[19:23, 25/9/2018] joaquim: opa, tudo bem? aqui é o joaquim, aquele que tem interesse em jogar os arcanos urbanos [19:25, 25/9/2018] stelladiver: oi querido bem vindo a poa [19:26, 25/9/2018] joaquim: 304

valeu :) [19:26, 25/9/2018] stelladiver: vamos ver como vai ta amanha. por mim podemos bos encontrar com chuva ou sem. e ai a partir disso decidimos o destino da errancia [19:27, 25/9/2018] joaquim: pode ser, vou estar no instituto goethe, termina às 21:30 podemos nos encontrar aonde? [19:28, 25/9/2018] stelladiver: pode ser por ali mesmo tem pelo menos umas 3 eacadarias perto dali [19:28, 25/9/2018] joaquim: beleza :) tem alguma recomendação? [19:28, 25/9/2018] stelladiver: q horas comeca no instituto e o q vai ta rolando la? talvez chegue antes eu vou levar um mapa da cigana p nos [19:30, 25/9/2018] joaquim: noite (local: instituto goethe) 19:30 – 21:30 – aura e memória. “o fecundo poder da reprodução técnica como arte de testemunhar” - prof. márcio seligmann-silva (unicamp) [19:31, 25/9/2018] stelladiver: ta. vamos fazer essa imersao em benjamin e eacadas eu pilho aparecer por la mais cedo pra pegar essa fala. quem sabe nos contagia o role

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[19:32, 25/9/2018] joaquim: haha beleza [19:32, 25/9/2018] stelladiver: qqr coisa só mandar mensagem por aqui! bom evento p vc [19:33, 25/9/2018] joaquim: valeu até amanhã :) [19:33, 25/9/2018] stelladiver: ate!

{um torcicolo terrível acompanhou stella naquela tarde. achou que ia perder o seu pescoço. chegou a chamar o rolê de arcano do torcicolo e fez um croqui da carta. o desenho, que ficou mais parecendo uma vagina, no entanto era o seu torcicolo perfeitamente desenhado ali. latejante, imobilizador.} \ stella é capaz de me mover o corpo, apesar de tudo. stella é a minha melhor chance. peguei um c3 e fui lendo as primeiras páginas de nadja no caminho. [...] mais importante ainda que o encontro de certas disposições de coisas para o espírito me parecem as disposições de um espírito em relação a certas coisas, duas espécies de disposições que regem por si mesmas todas as formas de sensibilidade.40

40. BRETON, André. Nadja. Rio de Janeiro: Imago, 1999, p.16. 306

{joaquim tinha passado o dia falando e ouvindo sobre os livros, a escrita, a filosofia, a arte e a cidade. sobre um cara que tivera vivido tudo isso na carne, tanto na mortalidade e finitude da vida, quanto na permanência e infinitude da linguagem: walter benjamin, aquele que disse sobre a experiência dos narradores: comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa escada. uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens – é a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o mais profundo choque da experiência individual, a morte, não representa nem um escândalo nem um impedimento.41} / estava cansado de tanto ouvir, as palavras se amontavam dentro da cabeça, o corpo se comprimia para atender as demandas soberanas da razão. era muita filosofia. eu gosto, mas porra, era muita. num instante, as palavras se tornavam bárbaras, regressavam ao sentido silábico, em vias de comporem outras línguas. precisavam de ar para se recomporem, esvaziar um pouco para ter espaço e fazer algum sentido novamente. o fora-urbano era um convite à abertura, a pensar menos com a cabeça, e mais com o resto.

41. BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 215. 307


os narradores são aqueles que trabalham com a materialidade da vida comum, partilhada, a palavra sem dono, mas que toca a todos. a escada como imagem da experiência coletiva, é o caminho que se percorre entre o alto dos céus e a profundidade da terra – sem o juízo entre o bem e o mal –, é a conexão entre polaridades e possibilidades que se abrem às vidas. conexão e trânsito. a escada é uma ponte entre mundos, um limiar entre o sono e a vigília, tornando próximo aquilo que parece estranho, fazendo que os avessos se toquem, os diferentes se componham. a escada é a abertura para os outros, pois, como diz heráclito, “a rota para cima e para baixo é uma e a mesma”, porém, “tudo flui e nada permanece”. o convite era percorrer a pele, a malha da cidade por essas conexões. foi dia de escadas e Esher mandou uma selfie. Relatividade: três planos de gravitação agem aqui verticalmente uns sobre os outros. três superfícies terrestres, vivendo em cada uma delas seres humanos, intersectam-se em ângulo reto. dois habitantes de mundos diferentes não podem andar, sentar-se ou ficar em pé no mesmo solo, pois a sua concepção de horizontal e vertical não se conjuga. eles podem, contudo, usar a mesma escada. na escada mais alta das aqui representadas, movem-se, lado a lado, duas pessoas na mesma direção. todavia, uma desce e a outra sobe. é claramente impossível um contato

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entre ambas, pois vivem em mundos diferentes e não sabem, portanto, da existência uma da outra.42 {e então foi bem assim: de diferentes espécies, dois peixes se encontram. como sempre, atrapalhados, soltando bolhas e agitando o fluido invisível das águas. eles nem imaginavam-se peixes ali. a consciência registrava as molaridades e as formalidades introdutórias. então logo há um embaralhamento de atenções, as pessoas no saguão, e já vai fechar a porta, e um fica dentro, e o outro fica fora, e já vai começar.} \ beija mim. assim escrevi no bloco branco, esquecendo que peixe era, sentada na escada lateral do auditório do instituto goethe lotado. entrei de gaiato no congresso de walter benjamin. hoje, toda despotencializada, tinha a impressão de que não conseguia mais ouvir nada, tudo era muita informação. aos poucos fui entrando na frequência certa, ou foi o palestrante que reduziu a própria velocidade, foi ficando mais falado – e menos lido na velocidade do pensamento puro, e aí pudemos coabitar. ouvi sobre apostas no nomadismo e vibrei um pouco na minha imobilidade de corpo arrastado. foram-me sendo apresentados diversos artistas e diversas obras, muitas delas de intervenções urbanas que se colocavam criticamente diante dos monumentos erigidos em

42. ESCHER, M. C. Gravuras e Desenhos. Hamburgo: Taschen (Trad. Maria Odete Conçalves - Koller), 1994, p. 16. 310

memória da opressão, no mesmo dia em que, em porto alegre, a avenida da legalidade foi devolvida ao general ditador. até esqueci que estava em arcano. esqueci-me também do peixe, que ficou do lado de fora do aquário. escrevi: beija mim. arte de testemunhar: em período de morte e degenerescência: 1) a esterilidade da crise = o sedentarismo 2) o outro lado da crise = a fecundidade A DISPERSÃO DAS SEMENTES! interromper o fluxo massivo da informação, desviar dos canais de comunicação em massa, dos afetos tristes. uma postura anárquica em relação à produção de verdades e de representações. recursos: oscilações, desvios, obliquidades, dissimulações, ironia. BRUXARIA! CIGANIA! / barrado pela lotação da palestra, lá fora, descansava. sentei-me em uma cadeira, ia pedir algo para comer, mas era caro demais, me abstive. estava animado para caminhar, curioso para jogar, mas, acima de tudo, interessado em conhecer aquela cidade, com os pés, pela noite, como estrangeiro e andarilho, não como turista. esperava, lá fora, o sangue descer da cabeça e irrigar o corpo, enquanto mais uma palestra rolava, lá dentro. terminou, o salão esvaziou, não vi a menina sair, fui procurá-la para jogar.

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\ quando saí, fumei um cigarro solitário, ainda era o corpo que recusava movimento. mas reencontro aquele outro peixe que vem de fora, de fora e de longe. Me despeço das pessoas, digo - vamo dá esse rolê? e partimos. levamos um mapa, mas era tão fácil chegar na escadaria ricaldone que nem foi necessário. alegorias cartográficas. carregava o mapa cigano das escadas. {os peixes desconhecidos se alinharam então e o fluído fluxo desaguou. e era curioso como, mesmo sendo estrangeiros um ao outro, foram se percebendo tão co-habitantes em sua zonas, seus campos e suas redes. mas isso só deu pra ver depois. antes, tinham que descer as escadas. caminhavam pela noite. stella dizia saber o caminho, tinha um mapa mas, no decorrer da conversa, foram só pisando e falando.} / umas olhadas. era bairro nobre, residencial, bonito, bem arborizado, calçadas confortáveis até, sensação de segurança e nenhuma alma viva na rua. vazia. luzes acesas dentro das casas. caminhos interessantes, pelo jeito, mas diurnos. andanças até as escadas, elas que guardavam algum mistério ou algum conselho. \ ricaldone. ali estava ela. tão pequena, tão curta, não era em nada semelhante à imaginação da cigana. desculpa cigana. não tem problema não. {o que interrogavam juntos era aquele “pilar” estranho. se demoraram, nadaram em volta, barbatanas 312

levemente agitando-se, inventaram teorias possíveis, fizeram perguntas, mas o pilar estranho não respondeu nadinha.} / a escada estava lá, vazia. uma conexão entre o alto e o baixo. meio às margens de todo aquele bairro, mas com sua função intacta. afinal, era para isso, subir e descer. sentar, às vezes. conversar e fabular, noutras. mas era isso: conexão. uma abertura para o trânsito. {caminhavam pela cidade por isso: conexão. a escada era uma isca para a sintonia dos peixes com o oceano, entre o micro-cosmos e macro-cosmos, os elementos e o urbano. então seguiram a nadar, foram atrás do que comer, e acharam pastéis e cervejas no fundo do mar daquele bairro caro onde foram parar. uma mesa na rua, pastéis e cerveja, dois peixes conversam como podem. ouvem-se e falam-se muito. suas paisagens começam a aparecer} \“e como você está se sentindo agora?”, aparece minha ira, aparece a revolta, as versões mais reais de toda fantasia, os inimigos que a tese não revela. ele fala da potência do inútil, sobre um terceiro grau de perda da experiência. ele fala das novas buscas espirituais. em conjunção com esse outro tão surpreendentemente místico, começo a reanimar meus propósitos. {o rolê seguia noite a dentro. voltaram a passar pela escadaria. decidiram voltar a pé até o centro. na materialidade espiritual, no desvio do uso, seguiram para baixo, agora, sem degraus. o cenário vai se transformando. a cidade vai envelhecendo, ao mesmo 313


tempo que vai se diversificando. pessoas nas ruas, umas por vontade própria, outras nem tanto. as camadas do tempo se sobrepõem aos letreiros no alto, as luzes são muitas. outras cidades. santinhos pelo chão, é tempo de eleição. a heterogeneidade dizia que estavam entrando no centro. encontraram oferendas em saquinhos vermelhos nas quatro esquinas de uma encruzilhada. pipocas por todo lado. pipocas e mais pipocas andradas a baixo. ele disse que nunca tinha visto nada parecido.} / centro. o lugar onde a cidade se contrai e as contradições riem da nossa cara. me pego dentro de um viaduto43, aquilo tinha muitas camadas, uma densidade temporal. stella conta dos que vivem e viviam ali e foram enxotados para outros lugares. marcas de uma cidade à venda, de um prefeito marqueteiro. nos negócios aquelas vidas não valiam nada. compraram as escadarias? não se sabia onde era o alto ou o baixo, mas se sabia que, de onde se estava, não se deveria sair. no meio da noite, caminhávamos, em busca desses acessos à vida. no caminho, antes da chegada na sua casa, mais uma escada44. essa tinha graffites, chegava a, quase, balbuciar algumas coisas. ela dizia que gostava. os de-

43. Operação de “limpeza” executado pelo DMLU e polícias, ocorrida em agosto do mesmo ano. A prefeitura anunciou que o Viaduto Otávio Rocha estava sendo “limpo” para receber um evento com food trucks. Notícia: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2018/08/02/viaduto-otavio-rocha-em-porto-alegre-fica-sem-barracas-e-moradores-de-rua-apos-acoes-policiais.ghtml 44. Escadaria João Manoel. Nessa mesma semana houve um mutirão para recuperação da escada. A comunidade local tratou de organizar a sua limpeza e convidou artistas para fazer grafitti. Notícia: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2018/09/29/ escadarias-revitalizadas-pela-comunidade-em-porto-alegre-se-tornam-atracoes-turisticas.ghtml 314

senhos, as cores... ela também fazia, era ato que compartilhava sem autoria. por que não intervir nos acessos? brincar com as maneiras de se subir e descer no mundo. quem sabe, quando se está de passagens, acabe por tomar outros caminhos!? o caminho ia se desfazendo, o arcano permanecia, murmurando... {descobriram-se peixes só no fim da noite. cada qual sentado num banco. olhavam-se de frente quando puderam enxergar-se finalmente escamosos.} \ obrigada. / obrigado você. por apostar, ainda, na simplicidade, na inutilidade e na singularidade da duração. por apostar na afetuosidade e no cuidado. por apostar no estado geral de nomadismo, seja no atributo do corpo seja no atributo do pensamento, como ferramenta de resistência e sobrevivência e sobretudo como linha de fuga instauradora de territórios possíveis. pelo amor pela comunidade pela comunhão pelo pequeno pelo mínimo gesto pelo possível por ainda apostar na cidade por considerar o desejo por uma virada de jogo pelo impossível 315


por você por mim por nós pelo outro por aquele que ainda virá

/ entre cartas, sorrisos e devaneios, algo resta sem resto. sobra uma místico-poética, um limiar dos loucos que, na noite e no jogo, saem da posição de cientistas, do afastamento do sujeito e do objeto, e vão viver um pouco disso que não é mais possível definir. algo que já chamamos de cidade, de metrópole, de urbano, mas que se tornou o vórtice dos modos de existir, uma condição de possibilidade de estar no mundo. se é assim, engajemos corporalmente nesta produção, pois, o fracasso da utopia da aviação moderna, que só via o mundo em planta baixa, exige uma topografia espiritual. as escadas são elementos deste tipo de experiência, um modo de viver em correspondência com o território, do mesmo modo, que devemos fazer a vida ressoar e transformar o território. as escadarias guardam segredos sobre as passagens, o mistério entre a diferença e a contaminação entre os mundos. em tempos em que se corre atrás dos outros com arma na mão para matar, fechamos os olhos, não conseguimos gritar e trememos por dentro, andar pela noite, se abraçar e conversar, sobre onde se está. é um modo de respirar, para que, pelo menos hoje, possamos viver, juntos, com os mundos, nas cidade, ainda.

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como bem poderia lefebvre:

ter

dito

nosso

amigo

em

comum,

A REVOLUÇÃO SERÁ URBANA, OU NÃO SERÁ.

às vezes parece-me que ficamos aflitos e possuídos por um desejo pelo impossível. a realidade a nossa volta, o mundo tridimensional que nos rodeia, é muito comum, muito sem graça, muito banal para nós. nós buscamos o não natural ou o sobrenatural, aquilo que não existe, um milagre. como se a realidade cotidiana não fosse enigmática o suficiente! na verdade, isso pode acontecer com todos nós que, de repente, com êxtase no coração, sentimos a rotina da vida diária se afastar por um momento. pode acontecer que, de forma contínua, nos tornemos receptivos ao inexplicável, ao milagre que nos rodeia. (...) nós não conhecemos o espaço. não o vemos, não o ouvimos, não o sentimos. estamos no meio dele, somos parte dele, mas não sabemos nada a seu respeito. eu posso medir a distância entre uma árvore e eu, mas quando digo “três metros”, esse número não revela nada de misterioso. vejo apenas as fronteiras, as marcas, não vejo o espaço. a coceira na pele causada pelo vento que sopra sobre a minha cabeça não é o espaço. quando sinto um objeto em minhas mãos, não sinto 317


o objeto espacial em si. o espaço permanece inescrutável, um milagre. a realidade à nossa volta já deveria ser, portanto, bastante inexplicável e misteriosa!45

\ mais tarde, naquela noite ainda, eu abri a página do arcano no blog e tive a certeza de que, se a cigana havia me dado a imaginar erroneamente a dimensão métrica da ricaldone, por outro lado, e por uma dessas coincidências mágicas que ela é capaz de multiplicar, ela já antecipava, em imagens premonitórias de abril, o encontro dos improváveis peixes em setembro. maktub. estava escrito. e se não estava, agora está.

45. ESCHER, M. C. in: TJABBES, Pieter (curador). O mundo mágico de Escher. Centro Cultural Banco do Brasil. Catálogo de exposição, 2010, p. 129. Disponível em: https://www.bb.com.br/docs/pub/inst/ img/EscherCatalogo.pdf 318

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ndo dae e d r e p á t s e ê c o V ade. nunca parou da cid dê-la para forças invisíveisrias, per desenfreada. Forças parasitá -

ganância s grandes negó kamikazes, do , as en íg er nc ca vos, do lucro mas especulati as nt fa s do , cios da do solo da terra, suga do ga su to ni m pacto ao infi humanidade, nu a e qu o nh mi ca urbano – o para sugar a ismo), escolheu (l ta pe ca o m co antias imatea em grandes qu -l tê er nv co e bitcoins, vida lares, ações ou dó s, ai re de partidos, riais ados, e não re tr en nc co m re para fica dos quais você ucos poderosos po de os mã s na us rostos, e r, nem verá se la fa rá vi ou a nunc tos devastaam com os efei rt po im se o uc que gerem que po as – contanto ic át pr as su dores de lucro.


Eu estava no radar dos cĂŁes. Parece que sempre estou. [continua]

XII 321


arCaNo XII a Porta


Disparado em 24 de abril de 2018 às 19:05 por arcanosurbanos Lua Crescente

verbo portar: como verbo transitivo direto, significa trazer consigo (algo) enquanto se movimenta; levar, carregar, transportar. Também pode significar estar vestido com; trajar, vestir, usar. Como verbo pronominal traz o sentido de agir, proceder socialmente; comportar-se. E como verbo intransitivo se refere a chegar a um porto ou lugar; aportar.

A porta se abre. Quem nos recebe é Fernando Fuão. Ele nos convida para um chá de ervas escuras, e com semblante enigmático, nos entrega o pergaminho de todas as portas46.

Parece que a porta porta um sentido para além da porta. E isso nós temos que suportar.

Toc, toc, toc.

Porta. Substantivo feminino. Frequentemente o utilizamos para nos referirmos tanto à abertura quanto à folha que fecha essa abertura. A porta é tanto o vão, a abertura, o umbral, como também é a folha, de metal ou madeira por exemplo, que se posiciona de maneira a abrir ou fechar o vão. A porta-folha oculta ou revela o sentido da porta-vão. Assim, a porta desempenha o binarismo do signo, do sentido do aberto e fechado, do visível e do oculto. A porta é um dispositivo que tanto pré-vê – com seus olhos mágicos ou câmeras – quanto privê – como sinônimo de propriedade privada, de privacidade, espaço íntimo, seleto – e que também pré-para uma passagem. Mais do que reparar no substantivo, façamos uma torção, e pensemos um pouco na relação da porta com o

46. Fernando Fuão. A porta. In: In: Vieceli, Ana Paula; Fuão, Fernando Freitas. (Org.). Coleção Querências de Derrida, moradas da arquitetura e filosofia – Vol. 5: A Porta, a ponte, o buraco, um orelhão. Porto Alegre: Pallotti, 2016. 324

A porta então, seria uma espécie de veículo, tal qual a metáfora, um elemento de deslo(u)camento, análoga a uma ponte que permite a passagem de um lado a outro. Portar, levar de um lugar ao outro, é transpor. Portar é sempre uma transposição, um transporte, para além. Dessa maneira, a porta é sempre um ando, um indo, um estando, um gerundiando, nunca se é ou se está realmente na porta, mas caminhando, atravessando. Há portas, portões, portais e porteiras. Não importa o que porta, importa que há portas para tudo. Há porta-tudo, porta-luvas, porta-retratos, porta-canetas, porta-aviões… Há importação e exportação (até de portas), há o porta-voz, o portable, os portáteis, o repórter, o porteiro. Portas de vidro que permitem ver através, portas de madeira, portas vitral, portas automáticas, portas de correr, portas levadiças, portas embutidas, portas vaivém. Há portas até com olhos, mágicos. Numa casa há portas externas, portas internas, internas do interno. Há também portas terríveis que nos conduzem ao inferno do humano, como as portas das prisões e as portas gira325


tórias dos bancos. Parece que o mundo todo passa, ou já passou, obrigatoriamente, pelas portas. Pelas portas, pelos portos, pelos aeroportos. Pelas aberturas enfim. As portas gestam o mundo, portam no transcorrer uma gestação. A mulher porta uma sagrada porta. Tudo passa pela porta do feminino. Ela é também a boca do rosto-fachada dos nossos edifícios. Não só a boca, mas também os olhos, os ouvidos, o nariz, a porosidade da parede e da casa. Os buracos é que transferem os odores, os sons, e as paisagens de dentro para fora e de fora para dentro. A porta é estrutura e fundação, por ela tudo sai e tudo retorna, se faz existente. A porta, o buraco, o vão, é a fundação da arquitetura, o fundamento do habitável. Não é a fundação de pedra, ou estaca cravada na terra, ou mesmo a parede, que define (encerra) o sentido de morar, o involucro incomunicável, mas sim, a abertura que se faz nela, a abertura ao mundo. Sem porta não há arquitetura, não há existência. Ela é o sentido, sentido sem sentido. Inegavelmente, as portas têm um grande poder de atração. Elas são sedutoras. Atraem para si tudo o que caminha e tudo o que deseja atravessar uma fronteira. Elas são como um gargalo que traga tudo em seu redemoinho, traga controlando, como um registro, um diafragma. A porta constitui-se como um lugar limite, uma borda,

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umbral, sombra, uma fronteira; aberta ou fechada, ela é sempre o anúncio de uma fissura, uma fratura na continuidade do espaço. Situar-se em frente a ela é colocar-se no limite do espaço da espera, da chegada. Uma porta aberta revela um interior, a entrada na penumbra dos interiores. Nesse estado, ela junta, conecta e comunica mundos, espaços ou situações. Ela transporta o que está lá para cá, e o que está aqui para lá, trazendo a novidade. Quando fechada, encarrega-se de ocultar, guardar mundos, espaços ou situações. Nesse estado, ela é o próprio abismo da comunicação. A porta conecta, mas também separa. A porta aporta mas também aparta. Fechada, ela é tal qual a muralha. Às vezes quer ser muro sem poder ser, porque tem que se abrir e fechar, segundo um desejo que não lhe pertence; às vezes quer ser parede e, tal como uma porta secreta, se disfarça. As portas controlam o que entra e o que sai. Elas são reveladoras das hierarquias e do quanto estamos todos, cada dia mais, compartimentados, seccionados, isolados nos espaços contemporâneos mediados pelas portas. E os cadeados, as chaves, as senhas? Quem as possui? Quem são os que chegam e que atravessam? Quem são aqueles para quem as portas estão sempre fechadas, embora cinicamente abertas?

Como vemos, a porta não é inabalável em seu sentido. Elas mudam de significado a cada vez que batemos nela. 327


Proposição do arcano: Por quantas portas passamos diariamente quando vivemos numa cidade? E que portas são essas? Quais estão fechadas ou abertas? E para quem se abrem ou se fecham? A semana do Arcano XII convoca a todos os jogadores a interrogar portas, sejam elas óbvias ou nem tanto. A ação do Arcano XII não está clara. Ela é, em si, uma abertura, de maneira que cada jogador precisará investigar e inventar um modo de se relacionar com os seus portais cotidianos. Na dúvida, bata, toc toc toc. Veja se as portas se abrem, veja que territórios elas comunicam e contem para a Cigana. Quem sabe conseguimos juntos revelar esse mistério urbano.

*Nessa semana, a PF divulgou a operação GATEKEEPERS47 que apura fraude em fundo que administra recursos de obra do nosso Cais Mauá, que também é uma porta nesse nosso Porto Alegre… apenas para constar, e questionar, quem são os keepers dos nossos portais urbanos….

Uma saudação especial a todos os errantes! Que os portais do mistério se abram!

As estrelas do arcano: Para receber as estrelas da Cigana é só enviar os elementos que você puder recolher dentro do seu pequeno possível.

oPtCHá!

47. https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2018/04/pf-apura-fraude-em-fundo-que-gerenciou-recursos-para-obra-do-cais-maua-cjg6g6mg9019101qo3hrd5ckg.html 328

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Faz tempo, e foi há tempo, mas o que é o tempo?

Portávamos uma porta?

Porta. Limiar entre um dentro e um fora.

Curioso trajeto, por calçadas estreitas e ruas movimentadas. Nele, alguma confusão (troca de senhas?) na percepção de um rapaz de cabelo comprido (“deixa as meninas trabalharem”). Se fosse o cabelo uma senha, portá-la abriria espaço para uma experiência limiar? Mas não era uma porta (ou só uma porta), era um tapume, e também parecia uma placa ou cartaz – e aquele “trabalho”, “trajeto”, “frete”, também era então uma manifestação ou intervenção. Tão indignados estávamos, esquecêramos o que protestávamos. Proporíamos aqueles na rua que projetassem ali sua demanda. Para portarmos a indignação que se produzia ou se transmitia na rua.

Como uma narrativa – todo contar também faz limiares. Então permita-me que conte. Uma porta é, me contam, por onde se começa. Por onde começar? Fora no mínimo estranho a entrada nessa história. Saia de uma reunião, pensando em como entrar numa próxima reunião na mesma instância. Mesma porta, outras entradas? Pensar umbrais pode ser confuso quando se acrescem ao espaço tempo e intenções. De todo modo, discutia essa entrada, estando no umbral de uma porta, e uma chamada serve de entrada ou passagem para outro movimento. Um convite. Para carregar um tapume. Que fazer? Na hora marcada, constatar o atraso de minha parceira de carregamento, e aguardar na porta da loja. Uma porta que não convida a nada. Então deixo a porta, dou uma volta na quadra, e um senhor que fazia da calçada sua habitação me para pra uma conversa – sobre pedras, sobre outras cidades, sobre senhas para acesso a diversos lugares. Senhas, portas que são palavras, códigos. Que senha abriu a conversa (e que senhas abrem ou fecham a cidade a esse senhor que não podia enriquecer de pedras)? De que me adiantam as portas quando não se encontram as chaves? Voltei à porta não convidativa. Eu e minha parceira de carga tomamos um tapume e fomos carregar até o prédio onde ela residia. Não podia deixar de reparar que o formato do tapume (ainda que dependendo do lugar não passasse pelas portas) lembrava ele também uma porta. 332

Ao fim, o tapume (essa porta travestida passava na porta, mas não na porta do elevador. Eis que se tem de subir de escadas – formando, a cada andar, uma barreira aos outros – porta temporária. Mas o tempo da cidade não me permite mais me demorar nas portas (o tempo, lembro de criança de subir pelo vão da porta, pra matar o tédio). É tempo de fechá-las e correr a chave. Por hora.

De: arcanosurbanos@gmail.com Para: traditore@formigas.com Em: 9 de julho de 2018 19:52 Assunto: arcano da porta

Optchá Traditore. Rapaz de cabelos compridos que embaralha as senhas e carrega a porta-tapume que não passa por todas as portas, pela amizade... 333


Raparigas carecas também movimentam senhas, agitam algumas línguas que gostam de dar opinião, aquelas frases de efeito que faz-se de tudo pra ouvir o menos possível. Carregar uma porta performando o próprio umbral na cidade. Braços, músculos, sustentando a estrutura/cobertura de madeira (composto de madeira? Madeira processada? MDF? Presunto? Mortadela?) Uma cena dada apenas a imaginar. Muito embora fosse interessante ser uma mosquinha espiã na paisagem, pra ver o povo deixar as meninas trabalharem.

Toda porta é uma parede, e também um segredo. Muitas vezes, ela esconde um segredo por detrás e, muitas vezes, só abre com um segredo desvendado (o girar da chave). Então as portas povoam o imaginário, e quase sempre despertam a curiosidade. Porque elas escondem, protegem, mas também dão o acesso. São portais. Um estudo diz que o ser humano tem tendência a esquecer-se de coisas quando passa por uma porta48. Se eu

48. A pesquisa é da Universidade de Notre Dame, que fica em Indiana nos Estados Unidos, e sugere que passar por uma porta é a causa de lapsos de memória envolvendo objetos. Pesquisas anteriores já tinham mostrado que a memória é fortemente afetada por fatores ambientais: informações aprendidas em um ambiente, por exemplo, são recuperadas mais facilmente se estivermos naquele mesmo contexto. É por isso que faz sentido refazer seus passos quando você está tentando lembrar onde guardou suas chaves. Mas de acordo com esse novo estudo, as portas atrapalhariam esse processo. O autor, o professor de psicologia Gabriel Radvansky, explica: “Entrar ou sair por uma porta serve como um ‘limite de evento’ na sua mente, separando episódios de atividade e arquivando-os”. Assim, recordar a decisão ou atividade que foi feita em uma sala diferente 334

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tenho uma ideia, e levanto do meu sofá para ir até meu quarto buscar alguma coisa, é possível que me esqueça, em algum grau, de alguma coisa relacionada a essa ideia. Não é à toa que chamamos de portal, qualquer acesso abstrato a um outro mundo, uma outra realidade. Não é possível adentrar a um outro mundo sem deixarmos alguma coisa de nós para trás. Mas as portas. As portas são parede. Mas elas são mais que a parede. A porta não é estrutura. É acesso. Protege, mas, à diferença da parede, pode ser arrombada. Elas têm personalidade própria. São personalizadas com o estilo da construção onde elas estão inseridas. Antes das campainhas, existiam as aldrabas. Economizavam mãos. Mas o que sempre acompanhou e acompanha as portas, com ou sem aldrabas, é o toc toc. E se pudéssemos animar uma porta, qual seria o seu desejo? Abrir, não abrir, ou, simplesmente, ser batida, ser tocada? Com esta ideia saí pelo bairro olhando para portas. As que mais me chamaram a atenção, que mais me provocaram a curiosidade de saber o que havia por trás delas, colei um papelzinho. ‘Bata sem entrar’. A superstição nos recomenda bater 3 x na madeira. Portas são de madeira. O bater na porta pode ser o anúncio de uma coisa boa. Ou de um coisa ruim. Um pé na porta

se torna difícil porque a memória foi compartimentada quando você passou pela porta e mudou de ambiente. RADVANSKY, G. A., KRAWIETZ, S. A., & TAMPLIN, A. K. (2011). Walking through Doorways Causes Forgetting: Further Explorations. Quarterly Journal of Experimental Psychology, 64(8), 1632–1645. Disponível em: https://doi.org/10.1080/17470218.2011.571267 336

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é um bater que quer entrar a qualquer custo. Depende da intensidade. De porta em porta, colei um papelzinho discreto. Quantas destas foram batidas por alguém depois de ler o papel? Alguém leu? Certamente que sim. Alguém bateu? Muito provavelmente. Todos temos um lado criança, que gosta de travessuras. Escondemos esses desejos nos confins da alma adulta, mas um pedaço de papel permite isso. Uma ordem que valida um desejo, e desperta ele. Bata, pode bater.

(Continuação) (A peça de teatro itinerante zero reais acabou nos levando, ao fim de uma bela perambulação pelo centro, para um grande portal) Parada 2. Andradas com Padre Thomé. Mulher de vestido rosa dança com homem de colete cinza. Milicos passam olhando ao fundo da cena. O grupo que segue a peça é denso, silencioso e concentrado. “só sei que minhas varizes estão doendo” Parada 3. Não vejo nada. Telefones tocam. Parada 4. Altura da Bento Martins. Não vejo nada. Apenas o semáforo. A cena acontece nas janelas do edifício. Os atores aparecem em renda preta, sensualizando. Estamos próximos de um orelhão. Os atores gargalham lá em cima. Pessoas nas calçadas tradicionais chocam-se, algumas paralisam, outras reagem. Ouvimos comentários, nós que não usamos fones. “tem muita coisa pra ver ainda” diz o senhor gordo sentado na cadeira de

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plástico do bar da esquina. Parada 5. Casa de Cultura. Na travessa sob a passarela do antigo hotel Magestic, canta-se. Algumas pessoas sabem cantar a música. Cantam junto. “gente caminhando... de azul vermelho...” e não sei o que. Quero ir mais rápido, mas o grupo afunila na calçada. Vou pela rua então. Olha esse buraco! 17:06 / 11º (mentira do relógio, deve estar uns 28 graus). Parada 6. Esquina com a João Manoel. Sobre uma marquise circular um homem negro se agita trêmulo. Abre a boca. Se sacode. E ri. Rua acima eles dançam. Nós não ouvimos a música. O trânsito interrompe para o teatro passar. Não tem EPTC. É interrupção informal. Um caminhão passa na Andradas e nos deixa temporariamente sem visão. O teatro causou engarrafamento. Desceram a João Manoel correndo e gritando e nós aplaudimos. “que loucura tchê”. DIFICIL CAMINHAR. DIFICIL CAMINHAR E ESCREVER. PISO NOS PÉS, QUASE CAIO. Quase. Parada 7. Caldas Júnior. Bandeiras de partidos políticos. Luciana Genro distribuindo panfletos. Pintores de rua. Praça da alfandega. Vendedores de vinil. “ta sendo pago pra caminhar?”. “alguém morreu?”. Sentei-me no colo de Carlos. O Drummond. “Rosa! Ô Rosaaaaaaaaaa”. “ninguém ajuda a moça? Que jeito?”. “cadê essa mulher?”. “volta lindona”. Rua da ladeira. Novamente a cena se dá nas sacadas da esquina. Há um homem de cartola com uma pena na mão. “chip da claro em promoção!” Aplausos. ESQUINA QORPO SANTO. O teatro criou novos nomes para as ruas. “o teatro é a vida!”. “Chip da claro na promoção!”. POLIFONIA pegando! “Película de vidro coloco na hora!” Nas paredes lemos: NÃO HÁ TEMPO A PERDER. “não tenho dinheiro, não sou rico, mas eu tenho (inaudível).” 17:29 / 25º. Edifício For-

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ça e Luz. Lua crescente aparece gorducha e convexa no céu enquadrado. Já não vejo mais a peça. Caminho e ouço. “pelamor de deus... é o complexo da maré? faz no rio!”. Cheiro de borracha queimada. “promoção”, “chip da oi”, bandeiras de partidos políticos. Parada 8. Esquina Democrática. “tão exorcizando alguém aí?”. Três artistas dançam presos em cordas. “acho que somos um happening”. “caminhada do Bolsonaro? Éeeee, caminhada do Bolsonaro.”. Provocou um passante vindo pra cima. A gente sente a agressividade no ar. Parada 9. Mercado Público. Bandeiras de partidos políticos. Um homem acaricia as paredes do mercado. “o que é isso?”. Atravessamos a Praça Montevideo, pombas voam sobre nossas cabeças. Nessa rua disputamos calçada e ciclovia com os catadores e seus carrinhos de supermercado cheios. Eles vêm felizes e rápidos contra o nosso fluxo. Parada 10. Aplausos na frente do Santander Cultural. “é protesto?”. “isso faz parte ou não?”. “a criança tá confusa”. “é uma música de oceano”. “as reações são muito interessantes”. Parada 11. Maravilhosa luz atravessa esse antigo portal de Porto Alegre. Estamos diante dos museus, paisagem arcânica: ao fundo, o cais inacessível. Sob essa luz maravilhosa de setembro, em silêncio dança-se. Passa um carrinho barulhento. “como tá quente né?”. “deve tá uns 29 graus mais ou menos.”. “amanhã é dia 22, começa a primavera. Depois da meia noite.”. Passamos entre os dançarinos no chão. Seguimos em direção ao portal. Esperamos na calçada. O sinal ficou verde. Atravessamos todos juntos. “o dia que abrir esse cais vai ser bem massa”. “minha lombar...”. “a lua tá linda

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demais no céu azul. Deslumbrante”. “eu nunca entrei aqui, que emoção”. O PORTAL DO CAIS. Nem acreditamos. Vontade de rolar nesse paralelepípedo todo desenhado no chão. Que enquadramento lindo! Que céu. Que azul. Olho a água. Azul dourando. Tá rolando um barquinho em cena. O homem no barquinho se vai. Outro barquinho não cênico passa ao fundo. “eu ainda não acredito que cruzei o portal”. “é o portal do desejo”. Nosso desejo de cais. “aproveitar pra entrar agora, sabe-se lá quando vamos poder entrar de novo”. Sol direto nos olhos. A peça segue sem que a gente escute nada. Pra mim, já é suficiente. O grupo anda. A peça vai terminar. Aplausos. Olhamos para o cais. Um jet-ski faz manobras no guaíba. Ainda se aplaude. Fala-se algo. Eu já saí do grupo. Vim perto da água. Tá linda. Os reflexos. O barulho do barquinho voltando. O sol vai se por. Estamos com sede. Pavilhões amarelos e vermelhos incandescendo no entardecer. As texturas fabris, esses trilhos, esses desvios de linhas... Encontro um pavilhão aberto. Não sei onde foi Cristal Kandinsky, mas Ana Luz está comigo. Vem Ana Luz, vem! Entramos no pavilhão. Não resisti, não tinha ninguém olhando. O espaço era imenso, o chão era forrado de sujeira e vidro, estilhaços do abandono. A cor da luz preenchia o espaço e nossas vozes ecoavam. O cais se abriu inesperadamente para nós. Não resistimos em imprimir nosso movimento no espaço. Quando quase ninguém está olhando, o desejo tridimensional da vida é maior que qualquer conserTESE. Estávamos dispostas a correr e dançar sobre os cacos de vidro da realidade.

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Rio de Janeiro, 19 de abril de 2018 Sentei-me numa escada bruta de pedra, no interior do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Estava perambulando pela Lapa e fiquei sem bateria no celular. Entrei aqui pra carregar e aqui sentada estou esperando. Esperando vejo esse sol que entra pela refração de uma vidraça lá de fora. Alegria de luz. Misteriosa luz. Os raios avançam pelo incrível portão de ferro rico em detalhes. Portão por onde entram também as risadas deliciosas da rua. Me demoro desenhando esta porta antiga. Antigo... aqui tudo é antigo, a Lapa. Me surpreendi com a tranquilidade do centro. A violência deve estar acontecendo mesmo em outros territórios. Nos morros, nas favelas... onde não vou. Onde nem posso ir. Vejo muita negritude aqui. Porto alegre é mesmo muito branca, apesar de negra também. Sei que hoje tem jogo do Vasco, o taxista falou no aeroporto. É minha primeira vez no Rio e estou assumindo meu tipo de rolê nas viagens. Seguir os fluxos, descobrir, inaugurar paisagens, encontrar sozinha, com calma, sem pressa. Gosto de observar o movimento cotidiano. Tenho pouco interesse por tudo o que é turístico, e por tudo que me recomendam visitar. Aqui dentro do municipal Hélio Oticica, queixa-se com razão a porta de vidro:

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Como gostei dessa porta de ferro... Seriam boas-vindas de Oiticica? Os errantes me saúdam, pelo menos na minha imaginação... Encontrei a Cigana em um lambe, na rua aqui bem em frente. Vou juntando as pistas e coincidências e, com irregular tranquilidade, desenho um pouco do Rio.

Rio de Janeiro, 20 de abril de 2018 Vila Olímpica, fila pro show do Radiohead. Estou aqui diante dos portões, portões, portões, sempre eles... Sentada no chão cimentício, me acomodo dorsalmente no alambrado. No deslocamento da quilométrica da vinda, no BRT tive sensações olhando pela janela. Aquele tipo de interrogação da paisagem que o Guattari fala em Caosmose49. Guattari conta de que um dia caminhava com amigos em uma grande avenida em São Paulo e, ao atravessar uma ponte, sentiu-se subitamente interpelado por um locutor não localizável. Os amigos continuaram a caminhar e ele ficou lá, parado, tentando entender o que estava acontecendo com ele. Os morros do Rio, morros verdes, morros de pedra me interpelavam de uma maneira intensiva, não era só um maravilhamento da beleza, tinha uma coisa indefinida... algo me falava do âmago dessa paisagem. Demorei pra entender o que era de tão comum que fazia comigo. Era algo encantado. E de repente caiu a ficha. Era uma sensação de ordem perceptiva da minha infância que eu estava ativando, dos morros de outra cidade, numa outra escala, é ver-

49. GUATTARI. Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2012. “uma paisagem ou um quadro podem ao mesmo tempo adquirir uma consistência estrutural de caráter estético e me interrogar, me encarar fixamente de um ponto de vista ético e afetivo que submerge toda discursividade espacial.”. 348

dade, mas que meu corpo reconheceu. Esse meu corpo hoje também tem outra escala, e foram os morros do Rio que o colocaram à prova. Guattari usa a expressão “companheiro evocado”50 pra falar desse afeto abstrato que a paisagem faz levantar. A presença estranha que a paisagem do Rio evocava era um afeto abstrato e não trazia exatamente uma lembrança específica. Engraçado trazer Encantado pra cá, cidade de onde sempre quis fugir. Engraçado que a paisagem acabou carregando meu pai em memórias difusas. Logo que meu corpo me permitiu compreender do que se tratava essa sensação, acabei achando engraçado pensar nele aqui no Rio de Janeiro. O espaço é mesmo folheado, todo dobrado de espaços abstratos. E em outra dobradura já estava eu, seguindo na minha missão de cigana bruxa. Gravei algumas polifonias de ônibus “MM é doix! MM é doix reaix”, “ixtelinha é cincoa”; deixei uma lista de super no banco, mas um senhor me chamou pra avisar que eu “tinha deixado cair”. Obrigada, eu disse, e levei o papel, que depois voou sem querer pelos ares.

Rio de Janeiro, 23 de abril de 2018 Achei que ia ser uma viagem solitária. Acabei fazendo tantos amigos. Uma delas peixa (encontrar peixes é sempre, sempre, uma alegria). Nós compartilhávamos o temor da bicicleta e nos desafiamos a percorrer o Rio com as bicis do itaú. Sem medo, as peixas deslizaram da lapa até Copacabana, e no fim coroamos com um mergulho no mar. Eu nem tive mais tempo pra escrever. Perambulei até cansar; encontrei orelhões recheados de pornografia trans; perdi listas em cada supermercado 50. Idem. p. 138. 349


que entrei. Perdi algumas pelas ruas; fui a diversos outros shows de graça em espaço público; subi uma escadaria de pedra pra dançar e, na última noite, tomei um quartinho e uma bala e fez-se a luz. Vários brilhos perceptivos. A vibe espacializou geral e no fim da noite, no fim da viagem, a festa deu um círculo perfeito. Fechou no lugar que abriu. Em meio a risadeiras e brilhos e abraços, olhei pra cima e vi... estava de volta ao início: Municipal Hélio Oiticica. Ouroboros ligando a luz de uma tarde quente à obscuridade da noite fresca. Estava diante daquele mesmo lambe no qual encontrei uma noctivaga cigana dos errantes. Olhava praquilo tudo e só conseguia sorrir. As pessoas sorriam de volta mesmo sem entender que a cegueira labiríntica da errância desperta muitos acasos mágicos. Acompanhada desses novos amigos, ricas pessoas que também o acaso faz encontrar, passei em velocidade pelos arcos da lapa, esse portal gigaaaante, e seguimos escutando música no carro enquanto a paisagem deixava rastros de luz. Sentamos, por fim, em silêncio no muro da Urca. Me despedi do Rio. Aceitei que essa mágica era toda pra mim. Hoje acordei antes da hora, cheguei antes no aeroporto e estou me sentindo macia, voltando pra casa. Era pra ser apenas um show. Mas foi um rolê completamente arcânico. Uma coletânea de arcanos. Uma constelação de acasos maravilhosos.

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O vento fresco me atingia, movimentava a minha roupa e os meus cabelos. Eu quis abrir os braรงos. Eu abri os braรงos, e assim, abertos eu tocava em tudo o mais em que o vento tocava e fazia mexer. [continua]

XIII 353


arCaNo XIII ‘aQUI é artE’


Disparado em 1 de maio de 2018 às 23:42 por arcanosurbanos Lua Cheia

Lua cheia, jogadores! Emergem coordenadas no mapa Porto-alegrense! Mais uma vez um arcano maior nos leva para as águas. Numa ponte invisível com o arcano dos navegantes, novamente retornamos ao lugar de onde viemos, retornamos ao mar. No gigante mar sem forma, puro movimento líquido em diversas correntes, emerge um triângulo cujos vértices unem três continentes. África, América e Europa, o mar, as linhas, as feridas abertas. Trata-se da 11ª Bienal do Mercosul51. Em um mapa52, a Cigana mostra cinco coordenadas de lua cheia, mas pede atenção para as infinitas possibilidades entre elas. É o arcano das artes, mas não arcano do museu. Há o convite para visitar a bienal... “Mas o museu é o mundo!”, vem gritar na sua janela o cigano Hélio Oiticica. Você já leva um susto, e então a Cigana traz uma proposição de dois movimentos em um tempo, ou dois tempos em um movimento. A proposta é simples: primeiro, um mergulho profundo no mar

51. http://www.fundacaobienal.art.br/11bienal/ 52. A Cigana mostrava um mapa de Porto Alegre, com a localização dos museus e outros lugares onde a Bienal estava instalada: Santander Cultura, Memorial do Rio Grande do Sul, Museu de Arte do Rio Grende do Sul Ado Malagoli (MARGS), Igreja Nossa Senhora das Dores e Quilombo do Areal da Baronesa. 356

da Bienal. Preparem seus cilindros de oxigênio, calibrem as lanternas, o tempo de mergulho depende inteiramente do seu corpo estar disposto a submergir. A entrada desse mar se dá por qualquer uma das coordenadas indicadas no mapa. Distenda o tempo ao máximo e se deixe tocar. No mesmo tempo, ou em outro, no mesmo movimento, ou em outro (ou melhor ainda, ao mesmo tempo e no mesmo movimento!), um outro mergulho daremos, no mundo, na cidade, pra fora do mar de dentro, pra cidade que não tem mar. Não tem? Ah, então nós vamos arrastar o mar que entrou pelas artes nos museus até as ruas da cidade. Vem Oiticica, senta aqui e fala. O museu é o mundo! Como, onde? Na arte das ruas, das coisas inacabadas, daquilo que é espontâneo, anônimo, que nos olha, que nos convida a uma incorporação sensorial, suprasensorial, sensível. Abençoado pelo pé de Hélio, o Arcano maior ‘Aqui é arte’ faz transbordar os limites expositivos indicados no mapa. Elementos mágicos podem ser coletados/produzidos dentro e fora das dependências dos museus, no percurso entre eles e a sua casa, seu trabalho, ou qualquer lugar. Esse arcano maior é um espaço aberto e cósmico, onde o jogador entra e sai da posição de espectador ingênuo e encontra dentro de si mesmo a chave para mais um exercício experimental de liberdade53. Mas há que se invocar o outro cigano, que também entra pela janela de hoje, Paulo Nazareth, o cigano dos pés rachados. O 53. OITICICA, Hélio. Hélio Oiticica: museu é o mundo. Texto Cesar Oiticica Filho et al. São Paulo : Itaú Cultural, 2010. 357


Paulo fazia uma coisa interessante, que eu quero contar pra vocês.54 Em uma de suas séries mais antigas (2005-07), Paulo produziu uma série de panfletos que continham a inscrição AQUI É ARTE. Abaixo dessa inscrição, ele apresentava uma ou mais imagens fotográficas, documentando determinadas situações encontradas no espaço público, que Paulo elegia como obra de arte por meio do que ele denominou “decretos conceituais”, devidamente datados, às vezes indicando, inclusive, a validade do decreto e o período em que ocorria a situação em questão. Os pequenos textos descritivos que acompanham essas publicações são escritos de modo a emular uma linguagem rigorosamente objetiva e científica, embora seu teor seja puramente subjetivo e poético. AQUI É ARTE. DECRETO CONCEITUAL. Na Avenida Otacilio Negrão de Lima, número 17.397, Pampulha, Belo Horizonte, há um muro com um buraco por onde você pode ver o mato crescer durante o período de chuva. Mês: janeiro. Validade: Indeterminada AQUI É ARTE. DECRETO CONCEITUAL. Entre as 4h00 e 7h00 da manhã, vá à barragem da Pampulha entre as Avenidas Presidente Antonio Carlos e D. Pedro I, Belo Horizonte, MG / Brasil.

54. NAZARETH, Paulo et alii. Paulo Nazareth: Arte Contemporânea/ Ltda. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012. 358

Coloque-se exatamente em cima do escoadouro que dá para o Córrego da onça, um pássaro irá passar por baixo dos seus pés. Mês: janeiro. Validade: indeterminada55 Outras vezes o texto tendia a ser mais especulativo, insinuando reflexões que apontavam para outros desdobramentos do trabalho e deixando entrever a graciosidade de sua escrita, como na situação em que identifica um elefante através de um buraco no muro: AQUI É ARTE. DECRETO CONCEITUAL. Na Av. Portugal próximo ao Via Brasil, por um buraco no muro pode-se ver um elefante preso a nada por uma corrente. Ele balança o corpo como se estivesse dançando, dizem que dorme em pé; há também um camelo com corcovas caídas. O camelo é natural do Oriente Médio pode ficar dias sem beber água. O elefante é natural da Ásia e da África tem boa memória. O elefante asiático é trabalhador ajuda o homem em seus afazeres o africano é bravo, não serve para o trabalho, mas seus dentes tem grande valor comercial é por isso que ele se torna banguela (desdentado). Mês: Janeiro 2007. Validade: Indeterminada

55. NAZARETH, Paulo et alii. Paulo Nazareth: Arte Contemporânea/ Ltda. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012. 359


Então, jogadores queridos, depois de uma imersão arcânica bienalesca, saindo da exposição, a arte não acabou não! Esse arcano maior convida a buscar na cidade objetos, acontecimentos, paisagens, situações que vocês mesmos vão atestar como obras de arte. Bem assim, na maior liberdade, sem o menor compromisso, na vibe Paulo Nazareth: aqui é arte! Por quê? Ah, porque nessa rua tem um muro que tem um buraco no qual se pode observar a relva crescer quando chove. Aqui é arte! Pode ser uma foto e um texto (8 estrelas), pode ser um vídeo e um texto (10 estrelas), que revele um aqui que seja arte, que tenha uma duração. Sejam os curadores da exposição mais louca do mundo que é a vida nas cidades! Sejam vocês a obra! Sejamos nós um aqui que é arte!

uma das coordenadas desse arcano maior. Cada vez mais o jogo atinge a vertigem da refração das cartas! Há diversos arcanos dentro desse arcano para serem encontrados nessa experiência. Há portas, escadas, estrelas, flores brotando, alsfaltos, a Cigana tá impregnando o mundo e a mágica está cada vez mais presente. Quanto mais se joga mais magia aparece! Plim! Estrelas brilham para nós/em nós!

Proposição do arcano: A aposta é que um mergulho carrega o outro. Que o fluxo das águas que carregue nosso olhar! Que impregne nosso corpo e nos coloque em relação líquida com este outro corpo, o corpo da cidade. Que mistérios aparecem nessa dupla imersão? Arcano Maior, mistério maior. Quem poderá revelar? Aqui é arte? O mar vaza pra cidade? Vamos oiticiquear, nazarethiar! É tempo de abundância: as estrelas e a treva entre as estrelas, são para nós!

Mar! Felicidade! Sensação e Fortuna!

oPtCHá!

Estrelas do arcano: Não esqueça de ativar o Strava! O mapa vale 5 estrelas! E já adianto que há muitos arcanos menores escondidos em cada 360

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AQUI É ARTE. DECRETO CONCEITUAL. Aqui é arte porque eu saio de mim, saio do corpo, simples assim. Eu tô lá. Lá! Do outro lado da cidade; em cada esquina; em cada janela; em cada reflexo. Eu me sinto tão longe e perto desta vastidão de informações. Aqui eu passo despercebida. Sou formiga, talvez, nem lida. Aqui é feira menina, tem janela, a cidade acordando, a cidade dormindo, soluçando, rindo, evocando sons. A pequena cidade que ocupa um grande coração. Anatomia do corpo? Ou da cidade? Eu já não sei. Aqui é arte pois eu não encontro todas as palavras. As palavras, aqui de cima, são fracas. Isso mesmo, as palavras nunca dão conta de tudo. Daqui, eu preciso de coisas para além das palavras, das orações, das letrinhas e dos verbos. Aqui eu perdi o tino! Fiquei um pouco desnorteada, saí do lugar. Estilhacei. Aqui a palavra não traduz tudo, embora eu a use. É nessa arte que a cidade concebe a flor, da vida a luta. É por aqui que temos portas abertas, fechadas, sensíveis e visíveis. Daqui eu vejo escadas longe da equidade e da justiça, enxergo corrupção também. É nesse olhar, é nessa vigilância que o desconhecido chega, me sacode! Aqui eu fico nua, tiro as certezas do bolso, me descarrego. Deixo tudo lá, lá! Aqui eu já não sei se sou Tainá, Minerva, cidade. Sou várias, talvez. Aqui é arte porque eu erro, erro o tempo todo. Eu tento, eu estalo, eu perco a cabeça, eu danço. O silêncio vivo desse quadro extenso grita e faz ponderações. As vidas ardem, atiçam a curiosidade. Tudo o que sou já não faz mais sentido aqui de cima. Sinto outras coisas, outros sopros chegam. E é nessa arte que fico suspensa e teço cambalhotas. Emudeço. Mês: Maio. Validade: indeterminada.

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AQUI É ARTE. DECRETO CONCEITUAL. Na Rua Lopo Gonçalves, precisamente às 16:14 de qualquer dia no mês de março, a luz do sol incide nos fios emaranhados no endereço 486, de modo a projetar leves linhas sombreadas na parede clara. O que era confuso, o sol confunde mais ainda, e ninguém sabe dizer exatamente, ali, o que é fio e o que é sombra do fio. Ser ou não ser fio, ali, a essa hora, não importa mais. E você pode ficar ali parado olhando, até que a hora passe, o desenho alongue e suma, ou até que os postes de iluminação acendam e façam outro desenho, com luz artificial de vapor de sódio. Mês: Março. Validade: indeterminada.

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AQUI É ARTE. DECRETO CONCEITUAL. Nesta calçada da Rua Riachuelo, na hora de sair do trabalho, pode ser avistada uma escultura produzida a partir do empilhamento, aparentemente aleatório, de restos de material de construção. Fitas com listras amarelas e pretas foram brutalmente amarradas a pedaços de madeira que sofregamente se apoiam em sacos de areia assaltados por rejeitos de outra natureza. As fitas tensionadas entre tocos, arrebentam aqui e acolá, e deixam-se balançar com o vento sussurrando, de vez em quando, histórias de catástrofes apocalípticas. Alguns sacos de areia testam sua atenção para ver se você percebe que, dentro deles, também bate um coração partido. Mês: Junho. Validade: até a obra ficar pronta.

AQUI É ARTE. DECRETO CONCEITUAL. Na esquina entre as ruas Coronel Fernando Machado e General Auto há uma instalação temporária de uma gigante roda para hamsters imaginários brincarem. Como ninguém imaginou hamsters grandes o suficiente, a roda foi ocupada por serpentes escuras de plástico flexível que passavam por alí, e que resolveram se enrolar na roda para acasalar. No tempo de duas semanas novas cobrinhas escuras circularão pela rede de esgoto da cidade sem que ninguém as veja, até atingirem a maturidade e subirem à superfície para um novo ritual erótico enquanto uma lama estranha das profundezas escorrerá pela calçada. Mês: Novembro. Validade: até o fim do acasalamento das cobras.

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Tudo era tocado. [continua]

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arCaNo XIv OS caMInHos


Disparado em 3 de maio de 2018 às 23:33 por arcanosurbanos Lua Minguante

Jogadores, amores

Nesse findi agora vai estar rolando a 2ª SEMANA TRANSLAB. URB + 1ª JANE’S WALK PORTO ALEGRE 2018, e o nosso jogo se infiltrou nessa brincadeira! Extraordinariamente, maravilhosamente, vai acontecer um Arcano Urbano entre-luas. Um arcano intruso, invasor, que promete ser um dos melhores! Sem carta, sem desenho, sem pista nenhuma, sem texto, sem nada prévio. Saímos apenas com essa coordenada, data e hora: Sábado, 14h, diante do monumento de Oxum, em Ipanema. E o que vai acontecer? Eu não sei… mas muita mágica vai rolar e eu estarei lá esperando os ciganos que vierem compor! Todos estão convidados! Leva teu pé aberto e teu corpo sensível! Vamos nos encontrar finalmente!!!! u-hu

oPtCHá! 374

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De última hora, a mensageira revelou que o arcano se chamaria Arcano dos Caminhos. Caminhos cruzados, intersecção de presenças. O convite foi aberto aos jogadores e o evento Jane’s Walks também tratou de levar a ele outros ciganinhos desconhecidos. Nesta data, eu ainda não conhecia alguns jogadores, e esse foi o momento em que nos conhecemos todos.

Purqueeeeeeee eu não consigo narrar?? Eu não consigo narrar

Éramos doze e tínhamos feito os nossos caminhos. O início era o fim, o fim era também um começo, e os fins em si não importavam muito.

Eu falei e eles calaram de repente. Estranhamento nos rostos. Será que comecei errado?

Eu senti, e segurei meu corpo, enroscando com força as pernas para elas pararem de tremer. Nunca pararam. Na madrugada seguinte senti muita dor na perna. Na direita, que na praia agarrava a esquerda pra segurar ali toda a ansiedade de controle sobre um programa.

DES PRO GRA MAR MAR MAR MAR.... Desprogramar numa praia.

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Uma praia. Um mínimo gesto. Chegar. Sentar. Esperar. Ficar ansiosa. Fazer origami. Encher balão. Perceber que não tem como amarrar o balão. O balão vai fugir com o vento. Eu vou voar junto, vai tudo voar pelos ares.... -As pessoas estão chegando! Perceber que o origami vai ficar incompleto, não tem cola pra juntar 8 pontas de estrela cigana. -As pessoas estão chegando! Mas eis que na mochila da Formiga que traiu o formigueiro havia uma cola bic bastão. Das mãos artesãs da cigana Aurora o látex amarelo dos balões resolveu ser conexão de estrelas, e não balão. Os balões que sobreviveram foram fixados nas pontas dos gravetos que os ciganos mesmos foram procurar, a demanda virou coletiva. Muitas mãos a confeccionar. IMPROVISO. -As pessoas estão chegando! Achar que não vai dar certo. Tudo dá certo. Mas o que é o certo? O que seria dar errado afinal? A um certo ponto olhei aquelas estrelas prontas e lindas no chão, quanta mão! Rapidinho, junto se encontrou uma solução pra dar volume à até então bidimensional e virtual estrela dos arcanos urbanos. E o essencial em plano de fundo: -As pessoas estão chegando! Elas também vinham em três dimensões, carne, osso, presença, e uma cacetada de camadas e mais camadas de experiência coladas junto ao corpo. Arrastando tudo isso até a praia. Toda a nossa vida se compôs de tal forma que no dia 5 de maio de 2018, estávamos os 12,

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reunidos bem ali. Estrelas aos nossos pés, balão amarelo pra chamar atenção de Oxum, e dizer: viemos aqui. Por 12 caminhos. Um arcano dos caminhos se abre. Arcano intruso, sem texto prévio, unicamente usado como pré-texto para que eu pudesse ver vocês, para que vocês pudessem se ver, e ver os outros, numa composição estranha e tão pouco provável. Me fez ficar confusa um pouco a leitura dos territórios, era tanto lugar e tantas camadas diferentes de tempo, que eu senti dificuldade de integrar. E se eu tinha algum desejo especificamente claro era esse: conectar todo mundo, trazer todo mundo pra dentro. Mas o dentro era fora. E isso aí é que faz tudo se inverter: o bidimensional virtual, os dados na rede, ganham materialidade. Uma arquitetura então é feita de corpos, algo próximo do círculo, da roda. Formação tribal. Alinhamentos de chacras e conexões invisíveis, gestos, palavras. A proposta pre-texto, era tentar narrar um caminho, aquele caminho. Feito até ali. Um dentro surge mas mantém-se aberto o tempo todo. POROSIDADE. E muita risada gostosa. Deslocar-se. Chegar-se. E ficar junto. Juntinho. Provenientes de diferentes caminhos, de diferentes pontos da região metropolitana e além dela, a rede aparece com linhas deslocadas de Pelotas, São Leopoldo, Cachoeirinha, de diferentes bairros de Porto Alegre e se instala em Ipanema. Praia doce de mãe Oxum. Em roda, sentados em cadeiras de praia ou no chão de basalto da calçada, estamos nós, os 12 ciganos presentes. O movimento no mapa correu junto ao rio dos Sinos, o Tramandaí, e também dos valões

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Porto alegre. Circulamos com os peixes, com os ratos, no escoar das águas podres da cidade. Chegamos ali. Todos. Rios, esgotos e pessoas. Fizemos nosso caminho. Fizemos nosso risco no mapa.

As narrativas abrem com essa figura totalmente estrangeira ao jogo, a moradora local que nos lembrava sermos nós ali, os estrangeiros. Desconhecida, essa cigana apareceu para contar-nos a história da árvore-do-meio-da-rua. Denise, se chamava. Nos contou dessa peculiar árvore local, resistência aos modos pavimentados e desmatados de fazer cidade. A árvore do asfalto. Uma baita flor. “Primeiro as coisas primeiras”, dizia ela, afinal, a árvore estava ali muito antes dos carros. Primeiro as coisas primeiras, as árvores, as pessoas, a vida. Denise foi a única que veio a pé. Ela mesma sendo a árvore que caminha. Abre os caminhos com a sua narrativa, recebe o prêmio mágico de 5 estrelas pelo pé dourado, e se despede. Aurora contou que viu, pela janela do carro, um casal enquadrado no Iberê. Viu que a menina chorava, diz que enxergou uma lágrima. Orapiés contou que curtiu o deslizar na paisagem. O conforto de espectador na maquete escala 1 pra 1: cidade. Dóris me lembrou nesse dia que a Cigana ia mostrar pra cada um alguma coisa naquele sábado. E ela me disse que achava que sabia o que era. Mas não me contou ainda. Esses suspenses misteriosos arcânicos proliferam! Um dos ciganos que se chegou pelo evento contou que dormiu no caminho. Será que sonhava? Outros contaram sobre terem visto uma lhama com cara de gente no caminho. Diz que existe, diz que tem. Mencionaram os con-

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trastes que a paisagem ofereceu na vinda, a passagem por dentro das vilas e depois pelas áreas mais espetaculares. Quantas cidades na mesma cidade? Quantas cidades além desta cidade, Porto Alegre? O que é uma cidade afinal? A minha narrativa sobre o caminho foi péssima, estava tão ansiosa no caminho que lembrava quase só da ansiedade. Eu nem lembro o que eu falei. Me senti uma jogadora duríssima. Eu problematizei o uber. Tava chorando porque ia ganhar uma estrela só. Olha as preocupação! Supera more! Nesse aspecto fiquei feliz porque rolou uma diversidade incrível de meios: carro, uber, ônibus, bici e pedestre-árvore. O prêmio de 4 estrelas douradas foi para o nosso ilustríssimo, gentilíssimo Traditore formigazzz que deslizou uma linha ultra-viole(n)ta agressivérrima na bike. Depois as 3 estrelas mais bem dadas aos usuários de transporte público brasileiro, Minerva e os seus dois cavaleiros (divindades acompanhantes). Dóris que pegou metrozão de São Léo, veio ouvindo música nos fones, e depois conjugou o trajeto com uber. E nós, os grupos que racharam uber, recebemos 1 estrela bem radiante! Orapiés, Aurora, Stelladiver e os três ciganinhos que se aproximaram via evento. Esse dia eu encontrei com Minerva pela primeira vez. A jogadora assídua que não conhecia pessoalmente. Conheci. Usava uma pedra da água. Poderosíssima caçadora de polifonias e observadora de bailarinos urbanos. Não só existe como está materializada na minha frente conversando comigo e contando os bastidores das experiências. Que sensação de: isso é mesmo real! Esteve acontecendo o tempo todo. Aí pasmei nesse brilho do dar-me conta. E é ela que conta aqui seu caminho:

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Tudo começou com um “Aqui é arte”, e fui indo. A semana passou airosa. De um lugar alto, fitei um possível espaço, um improvável encontro, eu só não sabia. Chamei coleguinhas, chamei florezinhas, chamei passarinhos, chamei algumas Minervas. Fomos. Chegamos em um grande centro. Informações visuais. Sonoras. Fumaças. Vidas. Sacolas. Calor. Tralari-tralara. corre-corre. Esquadrinhamos algumas teias, atamos alguns nós (enquando o vento desatava vários). Nesse lugar fomos formigas. Pingos de gente. Mas unidos por um som maior. Despercebidos, andamos e mergulhamos em uma outra cidade, uma tal de zona – espaço, lugar, sul. Zona sul. Zona lá lá láaa do sul, bem longe. Sabe, a cidade porta algumas transmutações. A cidade carrega portas visíveis para olh(ares) de gatos e corpos de ciganos. Cheguei ansiosa e curiosa nesse novo arcano. Um lugar sossegado. Aguado. Transparente. Fiz ponderações, algumas perguntas e curiosidades habitaram um coração. O caminho foi curto e tranquilo. A cidade mudou de cor, de muros, de sons. de palavras. Os desenhos já são outros. Agora, diferentes rostinhos! Pessoas novas, pessoas que já passaram algum dia, enfim. Pessoas. Mundos múltiplos. Pés vividos. Entretanto, agora, todos enozados, compartilhando falas e esmiuçando caminhamos. Abrimos mapas. Caminhos delicados, miudezas da ci-

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dade, de corpos. Foi lindo. Foi encontro. Encontro de jogadores, jogadores diferentes, agora são jogadores unidos. A roda me fez esquecer do esqueleto do tempo e dos ponteiros do relógio. Entre olhos pulcros, foi rápido-longo e divertido. Boas peripécias. Lastros na prainha. A roda apresentou identidades pra mim também, identidades breves, desfixadas e coloridas.

Fomos 11 por alguns instantes, já que Denise-árvore se despediu cedo. Andamos em 11 até o coiso flutuante e ali encontramos com El Hotel, que, ao chegar, me presenteia com pedras. Me faz lembrar que trouxe presentes pra todo mundo, que era o que eu devia ter feito no início do encontro e esqueci. Sementes de melancia. Gratidão por compor o jogo que tem a melancia como divindade. Fruta-deusa-das-sementes. AMULETO. Sementes e pedras. A rodinha saiu da calçada e desceu pra perto da água. Areia sob nossos pés. Nova rodinha. Por que que eu não pensei em ir pra areia antes? Será que alguém pensou? Só agora me dou conta. Podíamos ter ido pra areia antes. Mas também foi interessantíssimo interromper o fluxo usual de uma calçada, bem como disse a senhora que passou se estreitando e dizendo olhando para o chão: “sem consciência!”. Estávamos sem consciência? Não, apenas interrompendo o fluxo do mundo pra nossa roda existir. E que bom, tinha sim espaço pra todos. A água fazia ondinhas. Tinha vento. Traditore jogava os cabelos pra cá e pra lá, na tentativa de não fazer nós com as madeixas. A gente ficou na areia contando

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piada. Alguns mais quietinhos. Outros rindo bastante. Até escurecer. O arcano demorou mais do que o previsto e a Cigana quis deixar demorar, deixar a noite cair. Eu queria era que acabasse por conta.

Por fim, fechamos o dia errante. O dia andante. Fechamos na noite. Voltei ao grande centro, tralari-tralara. corre-corre. Agora volto e ele já é outro, é noturno, é escuro. Outra cidade. Volto e percebo que abri bem os braços, embaralhei-me. Voltei e já sou outra também, diferente daquela que foi. Sempre diferente daquela que vai i i. - Volúpia da mente.

Eu tava muito aberta, ainda não aprendi como fazer essa conversão expressamente, aberto-fechado. Segundo um teste de internet que avalia os chacras, o meu laríngeo estava 100% sobre-aberto nesse dia. Dóris disse: “100%! Não tem nada mais aberto que isso!” Eu me preocupei. É onde mora a nuvem, que chove. Um chacra laríngeo todo aberto, o que que eu posso fazer amiga? Compressa?

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cê u que, se vo ém descobri gu al is a ma di e dess ...aí um nada, se não ra pa is cê ma vo hos, não olhasse tomasse atal e da na am-se ouvidos para ssoas tornar pe as : sa es depr endo, acelechegaria mais ar lá, corr eg ch ra pa as anedotas obcecadas o chão de su ra pa o nd lares. E rando, olha de seus celu s la te ra pa coisas a pessoais e va para as ga li is ma uém vez mais porque ning ficando cada i fo do tu mais pressua volta, rque ninguém po E e. nt vez mais desinteressa ficando cada i fo do tu into, tava atenção, ocado, indist sf de e ss fo se vam cada vez borrado, como pessoas anda As . do za li conversar desmateria paravam para er qu se , sa r e ouvir mais depres de poder ve am ar ix de ém tranha porque tamb isa muito es co a um o tã e en os outros, ontecer. ac a começou uções a, as constr di ós ap a Di s. transparente as ficaram ru as mo e co o ali iam sumind vam vivendo ua in nt co , lá s egar E as pessoa osas por ch si an e as ad as, que sempre, agit ios e nas ru éd pr em s, casa ninguém mais vivendo nas ali, porque is ma m va ta já não es as reparava.

e ad a u o e o c dadre. a c parece


Não sei onde dobrei, primeiro aqui, depois ali, e logo estava de frente a uma praça. Uma sensação boa de chegar. Um triângulo de espaço público apareceu. Triângulo isósceles com bancos. [continua]

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arCaNo XV O CemITérIO


Publicado em 23 de maio de 2018 às 13:50 por arcanosurbanos Lua Crescente

túmulos, dólmens, necrópoles megalíticas, pirâmides, sarcófagos, panteões, túmulos coletivos, túmulos individuais, sepulturas, monumentos memoriais, lápides, criptas, nichos, ossuários, valas comuns, solenes cemitérios.

Lenda Urbana Uma loira super gata que usa um vestido vermelho surreal, chama um táxi na esquina da rua Otto Niemeyer com a Cavalhada, à noite. Tomando o táxi, ela pede para ser levada a um lugar qualquer que passe na rua do Cemitério São José da Vila Nova. O taxista, ao passar pela Av. Monte Cristo, 810, rua do cemitério, percebe que a gata loira sumiu do carro. Simplesmente desapareceu.

A cidade e os mortos Laudômia, como todas as cidades, tem a seu lado uma outra cidade em que os habitantes possuem os mesmos nomes: é a Laudômia dos mortos, o cemitério. (…) As prosperidades da cidade dupla são conhecidas. Quanto mais a Laudômia dos vivos se povoa e se dilata, mais aumenta a quantidade de tumbas do lado de fora da muralha. As ruas da Laudômia dos mortos são largas 400

apenas o bastante para que transite o carro fúnebre, e são ladeadas por edifícios desprovidos de janelas; mas o traçado das ruas e a sequência das moradias repetem os da Laudômia viva e, assim como nesta, as famílias são cada vez mais comprimidas em compactos nichos sobrepostos. Nas tardes ensolaradas, a população vivente visita os mortos e decifra os próprios nomes nas lajes de pedra: da mesma forma que a cidade dos vivos, esta comunica uma história de sofrimentos, irritações, ilusões, sentimentos; só que aqui tudo se tornou necessário, livre do acaso, arquivado, posto em ordem. E, para se sentir segura, a Laudômia viva precisa procurar na Laudômia dos mortos a explicação de si própria, não obstante o risco de encontrar explicações a mais ou a menos: explicações para mais de uma Laudômia, para cidades diferentes que poderiam ter existido mas não existiram, ou razões parciais, contraditórias, enganosas.56

Heterotópico cemitério A utopia é um lugar fora de todos os lugares, lugares que são impossíveis de rastrear em qualquer mapa ou em qualquer céu, simplesmente porque não pertencem a espaço algum. A utopia nasce da cabeça dos homens, no lugar sem lugar dos seus sonhos, nas palavras, ou no interstício delas. De toda forma, a utopia é um lugar onde se teria um corpo sem corpo.

56. CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 59-60. 401


(…) há também uma utopia que é feita para apagar os corpos. Essa utopia é o país dos mortos, são as grandes cidades utópicas que nos foram deixadas pela civilização egípcia. Afinal, o que são as múmias? Elas são a utopia do corpo negado e transfigurado. A múmia é o grande corpo utópico que persiste através do tempo. Existiram também as máscaras de ouro que a civilização micênica colocava sobre os rostos dos reis defuntos: utopia de seus corpos gloriosos, possantes, solares, terror dos exércitos. Existiram as pinturas e as esculturas dos túmulos onde jaziam os que desde a Idade Média prolongam na imobilidade uma juventude que não mais passará. Existem agora, em nossos dias, os simples cubos de mármore, corpos geometrizados pela pedra, figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemitérios. E, nessa cidade de utopia dos mortos, eis que meu corpo torna-se sólido como uma coisa, eterno como um deus.57 O cigano Foucault acha bem provável que todo e qualquer grupo humano é capaz de demarcar, no espaço que ocupa, vive e trabalha, lugares utópicos (fora do espaço), e, da mesma maneira, capaz de encontrar no seu tempo, momentos ucrônicos (fora do tempo). A utopia do país dos mortos, em nossas cidades, se materializa em um lugar preciso e real. O cemitério é um lugar utópico que, no entanto, podemos situar no mapa.

57. FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. Posfácio de Daniel Defert. [tradução Salma Tannus Muchail]. São Paulo: n-1 Edições, 2013a, p. 8-9. 402

Esses lugares reais e localizáveis, embora fora de todos os lugares, são espécie de utopias efetivamente realizadas e localizadas. São como contraespaços nos quais todos os outros espaços são representados, contestados e invertidos, e como apostava nosso autor-cigano, provavelmente existiram em todas as sociedades. Por oposição às utopias, que são alocações “sem lugar real… essencial e fundamentalmente irreais”, nosso amiguito ciganito Foucault as chama de heterotopias. A heterotopia surge como conceito, para denominar algo de novo, algo que talvez sempre houvesse existido, mas que se entrelaça a uma nova percepção que exige o emprego de um novo termo. São espaços singulares que encontramos em alguns espaços sociais que diferem em termos de função, e que carrega consigo sempre uma ruptura com o tempo. O arcano dessa semana, arcano menor de lua crescente, é o cemitério. Bem esse, que é utilizado por Foucault, como um curioso exemplo para explicar a ideia de heterotopia. O cemitério é certamente um lugar outro, comparativamente aos espaços culturais comuns; é um espaço que está, no entanto, ligado ao conjunto de todas as alocações da cidade ou da sociedade ou do vilarejo, já que cada indivíduo, cada família se vê tendo familiares no cemitério.58 O cemitério, que é para nós, em nossa experiência atual, o mais evidente exemplo de heterotopia (o cemitério 58. FOUCAULT, Michel. De espaços outros. Estud. av. [online]. Vol.27, n.79, 2013b, p. 117. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S010340142013000300008 403


é absolutamente o outro-lugar), nem sempre desempenhou este papel na civilização ocidental [ele passou por uma mutação]. Até o século XVIII, ele ficava no centro da cidade, disposto lá no meio, bem ao lado da igreja; na verdade, não lhe era atribuído nenhum valor solene. À exceção de alguns indivíduos, o destino comum dos cadáveres era muito simplesmente serem jogados na vala, sem respeito e despojo individual. (…) no final do século XVIII, começou-se a individualizar os esqueletos. Cada qual passou a ter direito ao seu caixão e à sua pequena decomposição pessoais. Por outro lado, todos esses esqueletos, todos esses caixões, todos esses sepulcros, todas essas tumbas, todos esses cemitérios foram postos à parte, fora da cidade, no seu limite, como se se tratasse ao mesmo tempo de um centro e um lugar de infecção e, em certo sentido, do contágio da morte.59 Os cemitérios não mais constituem, assim, o vento sagrado e imortal da cidade, mas a “outra cidade”, onde cada família possui sua morada escura.60 Algum jogador aí interessado em viver uma heterotopia? Faremos uma tentativa de experimentar esse conceito, esses lugares. E para isso será necessário abrir também o tempo, pois o tempo, nas heterotopias, encontra-se em ruptura com o tempo tradicional. (…) as heterotopias são frequentemente ligadas a recor-

59. FOUCAULT, 2013a, p. 23 60. FOUCAULT, 2013b, p. 118 404

tes singulares de tempo. São parentes, se quisermos, das heterocronias. Sem dúvida, o cemitério é o lugar de um tempo que não escoa mais.61 A heterotopia se põe a funcionar plenamente quando os homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com o seu tempo tradicional. Vê-se, assim, que o cemitério é mesmo um lugar altamente heterotópico, pois ele tem início com essa estranha heterocronia que é, para um indivíduo, a perda da vida, e essa quase eternidade em que ele não cessa de se dissolver e de desaparecer.62 Existem atualmente, no Município de Porto Alegre, 19 cemitérios, sendo 16 particulares e 03 municipais, e o Crematório Metropolitano São José63. *** Coincidência ou mágica?! Durante a feitura deste arcano e meu intercâmbio com a Cigana, abro o facebook e leio: Viva o centro a pé: Cemitérios64.

61. FOUCAULT, 2013a, p. 25 62. FOUCAULT, 2013b, p. 118 63. A Cigana elaborou um mapa que revela todos os cemitério do município: <https://www.google.com/maps/d/u/0/edit?mid=1uYt_ltGH-tNI8tc03Dw-ZpKhDqnJ36FA&ll=-30.108652785435527%2C-51.19226235000002&z=11> 64. A Cigana disponibilizou o link com mais informações. http://www2.portoalegre.rs.gov.br/portal_pmpa_novo/default.php?p_noticia=999196398&VIVA+O+CENTRO+A+PE+FAZ+ROTEIRO+POR+CEMITERIOS+DE+PORTO+ALEGRE 405


Vai acontecer um tour guiado pelas necropóles da capital, neste sábado, dia 26. Se alguém quiser acordar de manhã tá valendo a dica!

Curiosa estou eu, mensageira de tudo isso. Proposição semi-aberta, vos encaminho ao cemitério e deixo vocês livres lá, para inventarem um modo singular de habitá-lo.

Proposição do arcano:

Estrelas do arcano:

Visitar os cemitérios, esses espaços outros na cidade. O que se pode ali fazer? Diga-me você, jogador, o que no cemitério pode ser feito a fim de que ele adquira o sentido heterotópico. A heterotopia que permite sonhar, fantasiar, inventar um espaço outro sobre um mesmo espaço. Para esta que vos escreve, a melhor definição de heterotopia é dada pela criança:

Quem quiser somar estrelinhas mágicas, pode mandar o percurso até o cemitério através do aplicativo strava (5 estrelas); pode mandar um texto enriquecido com devaneios e narrativas da experiência heterotópica (6 estrelas); pode mandar vídeos sinistros (4 estrelas), fotos de assombrações (2 estrelas), e áudios assustadores (2 estrelas).

As crianças conhecem perfeitamente esses contraespaços, essas utopias localizadas. É o fundo do jardim, com certeza, é com certeza o celeiro, ou melhor ainda, a tenda de índios erguida no meio do celeiro, ou é então – na quinta-feira à tarde - a grande cama dos pais. É nessa grande cama que se descobre o oceano, pois nela se pode nadar por entre as cobertas, depois essa grande cama é também o céu, pois se pode saltar sobre as molas; é a floresta, pois pode-se nela esconder-se; é a noite, pois ali se pode virar fantasma entre os lençóis.65

oPtCHá meUzaMOr! 65. FOUCAULT, 2013a, p. 20 406

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Fragmento-lápide [Cemitério João Batista (1851) – Bairro Botafogo, Rio de Janeiro]

A Cigana chama à deriva, ao lugar desconhecido. Faz um convite diferente, um encontro com os cemitérios da cidade. Não seria uma proposta de turismo no Rio de Janeiro, apesar de gostar muito desses lugares da saudade eterna. Cemitérios falam do tempo, do [des]tempo, da pequenez do tempo da vida. Abriga saudade, desejos, despedidas, memórias, histórias e lembranças... Não é um lugar alegre por natureza, bom é passear por seus caminhos sem proposta de se despedir de alguém que vai, certamente, deixar saudade... e a saudade é, pra essa cartógrafa, uma fragilidade. Mas, ela se jogou na ideia lançada pelo arcano, com vontade forte. Buscou no mapa, se deslocou pra um improvável, sem saber o que iria encontrar. Já na entrada pessoas se despedindo, de alguém desconhecido para ela. Talvez por isso, não afetou. Seguiu as pedras, os cristos, as cruzes... Fotografou, com olhar estrangeiro, um olhar curioso. Tudo ali parecia paisagem nova, histórias de outras vidas, sem relação alguma com o corpo da cartógrafa. A relação passou a se dar no diálogo com a paisagem ao redor, um Rio de Janeiro lindo, o Cristo Redentor, os morros, as comunidades... tudo ao redor passou a compor aquele lugar cemitério, que virou lugar para ela também pelo percurso, pelo encontro do seu corpo com os fragmentos-lápide daquele território necrópole. Subiu, desceu, escadas e caminhos. Até se perdeu por um instante... sentiu frio na barriga, depois se acalmou e continuou.

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Sensações de um lugar lápide. Habitou, percorreu, encontrou Cazuza, sentiu mesmo que o tempo não para, valorizou a vida, seus encontros, atentou à natureza brotando por entre pedras e flores artificiais. A vida é mesmo um sopro, entre respirações, a primeira e a última! Então... bora respirar fundo e seguir, vivendo enquanto a vida há!

Não tem ninguém aqui a essa hora da manhã a não ser o coveiro. Ninguém nos vê assombrar as escadas que acessam as gavetas mais altas. Ninguém nos ouve as gargalhadas, nem as palavras reverberadas no silêncio dessa manhã fria e nebulosa. Ninguém nos vê abrir os ruidosos portões dos jazigos vazios. Ninguém nos vê entrar. Ninguém nos vê assustar as estátuas gélidas de olhos tristes. Ninguém nos vê tocar a pátina rugosa e esverdeada do tempo. Onde houver saudade, que um fantasma leve a criança. Onde houver silêncio, que outro fantasma se aproxime para ler um trecho de um livro. Ninguém nos vê atravessar a grama correndo assobiando com o vento que corta a orelha dos leões de olhos de redemoinho. Ninguém nos vê sondando os buracos das paredes, das covas, dos nichos. Ninguém nos vê.

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Não tem ninguém aqui. A não ser o coveiro. O que será que sonha o coveiro? Será que no sonho ele desenterra, descobre, destampa? Há muitos fantasmas despertos do outro lado do cemitério. Há mortos vagando pela cidade também. Há coveiros em toda cidade sonhando. O que será que sonha o coveiro? Ninguém nos vê no reflexo das fotografias desbotadas. Ninguém nos ouve estalar os bancos de madeira escura da capela. Quem disse que as flores de plástico não morrem?

Fui ali no cemitério ser levemente outra. Diante dos mortos, do silêncio das lápides, investigar as texturas e os rostos nas fotografias. Tinha sol. Tinha pássaros cantando o tempo todo e mais nada. Silêncio. Espaço. Cipós pendidos sobre a minha cabeça. O corpo se imagina qualquer outra coisa. Começa a imaginar que conversa com os outros corpos. Objetos. Objetos-abjetos que agora deixavam de ser. Quebradas cadeiras disfuncionais a me olhar, me interrogar, me convidar. As cores vivas de coisas mortas começaram a falar. Havia escadas, pequenas escadas verdes dispersas como tótens misteriosos por todo cemitério. De pé, deitadas, caídas, quebradas, diante das paredes, convidando a subir. Irresistível convite das coisas.

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E aí já estava caminhando por cima de uma marquise desprotegida, não me impediu ninguém. Me posicionei na beira. Olhava os túmulos lá embaixo. Muitos túmulos e cruzes testemunhas do salto e do vôo que não dei. Continuei a andar pisando em folhas secas, encontrei outros objetos esquecidos pela alma da mão encarnada no trabalho de varrer, podar, limpar a solidão do cemitério. Manutenção de solidão e silêncio. Bati minha cabeça num tronco desavisado. Ficou doendo. Levantou galo. Acidente de trabalho. Me detive nos líquens, tapete verde sobre as pedras de arenito escurecidas e úmidas entre os túmulos. De baixo pra cima, vi a luz do sol atravessar as folhas verdes e encontrei uma torneira. Simples torneira na beira do precipício, guardiã dos mortos enterrados. Ela se fingia de lápide, ela queria ser também levemente outra. Tinha manchas de tinta, aquela torneira, simples torneira, brincando de artista. Encontrei o banco de areia e a pilha de tijolos aguardando a obra iniciar para um novo morto ali terminar. Hóspede derradeiro.

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Me aproximei de um funcionário que varria ouvindo rap no celular, botando os mortos pra cantar a música dos vivos. Constrangido me mostrou a tornozeleira, disse que era presidiário, que tinha medo dos vivos, não dos mortos, e nunca tinha visto assombração. Que era bom trabalhar ali enfim. Não me deu muito papo. O sol da manhã esquentava as superfícies. Subi e desci escadas e não sabia mais de onde tinha vindo. Já era hora, apressei o passo, mas todo lugar estava desigual. Essa hora o cemitério pareceu gigante e senti um micro medo de estar perdida para sempre. Quem mandou ir brincar no cemitério. Quando encontrei a redenção de um mísero ponto de referência, respirei aliviada. Fui embora bem devagar.

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Vo cidcaêde. esntuá perdend perdê-la q nca parouo a uando i -tempos de mperam utilitár os espa ios. pou

çosco os es A cada paços-te dia mor festa. V rem um mpos ond ocê se e a alma afasta d se manições que as peque só encon n a s t raria ao iluminaacaso. O acaso. V nde e qu ocê evit ando enc tados da a o ontra es s inutil paços en ezas? On a simpli c a nd e cidade? e quando Onde e q c para os u l t i v u a a ndo enco jogos es ntra esp pontâneo da aven a s ço do amar, tura, d a surpr do brinc encanto, esa, da ar, da mágic maravilh a, da fa imaginaç a, do ntasia, ão? Onde da magia e quando do estar , da encontra juntos? os espaç Quando é está jun os que, de to? Quan fato, vo do é que cê faz cida Nessa ci de? dade des e n c a nem espa ntada, v ço para ocê não as alegr tem temp escuta p ias de v o ara as h i v e i r, não d stórias dentes, á inéditas não tem e surpre mais his desapren entórias p de a narr ara cont ar, desa desapren a r, p r ende a fa de a esc zer cida rever a de, sua hist ória com ela.


Tinha um cara. Parecia tranquilo, acho que estava esmurrugando quando cheguei. Inscrito em seu triângulo, a praça tinha um desenho semi-circular. Numa distância sem tanta interferência entre nós dois, me sentei bem de frente a ele, como as 6h estão para as 12h, só pra poder desenhar uma linha reta entre dois pontos dentro da circunferência. E o cara estava ali, bem embaixo de uma coisa enorme, uma coisa que eu não sei o que era. [continua]

XVI 423


arCaNo XVI a rua


Disparado em 13 de junho de 2018 às 09:02 por arcanosurbanos Lua Nova

Quando se encontra o amor Na rua, sem o saber… Não se pode conceber uma cidade sem ela. E eu perguntaria, quem veio antes, a rua ou a cidade? É uma questão de saber: a rua é ovo de que? Ou melhor, galinha de quem? Canal livre que faz rede com diversos outros canais compondo a malha urbana, a rua é o espaço público por excelência. Vazio, vazado, espaço não construído, dedicado a fazer fluir o movimento urbano, o movimento humano. Às vezes uma rua tem calçada, meio fio, sarjeta, estacionamento oblíquo, pista, canteiro central. Uma rua quase sempre tem nome e quase sempre tem história. A rua é objeto do planejamento urbano. Para os famigerados funcionalistas, ela é uma mera máquina de circular. Ela já foi estudada na lógica dos tubos, dos canos, das veias, das artérias, e basicamente toda sua ciência moderna dedicou-se quase que exclusivamente ao automóvel. E assim se estende até hoje, ninguém consegue parar o carro desgovernado do progresso dos motores. Pela via reta-moderna-capitalista-afobada-faminta, a rua acabou se tornando também, para o senso comum, um

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objeto-abjeto66. A veloz, a esvaziada, a temida, a obscura, a perigosa, a má, a cruel rua. Da pedra ao asfalto, da travessa à avenida, passando pela alameda, subindo ou descendo a ladeira, desembocando no bulevar (ohhh o bulevar), do valor de uso ao valor de troca, da procissão à insurreição, do pipoqueiro à prostituição, da testada do lote privado à capsula de papelão do morador de rua, a rua é mais que um simples eixo de circulação, ela possui uma alma encantadora. Fato é que alguns errantes, ciganos urbanos, não se satisfazem com as definições funcionalistas da rua. Acaba sendo pouco. Eles têm um outro modo de vê-la, de senti-la. E é para esse sentimento que o arcano de hoje se abre, em plena lua nova, pretona, oculta no céu. Então sejam bem-vindos ao Arcano da Rua, onde e quando a rua deixa de ser objeto para ser também sujeito, ou para ser ambos e nenhum. Para inebriar a abertura dessa carta, deixo aqui os rastros da invocação mais poderosa do cigano João do Rio, que inunda essa tiragem com seu amor à rua, amor que, aposto, encontrará ressonância por aí. Com vocês, João do Rio:

66. Inventado agora: objeto-abjeto é sinônimo de uma coisa desprezível, vil, infame, reles, torpe, execrável, odiosa, abominável, imunda, repugnante, repulsiva, repelente, miserável, canalha, tratante. Por acaso não é assim que o senso comum percebe a rua? Mas não vou desenvolver além disso, tenho pressa de chegar no João do Rio. 427


“Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia – o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia. Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua. (...) Os dicionários só são considerados fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei in-fólios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas, por onde se anda nas povoações... Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! Em Benarés ou em Amsterdão, em Londres ou Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. (…) A rua é generosa. O crime, o delírio, a miséria não os denuncia ela. A rua é a transformadora das línguas. (…) A rua continua, matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos 428

dicionários as palavras que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicons futuros. A rua resume para o animal civilizado todo o conforto humano. Dá-lhe luz, luxo, bem-estar, comodidade e até impressões selvagens no adejar das árvores e no trinar dos pássaros. A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopeia tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. A rua criou todas as blagues todos os lugares-comuns. (…) Sem o consentimento da rua não passam os sábios, e os charlatães, que a lisonjeiam lhe resumem a banalidade, são da primeira ocasião desfeitos e soprados como bolas de sabão. A rua é a eterna imagem da ingenuidade. Comete crimes, desvaria à noite, treme com a febre dos delírios, para ela como para as crianças a aurora é sempre formosa, para ela não há o despertar triste, e quando o sol desponta e ela abre os olhos esquecida das próprias ações, é – no encanto da vida renovada, no chilrear do passaredo, no embalo nostálgico dos pregões – tão modesta, tão lavada, tão risonha, que parece papaguear com o céu e com os anjos… A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que vive em cada aspecto urbano, em cada detalhe, em cada praça, tipo diabólico que tem, dos gnomos e dos silfos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos 429


e de lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de abandono e de inédita filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de felino e risos de navalha, o prodígio de uma criança mais sabida e cética que os velhos de setenta invernos, mas cuja ingenuidade é perpétua, voz que dá o apelido fatal aos potentados e nunca teve preocupações, criatura que pede como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e pode rir, francamente, depois de ter conhecido todos os males da cidade, poeira d’oiro que se faz lama e torna a ser poeira – a rua criou o garoto! Essas qualidades nós as conhecemos vagamente. Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar. É fatigante o exercício? (…) Algumas dão para malandras, outras para austeras; umas são pretensiosas, outras riem aos transeuntes e o destino as conduz como conduz o homem, misteriosamente, fazendo-as nascer sob uma boa estrela ou sob um signo mau, dando-lhes glórias e sofrimentos, matando-as ao cabo de um certo tempo. Oh! sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem 430

pinga de sangue… (…) Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as idéias de cada bairro? A alma da rua só é inteiramente sensível a horas tardias. Há trechos em que a gente passa como se fosse empurrada, perseguida, corrida – são as ruas em que os passos reboam, repercutem, parecem crescer, clamam, ecoam e, em breve, são outros tantos passos ao nosso encalço. Outras que se envolvem no mistério logo que as sombras descem. (…) A rua é a civilização da estrada. Onde morre o grande caminho começa a rua, e, por isso, ela está para a grande cidade como a estrada está para o mundo. (…) Ah! Não procureis evitá-la! Jamais o conseguireis. Quanto mais se procura dela sair mais dentro dela se sofre. E não espereis nunca que o mundo melhore enquanto ela existir. Não é uma rua onde sofrem apenas alguns entes, é a rua interminável, que atravessa cidades, países, continentes, vai de pólo a pólo; em que se alanceiam todos os ideais, em que se insultam todas as verdades, onde sofreu Epaminondas e pela qual Jesus passou. Talvez que extinto o mundo, apagados todos os astros, feito o universo treva, talvez ela ainda exista, e os seus soluços sinistramente ecoem na total ruína, rua das lágrimas, rua do desespero – interminável rua da Amargura...”67

67. RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das letras, 2008, p. 28-52. O livro todinho disponível aqui: <http://www.rio.rj.gov. br/dlstatic/10112/4204210/4101365/alma_encant_ruas.pdf> 431


Proposição do arcano

Estrelas do arcano

Você existe, seja porque pensa, ou porque sente, ou quem sabe porque age, não importa. Você existe, e isto quer dizer que você mora em algum lugar. Adivinho aqui, de longe, toda trabalhada na vidência cigana, que esse lugar se abre para uma rua.

Percorra sua rua inteirinha, de início ao fim, ou do fim ao início, tanto faz, até porque ela começa mesmo é na porta da sua casa. Pra Cigana você entrega o percurso mapeado no famigerado Strava e ganha 5 estrelas. Ah, mas você quer mais? Então mande sua experiência destilada em formato de texto, as estrelas mais preciosas do jogo, elas são 6. Ah, quer mais ainda? Então manda vídeos que dão 4 estrelas, fotos e áudios que dão 2 estrelas cada. Faça o percurso a pé e você ganha 5 brilhantes estrelas pedestres!

Que rua é essa? Onde começa e onde termina? Como ela é? Como você a experimenta cotidianamente? E como você a experienciaria se ela fosse o seu arcano da lua nova? Revele essa experiência pra Cigana. Você pode falar dela em termos funcionalistas (ora, porque não?), revelar qual sua ordem e seu fluxo na hierarquia viária da cidade. Dizer se ela é local, coletora, arterial, ou se ela é dessas mais de mesa. Dessas ruas cachorras difíceis de definir. Você pode falar dela nos seus próprios termos. O Importante é que você considere o dia, o horário, as condições atmosféricas (se a experiência da rua se dá em meio a uma tempestade, numa seca tarde de sol, sob neblina, ou sob o manto de uma noite fria). Contam, e muito, as formas de mediação entre o seu corpo e os elementos do ambiente-rua que envolve você. Descubra ou re-descubra qual é a vibe da sua rua. Você pode se surpreender. Tudo vai depender do grau de disponibilidade animal/espirtual com que você se expuser a ela. O mistério urbano dessa lua nova está bem próximo: inspirado pelo cigano João do Rio, encontre a alma encantadora da sua rua.

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…e se um dia você não souber pra onde ir, não endureça, experimente sentir o calor da rua.

Lua nova! Rua nova! Invisível!

oPtCHá! 433


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Apresento-te a Tomaz Flores. Rua que nunca me importei em saber de onde vem o nome, para a qual vim por acaso (e meio que na necessidade), e voltei por comodismo (e preguiça). Tentativa do dia - apresentação guiada. (áudio) >>> A rua não chega a ter meio quilômetro. Tô atravessando agora a Osvaldo. Já cheguei do outro lado. Aqui inicia a rua. Nesse trecho tem sempre esse pessoal que faz frete. Do outro lado tem uma igreja, uma Assembleia de Deus, nem tenho certeza de que tipo de igreja é, só sei da barulheira que eles fazem. Infelizmente pintaram por cima as várias figuras do Smilinguido, mas antes tinha minha pixação preferida pra se ter ao lado de uma igreja onde dizia: la única iglesia que ilumina es la que arde. Seguindo por aqui se vê que é uma rua bem arborizada, muito esburacada, na real. Eu moro curiosamente quase que bem no meio da estrutura toda. Ela é cortada por três ruas, acho, uma coisa assim. É bem bom de caminhar aqui. De noite é meio esquisito, algumas das calçadas e até o asfalto é muito irregular, então a possibilidade de enfiar o pé no buraco não é tão pequena. Tem o chaveiro, que é uma coisa importante de ter. Há algum tempo atrás uma amiga minha veio comprar persianas numa ferragem que tem um pouco mais adiante na rua. Ela foi lá, viu o preço, gostou, disse que não tava carregando dinheiro, que ia voltar pra buscar outra hora. O dono da ferragem disse “leva, me traz o dinheiro outra hora”. Tipo, nenhuma relação ou ideia de que ela pudesse voltar ou não. Então, bah, isso

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é muito curioso. Acabo de passar do lado de um minimercado que eu venho muito seguido, que é muito agradável, que é o Spinelli, que tem um excelente café. Bom, essa é a altura da minha casa, eu devo estar pelo meio da bagaça toda. É um lugar meio esquisito, morar num prédio que tem só seis apartamentos e não conseguir ter uma relação decente com algum dos vizinhos. Mas, bom, talvez seja um pouco a vivência de morar nessa cidade. Esse é o ponto médio, então, finalmente um pouco de barulho, um pouco de movimento. E agora a rua ascende. Aqui tem uma pizzaria na qual curiosamente eu nunca fui. Tem muita coisa aqui na qual eu nunca fui, isso é bem estranho. Eu passo exatamente na frente da ferragem que eu falei há pouco. E uma coisa que eu acho curiosa, metade dessa rua deve ser de psicólogos ou estudantes de psicologia. Tem consultórios e coisas do tipo. Aqui, a rua se torna deveras inclinada. Essa subida é cruel. A rua é mão única. Já vi bastante gente apagar carro aqui. Aqui é um bom trecho pra correr e saber se tá bêbado ou não: se não fica apavorante descer isso correndo é porque tá muito bem obrigado. Logo a frente tem o primeiro dos orelhões da história dos orelhões que eu tinha tentado ligar. Não consegui ligar pra ninguém bastante tempo, o que é bem estranho de pensar. Coisa divertida de andar assim porque as poucas pessoas da rua ficam se perguntando o que que tá fazendo e tá falando com quem. Uma pichação aqui: resistência feminista, e um gato. Bom. É aqui, abaixo do orelhão, que eu paro. Tem várias mensagens aqui dentro. Curioso. Vou parar pra ver isso. <<<

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A fala se perdeu e o roteiro fragmentou-se. Pouca coisa se achou e o que se perdeu foi pouco. Mas algumas coisas não apareceram em voz, então venham as letras a salvaguardar uns achados: descobri na volta que já não é mais uma igreja, agora são duas. Feito amebas, talvez a primeira tenha cindido, duplicado e atravessado a rua. Não sei. Mas já são duas. De outra, alguém escolheu o ponto de comunicação mais alto da rua (orelhão sobre a lomba) pra esbravejar por escrito contra Deus. E na sequência, se auto-puniu: “seu covarde, tu é um inútil”. Mas o ataque a Deus ficou ecoando na linha com sinal de ocupado...

Essa rua acontece espontaneamente no fim de uma tarde de dezembro. Vinha eu voltando do super, pacata e distante, com uma alface e um isopor de carne dentro da sacola, quando a rua de repente para. Forma-se uma fila de carros buzinando nervosos. Uns passos mais adiante avisto o motivo da interrupção do tráfego: um carro gigante, que mais parecia um trator, com rodas de um metro de diâmetro. Era verde limão, e estava parado no meio da rua, sem ninguém dentro. Eu que não tenho olho para carros achei bonito. Também pudera, todo estranho ali entre os carrinhos de passeio. A rua começou a encher. Diante da escadaria João Manoel, resolvi me apoiar para assistir a novela pública que parecia se

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desenvolver em dois canais ao mesmo tempo. De onde tinha me apoiado, olhando à minha direita estava parado o mistério do semi-trator-verde-limão e, na minha frente, na escadaria João Manoel, era dia de coral natalino. A escadaria estava cheia de gente. O coral estava lá em cima com velinhas coroando o balaústre, e as pessoas se acomodavam nos degraus e patamares da escada. Cantos natalinos. Na rua, as pessoas começaram a brotar de seus interiores. A moça da padaria veio de avental, a outra colega de toquinha branca. Vieram outros vizinhos também, estava todo mundo querendo desvendar o mistério. Nós nos olhávamos talvez pela primeira vez e fazíamos comentários. O ônibus que estava logo atrás do carro verde, há minutos parado, tentou uma manobra radical. Os espectadores apostaram que ia bater, que ia desgalhar a árvore, que não ia conseguir. Eu só acompanhava, não arrisquei um palpite, mas as chances pareciam poucas. O motorista era ousado. Um momento de apreensão e... finalmente ele ficou mais preso do que antes. Agora a rua estava completamente bloqueada por dois veículos grandes. O engarrafamento só aumentava. O motorista do ônibus achava graça, ou sorria de nervoso. A rua enchia cada vez mais de gente, o coral perdia atenção e público, mas resistiam nas escadas as vozes dos sopranos. O proprietário do carro verde apareceu finalmente, vinha com pressa trazendo alguns litros de gaso-

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lina, um tanto nervoso. Assistindo a cena de um ângulo privilegiado, eu quis saber que tipo de veículo era aquele. Ninguém sabia. Eu falei que parecia um tranformer, a padeira repetiu gritando pra amiga do outro lado da rua “é um transformer!”. Tinha um homem que parecia estar com raiva, dizia que o cara devia ganhar multa, ofendeu, chamou de nome, disse que se fosse na vila já tinham virado o carro. Ele andava pra cá e pra lá feito bicho, disse, “esse cara mora há três quadras daqui”. O transformer verde limão afetou a rua de várias maneiras. Mas quando a gasolina entrou e o motor arrancou, fez um ronco bonito e a fumaça preta da chaminé era um espetáculo de poluição. Era como uma chaminé furiosa. O homem que estava do meu lado vibrou com a fumaceira e, quando o carro finalmente arrancou liberando a pista, nós saudamos a sua partida com gritos de “Uhuuuu! Eeeeeee!”. O homenzinho dentro do carro verde buzinou e abanou. Aplausos também se ouviam para o coral que cantava para Jesus Menino. A padeira disse “agora eu vou me embora porque o espetáculo acabou”. Eu respondi, “agora podemos voltar para nossas vidinhas normais”. Deixei o coral na escadaria e subi as escadas do prédio. Um vizinho subiu junto. Estava saltitante, abrindo as portas e fazendo graça.

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Uma rua que, à primeira vista, é igual a todas as outras, apesar de nenhuma rua ser igual, se nos atentarmos aos detalhes. E esta possui um universo deles. Moro no final da rua Dom Pedro II, que fica a poucas quadras do seu pai, Dom Pedro I. Ambas são equivalentes na discrição. Não são arteriais, tampouco vielas. O interessante dessa rua é a quantidade de ambientes que proporciona em tão pouco comprimento. A rua inteira tem três quadras. Morei em muitas ruas, mas sempre fui familiarizado com esta, pois ela é caminho para uma via arterial, a Avenida Feitoria. Sempre adorei passar por aqui, mesmo sendo de asfalto e quase sem calçada. Choveu bastante hoje, são 18:30 exatamente. Saio de chinelos justamente para um maior contato com as texturas. Saindo de onde eu moro, indo em direção à esquina, há um certo nervosismo. Parada de ônibus, muito lixo e muito fluxo. Oficina mecânica que se apropria da calçada larga, pet shop com cachorrinho pintado na fachada. Já subindo em direção ao seu início, vou passar por comércios, alguns até informais. O churrasquinho do tio, que é restaurante de dia e pagode de noite. Vizinho da “véia louca” que passa o dia sentada na calçada, com os gatos em volta, xingando os entregadores de bebida. Casas, terreno baldio que se converte em depósito de lixo da vizinhança, mato e ruína.

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Mais casas, arquitetura espontânea, parcelada. Cachorros de rua adotados. O vizinho “louco” que colocou fogo na própria casa. O Bêbado técnico de informática que é coxo e deita na calçada urrando palavrões. Riqueza de gente, de histórias. Quase novela. Na metade da quadra, o ambiente muda. Há uma subida e a rua ganha aspecto rural. Há um terreno baldio gigantesco, que até pouco tempo atrás pertencia a um senhorzinho idoso, que criava algumas cabeças de boi ali. Cerca de pau e arame farpado. Calçada é trilha. Carrapatos, muitos. Hoje há uma pista de cimento na trilha, o terreno hoje, é a promessa de um prédio. Não há fundações. Do outro lado, grama. Terreno. Em frente, atravessando a rua que a corta, há uma praça. Degredo, abandono, apesar do uso constante. Calçada aqui há, mas é trilha, pedregulho, brita e inço grosso. Não reclamo, acho que o charme dessa rua reside nisso, no limo, na falta do planificado/higienizado. Aí é que entram os detalhes. Muitos. Me arrisco a dizer que prefiro a minha rua como era no passado. Menos urbanizada, mais selvagem ainda, mais rural. Matagal. Soa sacrilégio afrontar o progresso, mas o progresso não me toca. Não sou egoísta, entenda, prefiro apenas mais e mais detalhes, que nunca se cansam e nunca se acabam não importa a passada.

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O Jackson quer muito ter um carro e botar ordem no mundo. Porque ele é da organização e ele diz que sabe que eu também sou. Aquele papo. Na opinião dele somos feitos um pro outro. Sua máxima é “a organização ganha da bagunça”. Ele diz, “tem que organizá tudo isso aqui”, e quando diz isso ele faz um movimento com o braço mostrando o “tudo”, que é tudo mesmo. Tudo. A cidade, a paisagem, e o que mais? O braço dele faz o desenho do infinito. É tudo mesmo, pro Jackson. Esses dias ele foi comigo até a UFGRS falando várias coisas, entre vários cortejamentos delirantes, disse que eu posso pensar em levar ele pra minha casa se eu quiser. Mas eu disse que não quero. Eu às vezes compro coca-cola pra ele no super. A primeira vez que eu vi ele, eu estava de saída pro Arcano do Ônibus, ele disse “sai de perto de mim”. Depois mudou essa abordagem. Uma vez ele me pediu bombril. Falou que era pra limpar calotas e ganhar 20 reais. Eu fiquei puta com ele quando ele pediu pra eu comprar ruflles e tava custando 9 reais. Depois disso eu fugi dele um pouco, porque eu tava bem sem dinheiro e o ruffles me deixou puta porque eu não compro nem pra mim. Mas coca é de boas sempre. Até passei a comprar pra mim depois dessa amizade de fronteira. Má influência. Ele tem 32 anos. É canceriano. Sabe ser insuportável. Mora embaixo da marquise do hotel e tá quase sempre entre esse lugar e o supermercado, pedindo. Ele tem táticas de terreno e um movimento de corpo performático, muita lábia, muita mesmo. Ninguém consegue parar o Jackson. Muitas vezes ele é imprevisível. Já vi ele assustando mulheres idosas. Ele já mostrou o pau pra mim. É terrível esse Jackson. Cachaceiro. Diz que não gosta de comer muito. Me con-

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tou a história do homem que não tinha sabedoria para comer feijão e arroz. Que comeu rápido, comeu muito e depois deitou-se no sol pra dormir. Diz que a comida ficou toda empedrada no seu corpo e precisou fazer uma lavagem estomacal. Diz que foi uma nojeira. E isso aconteceu faz tempo, parece, mas não ficou claro com quem. Quando o Jackson tá sóbrio é mais de boas a conversa e, basicamente, é só ele que pode falar. Se eu interrompo, deuzolivre! ele faz “shhhh, escuta”. Ele me contou um dia uma história que eu consegui acompanhar até o fim – e não é que eu compreenda inteligivelmente a história toda, mas rola muita mimica e expressão. Compreendo porque somos dois seres que gostam muito de se expressar e não tem coisa mais alegre pra mim do que dar continência pra expressões performáticas no espaço público. O Jackson com certeza seria meu voto no troféu performer da rua. Enfim, nesse dia ele me contou que foi tomar sol na orla. Disse que uma hora ficou uma energia ruim e, pra expressar melhor a ideia disso, ele contorcia muito o rosto. E em seguida veio a cena que expulsam ele de lá. Eu refleti e perguntei como que tava a rua nos últimos tempos, se tava mais violenta. Ele voltou a fazer a cara contorcida e seguiu contando, muito indignado. Depois o teatro virou, ele já tava mostrando como ia lutar com alguém. Parecia um galo de briga. Eu sempre rio muito do que ele conta e ele pergunta “do que tu tá rindo guria”, e eu sigo rindo, ele segue a história. Geralmente ele não me ouve, mas quando eu rio dele ele ouve sim. Quando me vê ele me chama de longe, ô amigona, ô power ranger, as vezes chama de princesa. Depende do humor. Mas sempre rola o tradicional soquinho na mão. Uma vez eu tava sentada na escadaria porque tinha feito uma bolha no pé. E ele chegou ali – o que não é comum

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porque a escadaria era habitada por outra tribo e eles tinham rivalidades. Ele sentou do meu lado e fumou craque. Falou que meu tênis era ruim, que não era esportivo, que não era bom. Bom era o dele, ó. Nisso veio a moradora rival e expulsou ele de lá. Brigaram feio os dois. Ela acusava o Jackson de ter deixado um saco de cocô ao lado da barraca dela. Ele indignado só dizia: “eu caguei na tua baia? Eu caguei na tua baia?”. Eu saí de fininho e quando me viram sair, ambos me deram tchau com sorrisos, como se nada tivesse passado.

um cheque de 700 mil. Ele estava agora com uma cicatriz no rosto e hematomas nas pernas. Falou que eu podia levar ele pra minha casa se eu quisesse. Aquele papo. É terrível esse Jackson. Rua Coronel Fernando Machado, é a rua do arvoredo, é a rua do açougueiro que vendia carne humana, é a rua da mulher sequestrada do castelinho, é a rua da Cúria abandonada, é a rua da comuna, é a rua da escadaria, é a minha rua e é, também, a rua do Jackson.

Gosto dessa interação, mesmo sendo mínima. Se eu quero coabitar eu aceito coabitar. Mesmo que na fronteira. Às vezes parece arriscado. Não sei. Só sei que aposto nisso e que isso me faz sentir mais habitante e me faz pensar. O Jackson, por mais difícil de lidar, por mais desafiador de sustentar, me inspira. Uma vez eu fiz ele rir. Eu descobri os dentes dele. Ele não ria nunca. Sempre sério no delírio ou na trova. Eu gosto mesmo é de ver ele de longe conversando com outras pessoas. De longe dá pra perceber a dança que ele faz ao falar. A ginga do homem selvagem, insuportável, entregue aos braços da rua agasalhadora do mendigo. De longe se escuta a malandragem, as heroicas histórias em ato. Teve uma época que ele sumiu da rua. Eu fiquei preocupada. Fiquei triste até. Por outro lado, a rua ficou muito tranquila e eu fui me reacostumando a circular por ela sem ser abordada. Passaram-se uns meses e, um dia, eu tô voltando da Cidade Baixa e vejo ele vindo do outro lado da rua. Vinha com um sorrisão imenso “Ôo amigona!”. Na camiseta dele estava escrito “welcome”. Disse que passou um tempo na zona sul, que foi buscar um ventilador e outras coisas, além de um envelope com

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V cocê est peidraddêe- . nuáncaperdendo l p a a r o u dea

vida n quando a ci as f d o a r d ç e a s os int são re autênt colhid eriore icas da a s s , p se conv r c i h v upadas ados. erte n De para u r m e a p vida. R e c n i te a c dade fa esta idade nt a a s m e a l caos, d , a esvazi tornar a vi ada de -s e o l o ê n t c deiro e ia, do mido lu infern temido gar do o. o u seguro E t n r q o u , anto v um verd em seu oc aê s a i cinza, c n r t e eriore dita e aband s, star o l n á a d f despre o o ra tud como os zadas o f a m . i u c r A o s c ficou idade e as fach dese des a e n d n c a c a s a n n t t válido ado, e a porq . Quem ue voc o con ê é t r q dar ate á u r e i o vai qu também nção a ere é r e s a midos? s i e n da rep amonto você ado arar, s e d e d e Toma se p prime t r édios d us c ambé ep o m r m i p e r n i ã paliat midos, o sabe ivos pr tenta t porquê a . a z p e citar a r r e s b , mas a u racos c o mund al om o , m a e pouco , v o não o l ta a so te tr enc lia o n n s t f r O que o a rma nu ndo, p era p ouco a ma a r r u a í n dentro a p ulsar angust , se e i a. e j a x a d p a l n á dir, s fora , eja aq e s t á obst ui ruído.


Era assim, pesada, maciça. Um elemento construtivo, de concreto aparente, com a estrutura toda torcida, se desenvolvendo em linhas que saiam da base, se estreitavam numa cintura apertada, sempre torcendo, para logo se abrir de novo e chegar lá em cima, bem alto, feito uma árvore frondosa cinza. Me demorei indagando o que era, pra que servia, como ousava estar ali. Tão monumental assim, mero reservatório não seria. Não podia ser. Logo pouco me importava os por quês e os para quês. Era bom sentar ali toda pequena diante daquele enigma. [continua]

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arCaNo XVII O HIPerBOLOIde DE reVoLuçãO


Disparado em 28 de junho de 2018 às 17:40 por arcanosurbanos Lua Cheia

com o destino, um olhar que explode coração68 (malditos trocadilhos). …então para dar abertura ao arcano maior e poderoso da lua cheia invernal de Porto Alegre, vem pra cáaaaaaaaaa…. Cigano Igooooooooooor!

Boa noite jogadores! A lua está cheinha no céu de Porto Alegre! O clima nebuloso, cinzento nos acompanha na vibe gélida dos dias. Hoje teremos um arcano especial. Um arcano maior, localizado. Uma coordenada emergirá ao longo dessa escrita/leitura e um mistério dará o ar de sua graça. Em primeiro lugar, esse arcano quer roubar você do seu tempo linear, da sua agenda, ele quer desviar você para um local preciso na cidade e, quem sabe, fazer a mágica de abrir uma temporalidade. O gesto é simples, procurar desvendar um enigma urbano. Mas onde? Sabemos que esta é a nossa última lua cheia antes do último eclipse do ano. O jogo se aproxima do fim. É por isso que hoje não teremos nenhuma referência bibliográfica, nenhum texto bem produzido, apenas a velha e boa zoeira. E nada mais zoado do que do que invocar do espaço novelístico, um excelente exemplar da cultura popular da televisão, da coisa das massas, dos produtos marcantes do entretenimento barato. – Então por que não começar trazendo aqui, direto de 1996, essa figura expressivamente marcada como inexpressiva, ele que é cigano meeeeeixmu, que é fluente em romani, um cigano polêmico, homem de poucas palavras, apaixonado, obsessivo

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(aplausos) Só um pouquinho. Falta o contexto: O que se passa é o seguinte. O cigano Igor é o convidado de hoje para fazer um sorteio para a Cigana. Arcano Maior da Hiperboloide de Revolução. Mil direções poderia ter tomado esse arcano, mil formas de propô-lo. Mas ele vem assim, por esse caminho, o caminho brega e decadente do clichê, do falso aleatório e da ilusão verdadeira, um caminho que precisa passar pela zoeira necessariamente até chegar ao estado de enigma. Todas as pistas estão no texto. Algumas bem guiadas, outras bem perdidas, e outras não tem nada a ver. Boa jogada a todos.

Vai começar de novo: – Entãooo, vem pra cá Cigano Igorrrrrrrr (aplausos)

68. Explode Coração é uma telenovela brasileira produzida e exibida pela Rede Globo entre 1995 e 1996. Escrita por Gloria Perez, com direção de Dennis Carvalho. No elenco estavam os atores Tereza Seiblitz, Edson Celulari, Leandra Leal, Ricardo Macchi, Rodrigo Santoro, Renée de Vielmond, Eliane Giardini, Paulo José, Françoise Forton, Cássio Gabus Mendes, Deborah Evelyn e Maria Luísa Mendonça nos papéis principais. 455


– Querido, que prazer você aqui no programa de auditório dos Arcanos Urbanos! A nossa equipe conseguiu o seu contato, e a sua presença aqui hoje é muito importante pra nós do Oriente Invisível. O programa de hoje é o ápice do nosso trabalho na emissora da Cigana… Fico muito contente que você aceitou o convite. Está tudo bem com você? (silêncio prolongado) Igor move um músculo e fala: – Onde está Dara? (silêncio constrangedor) – …não sei, querido. Aqui não está. (breve silencio constrangedor) A apresentadora olha pela câmera 1 direto nos olhos de cada telespectador oculto por trás dessa leitura, e com um sorriso alargado de euforia arcânica, diz assim: – Vamos então dar sequência ao nosso delírio Igor! Vamos ao sorteio dessa noiteeeeeeeeeeeeee Igor revira o globo que contém 84 bolinhas dentro. Toca uma música típica de sorteios do SBT. Cada bolinha é um dos 84 bairros de Porto Alegre. – Gira o globo! Mistura os bairros! Mistura as bolinhas! O aleatório decidindo o destino do último arcano de lua cheia antes do eclipse!

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Enquanto a música toca e o globo gira, Igor pergunta à apresentadora, de cantinho, onde está Dara, sem, no entanto, mudar uma linha de expressão sequer. A mensageira desconversa, faz que nem viu, mantém a postura de apresentadora bacana, mas Igor insiste: (com microfone aberto) – Onde está Dara? – Querido, é o seguinte. Você está obsessivo desde 1996. A Dara é uma mulher livre, ela já deu todos os sinais que não está interessada em você, e além do mais ela ficou com o Edson Celulari, ok? Então assim, dica da Cigana, aceita que dói menos. – Eu quero a Dara. Tá escrito. É destino. – Então tá bom querido, agora tira uma bolinha do globo, porque a novela aqui é outra, e vamos saber qual o bairro sorteado nessa noiteeeeeeeeeee O globo vai parando de girar e o cigano Igor, de forma meio mecânica, se aproxima para retirar uma bolinha, ele tira a bolinha e esconde das câmeras. Igor passa a bolinha para a apresentadora que sorri com uma cara de surpresa mas ao mesmo tempo de ‘eu já sabia’ e anuncia frontalmente para a câmera 2: – E o bairro sorteado para o arcano maior de lua cheia dos arcanos urbano éeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee

Bairro Beeeeeeeeeee-laaaa Vistaaaaaaa!!!!

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(caem balões do céu) O programa encerra com música animada, sobem os créditos na tela, em evidência, no final, o patrocínio da CAPES, a tela fica preta e acaba tudo. * Habemus bairros. Algo se passa entre o sorteio e a definição da coordenada exata do arcano: um cogumelo cinzento entra na casa da Cigana e flutua no ar lentamente emitindo uma luz cósmica, até que sai, finalmente, pela janela da cozinha e some na cidade. Faz parte do enigma? * Muito bem. Nossas possibilidades arcânicas já possuem um bairro. Agora vamos dar uma olhadinha no mapa do Bela Vista e encontrar algo misterioso. Se não for misterioso, não tem graça. Vocês estão vendo aquele triangulozinho ali? Pois então, curioso. Vamos aproximar mais:

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Gente. O que é esse botão gigante na praça Bela Vista???

Proposta do arcano: Não vale olhar no street view viu, malandro? Segura ansiedade e leva ela pro bairro!! Vamos descobrir in loco, porque in loco é que o espanto acontece. Resumindo: Dar um rolê no Bela Vista. Procurar a praça Bela Vista. Descobrir-inventar o que é esse botão naquele espaço.

Estrelas do arcano: Mapa: liga o strava e vai! 5 estrelas! Video: 4 estrelas! Foto: 2 estrelas! Audio: 2 estrelas! Texto: Aqui temos uma missão interessante. Ao chegar na praça, você saberá do que se trata. Para a Cigana, interessa que você conte, invente, fantasie uma história para esse objeto. O que é? Como ele foi parar lá? Quem botô pa nois? O que ele faz? E como ele faz o que faz – com quem olha pra ele. Etc. Dê sua versão do mistério. 6 estrelas muito brilhantes!

deCIfra.&.Te.deVoro oPtCHá! 462

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[lembranças de um verão passado]

[inverno de 2018]

Eis que foi numa noite quente de verão, dessas que convidam às brincadeiras de rua e ao passeio contemplativo que fui conhecer o cogumelo de pedra. Éramos três nessa noite e estávamos num raro momento de entrosamento mútuo. Havia um ar de expectativa infantil. Somente uma pessoa conhecia o cogumelo, e ela estava a nos guiar. Sem caminho certo. Apenas um mapa sensório, desenhado numa cartografia de intensidades.

Conta-se histórias de que já houve tempo em que se seguia mapas em que não se conhecia nem trajeto nem destino guiando-se pela marca de um X, que, reza a lenda, marca onde tesouros se encontram.

Um ano se passou desde que dele eu tinha ouvido falar. Sempre imaginei esse cogumelo de várias formas. Me atraiu o fato que ele tenha sido descoberto por acaso, por quem, naquela noite veranil, me guiava finalmente até ele. Será que encontraríamos de novo? Ou ele não seria acessível através de um planejamento? Será que seria necessária uma dose extra de acaso para alcançá-lo? Será que para achá-lo seria necessário perder-se? Somente sem querer seria possível chegar lá? Esses pensamentos povoavam minha mente antes e durante o percurso. A Mitologia deste objeto que se encontrava no alto, numa pedra, num triângulo de praça, onde a obviedade passou longe, parecia mítica demais, em uma época onde o óbvio é óbvio demais. Havia uma tensão nessa relação, havia disputa e estávamos nos perdendo. Ao caminhar, nos perdíamos realmente, e de fato. E ao nos perdermos realmente, e de fato, voltamos a nos encontrar. Engajamos num mesmo objetivo.

Os mapas de hoje (aqueles que mais se usam) perdem em textura e, nessa mística, pra seguir até o canto sorteado por aquele outro cigano, foi preciso recorrer a um mapa. Mas nesse, se um destino fosse antevisto, ele marcaria com um círculo azul. Talvez seja só coisa do tempo, mas essas grafias carregam mensagens muito distintas. O X sempre implicava algo a ser descoberto (desde variáveis nas tenras matemáticas, passando pelo uso dessa letra pra bagunçar e inventar novos gêneros na língua escrita). Ao menos esse circulinho ainda se encontra com o X no jogo da velha. Joguemos. Após um trajeto acidentado (ou talvez os pés estivessem mais dispostos a registrar declives e aclives após tantos percursos planos em outras paragens), dá-se de cara com aquilo que poderia ser uma resposta ao enigma! Mas é uma resposta, uma solução? Os olhos de um canoense desvelavam uma caixa d’água - olhos um tanto insturmentais e técnicos. Risadas de crianças na praça em volta do enigma convocavam outros olhos, e reflexos em poças de chuva chamavam a um perambular possibilidades. Via já outras coisas - um pilar pra segurar o céu (tão pesado nesses últimos dias, que de tão molhado tiveram de torcer para secar), um tornado que fora concretado, um parafuso mal encaixado com desejos de taça? Se era pra torcer, torçamos - e acha-se já outras coisas Era um quadro de recados! Ora!

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E parece que entrevê a história de um coelho saudoso decadente que não era de todo anarquista (as tentativas de cães esses olhos ignoram). Nas imediações, de imediato, encontrei outro enigmático; refletido na poça, as palavras e dações de uma mãe se torciam na risada de criança: se precisa tomar cuidado pra não sapato no céu.

elemento recomenmais uma molhar o

Talvez uma resposta (mais que uma solução) para um enigma seja bem o que se fez com aquele botãozão - superfície para [toda] inscrição.

[inverno de 2018] De: arcanosurbanos@gmail.com Para: traditore@formigas.com Em: 22 de julho de 2018 14:28 Assunto: arcano do hiperboloide de revolução Que enigmas possam se torcer é coisa que só se descobre dando chance à mágica. Primeiro, Traditore, vou te levar pro passado, a passear num fragmento renegado, daqueles que se ocultam em caderninhos sobreviventes e que, surpreendentemente, ressurgem com a força de um germe criador. Depois voltamos pro presente, boquiabertos com as coincidências, com as ressonâncias, talvez desmerecendo o falseado sorteio daquele outro cigano clichê. Alegorias...

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Lembrei que depois desta noite de eclipse, refiz o percurso sem mapa numa outra lua cheia e não encontrei mais o ciclone de concreto. Insisti em procurar sem mapa, queria encontrar pelo cheiro novamente. Não era pra ser. Olhando para tua caixa d’água de recados, percebi que a superfície já se renovou muito desde que estive por lá, naquela primeira noite de eclipse. Quantas camadas e quantos recados um tornado concretado, um pilar de segurar o céu pode conter. Na luz solar, teu arcano torce o meu e dá a ele a textura de uma nova camada - te apresento o antes da experiência e anuncio minha saída na direção dela, mais uma vez. Como tu pode ver, as formigas estavam no antes, e estão no agora. Maktub. Estava escrito. E se não estava, agora está. Optchá! PS: as águas da chuva de julho sendo guardadas (é como colher um fruto da janela - elemento básico de bruxaria cigana)

[lembranças de um verão passado] Inesperadamente, ele surge. Muito diferente do que tinha imaginado. “ainda bem que não busquei saber como ele era na internet”. Nada ia superar aquela sensação de conhecê-lo ao vivo. Ali. Reinante. De pedra concreta, torcido e impávido, acolhedor e agoniante. Era realmente enorme. Eu tenho medo do concreto, não confio nele. Mas ele não afugentava e sim reunia. 471


Todos a sua volta. Numa praça com nome de dono de construtora, talvez fosse a coisa mais interessante já construída ali. Infância instantânea: um dos nossos pulava como criança. Queria subir, escalar. Eu queria rodeá-lo e contemplar sua altura, aquela escala assombrosa. Passei a amar mais ainda quando percebi que tanto aço e tanto concreto foi usado ali para que ele pudesse somente existir e que essa fosse sua função apenas. Disseram depois que era uma caixa d’água. De qualquer maneira, uma caixa d’água nada econômica. Era então um monumental reservatório. “É somente um monumento numa praça”. É somente um monumento numa praça? Monumomento. Um momento monumental. Mono lithos. A cidade é de pedra. A pedra impressiona. As crianças desbravam a rua, atrás de descobertas, pela deriva, só podia ser coroada com o encontro com esse objeto que não tem razão de existir e existe. Eu digo viva à existência. De cada um daqueles três perdidos ali. E ao enigma concretado em praça pública.

[primavera de 2018] Todo nosso amor à geometria. A hiperboloide de revolução é gerada por uma reta (diretriz), que gira em torno de um eixo vertical reverso à mesma, isto é, a reta pertence a um plano diferente daquele que contém o eixo.

Giramos pela noite, somos consumidos pelo fogo.

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oc oc oc oc oc oc oc oc oc

e e e e eee ee

co co co co co co co co co

edo edo edo edo edo edo edo edo edo


Sob aquela sombra de árvore conceitual geométrica, fiquei num silêncio grandioso a reparar em tudo. Lixeiras. Brinquedos. Marcas de pegadas. Vestígios de pneus de bicicleta no chão de areia úmida. Acompanhei a história de uma formiga pequena carregando uma folhinha verde que vinha na direção de outra, maior e mais preta. Elas se encontraram, pararam muito próximas uma da outra, rapidamente tocaram-se, e, logo, cada uma seguiu seu caminho. Distraída com as coisas, troquei o tempo pelo vento e esqueci da lua. Ouvia passos ao longe e o canto dos pássaros noturnos. Tudo parecia se abraçar. [continua]

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arCaNo XVIII a CHUva


Disparado em 6 de julho de 2018 às 05:00 por arcanosurbanos Lua Minguante

Olha, Entre um pingo e outro A chuva não molha.

Eu sei, eu sei, não dá muita vontade de sair pra jogar, é frio, é molhado, chama o guarda-chuva, molha o pé na poça, os carros te molham até a cintura na parada de ônibus, você duela com outros guarda-chuvas apressados vindo na direção contrária (no centro de Porto Alegre, em certos horários, tenho medo de que me furem o olho).

Guardar-se da chuva.

-Millor Fernandes Previsão do tempo para Porto Alegre nessa sexta-feira: Sol com muitas nuvens durante o dia. Períodos nublados, com chuva a qualquer hora. Era para ser outro arcano, mas a chuva molhou. Tendo a chuva molhado, ela mesma se converte em arcano. Um arcano que cai do céu, que cai da nuvem, na beira do fim do jogo.

Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está ligada à chuva. E eu não estou agradecendo nada. -Clarice Lispector

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Poucos diriam: Ahh, que experiência! Chuva no inverno, ahhh... No verão esse arcano seria outra experiência, a chuva refrescante… tantas experiências de chuva… Mas aqui e agora não é verão, está frio, está chuvoso e nada podemos fazer se não habitar o clima, habitar a chuva, até ela passar. Bem que poderíamos fazer desse momento algo de lúdico. Afinal, vai chover muito ainda. Foi o que disse o motorista do uber, e foi o que disse o meu aplicativo de previsão do tempo. Para executar esse arcano não precisa necessariamente sair de casa. A experiência da chuva na cidade pode ser essa mesma, de solidão, relaxamento e introspecção, de contemplação das janelas frias a partir de um dentro acolhedor, de estar atento ao som que a chuva faz ao cair na cidade, estando a cidade lá fora, os pingos em sinfonia, ou estando você lá fora com a chuva em meio às cores que a luz refrata no asfalto molhado.

– Oi. Como você tem se relacionado com a cidade abaixo de chuva?

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Está tudo planejado: se amanhã o dia for cinzento, se houver chuva se houver vento, ou se eu estiver cansado dessa antiga melancolia cinza fria sobre as coisas conhecidas pela casa a mesa posta e gasta está tudo planejado apago as luzes, no escuro e abro o gás de-fi-ni-ti-va-men-te ou então visto minhas calças vermelhas e procuro uma festa onde possa dançar rock até cair. -Caio Fernando de Abreu

Modo 1) Recolher a chuva num vidrinho (ou qualquer recipiente com tampa) e mandar de presente para a Cigana (ou a Cigana se encarrega de buscar). 20 estrelas Modo 2) Recolha da vivência chuvosa uma narrativa, seja ela textual (6), em imagem (2), vídeo (4), áudio (2), mapa (5). Modo 3) um outro modo qualquer.

Nesse tempo chuvoso do qual não podemos fugir, o que a chuva te fez ver/sentir/ser? Na cidade, seja lá fora ou lá dentro, chove. Ainda que você não se molhe. abra-se à chuva. abrace a chuva (tome vitamina C e não fique molhadx)

Dia de chuva É para a gente rasgar cartas antigas… Folhear lentamente um livro de poemas… Não escrever nenhum… -Mário Quintana

Proposição e estrelas guarda-chuva: Guardar a chuva.

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FOrTuNas CHUvOSaS! oPtCHá! 481


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De: stella@diver.com Para: traditore@formigas.com; arcanosurbanos@gmail.com Em: 9 de julho de 2018 7:52 Assunto: arcano da chuva Não é a chuva, sou eu. Que chove. Pode inclusive não chover. Saí de casa. Bota, guarda-chuva semi-quebrado (sempre). Olhei tudo com olhos de obrigação. Pensamentos chuvosos. Sensações antigas, que voltam, que voltam, que voltam, que voltam. Mesmo depois de ‘ah já superado’. Mas não há de ser nada mais do que um dia de chuva entre dias de chuva. Luz fraca das luminárias. O viaduto da Borges. A primeira moradora por quem passo está tendo uma discussão com alguma golpista dentro do seu lanche. “sai daqui sua golpista” e atira do lanche ao chão um pedaço de coisa golpista. “sai do meu colchão”. - Mas você não vai se afetar, não vai se afetar, não vai se afetar, e pronto, três quatro passos, embaça a vista e você aperta as pálpebras recusando-se a chover ali no baixio do viaduto seco. Justo ali, onde todos os motivos não fazem cair nenhuma lágrima de chuva. Sai golpista! Então a golpista vai no banco, paga todas as contas menos a de um dos cartões. Golpista. Compra cigarro, abre e fecha guarda-chuva quebrado. Paralelepípedos de basalto molhado. O Mercado Público que vende tabaco e os funcionários de boné que olham os clientes nos olhos. No caminho de volta, a moradora do viaduto estava ainda co-

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mendo o lanche, mas falava baixinho e tinha uma expressão de leve sorriso. Ela não tinha colchão nenhum, reparei. A cama dela era como um tapete, uma canga. Direto no chão. Nunca se consegue conjugar uma narrativa em uma pessoa só. É sempre eu, você e tantos outros. A linguagem que se adapte à experiência. Não coletei a chuva ainda. Estou esperando outro tipo de chuva pra recolher. Portar a chuva. Portar uma música na cabeça enquanto desliza-se na velha melancolia invasora dos dias chuvosos.

[Ritornello] Non c’è nessuno Ho amato un’ombra Non c’è nessuno Un bacio all’aria Regalerò De: traditore@formigas.com Para: stella@diver.com; arcanosurbanos@gmail.com Em: 9 de julho de 2018 8:34 Assunto:(RE)arcano da chuva Já não sei a quem falo. Cigana, Stella? Também nem sei se sei quem fala. Talvez um desdobre ou um outro dobre de quem se propõe trair, mas pra isso também precisa coletar, e nessas, conecta. Se páh, até chove. Quem não chove às vezes? 485


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Façamos trocas de chuvas.

veiro.

Já teve apaixonamento pela chuva, mas passou a ter culpa dessa paixão. Assim como a moradora em briga com uma golpista, a chuva trata mal uma galera que não tá aí com o substrato ou o uso “acertado” dessa tal tecnologia de moradia que se toma hoje por padrão (e que tecnologia absurda ela é, quando pensamos em suas possibilidades). Aí sai hoje o traidor-coletor pra furtar caminhos pra fora dessa cidade que tão pouco funciona quando chove, e tem lá seus estranhos encontros e conexões.

Outra chuva, de uma música que mistura vozes e gêneros e que me acompanhava na chuva de hoje:

É engraçado o como se sai: casaco impermeável e capuz, botas que já o acompanham há anos e subiram montanha e pisaram neve... Tudo por raiva dessa malograda invenção - o guarda-chuva. Mas assim, de escafandro urbano, pode-se dizer que se anda na chuva? A luz é outra quando chove. E no dia, pra estranhar, tem um quê de errado e de indignação que só dilui na chuva. Vivência metafórica: ao voltar pra casa (abrigada da chuva), toma-se novo banho de roupa num chuveiro - pra vencer uma resistência que no fim se queima novamente. E quem me para na chuva (que essas pessoas que não tomam ônibus tanto esperam nas paradas?) parece que me procura como a alguém específico. Mas não (ou sim?). Depende se posso pagar um café. Mas na minha xícara chove e acabo chovendo na proposta. Chuva nojenta de Porto Alegre que mais sobe dos asfalto do que cai nele. Uma chuva, uma última antes de retomar a do chu-

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Walk in the rain, in the rain, in the rain I walk in the rain, in the rain Is it right or is it wrong and is it here that I belong I don’t hear a sound Silent faces in the ground The quiet screams, but I refuse to listen Tem ainda uma coisa sobre a chuva que precisa ser compartilhada. Outra das coisas catadas, que já carrego há tempos e me faz seguido chover novamente. “Chove em Porto Alegre. Sim, você que está lendo esta mensagem provavelmente tem janelas em casa, e meu breve informe é basicamente inútil pra você. Eu sei disso, e não preciso de nenhum comentário irônico dizendo que você mora em uma caverna embaixo de uma pedra (mas se você de fato morar em uma caverna, por favor, me convide para visitá-lo que eu levo minha camiseta do Batman). Sim, é óbvio que chove e que você não precisa de mim pra saber disso, mas eu não estou postando isso aqui para te informar. Ninguém que já puxou o papo “que calor, né?” em um elevador estava interessado em discutir as condições climáticas da cidade, mas em estabelecer um contato com outros seres humanos, quebrar a barreira de silêncio e

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indiferença que os separa e acabar com o desconforto que tanto marca essa solidão que vivemos todos os dias. Por trás dessas minhas palavras desengonçadas e deselegantes existe mais do que apenas o fato de eu ter visto água caíndo do céu nessa noite - existe uma história muito longa de interação com outras pessoas, que me permitiu ver água caíndo do céu, saber que chamamos esse fenômeno de “chuva” e poder dizer isso para aqueles que de algum jeito estão perto de mim. Existe, também, o fato de que estive longe de Porto Alegre por tempo o suficiente para esquecer que de vez em quando chove por aqui, e que ver isso outra vez da janela do meu quarto outra vez parece algo tão impressionante e mágico que preciso compartilhar isso de algum jeito, por mais imbecil que possa soar. Quando eu digo “chove em Porto Alegre”, eu não quero apontar o óbvio. Eu quero que você me veja apontando o óbvio, e perceba que compartilhamos um universo, e isso não é óbvio.” Samuel Eggers - 03/07/2013

E com essa te/vos deixo por enquanto, pra voltar na próxima chuva. De: stella@diver.com Para: traditore@formigas.com; arcanosurbanos@gmail.com Em: 11 de julho de 2018 2:16 Assunto:(RE)arcano da chuva

car. Ou algo que, ao molhar, se deforma. Somos personagens de papel? Ou sim, a resposta pra aquela pergunta no tapume é sim? sim, sou a nuvem que chove. Somos, acabamos sendo. Pois que mergulhadora seria essa que se desacomoda com a chuva, renega seu neoprene e inveja o metal frio dos escafandros? Stella nunca viu chuva nenhuma lá de onde ela vem? Bicho acuado em territórios superficiais velozes? Se pá, não é nada disso, caras formigas traidoras (também deformadas, a força é maior), somos a chuva profética da baleia. O que me demoraria a explicar agora, porém seria inclusive capaz de demostrar em esquema gráfico. Mas isso não importa agora. Pois se somos a chuva que chove eu quero é saber: qual a velocidade do pingo quando ele atinge o meio-fio da calçada? Claro que há também a Cigana, não enxergo (às vezes é verdade que chego a concluir parcialmente que não a sinto), mas como prometeu, está bem aí, provocando os meios. E não podemos deixar de ver ali naquele canto da casa, 1:52 da manhã, insone, padecendo de tudo, uma mensageira que já se esgota ao fim de um lavoro continuo feito de pura devoção. Os deuses e os fluxos errantes são impiedosos. Mas é assim que é. Sabia-se lá no início. Profética promessa, “exaurirás em meu nome durante as chuvas! derreterás os personagens e perderás sua(s) face(s)! tranforma-te-ás em CHUVA! tu e todos aqueles que se unirem a ti!” o cowboy ressoou muito aqui:

Os personagens parecem algo como feitos de açú-

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I walk in the rain, in the rain Why do I feel so alone For some reason I think of home Pensei em muitas casas, ou foram as casas que pensaram em mim. Quantas casas pensaram em vocês, formigas diluídas? Uma das que pensei, talvez a casa protagonista dessa chuva, estava soterrada por camadas do 2000. 18 anos, dois ciclos de 9. E novesforazero. Rebobina a fita, assiste. Chove. Volta transbordado e tudo está fora do lugar. Boiando. Mas de repente você está agradecida porque se lembrou. Se lembrou de você se lembrou! Se lembrou! Como pôde ter esquecido! E chove, chove, os pingos violentos estouram em coroas d’água no chão da pedra dura, na poça, no parque, na Avenida Ipiranga, nos telhados, nas janelas, nos monumentos de cavalo. E ainda não sabemos calcular a velocidade que vinham. O gozo maior da leitura: “Chuva nojenta de Porto Alegre que mais sobe dos asfalto do que cai nele.” Um salve especial a: Samuel Eggers Obrigada pela companhia, até a próxima chuva

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Você está perdendo a cidade. nunca parou de perdê-la para os fantasmas que retornam

viciados e sedentos por vingar sua obstrução. Sem poder se expressar e se expandir, a substância vital e sagrada, tal como água parada, oxida, apodrece, e se torna um veneno. Envenenada, ela retorna para te assombrar. De repente você está rodeado de fantasmas. É quando aquilo que devia ser uma potência de animar a cidade, passa a atacá-la. “A alma do mundo está doente. Seus sintomas nos atingem, nos afligem, agridem, falam conosco”1 . A cidade adoece. Você também. Você se repete em agonia, multiplica patologias e sofrimentos de uma alma que é reprimida, rejeitada, negligenciada. “Nossos prédios são anoréxicos, nossos negócios, paranóicos, nossa tecnologia, maníaca”2.

1. Hillman, 1993, p.7 2. Hillman, 1993, p. 12


Voltei pra casa por caminhos diferentes, beijada pelas coisas, com acelerados passos nas descidas, sem esforço, pelo meio da rua, vento bom. Era bom demais interpelar a rua sem interpretá-la. E era bom demais ser filha da lua. Pouco a pouco tudo foi voltando. Encontrei o muro do IPA, dobrei naquela esquina que não me deixou parar, desci a Liberdade e abri o portão. O eclipse é sempre passageiro. Logo a luz volta pra consciência. Logo os alvéolos estão contraídos e o batimento cardíaco não se faz notar. Dentre tantas cores de caneta, quis a azul. Azul escuro, cor da noite. Azul sobre este amarelo vivo do papel, quase alaranjado, como o eclipse que não vi ontem. Não vi. Não vi. [.]

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arCaNo XIX a ESQuIna


Disparado em 13 de julho de 2018 às 05:04 por arcanosurbanos Lua Nova

res, imagens pré-estabelecidas. Enxergá-lo na sua essência, vulgaridade, realidade, possibilidade.

De repente a gente se encontra numa esquina, num outro planeta, no meio duma festa ou duma fossa, a gente se encontra, tenho certeza.

Optchá nas alturas senhoras e senhores! A noite é escura, o caminho é tão longo e a lua me traiu. Vamo lá vê se eu tô na esquina? Antepenúltimo Arcano Urbano, estamos todos na expectativa do arcano final da nossa grandiosíssima festa. Mas se acalme criatura!

– Caio Fernando Abreu

Retirar tudo, até não sobrar nada. Esgotar o lugar.69

– se acalme você! A DATA: 13 de julho de 2018 A HORA: 03:38 AM O LOCAL: porto alegre, JK da mensageira O TEMPO (clima): madrugada, 7 graus, neblina

Hoje teremos a presença de ninguém menos que o queridíssimo e ludicíssimo cigano Jorginho Perec. Sob a influência desse olhar de Jorginho vamos testar mais uma vez nossa habilidade de fazer cidade.

Um canto, uma quina, um ângulo. Um cruzamento, um vértice, uma intersecção. Um corte provável, um desvio possível. Ao dobrar a esquina já se é um outro que(m) caminha.

Condenamos nosso ato de ver ao puro condicionamento mercadológico e espetacular. Vemos o mundo com olhos objetivos, mecanizados, procuramos e decodificamos apenas o funcional e utilitário. Fica evidente a consequente relação que temos com a construção da Cidade. Um olhar utilitário e mercadológico constrói Cidades do mesmo tipo.70

Forçar o corpo ao seu limite, o lugar ao seu limite. Estressar o sistema. Conduzir o conjunto a um estado crítico, até a fragilização da aparente estabilidade funcional e organizacional que envolve o lugar. Inutilizá-lo, revelar seu verdadeiro estado. Colocá-lo cru e totalmente disponível à leitura, sem máscaras, empecilhos, representações espetacula498

69. SILVA, Ricardo Luis. Experiência do inútil, enfim. Prefácio em PEREC, Georges. Tentativa de esgotamento de um local parisiense. São Paulo: Gustavo Gili, 2016, p.9. 70. Idem. 499


Eu vou contar pra vocês o que o Jorginho fez. Em 1974, no final do outono, Jorginho saiu de casa numa sexta-feira fria e cinzenta, bem como a nossa de hoje em POA-R(b)S. Caminhou até uma praça e procurou um lugar para se acomodar e observar. Ele fez isso durante três dias seguidos e foi mudando sua posição no espaço: se instalou em cafés, tabacarias e bancos no entorno dessa praça, observou e registrou em seu caderno tudo o que acontecia a seu redor e tudo o que estava ao alcance do seu olhar: os acontecimentos cotidianos da rua, a circulação de veículos, pessoas, animais, nuvens, a passagem do tempo. Mas é o Arcano da Esquina e não o da praça. Então é nelas que vamos (des)focar. O Arcano da Esquina convoca nossa atenção para o que há de ordinário e inútil nas esquinas, e fazer disso uma celebração. A atenção está voltada para a vulgaridade do cotidiano. Que esquina você irá escolher?

no meio-fio, ou levar uma cadeira de praia né, “pra não pegar friagem”. Pedir uma água, um café, uma cerveja, um suco de melancia, acomodar-se em uma mesa, no balcão, num banco, numa cadeira ou poltrona e retirar da bolsa uma caneta e um papel. Começar escrevendo: A DATA: A HORA: O LOCAL: O TEMPO (clima): Depois disso, anotar tudo o que está ao alcance do seu olhar. Quando digo olhar quero dizer sentir. Escreva as imagens, os instantes, os gestos. Escreva aquilo que há, escreva também o que acontece. Sem regra nem cadência, sem ordem nem hierarquia nem periodicidade. Registre de acordo com a afetação dos seus sentidos. Assim que esgotar o local, ou assim que o local esgotar você, anote a hora e vá embora.

Proposição do arcano:

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As estrelas do arcano:

Tentativa de esgotamento de um local parisiense71 porto-alegrense (você pode trocar o nome da minha cidade pela sua, por exemplo! Afinal se trata de um arcano menor realizável em qualquer cidade da galáxia):

Receba extraordinárias 20 estrelas pelo texto, 5 estrelas se houver um mapa (strava), 4 estrelas se fizer algum registro fílmico.

Escolher uma esquina da cidade: de preferência, onde haja um café, um bar, um restaurante, ou algo semelhante onde se possa entrar e sentar e olhar para fora. Nos casos em que a esquina não oferece a oportunidade de observá-la a partir de um interior, pode-se sentar na calçada, nas muretas das vitrines,

Felicidades! Atchin! Saúde!

71. Totalmente inspirado em: PEREC, Georges. Tentativa de esgotamento de um local parisiense. São Paulo: Gustavo Gili, 2016

oPtCHá! 501


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Larôye Èsù! Esgotar um espaço, um tempo, uma vivência: rola? Ou se esgota uma relação com esses? ‘inda mais tratando duma esquina, meio que conjuga dois pés... Então, cabia eleger uma esquina, e o corpo pensara em duas. No fim, foram três propostas, pra aceitar a temporalidade de criação do corpo, que não sentiu de início voltar a mais chamativa das esquinas para ele (mas desse tempo falaremos no fim). Uma ia ser uma volta pra casa e mais adequada a chamada que se fez pra iniciar essa mensagem - General Lima e Silva com Rua Lopo Gonçalves, o famoso Rossi, ou bar do Afonso. Mas é sempre um risco - e quem quer esgotá-lo? (E o som do lugar distende as capacidades de permanência de um corpo, aí foi-se que foi-se e isso serviu de desculpa pra se jogar em outra). Bom, tem uns triangulinhos nessa cidade que me chamam atenção, e de frente pra um desses tem um café onde nunca havia parado. Dessa feita, e num processo de tocar outras demandas, vi-me frente a ele e entrei. Tá eleito pra agora. Antes da entrada, um pensamento que assaltava a caminhada que até lá se fez... “Lembra que as catracas da UFRGS eram meio permissivas e não exigiam o cartão da universidade pra liberar entrada? Qualquer cartão com fita magnética liberava elas. Então havia certa confusão entre cartões de crédito, banco, e o de acesso (já não se usava tanto os de orelhão). Buenas, não é bem uma confusão isso de misturar acesso espacial-institucional e símbolos de acesso a capital.” Um bloco de papel estampado com uma foto de Bezerra da Silva foi superfície para os registros que no café

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se fizeram (o acesso sendo garantido pela paga de um expresso e uma empanada de brócolis, por que a especiaria tem de circular). Transcrevo os riscos de sua pele: DATA: 24 de julho HORA: 17h47 LOCAL: esquina R. Pinto Bandeira c/ Andradas - Café Dom Feliciano (na cadeira indicada pela “normal” da porta) TEMPO: nublado com sensação de úmido, cair da tarde TV ligada. Falta pão de queijo. Silêncio - mas há um murmurar de eletroeletrônicos. À frente, a porta é uma moldura pra fora (ref. Janelas da Alma). Por trás dela, dois triângulos - um sob o asfalto, outro pra além dele. Todo tipo de automóvel passa rapidamente no meu campo visual, seus olhos de inseto marcados pelo início do crepúsculo. Pessoas passam, forçadas a dobrar a esquina ou invadir a rua (malditos guardrails) - três a quatro passos, no máximo. O movimento é de fim de dia. Há mais lotações que ônibus correndo aqui. Porto Alegre tem uma fauna diversa. Velho gordo de bandana. Garota toda colorida. Senhora apressada. Não sinto nenhum cheiro, nem mesmo do meu café. Moletom com bermuda. Mochilas nas costas, mochilas que pendem de um ombro, mochilas na frente. Sacolas plásticas (do Rissul). Como há carecas aqui! 505


É uma esquina - muita gente dá sinal errado. Engarrafamento. Rodas de liga leve. Vultos de árvores e desnível na praça. Sons de um varrer. Amanhã, às 17h45, Belíssima. Fernanda Montenegro, furgões, T9 e Iguatemi. T9 e Iguatemi, novamente. É de se perguntar como alguns desses ônibus conseguem dobrar na pinto bandeira. Sacola e mochila combinando, guarda-chuva verde. Listras. Tênis branco. Cada momento mais escuro, cada momento mais engarrafado. Santana. Segue o trânsito parado. Tem uns tesouros que andam com calma. Muitos são só o telefone mesmo. As letras da entrada, nessa perspectiva, de trás pra frente, lembrar árabe (só aquelas que dizem “café”, as outras não). Tem um desnível no asfalto, que atua como um quebra-molas. Botas de cano alto. Quase todos que passam vão sozinhos, à exceção de uns poucos casais. Sacolas voam, levadas pelo vento, mais rápido que os carros. Um ciclista. A luz dança. Tem certo ritmo de um balé no passo alternado dos caminhantes. Toucas. Alguém passou ouvindo um funk. Tirando isso, motores e o ranger de suspensões. Uma moça de voz mais aguda falando alto. Mas o som já vira um novo silêncio de outro colorido. Casaco vermelho, tênis vermelho, casaco camuflado, casaco de couro, preparativos para fechar a loja (e esse sinal não abre!). Na janela, sombras. Motos. Abre o sinal. Moinhos de Vento. 6417. Parece que alguns dão voltas. Nova bicicleta. Ruiva bocejando. Tão poucos olham pra dentro (e esse sinal não abre!).

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Chamadas de outros lugares, outras encomendas (é a cidade, e o sinal abre). O som é de papel amassando - e suspensão e motores, e múrmuros eletroeletrônicos (motor linha branca). Alguém bebe um refrigerante Pessoas passam com pressa. É co pesado, sapato lustroso, tem mais cores que pessoas? queixo finge estar na rua, esse sinal não abre.

- carros seguem parados. você? Talvez não... Casacabeça baixa. As sombras Um reflexo com a mão no preso pelo guardrail. E

Há olhares que não se esgotam. Mas a agulha discorda. Reduz-se a velocidade, alguém intenta entrar, mas não entra (não há acessibilidade aqui, há degraus). Segue o impasse (de porta aberta o ruído é outro) - no fim, não se entra, a despeito da oferta de ajuda da garçonete - segue um sussurro eletrônico, uma conversa de fim de expediente. O sinal abre. HORA: 18h21. Quisera ainda tratar de uma esquina talvez inesgotável, na qual já tomara tempo e fizera registros. Ficam caminhos, sinais e placas pra achar alguns momentos de produção nessa outra esquina72.

72. BEDIN, L.; RODRIGUES, E.; CORSEUIL, L.; VENTRE, Anna L. Canto às ocupações: poemanifesto para anarcupação do que nos ocupa. In: Maria dos Remédios de Brito; Helane Súzia Silva dos Santos. (Org.). Variações deleuzianas: educação, ciência, arte. 1ed.São Paulo: Editora Livraria da Física, 2017, v. 1, p. 73-102. Disponível em: <https://www.academia.edu/34192284/Canto_as_ocupa%C3%A7%C3%B5es_Poemanifesto_para_anarcupa%C3%A7%C3%A3o_do_que_ nos_ocupa>; <https://www.youtube.com/watch?v=3aJhfiU1ydY&t - novamente?> 507


A DATA: 05/10 A HORA: 18:42 O LOCAL: Café Caminho Orgânico - Av. João Corrêa, 503, esquina com Rua Esperidião de Lima Medeiros O TEMPO (clima): 20 graus, nublado pra chuvoso, vento friozinho. Com as Graças de Jorginho Perec, escolho uma esquina no qual aconteça bastante coisa. Não que movimentos de carro sejam coisa interessante, mas o fluxo na hora em que escolhi também era de pessoas. Então se torna potencialmente interessante, vamos lá. Entro no café orgânico, me sento numa mesa mais próxima da esquina possível. As janelas grandes e a porta de vidro permitem uma ampla visão do cenário. Carros, carros e mais carros, indo e vindo, ora correndo, ora parando. Cruzamentos. Carros de todos os lados. Horário de pico, horário de nervosismo. Horário em que mais são utilizadas buzinas. São Leopoldo cresceu. Isso é crescimento? Será que isso é bom?

ah as buzinas, essas penetram qualquer obstáculo. Foram feitas para isso, para tirar da zona de conforto. A calma de dentro do café com a agitação do lado de fora são contrastes que me fazem um ser à parte dos acontecimentos. É estranho o quanto isso é bom mas o quanto incomoda, pois quanto mais observo a agitação, mais tenho vontade de entrar nela. Seria um desejo de fluxo? Ou seria apenas a minha vontade de caminhar? Roupas meio invernais, último suspiro do inverno, no corpo das pessoas. Muita sombrinha fechada, muita cara fechada. Carros. ônibus. Nunca para. Uma mulher bate um pano na janela de um prédio ao longe. Vermelho. A essa altura, meu café há muito já tinha acabado, e minha vontade de sair aumentou. Paguei, e pulei pra dentro do quadro viver. Esgotei meus 30 minutos de moldura.

O fluxo também é de pessoas. Todas muito sérias. Hora da volta pra casa, a maioria, presumo eu pelos rostos cansados e vestimentas, está saindo do trabalho. Olhares concentrados no nada. Fones de ouvido. A praça em frente cede espaço para o utilitarismo. Pessoas a cruzam pra cortar caminho. Não é flanância, não a essa hora, para a maioria. Peço meu café, que vai me ajudar a contemplar. Levo à boca e uma moto se atravessa na esquina, quase acidente. Buzinada, um xingão e vida que segue. O vento mexe as árvores. Não há som, bloqueado pelo vidro. O silêncio é uma moldura. Somente as buzinas, 508

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Você está perdendo a cidade. nunca parou de perdê-la quando felizcidade é facil-

mente entregue nas mãos dos agentes do espetáculo, construída de maneira cada vez mais genérica, alisada, pasteurizada, expressa, padrão da construtora x, y ou z, onde os desencantos são celebrados e asfaltados para indústria automobilística passar. Não há ninguém por por você, cidadão ordinário. E você, cidadão ordinário, está cada vez mais acuado, enclausurado, entristecido, com medo ou esquecido desse nosso lugar por direito e por excelência.


“O caminhar solitário tem uma enorme ressonância espiritual, cultural e política. É uma parte importante da meditação, oração, exploração espiritual. É uma maneira de contemplar e compor com movimento. Se caminhar é um ato primordialmente cultural e uma maneira crucial de existir no mundo, aquelas que se viram incapazes de caminhar até onde seus pés as levassem foram privadas não só de exercício e recreação, mas de uma boa parte de sua humanidade.”1

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1. SOLNIT, Rebecca. A história do caminhar. Martins Fontes: São Paulo, 2016, p. 406. 511


arCaNo Xx O VIaDUtO


Disparado em 19 de julho de 2018 às 17:13 por arcanosurbanos Lua Crescente

A errância no ir e vir alinhava, cerzi, coagula. Não cura nem salva, só costura a boca dos abismos. -Fernando Fuão, cigano mestre pontífice

Optchá, queridices! Queridos jogadores, guerreiros de uma saga! O clima está agradável, a lua é quarto crescente e estamos às vésperas do eclipse lunar, quando nos despediremos finalmente da Cigana Invisível, botando fogo em um latão. Finalizando os arcanos propositivos dessa temporada de colheitas riquíssimas, o arcano que emerge com o número XX é ele… Ele, que tem o peso mais pesado e as sombras mais densas; … que se ergue do solo para aumentar a vazão dos deslocamentos motorizados; … que esmaga a paisagem sem piedade em nome de um velho progresso; … que duplica o solo elevando uma nova superfície; … que instaura um em cima e um embaixo; Ele, que é herdeiro da nossa cultura rodoviarista; … que é projeto pensado do velho urbanismo moderno, dos planejadores de tráfego, da colaboração entre governos e a indústria automobilística, dos gestores dos modos velhos e insus-

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tentáveis de se fazer cidade, do privilégio dado à velocidade e ao transporte individual motorizado em detrimento do transporte coletivo e das diversas lentidões; Ele, cujo corpo está por toda cidade; … cujas sombras provocam calafrios e disparam a adrenalina dos corpos que o temem; … cujos baixios foram sempre tratados como espaços residuais, sobras, restos urbanos que não foram consideradas como recurso territorial para uso público; … cujo vazio é um paradoxo numa cidade que é densa, mas que é, ao mesmo tempo, carente de espaços públicos que privilegiem o estar e as relações; Ele, cuja inospitalidade para uns, se transforma em hospitalidade incondicional para outros; … cuja cobertura é o céu que protege a quem não tem abrigo; … cujo espaço vago dá amparo ao selvagem urbano; … que acolhe a loucura, a palavra pixada, o abandono; … que de dia ou de noite é sempre obscuro. Ele é... o viaduto Com vocês, a palavra do cigano mestre abridor de portas e também pontífice, construtor de pontes mágicas, o bruxo Fernando Fuão. Pontes ou viadutos são elementos que conectam uma ideia a outra, um tempo a outro, transportam. São elementos que estabelecem ligações, laços. São passagens. O lugar da travessia. Na ponte tudo se dá no ‘entre’, no entre espaço que comunica. A ponte por natureza é o espaço da indefinição, não 515


pertence nem a um lado nem a outro, nem acima nem abaixo. Ela é intermediária, intermediação, quase uma terra de ninguém, um entre-espaço. A errância não tem um espaço muito próprio dela mesmo diferentemente da espera, talvez por isso posso tornar um baixio de viaduto em uma casa. A ponte, o viaduto ou a escada equivalem exatamente ao pilar axial que une o céu a terra, e os diferentes estados do ser. É por eles que se dão as comunicações, a passagem das mensagens e a circulação no espaço. Diz a mitologia que eles são um símbolo que se expressa materialmente por sua horizontalidade, mas que tem um significado plenamente vertical. O plano da travessia horizontal, de um lado a outro, define o passado, presente e futuro. O plano vertical define a travessia transcendental do ser. O acima: refere-se ao ascendente, ao celestial, e o abaixo: o descendente, os planos inferiores, o próprio inferno. Os viadutos estão impregnados dessas mitologias. A sociedade em geral teme o que se encontra ou se aloja sob eles, nem chegam perto. Infelizmente acreditamos que os seres que habitam os viadutos em sua parte inferior estão em níveis inferiores em todos os sentidos da existência e dos estados da alma. Mas é tudo ao contrário. Quanto mais me aproximo desses espaços mais me surpreendo com suas potencialidades e revelações. Muito me debrucei sobre eles para pensá-los. Acho que sempre vi as pontes lá de cima, de sua superioridade, ou melhor: sua superficialidade. Sem nunca descer aos abismos antes, nunca

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pude experimentar sua verdadeira dimensão, sua profundidade. Sempre achei que era em sua parte superior, em sua superfície que se davam os encontros. Hoje, tenho apreendido mais embaixo deles, do que sobre eles. Mais uma vez elas me mostram algo novo, o inusitado. Curiosamente a simbologia sobre pontes e viadutos pouco ou quase nada fala das pessoas que vivem sob elas. Foi ali, sob o viaduto da Conceição em Porto Alegre no início de uma noite veloz, fria, muito fria de inverno, que vi alguns anjos entre os escombros de centenas de sacos de lixo, trabalhando freneticamente sobre uma tênue luz incandescente. Os baixios dos viadutos são lugares de abandono, escuros, sinistros e inóspitos, insalubres para a maioria da população, mas é justamente sob eles que os moradores de rua e os catadores, recicladores vão se situar e sitiar-se como casa e lugar de trabalho. Esses espaços são frutos das mazelas da sociedade moderna, da agitação produzida pelos automóveis. A essência do automóvel é abolir o espaço da espera, dos entrecruzamentos. É. O viaduto é o lugar da provação, mas também da provocação: as partes de baixo de todos os viadutos – esses espaços degradados, sem domínio, terra de ninguém, promotores da violência deveriam ser de uso público, destinados a projetos sociais de habitação, promotores de renda e resgate da dignidade dos moradores de rua. Uma forma de inclusão dentro da exclusão, uma forma de minimizar os campos de concentração que a biopolítica criou expulsando para as periferias os pobres, tal como acabou-se estabelecendo os 517


campos do 3ª e 4º mundo. Justamente, no meio do viaduto, se forma a cruz que estabelece as correlações e orientações do acima-abaixo (ascender-descender) frente-fundos (passado-futuro). O lugar do ritual, da consagração. Essa ocupação dos viadutos deveria dar-se como uma sacra estratégia de guerra: ocupando esses espaços vazios sinistros, minando suas bases e seus pilares de vida, renovando e recheando-os de humanidade, costurando suas margens e revendo os sentidos da cidade. Devemos ter em mente que o arché da criação das cidades é a felicidade de todos os seus habitantes. O viaduto é o lugar atávico dos moradores de rua. Nele, os sem teto encontram seu teto, sua proteção. Nele, também acontece tudo de bom, ele é o abrigo, a morada, o trabalho, a festa e a celebração.73

Oração à Nossa Senhora dos Viadutos Oh, mãe das situações de rua! Fazei com que nós façamos de teu território sombreado o sagrado lugar do encontro e das atividades cotidianas.

73. Esse texto é um remix incrível e inédito e imperdível de dois textos roubados, torcidos, traídos na cara dura, de Fernando Fuão. As ocupações dos viadutos e as formas do acolhimento; Sob Viadutos. Os textos se encontram inteiros e intactos aqui: <https://fernandofuao.blogspot.com/2013/11/as-ocupacoes-dosviadutos-as-formas-do.html>; <https://fernandofuao.blogspot. com/2012/12/sob-viadutos.html> 518

Que tua celeste cobertura de concreto protendido possa hospedar os errantes em espera, ser o teto daquele que não tem, assim como promover ações culturais e festas urbanas. Que a tua elevação continue embalando o fluxo e a passagem, mas com a graça da qualidade espacial, nos abençoe com momentos de permanência. Com a força da criação, fazei com que possamos transgredir seu des-uso original e dotá-lo de qualidades não previstas, amparai a queda do suicida e livrai-nos do mal, Amém!

Proposição do arcano: Escolher um viaduto. Circular por cima e por baixo dele experimentando as dimensões horizontais (eixo do passado presente e futuro) e também as dimensões verticais do em cima e embaixo, céus e infernos. Parar, estar, ocupar, habitar temporariamente as dimensões desse arcano de concreto. Mostre para Cigana sua experiência viadútica, seja ela em forma de narrativa textual, audiovisual, ou percurso no mapa. As estrelas são as de sempre. São muitas e ansiosas por serem distribuídas.

oPtCHá! 519


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10/10/2018. Quarta feira. Assembleia no viaduto do brooklin, após o primeiro turno das eleições. Tem sido um período de alto teor de despotencialização. De corpos e almas. Depois que a imunidade aumentou, depois que a placa na garganta apaziguou sua luta microbiana, é minha vez de sair pra rua. Ainda tenho o corpo febril. Mole. Me sento aqui, nesse mobiliário urbano improvisado pelos skatistas habitantes tradicionais do viaduto. Rampa de concreto. Espero o ato começar e espero encontrar a Deka. Não é a primeira vez que o arcano do viaduto aparece nas manifestações. Da primeira vez, quando ainda tinha esperança de que essa onda fascista seria apenas o ruído das correntes fantasmáticas do passado e nada mais, cruzei o viaduto interrompendo o trânsito pros tambores, bandeiras, faixas e pessoas com seus gritos passarem. Encontrei por acaso (sempre o acaso) o Traditore, que vinha usando camisa roxa e, quando nos aproximamos, ele tropeçou num cucuruto de sinalização e caiu. Não sei como, ele caiu e eu o segurei com os braços, me lembrou muito a cena petrificada de Pietà. Foi rápido, logo nos desencontramos. Em outra manifestação, também por acaso, encontro a Minerva, quando a marcha passava pelo mesmo viaduto. Nos abraçamos e demos gritinhos eufóricos de encontro ao sabor da sorte marcado pelo sombreamento desse elemento arcânico pesadiço concrético. Mas hoje, aqui, enquanto as pessoas vão chegando, as bandeiras, as mochilas, as faixas, a esperança e os gritinhos eufóricos emudeceram. O lugar foi tomado pela tristeza, o clima geral é de perda. Muitos estão com medo de usarem camisetas, bótons, estão com medo de existirem em modo negro, em modo mulher, em modo

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gay. Gostaria que fosse mentira. Mas não é. O capoeirista morreu a facadas em Salvador. Gays espancados. Morte por traumatismo craniano. Fake News. Família tradicional fascista brasileira. Acabar com isso tudo aí. Ceifar a vida para dar lugar aos mortos. Está ficando escuro embaixo do viaduto. São 18:25. A luz ligou. Carros passam ruidosamente pela perimetral. Entrou uma senhora de tricíclo buzinando pelo meio das pessoas, ela agitava o braço em punho dizendo “viva a democracia!”. Alguém gritou “viva” com ela. Foi aplaudida. Eu não tive forças. Apenas olhei. Tem pipoqueiros no meio dos gritos de “ele não!”. tá ventando frio. Há um peso de nuvens cinzas no céu. As pessoas comentam o quão difícil tem sido argumentar com os eleitores do bolsonaro. São 18:37. Ao meu lado, três caras acham que o bolsonaro ganha certo as eleições. Que tá perdido. Mas que mesmo assim é bom estar aqui. Silenciosamente eu concordo. Fumo um cigarro cabisbaixa. Começam a falar no microfone. O alerta é para a sensação de insegurança, alguém disse que talvez em janeiro não possamos estar reunidos aqui. “a nossa história é a história de todos aqueles que defendem a democracia”. Um helicóptero cruza o céu. Eu tenho horror a helicópteros. “derrotar bolsonaro nas ruas e nas urnas” (aplausos). Uma voz masculina, “depois do resultado, fiquei triste e um pouco assustado”, “a esperança vai derrotar o medo”. Visualizei Elisa de jaqueta vermelha na multidão. Uma voz feminina: “Bolsonaro representa morte pras nossas vidas”, “a gente tem que lutar pela nossa vida, pela nossa existência”, “direitos, saúde, segurança”. “ditadura nunca mais”. Acho que não encontro a Deka não. “precarização da universidade pública”, “PEC dos vinte anos sem investimento”, “agenda neoliberal em curso”.

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Voz masculina, “se estamos aqui ocupando um espaço público é porque acreditamos na democracia”. Voz feminina, “é na rua que nós temos que nos reunir, nós derrubamos a ditadura na rua”, “mas nós não tivemos força, nós não conseguimos punir os torturadores”. Acho que não tivemos sequer força para lembrar desse período. Não há memória. Ninguém gosta de tocar na ferida, e assim, me parece, entramos num terrível looping. Estamos de volta à crista da onda de opressão? Fantasmas, fantasmas, fantasmas, levantando do chão, ressentidos. “a punição para os assassinos de Marielle!”. Encontrei a Deka, ou melhor, Deka me encontrou. “uma onda reacionária que surgiu tão rápido”, “ir pra rua e dialogar com o povo”, “o momento pede paciência, capacidade de diálogo e pedagogia”, “POA foi a capital do fascista”, o microfone começa a falhar. O menino que falava larga o microfone e começa a usar a voz. Foi aplaudido. ELE NÃO! ELE NÃO! ELE NÃO! ELE NÃO! ELE NÃO! ELE NÃO! ELE NÃO! ELE NÃO! ELE NÃO! ELE NÃO! MARIELLE PRESENTE! MARIELLE PRESENTE! MARIELLE PRESENTE! MESTRE MOA PRESENTE! MESTRE MOA PRESENTE! MESTRE MOA PRESENTE! “apesar de tudo estamos reunidos aqui”, “coragem é assumir força para enfrentar os nossos medos”, “o lado de lá não se importa com o genocídio da população negra”, “é o nosso futuro que está em jogo”, ELE NÃO! ELE NÃO! ELE NÃO! HADDAD SIM! HADDAD SIM! HADDAD SIM! Ô BOLSONARO! VAI SE FUDÊ! O BRASIL NÃO PRECISA DE VOCÊ! Ô BOLSONARO! VAI SE FUDÊ! O BRASIL NÃO PRECISA DE VOCÊ! Sara, Correnteza, Mirabal, “a gente precisa usar o privilégio que a gente tem aqui e levar nosso movimento pra cidade”. NÃO! NÃO! NÃO PASSARÃO! SE ELES QUEREM DITADURA A GENTE QUER REVOLUÇÃO! Sirene da polícia. Um homem passa no meio de nós pedindo dinheiro. Ele murmura e deixa um rastro de cheiro for-

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te. “a cadela do fascismo está sempre no cio”, “pra a gente lutar, primeiro a gente precisa estar vivo”. Me despeço do viaduto, estou de virada, preciso dormir. Só me estendi porque eu queria muito estar aqui, são 20:12. Me despeço da assembleia, da Deka, me levanto e vou a pé pra casa. Amanhã vai ser outro dia.

[piadasemgraçamode:on] E como qualquer viaduto ou grande obra nesse país, a entrega atrasou. [piadasemgraçamode:off] Viadutos. Estrutura pública para alguns circularem com maior facilidade ou velocidade, mas que faz as vezes de abrigo para outros cuja circulação em grande parte não é desejada. Um mesmo arco de concreto, metal e asfalto apresenta-se elementos distintos em vivências de cidade(s) diferentes. Abrigo de chuva. Moradia. Trajeto sem tantos cortes. Ponto de referência. Viadutos guardam muitas possibilidades, e foi por uma outra ainda que - há já tanto tempo - aquele que trai e traduz desejara apropriar um viaduto de modo ritual: pela festa. Viaduto do Brooklyn - viaduto da João Pessoa, para aqueles que se preocupam apenas com o que as agulhas do odômetro e do marcador de velocidade tem a lhes dizer, mas viaduto do Brooklyn para aqueles que esperam um uso público festivo da rua - espaço onde diversas tribos, sons e ritmos tem (talvez, me dizem alguns, a conjugação correta seja tinham) se encontrado pra mos527


trar e aproveitar que ainda há outros usos na cidade que só se quer passagem e espaço para propaganda. Em diferentes dias, diferentes sons e eventos tocam-se/ trocam-se ali. Da vivência desse um, festival de punk, o tradicional samba de terça, roda de capoeira ao fim de manifestação (com direito a fechar a rua e influir no fluir próximo)... Mas o dia que importa aqui não é esse - um mapa compartilhado fala de certa geografia, mas também de certo calendário e sensibilidade para que o espaço se espacialize, temporalize e possa ser vivido. O dia foi 25 de outubro, o espaço era um misto de palco, palanque e ágora (não seria isso de certo modo a ecclesia original?), e não fora aquele espaço a primeira opção de encontro. Uma manifestação (manu-festa-ação) estava para ocorrer em outra localidade, tão próxima e tão distante como a universidade que fica ao lado. Mas impeditivos das disputas de uso adequado dos espaços obrigaram a um local e a um simbolismo mais público, aberto e potente. Uma figura que crescera (ainda que certos números oficiosos digam de uma expressão pequena, uma voz que ganhou em volume, alcance e penetração) dizia da importância de ocupar a rua - como afirmação, luta, e talvez, mesmo como fim. Rua, meio e fim, no viaduto, denúncia, choro, mas também encontro e festa. Corpos outros - às vezes, pouco vistos, por vezes, excessivamente visados - se mostrariam ali depois em cena. Mas deixemos comentar de um antes.

todos viam. Uma diferença de nível foi proposta para desobstruir olhares - baixe-se o centro de gravidade, descansem os joelhos, toquem o chão - os olhos, agora, enxergam diretamente em ângulo oblíquo. Mas o terreno tem acidentes intencionais - um degrau, uma mureta, onde alguns sentam mais confortáveis e com uma visão mais livre. Desde ponto vantajoso, convertem-se em obstáculo aos que ficam atrás. Um chamado se forma e é repetido quase a exaustão - “desce do muro!”. Abre-se espaço, em meio ao aberto, para que aqueles em vantajem vertical desçam de onde estão e juntem-se a multidão. Descer é perder uma posição mais confortável e submeter-se ao aperto - sem garantias de poder enxergar. Enquanto um permanece no muro, a visão segue obstaculizada. Só se todos descessem, todos no chão apertado veriam. Mas todos não descem juntos. Uns descem, e se põem em posição desconfortável e sem visão. Unem-se aqueles que gritam - “desce do muro!”. O grito diz do tempo. Somar-se ao grito diz ainda mais. Um quê de pressão, um que de aceitar uma sensibilidade outra - por certo, em termos, desvantajosa... mas só desvantajosa? No desconforto ou por qualquer revelação, o muro vai se desfazendo, sendo esvaziado. Não havia nenhuma garantia para tal. Mas ocorreu. Muito a pensar.

Viadutos - esses espaços de muitos usos - podem ensinar sobre privilégio. Transporte-se a esse específico viaduto geográfico-temporal-afetivo. Uma fala centralizava olhares e ouvidos, mas em meio a multidão, nem

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a aa aa aa a

e e e e e e e e

ne ne ne ne ne ne ne ne

s s s s s s s s


“Andar acalma. Prisioneiros circulam no pátio, animais andam de um lado para outro em suas jaulas, a pessoa ansiosa mede o chão com seus passos: esperando o bebê nascer ou as notícias da sala da diretoria. Heidegger recomendava o caminho na floresta para filosofar; a escola de Aristóteles era chamada peripatética – pensar e discursar enquanto se caminha; os monges andam em seus jardins fechados. Nietzsche disse que só tinham valor as ideias que corriam ao caminhar, ideias laufenden – ideias correntes, que caminham, não ideias sentadas.

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Saímos para caminhar para dar um ritmo orgânico aos estados mentais depressivos, embotados, com suas agitações reverberantes, e esse ritmo orgânico do caminhar vai ganhando significado simbólico ao colocarmos um pé depois do outro, direito-esquerdo, direito-esquerdo, num compasso ritmado. Compasso. Medida. Passear. A linguagem do caminhar acalma a alma, e as agitações da mente começam a tomar um rumo. Caminhando, estamos no mundo, encontramo-nos num lugar específico e, ao caminhar nesse espaço, tornamo-lo um lugar, uma moradia ou um território, uma habitação com um nome. A mente é contida em seu próprio ritmo. Se não podemos caminhar, para onde irá a mente? Uma cidade que não permite caminhar não é também uma cidade que nega uma moradia para a mente? Podemos estar nos dirigindo, literalmente dirigindo-nos, para a loucura simplesmente por não cuidar da necessidade humana fundamental de caminhar.”1

1. HILMANN, James. Cidade & Alma. São Paulo: Studio Nobel, 1993, p.53. 533


arCaNo XxI O sILêNcIo


Primeiro aquele arcano final, o que não pareceu finalizar nada.

Disparado em 27 de julho de 2018 às 00:35 por arcanosurbanos Lua cheia

vertigem, fala da tua respiração, da tua desolação, da tua traição. É tão obscuro, tão em silêncio o processo a que me obrigo. Oh! Fala do silêncio! Que sei eu sobre o que há-de-ser de mim se nada rima com nada?74

Um arcano estranhíssimo. LOCAL: Praça do Aeromóvel DATA: hoje HORA: pôr do sol, eclipse e além

ARCANO MAIOR FINAL DE JOGO, FINAL FINAL, FINAL PORTAL, FINAL REAL, REAL OFICIAL.

Vertigens ou contemplações de uma coisa que termina:

Como prometido se maniFESTARÁ uma última vez.

Em ti é de noite. Em breve assistirás à corajosa exaltação do animal que és. Coração da noite, fala. As moradas do consolo, a consagração da inocência, a alegria inqualificável do corpo.

Ou as promessas se cumprem, ou as promessas se quebram. Não temos nada contra. Nós. É assim que se fala hoje. É a gente. Agindo. Cumprindo e quebrando as promessas. E a gente chegou no final prometido.

Todos os gestos do meu corpo e da minha voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que abandona o vento no umbral.

A gente não sabe como concluir, a gente não está a fim de se despedir, a gente nem sabe de nada, a gente deixa tudo pro final e confia.

Cobre a memória da tua cara com a máscara da que serás e assusta a criança que foste.

Esse tem que ser o arcano da festa urbana, tem que ser o arcano do eclipse, tem que ser o arcano da praça, tem que ser todos os arcanos prometidos, os arcanos quebrados, os arcanos que só existiram em potência e enquanto potência PODEM VIR A

Mas não fales dos jardins, não fales da lua, não fales da rosa, não fales do mar. Fala do que sabes. Fala do que vibra em tua medula e produz luzes e sombras no teu olhar, fala da dor incessante dos teus ossos, fala da 536

Abre-se o portal do eclipse. Lua cheia sombreada. Ela vai partir.

74. Alejandra Pizarnik. Extração da pedra da loucura (1968). 537


SER A QUALQUER MOMENTO EM QUALQUER LUGAR! Mas sobretudo esse tem que ser um arcano que fecha uma porta, um portal. Ele é sim um arcano de despedida. O que se abriu vai se fechar, essa mitologia, essa profecia cega/vidente de janeiro se cumpre de qualquer maneira. É o planejamento que manda acabar. E vai acabar então.

nhas, os balões amarelos que sobraram de oxum, o latão com o fogo se acenderá às 20h, se tudo der certo e se muitas dessas coisas puderem ser feitas. E depois disso a bruxaria vai pegá. Levem pequenos textos/invocações/palavras para ler e queimar. Eu estou plenamente convicta que quero queimar papéis e há a ideia básica de tomar vinho e o resto é improviso. E assim termina.

– E se a gente não tá conseguindo puxar as palavras desse adeus? Faz como?

Sem mais nem menos. Um adeus todo esculhambado. Adeus então. Por aqui adeus! Atém amanhã então, adeus!

Eu voto em empurrar até o limite. Só se diz adeus quando a coisa estiver mesmo indo embora. Até lá tudo será improvisado.

OPTCHÁ! FOGO NO LATÃO!

Além de uma bela cerimônia em praça pública, a gente deixa essa carta vaga para ela ser o que quiser.

Nos vemos por aí

Por ora, ela é Arcano Maior, O ritual. Está decidido. Nosso ritual do fogo no latão. A promessa era: “um banquete, uma roda de fogo, com música e dança ao ar livre.” Concretizar intenções de janeiro: como der.

AO INVISÍVEL E ALÉM

Tchau, Cigana, boa viagem! Corre sua loka, vai pro mundo corrê, gata!

Besos, amores FIM (to be continued somehow)

Arcano maior de lua cheia com eclipse. Coordenada: praça do aeromóvel. Hora: a partir das 17h já estarei lá e aguardando a noite, os convidados, as comidinhas e os vinhos, as estrelinhas e as veli-

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Mas parece que os Arcanos Urbanos não quiseram terminar tão cedo. O eclipse da lua cheia nos joga quase um ano pra frente na linha do tempo e nos abre uma Lua Nova, onde é o silêncio que colocamos a falar! 539


Disparado em 4 de maio de 2019 às 12:34 por facebook da mensageira Lua Nova

A gente sabia que não tinha acabado!

A proposição é: Vamos andar por aí na cidade, lado a lado, em silêncio. A regra é uma só: pode tudo, só não pode falar. Vamos explorar as possibilidades de uma deriva urbana silenciosa, e nos explorarmos enquanto corpos expressivos para além da fala! Vale mímica, vele giz, vale foto, vale vídeo, vale tudo! Só não pode falar!

Bem-aventurados errantes! Nossa matilha caravânica se despede agora, em um rastro de silêncio inesperado. Estamos novamente no Jane’s Walks75 – porque caminhar nos ensina a desobedecer. Com muita alegria cigana convido vocês para participarem do incrível Arcano do Silêncio!

Está marcada a coordenada inicial: Escadaria João Manoel, às 14h E dali nos perderemos em silêncio e no pó de giz nas calçadas e nas paredes.

O silêncio também é animado e, portanto, com ele podemos conversar. O derradeiro movimento da caravana faz sua última parada sem a fala.

75. Promovida pelo coletivo TransLAB.URB, “mais uma vez celebrando o poder transformador que as caminhadas podem ter, juntos à comunidade internacional das Jane’s Walk, nos dias 03, 04 e 05 de Maio, homenageando a vida e a obra da ativista e urbanista Jane Jacobs na 2ª Jane’s Walk Porto Alegre. O tema é “Andar nos Ensina a Desobedecer”, inspirado em ideias do Filósofo Frédéric Gros, nas quais o caminhar é, para além de deslocamento, a maneira como podemos nos reinventar, nos dar outras identidades, outras possibilidades, acima de tudo, ao nosso papel social, já que na vida diária tudo está associado à função, uma profissão, um discurso, uma postura, e andar a pé é se livrar disso tudo.” Chamada disponível em: <https://translaburb.cc/2-Jane-s-Walk-PoA> 540

oPtCHá! Nos Vemos Lá! 541


Gastaremos las noches Beberemos del sueño Las historias del humo y torsión en el viento Intentando pesar lo que no tiene peso Procurando medir la distancia con tiempo Hablaremos de todo lo que pasa en silencio Resolviendo ecuaciones Entre amor y desprecio Conteniendo el rencor y el arrepentimiento Insistiendo en armar esqueletos sin huesos Escarbando en angustias ilusiones y miedos Hablaremos de todo lo que pasa en silencio Gastaremos el día Perdemos el tiempo Horizontes sin agua para barcos de fuego Dando vueltas y vueltas Como pájaros ciegos Destruyendo las cosas que no tienen repuesto Hablaremos de todo lo que pasa en silencio.76

de todos os silêncios, primeiro este. escolho este que se rompe das gargantas apertadas e caem de pé, no chão, liberando o perigoso verbo anavalhado de uma língua interditada em tonalidade herética e profanatória. para começar, um silêncio a quebrar. silêncio do cárcere laríngeo câncer do tempo que se esparrama pela história que atravessa impune e covarde pelas ruas da cidade por corredores acadêmicos

ESse SILÊnCIO esse conveniente silenciar essa incapacidade de escuta desses velhos orelhões disfuncionais esse som-nenhum no espaço que faz a mão concentracionária dos que vestem coturnos, paletós, fuzis, motosserras ou currículos lattes ao tapar bocas ao calar corações irrigados com as demandas do mundo

76. En Silencio (Yuri Venturín / Flavio Reggiani). Orquesta Tipica Fernandez Fierro. Escutem, escutem. Escutem aqui: https:// www.youtube.com/watch?v=WuvdoY6jPTU&fbclid=IwAR3L5e27nidRB3ohKKT_CFhjWrC62pcFEo-WqA4Jb1wKk4iicCt8i4QK3fc 542

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esses autorizados assaltantes de poder, esses trocadilos maldiçoados77 estão em toda parte, em toda esta mira, hipócritas, safados, canalhas, indignos, incompetentes, espertos ao contrário. é isso que eles fazem, dizia estamira, deusa profetisa do lixão: eles mentem, seduzem, cegam e depois jogam o homem no abismo. apertam pescoços, ali com decretos, aqui com pretencioso intelecto, atrofiando as cordas vitais vocais vocais fora da ordem vocais que a vida trouxe vocais ciganos vocais loucos vocais poetas vocais piratas vocais mulher vocais criança vocais vagabundos vocais fora da “sua” ordem

ESse SILÊnCIO 77. SOUZA, Estamira Gomes de. Estamira. São Paulo: n-1 edições, 2013, p.11. 544

que afoga navegantes que atropela mensageiros poetas que resigna corpos balançantes em ônibus lotados que aluga sem habitar que vangloria-se em monumentos erigidos em memória aos silenciadores que estreita a polifonia em um uníssono alienado que pisa as flores que ousam nascer no asfalto que tapa seus orelhões para não ouvir o chamado que mercantiliza os valores e transforma tudo que é comum em supermercado que derruba das escadas que fecha portas na cara que faz do aqui um lugar sem arte que fecha o sinal para os caminhos que sepulta a cidade no cemitério dos vivos que desertifica a alma encantadora das ruas que exclui os enigmas sem revolver o hiberboloide que chove ácido poluído e tóxico que desgosta das esquinas que esconde a poeira em baixo dos viadutos que silencia o que não pode calar

esse compulsório silêncio mudo no espaço que grita no tempo grita agora e oxalá grite sempre! quebrem-se no meio palavras e gestos silenciadores

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ditadores doutores sedutores castradores abusadores reprodutores de silenciamentos anteriores rompam-se e estilhacem-se insuportáveis silêncios obedientes silêncios cancerígenos adoecedores silêncios assassinos silêncios coniventes silêncios

dizem que não há silêncio na cidade mas na cidade há muito silêncio silêncios de todos os silenciados que inflamados feito chagas são feridas que os corpos aceitam mutilações normalizadas deformações normalizantes para poder estar aqui, para fazer caber à força, para conformar esses indesejados rumores da vida anárquica vida caótica vida polifônica vida

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ruidosa balburdia da vida incessante marulho da vida sintomática vida histerizada vida infantilizada vida desencorajada vida ameaçada vida abandonada vida...

- sILêNcIo! para manter os lugares de poder intactos para manter o “seu” lugar pro seu ego gozar dentro da institucionalizada insignificância de um poder forjado na impotência. de uma vida que se quer vazia e silencia para esvaziar

sempre esse silêncio impotente silêncio a quebrar antes. antes que o silêncio se romantize antes que ele seja redenção escapatória 547


antes que ele seja sua terapêutica saída ilusória antes que ele venha ser uma deliciosa proposição arcânica antes que ele venha ser uma linha de fuga criadora antes que ele nos traga aventuras errantes na cidade antes que ele nos ensine a comunicar por outras vias, a fazer outras ligas e a morrer de rir antes que os balões estourem na praça e o giz fale nas paredes e nas calçadas sempre esse silêncio primeiro impotente silêncio a ser quebrado

dos silêncios como exercícios experimentais de liberdade. quando você está aqui porque a vida trouxe alguns silêncios são de mordaça de repente te ensinam a calar o grito de repente te educam a querer o lugar do silenciador mas hoje não. hoje hablaremos de todo lo que passa en silencio

para lembrar que o silêncio mata o silêncio que vivo em meu corpo dissonante que carrego por essa cidade massacrante nesse mundo hipócrita feito de corredores doutores, senhores, em formação de opressores mata. porque urge quebrar primeiro, quebrar agora esse silêncio apaziguado, deprimido, conformado, submisso e escravo, para poder, enfim, brincar de silêncios outros, dos silêncios alegres,

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em silêncio

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Era um sábado. Algumas tradições mantêm sábados para inícios e fins, e talvez seja um bom dia mesmo para afirmar seja o que fosse que se marcava naquele momento. Um ponto em um ciclo. Era um sábado. Gente com mais certeza que eu afirma que deus era verbo, e que deus descansara no sábado. Era um sábado. E a proposta era o silêncio. Pôr deus a descansar. Era um sábado, era o verbo, e diz um certo bigodudo que enquanto houver gramática significa que deus ainda não morreu. Naquele sábado, havia ainda gramática? Creio que deus apenas descansava, e um grupo de pessoas - talvez uma caravana - aproveitava desse descanso para escapar do olho que ordena a criação e a habitava recriando.

Antes de todos chegarem, eu já os esperava. Em Silêncio. Meio Mensageira, meio Stella. O frio na barriga existia. Mas já não contorcia as pernas nervosas desde o primeiro encontro público que propunha, aquele dos Caminhos. Havia uma sensação alegre de conquista. Reconheci em ato a conquista de um corpo maior e mais forte, tanto para mensageira que convoca quanto para essa jogadora mergulhadora que se desmancha em chuvas. A chuva do dia anterior tinha deixado suas poças reflexivas na escada de chão limoso. Era com elas que eu conversava na antessala do acontecimento arcânico. Preparei o corpo, respirei, pedi à Cigana para vir andar conosco. 552

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Chegaram Minerva e Orapiés, falantes, faladores, sorridentes. Eu sorri e nada respondi ao que me interrogaram. Então, para eles também começou o silêncio. Ficaram inquietos, as mímicas saíram tortas, como se comunicar afinal? Tínhamos que improvisar e o improviso é um desafio sempre. Eu sei que eles ficaram desconcertados, ao menos nos primeiros minutos. Observei os olhares e os gestos de desconforto. Então foi que entreguei os gizes, olhos nos olhos e sorrisos de convite, e, assim, a escada começou a falar. Na escada, esperávamos e com os gizes saudamos o povo cigano, saudamos os gestos por vir, saudamos os olhares falantes e saudamos a efemeridade do giz. Minerva desaguou sua poesia nas escadas. Orapiés andava, subia e descia, nos olhava e nos fotografava.

O silêncio é o mistério do tempo. O meu desconforto continua arriscando portais. Começo aqui, em uma lâmina branca e berrante. Naquela partícula minúscula do tempo, carreguei três compassos. Um permanecia na minha língua; o outro cercava os meus pequenos dedos; e bom, o terceiro, admito que acabei perdendo, mas ainda o carrego por aí. O compasso tem duas pernas ou dois braços. Ele consegue representar o silêncio da língua, a imobilidade dos dedos travados e as perdas, as buscas. Uma perna-braço traça desenhos na boca, evoca figuras e sons internos. Uma perna-braço pode, também, cra554

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var dedos em chãos, em lajotas. No entanto, em outros tempos, esse mesmo compasso tem a possibilidade de ir às ruas. Esse trajeto de sair do casulo risca o chão, faz desenho em paredes e dança fora do solo, em nuvens. No final, os enredos internos e externos são iguais, dão as mãos. Um corpo outrora íntimo, agora é um corpo povoado. Basta querer, basta amar. Então, pela perda e em nome dela, resolvi ir às ruas. Fui-me em silêncio e com o peso de instrumentos compostos de dois braços ou dois pés. Confesso que levei um giz no bolso e um estranhamento no abdômen. Isso fez marca. Pude mergulhar.

Falar. Muitas vezes nem pensamos na nossa fala, pois a fala, é como respirar. É natural. E assim nos expressamos, vocalizando e verbalizando. Era de se esperar que ficar em silêncio, na rua, em grupo, entre pessoas conhecidas e também desconhecidas, fosse difícil, assim como qualquer imposição que fere a nossa naturalidade. Mas não me entenda mal. Praticar o silêncio, é muito importante. Principalmente a comunicação silenciosa. Por que isso? Simples. Não nos expressamos apenas com a voz. Falar, é o mais fácil, mas não a única coisa natural. Temos o corpo, o olhar, o gesto, a escrita e até nossa 556

respiração. E quantos desses usei e usamos naquela tarde ensolarada, clara e visível pós-chuva. Fomos chegando aos poucos na antiga escadaria da formiga, colorida e encarapitada, munidos de giz para rabiscarmos nossa comunicação, como palavras que pendem permanentes. Diálogos eternos até que a chuva apague.

Chegaram dois errantes a mais, dois personagens visitantes, tal como Denise-árvore no Arcano dos Caminhos: vieram dessa vez ao nosso encontro um Baco da Serra e um Barquinho Francês. Chegaram falantes, mas logo mergulharam no jogo do silêncio. Barquinho não falava português, tive um segundo de hesitação, mas botei fé que não carecia, falamos com gestos e olhares sorridentes. Começou um diálogo no chão, em espanhol, em inglês, em gráficos e desenhos. Conversávamos em todas as superfícies, papel, chão, muros e degraus. A escadaria que já é colorida, ganhava mais inscrição de cor. Chegou Traditore, esbaforido acreditando-se atrasado. Nós esperávamos por ele para compor nossa massa crítica silenciosa. Nos mantivemos por mais alguns instantes povoando aquela escada arco-íris que ficou todinha marcada em todas as cores de giz que tínhamos levado, e todos vestiam na testa o cristal kandinsky, ponto azul luminoso que alinhava nossas cabeças. Marcas quase tradicionais dos encontros movidos à força de uma caravana.

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Olhando a cidade e seus habitantes, a impressão é que o Ancião dos Tempos claramente demonstra cansaço, e seus éditos apresentam-se caducos. Era um sábado, e uma parada para cafés fizera com que eu me atrasasse. Era sábado, e na escadaria o silêncio já iniciara. Se perguntar para alguns, o silêncio é a ausência de som. Há uns poucos que diriam talvez que é tão-somente a ausência de palavras. Certamente, uma ausência se impõe quando se traça o possível do silêncio, mas não é apenas ausência que o caracteriza. Atrasado, eu não chegara para a proposição. Chegava no local do encontro já defasado. Não chegava para o silêncio, mas chegava no silêncio. Ao descer a rua e subir a escada, me encontrava com um silêncio que já se ensaiava lá, e que não se encontra na cidade. Fora convidado a me juntar ao silêncio, em silêncio, através do silêncio. E silenciei. (muitas palavras são aqui gastas para falar do silêncio. ainda falamos assim do silêncio?)

Então perguntei no chão, vamos subir ou descer? Baco da Serra adiantou-se e escreveu: para as profundezas, sempre. Todos selaram sua concordância com sorrisos afirmativos. Então foi que descemos os degraus, abrimos o vinho, derramamos o primeiro gole para a Cigana, uma oferenda.

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Fazia calor. Os vizinhos nos olhavam, eu sei. Mas meu foco é assim, fica sempre o máximo que pode no círculo mágico, eu me concentrei no nosso deslocar em silêncio, o espaço em torno a nós se anuviava. Eu via os vultos de pessoas que paravam, que interrompiam o seu caminhar, pessoas interessadas ou curiosas, mas nunca os via com alta definição. Eram borradas as percepções dos afetos que causávamos na rua. Me parece que a função mensageira no corpo stellar era manter o grupo coeso, interagir com todos e provocar um grude, garantir que a coisa mantivesse sua formação. Ainda assim, eu sentia a nuvem da rua, do outro lado da rua, atrás e à nossa frente, olhares eram lançados na nossa direção. Era engraçado. Foi ficando cada vez mais engraçado. E mais engraçado ficou no dia seguinte, quando no mercadinho da rua me perguntaram sobre aquele grupo de deficientes que passou comigo por ali. Fomos eficientes em plantar pulgas atrás de orelhas da rua. E isso foi só o começo.

Entre pessoas conhecidas, é fácil e divertido observar a transposição do jeito de falar na comunicação não-verbal. Nas agonias da voz presa, na risada ao se perceber mudo, nas artimanhas comunicativas. Quem fala muito, passou a escrever muito, quem é mais quieto, se expressou de forma mais discreta, o que me faz perceber que realmente a comunicação sobrevive a fala. E estar em silêncio entre as pessoas é um exercício de conhecimento.

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Passamos de rua em rua, esquina em esquina riscando e comunicando-nos até mais do que falando palavras ao vento. Prestávamos mais atenção. Goles de vinho, paradas estratégicas, estranhezas nos olhares dos transeuntes e locais, com um grupo que, de tão silencioso, incomodava com o seu barulho.

As ruas não lidam bem com o silêncio. O imperativo do comércio e da troca requisita um falar. Negar-se a ele era desertar de certo modo de viver. Um convite a outros desertos (esses lugares onde talvez as pedras falem).

Vocês acreditariam se eu dissesse que fomos também perseguidos por uma senhora dentro de um carro? Os mais atentos a viram desde que passou por nós uma primeira vez. Eu, com meu foco desfocado para o entorno só a percebi quando ela lançou seu corpo pra fora da janela e gritou para nós: Isso não pode! Vou chamar a polícia! Eu estava agachada escrevendo em um basalto liso e gostoso. Me deu vontade de levantar e gritar com ela, mas respirei, olhei pra aquele basalto, terminei de escrever e quando levantei ela já tinha arrancado com o carro e fechado a janela. Fiz caretas, muitas caretas, meu rosto se contorcia sozinho. O grupo trocou sérios olhares, mas logo abrimos o riso e, pelo menos eu, achei aquilo um bom reflexo do que é a nossa sociedade, que tem ódio do que desconhece. 561


Prendam esses deficientes gizeiros criminosos! Certamente terroristas.

Chegando a uma esquina cubista e inacabada, gritei em mudez, gritei sem roupas. Lá, estremeci e desenhei um pouco. Consegui, de mãos dadas com algumas vacilações, xingar uma sentença de tribunal. Xinguei, também, essa mania chata de por nome em tudo. Ter nome é o grande nome do mundo, cê já viu? “Eu também sinto essa fome de tudo Todo mundo tem fome de tudo no mundo, todo é ter fome é o nome do mundo O povo tem nome pra tudo e o mundo tem fome de novo. Hoje eu gostei da lua, eu sou lunático Eu procurei a verdade, eu fui verídico Eu aceitei seu caô, eu sou simpático E quando quero aparecer sou invisível!” – Froid (Negro é foda) E claro, para não cair no esquecimento, pude insultar os choques, os arames, os dentes afiados dos dias, as unhas de raposa; raposa que pousa, ousa; rapousa. Repousei.

Caminhávamos muito devagar, e parávamos aqui e ali para ter longas conversas com as mãos. Encontrei um guarda-chuva quebrado na calçada e o incorporei a nossa caravana. Ele queria vir junto. Assim podíamos ser mais estranhos ainda. 562

Baco da Serra estava muito desconfortável. Ele preferia caminhar conosco a uma certa distância. Disse-me depois que pra ele foi muito difícil, era difícil não poder falar. Era difícil por outros motivos, que ele optou por não narrar. Mesmo na minha missão de fazer grude, entendi, pelo seu jogo de corpo, que essa era a forma dele andar conosco, então relaxei e fiz sinais de que estava tudo bem, que ele ficasse na posição que o seu corpo sugeria. O perdemos de vista em diversos momentos. Mas ele reaparecia. Sorrisos então. O barquinho se enturmou de maneira que eu não precisei fazer nenhum esforço. Desenhou uma amarelinha na calçada e nela nós fomos pular. Céu, inferno, pedrinhas e saltos. Memórias de infância na superfície ativadas. Aliás, a um certo ponto não precisei mais ser mensageira, Stella tomou conta e nunca se divertiu tanto.

“DLIM... DLÃO... DLIM... DLÃO” Um sino tocou! Escutei algo íntimo incorporando um silêncio-giz. Esse danado silêncio fantasmagórico, antes frio e apático, agora me vigia. Será, quem sabe, o esboço de um compasso perdido? Um passo, dois, três. Dei dez passos. Compasso. Corri feito giz. Naquela partícula minúscula do tempo, fui pega por esse silêncio nômade. Lançamos uma corrida, uma luta. Quem aguenta mais? Ele, todo ereto, monumental e vivido ou eu, toda esculhambada e insurreta?... FOMOS! SOMAMOS! GLADIAMOS!

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Depois desse episódio, acabei rindo; abobada e esperançosa. Agora, miro um silêncio nomeado e cheio de espírito. Diante de todas as cenas e desenhos traçados, levei minha mão à orelha esquerda e senti um compasso. Estava lá, um compasso encravado e disfarçado. O compasso perdido! Um descompasso do passo da língua dos dedos dos pés. Um Trava-língua. Um trava-pés. Um trava-passos. Um trava-vidas.

Uma praça fechada com cancha de esportes se atravessou no nosso caminho lúdico, que encontrou ali uma expressão infantil. O giz da lousa é o mesmo da amarelinha. Seremos sempre crianças.

Quando a caravana encontrou a pequena praça, armou-se um breve acampamento. Sentamos no chão, abrimos o segundo vinho, encontramos outro guarda-chuva - quantos guarda-chuvas nos encontraram! - e as superfícies riscadas de giz e a risadeira que não tinha sentido, a risadeira estava atravessando os corpos. Os balões começaram a ser enchidos e para quê? Para que balões? Para que tudo isso? Era tão bonito, eu sentia na barriga uma emoção de estar junto e de rir sem motivo e morrer de rir quando todos riam e não sabíamos nem o porquê. Talvez soubéssemos sim, naquela frequência que

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comunicávamos, mas não registrávamos na consciência. Ríamos sem parar, e eu não sei se havia outro motivo se não pela grande felicidade que é essa sensação de estarmos unidos pelo silêncio e fazermos os balões cantarem ao se esvaziarem ou estourarem. Por essa comunicação dos corpos que passa por outra via que o inteligível. Ríamos por que nos queríamos bem e estávamos felizes e eufóricos e claramente emocionados. Nunca um arcano falou tanto como o arcano do silêncio. E eu não vi maior sentido nesse trabalho todo a não ser essa alegria de estar junto e rir. Rir e se olhar e se entender nesse nível obscuro de corpo. Sei que nos queríamos todos. Era muito bom estar fazendo aquilo que estávamos fazendo.

Conta-se que em uma outra data (creio que não era um sábado) o espírito daquele que era verbo desceu enquanto fogo e habilitou um grupo a falar e entender todas as línguas. Nessa data, que era um sábado, o desafio de Babel e da confusão de línguas virara quase um jogo. Compartilhava-se o silêncio, não necessariamente línguas. Riscava-se a superfície da cidade para fazer-se entender. Tatuava-se a parede e a calçada. Em várias línguas e não-línguas e quase-línguas. Aprendia-se que o portunhol, mesmo quando não dito, carrega sotaque.

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Enquanto o Ancião dos Tempos dormia, aproveitávamos o fim da voz para reinventar hábitos, ocupações e tradições. Era um sábado, e se compartilhava o vinho. Era um sábado, e se compartilhava uma não existente fogueira para se contar histórias. Era um sábado, e se compartilhou o passado ao ponto de se voltar ao Éden para reescrever uma história da humanidade que não estivesse manchada de culpa. Escrevendo-se e marcando o chão, apagava-se a culpa. E só no próximo dia choveria para apagar novamente. Presos por ter giz? “Salvos” por saber rir. E andar. E chover.

Na reta final da direção da orla, encontrei um saquinho de hibiscos secos e joguei um pouco na cabeça de cada um. Os hibiscos sempre foram meus presentes para Cigana. Ainda com o saquinho na mão, descíamos uma rua. O grupo andava mais rápido e eu desacelerei para acompanhar algo que se passava na calçada. Eu estava filmando e não sei por que me atraiu esse caminhão estacionado em cuja carroceria havia materiais de construção. Perdi o olhar da câmera por ali e atrás de mim ouvia uma mulher muito nervosa xingando a criança que tinha riscado a parede. Ela jogava baldes de água e xingava. Quando percebi eu a estava filmando. Eis então que mexi naquela paisagem. Assim que ela me viu, me olhou com cara de raiva, tu ta me filmando? Eis o momento, e o que eu previ que poderia se desenrolar dai não seria bonito. Mas eis o momen-

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to, eis o que essa coisa desse espírito de jogo, essa coisa que abre o corpo pra criança ter lugar vem a tona. Fiz um gesto afirmativo, sim estou filmando, mas não posso descrever o que ela entendeu, porque eu sorria, como uma criança afirmando sem pudor a arte que fazia. Não sei o que foi, eu apostei nessa interação e improvisei respostas sem fala muito honestas e nenhum gesto de culpa. Ela se aproximou e ainda com aquele semblante muito fechado dizendo, e por que? Eu estava parada e fiz sinal para que ela se aproximasse, não perdi o contato visual, peguei o giz, e escrevi com muita calma no chão a resposta mais sincera que a criança pode dar: é pela vida. Sabe... tem coisa que a gente não espera que aconteça, mas algo naquela resposta arriscada diante de uma mulher-fera a desarmou. Quando voltei minha cabeça na direção dela ela já estava abrindo um sorriso, ahh pela vida.. eu fiz que sim com a cabeça, sorri com toda a força com boca e olhos e tudo, ela tinha compreendido. E resolvi seguir descendo a rua, atrás dos meus companheiros “deficientes”. Ainda consegui ouvir da mulher que ela chamou a criança que antes xingava. Agora ela dizia, com a voz mais doce, sabe o que esta escrito aqui? pela vida... e a amorosidade que se converteu essa cena, foi algo que senti no meio da barriga. Teve um acontecimento ali. Teve uma reação ruim a partir de uma invasão minha, e uma resposta de improviso, algo de um estar disposto a acolher no meu corpo a reação que eu tinha causado, uma espécie de responsabilidade em me colocar diante, estar ali, responder como podia sem alarde. E foi assim que a cena, que poderia ter tido um desfecho agressivo, se converteu em amorosidade. Senti na barriga, porque vi nos olhos da mulher-fera a compreensão de que, PELA VIDA, VALE SIM. E fui teste-

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munha auditiva de que ela ainda desdobrou aquilo que compreendeu sem que eu falasse nada, para a criança que ali estava. Algo de muito grande estava em jogo nesse gesto pequeno. Descendo mais a rua, alcancei a galera, e lá estavam me esperando na esquina. Baco da Serra tinha sumido mais uma vez e nós andamos na direção da orla.

Até cansamos. Mas isso não interromperia nossa jornada de quase duas horas até a orla do rio, onde então estaríamos livres para falar. Esperava até uma torrente maior de fala, mas não. Me acostumei com o silêncio. Achei que haveria ainda o que comunicar, mas percebi que a comunicação foi estabelecida, não só com os outros, mas com a cidade. Falamos através de calçadas e paredes, muros e postes, numa integração material e imaterial. A alma da cidade se comunicou e a prova é que realmente não são necessárias palavras faladas para ouvidos na pele.

Para acabar com o silêncio de vez. E foi difícil. Foi difícil quebrar o encanto. Eu fui a mais resistente... a última a recomeçar a falar. Era quase uma tristeza de abandonar o espaço mágico em que nos colocamos. Mas falamos. E ficamos lá, na beira do lago, pra ver o sol se pôr.

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Termino aqui, nesta cidade colorida e incendiada. Nesta cidade que nunca finda e faz silêncios colossais. Neste momento não carrego nada, exceto a terra à vista depois da boca calada. E claro, um enorme desconforto no meu nervo vestibulococlear.

(e.... fica.... um... silêncio... na ruidosa Porto Alegre) O sol deitara. O vinho acabara. A voz voltou. O sábado findou. E o silêncio?

Silêncio. 574

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