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I. Exercício de cartografia II. Sentir como não senti III. Rede do bem viver IV. Do tom ao semi-tom V. Da estrutura densa e do tempo entre costuras VI. Vizinhança e o rezo leve VII. Sentada na pedra para ver se o rio não corre
Exercício de cartografia
O amor demora e é sensível. Eu não falo desse amor que nasce quando um filho nasce – ou melhor - que nasce antes do parir, antes do tocar e sentir. Não. Eu falo de outro amor, esse que demora tempo, que vem pela admiração do percurso. Esse que faz da gente caminho e caminhante. E ele demora tempo. Saber do universo de dentro do outro é devagaroso porque tudo é sobre a descoberta, como um exercício de cartografia, no qual existem vários mapas, vários percursos, várias escalas e várias projeções e para compreendermos o espaço, é posto que nós, muitas vezes, tenhamos um alongamento de perspectiva, uma sensibilidade outra e muita escuta para que as fronteiras se diluam, unindo os mares e as terras todas.
Sentir como não senti
Muitas terras que fazem fronteira, tem laços de sangue, de placenta e mitocôndria, compartilham na genética as gerações, todas suas dores e alegrias. A história dos tempos é meu povo e mora em meus pensamentos. Mas quando um povo deixa de falar a mesma língua, deixa de ter a mesma comunidade de fala, e a história vai se perdendo, se esquecendo e um povo sem história já não existe. Isso significa também dizer que somente no momento em que houver compreensão mútua entre seus falantes será possível compartilhar experiências. Por enquanto o que sinto é um reverberar de muito tempo de não pertencimento. Da ausência de falantes. Da suposta ocupação inadequada do corpo, da casa e dos desejos.
Como se os rios todos não desaguassem no mar, como se todas as árvores não soubessem buscar o sol.
Rede do bem viver
As famílias compartilham histórias, padrões físicos, mentais, emocionais e espirituais. Tudo é transmitido de geração a geração, corpo a corpo, como registros celulares que se espelham, formando a egrégora familiar. As egrégoras representam a força espiritual criada a partir da somatória das energias coletivas e são elas que podem nos acolher ou repelir. Quando a egrégora está rompida e a energia se dissipando é sincronicamente quando os atravessamentos acontecem e é preciso olhar com carinho e ternura o que nos permeia para a energia voltar a fluir em consonância, como uma grande rede do bem viver que urge a tecelagem das relações. Esse desenhar relacional é unir imagem e texto como um que são. É entender que apesar dos fios duros e pesados há outros, por vezes, leves como plumas e todos contribuem para uma boa trama.
Do tom ao semi-tom
Em todo espaço que o corpo ocupa para se de fato habitar é preciso respeito. Respeito recíproco. Respeito com tudo que nele se encontraou se perde. É preciso ser convidado para entrar, é preciso falar a mesma língua para desatar-nos, desatando-nós. É saber o tom ou o semi-tom, o tempo de soltar palavras e do seu retorno sincero e responsável. É lapidar a comunicação e repensar situações e valores, formas de amor e de amar equivocadas, repetições de crenças, padrões limitantes e limites inventados para que não mais haja medo e dificuldade de sentir e de se expressar, honrando o que te faz bem.
Da estrutura densa e do tempo entre costuras
Tecer é importante. E sempre e tanto. Demora e é sensível. E para ajustar o ponto há de se ter tempo entre costuras. Tempo-espaço-tempoespaço. Ponto a ponto, costurando rugas. É um passo manso lento. É um passo lento manso, do amor¹.
A digestão emocional acompanha esse movimento, cheia de curvas e caminhos desconhecidos. Desatando nós. As estruturas densas, que não foram mastigadas suficientemente, se cristalizam pela má digestão e causam desconforto. As palavras engasgadas, vomitadas em qualquer canto, são o grito do corpo pedindo limpeza. É preciso limpeza. Mas nem toda cristalização chega ao mundo de forma violenta -e não deveria-. Algumas pessoas encontram formas outras de digestão, seja com a ajuda de outros ou usando a medicina do espelho e olhando a si mesmo o que no outro se insatisfez. Reflexão como meditação e meditação como reflexão.
Vizinhança e o rezo leve
A rede subterrânea ajuda a estabilizar as raízes de uma planta. Através dos micélios existe o livre trânsito de nutrientes, água e informações em abundância. Em outras palavras: a sub-vizinhança. Pro lado oposto, onde nesse agora estamos, a rede invisível também nos estabiliza, no entanto de uma forma não tão física mas sim extra-sensorial. São as pequenas sutilezas do entorno.
Com o tempo meu tronco foi ganhando força, engrossando e se bifurcando em extensões de mim, criando meus próprios anéis de crescimento, marcando minhas épocas, meu tempo de dentro. Assim eu encorpei. Munida. Queria um dia sair de baixo da sombra da copa das árvores vizinhas, que uma vez foram casa, e alcançar sol direto.
Com o sol direto, a árvore cresce mais rápido e seus galhos, flores, frutos e todas as suas expressões se desenvolvem e ganham mais vitalidade. No entanto, o sol direto também pode queimar e sem as outras árvores ao redor, sozinha ela não perdura. É preciso vizinhos. Eu não quero ser árvore sozinha e me pôr a secar. Eu quero ser árvore de floresta de raízes extensas e presentear minhas vizinhas com meus frutos, aromas e cores, assim como ajudar as pequenas com minha sombra. Eu quero ser floresta para que nossa memória continue neste balanço de canoa do tempo em cada rezo leve levado pela reza do vento².
Sentada na pedra para ver se o rio não corre³
Em cada um de nós flui a corrente de sabedoria dos nossos ancestrais. Deixe a maré te levar, deixe a maré lavar teu pé, e levar4.
O que tiver que voltar e subir à superfície, virá. Por vezes, esse rio pode ficar como um aquífero, subterrâneo e fora das vistas, ao invés de te banhar todos os dias, mas só não nos esqueçamos que rio ou aquífero, seja qual for, ele nos alimenta e nos nutre de alguma forma, basta empregarmos nossos olhos para ver e o coração para sentir.
O seu corpo te leva exatamente onde você precisa estar .
Você já está onde precisa estar
Notas
É um passo manso lento. É um passo lento manso, do amor Mateus Aleluia em Cinco Sentidos na música Despreconceituosamente.
¹
² Nossa memória continue neste balanço de canoa do tempo em cada rezo leve levado pela reza do vento. Giu Porã e Sabiá Sabiót em Uní Nixipae do álbum Ivoty - 2020
³
Sentada na pedra pra ver se o rio não corre. Os Tincoãs - Atlântico em mão dupla na música Yansã Mãe Virgem
4 Deixe a maré te levar, deixe a maré lavar teu pé, e levar. Sabiá SabiótIvoty 2020 na música Ivoty.
Na capa ilustração de Evan M Cohen – Focus / 2018