Bistrô Revista laboratorial de estudantes de jornalismo da UFRRJ
Mercado Municipal Paulistano
80 anos de tradiççcão e cultura ¸
Alejandra Faúndez: a experiência da chef chilena
Doces mineiros, ponte entre cultura e sabor
Rolê gastronômico pelo youtube
Recepção Bistrôs são pequenos bares franceses. Espécies de pubs que prezam pelo contato entre o chef e o cliente. Estabelecimentos com caráter mais íntimo e que dão relevância às relações pessoais. Esta é a conexão que queremos criar, de um sentimento de intimidade e proximidade. Ao tratar o tema gastronomia pelo ângulo cultural e comportamental, pretendemos fugir da ideia das tradicionais publicações que se pautam apenas em receitas. Nesta primeira edição não poderíamos deixar de falar sobre um dos pontos turístico-gastronômicos mais conhecidos do Brasil, o Mercado Municipal Paulistano, que este ano completou 80 anos. Em clima de comemoração, trazemos outros temas interessantes, como a história dos doces bordados e cristalizados de Carmo do Rio Claro, que conquistaram o paladar até dos parlamentares do Itamaraty; e a experiência de uma chef chilena, há 12 anos no Brasil, que compartilha sua paixão pela gastronomia. Aos futuros amigos, desejamos uma ótima leitura e que apreciem a revista.
Um brinde a
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Bistrô!
Expediente Editora-chefe Cristiane Venancio Editor de design Francisco Valle Editor de fotografia Flaviano Quaresma Jornalistas Bruna Soares Heloisa Facin Jéssica Oliveira Juliana Portela Raomi Pani Talyta Magano Designers Bruna Soares Heloisa Facin Raomi Pani Talyta Magano
As j贸ias da gastronomia est茫o chegando, experimente anunciar.
Bistr么 Bistr么
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• 6 Entrada: uma vida, duas paixões
• 12 Variando a dieta: o reflexo do prato
• 18 Saboreando: prazer aos olhos e paladar • 26 Prato Principal: bem vindo ao Mercadão
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• 38 Saboreando: o patrimônio do povo • 44 Um gole: o requinte da marvada
• 48 Entrevista Rodrigo Lisboa: prodígio da gastronomia
• 52 Meu minuto Naysa Moraes: Palmirinha para os íntimos
Entrada
uma vida, duas paixões Alejandra Faúndez trabalha com gastronomia há 12 anos e, graççc¸ ças ao marido, se descobriu na profissão
por Talyta Magano | fotos: João Victor Gouvea
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sotaque ainda forte já evidencia os traços chilenos de uma mulher determinada e sonhadora. Há apenas 12 anos em solo brasileiro, a chef Alejandra Faúndez Cácaceres deve sua chegada aqui ao grande amor de sua vida, seu marido Marius, a quem não dispensa elogios. Este mesmo sentimento a levou pelos caminhos que hoje a realizam profissionalmente: a gastronomia. A mais de 3.700 km do Brasil, o casal se conheceu durante a estadia do marido no Chile, onde estava a trabalho. Casaram-se e, logo depois, vieram para o Brasil. Em todos os momentos, segundo Alejandra, desde que se conheceram, ele sempre a incentivou e acreditou no potencial dela. – O meu amado marido foi uma estrela no meu caminho que, com muito amor, sempre acreditou em mim e na minha capacidade. Costumamos brincar que o Marius me deu asas para voar e agora ninguém me segura... – declara. Natural de Santiago, capital e maior cidade do Chile, ela trabalhava desde cedo para ajudar em casa. Alejandra tinha um currículo em que nada se aproximava da alimentação: já foi vendedora, gerente de loja, assistente operacional de uma multinacional e até promotora de ração de cachorro.
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Entrada
A primeira parada da chef no Brasil foi, em 2001, na capital do Mato Grosso, Cuiabá, onde ela diz ser muito quente e responsável pelo início das experiências na culinária. Ela conta que, ao chegar ao Brasil, se viu na necessidade de se redescobrir como profissional e procurar novos caminhos em uma cultura totalmente diferente da que conviveu por 25 anos. Sua vinda para o Rio de Janeiro é que realmente consolidou sua carreira. Foi quando se formou pela Universidade Estácio de Sá, como tecnóloga em Gastronomia e Culinária com pósgraduação em Gestão Educacional pela Universidade Augusto Mota (Unisuam). Sobre o comportamento dos chilenos, Alejandra comenta que nada tem a
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ver com o “jeitinho carioca de ser” e chega a ser incômodo nos primeiros contatos. Segundo ela, o brasileiro é muito aberto e bondoso com os outros. – No Brasil, aprendi a ser mais generosa, a abrir as portas da minha casa e ajudar ao próximo, assim como eu também fui acolhida. Aqui me sinto livre para expressar o que penso sem julgamentos e sem medo de ser feliz! – completa. Com tantas mudanças e em tão pouco tempo, aos 37 anos, Alejandra, hoje, é dona do seu próprio negócio, a empresa AF Gastronomia, na qual presta consultorias e realiza eventos. Ela também é professora em faculdades de gastronomia. Um dos clientes de sua empresa é a Rede Globo, para quem realiza os pratos das festas
O desafio da profissão é inovar e não cair no exagero. do Big Brother Brasil (BBB). Especificamente sobre este trabalho, a também empresária afirma que é muito gostoso, porque ela pode dar asas à imaginação, conforme os temas propostos. Porém, sempre com bastante sigilo. Em meio a tantos compromissos, ela ainda consegue ter tempo para gravar o quadro Rio Chef com Alejandra Faúndez, em que é apresentadora, do canal interno da rede hoteleira Rio Welcome Channel (RWC). Entre tantas
ALEJANDRA FAÚNDEZ: chef chilena está há 12 anos seguindo a profissão
atividades, se desdobrando das 8h às 22h em seus trabalhos, apesar de cansativa, ela afirma ser prazerosa sua rotina: – Na verdade, quando você é seu próprio chefe, é quando a gente mais trabalha. Então, sobra muito pouco tempo para o lazer. O prazer está na certeza de que estamos no caminho certo, onde se batalha pelas metas e objetivos traçados. Longe da família, a chef ressalta que a saudade é um sentimento que nunca a deixa, mas que o trabalho distrai. Ela viaja para o Chile pelo menos duas vezes por ano, para ver os parentes. Aliás, conhecer outras culturas e ler são alguns dos passatempos preferidos dela. De acordo com Alejandra, em suas viagens,
ela procura agregar valores gastronômicos para aperfeiçoar sua bagagem cultural e bibliográfica, assim ela nunca para de aprender. O desafio da profissão consiste em inovar e não cair no exagero, diante de um cenário cada vez mais permeado por novas vertentes. O momento atual da gastronomia, mais contemporâneo, dá espaço para todos os perfis aparecerem. Mas é necessário garra, muito foco e força de vontade para seguir na profissão. Alejandra aponta que é preciso enxergar as oportunidades e estar aberto para recebê-las. Ela dá um conselho para quem está iniciando na profissão: – Manter a humildade, aproveitar e aplicar todo o conhecimento adquirido é um bom caminho. Por outro
lado, muitas pessoas que entram na faculdade têm a falsa impressão de que gastronomia é só cozinha. E não! É muita cultura e pesquisa também. A chef se orgulha em dizer que, pelo fato de ser estrangeira, já concretizou muita coisa no Brasil. Sobre o futuro, Alejandra não espera nenhum outro concorrente, além dela mesma. O desafio das próximas etapas será competir com os próprios limites. •
Receita da chef: Bobó de camarão
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Ingredientes:
Modo de preparo:
1,5kg camarão; 1kg aipim; 1/2 pimentão vermelho; 1/2 pimentão verde; 300ml de leite de coco; 500ml de caldo de camarão; 30g de extrato de tomate; 1 cebola (picada); 3 dentes de alho (picado); 50ml azeite de dendê; 50ml óleo de girassol; 1 molho de coentro; Sal.
Em uma frigideira aquecida com óleo de girassol, salteie o camarão e reserve. Em outra panela, aquecida com óleo de girassol e, azeite dendê refogue a cebola, o alho, o pimentão vermelho e o verde. Após isto, junte o extrato de tomate, o tomate e metade do leite de coco. Cozinhe até ficar concentrado. Adicione o creme de aipim, o caldo de camarão e o camarão. Cozinhe bem, ajuste o sal e tempere com molho tabasco. Para finalizar, acrescente o restante do leite de coco e coentro. Sirva acompanhado de arroz e batata palha. Rendimento: oito porções
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Comida di buteco 2013 “Se for para curtir, que seja com os amigos no buteco” é a chamada para o maior concurso de cozinha de raízes do Brasil. De 12 de abril a 12 de maio, o evento apresentará 400 petiscos, em 16 cidades pelo Brasil. Maiores informações acesse www.comidadibuteco.com.br.
Festival do Polvo e Camarão Até o dia 30 de abril ocorreu no Bar e Restaurante Urca, Rio de Janeiro, o festival para amantes de frutos do mar. O evento ofereceu pratos como o Camarão Paulista (R$27). O bar funciona de domingo a domingo, com horários alternados, localizado na rua Cândido Gaffrée, 205.
Oscar da gastronomia A revista britânica Restaurant nomeou os 50 melhores restaurantes do mundo. A premiação aconteceu no dia 29 de abril, e elegeu o espanhol El Celler de Can Roca como o melhor do mundo. O brasileiro D.O.M. caiu do 4° para o 6° lugar.
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Madame Brigadeiro A doceria Madame Brigadeiro oferece 40 sabores diferentes do brigadeiro, além de receitas especiais com o doce tradicional. Situada no bairro de Perdizes, rua Bartira, 427, zona oeste de São Paulo, o brigadeiro clássico é vendido por R$ 3,50 e o mil folhas de brigadeiro por R$8.
Lapa Café Instalado num casarão de 1902, localizado na Lapa, bairro boêmio do Rio de Janeiro, o bar oferece cardápio com mais de 500 rótulos de cervejas de todo o mundo. Entre eles, a cerveja argentina Beagle, da Patagônia. Confira no site www.espacolapacafe.com.br.
Guia Gastronômico das Favelas do Rio Idealizado e editado pelo pesquisador Sérgio Bloch, o livro seleciona os 22 melhores bares, botequins e restaurantes das favelas pacificadas. Além das dicas gastronômicas, o guia também convida o leitor a degustar além do paladar.
Butcher’s Market A lanchonete localizada no Itaim Bibi, rua Bandeira Paulista, 164, zona oeste de São Paulo, começou, em abril, a servir opções como o linguine ao pesto com carré de cordeiro marinado e polpetone. A casa popularizou-se com hambúrgueres de estilo americano.
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Confeitaria Colombo No seu aniversário de 120 anos, a confeitaria mais tradicional do Rio de Janeiro ganhou um livro em sua homenagem. "Confeitaria Colombo - Sabores de uma Cidade" foi escrito por Antonio Edmilson Martins Rodrigues e por Renato Freire, chef-executivo da cozinha do centro do Rio.
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Variando a dieta
o reflexo do prato a influência da alimentacç¸ ão na estética
texto por Raomi Pani | foto: divulgação
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busca pelo corpo perfeito vem se tornando um ideal cada vez maior para uma parcela da sociedade. Segundo a Associação Brasileira de Academias, a ACAD Brasil, o mercado do fitness no país quadruplicou entre 2000 e 2011, saltando de quatro mil para dezoito mil academias em dez anos, um aumento de 450%. Mas malhação e exercícios físicos não são os únicos caminhos para um controle das chamadas desordens estéticas.
A nutrição funcional tem papel mais do que importante no desenvolvimento de um corpo saudável e, por consequência, de boa aparência. Segundo o Instituto Brasileiro de Nutrição Funcional (IBNF), esse tipo de nutrição, diferente da tradicional, “tem o objetivo abordar, prevenir e tratar desordens crônicas complexas por meio da detecção e correção dos desequilíbrios orgânicos”. Uma alimentação equilibrada acaba diretamente
ligada à definição de beleza do mundo ocidental contemporâneo. Deficiências nutricionais e excesso de gordura saturada, carboidrato e sódio podem ser responsáveis por diversos desequilíbrios estéticos. Alterações na aparência das unhas, dos cabelos e da pele,gorduras localizadas e o envelhecimento precoce são afetados por exageros e ausências na alimentação. A pós-graduada em nutrição clínica e estética Renata Duarte, de 24 anos, conta sua
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Deficiências nutricionais e excessos alimentares são responsáveis por desequilíbrios estéticos
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Variando a dieta
experiência: – As pessoas chegam nas clínicas com intenções bem particulares, para melhorar partes específicas do corpo. A partir daí nós conseguimos construir um cardápio pra cada área da estética – conta a nutricionista. – Então, de acordo com os hábitos de cada indivíduo nós montamos um plano de alimentação. Particularidades como tipo e hora de alimentação, tempo diário de sono, qualidade de vida e atividades do dia a dia são fundamentais na hora da construção de um cardápio de nutrição funcional. A primeira consulta com um nutricionista que trabalha nessa área costuma durar cerca de uma hora e meia. Renata ressalta que não é
possível criar uma diet que resolva os problema de todo mundo. As pessoas levam vidas diferentes e suas necessidades nutricionais não são as mesmas. O universitário Francisco José Alves Júnior passou por diversos nutricionistas na adolescência, tentando solucionar dois problemas: acne e sobrepeso. Júnior, como prefere ser chamado, conta que essas conversas foram muito boas, inclusive para sua auto-estima: – A gente tem um contato mais próximo com quem faz nosso cardápio. Dá uma motivação muito maior na hora de seguir o planejamento – conta o estudante de psicologia que pesava 120kg em 2010 e perdeu 40kg com ajuda da nutrição funcional.
Para quem não tem tempo de ir atrás de um nutricionista, ficam algumas dicas importantes. Coma a cada três horas, beba muito líquido e procure um estilo de vida saudável. Pratique exercícios físicos, ande um pouco a pé e se for abusar, ingerir bebida alcoólica ou comer uma pizza, deixe pro final de semana. E para não esquecer, não acreditem nessas dietas de revista. Elas não foram feitas pra você. Até parecem fazer algum sentido, mas alimentação e saúde são assuntos sérios demais para serem tratados a revelia. •
NUTRIÇÃO FUNCIONAL: excessos e ausências no prato do brasileiro
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sódio o nutriente que tem se tornado vilão
texto por Bruna Soares | foto: divulgação
SÓDIO: os malefícios de um dos componentes mais presentes na culinária
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Ministério da Saúde e a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) estimam que no Brasil existam cerca de 30 milhões de hipertensos. Deste total, 300 mil morrem por ano em decorrência da doença. Segundo as entidades, o excesso de sal na alimentação é uma das principais causas do problema. Apesar de ter papel importante no organismo e contribuir para um bom funcionamento do corpo, o consumo abusivo de cloreto de sódio, também popularmente conhecido como sal de cozinha, pode trazer sérios desequilíbrios à saúde. Derrame
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cerebral, doenças cardíacas, insuficiência renal e impotência sexual estão entre os possíveis problemas associados ao excesso de sal na alimentação. A pós-graduada em nutrição ortomolecular Débora Yamashita, de 24 anos, explica que, apesar dos pesares, o sódio é nutriente indispensável para o bom funcionamento do metabolismo do corpo humano. – Embora faça muito mal quando ingerido em excesso, o sódio não pode ser abolido da dieta – esclarece Débora, – principalmente pelas funções hormonais, nas quais desenvolve papel fundamental.
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Variando a dieta
O sódio também é responsável pela regulação hídrica de dentro e fora de nossas células. Quando há excesso do nutriente no sangue, ocorre uma alteração no equilíbrio de líquidos corporais que, associado a outras doenças, pode levar até a amputação de membros como braços e pernas. A recomendação de consumo máximo diário de sal pela Organização Mundial de Saúde (OMS) é de menos de cinco gramas por pessoa. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela, no entanto, que o consumo do brasileiro está em 12 gramas diários, valor que ultrapassa o dobro do recomendado. Exemplificando para o cotidiano, alimentos industrializados como salgadinhos e embutidos são fontes com alto teor de sódio. Se o consumo de sódio fosse reduzido para a recomendação diária da OMS, os óbitos por acidentes vasculares cerebrais poderiam
diminuir em 15%, e as mortes por infarto em 10%. Estima-se que 1,5 milhões de brasileiros não precisariam de medicação para hipertensão e a expectativa de vida seria aumentada em até quatro anos. A coordenadora de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, Patrícia Jaime, recomenda que o sal de cozinha deva ser substituído por outros condimentos que, inclusive, possam dar outros sabores aos pratos do dia a dia. “É melhor utilizar ervas desidratadas e temperos naturais, como salsa, cebolinha e pimenta, por exemplo”, aconselha. Para contribuir com a diminuição do consumo de sódio, o Ministério da Saúde firmou um acordo com a indústria alimentícia pela redução gradual do teor de sódio em alimentos processados. Desde 2011, o governo federal fechou três termos de compromisso para que várias categorias de alimentos sejam produzidas
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com menos sódio. OMS em números As primeiras causas de internações e óbitos no Brasil e no mundo estão ligadas ao consumo excessivo de sódio. Dados da Organização Mundial da Saúde indicam que há cerca de 600 milhões de hipertensos no mundo. A doença atinge, em média, 25% da população brasileira, chegando a mais de 50% na terceira idade e, surpreendentemente, a 5% dos 70 milhões de crianças e adolescentes no Brasil, segundo informações da Sociedade Brasileira de Hipertensão (SBH). Independente da idade, do gênero ou do país, a cada segundo, uma pessoa sofre um acidente vascular cerebral. A cada seis segundos, no mundo, alguém morre em decorrência de um. A doença cerebrovascular atinge cerca de 16 milhões de pessoas ao redor do globo a cada ano. •
As principais causas de internações e óbitos estão ligadas ao consumo excessivo de sódio
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Saboreando
prazer aos olhos e ao paladar os doces-arte de Minas Gerais que conquistaram o mundo
fotos e texto por Bruna Soares
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a pacata Carmo do Rio Claro, cidadezinha do sul de Minas Gerais, uma tradição resiste ao tempo: os elaborados doces bordados e cristalizados. Os doces são uma marca diferencial, atraindo turistas de diversas partes do Brasil e do mundo, e por isso tramita no Instituto Estadual do Patrimônico Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA), o processo que o tornará patrimônio imaterial do município. Tudo teria começado em 1904, com a chegada a Carmo do Rio Claro de um grupo de freiras francesas – as
Irmãs da Providência - para fundar o Colégio Sagrados Corações. Certa ocasião, uma das alunas, Ana Vilela Magalhães, conhecida como Nicota Vilela, viu com as freiras uma caixa com doces muito bonitos e aparentemente saborosos. A imagem dos doces ficou na memória da aluna, que um dia resolveu reproduzi-los. Embora de feitio e desenho rudimentar, ela os achou interessantes e os guardou para mostrar à sua mãe, Dona Maria de Lima Vilela. Ela gostou da ideia e juntamente com sua filha procurou fazer doce seme-
lhante. Adolfo Pio Sobrinho, pai de Nicota, ia auxiliando, fornecendo as ferramentas para esculpir as frutas para fazer as compotas. E os doces desenhados iam surgindo pouco a pouco. Depois que Dona Nicota se casou com Joaquim Pinto Magalhães, o Seu Quincas, ele esmerou seu talento ao fazer ferramentas mais apropriadas em vários formatos (todos cartuchos de metal de balas deflagradas - projéteis usados). Dona Nicota, usando as peças confeccionadas pelo marido, recortava os pe-
DOCES-ARTE: o sabor e o requinte de Minas para o mundo
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Saboreando
daços de mamão, abóbora, formando os mais variados desenhos. Daí para frente, a arte crescia em suas mãos. No casamento de sua sobrinha Maria de Lourdes, ela deslumbrou todos os convidados quando foram servidas as bandejas com os belos e gostosos doces: fita de coco em formato de rosaflor, tronquinhos de árvores, bolinhas de coco, doce de banana, figo, abacaxi, laranja, maracujá etc. As encomendas iam chegando com intensidade sempre maior. Os doces de Dona Nicota começaram a atravessar fronteiras, não somente do município como também do estado e até do país, indo para a França, Itália, Inglaterra. Mais que copiar a técnica do bordado em frutas, a ainda adolescente Nicota a aprimorou e a passou adiante, entrando para a história da cidade como a precursora dessa arte. Nasceu assim o artesa-nato dos doces carmelitanos, cuja fama continua elevando o nome de Carmo do Rio Claro. Com uma quantidade expressiva de doceiras e sendo essa arte marca da cidade, a prefeita Cida Vilela (PCdoB) reconhece a importância de se preservar essa tradição. Ela criou em sua administração um curso para formar novas profissionais. As aulas são ministradas há três anos pela doceira Maria Rita Dias de Paula, no Centro Integrado de Aprendizagem
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(CIAR), local mantido pela Associação de Pais e Alunos Especiais (APAE) da cidade. Cida ressalta ainda a importância comercial de se valorizar a produção dos doces carmelitanos. – Sabemos que muitas famílias sobrevivem do doce e do artesanato e queremos dar condições de melhorar essa renda e ampliar o número de pessoas que hoje trabalham nessa área – declarou. Os doces chegam ao Itamaraty A fábrica “Doces Art Minas” se destaca pela originalidade de seus produtos, sendo uma empresa totalmente artesanal. Está no mercado há doze anos, mas sob o comando de Ariovaldo Manoel de Moura, de 57 anos, completará três anos no mês de julho. A fama de seus doces correu não só o Brasil e ganhou o paladar de grandes nomes, como Barack Obama. Num jantar oferecido pela presidenta Dilma Rouseff, em 2011, ao presidente norte-americano, os doces cristalizados foram servidos pelo Buffet Porto Vitoria Di Galhard que cuida de todos os eventos realizados pelo Itamaraty. Obama não poupou elogios. Segundo Ariovaldo, pelo menos uma vez por mês são enviados cerca de 25 a 30 kg de doces ao buffet do Itamaraty para festas. Inacreditavelmente deli-
ciosos, os doces fazem jus à fama. Vale a pena ir até a fábrica para conhecer e saborear um bom doce mineiro que caiu no gosto até do grande chefe de estado americano. •
A fama dos doces percorreu o Brasil e ganhou o paladar de grandes nomes internacionais.
ROLÊ GOURMET: Pc Siqueira e Otávio Albuquerque se divertem falando de gastronomia ROLÊ GOURMET: Pc Siqueira e Otávio Albuquerque se divertem falando de gastronomia
receitas, laricas e rolÇês sobre um canal no YouTube, culinária vanguardista e receitas bem humoradas por Raomi Pani | fotos: Divulgação
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uas xícaras de boas ideias, três colheres de descontração e muitos-muitos brindes de vinho rosé e cerveja. Com pitadas do já conhecido humor ácido do vlogger PC Siqueira e da fofura mais que contagiaante de seu amigo Otávio Albuquerque, o vlog Rolê Gourmet acabou de chegar aos oito milhões de visualizações. Com direito a indicação a prêmio internacional e bonequinho dos apresentadores, o canal do YouTube se propõe a tratar de culinária avant-garde, mas mais do que isso, é um canal sobre amigos que se juntam para cozinhar e beber. E se divertem com isso.
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Rolê, para não paulistanos, talvez seja uma palavra desconhecida. Já pelas bandas do estado mais populoso do Brasil é comum ouvir adolescentes e jovens usando a gíria como sinônimo de dar uma volta, um encontro com os amigos ou uma espécie de reunião sem compromisso. – O nome [Rolê Gourmet] surgiu ao acaso, como sugestão de um amigo, mas acho que foi uma escolha muito feliz - conta Otávio. – Além de ter uma sonoridade legal, resume bem o que fazemos. Tem aquele toque irônico. Ironia, inclusive, é uma característica
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constante dos vídeos do Rolê. A proposta do canal nasceu a partir de um convite do PC para o Otavio, em julho de 2012, quando o vlogueiro se mudou para um apartamento com uma cozinha maior e mais bem equipada. A dupla não tinha nenhum planejamento ou pretensão, mas já imaginava que, pela projeção do PC na internet, o alcance seria grande. O que não pensavam, talvez, é que o Rolê Gourmet fosse alcançar, em 10 meses, mais de 220 mil inscritos. Mal comparando, o canal do chef britânico Jamie Oliver, conhecido internacionalmente por programas televisivos, existe há cinco anos e não passou ainda dos 205 mil. Boas ideias, ótimos convidados Inspirados no programa Larica Total, do Canal Brasil, e no canal britânico Sorted Food, Otavio e PC descomplicam até receitas mais elaboradas. Em um vídeo de 32 segundos, a dupla ensina a fazer milkshake com apenas sorvete, leite e biscoito. O vídeo, entitulado Harlem Milkshake, brinca com o fenômeno músico-dançante que invadiu as redes sociais no último mês, o Do The Harlem Shake. É o mais acessado do canal, com quase 330 mil visualizações. Otávio conta que aprendeu a cozinhar no Youtube e PC, na realidade, nunca soube. – É o Otávio quem sabe cozinhar. Eu só tive a ideia de produzir o canal – comparti-
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lha PC em um dos vídeos do Rolê. – E o público do Rolê varia tanto quanto variam seus convidados. Homens e mulheres, das mais diversas idades, com os mais diferentes gostos e tipos. Alguns estudam gastronomia e são especialistas na área, mas a maioria é de curiosos e interessados pelo assunto. “Tenho 13 anos e fiz [a receita dos Ursinhos Alcoólatras]. Ficou muito bom” comentou no vídeo o usuário Vinicius Silva. O adolescente diz que experimentou uma das receitas mais famosas do canal, substituindo a vodka por tubaína, refrigerante regional do interior de São Paulo. Agora, a equipe do Rolê Goumet está colhendo os resultados de quase um ano de
O público do Rolê varia muito. Das mais diferentes idades, gostos e tipos, podendo ser homens ou mulheres.
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trabalho. Com quase 50 vídeos no ar, além da indicação para o Shorty Awards, o grupo começou a produzir e comercializar produtos prórprios, como canecas, xícaras, porta-copos e bonecos caricaturas do PC e do Otavio. – Nessas últimas semanas, o Rolê deu um salto de notoriedade. As pessoas estão falando muito mais. Acho que realmente chegamos a um ponto bacana e, se tudo der certo, ainda é só o começo – disse Otavio. Os vídeos do Rolê Gourmet saem todas as segundas e quintas-feiras e trazem receitas de refeições, drinks e sobremesas. • Acesse o canal Rolê Gourmet: youtube.com/user/RoleGourmet
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de mesa em mesa como a família brasileira do século XXI mantém os costumes durante a refeiçc¸ ão texto por Jéssica Oliveira | foto: divulgação
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esde os primórdios da humanidade os homens se reúnem para se alimentar, mas acredita-se que este hábito de se sentar em cadeiras ao redor da mesa para compartilhar o cardápio e as conversas tenha se popularizado apenas na Idade Média. Político, econômico, social ou religioso o ato de comer à mesa tornou-se um símbolo universal. No final do século XVIII, com a classe burguesa, herdamos o hábito da refeição em núcleos. Já o proletariado, que logo teve que sair de casa para trabalhar, se alimentava em refeitórios fabris. A cultura gastronômica se divide ao
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campo do privado e do público, divisão esta que não fora capaz de diluir tal rito doméstico. Poderia este hábito se perpetuar pelos séculos, mesmo sofrendo variadas transformações? Com os avanços culturais e sociais advindo com a revolução industrial, este rito entra em crise. A partir da criação da cozinha industrial e do processo de restauração (criação de restaurantes) é possível adquirir comida pronta para consumo fora de casa. O restaurante se firmou na França após a Revolução Francesa destituir a aristocracia, deixando um contingente de serviçais
hábeis no trato com os alimentos, ao mesmo tempo em que muitos provincianos chegavam à cidade sem pessoas para cozinhar para elas, nem cartas de apresentação às famílias locais. O encontro desses dois públicos deu origem ao hábito de se fazer refeições fora de casa. A emancipação feminina das últimas décadas é apontada como uma das principais responsáveis pela mudança do comportamento alimentar em família, assim como a era denominada “Fast Food”. – Fui casada há dez anos, sou divorciada há três anos e crio meus três filhos, so-
REFEIÇÃO EM FAMÍLIA: muitas ainda prezam essa tradição
zinha. Não tenho tempo de partilhar com eles dos momentos de prazer na hora das refeições. Já não tinha esse hábito antes do divórcio, agora, então, que não tenho mesmo. Não que eu sinta falta. A gente não sente falta daquilo que nunca teve, mas eu acho bonito quando vejo nos filmes as famílias sentando à mesa pra comer. Porém, acho tão fora da realidade do brasileiro, que nem fico pensando muito – diz Ana Clara Abraão Nascimento, de 35 anos, carioca. Em contrapartida, muitos ainda pensam que o ato de sentar-se à mesa sintetiza a união e consistência familiar. – Sento para tomar café da manhã e jantar com a minha família todos os dias, assim como eu fazia com meus pais. Só não temos esse hábito no almoço por conta do trabalho de cada um, mas no final de semana é certo que isso aconteça. Como diria minha avó, família que almoça unida, permanece unida – afirma Leila da Costa Pereira, de 52 anos, nordestina, erradicada no Rio de Janeiro. Assim como Leila, muitas são as famílias que prezam por tal costume e acabam por se apropriar desta prática como forma de representatividade cultural e autoafirmação. – Família tem que almoçar junta, senão tudo vai se perdendo no meio do cami-
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nho – termina Leila. Mesmo com todos os avanços tecnológicos, há aqueles que tentam usar tais ferramentas em prol de resgatar o prazer dos encontros ao redor da mesa, sem esquecer também da filosofia religiosa relacionada à prática alimentar deste grupo primário específico, instituído família. – Aqui em casa, somos apenas nós quatro e cada um tem um lugar específico para se sentar. A cadeira dessa ponta é minha e da outra ponta é da minha esposa, enquanto as cadeiras laterais são dos filhos e convidados, quando há algum, claro. Quando eu era criança, meu pais trabalhavam fora e não tinham como fazer essa rotina. Felizmente conseguimos almoçar todos os dias juntos, por trabalharmos e estudarmos próximos de casa. Ter carro ajuda muito também. Antes de comermos, agradecemos a Deus pela refeição de cada dia e por mais uma oportunidade concedida de almoçarmos juntos. Como não assistimos televisão nessa hora, aproveitamos pra falar sobre o que fizemos pela manhã e o que nós pretendemos fazer depois almoço. É um hábito bem saudável para estruturação da nossa família. Recomendo a todos que puderem, que o pratique, nem que seja apenas aos fins de semana – aconselha Eduardo Caetano de Lima, de 40 anos, paracambiense.
Com ou sem resistência por certos grupos de indivíduos, as transformações dos hábitos alimentares na sociedade contemporânea se apresentam de forma gradativa. Não há como fadarmos este rito ao esquecimento, nem subestimarmos sua metamorfose. O hábito alimentar evidencia-se como um dos fatores mais relevantes da construção das identidades culturais. Nossas escolhas assim podem se basear também em tradições, mas, essencialmente, representam um retrato de nosso tempo. •
Família tem que almoçar junto, se não tudo vai se perdendo no meio do caminho
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bem vindo ao Mercadão sem sair do lugar é possível experimentar a cultura gastronômica em todas as suas formas
fotos e textos por Heloisa Facin e Talyta Magano
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o mesmo dia em que se comemorava o 459º aniversário de São Paulo (SP), em 25 de janeiro de 2013, um dos cartões postais mais tradicionais da cidade também estava em festa: o Mercado Municipal Paulistano, em seus 80 anos de trajetória histórica. Localizado no centro de SP, o Mercadão, como é popularmente chamado, está próximo à Rua 25 de março e do Parque Dom Pedro II, onde se consolida como um dos maiores varejistas de alimentos do mundo. Além de rota de passeio para os paulistas, o local é ponto turístico para curiosos e amantes da gastronomia. Quem se aventura em percorrer os 316 boxes, dispostos em 12.600 m², se depara com uma diversidade inimaginável de frutas, queijos, especiarias, bebidas e os tradicionais lanches. Além do mais, lá é o único lugar em que se podem encontrar produtos fora de época, sempre com ótima qualidade.
80 anos de Mercadão
Em média, segundo dados da administração do Mercado, em dias de semana, circulam nas dependências entre 11.000 e 25.000 visitantes. Já nos finais de semana e feriados, esse número costuma dobrar. Para dar conta de receber tanta gente, 1.600 funcionários trabalham diariamente cuidando de 600 toneladas de alimentos por dia. Há seis anos no Mercadão, José Rubens Rodrigues, de 52 anos, trabalha na manutenção e confessa que, só de ficar observando vez ou outra, tem várias histórias engraçadas para contar e muito orgulho do trabalho que faz. – Eu acho muito bonito o dia de sábado aqui, por exemplo, porque tem muitas pessoas. Vem gente de todos os lugares. Os clientes
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estrangeiros, com hábitos muito diferentes, vêm procurar informação e ninguém entende nada, o que acaba gerando muita risada. Ficamos muito felizes quando as pessoas chegam pedindo ajuda. É um prazer muito grande poder auxiliar – compartilha Rubens. A história por trás da tradição Com o objetivo de substituir o mercado que funcionava a céu aberto na Rua 25 de março, às margens do Rio Tamanduateí, em 1924, idealizava-se a construção de um Mercado Municipal, com melhores estruturas, para consolidar a imagem de “Metrópole do Café” que São Paulo ganhou a partir do final do século XIX. Nessa época, a cidade contava com uma população de 1 milhão de habitantes – hoje
esse número ultrapassa 11 milhões, segundo dados do Censo IBGE 2010. As obras começaram em 1928, sob a responsabilidade do engenheiro e arquiteto Ramos de Azevedo. Em estilo eclético, ou seja, combinando estilos e momentos históricos em uma mesma obra, o prédio público começou suas atividades cinco anos após o início da construção. No caso do Mercadão, foram seguidos os estilos grego, jônico ou dórico. No interior das instalações, 55 vitrais, de autoria do russo Conrado Sorgenicht, levam o público de volta ao fim do século passado, enaltecendo o trabalho de produção e colheita da agropecuária paulista. Na parte externa, imagens da deusa Ceres ilustram aquela que, de acordo com a mitologia, ensinou aos homens a arte
de arar, plantar e colher. No início dos trabalhos, os comerciantes vendiam para poucos clientes em meio a receios e dúvidas quanto à atividade. Com as primeiras operações dos bondes, em 1939, e, mais tarde, os donos das bancas, facilitados pelas linhas de ônibus, trens e metrôs, puderam atrair mais pessoas até o local. Além disso, novos comerciantes, restaurantes e chefs passaram a enxergar no Mercado uma oportunidade de ascensão da gastronomia. Mais de 70 anos depois da sua construção, em 2004, o Mercadão passou pela sua primeira grande reforma, quando os boxes foram readequados para melhor atender a clientela. Nessa mesma reforma, criou-se o Mercado Gourmet, onde são oferecidas aulas de culiná-
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ria; o Salão de Eventos, que antes era o Salão de leilões, para realização de eventos culturais; e a maior inovação, o Mezanino, separado para abrigar restaurantes, que ocupam 2 mil m² do espaço total. O sucesso da reforma se reflete na crescente popularidade do Mercado Municipal Paulistano. Prova disso é o próprio Mezanino que, no horário de almoço, vive cheio. – O mercado, em geral, é sempre uma correria. Aqui no Mezanino nossos trabalhos começam por volta das 10h da manhã e é bem movimentado. Não tem como vir aqui e não provar as delícias do Mercadão – analisa a garçonete Eva Martins, de 26 anos. •
Em dias de semana, chega a circular até 25.000 pessoas pelo mercadão
MERCADÃO: Clientes escolhem 29 frutas em um dos 316 boxe
80 anos de Mercadão
para além do Oiapoque ao Chuí o Mercadão já conquistou os paulistas faz tempo, agora é a vez de expandir as fronteiras
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uando se chega à cidade de São Paulo pela primeira vez, o Mercado Municipal é ponto turístico obrigatório para se visitar antes de voltar para casa. Ou se não é a primeira vez, faz-se aquele esforço para pelo menos passar por lá e ver as novidades, mesmo para quem é da terra da garoa. Cada vez mais popular no cenário gastronômico, é comum encontrar pessoas com esse pensamento. Tem gente de todo tipo e de todo lugar. Brasileiros e, algumas vezes, estrangeiros passeiam em volta de um mesmo mundo: a gastronomia em todas as suas faces, desde
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a contemporaneidade até o lado mais exótico. Segundo pesquisa realizada pelo Observatório de Turismo de São Paulo, em 2012, os frequentadores do Mercadão são adultos, com idade média de 41 anos, 57,9% do sexo masculino e 40,2% com ensino superior completo. Deles, 5% são turistas do exterior e 21,6% de outros estados. A maior motivação para ir até o local é o almoço, com 39,2%. O norte americano David Day, de 36 anos, do estado do Mississipi, foi visitar os amigos paulistas Edson Todeschini, de 34 anos, e
Leonardo Todeschini, de 41 anos. Eles foram até o Mercadão para apresentar a David o famoso sanduíche de mortadela do Bar do Mané, que o amigo queria experimentar. Quase fluente em português, ele contou ter ouvido falar sobre o lanche no canal Travel Channel: – A primeira coisa que o apresentador falou para fazer ao chegar a São Paulo é vir direto para o Mercadão e comer no Bar do Mané o sanduíche de Mortadela. Para os irmãos Todeschini, o Mercado Municipal está no DNA do paulista. Sempre que podem eles vão ao local, levam a família e fazem compras, como bacalhau e queijos. Para a catarinense Marilda Sousa, de 41 anos, o sanduíche de mortadela também impulsionou sua ida ao Mercado. Depois de saborear o lanche, ela afirma que é “estupendo” e, inclusive, o espaço lembra o Mercado Municipal de Florianópolis. Para ilustrar melhor a magia do local, conversamos com alguns funcionários dos variados estandes, colhendo um pouco de suas rotinas, impressões e dicas de utilização de alguns dos produtos destacados por eles. – O trabalho aqui é bom, pois aprendemos muito. Nós chegamos “besta”, sem saber nada, e descobrimos um mundo novo. Itens que normalmente diríamos que nunca comeríamos e de repente nos observamos pro-
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vando, analisando e passando a colocá-los como parte do nosso dia a dia – conta o balconista da Galeria do Bacalhau, Nilson Andrade, de 21 anos. O som vindo das exposições, negociações, gritos de excitação de clientes e funcionários e demons-trações ecoa como uma música que marca a rotina do Mercado Municipal. São vozes de todos os tipos, sotaques, estilos e nacionalidades, reunidos em um só lugar. Ao caminhar pelos corredores do local, o público é atraído pelo Empório Santa Therezinha, especializado em bebidas, castanhas e queijos, que se destaca pelo estilo quase rústico e acolhedor, desde a recepção até a disposição dos produtos. O atendente Rogério Viana Predolin, de 38 anos, conta mais sobre a procura do público, inclusive donos de bares, pubs e restaurantes, por itens selecionados e diferenciados, que encontram na banca: – Muitos clientes estão migrando da quantidade para a qualidade, e temos rótulos de cervejas vindos de mais de dez países diferentes. Nós temos grande variedade belga, que é considerada a melhor matéria-prima do mundo naconfecção da bebida. Não trabalhamos com produtos industrializados, apenas artesanais. Consumidores, por vários motivos, procuram a banca Mr. Josef à procura itens di-
ferenciados, como temperos e especiarias. Alguns mestres da culinária vão buscar as opções oferecidas pela banca para incrementar suas receitas, e dentre eles estão Renato Aragão (Mago da Cozinha do programa Fantástico), Edu Guedes, Ana Maria Braga, entre outros. – O tempero fumacê, composto por 11 ervas diferentes e o molho de pimenta Hell’s Pepper, que é uma fórmula própria, são especiarias que você só encontra aqui, na banca do Mr. Josef – diz o atendente Francisco da Silva, de 43 anos.
O som da excitação de clientes e funcionários ecoa como uma música que marca a rotina do Mercado Municipal
Ao longo de uma história quase centenária, o Mercadão já comportou muitas bancas, que já abriram e fecharam, outras que iniciaram recentemente, porém, algumas se mantiveram durante todos esses anos ocupando seu espaço em um ce-
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80 anos de Mercadão
nário de tradição, qualidade e sabor. Guarde o nome de algumas dessas bancas históricas em nota mental, para que não deixe de conhecê -las quando houver oportunidade. Dentre elas estão: Casa São Paulo, Empório Chiappetta, O Rei dos Cabritos, Queijos Roni e Bar do Mané. Esta é a recomendação certa e unânime de um passeio para se reunir com os amigos e toda família. Mate a curiosidade, a vontade e a fome Com a reforma no ano de 2003, o Mercado ganha um novo ar, mais moderno e que também passa a priorizar a experiência gourmet de seus clientes. Oferece um espaço mezanino com 2.000 m² composto de bares e restaurantes, oferecendo um novo conceito gastronômico, marcando ainda mais o panorama turístico do local. No Bar do Mané, com 80 anos de tradição, é possível encontrar quitutes diversos e o folclórico sanduíche no pão francês, que leva de 250 a 300 gramas, de mortadela da marca Ceratti por R$ 11,00, podendo ser servido quente ou frio. Se quiser apreciar um bom pastel de bacalhau ou pescado pelos mesmos R$11,00, aproveite e dê uma passada no Hocca Bar. Quando os salgados do Hocca se popularizaram, logo, todos aderiram a algumas especialidades dele, em seu cardápio, prin-
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cipalmente ao delicioso pastel. Quando se trata de peixes e frutos do mar, a Casa das Ostras garante satisfação. O forte do lugar são as ostras frescas, claro, vindas de Cananéia e Santa Catarina (R$ 4 cada uma). Mas também dá para pedir ceviche e espetinho de camarão, dentre outras sugestões. Os doces, exceto pelas deliciosas frutas acessíveis nas quitandas, não são parte do carro chefe de variedades do mercadão, porém, dá para adoçar o dia com os docinhos do Tio Ali Árabe e da Dona Diva Doces. Delícias do Oriente Médio e portuguesas dão conta de matar a curiosidade e a vontade. Um pratinho com docinhos árabes sai por R$8 e o tradicional português pastel de Belém, por R$5. Só de pensar, já dá água na boca. Comer está entre os maiores prazeres da vida. Uma experiência, seja ela simples ou não, é sempre especial. Merece ser escolhida com carinho e devidamente saboreada. A partir disso, fica quase impossível não se imaginar vivendo a sensação de um dia no Mercado Municipal de São Paulo. •
QUEIJOS: da mozzarella ao brié
BEBIDAS: cervejas brasileiras e internacionais lotam as prateleiras
TEMPEROS: infinidade de opções para dar sabor ao prato
a estrela do Mercadão tradicao, qualidade e arte: ingredientes da Banca do Juca ¸
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o ano de 1994, a Rede Globo iniciou seu projeto para a nova novela das oito, A Próxima Vítima, que viria ao ar em 1995. Porém, para um de seus personagens, o papel interpretado pelo ator Tony Ramos, faltava o cenário ideal que pudesse compor, com as características ideais, o enredo necessário para a trama. A produção da emissora foi até o Mercado Municipal de São Paulo, buscar entre os diversos estandes, um que casasse exatamente com o estilo que pretendiam para o ator. A Frutícula Remoli, antigo nome como era conhecida, preencheu prontamente todos os requisitos. No ano de 1995, iniciaram as gravações, e esta empreitada durou, aproximadamente, um ano. O personagem atenderia pelo nome de Juca, com isso, a produção, entrando em acordo com o proprietário, criou uma nova fachada, com o nome de Banca do Juca. O responsável, Ailton Pereira
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da Cruz, 49, conta um pouco mais como isso marcou a história do local: – Após a novela é que a banca ganhou notoriedade no Mercado. Com a participação dos atores Tony Ramos, Suzana Vieira e Natália do Vale, entre outros, em 1995, e com todo o apelo
público, o espaço ganhou aspecto turístico. As pessoas se lembram até hoje da novela e sentem curiosidade de conhecer. Desde então, adotamos e registramos o nome como Banca do Juca. A partir de então, o estande atraiu cada vez mais clientes de todas as partes do Brasil BANCA DO JUCA: o herdeiro do boxe explica o sucesso depois da novela
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80 anos de Mercadão
e até de outros países. Sua história com o Mercadão vem de longa data, e se inicia na década de 70, com a chegada da família Pereira da Cruz, vinda do estado do Paraná para tentar novas oportunidades, na receptiva terra da garoa, São Paulo. – Meu pai começou trabalhando em outra empresa, e logo começamos a investir
na primeira banca do Mercado – conta Ailton. Após a reforma sofrida pelo Mercado Municipal, no ano de 2003, autorizado pela prefeita Marta Suplicy, Ailton deixou de trabalhar com o atacado, e manteve somente as vendas no varejo. A modernização e a melhora do espaço permitiram assim expansão empreendi-
DIVERSÃO EM FAMÍLIA: mãe e filha fazem compras no Mercadão
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mento. O responsável aponta muitos pontos positivos na mudança do espaço como um todo. – Depois das obras, melhorou muito a estrutura do local e as vendas. O mercado como um todo, hoje, é muito visto como ponto turístico. Crescemos, temos cinco bancas, entre elas, Amazom Frutas Exóticas, Paraíso, Pa-
reira e Silva, Banca do Juca e temos 50% da Barraca do Juca, que compartilho com meu tio – diz. Além dos clientes, cativos e de longa data, o estande conta também, sempre, com a presença de grandes artistas como Ailton Graça e Sérgio Reis, demonstrando que, além de ter sido marcada pela presença da produção
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televisiva, carrega a tradição de ser o ponto de venda de excelentes produtos, de ótima procedência e qualidade. Vale a pena conferir. •
Após a novela, a banca ganhou aspecto turístico
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Saboreando
o patrimônio do povo receitas tradicionais compartilhadas, transformadas e eternizadas fotos e texto por Jéssica Oliveira
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processo de criação de uma receita se dá por várias formas. Em sua grande maioria, o surgimento de uma receita é resultado das variações sobre os pratos transmitidos de geração em geração, ou seja, uma adaptação à época submetida aos produtos, gostos e costumes presentes na cultura daqueles que o consomem. Para uma parte dos cozinheiros, a concepção de uma nova receita parte com premissa da simples adição do um novo produto ao composto culinário, formando assim uma nova receita.
Para outros, ela se dá pelo estudo aprofundado das combinações e transformações possíveis na gastronomia. Para a maioria, um casamento desses e de outros fatores. Concepções à parte, é correto afirmar que toda receita tradicional passa pelo processo experimental, porém, nem toda receita experimental acaba se tornando tradicional. O mais antigo livro de cozinha de que se há conhecimento é atribuído ao grego Arquéstrato, originário no século IV a.C., contudo não chegou até aos nossos dias. Um pouco
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mais tarde Ateneu e depois Apício deixaram textos que constituíram durante um longo período da História, importante matéria em termos culinários. Transcendendo épocas, o séc. XVIII vê então florescer os livros de cozinha. A Revolução Francesa renova os ideais e também, as formas de se encarar a arte culinária. Surgem aí os livros para “receitas simples e econômicas”. Com o século XX o livro de cozinha torna-se um gênero extremamente diversificado. Não é apenas o consumo que está envolvido no ato de comer, mas todos
Independente do processo histórico em que o Brasil foi colonizado, os costumes brasileiros variam de região Bistrô
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Saboreando
os valores culturais atribuídos a determinado alimento. Transformando-se e se introduzindo a cultura popular brasileira, as receitas culinárias passam por um processo de desconstrução para se adequarem aos hábitos e disposições familiares: “(...)As rejeições, as adaptações e as transformações dos alimentos são mais do que meras questões de gosto ou de capricho, representam a essência do valor que é dado aos diferentes bens e conduzem a questões de identidade”, como aponta o livro “Sabores do Brasil em Portugal”. – Lembro-me que quando criança, mamãe reunia os familiares dominicalmente para um almoço farto. Uma tradição que ela trouxe lá da Espanha e perpetuou em nossa família, tal como quando ela era criança. A especiaria que ela preparava era a Paella, uma iguaria que mistura mariscos, frango e arroz, preparados com muito azeite. Eu cresci vendo-a preparar essa receita e o engraçado é que meus filhos passaram pelo mesmo processo em relação a mim. Os temperos certos, as quantidades ideais, a manhas do cozimento e correta disposição de cada alimento não se aprende nos livros, mas sim na prática – reforça o depoimento de Maria da Conceição González, iguaçuana, de 73 anos, quanto ao entendimento da gastronomia ser uma arte representativa cultural e em constante transformação. Pressa, desorientação, falta de ingredientes adequados e más condições de trabalho são responsáveis, também, pela criação de muitos pratos culinários. Tal colocação é afirmada por Maria de Paula Silva e Souza, nilopolitana, de 59 anos, ao dizer: – Minha família é de origem do interior Fluminense. Meu avô não tinha condição financeira muito boa, mas tinha 38
terras, sabe? E uma das formas de sustento da família era plantar pra comer. Vendiam os legumes a preço muito baixo, mas conseguiam tirar o mínimo do que plantavam para se alimentar. Por um tempo, sobreviveram à base de legumes, praticamente. Com os anos, as condições foram melhorando e conseguimos acrescentar carne ao nosso cardápio, mas como vovó sempre cozinhou os legumes, ela então resolveu manter o costume familiar junto às novas condições. Aí que surge como tradição da nossa família o cozido, que foi passado para minha mãe, depois a mim e agora aos meus filhos. Toda reunião de família é marcada pelo cozido, se não tem cozido, dizemos que não é reunião. Independente do processo histórico em que o Brasil foi colonizado, a cozinha brasileira varia de região para região. Não há como formar um ideal culinário brasileiro, nem moldar a gastronomia nacional. O fato é que esta prática se relativiza de acordo com a cultura de cada família ou grupo. Receitas são criadas, multiplicadas, adaptadas e perpetuadas nos cernes familiares, cada qual com sua particularidade. A tradição de passagem dos segredos culinários familiares dentre as gerações foi, é e será para sempre um patrimônio histórico e imaterial do povo brasileiro. Certamente, o nosso mais belo folclore. •
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Saboreando
memória afetiva: um ato de desconstruçcão ¸
a culinária tradicional brasileira na mão de grandes chefs
texto por Jéssica Oliveira | fotos: divulgação
ROBERTO ANDRADA: cuidado no preparo de seus pratos
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egundo o dicionário a palavra transformação vem do latim transformare “fazer mudar de forma, de aspecto”, composto por TRANS - “através”, mais FORMARE “dar forma”. Em síntese, o mundo que hoje conhecemos é um resultado de diversas transformações decorrentes de nosso passado e neste universo de transformações inclui-se a gastronomia. Surgida com o intuito primitivo de saciar a fome, não se importando
com o paladar, a cocção e a combinação dos alimentos, com o tempo, a função social da gastronomia sofre um processo de transformação a qual se apropria da prática de proporcionar o máximo de prazer, através do paladar, dos que se alimentam. Um rito que sofre uma mudança que resulta na total inversão de valores de sua concepção original. Em caráter simbólico, a alimentação, na maioria das vezes, apresenta-se como um ato
fraterno, de companheirismo e solidariedade entre os homens. Originária nos grupos indígenas, adaptada ao processo de aculturação pelos europeus e, também, resultante do entrelaço cultural advindo ao contato com aos povos africanos, a culinária brasileira começa a ganhar forma a partir do século XVI. Estima-se que nesta época, quando os portugueses chegaram a nossas terras, havia aqui dois milhões de índios
de diferentes etnias, que consumiam basicamente mandioca, peixe, carne, insetos e frutas, ao natural ou dissolvendo-as em água, cozido ou assado. Aproveitavam as possibilidades da terra, se alimentavam de forma semelhante, comiam em silêncio, sentados ou agachados no chão, não utilizavam nem sal nem açúcar. Agregando-se umas as outras, transcendendo os séculos e ganhando novos formatos, as práticas alimentares desses povos distintos criam aquilo que podemos denominar por heterogeneidade gastronômica. A cada alimento é atribuído um valor cultural específico, seja este de origem latina, europeia ou africana. Por sua formação antropológica, a culinária brasileira é permeável a novos gêneros alimentícios, característica que enriquece nossa cultura gastronômica em constantes transformações. As mudanças geradas com a aceitação ou refutação de determinados alimentos não são conduzidas por critérios estabelecidos, são intuitivas. Fato que nos leva a crer que, para nós, brasileiros, a culinária esteja muito mais associada ao campo das emoções que o da razão. Atualmente, a gastronomia se particulariza pela mistura de alimentos e especiarias de diferentes regiões, capaz de provocar, assim, uma globalização gastronômica onde tudo é válido, desde que as combinações dos alimentos resultem num sabor original. Em contramão a essa moderna globalização gastronômica, há aqueles que buscam resgatar os laços culinários oriundos de nossos ancestrais e valorizar a memória e a tradição gastronômica da cultura brasileira. Podemos citar o caso do chef de cozinha brasileiro Milad Alexandre Mack Atala, mais conhecido como Alex Atala. Eleito chef do ano em 2006 pelo Guia Quatro Rodas e dono do restaurante D.O.M., considerado o 4º melhor restaurante do mundo e o melhor da América do Sul, Atala é um acérrimo defensor da cozinha tradicional brasileira. No entanto, não hesita em fazer
uso das técnicas das refinadas cozinhas italiana e francesa, ao mesmo tempo em que procura usar ingredientes nacionais e tradicionais. O seu livro lançado em 2003 “Por uma Gastronomia Brasileira” espelha bem este raciocínio. Inúmeras variáveis fazem parte do longo processo de inserção cultural, o que engloba a culinária. O estudo das leis do estômago, definição etimológica para gastronomia, pode ser definida como uma arte em constantes transformações. A busca pelas origens culinárias, pela cultura local, pelos ritos, hábitos, costumes e valores culturais de uma região criam uma identidade, um simbolismo. Ser tradicional é fazer desta arte uma constante prática de criatividade e originalidade. É se reinventar, se desconstruir para, enfim, se afirmar como unidade cultural. •
Hoje, a gastronomia se transformou em busca pelo prazer mais do que saciar a fome, como em seus primórdios
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Saboreando
Favela Orgânica sabores e liççc¸ ões de uma gastronomia sustentável
REGINA TCHELLY: uma refeição sem desperdícios
fotos e texto por Juliana Portella
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que você faz com a casca de batata e talos de verduras? Na maioria das vezes essas partes desses e outros alimentos vão direto para o lixo. Na cozinha de Regina Tchelly, no morro da Babilônia, no Leme, Zona Sul do Rio de Janeiro, tudo é aproveitado de forma integral. O negócio sustentável surgiu como um projeto social. Na própria casa, Tchelly, começou a dar aulas de gastronomia alternativa para moradores da comunidade, em setembro de 2011. Nas aulas, ela ensinava os alunos a aproveitarem sobras de alimentos na cozinha fazendo deliciosas receitas. A motivação para o projeto surgiu da indignação de Regina Tchelly – que veio da Paraíba – e ao chegar ao Rio de Janeiro ficou surpreendida com a quantidade alimentos
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que era desperdiçada ao final das feiras. – Não é justo desperdiçar tanto alimento com tanta gente passando fome no mundo. Nas partes rejeitadas está concentrada a maior parte dos nutrientes das frutas e verduras – afirma Tchelly, que passou a então a recolher as sobras ao final das feiras e a criar receitas para aproveitá-las. Tchelly afirma que nunca foi cozinheira profissional. A experiência que tem foi adquirida em cozinhas domiciliares enquanto trabalhou como empregada doméstica: – Na minha infância, aproveitávamos tudo o que dava dos alimentos. O que não dava para comer, dávamos aos animais. Primeiro o projeto teve aceitação da própria comunidade, que convidou a empreendedora para ministrar as oficinas na
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Não é justo desperdiçar alimento com tanta gente passando fome no mundo. associação de moradores. A ideia ganhou visibilidade. Empresas começaram a solicitar palestras para seus funcionários sobre aproveitamento das sobras dos alimentos e também a pedir o serviço de bufê para eventos corporativos. – Para atender à demanda destas empresas, precisava emitir notas fiscais. Foi aí que eu me formalizei como microempreendedora individual. Sem emitir nota fiscal, perderia muitos clientes – afirma. Ainda no ano passado, Tchelly recebeu o prêmio de Mulher Empreendedora, concedido pela Aliança Empreendedora, organização sem fins lucrativos de apoio a microempresas. Apesar de ter virado uma empresa, o Favela Orgânica ainda mantém seu princípio social as oficinas de gastronomia alternativa na associação de moradores ainda são realizadas, gratuitamente. Atualmente o Bufê atende ao Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além de grandes eventos como a Batalha do Passinho. No ano passado, Tchelly esteve na Rio+20, encontro das Nações Unidas para discutir práticas sustentáveis.
lidade de saúde, economia e aumento da renda familiar. Feijoada vegetariana, Risoto de Casca de Melancia, Arroz de Folhas Verdes, Moqueca com talos de legumes, bolo de casca de banana, macarrão cremoso com cascas de inhame, yakisoba de casca de melancia, são algumas das iguarias criadas por Regina Tchelly. Regina conta que o que não pode ser aproveitado vira adubo para pequenas hortas. Isso reflete em um aproveitamento de 100% do alimento. As sobras viram compostos que vão para o adubo orgânico e do adubo volta para o alimento Shirley de Almeida faz a oficina de gastronomia e acredita que com essa experiência tem se alimentado muito melhor. – Minha vida está mais saudável, todo mundo lá em casa está se alimentado melhor. A gente aproveita mais o alimento desperdiçando menos – conta. •
Bolso e saúde agradecem Economia doméstica, reeducação alimentar e sustentabilidade são valores da Favela Orgânica que enxerga hábitos alimentares do cotidiano como uma possibi-
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Um Gole
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o requinte da marvada cachaçc¸ a mineira cai no gosto internacional
fotos e texto por Bruna Soares
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tradicional família agropecuarista Pereira, do sul de Minas Gerais, focava sua produção basicamente no leite e no café, com expansão significativa também em outras culturas, como soja e milho. Com a aquisição de uma propriedade em Carmo do Rio Claro, o patriarca Sr. Antônio Carlos Pereira, foi surpreendido por uma pequena estrutura de alambique dentro da fazenda. Despertado seu interesse, Sr. Antônio decidiu aproveitar as instalações para produzir cachaça em pequena escala, somente para servir aos amigos em reuniões íntimas. Mas o sucesso foi tamanho que, impulsionado
pelo elogio de amigos e conhecidos, a família decidiu investir profissionalmente na atividade. Hoje, nomeada cachaça Coração de Minas, já é consumida em diversas partes do Brasil e também com saída para o mercado exterior. Um produto aprovado e apreciado tanto nas análises químicas quanto nas sensoriais; pelos especialistas em degustação, e principalmente pelos consumidores. Produzida inteiramente de forma artesanal, ganhou esse nome por no processo de destilação aproveitar-se somente o coração da cana (meio), sendo desprezadas tanto a cabeça (início) quan-
to a água fraca ou calda (final). Assim, obtém-se uma cachaça de qualidade. A cachaça Coração de Minas possui dois produtos especiais. A cachaça Coração de Minas Ouro, envelhecida em tonéis de carvalho e conhecida por sua coloração amarelada, e a cachaça Coração de Minas Prata, envelhecida em tonéis de jequitibá que mantêm sua cor cristalina. Três anos é o período mínimo de envelhecimento, o que irá garantir o aprimoramento do aroma e sabor suave. – Para os negócios, o produto de qualidade vem somar. Procuramos fazê-lo sempre da melhor forma,
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A cachaça Coração de Minas aproveita-se do "coração" da cana para fazer uma bebida de qualidade Bistrô
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Um gole
dentro dos padrões exigidos por lei – declara a nora do Sr. Antônio Carlos e representante da Coração de Minas, Naína Krauss Pereira. Para quem não sabe, a cachaça, segunda bebida alcoólica mais consumida no Brasil, para ser produzida e revendida ao mercado passa anteriormente por uma avaliação para assegurar a qualidade do produto. As avaliações são realizadas a cada seis meses pelo MAPA - Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Entre os requisitos analisados estão: extração e filtragem do caldo, destilação, envelhecimento, armazenamento entre outros. Em todas as análises já realizadas na Coração de Minas, a cachaça superou todos os índices exigidos pelo MAPA, garantindo o grande diferencial: a qualidade da legítima cachaça mineira. O ano de 2010 afirmou o espaço adquirido pelo produto. Completada uma década de existência, a família organizou uma grande comemoração, que abriu espaço para os apreciadores da cachaça conhecerem todo o desenrolar do processo no alambique
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da propriedade. Além disso, foi produzida, também para a ocasião, uma série especial exclusiva de mil garrafas numeradas em embalagens de luxo. Atualmente, o alambique do Sr. Antônio Carlos Pereira produz 90 mil litros da bebida por ano. E o sucesso é notável. Em 2011, a cachaça Coração de Minas recebeu a visita do Sr. Francis Scanlan, diretor mundial da Campari, juntamente com a Sra. Kátia Alves gerente de qualidade da Campari na América do Sul. O motivo da visita foi conhecer o sistema de produção da cachaça, fornecedora da Sagatiba Velha - marca forte no mercado, fundada pelo empresário Marcos de Moraes, em 2004. Depois dessa visita a empresa italiana anunciou a compra de 100% das ações da Sagatiba. •
CORAÇÃO DE MINAS: uma década de tradição e bom gosto
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Entrevista
prodígio da gastronomia revelaçc¸ ão na culinária, o jovem Rodrigo Lisboa fala sobre superaçc¸ ões e delícias vividas na cozinha
texto e fotos por Juliana Portella
A
os 26 anos, Rodrigo Lisboa protagoniza um caso ímpar na culinária nacional. O jovem capixaba começou a carreira meio a contragosto - quando tinha 11 anos - num restaurante onde a mãe adotiva era ajudante de cozinha. Discípulo prematuro de chefs da cozinha contemporânea como Gino Marianelli Margotto, com quem trabalhou na sofisticada cozinha contemporânea do Thereza Antonia, em Linhares/ES, como Gandmarg - uma espécie de braço direito do chef - foi eleito o melhor cozinheiro do Estado do Espírito Santo com apenas 21 anos de idade. O menino que teve seu primeiro trabalho formal lavando pratos em dia de rodízio onde ganhava 30 reais por noite conta que o segredo do sucesso é a dedicação. A Bistrô conversou com o chef e divide um pouco da história de Rodrigo, que se revelou no cenário gastronômico mesmo sem formação acadêmica.
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Entrevista
Revista Bistrô: Como você começou a se interessar por gastronomia e de que forma a família teve influência nessa escolha profissional? Rodrigo: Tudo começou quando minha mãe adotiva conseguiu um trabalho em um restaurante. Morava em uma casa com quase 20 pessoas, eram tempos difíceis, tinha apenas 11 anos. Saia da escola e ia ajudá-la. Não era bem o que eu queria, mas precisava ajudar em casa. Revista Bistrô: Muitos dos Chefs Brasil a fora tem graduação em gastronomia, o que você acha dessa formação. Já recebeu alguma critica por não ter diploma? Você não acha que o conhecimento acadêmico te faz falta? Rodrigo: Não nego a importância do conhecimento acadêmico. Acho muito importante a gastronomia ser reconhecida como uma área de conhecimento. E é uma arte e deve ser valorizada. Entretanto, não me fez falta, pois sempre fui muito dedicado a aprender e tive a sorte de conhecer bons profissionais. Eu também estudei, só que de uma maneira diferente, autodidática e prática. Já ensinei alguns profissionais que tem conhecimento acadêmico, a cozinhar. Mas não vamos falar disso (risos).
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Revista Bistrô: Vamos falar sim! Então você quer dizer que o conhecimento acadêmico dele estar ligado à prática? Rodrigo: Exato. Nessa área o conhecimento deve ter suporte prático. Universidades devem ter bons laboratórios e planos de inserção no mercado. Revista Bistrô: Como você se sente em receber um prêmio tão importante com tão pouca idade? Rodrigo: Fico enormemente gratificado pelo reconhecimento do meu trabalho. Esse prêmio de melhor Chef, além do reconhecimento, é a confirmação de uma escolha certa, de que faço o que gosto com amor e paixão. Revista Bistrô: Qual ponto positivo e negativo de trabalhar na cozinha? Rodrigo Lisboa: Cozinhar é uma paixão, é a minha arte. É gratificante demais você fazer um prato sabendo que vai agradar um cliente, fidelizá-lo. Eu amo cozinhar, pra mim é trabalho e obre. Como tudo na vida tem seu lado negativo sim, e o único problema é a falta de tempo. A cozinha consome muito seus profissionais. •
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Meu
Minuto
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Palmirinha para os íntimos Entenda como funciona o mundo de sensacç¸ ões para a estudante que, desde cedo, demonstra aptidão no cenário gourmet texto por Heloisa Facin | foto por Tom Reis
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mundo da gastronomia comporta inúmeros segmentos e níveis de qualificação, e em algumas pessoas esse interesse e dom se revela na infância, quando demonstra vontade de participar da elaboração das refeições cotidianas em família. É bastante curioso conhecer como se desenvolve esse perfil. A estudante de Tecnologia em Gastronomia, da Universidade São Francisco (USF), Naysa Moraes, de 20 anos, exemplifica essa teoria: – Cozinhar nunca foi só o preparo de algum alimento, mas também proporcionar sensações, brincar com aromas, sabores e esperar, ansiosamente, o veredito do meu público, que muitas vezes, eram meus familiares que gostavam de minhas aventuras na cozinha. Já no ensino médio, em 2009, Naysa sentiu que ‘brincar de criar’ já não era o suficiente, e deveria entender um pouco mais, tecnicamente, aquele que, até então, era um dos grandes prazeres de sua vida: cozinhar! Cursou durante dois anos, no Centro Paula Souza, o Técnico em Nutrição e Dietética, para se sentir mais íntima desse universo que tanto a encantava. No entanto, no ano de 2011, a recémformada, resolveu que deveria também se aventurar por um de seus outros dons, e então, ingressou no curso de Comunicação,
Bistrô
Jornalismo, na UFRRJ. – Aos 17 anos, sai de casa no interior de SP e fui rumo à Seropédica, no Rio de Janeiro, cursar uma Universidade pública, que me encheu de realização. Durante o tempo que fiquei na Rural, fui acolhida e recebida por muita gente que estava na mesma situação que eu, longe de casa e em busca de um sonho – conta. Mesmo após ingressar no mundo dinâmico de comunicação, sentir-se atraída também por essa nova perspectiva profissional, a estudante não deixou de praticar o seu hobby favorito. Cozinhava com frequência nas reuniões sociais, que promovia em sua república, e o que lhe acarretou o apelido carinhoso de ‘Palmirinha’. Em maio de 2012, durante o seu terceiro período do curso, a greve nas Universidades Federais chegou ao Rio de Janeiro e Naysa, assim como muitos alunos, voltou para sua casa, para esperar como seria o desfecho das reivindicações, voltando para Campinas. – Eu gostaria de ficar, durante o tempo de duração da greve, próxima da minha família. Aproveitei o tempo, pois não queria ficar parada, e fui trabalhar. Comecei em uma empresa no ramo de especiarias, a Bombay Herbs & Spicies – explica. A greve durou mais que o esperado e Naysa criou, novamente, forte elo com o
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Meu minuto
ramo alimentício através de seu novo trabalho. Com isso, surgiu uma nova oportunidade da estudante reencontrar suas origens profissionais, o universo gourmet. Com o incentivo dos familiares e da empresa que trabalha, teve a oportunidade de cursar Gastronomia na USF e voltar, permanentemente, para casa. Hoje, Naysa está cursando seu primeiro período no curso de gastronomia que, dentre as que cursou, até hoje, foi o que mais te proporcionou afinidade e prazer. Finaliza, sem deixar dúvidas, que essa área é a que traz plena satisfação e moti-
vação para o seu futuro. – Tenho certeza que a gastronomia é uma paixão que não pretendo abandonar. Com os grandes eventos que o Brasil receberá nos próximos anos como a Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas no Brasil, em 2016, a área está bastante aquecida e cheia de boas oportunidades. Dentre elas, a que me chama mais atenção, é o segmento vinculado a hotelaria, que desde sempre é a escola de muitos chefs. Mas sou ambiciosa, quero me especializar no exterior, amadurecer, aprender muito para que futuramente possa ministrar aulas e oferecer
consultorias – afirma. Compartilhando com a Bistrô, uma de suas receitas especiais, com rápido preparo e saborosa, Naysa nos envia o passo a passo dos ingredientes e preparo. Confira! •
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Tenho certeza que a gastronomia é uma paixão que não pretendo abandonar.
Receita amiga: Napoleon com massa folhada e morangos Ingredientes:
Modo de preparo:
2 colheres (sopa) de farinha de trigo 2 colheres (sopa) de amido de milho ½ tablete de manteiga light 1 ½ xícara de açúcar 1 litro de leite desnatado 1 colher (sopa) baunilha 200 ml de creme de leite 1 pacote de massa folhada
Para o creme: Misture os ingredientes secos, leve-os a uma panela com o leite e a manteiga. Mexa até ferver e engrossar. Coloque em um refratário e leve à geladeira. Quando gelado, coloque em uma batedeira e acrescente o creme de leite até dar o ponto. Para a massa: molde do tamanho e formato que desejar. Asse a 180 graus até ela dourar e folhar. Montagem: Em camada, distribua, nesta ordem: massa, creme, massa e morangos. Polvilhe com açúcar de confeiteiro e acrescente os morangos. Rendimento: 16 porções
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Dois cafés e um copo d'água...
tinha o gosto do cheiro lembrançcas chacoalhadas num saco de pão texto por Raomi Pani
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enho uma grande amiga que passa meses longe de casa por conta dos compromissos com a universidade. Culinariamente falando, não sei direito como ela consegue. Esmiuçando o pensamento, não sei como aguenta ficar tanto tempo longe da comida da mãe ou daquele frango com quiabo da avó. Na verdade nem sei se a dona Toninha sabe fazer frango com quiabo, mas eu tenho para mim que todas as avós sabem. A minha faz um especial, só dela, com sabor de pôr-do-sol em domingo de praia. Sinestesia é uma figura de linguagem muito bonita. Essa de relacionar planos sensoriais diferentes, trocar o cheiro pelo gosto, o ruído pela paisagem, o perfume pelo toque, me surpreende à sensibilidade. Mas tenho para mim que as sensações não se dão assim, tão determinadamente separadas. Minhas experiências não se fecham em caixinhas distintas de audição, olfato, paladar, visão e tato. A lembrança vem misturada, como se tivessem chacoalhado tudo num saco de pão. Sabor de pôr-do-sol em domingo de praia é dessas relações sensoriais que talvez façam sentido apenas para mim e minhas lembranças chacoalhadas. Eu me recordo da família toda em uma praia de Angra dos Reis num final de semana limpo e quente. Tinha gosto forte de domingo. Da-
Bistrô
queles que acabam e te botam de pé para enfrentar qualquer segunda-feira insossa. In-sos-sa. Sem sabor, sem sal, sem gosto. Sem tempero, sem pimenta. Sem carinho. Porque segundas não chegam com carinho, devagar, com boas notícias. Segundas começam te lembrando dos problemas que você deixou para lá e fingiu que não existiam durante o final de semana. E te fazem repensar se no próximo você não deveria, talvez, se preocupar um pouco mais. Trabalhar, estudar, aproveitar o tempo. Porque como diria Benjamim Franklin, time is money, baby. Que grande bobagem! Eu posso até estar errado, – e sendo sincero, confio mais nas conclusões do grande iluminista do que nas minhas – mas para mim uma coisa não tem nada a ver com a outra. Se como diria Caetano, tempo, é um dos deuses mais lindos, dinheiro deve ser dos mais feios e podres. Money, se tiver gosto de alguma coisa, é de leite vencido e estragado. Fétido na geladeira estragada. Agora tempo... Tempo tem sabor de pôr-do-sol em domingo de praia. Tipo a receita especial da minha vó.
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