BASEADO EM FATOS REAIS: Texto e fotos: Heloiza Vieira
o outro lado da erva maldita
Um tratamento alternativo feito com substâncias encontradas na maconha divide opiniões de pacientes, familiares, médicos e pesquisadores. Demonizada em algumas culturas, sagrada em outras a cannabis se tornou uma esperança, porém seu uso não é totalmente permitido. Conheça a história de pessoas que enfrentaram a justiça, a burocracia e o conservadorismo para ter o direito ao uso aos extratos das substâncias medicinais da planta
Priscila, César, Miguel e a filhote de golden Jane: uma nova vida graças ao canabidiol, substância extraída da cannabis
D
roga ou remédio? Quando o assunto é maconha, ainda não há um consenso. Mas e quando uma substância demonizada durante décadas é a única saída para quem sofre de doenças antes consideradas sem tratamento? Neste caso, a ciência e a mudança na vida de milhares de pessoas estão jogando luz sobre velhos mitos. O estigma da erva do diabo está dando lugar a uma constatação científica: maconha pode ser remédio. O primeiro contato com maconha da curitibana Priscila Inocente foi na universidade vendo a turma fumar. — Nunca tive preconceito com a planta, mas sobre maconha medicinal eu sabia muito pouco. O encontro de Priscila e do marido César Inocente com a maconha aconteceu por conta do diagnóstico do filho Miguel de oito anos que com apenas um ano começou a ter crises convulsivas. Chegar a um diagnóstico não foi tarefa fácil. A família passou por vários especialistas até receber a notícia de que por um fator genético o filho tinha epilepsia. 2 . Baseado em fatos reais
Oito meses depois Miguel foi diagnosticado dentro da Síndrome do Espectro Autista. A epilepsia de Miguel é o que os médicos chamam de refratária: apesar de medicado ele sofria até 40 crises acordado e dormindo a cada dez minutos. As convulsões prejudicaram o desenvolvimento de Miguel que deixou de falar e, por conta dos medicamentos fortíssimos, passava a maior parte do dia dormindo. A insatisfação com o tratamento convencional levou a família a buscar uma alternativa: — A gente descobriu que um dos componentes da maconha servia para tratar várias doenças, entre elas a epilepsia. A substância descoberta pelo casal é o canabidiol ou CBD um dos 400 componentes extraídos da maconha. Considerado sem efeito psicoativo, o CBD tem indicação terapêutica para várias doenças. O extrato é considerado um ótimo anticonvulsivante: atua ordenando a excitação excessiva dos neurônios que, durante uma crise, sofrem uma espécie de curto-circuito.
Conseguir o óleo se tornou um desafio: em 2013, o canabidiol estava na lista de substâncias ilegais no Brasil, tão perigosas quanto a heroína. Importá-lo era crime passível de prisão por tráfico internacional de drogas. — A gente sabia que era ilegal. Daí, eu decidi eu mesma fazer. Eu li um artigo de um professor americano ensinando a extrair o óleo, mas antes de usar testei no meu marido. Eu pensei: vai fazer mal? Pior do que 30, 40 crises não vai ser. O tratamento começou a funcionar e a diminuição das crises motivou a família a se arriscar e trazer ilegalmente o CBD comercializado nos EUA como um suplemento alimentar. No Brasil, chegou em forma de uma pasta verde-escura que devia ser diluída em óleo. Mesmo com os bons resultados de Miguel e outras pessoas que testavam o CBD no Brasil, poucos médicos estavam convencidos a prescreverem a substância a seus pacientes. O êxito no tratamento de crianças como Miguel levou muitos especialistas a
olharem com mais atenção para a substância. — Foi uma briga nossa — pais e mães, de chegar mostrando que estava dando certo. Isso levou muitos médicos a começarem a estudar sobre o assunto e a prescrever. Sem as crises convulsivas, Priscila e César viram o filho se desenvolver em todos os sentidos. — Tudo mudou na vida do Miguel depois do canabidiol. Ele dorme melhor, presta mais atenção, tem mais apetite. Acorda cedo, vai pra terapia, vai pra escola, continua brincando, correndo pulando até a hora de dormir. Eu sei que não é a cura, mas é a melhora na qualidade de vida dele e também na nossa. De mudança para uma casa maior, a família agora precisa de mais espaço para a nova
rotina de Miguel. Livre de grande parte dos efeitos colaterais dos medicamentos, o filho espalha brinquedos pela sala, assiste Galinha Pintadinha e brinca com Jane — a filhote de Golden que acabou de ganhar. Parece uma rotina comum como a de qualquer criança. Mas para a família Inocente é uma conquista sem preço. — O Miguel pra mim é um professor. Ele não precisa de muito pra ser feliz, por que ele é naturalmente feliz. Ele não precisa de brinquedo caro, viagem, nada disso. Ele é humilde e ensina a gente todo dia as coisas simples da vida. É por ele que eu tenho força a levantar todos os dias da cama e batalhar pra ele ter o melhor. Não tem estado, não tem justiça que vai me proibir isso. É um direito dele a vida, a saúde. É constitucional!
Eu li um artigo de um professor americano ensinando a extrair o óleo. Eu pensei: vai fazer mal? Pior do que 30, 40 crises não vai ser. Priscila, mãe do Miguel Arquivo pessoal
Veneno ou remédio? O canabidiol é apenas uma das 60 substâncias identificadas na cannabis que receberam o nome de canabinóides. O mais famoso é o delta-9-tetrahidrocanabinol, o THC que foi descoberto em 1964 pelo cientista Raphael Mechoulam, da Universidade Hebraica de Jerusalém. O composto é o que chamam de princípio ativo da planta, capaz de reproduzir a maioria de seus efeitos. O THC também é o responsável pelos efeitos psicoativos ou que chamam de barato da maconha. A descoberta do THC abriu um campo novo na área da pesquisa científica com cannabis. A grande revolução aconteceu com a descoberta da anandamida uma substância produzida pelo corpo humano parecida com os canabinóides da planta. “É como se no corpo humano houvesse uma maconha interna, endógena produzida no sistema endocanabinóide que se atribui uma importância cada vez maior em funções muito importantes”, explica o psicofarmacologista brasileiro Elisaldo Carlini, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Por esse motivo o tratamento com maconha é tão eficiente regulando desordens do organismo: o canabinóide da planta se liga por meio de um receptor ao sistema endocanabinóide. “E é o estímulo destes receptores o responsável por suas diversas ações no corpo humano. Como qualquer substância é a dose da mesma que irá nos dizer se irá funcionar como remédio ou veneno,” explica o neurologista Paulo Bittencourt, do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A outra face da erva maldita . 3
Arquivo pessoal
Margarete e Marcos Lins: primeiros brasileiros autorizados a cultivar cannabis em para o tratamento da filha S ofia .
Outros casos de pais e pacientes com doenças graves esbarraram na ilegalidade do canabidiol. Este foi o caso da advogada carioca Margarete Brito e o marido Marcos Lins, pais de Sofia hoje com sete anos e a irmã mais nova, Bia. Primeira filha do casal, Sofia tinha 45 dias quando começou a ter convulsões. — No início nem sabia direito o que era, eu nunca tinha visto uma crise convulsiva antes. Olhei aquele bebezinho tão lindo, gorducha que tinha dobra dando aquele tremeliquezinho. Ai começaram os remédios. Ela tomou todas as drogas, em todas as combinações possíveis e nada controlava, lembra Margarete. Por seis meses a família recorreu a uma série de especialistas para fechar o diagnóstico de Sofia: síndrome CDKL5. A doença de nome complicado e pouco conhecida afeta uma a cada 15 mil crianças, principalmente meninas. — Tinha pouca informação sobre o que era isso. Eles só falavam que era uma síndrome rara que provocava entre outras coisas convulsões. Teve época que a Sofia 4 . Baseado em fatos reais
tomava cinco anticonvulsivantes com efeitos irreversíveis como a perda de campo visual, por exemplo. Eu sofria muito em dar esses remédios pra ela, dava chorando! Margarete guarda um
Eu me recordo que ia passear com ela na pracinha e via as outras mães trocando as alegrias, contando que os filhos sentaram, sorriram e eu não tinha nada pra contar. E me toquei, caramba! Eu tenho uma filha especial. Eu tenho uma missão Margarete, mãe da Sofia, portadora da síndrome CDKL5
verdadeiro arsenal com informações do histórico médico de Sofia, os primeiros exames, receitas médicas e uma tabela
feita em Excel desde que a filha começou a ter convulsões. Cada quadradinho preenchido em vermelho guarda uma história: uma crise, com uma intensidade, sob o efeito de um medicamento diferente. Quando alguém pergunta ou critica o uso do canabidiol, Margarete tem mais do que argumentos para comprovar que a substância pode ajudar. Após o uso do óleo, as crises de Sofia caíram e as anotações na tabela também. O canabidiol entrou na vida do casal após uma pesquisa nas redes sociais. — Eu acho que nenhum pai, nenhuma mãe desiste de encontrar alguma coisa para o filho que tem convulsão e nós nunca ficamos na zona de conforto Foi o marido quem descobriu em fóruns na internet um grupo de pais de crianças que tinham a mesma doença de Sofia. — Tinha um relato de um pai super animado que estava dando óleo rico em canabidiol para a filha e ela não tinha crises há 15 dias”. Foi à ilegalidade que a família recorreu para testar o CBD pela
primeira vez. Importaram o composto de uma empresa nos Estados Unidos. — Pedi primeiro, pensei depois. Não sabia o que fazer quanto a dosagem, nem pra quem perguntar. Quando as seringas chegaram com o extrato de CBD, Margarete mobilizou uma verdadeira rede de contatos para saber o que fazer com elas para medicar Sofia. — Mandei email para todo mundo, médicos que conhecia, alguns pesquisadores e ativistas da causa e muito pouca gente sabia o que fazer. Até que cheguei a um médico que pesquisava o uso de cannabis medicinal e ele me orientou. Os primeiros resultados do uso do óleo foram satisfatórios: as crises caíram de 12 para seis por semana. — Quando eu dei aquilo pra Sofia e vi que funcionava eu saí avisando todas as mães que eu conhecia de crianças com o mesmo problema. No início, me acharam meio maluca. Algumas resolveram tentar. Os resultados de Sofia com o canabidiol inspiraram Katiele Fisher, mãe de Anny, hoje com oito anos, portadora da mesma doença de Sofia, que chegava a ter 80 crises por semana. Com o uso do CBD, as convulsões caíram para apenas três. A história surpreendente de Katiele, Margarete e outras mães de crianças com casos graves de epilepsia foi contada no documentário Ilegal – a vida não pode esperar produzido pelo jornalista Tarso Araújo em parceria com a Revista Superinteressante. O sucesso no tratamento dos pacientes e a luta incansável dos pais virou movimento pela causa da maconha medicinal. A mudança no cenário veio de baixo para cima: pais, pacientes e ativistas bateram à porta da ciência, da medicina, da justiça e da burocracia brasileira pelo direito de importar o extrato. As conquistas vieram em progressivos passos. Em outubro de 2014, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) autorizou médicos paulistas a prescreverem canabidiol, mas advertiu a classe: apenas para
crianças com epilepsia que tivessem utilizado todos os medicamentos disponíveis pela indústria farmacêutica sem sucesso no tratamento. No mesmo mês, foi a vez do Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizar. Em janeiro de 2015, numa audiência tensa, acompanhada de perto por pais, mães e pacientes a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) retirou o CBD da lista de substâncias proibidas e o reclassificou como de uso controlado. A flexibilização provocou uma corrida pela importação. Em 2015, 1158 pessoas entraram com pedido para importar o óleo comercializado nos Estados Unidos como suplemento alimentar. De acordo com o Departamento de Medicamentos Controldos da Anvisa, em 2016 foram 918 solicitações. Destas, 865 foram autorizadas. As mudanças nas regras ainda não foram suficientes para tornar esse tipo de tratamento acessível a todos os pacientes. Muitas famílias esbarram nos elevados custos: uma seringa com oito miligramas de óleo não chega ao Brasil por menos de 400 dólares. O custo total do tratamento pode chegar a R$ 15 mil por mês de acordo com a dosagem recomendada pelo médico, a variação do dólar e os custos de envio. O neurologista Paulo Cesar Bittencourt critica a indústria da importação dos medicamentos à base de cannabis. “A gastança estapafúrdia com a importação de produtos medicinais derivados desta planta é uma aberração em todos os sentidos, mais ainda se levarmos em consideração a crise financeira atual”. O médico identifica a influência da indústria farmacêutica no uso de maconha medicinal no Brasil e defende a pesquisa, cultivo e fabricação de medicamentos à base de cannabis dentro do país. “Ela [a indústria farmacêutica] sabe o quanto irá perder em termos econômicos com a liberação para fins medicinais das substâncias derivadas da planta cannabis. Mas a verdade sempre haverá de triunfar sobre a mentira”. O custo e a burocracia no processo de importação estão
57%
34%
SIM
NÃO
57% dos brasileiros aprovam a liberação do uso medicinal da cannabis Fonte: Pesquisa realizada em jan/2014 com 1259 entrevistados em todos os estados pela Agência Expertise.
56% dos senadores 46% dos deputados aprovam a liberação da cannabis para fins medicinais Fonte: Relatório executivo da pesquisa sobre percepção dos parlamentares brasileiros sobre política de drogas - Plataforma Brasileira de Política de Drogas (março de 2016)
Em 2016, foram feitas 918 pedidos de importação do CBD 865 foram autorizados 53 foram arquivados ou aguaram cumprimento Fonte: Departamento de Medicamentos Controlados Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
aproximando pacientes dos extratos de cannabis fabricados de forma artesanal no Brasil. No intervalo do uso dos importados, Margarete resolveu experimentar o canabidiol medicinal fabricado por um grupo de cultivadores do Rio de Janeiro que extrai o óleo das flores da planta e o oferece a pacientes de forma gratuita. Os benefícios na redução das crises se mantiveram. “Eu perdia o sono pensando que eles estavam se arriscando pela gente”, diz Margarete sobre o grupo. Neste ano, a família decidiu dar um passo adiante: fabricar o remédio da filha. Na varanda do apartamento, o casal passou a A outra face da erva maldita . 5
cultivar uma espécie de cannabis rica em canabidiol. Em contato com os cultivadores também aprendeu a extrair o óleo que controla em 70% as crises convulsivas de Sofia. Em novembro de 2016, a família foi a primeira a receber da justiça proteção para plantar cannabis em casa. Um habeas corpus preventivo concedido pelo 1º Juizado Especial Criminal do Rio de Janeiro proíbe as policias Militar e Civil do estado de entrarem no apartamento e apreenderem ou destruírem as plantas. “É o remédio da minha filha”, resume Margarete. A medida vale até que seja julgado outro processo movido pela família na 14ª Vara Federal do Rio de Janeiro que solicita em caráter definitivo o direito de cultivar a planta para fins medicinais. A luta pelo tratamento da filha Sofia uniu Margarete e o marido, Marcos a outras famílias pelo acesso ao tratamento com cannabis medicinal. Presidente da Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (APEPI), Margarete reivindica o direito ao cultivo e produção do óleo rico em CBD para todos. “Me parte o coração ver mães vendendo o carro para pagar a importação. É um remédio que podemos fazer em casa ou então em associações”, sugere. A luta do grupo vai muito além da produção do óleo para aliviar o sofrimento de crianças com síndromes raras. Pais, mães e pacientes defendem que a burocracia e preconceito com a planta deem lugar para o avanço nas pesquisas em território nacional. O sonho não tão distante é que futuramente o país possa produzir seu próprio fitoterápico com compostos de maconha. “O uso de importados não é o caminho que a gente tem que seguir. Nossa luta é para ter uma produção nacional, é correr atrás de pesquisa pra que a gente possa testar isso legalmente aqui no Brasil. Nós temos muitas perguntas sem respostas, mas para que possam ser respondidas, a ciência precisa avançar”, aponta Margarete. No Paraná a neurofisiologista do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná 6 . Baseado em fatos reais
Arquivo pessoal
Medida judicial impred e polícia d e apreend er plantas cultivadas para o tratamento d e S ofia
(HC-UFPR), Ana Chrystina Crippa é uma defensora do uso do canabidiol como uma alternativa a crianças que possuam casos graves de epilepsia. “Pra epilepsia é mais uma droga que a gente tem. Tem estudos há mais de 20 anos do uso desse medicamento. Então vêm pra mim crianças que já usaram todos os tipos de medicamento e não controlaram. Eu tenho 30% de chance de controle com o canabidiol e eu não vejo efeito colateral a curto prazo”. Ana Crippa, no entanto, reprova o cultivo e extração da maconha feita de forma artesanal por pais ou por cultivadores e defende o uso de CBD feito em
laboratórios. “Existem algumas pessoas que estão vendendo ou trituram maconha em óleo e estão vendendo como canabidiol. Isso não é canabidiol, isso é maconha. Ai vão todos aqueles 400 componentes. No mundo todo existem apenas três laboratórios que dominam a técnica de extrair o canabidiol da maconha. Então eu acho muito difícil que alguém plante maconha e consiga tirar. Eu não faria pra um filho, muito menos pra um paciente meu, maconha”, pontua. Enquanto justiça, ciência e autoridades não se acertam sobre o assunto, Margarete é taxativa: a liberação do cultivo, pesquisa e uso
da substância são urgentes para garantir a saúde e qualidade de vida a pacientes como Sofia. — Enquanto a maioria está preocupada em qual universidade seus filhos irão estudar, nós só queremos que nossos filhos não tenham convulsões, que estejam mais presentes, possam sorrir mais, olhar, comer melhor. E isso está acima de tudo”.
Pesquisas começam a avançar Professora de toxicologia da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, Virgínia Carvalho destaca o crescente reconhecimento entre a comunidade médica e científica do potencial terapêutico da cannabis medicinal. No entanto, lembra que apesar do óleo importado ter tido o uso aprovado no Brasil
pela Anvisa, ainda carece de padronização farmacêutica. “Esses óleos são registrados nos EUA como suplementos alimentares. Embora o médico possa prescrever e acompanhar o tratamento, ele não tem nenhuma ideia da composição e dos teores”. O projeto de pesquisa e extensão coordenado por Virgínia pretende reverter a falta de informações sobre os extratos que estão sendo usados pelos pacientes. Chamado de “Farmacanabis” a pesquisa quer analisar óleos artesanais e importados e mapear os componentes da planta. “A maconha tem cerca de 70 canabinóides. Precisamos saber como eles atuam entre si, suas proporções. Só com este monitoramento e os relatos clínicos poderemos conhecer melhor esta associação e desvendar como atuam, em quais doses e esquemas terapêuticos”.
A investigação do grupo de Virgínia é inédita e vem de encontro a uma deficiência no tratamento com maconha medicinal. Como no exterior o óleo de cannabis ainda não é um medicamento, nem sempre o que o rótulo indica é realmente oferecido. Uma pesquisa realizada neste ano pela FDA, órgão que corresponde a Anvisa nos EUA apontou que os extratos vendidos entre 2015 e 2016 continham teores de CBD e THC diferentes dos indicados nos rótulos. “Os resultados serão informados aos médicos e pacientes e a terapia poderá ser estudada e melhorada através da comparação da resposta clínica com os teores de canabinóides. Além disso, haverá um acompanhamento farmacêutico no qual serão registradas as principais dúvidas de médicos e pacientes quanto ao tratamento com extratos de cannabis”, explica. Arquivo APEPI
Projeto Farma canabis da UFRJ quer pesquisar a quantidad e d e canabinóid es dos extratos utilizados no país
A outra face da erva maldita . 7
CBD ou
THC?
S
e o canabidiol está conseguindo conquistar a simpatia de pesquisadores e parte da classe médica, por outro lado, o THC é considerado o vilão da história. Apesar de também ter efeitos positivos no tratamento de doenças, a substância é considerada a responsável por causar dependência, danos ao cérebro e efeitos psicóticos. “THC é um dos componentes psicoativos da maconha. É ele que faz dilatação da pupila, é ele que provoca alucinações, é ele que faz sudorese [transpiração excessiva], é ele que danifica algumas células neuronais. Ninguém sabe o que vai acontecer com um cérebro em desenvolvendo usando um produto que todos nós sabemos que é deletério [causa danos à saúde]”, opina a neurofisiologista do HC-UFPR, Ana Crippa. De acordo com o psicofarmacologista Elisaldo Carlini, o THC tem efeitos positivos para tratar dores neuropáticas, sintomas de mal estar causados pela quimioterapia, a perda excessiva de peso de pessoas com HIV/AIDS e retardar os avanços da esclerose múltipla. O pesquisador lembra que há mais de 30 anos a substância é utilizada no tratamento de doenças em forma de medicamentos. “Há três formas de utilizar o THC atualmente: o seu princípio ativo extraído da planta, como faz o governo Holandês que cultiva, extrai as inflorescências da erva, coloca em frascos e comercializa nas farmácias. A outra é o canabinóide sintetizado pela indústria. Um exemplo é o Marinol, comercializado pelos Estados Unidos para o tratamento de náusea e enjôo causado pelo tratamento de câncer. A terceira forma é o extrato dos ativos da planta. Uma firma inglesa fez isso e lançou no mercado o Sativex, que contém quantidades de THC e CBD liberados numa bombinha tipo spray para tratar principalmente dor”. Há mais de 20 anos, os paulistas Maria Antônia Goulart e Gilberto de Carvalho testemunham os benefícios do THC. Os paulistas 8 . Baseado em fatos reais
Por tador d e esclerose múltipla há 20 anos, Gilber to car valho faz uso d e cannabis para controlar a doença
foram os primeiros ativistas pela causa da maconha medicinal no Brasil, nos anos 90. Ao descobrir um câncer, Antônia iniciou tratamento com quimioterapia. Os efeitos colaterais eram terríveis: enjoos, dores e falta de apetite. — Eu já havia usado a maconha de forma recreativa, esporadicamente, mas sempre acompanhava publicações a respeito da erva. Fiz uma pesquisa e descobri que ela poderia me ajudar reduzindo os efeitos colaterais do tratamento convencional, os enjoos, dores, aumentando o apetite e melhorando o sono. Conversei com os médicos e todos apoiaram o tratamento alternativo. Mas o tratamento convencional jamais foi
abandonado. Portador de esclerose múltipla, Gilberto contraria o difícil diagnóstico que recebeu em 1999. — O médico me disse que dentro dez anos no máximo ia perder os movimentos até travar. E sempre ficava me olhando com aquela cara de que não podia fazer nada”. Quase vinte anos depois, o designer gosta de dizer que está fazendo hora extra. — Já era pra eu estar na cama há uns seis anos. Os primeiros sintomas da doença apareceram quando Gilberto tinha 25 anos. Na época, havia pouca informação e o tratamento disponível não passava de remédios para dor.
— No próprio hospital fiquei sabendo que o uso de maconha poderia amenizar os sintomas. Então comecei a pesquisar e usar. Ficou muito mais fácil aguentar os efeitos, como a dormência completa no corpo, movimentos estranhos e dessincronizados”. Hoje em dia, Gilberto vive sozinho em um sobrado no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Quando chego para a entrevista, ele anda com alguma dificuldade e garante que só é possível levar uma vida independente, andar e falar por conta do remédio que encontrou na maconha. Antes da conversa ele pede licença para se medicar. Alguns equipamentos aquecem o óleo da planta e liberam um vapor que permite extrair as substâncias da maconha com mais pureza. — Eu sinto a melhora na hora. Parece que relaxa. A esclerose vai deteriorando todo o sistema nervoso, então todo o sistema interno fica diferente. Tudo isso melhora com a maconha. Todas as vezes que os sintomas da esclerose avançaram eu tinha parado de usar. Para conseguir a planta in natura Gilberto recorre às famosas biqueiras. Pela limitação física, conta com a ajuda de amigos. “Não posso sair de casa, então eles compram pra mim. Queria apenas poder plantar um alívio que apenas a maconha pode me dar”. Para o caso de Gilberto, se recomenda o uso do Sativex
fitoterápico produzido pelo laboratório britânico GW Pharmaceuticals. O designer conseguiu na justiça a autorização para importá-lo em 2015. Passar para o lado da legalidade, no entanto é inviável. Cada frasco do produto chega ao país por 800 dólares. — Eu precisaria de três frascos desse por semana. Não poderia de jeito nenhum custear esse tratamento. Como sequela do câncer, Antônia acabou desenvolvendo fibromialgia – uma doença de causa desconhecida que causa dores fortes e constantes em todo corpo. — O mais difícil é ter que sempre procurar a cura em biqueiras e bocas de fumo nem sempre encontrando uma erva de boa qualidade. Medo eu sinto sim, de ficar sem o meu remédio”. Apesar das divergências entre os pesquisadores, médicos e os usuários do THC, o acesso ao medicamento foi facilitado neste ano. Uma liminar expedida pelo juiz Marcelo Rebello, da 16.ª Vara do Distrito Federal determinou a retirada do composto da lista de substâncias proibidas da Anvisa. A exemplo do que ocorreu com o CBD, em março o tetracanabidiol se tornou um medicamento de uso controlado. Entre a classe médica, no entanto permanece o impasse: o CFM ainda desaprova a prescrição do composto. Pediatra do Hospital Pequeno
6 cada dez brasileiros aprovam o uso medicinal do THC Fonte: Pesquisa realizada em out/2006 com 1200 entrevistados em 70 cidades nas 5 regiões brasileiras pela Consultoria Hello Research
Em 2016, foram realizadas 14 solicitações de importação de medicamento contendo THC (SATIVEX®) Fonte: Departamento de Medicamentos Controlados Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Príncipe de Curitiba e conselheiro do CFM, o pediatra Donizetti Dimer Giamberardino Filho explica que a mudança altera a legislação sanitária do país e não a postura adotada pelos conselhos regionais e federais de medicina. “A legalidade não é sinônimo de postura ética na profissão. O médico tem amparo técnico para a prescrição do CBD em crianças e adolescente portadores de epilepsia refratária ao tratamento usual. As demais prescrições, de outras drogas (THC) e indicações para outras patologias, podem ser realizadas pelos médicos, com a correspondente responsabilidade sobre eventuais consequências, no âmbito da ética profissional”, alerta.
A outra face da erva maldita . 9
Faz bem?
P
aracelso, um médico e físico do Século 15 imortalizou uma frase popular na medicina: “a diferença entre um remédio e um veneno está na dosagem”. Quando o tema é o uso de cannabis medicinal o que faz bem o que faz mal depende do uso, dosagem ou como gostam de chamar os médicos: o abuso. O potencial terapêutico da cannabis é tão amplo que os cientistas acreditam que o que sabem até agora é apenas a ponta de um iceberg. Conheça alguns sintomas e doenças que podem ser tratados com os extratos de cannabis:
HIV/AIDS
Quem nunca ouviu falar na famosa larica? A fome após fumar um baseado é um dos efeitos mais característicos do uso recreativo da maconha. Esse sintoma ligado ao THC beneficia pacientes em tratamento com AIDS. Um dos principais problemas da doença é a perda excessiva de peso, chamada pelos médicos de caquexia. A maconha entra justamente aí: ao ser consumida faz o paciente recobrar o apetite. A substância também atua na melhora do sono e redução das dores causadas pela medicação. Em países como Israel, esse tipo de tratamento é oferecido aos pacientes nos hospitais na forma fumada. Já há no mercado medicamentos fitoterápicos como o Sativex, o Marinol e Cesamet, cápsulas sintéticas de THC.
CÂNCER
O combate aos efeitos causados pela quimioterapia e radioterapia são um dos benefícios da cannabis medicinal mais conhecidos. O THC atua no controle da náusea e enjoo que muitas vezes tornam insuportável esse tipo de tratamento. Outros sintomas como dores, ansiedade e depressão são controlados com o uso da substância. Estudos em animais indicam que alguns extratos de maconha podem parar o avanço de células cancerosas, mas ainda estão em andamento. O Sativex, 12 . Baseado em fatos reais
Marinol e Cesamet também são indicados para esse tipo de tratamento assim como a maconha inalada e até fumada.
DOR CRÔNICA
Esse tipo de tratamento também já era conhecido pela medicinal milenar chinesa e ayuvetica uma prática medicinal indiana que recebeu influência da medicina chinesa.. A medicina ocidental redescobriu a eficiência da cannabis para o tratamento da dor. “Ela entra como uma alternativa no tratamento da dor e isso é muito importante, pois os tratamentos hoje são muito dependentes da morfina que causa uma dependência fortíssima e nem sempre é eficiente”, explica o farmacologista Elisaldo Carlini.
GLAUCOMA
A doença provocada pelo aumento da pressão intraocular é a segunda causa de cegueira de adultos. Os efeitos do THC podem ajudar a controlar a diminuir a pressão e retardar os sintomas.
ESCLEROSE MÚLTIPLA
A doença degenerativa faz o próprio corpo atacar as células do sistema nervoso. Os portadores sofrem espasmos musculares, oscilação da temperatura do corpo, dores constantes e gradativamente perdem os movimentos. Os benefícios da cannabis são otimistas: podem controlar os espasmos, as dores e retardar a perda dos movimentos.
EPILEPSIA
A indicação de cannabis para doenças neurológicas como a epilepsia é conhecido pela medicina indiana antiga. Uma pesquisa do israelense Raphael Mechoulan e do brasileiro Elisaldo Carlini em 1971 comprovou que o efeito neuroprotetor do canabidiol (CBD) tinha a capacidade de controlar tratar casos de epilepsia refratária – quando a doença não responde a nenhum tipo de tratamento. No Brasil o uso do CBD está autorizado para importação desde 2014 para menores de 18 anos que tenham casos de epilepsia de difícil controle.
Faz mal?
V
ocê deve se lembrar daquela palestra que ouviu na escola de que maconha fazia mal e ia destruir seu futuro. Mas, depois de tantas histórias: maconha faz mal ou faz bem? Bem, esta é uma pergunta muito subjetiva. Quando o assunto é maconha sobram mitos e falta ciência. Os males causados pela planta sofreram com a campanha proibicionista da Guerra às Drogas. Seus benefícios também estão sendo excessivamente exagerados por quem enxerga na planta a luz no fim do túnel. Mas o que é mito e o que é verdade?
MACONHA MATA
Essa sentença remonta a campanha feita por Harry Anslinger e a demonização da maconha promovida pelos Estados Unidos. Deu certo, mas a ciência comprova que não é bem assim. Uma overdose de maconha é muito difícil: é necessário consumir 40 mil vezes mais cannabis do que o conteúdo de um baseado. Numa conta simples: são quase 680 quilos de maconha em cerca de 15 minutos.
MACONHA CAUSA ESQUIZOFRENIA
O primeiro estudo da relação entre o uso de maconha e esquizofrenia foi realizado em 1962. Desde então a ciência procura provar se a ela causa ou não a doença ou surtos psicóticos. Por enquanto o que se sabe a doença é causada por uma série de fatores. O uso de cannabis, por pessoas predispostas a terem a doença pode ser mais um deles. .
MACONHA NÃO VICIA
Cerca de 9% das pessoas que usam maconha acabam se tornando dependentes. O número é menor que o risco de depência em nicotina (32%), heroína (23%), cocaína (17%), álcool (13%) e anfetaminas (11%).
MACONHA MATA NEURÔNIOS
Uma pesquisa com métodos questionáveis foi publicada em 1974. Macacos Rhesuss receberam 63 baseados de maconha durante cinco minutos. As cobaias morreram e os órgãos de pesquisa e repressão e uso de drogas americanos divulgaram que sim, maconha mata neurônios! A metodologia duvidosa foi questionada em pesquisas posteriores que constataram que as cobaias morreram asfixiadas por gás carbônico.
MACONHA DEIXA O USUÁRIO DESMOTIVADO
Este também é um mito da Guerra as Drogas e sua campanha midiática que tentava culpar a cannabis pela falta de ânimo dos jovens americanos que consumiam a erva nos anos 60. O efeito nunca ficou comprovado.
MACONHA É PORTA DE ENTRADA PARA DROGAS MAIS PESADAS A cannabis geralmente foi a
primeira droga por usuários de crack, cocaína, heroína. Alguns médicos que tratam dependência chamam esse efeito de gatilho e a culpam por abrir porta para drogas mais pesadas. No entanto, ela é a primeira por estar mais disponível..
Um fitoterápico brasileiro Um estudo pioneiro realizado nos anos 70 por Carlini demonstrou pela primeira vez em animais os efeitos anticonvulsivantes do CBD. Desde então, o pesquisador se tornou uma referência mundial no assunto e suas descobertas facilitaram o desenvolvimento da pesquisa na área. A proibição da cannabis no Brasil e o conservadorismo entre as autoridades e a própria classe médica impediram que a pesquisa avançasse em território nacional. “Nunca conseguimos tirar nada de positivo desses trabalhos no Brasil. Serviu ao exterior. Ciência no Brasill é um assunto não prioritário”. O médico tem esperança de ver o uso de cannabis medicinal avançar no Brasil. Para Carlini, a saída é que o Brasil invista num fitoterápico com extratos de cannabis, a exemplo do que fizeram os britânicos com o Sativex. “Infelizmente ainda somos muito presos aos componentes isolados em laboratório. É preciso muita tecnologia para produzir um medicamento assim. Nós não temos esse know how. Mas podemos fazer um fitoterápico. A Inglaterra fez”. O neurocientista João Menezes defende a eficiência do uso de óleos da planta ou a cannabis inalada ou fumada. “Como uso fitoterápico, não preciso ser cientista para saber que ela tem um efeito impressionante, isso está muito bem documentado. Mas [o tratamento fitoterápico com cannabis] pode ser melhorado, pesquisado, precisa de um médico para acompanhar o paciente, de uma agência para fiscalizar a produção, o controle de qualidade e a regulamentação medicinal”. Para a neurofisiologista Ana Crippa, CBD e THC possuem seu lugar dentro da ciência e medicina. “O canabidiol é visto com muito respeito entre as pessoas que estudam e a classe médica. Mas é preciso diferenciar: CBD, THC e maconha. [O THC] Tem um limite máximo aceitável para o cérebro que é de 0,6 a 0,8mg. Não vou dar uma quantidade exacerbada de THC, principalmente para uma criança, pois vou causar um dano muito grande num cérebro em desenvolvimento”. A outra face da erva maldita . 13
A erva do diabo
U
ma coisa é certa: não é fácil aceitar que a droga por tanto tempo reprimida é capaz de controlar com eficácia doenças como epilepsia, glaucoma, depressão, asma, parkinson, esclerose e sintomas como falta de apetite, náusea , dor e espasmos. Mas as propriedades da planta já eram dominadas por antigas civilizações que habitaram regiões da Mesopotâmia, Pérsia, Índia e China. Aliás, vêm da China os registros mais antigos do uso medicinal da cannabis. A farmacopeia Pen-Ts’aoChing – uma espécie de enciclopédia de medicina – atribuída ao imperador Shen Nung (2700 a.C), recomendava o uso de cannabis para tratar reumatismo, cólicas, gota, malária e falta de concentração. Do oriente, a cannabis se espalhou por todo canto com a ajuda de exploradores e viajantes. Suas fibras serviram para fazer tecido, o papel que os pintores utilizaram nas telas no período da Renascença, impulsionaram as velas das grandes embarcações na expansão marítima. Frutos, raízes, flores, sementes foram
Linha do tempo
servidos como alimentos, bebidas e explorados por seu potencial medicinal e, é claro, psicoativo. O ocidente já estava familiarizado com o uso do cânhamo, uma variação de cannabis rica em fibras usada principalmente pela indústria textil e naval. O potencial medicial da planta se popularizou no Século 19, quando o médico irlandês William O’Shaughnessy descobriu numa viagem à Índia que a cannabis podia tratar reumatismo, convulsões em criançase e espasmos. O haxixe foi considerado um método eficaz para tratar doenças mentais pelo psiquiatra francês JacquesJoseph Moreau. A indústria farmacêutica ainda dava seus primeiros passos na Europa e Estados Unidos mas aproveitou a oportunidade e colocou no mercado extratos, tinturas e medicamentos à base maconha recomendados para dores, epilepsia, falta de apetite. Os dias de glória da cannabis duraram pouco: a descoberta de medicamentos à base de componentes isolados em laboratório, como a morfina fez a classe médica perder o interesse por ela. “Até os anos 40 a maconha era vendida em farmácias. Com a formação da indústria farmacêutica as terapias passaram a ser isoladas em laboratório. Surge uma gama de medicamentos que passam a ser
sintéticos, como a aspirina. Essas terapias vão conseguir expulsar das escolas médicas e hospitais o conhecimento tradicional a base de plantas que passa a ser visto como mito”, explica explica Rafael Zanatto, pesquisador do Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid). A demonização da planta começou na década de 30 quando a fibra de cannabis começou a afetar interesses econômicos nos Estados Unidos. “Hary Anslinger, chefe da agência de drogas e produtos de abuso nomeu a maconha uma droga particularmente perigosa, sem uso médico. Ele tinha evidências biológicas e científicas para isso? Não! O que ele tinha era uma sociedade numa fábrica de produtos sintéticos. A maconha é uma ótima fonte de fibra vegetal e competia com os produtos de Anslinger que começou uma campanha para destruir a imagem da maconha internacionalmente. Deu certo!”, explica o psicofarmacologista Elisaldo Carlini. A imprensa teve papel fundamental no sucesso da campanha de Anslinger para banir a maconha do planeta. Willian Randolph Hearst, o magnata da comunicação americano que inspirou o filme Cidadão Kane, cooperou no que pode oferecendo espaço em seus jornais para
China
China
Oriente Médio
Europa
Registro mais antigo da relação entre o homem e a cannabis: uma porcelana em com marcas de corda de cânhamo do período neolítico.
Pen Ts’ao Ching, - O mais antigo livro de medicina registra benefícios medicinais e psicoativos da maconha
O uso de haxixe se propaga entre os mulçumanos como alternativa a proibição ao consumo de álcool pelo Alcorão.
Uso das fibras de cânhamo se torna essencial para atividade comercial.
2000 a.C
14 . Baseado em fatos reais
I a.C
2700 a.C
12 mil a.C
IIIII a.C
Séc XIII
I d.C
1496
Índia
África
China
América
Livro sagrado do hinduísmo recomenda o uso medicinal e religioso da cannabis. A erva é utilizada na preparação do bhang, bebida consagrada a Shiva
Comerciantes árabes levam o uso religioso, recreativo, medicinal e a fibra da cannabis para a África.
Chineses inventam papel feito fibras de cânhamo
Cristóvão Colombo viaja para a América com 80 toneladas de cânhamo
a publicação de matérias sensacionalistas que relacionavam o uso de cannabis com violência, promiscuidade e os terriveis mexicanos. Aliás, vem dai o apelido pejorativo marijuana. No Brasil não foi diferente. Grandes jornais ajudaram a impulsionar a campanha dos médicos pela proibição da cannabis. “A grande imprensa vai criar uma sensação de pânico generealizado na sociedade com uma substância ou um tipo de comportamento e isso vai fazer a adesão da politíca proibicionista. Então se a maconha era uma coisa de negros, proibase a maconha. Esse discurso proibicionista vai pegar bastante no sudeste que era uma sociedade mais branca e vai abastecer as cadeias no nordeste”, explica Zanatto. A proibição por aqui é coisa tão recente que Carlini conserva um manual de medicina do avô que recomenda o uso de cannabis para diversas doenças. “Ele usava principalmente para tratar doenças respiratórias e ansiedade”. Na época do avô, a erva era popular nos ervanários e farmácias e vendida até como cigarilha para tratar asma. A diamba ou pito de pango como era chamada por aqui começou a ser proibida na década de 20 quando um grupo de psiquiatras do nordeste se empenhou para relacioná-la com o
Brasil
Mais resistentes cordas, velas produzidas com a fibra do cânhamo era tecnologia imprescindível para a conquista de novos territórios.
Séc
1549
1500
Séc XVIII
Cannabis
Coroa portuguesa estimula o cultivo de cânhamo na região do Rio Grande do Sul
1416 Alemanha Após inventar a prensa, Gutemberg imprime a bíblia em papel de cânhamo
chega ao Brasil junto com os colonizadores que entram em contato com os benefícios da planta em viagens à Ásia e a África.
que havia de pior para a sociedade da época: o crime e os negros. “Esses médicos conquistaram posições de poder na sociedade e visavam o embranquecimento da população, pois segundo eles o subdesenvolvimento do Brasil se explicava pela presença do negro. Então eles tentam banir hábitos tradicionais como a capoeira e o uso de cannabis alegando que ela favorece o assassinato, transforma a pessoa em homossexual, doente mental e isso começa a espalhar um pânico na sociedade”, explica Zanatto. Em 1961, na Convenção Sobre
Farmácias e boticas comercializam Cigarros Índios marca francesa de cigarrilhas para combater asma, insônia e catarros.
Um grupo de psiquiatras nordestinos impulsionou a criminalização da maconha no brasil. Adeptos de uma corrente eugenista propagavam a superioridade da raça.
1888
1905
Séc. XX 1915
XX Laboratórios da Alemanha, Inglaterra e EUA produzem extratos, tinturas e medicamentos à base de maconha.
No Segundo Congresso Científico Pan-Americano em Washington, o psiquiatra brasileiro Rodrigues Dória apresenta o artigo “Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício” que considera a diamba uma vingança da “raça preta”
Câmara Municipal proíbe venda e uso de cannabis.
1841 Índia Numa viagem à Índia o médico O’Shaughnessy descobre benefícios medicinais da . e populariza o uso na Inglaterra.
Substâncias Entorpecentes realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a cannabis foi considerada uma planta perigosa e sem nenhum uso médico. Mais de 200 países concordaram que a solução era tratar o uso, comércio e porte de maconha como caso de polícia. Uma ofensiva global tentou eliminar o uso, cultivo e comércio da cannabis do planeta. O isolamento da molécula de THC por Raphael Mechoulan, três anos depois fez cientistas repensarem a guerra declarada à planta. “Em meio a toda aquela histeria, depois da imensa besteira
EUA Principal responsável pela demonização da maconha o americano Harry Anslinger iniciou uma campanha para disseminar que a droga causava violência
1930
Rio de Janeiro
1830
XV
Após a abolição da dos escravos, elite econômica buscou combater hábitos relacionados a negros, entre eles pratica da capoeira, cultos religiosos e diamba.
Séc.
Escravos angolanos trazem sementes de cannabis para o Brasil. Os senhores de engenho permitiam o plantio na entressafra da cana de açucar
Convenção Internacional de Narcóticos da ONU proíbe uso de cannabis em 173 países. Maconha entra na classe de drogas mais perigosas, sem valor medicinal.
1961
1964 Raphael Mechoulan isola o THC
A outra face da erva maldita . 15
de proibir a maconha começam aumentar número de instituições e sociedades cientificas que passaram a estudar maconha. A ciência não aceitava muito bem. Mas os pacientes já estavam usando. Já havia associação de pacientes. Os pacientes diziam ‘faz bem, eu quero tomar e vou continuar tomando”, explica Carlini. No Brasi, a redescoberta do uso medicinal da cannabis tem Carlini como um precursor. Em 1974, o psicofarmacologista desafiava a conservadora classe médica com sua pesquisa, em parceria com Mechoulan sobre o potencial da cannabis para o controle de crises convulsivas. Aos 84 anos, o médico coleciona, junto a outros pesquisadores brasileiros, mais de 40 trabalhos publicados em revistas científicas sobre o tema e uma história de luta para tentar convencer o poder público e a própria classe sobre o potencial terapêutico da erva. Atualmente, de acordo com o cientista a ciência busca jogar luz sobre o obscurantismo que ofuscou o uso médico da planta. No entanto, faz uma ressalva: “Quem descobriu o poder terapêutico da maconha na era moderna não foi médico. Não foi a academia. Foi o paciente”. Para Carlini a sabedoria e cultura popular ganham destaque quando o tema é maconha medicinal. “Eu sempre achei que maconha é uma coisa muito importante pra ser
Estudo brasileiro mostra eficácia da maconha contra náusea e vômitos causados por quimioterapia
1975
Um estudo liderado pelo grupo do cientista brasileiro Elisaldo Carlini comprova o efeito benéfico do CBD para controle de crises convulsivas.
1980
1992
Começa a politica de tolerância aos coffe shops na Holanda
Pesquisa de Raphael Mechoulan isola a anandamida, o primeiro endocanabinóide
discutida só pela medicina. Quando você começa a olhar para o paciente, para a sabedoria popular você abre seus olhos a outras realidades da vida”. Ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária — órgão precursor da Anvisa — o pesquisador não conseguiu regulamentar o uso médico da cannabis no Brasil em sua própria gestão e reconhece: “é muito dificil. Eu tentei tomar algumas medidas que tinha certeza que seriam o melhor para a população, para a saúde. Eu cheguei propor criar a Agência Nacional da Cannabis Medicinal. A proposta foi podada lá no Senado, na Câmara por que era uma coisa que certamente ia criar desagrado a algumas forças política”.
CNN produz documentário sobre o caso de Charlotte Figi, de 5 anos que teve 300 crises convulsivas controladas com o uso de CBD, no Colorado.
CFM regulamenta a prescrição em nível nacional do CBD, mas restringe a menores de 18 anos, portadores de epilepsia de difícil controle.
Surgem associações de pacientes que utilizam cannabis medicinal no Brasil: (Abracannabis, Apepi , ABRACE Esperança, Ama+me, AMEMMl).
2004
2012
2014
2015
2005 Chega ao mercado o Sativex extrato natural de maconha indicado para náusea e vômito.
2014 Anny Fischer, brasileira com 5 anos de idade, portadora da síndrome CDKL5 conquista autorização para importar extratos de CBD.
1996
1981
Primeira marcha da maconha no Brasil realizada no Rio de Janeiro
2015 A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) retira o CBD da lista de substâncias de uso proibido e o reclassifica como de uso controlado.
Eleitores da Califórnia aprovam o uso de maconha para fins medicinais
1999 Primeira marcha da maconha em Nova York
Anvisa reclassifica o THC como substância de uso controlado.
Entra no ar o site Growroom o maior fórum dedicado a troca de informações sobre maconha
Carlini recorda com bom humor ter sido vítima da demonização que a imprensa brasileira fazia da cannabis até bem pouco tempo. “Um dia acordei e fui ler o jornal estava escrito: ‘Dr. Carlini, médico maconheiro’. Não entendiam muito bem o que a gente fazia”. O pesquisador reconhece que a imprensa mudou seu posicionamento nos últimos anos quando finalmente viu que a cannabis tinha um outro lado. “Eu digo que houve dois partidos na imprensa no que se refere à cobertura de cannabis. Um mais proibicionista mas, tenho impressão que atualmente ela está sendo mais progressista pegando carona numa onda. No entanto, não foi ela que criou isso”.
Justiça do Rio de Janeiro concede do primeiro Habeas Corpus preventivo para o cultivo de cannabis medicinal no Brasil. para o casal Margarete Guete e Marcos Lins
2016
2016
2002
2016
Anvisa autoriza comercialização do primeiro medicamento a base de cannabis: do Mevatyl, nome do Sativex no Brasl indicado para tratamento dos espasmos causados pela esclerose múltipla
2017
Durante as eleições, americanos aprovaram o uso medicinal de cannabis nos estados do Arkansas, Dakota do Norte Flórida e Montana. Na Califórnia, Nevada, Massachusetts e Maine foi autorizado o uso recreativo. Fonte: O Grande Livro da Cannabis (Rowan Robinson); Maconha, cérebro e saúde (Renato Malcher Lopes e Sidarta Ribeiro); O Uso Medicinal da Cannabis (Susan Witte).
16 . Baseado em fatos reais
Cultivadores produzem óleo medicinal
A
importação de compostos ricos em CBD ou THC ainda não é uma realidade para todos. Os altos custos de importação, a reticência dos médicos e a burocracia afastam pacientes desse tipo de tratamento. Uma saída encontrada é o óleo artesanal produzido por growers ou jardineiros – as pessoas que se dedicam ao cultivo
da planta. No fundo de uma garagem na residência onde mora com a família na zona norte de São Paulo, João (nome fictício) mantêm uma estufa com cerca de 30 pés de maconha. O cultivo, chamado de indoor, necessita de uma estrutura especial: ventiladores fazem o papel do vento, ele me explica. Refletores assumem a vez do sol. — Eu sou a natureza, eu determino quando vai florir ou não, também sou eu que controlo vento luz e comida. A substituição da natureza
por equipamentos tem lá suas desvantagens. Sob a luz dos refletores de João as plantas não crescem com a mesma eficiência do que no campo. — Após a floração elas rendem no máximo 50 gramas. Num campo aberto a planta se transformaria numa árvore e renderia três quilos. A decisão de plantar veio há seis anos, para fugir das biqueiras e o tráfico de drogas. Com o tempo, o jardineiro passou a ajudar pessoas que precisavam do óleo rico em CBD ou THC para fins medicinais. — Comecei jogando a semente.
A outra face da erva maldita . 17
Como não tinha noção nenhuma de roça perdi planta, arrumei confusão com a família que achava que maconha era coisa do diabo. Foi tempo até convencer todo mundo que era apenas uma planta. Ficou mais fácil quando o óleo começou a ajudar pessoas com doenças graves, como epilepsia e esclerose múltipla, que procuravam João. Para preparar o extrato concentrado, ele explica que são necessárias as flores da planta in natura. — Você colhe, seca na sombra por 15 dias. Depois deixa no álcool de cereais e coa. O resultado é uma água esverdeada que é fervida até que sobre um óleo que pode ser rico em CBD, usado em gotas ou THC que é fumado ou vaporizado. — Sobra apenas 10%, por isso é preciso muitas plantas. Quantidade que João não possui em seu cultivo. Por isso, o jardineiro lamenta não poder ajudar todos que o procuram. — O ideal é que as pessoas cultivem e façam seu próprio remédio em casa, mas a gente sabe que pouca gente tem condição, conhecimento e espaço para fazer isso. Uma saída é a regulamentação de associações de cultivadores que poderão produzir óleo medicinal de cannabis para pacientes credenciados. João critica o óleo de cannabis importado que se popularizou no Brasil após 2014. De acordo com o cultivador, o produto não tem a mesma qualidade que o extrato artesanal. — Todo óleo medicinal precisa ser feito a partir das flores de uma planta fêmea. A gente escolhe plantas específicas de acordo com a finalidade: algumas são ricas em CBD, outras em THC. Esse óleo importado é feito à partir de um cânhamo industrial plantado na China. O objetivo é extrair fibras para fazer roupas. O processamento disso resulta no óleo. Quando eu planto eu sei exatamente a planta que eu estou usando, utilizo um cultivo totalmente orgânico. Particularmente eu confio mais no óleo artesanal, que eu comprei a semente, plantei, cuidei, produzi. 18 . Baseado em fatos reais
João mostra algumas d e suas mudas d e cannabis ricas em canabidi ol
Cultivador d e cannabis no RJ, C arlos rega algumas plantas mantidas d entro d e um armári o
Rio de Janeiro, zona norte. Nos fundos de uma casa acima de qualquer suspeita, Carlos (nome fictício) guarda um segredo a sete chaves: dentro de um armário, 40 pés de maconha sobrevivem num cultivo indoor. A maior parte da produção vai para o tratamento do grower, que se livrou do vício em cocaína, depressão e ansiedade. — Foi um amigo que me disse pra toda vez que eu tivesse vontade de usar cocaína fumar um baseado. Deu certo: parei de cheirar, beber, fumar cigarro, usar antidepressivos. Muita gente fala que a maconha é o fim da vida, mas pra mim ela foi o começo de algo diferente. Após abandonar o vício em cocaína, o cultivador entrou para o curso de direito. A cannabis, segundo Carlos, o ajudava a se concentrar nas aulas. — Dizem que a maconha abaixa o QI, deixa a pessoa apática. Eu fumava um baseado e ia pra aula amarradão. Conseguia ver em outras perspectivas. O professor falava e eu tinha prazer em aprender. O risco de conseguir maconha e a imoralidade do tráfico de drogas motivaram o grower a plantar seu próprio remédio. — Eu comprava em bastante quantidade porque usava todo
dia. Tinha o risco de ser preso e enquadrado como traficante. Além disso, eu comecei a ver que essa proibição do uso e cultivo não se sustentava do ponto de vista moral e nem legal. Isso me levou a me rebelar. Então comecei a plantar para o meu uso. A produção excedente do cultivo de Carlos também vai para a produção do óleo medicinal de uma rede de cultivadores anônimos do Rio de Janeiro. Jardineiros experientes, médicos, pesquisadores, ativistas participam do grupo que beneficia pacientes com doenças diversas de várias regiões do país. O medicamento é enviado de forma anônima e gratuita pelos correios. — Às vezes o que sai mais caro é o Sedex. A atuação do grupo é arriscada. Carlos conta que ele mesmo já “caiu” por conta de seu cultivo. — Foi horrível. A polícia entrou na minha casa com fuzis, reviraram tudo. Mesmo assim, se eu for preso um dia, na minha cama de concreto na cadeia eu vou pensar naquelas crianças que nem andavam e foram pra escola graças ao óleo de maconha medicinal que a gente fez. No entanto o grupo não dá conta de atender a demanda de pessoas a procura de tratamento
com cannabis medicinal. De acordo com o Carlos, o ideal é os pacientes cultivem e produzam seu próprio óleo. — A solução mais acessível ao uso medicinal de cannabis é a liberação do cultivo. Há pessoas que querem plantar. Uma mãe que possui uma criança com epilepsia vai produzir o remédio do seu filho com todo carinho do mundo. Outra opção são as cooperativas que podem produzir esses medicamentos a um lucro social. O estado fica com o papel de garantir a qualidade e fiscalizar a atividade. O uso da planta foi a alternativa encontrada por Nelson (nome preservado), grower em Santa Catarina, quando descobriu que o filho tinha adquirido HIV nos anos 80. Sem acesso ao tratamento que se tem hoje para a doença, Nelson aprendeu a cultivar a extrair o óleo medicinal da cannabis para tratar os sintomas da doença. — Em uma viagem ao exterior, um amigo me ensinou a extrair o óleo da planta. Então comecei a produzir pra mim, pra minha família. E de repente as pessoas ficam sabendo e a gente vai ajudando quem precisa. De pai em busca de ajuda para o filho, Nelson se tornou um jardineiro que cultiva e extrai o óleo A outra face da erva maldita . 19
da planta e ajuda a quem procura. — Quando as pessoas chegam a mim já tentaram de tudo, tomaram todos os remédios possíveis e querem tentar o canabidiol como última opção. Diferente do CBD isolado produzido artificialmente em laboratório, o óleo de Nelson é feito a partir das flores da planta. O jardineiro garante: seu produto tem mais qualidade que o medicamento feito pela indústria farmacêutica. — Há séculos a indústria farmacêutica conhece o poder dessa planta. Eles sabem muito pouco sobre o canabidiol. O que eu faço bate de dez a zero no deles em pureza. Defensor do uso medicinal, pesquisa e cultivo da cannabis, o neurologista da UFSC, Paulo Bittencourt ressalta que a classe médica precisa se desprender de preconceitos: “Nenhum médico deve exibir qualquer espécie de preconceito. A planta cannabis foi satanizada não por seus defeitos, mas sim por suas virtudes e potenciais medicamentosos. Considerando o moderno conhecimento científico que já possuímos sobre ela e seus componentes, seu uso medicinal deveria ser considerado no tratamento de várias e distintas condições”, diz. No entanto, o médico defende que o produto deve ter qualidade, seja feito por cultivadores ou laboratórios. “Não importa nem quem nem como, se o produtor utiliza a planta original e extrai dela seus princípios ativos com certeza poderemos - desde que bem indicada - tirar proveitos dos seus efeitos medicinais. Há métodos bons ou ruins para se obter isso. Há laboratórios confiáveis convivendo com outros desprovidos de qualquer qualidade. E isso se aplica a qualquer laboratório que se propõe a produzir medicamentos para o tratamento eficaz de doenças”, diz Bittencourt. O membro do CFM do Paraná, Donizetti Filho reprova o cultivo e produção de óleo medicinal. De acordo com o pediatra o tratamento com componentes de cannabis precisa de pesquisa e comprovação científica. “Quem 20 . Baseado em fatos reais
será o responsável pelas eventuais consequências de um tratamento sem evidências científicas na atualidade com o livre acesso?”. O médico lembra que não há um consenso entre a classe médica sobre o tratamento com cannabis e recomenda à população a busca de informação. “O ser humano, diante de enfermidades onde a medicina não apresenta resultados satisfatórios em seu tratamento, busca apoio na fé e na esperança, assim suas atitudes em busca de minimizar o sofrimento ou sua cura ocorrem. Nesta condição de vulnerabilidade falsas promessas podem criar expectativas diferentes da realidade e, neste sentido, a sociedade deve ser informada dos riscos e benefícios, após o esclarecimento consentir no uso ora experimental da droga e procurar estar atento a qualquer efeito adverso para análise”. Advogado e consultor jurídico do site Growroom, Emílio Figueiredo é especializado em defender o direito de usuários, pacientes e cultivadores de cannabis. Para ele, o trabalho dos growers é um exemplo de solidariedade. “Eles assumem o risco que deveria ser do paciente, mas reconhecida a capacidade, a intimidade com a planta, eles preparam o medicamento e doam inclusive até pagando o Sedex quando necessário”. O advogado vai ainda mais longe: para ele todo uso é medicinal até mesmo o consumo recreativo. “Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), saúde é o bemestar bio-psicosocial. Se o usuário de cannabis faz o uso visando seu bem estar também é um uso medicinal”, esclarece. Defensor da legalização do cultivo como uma forma de democratizar o acesso à cannabis medicinal, Figueiredo é um critico do modelo de importação adotado pelo Brasil. “Todos esses produtos que são vendidos são passiveis de serem feitos em casa. Quando você impõe à pessoa que ela só importe o produto ou que ela compre de uma empresa você impõe a ela uma restrição que não tem fundamento e uma regulamentação que é arbitraria”.
O que diz a legislação: Consumo e porte de canabis não é punido com prisão Quem é pego em flagrante recebe medidas alternativas A diferença entre usuário e traficante depende da interpretação da autoridade policial
A lei nº 11.343/2006 permite o cultivo de cannabis no Brasil O artigo só se aplica para fins medicinais ou científicos e a autorização depende da Anvisa. Apesar da previsão em lei, a pesquisa com cannabis no Brasil é prejudicada pela burocracia dos órgãos reguladores. O uso da planta com fins medicinais começou ser autorizado por meio de medidas judiciais no fim do ano passado.
Tolerância à cannabis
A
discussão sobre o uso terapêutico de cannabis ajudou impulsionar um debate que nunca havia ganhado força no cenário nacional: a descriminalização ou legalização das drogas. Mas será que é possível um dia usar, cultivar e comercializar a maconha e seus extratos livremente no Brasil? De acordo com um relatório divulgado no ano passado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), 182,5 milhões de pessoas em todo o mundo usaram maconha em 2015. No Brasil, o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) apontou que mais de 1,5 milhões usam cannabis diariamente. Apesar de ser a substância mais consumida no país após o álcool, nada é fácil quando o assunto é flexibilizar as regras que tratam do uso. No entanto, o discurso que tratava a planta como erva do diabo perdeu força e já é possível falar sobre o potencial medicinal que está ajudando Miguel, Sofia, Gilberto e Maria Antônia e milhões de pacientes sem causar tanto espanto. O advogado e ativista Emílio Figueiredo explica que a luta pelo uso da cannabis está em movimento há mais tempo do que se possa mensurar. “Na verdade, desde que se instituiu a proibição no Brasil, no outro dia já tinha gente gritando contra”. No entanto, de acordo com Figueiredo, o potencial terapêutico da planta está ajudando a quebrar preconceitos e abrir espaço para a discussão sobre o uso dos extratos de cannabis. “Foram anos de construção de estigma batido na cabeça das pessoas que maconha é erva do demônio, maconha mata, mas jamais pensado que maconha podia salvar a vida de crianças que estavam condenadas a morte de tanto convulsionar”. Escritor do livro O Fim da Guerra que trata sobre a questão do proibicionismo de entorpecentes, o jornalista Denis Russo Burgiemman defende que o potencial terapêutico da cannabis é 22 . Baseado em fatos reais
o início de uma nova compreensão sobre entorpecentes. “A discussão do medicinal é meio que a ponta de lança. São as pessoas que precisam muito e a tendência é que o uso medicinal se generalize em todo o mundo, inclusive no Brasil. A partir do momento que a sociedade ver e perceber maconha não é sempre ruim, a legalização do uso recreativo é meio que consequência”.
Quando você impõe à pessoa que ela só importe você impõe a ela uma restrição que não tem fundamento e uma regulamentação que é arbitraria Emílio Figueiredo, advogado.
As possibilidades de regulamentar a cannabis são muitas. Às vezes, os modelos até parecem sinônimos, mas na prática descriminalizar, legalizar, regular são bem diferentes. Se hoje o Brasil adotasse a descriminalização, por exemplo, a cannabis continuaria sendo proibida, no entanto a pena criminal para o uso pessoal seria extinguida. Atualmente a Lei Antidrogas prevê algo parecido: o consumo e porte de pequenas quantidades são considerados crimes, mas não são punidos com prisão e sim com medidas alternativas.
Quem é flagrado com grandes quantidades ou uma situação que configure tráfico de drogas recebe penas maiores. Ex-diretor da Política Municipal sobre Drogas de Curitiba, o advogado curitibano Diogo Busse, explica que a lei trouxe como benefício a distinção de usuário e traficante. Como prejuízo deixou nas mãos da polícia, no momento do flagrante o poder de interpretar quem está usando entorpecentes e quem está vendendo. “Não há nenhum critério de quantidade. Então, se a pessoa for flagrada, de acordo com as circunstâncias a autoridade policial vai indiciá-la como traficante ou como usuária e esse é um grave problema”. A legalização põe um fim em todas as formas de proibição da substância entorpecente. Mas, ao contrário do que se pensa, não é um libera geral. Cabe ao governo estabelecer regras para o uso medicinal, recreativo, religioso e toda a cadeia produtiva. Para o jornalista, não há um modelo único, mas sim várias formas de tratar este assunto já que as pessoas são diferentes. “Não há um caminho ideal quando se fala de temas complexos. É legalizar o mercado? Não tenho dúvida de que sim, porque legalizar tira das sombras, ajuda lidar. Mas legalizar é só um pedaço da coisa. É criar uma rede robusta pra tratar dependente, tratar quem tem problema das drogas é cuidar para que tenham regras que façam sentido, pra que crianças não tenham acesso às drogas”, opina. Figueiredo concorda, mas consegue visualizar a adoção de um modelo de regulamentação das drogas no Brasil, começando pela regulamentação do cultivo e a possibilidade da formação de associações à exemplo do que fizeram os países vizinhos ao Brasil como Chile e Uruguai. “Eu faria o que existe de melhor em vários países. Na questão do uso medicinal, eu acho que é urgente a liberação do cultivo doméstico. Então a pessoa cultiva na sua casa e a produção serve para abastecer as pessoas que residem ali. Também é interessante o modelo de associações e clubes canábicos
para as pessoas que querem usar, mas não tem capacidade para produzir”, explica. Busse é um dos autores do primeiro processo judicial brasileiro que garantiu o direito da família de Anny Fisher de importar extratos de cannabis dos EUA. O advogado lembra que apesar do entorpecente ainda ser proibido a Nova Lei Antidrogas permite desde 2006 o uso e pesquisa com cannabis voltado para fins medicinais. Foi a esta brecha que o advogado recorreu na ação judicial que mudou os rumos do uso medicinal de cannabis no país. A vitória abriu portas, mas o advogado defende um modelo mais abrangente que regule o uso medicinal, recreativo e cultivo de cannabis no Brasil. “Infelizmente nosso sistema jurídico ainda considera um crime
Canadá (2001)
O uso e cultivo para fins medicinais estão legalizados. No entanto a distribuição só pode ser realizada por produtores autorizadas a pacientes em tratamento.
cultivar, produzir, manter ou possuir uma planta considerada proibida, está na lista de substâncias proscritas da Anvisa. Então o fato do medicamento poder apenas ser importado dificulta o acesso. O ideal seria um processo de legalização, seguido de regulamentação da planta, para que as pessoas possam cultivar, para que a indústria farmacêutica possa produzir, distribuir o CBD e outras substâncias que possam ser usadas para fins terapêuticos”. Apesar das pesquisas comprovarem os benefícios da planta, quando o tema é cannabis a pesquisa científica esbarra na burocracia e a legislação atrasada. O conservadorismo da classe médica impede a prescrição de compostos que tenham em sua composição elementos da planta. De acordo com Busse a solução Portugal O uso de cannabis está descriminalizado. Quem exceder 25g é encaminhado a um tratamento com médicos e assistentes sociais.
é um debate que desmistifique a desinformação. “A gente vê que há muito preconceito por conta do estigma que paira sobre a maconha. Já há muita informação disponível, mas as pessoas ainda carregam uma cultura da guerra contra as drogas do inicio do século. Um dos maiores problemas que a gente precisa enfrentar é essa cultura do medo e terror que não traz nenhum tipo de informação pelo contrario tem gerado pânico”. Os benefícios medicinais e econômicos que a planta oferece, a possibilidade de arrecadar impostos com o uso recreativo e diminuir a violência provocada pelo tráfico de drogas têm feito potências mundiais a reconhecerem: a Guerra às Drogas fracassou. Um cheiro de mudança na política de drogas começa a soprar.
Holanda A comercialização está restrita aos chamados “coffee shops”. É permitida apenas 5g por pessoa e o comerciante pode ter até meio quilo da substância no estoque.
China
A erva é originária do país que legou ao mundo os conhecimentos sobre o seu uso recreativo e medicinal. Mas por lá seu uso atualmente também é proibido.
EUA Em nível federal ainda é crime usar maconha. No entanto, 25 estados já regulamentaram o uso medicinal. Os estados do Oregon, Colorado, Alasca e o Columbia regulamentaram o uso recreativo.
Chile É permitida a posse de 10g e o cultivo de 6 plantas. O governo mantém um cultivo de 7 mil pés de maconha utilizados no tratamento de 4 mil pacientes.
Brasil Uruguai O país vizinho é o único que legalizou toda a cadeia produtiva da maconha. A maconha medicinal é vendida em farmácias a pacientes registrados. O uso recreativo também está permitido, mas apenas a usuários cadastrados.
Israel O uso está regulamentado para pacientes que sofrem de doenças como epilepsia, câncer, esclerose múltipla.
É permitida a prescrição e importação de produtos à base de CBD. A importação do THC está regulamentada, mas a prescrição não é permitida pelo CFM.
A outra face da erva maldita . 23
Baseado em fatos reais: a outra face da erva maldita Texto Heloiza Vieira de Oliveira Fotos Heloiza de Oliveira Diagramação e infografia Heloiza Vieira de Oliveira Supervisão e correção Márcia Neme Buzalaf Reportagem produzida como peça prática do Trabalho de Conclusão de Curso de Comunicação Social - Jornalismo. Universidade Estadual de Londrina Fevereiro - 2017 As entrevistas desta grande reportagem foram realizadas em março de 2016 no Rio de Janeiro/RJ, São Paulo/SP Curitiba/PR e Londrina/PR.
Saiba mais: LIVROS Almanaque das drogas: um guia informal para um debate Tarso Araújo, Editora Leya, São Paulo. 2012. História da maconha no Brasil Jean Marcel Carvalho França. São Paulo: Estrela, 2014. O uso medicinal e nutricional da maconha. Chris Conrad. Record. Rio de Janeiro, 2001. O Grande Livro da Cannabis Rowan Robinson. São Paulo: Jorge Zahar, 1999.
Enquanto a maioria está preocupada em qual universidade seus filhos irão estudar, nós só queremos que nossos filhos não tenham convulsões, que estejam mais presentes, possam sorrir mais, olhar, comer melhor. E isso está acima de tudo. Margarete Guete, mãe da Sofia,
O Uso Medicinal da Cannabis Susan Witte, Ezard. Portugal: Chiado, 2015. DOCUMENTÁRIOS Quebrando o Tabu Direção de Fernando Grostein de Andrade Ilegal: a vida não pode esperar Tarso Araujo. Coprodução de Raphael Erichsen. Esperança a Luta pela Vida Direção: Aline Katzinsky Marangoni