Um outro Jesus Por Mário Vale Lima Drº.
Perguntei, há uns quantos anos, pelo Natal, a um jovem das novas classes médias: «-Sabes há quantos anos nasceu Jesus? – Não faço a mínima! - Mas quê, aí há 500 anos? - Por aí. - E onde nasceu? - Não faço a mínima! - Mas sabes quem foi Jesus?! - Foi Nosso Senhor! » E por aí fora. Não surpreenderia que, hoje, me respondesse: «- esse gajo é treinador do Sporting». Dois mil anos depois, o Natal tornou-se o mais feérico evento da sociedade consumista e pouco lembra já o nascimento do maior mito da História, o seu protagonismo à época e a sua doutrina perene a mostrar que “se o cristianismo foi a revolução do mundo antigo, a revolução não é mais que o cristianismo do mundo
moderno”, citando Antero de Quental. Na mitologia cristã o Natal representa a descida do Filho de Deus à Terra para nos redimir as misérias e nos salvar, encarnado no filho de Maria, concebido sem pecado e nascido numa manjedoura. Outra versão revela que o Menino Jesus desceu à terra “um dia que Deus estava a dormir/e o Espírito Santo andava a voar…”. Terá “fugido do céu (…) saltou para o sol/ desceum pelo primeiro raio que apanhou/ e depois continuou pela encosta de um monte (…)/ Era novo demais para fingir-se/ de segunda pessoa da Trindade” (F. Pessoa). O que se sabe de Jesus: o pai adoptivo era José, carpinteiro, dono de um burro que, tendo em conta as distâncias na fuga a Heródes de Belém para o Egipto, equivalia hoje a uma boa Toyota de caixa aberta. Os relatosm descrevem o Divino Menino como um superdotado em quem se vislumbrava um carácter prodigioso que haveria de o tornar um agitador do mundo. Com doze anos argumentava com os doutores no templo. Pelas gravuras iconográficas vêse que não era a personagem modesta, cinzenta e assexuada descrita no Novo Testamento. Era um jovem bem parecido, de barba cuidada e “longos cabelos de bailarina espanhola” (António Saura), vestindo elegantes túnicas e mantos de uma só peça, roupa “Armani” desse tempo, calçando sandálias Prada como Bento XVI. Com esta boa figura concitava as paixões femininas, algumas menos secretas. Perseguido, sofreu de escárnio e de calúnias, entre elas os clássicos rumores da homossexualidade. E hoje, em
que vale tudo (incluindo tirar olhos) para liquidar outrem, não escaparia à calúnia da pedofilia quando enaltecia os inocentes com o apelo “Deixai vir a mim as criancinhas”. Era comedido quando fazia os milagres de exorcizar endemoniados e curar leprosos. Pregou a tolerância, como da vez em que, junto à adúltera ajoelhada aos pés dum círculo de fariseus, desafiou, altissonante: “Quem, dentro de vós, nunca pecou, que atire a primeira pedra”. Olhava sereno e frontal, como quando Pilatos o exibiu à multidão invectivadora que pedia a sua morte. Em algumas ocasiões se enfureceu, como aquela em que correu à vergastada os vendilhões do Templo Noutras se terá desiludido, a última quando,na infinita solidão ao pé da cruz, clamou, exangue: Pai, porque me abandonaste? Sendo divino não deixou de ser humano, de tão igual a nós que era.
“Entendam-se”,que é preciso! Nas margens do Ebro, onde ocorreu a mais sangrenta batalha da guerra civil de Espanha (a carnificina foi tal que as águas do rio se tingiram de sangue) os combatentes sobreviventes de uma e outra facção, colocaram um memorial com estes dizeres: “Aos que perderam a guerra, que fomos todos”. Lembrei, há dias, este desventura de episódio num encontro com a Vereadora Dr.ª Armandina Saleiro a quem, a par de manifestar a minha estima e admiração, exprimi o lamento de ver a
guerra entre os socialistas e as feridas que se adivinham abertas por muito tempo. Em 2008 senti os calafrios da traição: o presidente da Câmara de então retivera na gaveta desde 2006 informação essencial impedindo assim de fazer cumprir um despacho ministerial que homenageava o nome de meu pai em Vila Cova. Isto por troca de umas centenas de votos “do” presidente de Junta dali, personagem rancorosa e obcecada em ajustar contas com meu pai depois de morto, banindo- o da história local. “No amor perdoa-se a traição; na amizade não”; quem perdoaria tal vilania? Em 2009 a Câmara socialista recém-eleita (constituída por pessoas, nesse tempo, de mim desconhecidas) repuseram a justiça fazendo cumprir esse despacho. Perante esse acto de transparência, firmeza e honradez, demonstradas do início ao fim, como não consternar- me hoje com a crise institucional nessa Câmara e repudiar o atiçamento da fogueira com crispações, insultos e escárnios? O período de Natal, em que a nossa matriz cristã convoca à reconciliação, propicia aquele gesto de grandeza redentora que os cidadãos merecem e esperam. Para amanhã não termos, aos olhos de quem passar, uma miniatura da dilacerante lápide dos combatentes do Ebro.