Memórias 21-01-21

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O amor atravessa o oceano Memรณrias de Gret



O amor atravessa o oceano Memรณrias de Gret


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Viagem para Garanhuns

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Despedida da casa materna. Viagem para o Brasil

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Chegada a Pernambuco e casamento

Visitando a Suíçica.

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Volta para Garanhuns.

Nascimento de Elizabeth

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Novos Costumes.

Nascimento De Tereza

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Nascimento de Renato e viagem para o Rio


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. . . E a vida segue

Uma história para Gret e Renato Renato, Gret e família

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Expectativas

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O noivado e os planos

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Os desafios de Gret

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Granja Santa Fée

Volta ao Rio - Km 47

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Últimos momentos na Suíça

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Garanhuns

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Caruaru

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A revolução de 30

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Pernambuco sob nova administração

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A higienização do leite e a sociedade pernambucana de laticínios

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O longo caminho até a usina

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higienizadora de leite

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A primeira viagem à Suíça e a usina de tratamento de leite -- do projeto à inauguração

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Da ‘usina do leite’ à Cilpe

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A produção animal e o estado novo

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A passagem de Getúlio por Recife

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Dois irmãos

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Os tempos da guerra

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Egito e Holanda

Avicultura, uma paixão

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A estada no Rio e no DNPA

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Pesquisa agronômica

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e extensionismo rural

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Década de 1950: um divisor de águas

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Uma trajetória singular

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A grande família Wyss-Ramos de Farias

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Era uma segunda-feira e eu podia sentir o tênue calor de um típico início de tarde wwde agosto, enquanto aguardava, no corredor de casa, sentada sobre a bagagem, o carro que me levaria à estação. Chegava a hora de partir, e a cada minuto ficava mais difícil desistir. Será que eu queria mesmo desistir? Os bilhetes de Zurique para Basileia e de lá para Amsterdã, bem como o passaporte, já estavam na bolsa de mão. Algum dinheiro para usar durante a viagem, também. Notas de maior valor iam junto ao corpo, num saquinwho amarrado à cintura, escondido sob o vestido. Como se estivesse presa num sonho, sem pensar, vesti meu casaco e coloquei um pequeno chapéu esportivo na cabeça. Nesse momento, mamãe apareceu para dar ainda alguns conselhos valorosos, mas, àquela altura, por demais prolongados: “Tenha muito cuidado”, disse ela. “Muitas pessoas não são boas como parecem. Converse gentilmente, mas se alguém passar dos limites, responda com um soco na cara”. A cabeça já andava cheia de “bons conselhos”, porque na véspera, na despedida das amigas, das colegas, dos conhecidos e vizinhos e até dos comerciantes locais que minha família frequentava — enfim, em todos os lugares onde eu era conhecida — recebi conselhos. Ora as pessoas me abraçavam emocionada e com lágrimas nos olhos, desejando muita sorte e felicidade, ora demonstravam tristeza e aproveitavam para dizer que não apreciavam minha ida para o Brasil; algumas diziam que era uma ingratidão deixar os pais e ir para tão longe, quando eu podia muito bem casar na Suíça; outras, que não daria certo, porque o noivo era “moreno” e eu poderia ter muitos problemas. Nada disso foi capaz de mudar minha convicção: o que valia era o bom caráter de Renato, meu noivo, já sabido por mim e depois confirmado pelas

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Despedida da casa materna

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Viagem para o Brasil

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Era uma segunda-feira e eu podia sentir o tênue calor de um típico início de tarde wwde agosto, enquanto aguardava, no corredor de casa, sentada sobre a bagagem, o carro que me levaria à estação. Chegava a hora de partir, e a cada minuto ficava mais difícil desistir. Será que eu queria mesmo desistir? Os bilhetes de Zurique para Basileia e de lá para Amsterdã, bem como o passaporte, já estavam na bolsa de mão. Algum dinheiro para usar durante a viagem, também. Notas de maior valor iam junto ao corpo, num saquinwho amarrado à cintura, escondido sob o vestido. Como se estivesse presa num sonho, sem pensar, vesti meu casaco e coloquei um pequeno chapéu esportivo na cabeça. Nesse momento, mamãe apareceu para dar ainda alguns conselhos valorosos, mas, àquela altura, por demais prolongados: ― “Tenha muito cuidado”, disse ela. “Muitas pessoas não são boas como parecem. Converse gentilmente, mas se alguém passar dos limites, responda com um soco na cara”. A cabeça já andava cheia de “bons conselhos”, porque na véspera, na despedida das amigas, das colegas, dos conhecidos e vizinhos e até dos comerciantes locais que minha família frequentava — enfim, em todos os lugares onde eu era conhecida — recebi conselhos. Ora as pessoas me abraçavam emocionada e com lágrimas nos olhos, desejando muita sorte e felicidade, ora demonstravam tristeza e aproveitavam para dizer que não apreciavam minha ida para o Brasil; algumas diziam que era uma ingratidão deixar os pais e ir para tão longe, quando eu podia muito bem casar na Suíça; outras, que não daria certo, porque o noivo era “moreno” e eu poderia ter muitos problemas. Nada

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disso foi capaz de mudar minha convicção: o que valia era o bom caráter de Renato, meu noivo, já sabido por mim e depois confirmado pelas últimas informações que meus pais haviam recebido.

E

ssas críticas às vésperas da viagem me irritavam bastante, e isso não passou despercebido pela minha mãe, que observou: ― “Não se aborreça. Eu sei a educação que você recebeu; além disso, você sempre demonstrou

muito equilíbrio no seu comportamento. Com muita confiança e respeito, tudo irá bem. Deus vai proteger vocês”, disse ela com um carinhoso beijo de boa noite. O som estridente da campainha interrompeu repentinamente meus pensamentos, avisando da chegada do motorista. Apanhei a bolsa e per-

cebi que meus pais e irmãos ― Ruedy, o mais velho, e Emmy, mais nova que eu, ― já me aguardavam. Eles me acompanhariam até a estação. No caminho, ao passarmos pela rua principal, Emmy pediu ao motorista que parasse um instante e, abrindo a porta para saltar do carro, dirigiu-se a mim: ― “Despedidas para mim são um sacrifício. Eu desejo muita felicidade e muita coragem a você”. Dizendo isso, deu-me um beijo e desceu rapidamente do táxi, desaparecendo entre os passantes. Ficamos todos surpresos, mas mal pudemos esboçar uma reação, porque já víamos as luzes da estação e as vitrines dos grandes magazines ― o Seidengrieder, o Franz Carl Weber e outros conhecidos em toda a Europa. Com um aperto no peito, me perguntei: “quando vou ver isso de novo?” Na estação, um representante da agência Cook nos levou ao compartimento reservado. Ruedy me acompanharia até Basileia, última cidade na Suíça. Restava me despedir de meus pais, que fizeram silêncio solene. Meu pai, um homem grande e bonito, de belos olhos azuis, ficou pálido e, com a voz embargada, deu-me a benção: ― “Que Deus a proteja, minha filha”. Minha mãe rapidamente enxugou as lágrimas, esboçou um sorriso e me desejou muitas felicidades. Da janela do trem, eu ainda acenava enquanto os via desaparecer lentamente, junto com as luzes da estação...

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geiros impacientes para chegar ao destino, observei que um jovem de mais ou menos 25 anos olhava minha malinha com interesse. Ele percebeu minha curiosidade e me cumprimentou, apresentando-se como Werner Braun, suíço e, como eu, a caminho de Pernambuco. ― “Quando vi a mala e o destino, fiquei contente”, disse ele, que explicou estar indo trabalhar no consulado suíço em Pernambuco. Werner Braun e eu conversamos até o trem entrar numa estação. Ele quis saber se já era Amsterdã. ― “Não sei. É melhor perguntar ao bilheteiro”, respondi. Braun, contudo, não se mexeu e resolvi eu mesma procurar o funcionário. Fui informada de que estaríamos em Amsterdã daí a vinte minutos. Voltando ao compartimento, pedi para Werner Braun alcançar mi-

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nha mala na rede. Ele então perguntou onde eu ficaria na cidade, já que o Flandria deixaria o cais apenas no dia seguinte. Disse a ele que a agência Cook já havia reservado um quarto no Van Dam Hotel e que uma pessoa credenciada estaria esperando por mim na estação. Werner Braun achava que seria mais apropriado que eu me hospedasse no seu hotel, o Schweizerhof, mas isso não havia sido combinado com meus pais e eu não mudaria o combinado. Logo na saída do trem, um homem com o distintivo do hotel se apresentou e conduziu-me a um táxi que nos levaria ao Van Dam Hotel. Chegando lá, tomei um banho refrescante e desci para a sala de refeições. Qual não foi minha surpresa ao saber que naquele hotel só serviam o café da manhã!

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À esquerda, Martha, tia paterna de Gret e estilista em Soleura, Suíça, onde

mantinha um renomado ateliê de costura, com clientes em

várias cidades da Europa.

Gret viveu por seis meses com a tia e o marido, ajudando nas tarefas administrativas

do ateliê, antes de vir para

Pernambuco. Ao partir, foi presenteada com um enxoval

completo de roupas de viagem, incluindo um belo vestido

de noiva, que foi extraviado a caminho do Brasil.

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Por um momento fiquei indecisa sobre o que fazer: seria seguro me aventurar sozinha em busca de um restaurante naquela cidade conhecida como perigosa pelos muitos raptos de mulheres brancas? Lembrei-me então de Werner Braun e do seu inútil alerta sobre a conveniência de me hospedar no seu hotel. Convencida do meu erro, pedi ao concierge que ligasse para o Schweizerhof e chamasse o senhor Braun. Por telefone, expliquei-lhe a situação e pedi-lhe um gesto de cavalheirismo: que me acompanhasse a um restaurante. Em minutos, um táxi chegou trazendo o rapaz, que, com uma piscadela, reiterou o que eu já descobrira: ― “Agora a senhorita pode ver que teria sido melhor se hospedar no meu hotel”. Depois de acompanhar-me no almoço, Werner Braun propôs contratarmos um fiacre para irmos às docas, a fim de apresentar a passagem e os documentos. Tudo estava em ordem. Precisávamos estar no cais na manhã seguinte, às nove, para embarcar no Flandria. O transatlântico zarparia uma hora depois.

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Saindo das docas, voltamos ao fiacre e, antes de retornar aos nossos hotéis, pedimos uma volta pela cidade. Quando estávamos próximos ao Van Dam, Werner Braun me convidou para dançar à noite, numa boate. Gentilmente recusei. Não tinha a mínima vontade de ir. A cabeça rodopiava cheia de planos para o futuro. E ainda precisava escrever algumas linhas para meus pais.

N

o dia seguinte, depois do café da manhã, esperei com Werner Braun, que já me aguardava na recepção do hotel, o táxi que nos levaria às docas.

Fui tomada pela emoção logo que avistei, ainda de longe, o majestoso

Flandria. Já a bordo, fui para a cabine e, antes de o navio zarpar, retirei da mala os objetos de que certamente precisaria nas próximas horas, caso enjoasse quando o Flandria saísse para alto-mar. Depois, subi para o deque, onde muitos passageiros acenavam para parentes e amigos, aguardando as máquinas do navio se movimentar. Neste momento e enquanto o transatlântico se afastava do cais, bateu-me uma grande melancolia, porque ninguém ali acenava para mim. Saindo das docas, voltamos ao fa

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volta pela cidade. Quando e convidou para dançar à noite, numa boate. Gentilmente recusei. Não tinha a mínima vontade de ir. A cabeça rodopiava cheia de planos para o futuro. E ainda precisava escrever algumas linhas para meus pais.

T

entei me desconectar daquele momento, pensando no futuro, na chegada ao outro lado do oceano. Seria tudo novo para mim: clima, mentalidade, costumes, mas haveria muito

tempo para pensar. O Flandria levaria 16 dias para chegar a Pernambuco. Naqueles primeiros minutos, os passageiros apreciavam com muito interesse o espetáculo do Flandria cruzando as altas ondas, conquanto demonstrassem certa indiferença uns com os outros. Após o segundo dia de viagem, esse comportamento modificou-se de modo evidente na maneira efusiva como as pessoas se cumprimentavam ou formavam grupos de conversa. O dia a dia no navio levou as pessoas a se sentirem em família. Na passagem do golfo de Biscaia, entre a costa norte da Espanha e a

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costa sudoeste da França, o mar ficou bravo. O Flandria balançava muito, fazendo com que poucos passageiros permanecessem no deque. Mas nem só o mar revolto afastava as pessoas; o cheiro forte de tinta fresca também provocava mal-estar. Todos os dias os marinheiros pintavam alguma coisa nos corredores ou em outra área do navio. Eu passava o dia inteiro na espreguiçadeira, tentando me manter distante daqueles eflúvios. Além disso, me alimentava à base de sanduíches, chá e cerveja preta, trazidos pelo garçom de bordo. Um dia, uma senhora muito simpática, com mais ou menos uns setenta anos, sentou-se junto a mim, apresentando-se como senhora Gesser, mãe de Nany, de 26 anos, que a acompanhava na viagem a Bue-

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Chegada a

Pernambuco

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O csamento Muito nervosa, aprontei a mala e pedi a alguém da tripulação para levá-la para o deque. Todos os passageiros tinham sido instruídos a irem para lá. De repente, ouvi chamarem meu nome e vi meu noivo em companhia de um oficial vindo em minha direção. A surpresa de ver Renato e de ser abraçada por ele foi tanta, que senti minhas pernas paralisarem. Dois anos haviam se passado desde a última vez em que tínhamos estado juntos, quando nos abraçamos e juramos fidelidade; agora, chegara o momento de nos unirmos para sempre. Os passageiros se aproximaram alegres para assistir ao nosso encontro. Demorei algum tempo para controlar a emoção e perguntar a Renato como ele havia conseguido chegar a bordo, com o Flandria em alto-mar. Renato explicou-me que em cada porto havia um capitão que ia ao encontro dos transatlânticos, a fim de apontar o ponto mais favorável para a atracagem. Esses capitães conheciam a profundidade do mar e onde havia pedras ou não. O contato com os navios era feito por uma lancha a motor, num trabalho conjunto com a polícia, que também ia até o navio. O chefe de polícia, amigo de Renato, assim como o capitão (conhecido como prático de bordo), havia concordado, com muita satisfação, em levá-lo na lancha para me fazer uma surpresa.ter muitos problemas. Nada disso foi capaz de mudar minha convicção: o que valia era o bom caráter de Renato, meu noivo, já sabido por mim e depois confirmado pelas últimas informações que meus pais haviam recebido.

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Na cabine, Ruedy e eu, sentados um em frente ao outro, nos olhávamos com a garganta apertada, incapazes de falar. Foi Ruedy que rompeu o silêncio e, me passando uma bolsinha, murmurou: ― “São vinte vreneliw, que papai pediu para lhe entregar. Uma ajuda para as situações especiais...” Comovida, balbuciei: — “Diga a ele que agradeço muito e mando mil beijos”. Não pude conter a emoção que vinha sendo represada desde aquela manhã e chorei convulsivamente sob os olhos ternos de meu irmão, que aos poucos me tranquilizou. Foi assim que chegamos a Basileia. Lá, aproveitamos para passear um pouco nas ruas próximas à estação até a hora em que eu deveria prosseguir minha viagem para Amsterdã. Neste momento, Ruedy me acompanhou até o vagão e se certificou de que meu compartimento estava em ordem para que eu pudesse descansar despreocupada até o destino. Uma vez que todas as malas estavam marcadas com a etiqueta “em trânsito”, não seria necessário passar na alfândega da fronteira com a Holanda.

U

m apito forte lembrou Ruedy de que o trem estava de saída. Nos abraçamos, subi no vagão, que já começava a andar, e logo retomamos o ritual dos ace-

nos. Na janela, agitei os braços pela última vez e senti, que de agora em diante, aos 22 anos, seria responsável por todos os meus atos. Já instalada, troquei meus sapatos por chinelinhos de feltro: à noite fazia frio. Coloquei a pequena maleta na rede de pacotes que se achava por cima da poltrona, liguei a luzinha sobre a poltrona e procurei dormir. O trem deveria chegar às nove e meia da manhã em Amsterdã. Havia tempo bastante para descansar, mas as preocupações dos dias passados, o barulho das rodas do trem ao cruzar as linhas férreas e a conversa dos passageiros que andavam no corredor agitavam meu sono. Afinal, depois de algum tempo, consegui adormecer. Já passava da meia-noite, quando o trem parou e ouvi um grito: ― “Zeevenar”!

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Era uma ordem para descer na alfândega, mas não me preocupei. Algum tempo depois alguém bateu na porta e, com um tom imperioso, alguém ordenou: ― “A senhorita precisa ir com sua maleta se apresentar na alfândega; o trem tem hora para sair”.

C

alcei meus sapatos e segui o empregado da alfândega, com a malinha na mão, atravessando as linhas férreas até a pequena estação iluminada com duas laternas de querosene. Na

sala de inspeção da alfândega, apenas minha mala grande jazia sobre um banco. As malas dos outros passageiros já haviam sido despachadas. O funcionário esperava com cara de poucos amigos, porém, antes que ele me repreendesse, perguntei:

― “Por que tenho que abrir a mala, já que elas estão marcadas com letras grandes ‘em trânsito’? Eu não vou ficar em Amsterdã. Elas devem seguir diretamente para as docas, porque já foram vistoriadas na saída da Suíça”. Apesar do tom enérgico que usei, senti as pernas tremerem de medo. O despachante pediu, então, a chave da mala. Receando perder o trem, tirei uma moedinha de ouro do saquinho que Ruedy havia me passado. Ao ver o sorriso largo do funcionário, percebi que tudo daria certo. O homem pegou um pedaço de giz, marcou a mala com uma cruz e levou-a pessoalmente para o trem, que já se preparava para partir. Subi no vagão ajudada pelo agora solícito despachante, que desejou boa viagem. O trem já começava a se movimentar. Instalada novamente na cabine, me arrependi de ter dado a moeda ao funcionário ― uma moeda que papai tinha juntado com tanto sacrifício: “o que está feito, está feito; numa outra vez, pensaria melhor”. Puxei a cortina da janela para trás e vi que o dia estava nascendo. As luzes estavam ainda envolvidas em nevoeiro, mas já era possível ver que o trem se aproximava de uma grande cidade. Abri a porta do compartimento e, em meio ao vai e vem de passa-

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Familia

Mikaela

Mikaela

Mikaela

Patrick ??? Farias

Monique Lambert de Farias

Barbara Lourent Farias

Murilo Rodolfo de Farias

Renato Ramos Flavia de Farias Neto

Angela Maria Salazar de Farias

Otto Benar Ramos de Farias

Alexandre Guye

Cintya Guye

Alexandre Guye

Edward Guye

Alexandre Jimmy Guye

Andre Zangal

Tereza Georges Andrea Betina Mac Horst Cristina Guye Guye Buye Fadder

Maria Ramos de Farias

Andre Guye

Esther Ramos de Farias

Tereza Margarida Maria de Farias

Samuel Ramos de Farias

Samuel Ramos de Farias

Dona Mocinha

Murilo Ramos de Farias

Renato Ramos de Farias


Mikaela

Malu

Ricardo Salazar Raquel de Farias

Joao Gustavo

Lucas

Pedro Jorge

Joana Salazar Pedro de Farias

Carmem Bernadete

Bernardo

Arthur

Eric Spangenberg

Jens Spangenberg

Maria Carolina Calado

Maria Carolina Calado

Diogo Nejain de Farias

Geraldo Margareth Roberto Fernanda Roberta Ricardo Alex Renato Erendira Calado Maria Macaes Menkel Nejain Alvarado Calado de Farias de Farias

Jose Alvarado Vega

Margaretha Elisabeth Wyss

Elisabeth Hedwig Maria de Farias

Rudolf Emmy Benedict Wyss Wyss Wyss

Emma Wyss-Jost

Otto Victor Wyss

Maria Fernanda Nejain de Farias

Renato Ramos de Farias Jr


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Uma história para Gret e Renato

As Memórias de Gret provavelmente começaram a ser escritas no início dos anos 1960 - pouco mais de trinta anos depois de Margaretha Wyss deixar a Suíça e chegar a Recife para se casar com o jovem pernambucano Renato Ramos de Farias. A distância temporal desses relatos em relação aos acontecimentos vividos não impediu que Gret rememorasse de maneira apaixonada episódios que marcaram sua aguda sensibilidade e a vida do casal ao longo de anos de convivência, seis filhos e muitas aventuras. Foi dessa maneira, ao tornar presentes suas lembranças e histórias de vida, que a doce e alegre Gret sinalizou de forma habilidosa o desejo de deixar para filhos e netos seu testemunho positivo dos desafios e conquistas que costumam acompanhar a travessia da vida ao lado do grande amor - nesse caso, não apenas uma travessia simbólica, como fazem todos os que amam, mas também uma travessia oceânica, que ocorre quando é preciso deixar para trás um “mar” de diferenças linguísticas, culturais e sociais, sem contudo distanciar-se ou tornar-se indiferente às próprias raízes.

As Memórias, entretanto, deixam no ar inquietantes indagações sobre seus protagonistas: quem foram individualmente Gret e Renato antes de começarem, em Pernambuco, sua parceria de vida inteira? Quais eram suas origens, valores, crenças e aspirações? Qual foi a dimensão das lutas, sonhos e projetos que empreenderam, transformaram, ajustaram ou mesmo abandonaram em face da dinâmica da vida ou das profundas transformações no mundo e no nosso país ao longo do borbulhante século 20? Foram as respostas a essas perguntas que orientaram o percurso -― necessário e prazeroso - que fizemos aqui, em busca de uma história de Gret e Renato.

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As Memórias de Gret provavelmente começaram a ser escritas no início dos anos 1960 pouco mais de trinta anos depois de Margaretha Wyss deixar a Suíç

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RENATO, GRET E FAMÍLIAS No dia 7 de agosto de 1923, aos 22 anos de idade, o engenheiro agrônomo recém-graduado pela Escola de Engenharia de Pernambuco, Renato Ramos de Farias, embarcava no navio de passageiros João Alfredo para o Rio de Janeiro, de onde partiria para a Europa com mais dois colegas da mesma Escola, Ismar O. de Amorim e Elpídio Rodrigues, para uma viagem de estudos. Renato havia iniciado sua formação na Escola de Agricultura de Socorro e, diante da extinção do curso, teve aprovado em maio de 1920 um requerimento feito ao governador do estado para matricular-se gratuitamente no curso anexo à Escola de Engenharia. Ao final do curso, os três rapazes ―- todos com excelente aproveitamento ―- foram contemplados com bolsas de estudo do Ministério da Agricultura para uma especialização na Europa. Naquele ano, antes da viagem Renato prestava serviços como agrônomo para a prefeitura de Buíque, e representara o município no Congresso de Agricultura do Nordeste, em janeiro de 1923. É, no entanto, em agosto que começa sua grande aventura profissional e pessoal, quando segue para o Instituto Nacional Agronômico da França e depois para a Universidade de Genebra, para uma especialização em processos industriais para produção de fermentos e laticínios,. As pegadas dessa aventura e os traços da tenacidade de Renato revelaram-se um pouco antes. Ao viajar para a capital federal, a fim de se habilitar à premiação recebida do Ministério da Agricultura ― empreitada para a qual recebeu 1 conto de réis (o equivalente a 1 milhão de réis) do governo federal ― , ele descobriu que, na premiação, havia sido preterido pelo filho de um ministro. Determinado, mas senhor de um temperamento calmo e equilibrado, conseguiu reverter a situação e recuperar o prêmio a que fazia jus.

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Filho do juiz de direito Samuel Ramos de Farias e de dona Maria José (dona Mocinha, como era conhecida), Renato tinha naquele momento, em 1923, os irmãos Esther, a mais velha, que morava no Rio de Janeiro; Salvador, dois anos mais velho que ele, e Maria Cândida, a caçula, cinco anos mais nova. O casal Samuel e dona Mocinha tiveram, entretanto, outros filhos. Ao menos três deles, já falecidos na ocasião, puderam ter sua existência rastreada em certidões e outros documentos públicos: Samuel Filho, nascido em 1896 (F.8) e provavelmente falecido na infância; Murilo, falecido em outubro de 1920, em São Paulo, e Aberardo, nascido em Caruaru, em 1904.

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epois de se despedir da mãe, em Recife, Renato seguiu para a Europa ignorando que dona Maria José, uma jovem senhora de cerca de 45 anos, estava gravemente doente, na fase final de um câncer de útero. A morte de dona Mocinha

ocorreu em 23 de agosto, quando provavelmente ele ainda se encontrava em-

barcado; por isso, a notícia o apanharia de surpresa somente algumas semanas depois, ao desembarcar na França. O ano de 1923 foi rico em experiências para Renato ― tanto boas quanto trágicas. O misto de sentimentos despertados por elas faria com que ele lembrasse o ano da morte da mãe como o da “primeira infelicidade que o abateu e que marcaria a grande mudança na sua vida”, mas também como o período em que transformou novos conhecidos em uma “quase-família”, como se referiu certa vez aos amigos feitos na pensão onde vivia em Paris. Sobre esses primeiros tempos na Europa, há poucas informações. Mas é sabido que, em 1924, Renato conhece em Genebra Margaretha Elizabeth Wyss, suíça de 19 anos, natural do cantão alemão de Oberdorf, cidade a 85 km de Zurique, onde morava sua família. Margaretha, ou Gret ― como é carinhosamente tratada pela família e pelos amigos, e como ele também passa a chamá-la ― logo encanta Renato por seu temperamento doce e suave, porém firme ― traço de personalidade que os dois pareciam partilhar. Sendo a mãe, dona Emma, descendente de prussianos, e o pai, senhor Otto Vicktor, suíço-alemão, Gret tinha mais três irmãos: Rudolf (ou Ruedy), dois anos mais velho e, tal como ela, residente em Genebra ou em alguma cidade próxima, onde se especializava como técnico agrário; e dois mais novos, Emmy e Benedict (Benny), o caçula, quinze anos mais novo que Gret. Otto, pai de Gret, técnico em galvanização (F4), era oficial de cavalaria no exército suíço e certamente não ocupava uma função subalterna na Noviles S/A (P. 17), onde trabalhava. Ao contrário, a bela casa da família, localizada em

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bairro nobre e em uma das melhores avenidas da cidade leva a supor que, se não era rico, ao menos gozava de razoável condição financeira e social na Zurique da época. Hospedada na casa de uma senhora, Madame Wallner, em Genebra, na Cours de Rive 16, Gret não trabalhava: fazia aulas de francês e tomava lições de piano na academie de musique, seguindo a formação comum das moças da época. Renato e Gret conheceram-se em um dos parques da cidade, apresentados pelo irmão dela, Ruedy, que, como técnico agrário, certamente frequentava os mesmos círculos que Renato, de quem se tornara amigo. Logo o casal começou um flerte, e, tendo os três se tornado bastante próximos, é bastante provável que Renato tenha conhecido a família de Gret antes do fim de 1924.,


Contudo, em Genebra, às vésperas do Natal de 1924, depois de deixar Gret no trem para Zurique, Renato embarca, provavelmente de um porto na França, para o Brasil. Em 10 de janeiro de 1925 já havia passado por São Paulo, estava no Rio desde a véspera e a poucos minutos de embarcar novamente, dessa vez no Ceará ― um navio de passageiros que o levaria a Recife, onde esperava chegar em cinco dias. É neste momento que Renato escreve a Gret com muito boas expectativas sobre os negócios, com planos para retornar a Europa em alguns meses e contando em se casarem já no início de 1926. Muito diferente, entretanto, é o espírito do jovem Renato no fim do ano de 1925, quando, já de volta ao Brasil e em viagem de negócios entre Recife e cidades do Sudeste, passa o Ano Novo a bordo do Comandante Alcindo. Absolutamente só, triste e aborrecido, escreve a Gret, contando que preferiu deitar cedo, às 9 da noite, a participar da festa no navio. A carta triste de 3 de janeiro

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de 1926, em que fala à Gret de seu solitário reveillón, seria a primeira de uma intensa correspondência que seria trocada entre o casal ao longo daquele ano ― o primeiro que passariam inteiro afastados desde que se conheceram ― e em que traçariam muitos planos para a vida futura.

EXPECTATIVAS Algum tempo depois do falecimento de dona Mocinha, o pai de Renato, Samuel Ramos de Farias, magistrado aposentado, anunciou aos quatro filhos ― Esther, Salvador, Renato e Maria Cândida ― o desejo de casar novamente, o que causou grande contrariedade na família, que não via com bons olhos a união e o rateio do patrimônio familiar com a nova mulher do pai. O receio se mostraria infundado, visto que Samuel Farias viveu até seus últimos dias feliz ao lado da mulher, em Goiana, cidade a 80 quilômetros ao norte de Recife, sem confli-


tos familiares. Naquela ocasião, porém, pressionado pelos filhos e certamente tentando evitar desgastes entre os seus, Samuel resolve fazer a divisão do patrimônio ainda em vida. Na França e sem poder acompanhar devidamente a partilha, Renato pede a seu irmão Salvador, fiscal aduaneiro concursado, para representá-lo e defender seus interesses. Não tendo Salvador se saído bem na administração daquela tarefa, ou talvez por não ser o patrimônio do magistrado tão apreciável a ponto de permitir uma generosa partilha, o fato é que a parte que cabia a Renato não parecia garantir ao jovem uma base financeira sólida o suficiente para alavancar sua vida profissional no regresso ao Brasil, o que lhe causava bastante apreensão. Esse sentimento se reflete na sua comunicação com Gret. Durante todo o ano de 1925 ― quando se aprofunda a relação amorosa e a correspondência entre os dois se torna regular ―, é visível a grande preocupação de Renato em garantir à futura esposa que ele será capaz de prover o suficiente para proporcionar à nova família uma vida confortável: sem luxo, mas sem sustos.

A

o longo de 1926, o afastamento prolongado naturalmente aumenta a intensidade da paixão e a ansiedade de ambos pelo casamento: única forma de pôr fim à distância. Aumenta também a angústia de Renato em

conseguir meios para realizá-lo no prazo mais curto possível. Suas cartas, embora sempre muito românticas, não deixam escapar uma única oportunidade de falar de seus esforços, de apresentar planos e projeções arrojadas e de apontar, sempre que possível, uma nova data provável para o casamento: uma maneira também de tranquilizar a noiva. Na correspondência para Gret, Renato procurava encorajar a amada, mostrando sua obstinação pelo trabalho e pelo sucesso nos negócios. Em cada carta fala dos progressos e procura comprovar as expectativas: o casamento não tardaria! Na verdade, mostrava-se bastante determinado a fazer com que suas aspirações se cumprissem e, talvez mais, bastante empenhado em mostrar que elas já eram quase realidade. Ainda quando estava na Europa, Renato se mostrava bastante positivo e obstinado com relação aos seus projetos futuros: insiste que os negócios vão bem e prosperam rapidamente, faz planos para o casamento no início do ano seguinte, 1926, “se tudo continuar como está”, e menciona bons convites de trabalho, a despeito de dizer que quer ser “patrão” e apostar em um negócio próprio ligado ao ramo da representação comercial e levando o nome da família. Mesmo planejando ter sua empresa, mostrava-se, entretanto, apaixonado

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pelo seu métier: “eu serei um dos administradores da empresa, mas continuarei com a profissão que escolhi”.


De fato, mais de uma vez Renato fala de sua empresa ― uma sociedade entre os irmãos, a Irmãos Ramos de Farias e Cia. ―, um escritório de representação com sede em Recife: negócio que ele afirma ser bastante promissor e que naquela ocasião já atende a nove empresas na França, com planos de expansão para outras regiões da Europa, inclusive a Suíça, onde Renato espera estabelecer um escritório com o apoio de Ruedy, irmão de Gret. A empresa Irmãos Farias e Cia., como de fato foi registrada, pode ter sua existência comprovada por extratos financeiros e notas sociais publicados na imprensa, eventualmente mencionando Renato como seu presidente ou dirigente; no entanto, parece não ter tido vida longa, já que em fins de 1926 Renato já não mora em Recife, e a empresa e a sociedade deixam de ser mencionadas nas cartas a Gret ou mesmo de figurar na imprensa. Ao longo de 1925, quando a empresa familiar parecia ir bem, Renato deslocou-se bastante dentro do país em função dos negócios: Campinas, São Paulo, Santos e Rio de Janeiro foram cidades regularmente visitadas. Em carta de 26 de dezembro de 1925, escrita em São Paulo, Renato conta a Gret que embora já tivesse deixado Recife havia 40 dias, ainda não estava no final da viagem: “falta ir a Campinas, retornar a São Paulo, Santos e então ao Rio, de onde espero partir para Recife, no Campos Salles, no dia 7 de janeiro. Chegando a Recife, eu terei tomado nesse final de ano cinco navios: o Meduana, o Maison, o Comandante Capella, o Comandante Alcindo e o Campos Salles. E eu não devo encerrar minhas viagens sem fazer um outro tour em seis meses”. Para Renato, as frequentes viagens se justificam pelo fato de ser esse o esforço necessário para progredir nos negócios ― esforço que cabia a ele empreender: “Eu poderia enviar meu irmão ou um empregado, mas será mais vantajoso vir eu mesmo. Os outros querem trabalhar, mas eles não conhecem as minhas necessidades em relação aos negócios, que estão em pleno progresso: espero já ter resultados na metade do próximo ano; trabalhamos bastante e nossa empresa já começa a se tornar conhecida graças a isso. Nossa representação já reúne fábricas importantes; o negócio começa a se tornar interessante e eu já espero retornos da Suíça e da França sobre nossos produtos”. Ao mesmo tempo em que traça esses ambiciosos cenários de futuro, Renato tenta proteger-se de expectativas mais audaciosas, afirmando que seus planos são, afinal, modestos, que será preciso muito trabalho e esforço para vencer, que Gret não deve ser muito exigente, ou ainda, em vista de eventuais dificuldades, que não espera riqueza, só uma vida simples e tranquila ao lado da noiva. Apesar de transparecer uma personalidade dotada de grande sensualidade romântica na sua correspondência com o noivo, as narrativas de Gret são também contidas, pragmáticas e orientadas pelas experiências simples e cotidia-

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nas ― o vestido novo, os passeios, o sentimento pelas coisas, lugares e pessoas, a ida ao teatro, os eventos familiares e sociais, as aulas de piano. Percebe-se, no entanto, que à medida que o tempo de separação se arrasta indefinidamente sem que o casamento esteja no horizonte próximo suas cartas se tornam mais angustiadas e queixosas e passam a relatar seu sofrimento psicológico e até físico. Isso acontece especialmente durante o ano de 1926, quando qualquer eventual falta de notícias causada pelo atraso na correspondência, que seguia de navio de um lado para outro, causa a Gret bastante apreensão. Como católico devoto e praticante, ex-aluno do internato do Colégio Marista do Recife nos tempos em que o pai era juiz na Comarca de Águas Belas (na época distrito de Garanhuns), Renato fala nas cartas de sua presença nas missas, da atenção à liturgia católica e de suas preces fervorosas para que os pedidos sejam atendidos. Nas cartas também, escritas sempre aos domingos ― conforme o pacto feito pelo casal ―, Renato fala com frequência na sua crença fervorosa na bondade ilimitada e no poder de Deus. Embora de família também católica e devota, Gret pouco fala nas cartas de sua prática religiosa, exceto pelas festas do calendário católico: o Natal, a Quaresma, a Páscoa. Uma única vez, entretanto, ela comenta com certo desgosto e em tom de desaprovação o namoro entre o irmão Ruedy e uma moça protestante.

O NOIVADO E OS PLANOS Os planos de casamento de Renato e Gret se alteraram algumas vezes em função das chances de progresso nos negócios de Renato, com datas que deslizam do início de 1926 ao final de 1927. Ainda assim, o noivado aconteceu no dia 30 de julho de 1925, na casa dos pais de Gret, que recebem na ocasião cerca de uma dúzia de convidados em Zurique. O compromisso, selado por um contrato pré-nupcial ―- um documento formal seguindo um modelo próprio e previamente preenchido pelo noivo ―-, teve redação final em alemão, a cargo do pai de Gret. Sobre esse noivado, o Diário de Pernambuco de 12 de setembro de 1925 (e possivelmente outros jornais brasileiros) faz uma nota e é, certamente, uma das publicações enviadas de Recife para Renato (e também para Gret, que, aliás, não lia português) por seu irmão Salvador. Na época, apesar de não existirem propriamente as colunas sociais, era comum que os nossos jornais registrassem em suas páginas principais não só notícias e grandes acontecimentos, mas também eventos comuns e corriqueiros, tais como nascimentos, mortes, noivados, casamentos e batizados, abertura ou fechamento de casas comer-

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ciais, programação das rádios, movimento dos portos, chegada e partida de passageiros e tudo mais que movimentasse minimamente a vida das cidades.


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Data

Acontecimento

1901

(04/05)

Nasce em Jaboatão dos Guararapes, Renato Ramos de Farias, filho do bacharel e juiz de Direito Samuel Ramos de Farias e Maria José de Farias (dona Mocinha). Casados em 1890, há evidências de que Samuel Ramos de Farias e dona Mocinha tenham tido outros filhos, além de Esther, Salvador e Maria Cândida, que conviveram com Renato até a velhice. Seriam esses Samuel Filho, Murilo e Aberardo, todos falecidos prematuramente, na infância ou juventude.

1905

(09/08)

Nasce Margaretha Elisabeth Wyss, em Obeldorf, cantão suíço-alemão, filha de Emma Hedwig Wyss Jost, de origem prussiana, e Otto Vicktor Wyss. Segunda filha de quatro irmãos, Gret tinha como irmão mais velho Rudolf Wyss (Ruedy) e, mais novos, Emmy Wyss e Benedict (Benny) Wyss.

1923

Agosto

• Renato segue para a Europa depois de conquistar bolsa de estudos concedida pelo Ministério da Agricultura para uma especialização na França e na Suíça. • Morre dona Mocinha, mãe de Renato.

1924 1925

Renato e Gret se conhecem em Genebra.

1926

Renato sai de Recife, onde se fixara desde a volta ao Brasil, e vai para Brejão, distrito de Garanhuns, onde passa a trabalhar como gestor da Fazenda Brasileiro.

1927

Gret sai de Genebra e se muda em fevereiro para a casa-ateliê da tia, em Soleura, onde permanece até junho, quando volta a Zurique, de onde, logo depois, parte para o Brasil, em 17 de agosto, no Flandria. Chega ao Brasil em 1º. de setembro.

Renato conclui sua especialização e fica noivo de Gret, em Zurique, em 30 de julho. Regressa ao Brasil em outubro.

(10/09)

Casamento de Renato e Gret, em Recife. Logo depois, partem para Brejão, onde passam a morar. Ficam em Brejão até o final do ano, quando Renato assume um posto no governo do estado e se mudam para Caruaru.

1928

(29/06)

Nasce Tereza Margarida Maria de Farias.

1929

(12/09)

Um pouco depois, Renato assume novo posto, novamente na região de Garanhuns. Dessa vez, eles se fixam na Fazenda São Mateus, de propriedade de Antônio Pedrosa (ou Major Pedrosa).

1930

1931

• Nasce Elisabeth Hedwiges Maria de Farias. Alguns meses depois, o casal novamente sai em mudança, dessa vez para a capital, Recife. • Em Recife, Renato adere a uma campanha pela melhoria do leite distribuído na cidade, recomendando, na Associação de Agrônomos do Nordeste, maior controle do gado estabulado e a criação de um estabelecimento oficial para higienização do leite. É o início de um trabalho que resultará, quase dez anos depois, na criação de uma associação de criadores e na construção da Usina Higienizadora de Leite. Revolução de 30. Chega a Recife em 5 de outubro. Nesse mesmo dia, Carlos de Lima Cavalcanti, apoiado por Getúlio Vargas, assume o governo provisório de Pernambuco, sendo confirmado no posto de interventor federal em novembro, logo depois da vitória da Revolução e da posse de Vargas, que começa o Governo Constitucionalista no país.

(26/07)

Nasce Renato Ramos de Farias Júnior, na Fazenda São Bartolomeu, em Jaboatão dos Guararapes. Começa o projeto de modernização do governo Carlos de Lima, visando à oferta de serviços públicos em saúde, abastecimento e educação. É criada a Diretoria de Produção Animal, vinculada à Secretaria de Agricultura e Viação Pública.

1932

12/11

É assinado o Decreto estadual no. 160, que determina a instalação da Usina Higienizadora de Leite e, anexo, o Instituto de Zootecnia, Leite e Derivados em Recife.


1934

• Primeiro retorno de Gret e da família à Suíça depois de casada. Lá ficariam ela e os três filhos, Tereza, Beth e Renato Jr., por sete meses. Renato regressaria antes, trazendo 70 cabras das montanhas suíças para aclimatação em PE. • Chega à Recife o arquiteto Luiz Nunes, responsável, entre muitos outros, pelo projeto da Usina de Leite. 16/07

É assinada por Getúlio Vargas a Constituição de 1934, a terceira do país.

1935

• Gret regressa com os filhos da longa estada em Zurique. • Começam as obras de construção da Usina do Leite. • Morre Emmy, irmã de Gret, em decorrência de complicações no parto. • Eleito governador constitucional pela Assembleia Constituinte Estadual em 15 de abril, Carlos de Lima continua no poder em PE.

1936

Renato, que já ocupava a Diretoria de Produção Animal, ingressa como docente na ESAP, estatizada por lei estadual nesse mesmo ano.

1937

10/11

• É revogada a Constituição de 1934 e outorgada por Getúlio Vargas a Carta Constitucional do Estado Novo, que suprimiu os partidos e liberdades políticas e instituiu o regime ditatorial no país. • Renato identifica e classifica a raça Moxotó, caprino de grande rusticidade observado no vale do Rio Moxotó. • Carlos de Lima é deposto pelo Estado Novo, e, em seu lugar, é nomeado como interventor federal em PE Agamenon Magalhães, antes Ministro do Trabalho de Vargas. • Em decorrência de uma tuberculose, morre em novembro, no Rio, aos 28 anos de idade, o arquiteto Luiz Nunes.

1938

12/03

É inaugurada por Agamenon Magalhães a Usina Higienizadora de Leite em Recife. A ESAP é remanejada para Dois Irmãos, incorporando o IPA e todos os seus laboratórios, além de outros órgãos e departamentos.

1939

1º./09

Tem início a Segunda Grande Guerra.

1940

Outubro

Getúlio vai a Recife em visita oficial de propaganda do Estado Novo, inaugura várias instalações e visita outras, entre elas a UHL.

1941

1942

Começam a aparecer os primeiros problemas com a distribuição do leite produzido na UHL, tais como violação das embalagens e adulteração do produto. Nesse mesmo ano, a UHL recebe (em dezembro) a visita do Ministro Salgado Filho, que é ciceroneado por Renato. Agosto

Brasil assina a Carta do Atlântico, firmando um pacto de solidariedade com os Estados Unidos continental, contra ataques dos países do Eixo.

Dezembro

• É inaugurado o Parque da Produção Animal com a Primeira Exposição Nordestina de Animais e Produtos Derivados. • Ataque à base naval de Pearl Harbor, nos EUA, no dia 7

Janeiro

Brasil rompe com as nações do Eixo, que deflagram em represália, já em fevereiro, ataque sistemático às nossas embarcações. Gret ingressa como voluntária na Legião Brasileira de Assistência (LBA), criada, em agosto, para prestar assistência aos combatentes e suas famílias. A LBA é capitaneada em PE pela primeira dama, Antonieta Magalhães. Governo dá início a um movimento nacional, denominado “Batalha da Produção”, com o objetivo de fazer frente a necessidades internas e de países vizinhos de nossa produção fabril e agrícola. A UHL deixa de ser subordinada à Diretoria da Produção Animal, dirigida por Renato, e passa a ser administrada pela Cooperativa de Criadores.


1943

(08/08)

Nasce em Recife Murilo Rodolfo de Farias. Renato compra alguns hectares em Carpina e aí instala a Granja Santa Fé, onde começa a trabalhar com avicultura.

Dezembro

Apolônio Sales, ministro da Agricultura de Vargas, assina o decreto-lei 6.155, de 30 de dezembro de 1943, criando o Centro Nacional de Ensino e Pesquisas Agronômicas (CNEPA), que daria origem à Universidade Rural do Brasil (mais tarde Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ), e o Instituto Agronômico do Nordeste (IANE)

1944

É constituída oficialmente a Sociedade Nordestina de Criadores, com o objetivo de fortalecer a pecuária em Pernambuco e ter forte influência nas decisões políticas que afetassem o setor.

1945

• Fim da Grande Guerra, em setembro. • Getúlio Vargas renuncia em outubro e o Estado Novo chega ao fim. Agamenon Magalhães já havia deixado PE no início do ano, convocado por Vargas para ocupar o Ministério da Justiça. • Os problemas da UHL se agravam e os jornais começam um intenso ataque aos serviços de tratamento e distribuição do leite em Recife. A pedido do Judiciário, é criada a Comissão de Estudos do Leite, dirigida por Renato, para averiguar os problemas da usina e do serviço de distribuição do leite em Recife. • É assinado o primeiro acordo de cooperação internacional entre Brasil e Estados Unidos voltado para o ensino agrícola; esse documento dá origem à Comissão Brasileiro-Americana de Educação das Populações Rurais (CBAR)

1946

• Sai o relatório da Comissão de Estudos do Leite, recomendando a volta da distribuição do leite cru e a execução de um plano de fomento aos produtores, o que é mal recebido pela população. É proposta então a reorganização do mercado de leite, com parte dos serviços fiscalizados pela Secretaria de Educação e Saúde. • Renato deixa a Diretoria da Produção Animal em PE e é designado para ocupar no Rio ― para onde se muda com a família ― a Diretoria Nacional da Produção Animal, subordinada ao governo federal.

1947

(23/01)

Nasce Otto Benar de Farias, no Rio de Janeiro.

• No Rio, Renato torna-se o primeiro diretor do Instituto de Zootecnia do DNPA do Ministério da Agricultura, instalado na Universidade Rural do Brasil (hoje UFRRJ), e a cuidar da estruturação do IANE e da rede de pesquisas da qual o instituto fazia parte, o SNPA. • A ESAP passa a se chamar Universidade Rural de Pernambuco (URP) e, pelo mesmo decreto, é criada, entre outras estruturas, a Escola de Veterinária, que somente entra em funcionamento em 1950. • Renato representa o Brasil no I Congresso Internacional de Zootecnia, na Suíça, e recebe do governo francês a Cruz de Cavaleiro do Mérito Agrícola.

1948

É criada em Minas Gerais, pelo governo de Juscelino Kubitscheck, nossa primeira entidade civil de prestação de serviços e consultoria técnica para obtenção de crédito rural, Associação de Crédito e Assistência Rural (ACAR).

1949

• Renato volta para Recife, continuando à frente do DNPA e da estruturação da rede de pesquisas da qual fazia parte o IANE. • Gret ingressa no Movimento Bandeirante, que chega a Recife.

1950

• Depois de várias tentativas infrutíferas de solucionar os problemas da UHL e da distribuição do leite em Recife, a Usina suspende suas atividades por tempo indeterminado. • À frente do Departamento Nacional da Produção Animal (DNPA) do Ministério da Agricultura, Renato cria o Conselho Nacional da Avicultura. • Tereza fica noiva de Andre Guye, na Suíça. • Gret e quatro dos filhos (Tereza, Beth, Murilo e Otto Benar) embarcam para a Suíça em maio, preparados para passar uma longa temporada. A estada na Europa se prolonga por onze meses, com a viagem de Gret e Renato ao Egito e passagens do casal por Roma e Amsterdã.


1951

• Gret e os filhos estão de volta a Recife, em abril. Tereza vem com o noivo, Andre, e sua irmã May. • Casa-se em maio Tereza, a primogênita, com o suíço Andre Guye. Logo depois a família se muda para Curado, onde fica a sede do antigo IANE, agora IPEANE, cuja direção Renato assume e onde fica até 1960. (17/11)

1952 1953

Nasce Carmen Bernadette Maria de Farias, em Curado. É criado o Escritório Técnico de Agricultura Brasileiro-Americano (ETA), agência binacional duplamente subordinada ao Ministério da Agricultura e ao Foreign Office dos Estados Unidos, especialmente para gerir convênios de cooperação mútua no âmbito das atividades do Ministério da Agricultura. Um desses convênios, o Projeto ETA no. 40, dirigido por Renato, tinha como meta a formação de pessoal habilitado a trabalhar com as populações rurais e resultou na criação do Centro Regional de Treinamento do Nordeste (CETREINO).

1956

• Renato e Gret voltam à Suíça para uma breve visita à família. • A URP é federalizada, e, subordinada ao Ministério da Agricultura, passa a chamar-se UFRP.

1957

Em abril nasce Georges, o primeiro neto de Renato e Gret, primogênito de Tereza e Andre Guye.

1958

Em 12 de janeiro nasce em Morelia, México, Margareth Erendira, filha de Beth e José Alvarado Veja. Gret vai para o México dias antes, para acompanhar o nascimento da primeira neta.

1959

• Nos primeiros dias do ano, Beth regressa ao Brasil com a filha, oficializando em seguida a separação. • Renato é designado porta-voz brasileiro no I Congresso Internacional de Agricultura, em Israel

1960

• Renato fomenta a criação da primeira associação de avicultores do estado, o Clube do Galo de Pernambuco. • Casam-se em Recife Renato Ramos de Farias Jr e Maria Fernanda Nejaim.

1961

• Chega ao fim, em dezembro, o acordo de cooperação binacional entre Brasil e Estados Unidos para atividades no âmbito do Ministério da Agricultura, e o ETA encerra suas atividades. • Renato deixa a direção do CETREINO e também a do IPEANE, no Curado.

1962

• Em junho, Renato ocupa a cadeira de Reitor na UFRP, onde permanece por dez meses, até abril de 1963. • Antiga Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária de São Bento, cellula mater da UFRP, comemora 50 anos.

1963

Renato ganha o prêmio Moinhos Recife, conferido pela empresa Grandes Moinhos do Brasil à personalidade de maior destaque na batalha pelo desenvolvimento da agricultura, pecuária e avicultura da região.

1965 1966

Morre em Zurique Emmy Wyss Jost, mãe de Gret Renato se aposenta como Professor Emérito na UFRP Março

Morre em Recife Otto Vicktor Wyss, pai de Gret

1967

A UFRP passa a integrar o sistema federal de ensino superior subordinado ao Ministério da Educação como Universidade Federal Rural de Pernambuco ― UFRPE.

1969

Renato recebe a visita de Jean Ziegler, membro do parlamento da Suíça, que viera avaliar a viabilidade de uma proposta de convênio de colaboração técnica e financeira entre os dois países, apresentada pela UFRPE.

1970 1972

Casam-se, na Suíça, Murilo Rodolfo e a francesa Monique Lambert Renato vende a Granja Santa Fé, em Carpina. Agosto

Morre em São Paulo, Rudolf Wyss (Ruedy), irmão de Gret



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Despedida da casa materna

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Viagem para o Brasil ra uma segunda-feira e eu podia sentir o tênue calor de um típico início de tarde wwde agosto, enquanto aguardava, no corredor de casa, sentada sobre a bagagem, o carro que me levaria à estação. Chegava a hora de partir, e a cada minuto ficava mais difícil desistir. Será que eu queria mesmo desistir? Os bilhetes de Zurique para Basileia e de lá para Amsterdã, bem como o passaporte, já estavam na bolsa de mão. Algum dinheiro para usar durante a viagem, também. Notas de maior valor iam junto ao corpo, num saquinwho amarrado à cintura, escondido sob o vestido. Como se estivesse presa num sonho, sem pensar, vesti meu casaco e coloquei um pequeno chapéu esportivo na cabeça. Nesse momento, mamãe apareceu para dar ainda alguns conselhos valorosos, mas, àquela altura, por demais prolongados: “Tenha muito cuidado”, disse ela. “Muitas pessoas não são boas como parecem. Converse gentilmente, mas se alguém passar dos limites, responda com um soco na cara”. A cabeça já andava cheia de “bons conselhos”, porque na véspera, na despedida das amigas, das colegas, dos conhecidos e vizinhos e até dos comerciantes locais que minha família frequentava — enfim, em todos os lugares onde eu era conhecida — recebi conselhos. Ora as pessoas me abraçavam emocionada e com lágrimas nos olhos, desejando muita casar na Suíça; outras, que não daria certo, porque o noivo era “moreno” e eu poderia ter muitos problemas. Nada disso foi capaz de mudar minha por mim e depois confirmado pelas últimas informações que meus pais haviam recebido..

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Era uma segunda-feira e eu podia sentir o tênue calor de um típico início de tarde wwde agosto, enquanto aguardava, no corredor de casa, sentada sobre a bagagem, o carro que me levaria à estação. Chegava a hora de partir, e a cada minuto ficava mais difícil desistir. Será que eu queria mesmo desistir? Os bilhetes de Zurique para Basileia e de lá para Amsterdã, bem como o passaporte, já estavam na bolsa de mão. Algum dinheiro para usar durante a viagem, também. Notas de maior valor iam junto ao corpo, num saquinwho amarrado à cintura, escondido sob o vestido. Como se estivesse presa num sonho, sem pensar, vesti meu casaco e coloquei um pequeno chapéu esportivo na cabeça. Nesse momento, mamãe apareceu para dar ainda alguns conselhos valorosos, mas, àquela altura, por demais prolongados: ― “Tenha muito cuidado”, disse ela. “Muitas pessoas não são boas como parecem. Converse gentilmente, mas se alguém passar dos limites, responda com um soco na cara”. A cabeça já andava cheia de “bons conselhos”, porque na véspera, na despedida das amigas, das colegas, dos conhecidos e vizinhos e até dos comerciantes locais que minha família frequentava — enfim, em todos os lugares onde eu era conhecida — recebi conselhos. Ora as pessoas me abraçavam emocionada e com lágrimas nos olhos, desejando muita sorte e felicidade, ora demonstravam tristeza e aproveitavam para dizer que não apreciavam minha ida para o Brasil; algumas diziam que era uma ingratidão deixar os pais e ir para tão longe, quando eu podia muito bem casar na Suíça; outras, que não daria certo, porque o noivo era “moreno” e eu poderia ter muitos problemas. Nada

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disso foi capaz de mudar minha convicção: o que valia era o bom caráter de Renato, meu noivo, já sabido por mim e depois confirmado pelas últimas informações que meus pais haviam recebido.

E

ssas críticas às vésperas da viagem me irritavam bastante, e isso não passou despercebido pela minha mãe, que observou: ― “Não se aborreça. Eu sei a educação que você recebeu; além disso, você sempre demonstrou

muito equilíbrio no seu comportamento. Com muita confiança e respeito, tudo irá bem. Deus vai proteger vocês”, disse ela com um carinhoso beijo de boa noite. O som estridente da campainha interrompeu repentinamente meus pensamentos, avisando da chegada do motorista. Apanhei a bolsa e per-

cebi que meus pais e irmãos ― Ruedy, o mais velho, e Emmy, mais nova que eu, ― já me aguardavam. Eles me acompanhariam até a estação. No caminho, ao passarmos pela rua principal, Emmy pediu ao motorista que parasse um instante e, abrindo a porta para saltar do carro, dirigiu-se a mim: ― “Despedidas para mim são um sacrifício. Eu desejo muita felicidade e muita coragem a você”. Dizendo isso, deu-me um beijo e desceu rapidamente do táxi, desaparecendo entre os passantes. Ficamos todos surpresos, mas mal pudemos esboçar uma reação, porque já víamos as luzes da estação e as vitrines dos grandes magazines ― o Seidengrieder, o Franz Carl Weber e outros conhecidos em toda a Europa. Com um aperto no peito, me perguntei: “quando vou ver isso de novo?” Na estação, um representante da agência Cook nos levou ao compartimento reservado. Ruedy me acompanharia até Basileia, última cidade na Suíça. Restava me despedir de meus pais, que fizeram silêncio solene. Meu pai, um homem grande e bonito, de belos olhos azuis, ficou pálido e, com a voz embargada, deu-me a benção: ― “Que Deus a proteja, minha filha”. Minha mãe rapidamente enxugou as lágrimas, esboçou um sorriso e me desejou muitas felicidades. Da janela do trem, eu ainda acenava enquanto os via desaparecer lentamente, junto com as luzes da estação...

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geiros impacientes para chegar ao destino, observei que um jovem de mais ou menos 25 anos olhava minha malinha com interesse. Ele percebeu minha curiosidade e me cumprimentou, apresentando-se como Werner Braun, suíço e, como eu, a caminho de Pernambuco. ― “Quando vi a mala e o destino, fiquei contente”, disse ele, que explicou estar indo trabalhar no consulado suíço em Pernambuco. Werner Braun e eu conversamos até o trem entrar numa estação. Ele quis saber se já era Amsterdã. ― “Não sei. É melhor perguntar ao bilheteiro”, respondi. Braun, contudo, não se mexeu e resolvi eu mesma procurar o funcionário. Fui informada de que estaríamos em Amsterdã daí a vinte minutos. Voltando ao compartimento, pedi para Werner Braun alcançar mi-

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nha mala na rede. Ele então perguntou onde eu ficaria na cidade, já que o Flandria deixaria o cais apenas no dia seguinte. Disse a ele que a agência Cook já havia reservado um quarto no Van Dam Hotel e que uma pessoa credenciada estaria esperando por mim na estação. Werner Braun achava que seria mais apropriado que eu me hospedasse no seu hotel, o Schweizerhof, mas isso não havia sido combinado com meus pais e eu não mudaria o combinado. Logo na saída do trem, um homem com o distintivo do hotel se apresentou e conduziu-me a um táxi que nos levaria ao Van Dam Hotel. Chegando lá, tomei um banho refrescante e desci para a sala de refeições. Qual não foi minha surpresa ao saber que naquele hotel só serviam o café da manhã!

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