Arquitetura e Direito Penal: Liberdades Articuladas

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Marie Martins Henry


APRESENTAÇÃO 2

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APRESENTAÇÃO Por: Marie Martins Henry Orient. Monografia: Profa. Denise Polonio Orient. Projeto: Prof. Marcelo C. Barbosa

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Universidade Presbiteriana Mackenzie Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Trabalho Final de Graduação

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ARQUITETURA E DIREITO PENAL: LIBERDADES ARTICULADAS


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Carlos Drummond de Andrade

APRESENTAÇÃO MUNDO GRANDE


Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor. Nele não cabem nem as minhas dores. Por isso gosto tanto de me contar. Por isso me dispo, por isso me grito, por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos.

Renascerão as cidades submersas? Os homens submersos - voltarão? Meu coração não sabe. Estúpido, ridículo e frágil é meu coração. Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas. (Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que homens se comunicam.)

Sim, meu coração é muito pequeno. Só agora vejo que nele não cabem os homens. Os homens estão cá fora, estão na rua. A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava. Mas também a rua não cabe todos os homens. A rua é menor que o mundo. O mundo é grande.

Outrora escutei os anjos, as sonatas, os poemas, as confissões patéticas. Nunca escutei voz de gente. Em verdade sou muito pobre.

Tu sabes como é grande o mundo. Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão. Viste as diferentes cores dos homens, as diferentes dores dos homens, sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem... sem que ele estale. Fecha os olhos e esquece. Escuta a água nos vidros, tão calma, não anuncia nada. Entretanto escorre nas mãos, tão calma! Vai inundando tudo...

Outrora viajei países imaginários, fáceis de habitar, ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio. Meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem. Entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notícia de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias, entre o fogo e o amor. Então, meu coração também pode crescer. Entre o amor e o fogo, entre a vida e o fogo, meu coração cresce dez metros e explode. - Ó vida futura! Nós te criaremos.


APRESENTAÇÃO AGRADEÇO

Agradeço à minha família que, portuguesa e muito unida, me ensinou a importância do domínio da fala e do argumento em conversas dinâmicas nos jantares de Natal, regados a bacalhau e vinho do Porto. Aos meus avós do lado francês, agradeço pela música e pelo amor aos livros em momentos de união frente à lareira. Minhas raízes imigrantes fazem ver, com outros olhos, a importância do meu país, Brasil – acolhedor e potente. Acima de tudo, agradeço à minha mãe, ao meu pai e à minha avó Alice, cujos esforços intermináveis me proporcionaram as experiências acadêmicas mais preciosas que tenho e as vivências mais importantes para meu crescimento. Sem vocês e sem seu apoio, esse trabalho não seria possível. Agradeço aos meus amigos e amigas que estiveram comigo antes e durante essa jornada. Vocês me deram a força que muitas vezes eu não tive, a paciência e o acolhimento que eu precisei e, acima de tudo, vocês foram o meu respiro. Agradeço à minha orientadora, Denise Polonio, que elevou o título não apenas à orientação acadêmica dessa monografia, mas a todas as indagações, labirintos, desafios e resoluções que esse trabalho trouxe em âmbito pessoal. Denise, obrigada por abraçar esse projeto junto comigo e ser meu porto seguro, em todos os momentos. Sua força e originalidade acrescentaram a esse trabalho o toque de coragem que ele, muitas vezes, precisou. Agradeço ao meu orientador de projeto, Marcelo Barbosa, que, com sua mente criativa e destemida, sempre buscou me relembrar que Beleza e Ativismo podem, sim, caminhar lado a lado. A Arquitetura bela também traz, em si, um discurso coerente. Obrigada, Marcelo, por me ensinar com insistência e imaginação. Agradeço aos professores e professoras da FAU-Mackenzie que me acompanharam ao longo da minha graduação e, direta ou indiretamente, ajudaram a formar as primeiras ideias e conceitos desse trabalho. Obrigada por abraçarem, com

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paciência, minhas indagações furtivas no sobe e desce das escadas, no bosque ou na saída das catracas. Vocês são, com seus toques pessoais de magia, provocação e inteligência, os grandes responsáveis pelo amor que tenho por nossa profissão. Agradeço ao corpo do ITTC (pela Viviane Balbuglio), à Pastoral Carcerária (pelo Pedro Rivelino), aos diversos setores da Defensoria Pública de São Paulo (pela Michele Rosa, Leonardo Biagione e Yara Toscano), à advogada Hilem Oliveira e à professora Bruna Angotti (Direito-Mackenzie), que se colocaram à disposição para explicar seus processos, compartilhar informações e sonhar junto comigo. Vocês tornaram mais acessíveis conhecimentos resguardados e trouxeram novo fôlego à minha esperança na gestão pública. Agradeço à Tempestade, Crique, Dona Cacilda, Verônica e Vânia que me acolheram com doçura e me contaram suas histórias. Vocês foram essenciais não apenas na fundamentação das experimentações de projeto nesse trabalho, mas em meu crescimento pessoal e na admiração que tenho por cada uma e cada um. Vocês deram voz às mulheres e homens criminalizados e emudecidos – essas vozes ecoam como luta e luz nessa monografia e se expandem para muito além dela. Agradeço ao Calil e Murilo, da empresa Rewood, que não mediram esforços em sua disponibilidade e interesse, sem os quais os projetos em madeira desse trabalho jamais parariam de pé ou seriam realmente uma frente de argumento. Obrigada pelas trocas preciosas, por todas as informações e questionamentos e obrigada, acima de tudo, por me ensinarem a projetar em madeira. Agradeço ao Gian, Lelo e Fernando, fundadores do Vivenda, que construíram uma empresa antes considerada impossível e que me ensinaram que a diferença entre um sonho e a realidade é a coragem que devemos ter de dobrar as mangas e trabalhar. À toda a equipe da empresa, meus colegas, obrigada por compartilharem comigo o sonho de um Brasil mais justo.

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ARQUITETURA E DIREITO PENAL: LIBERDADES ARTICULADAS


APRESENTAÇÃO

Este é um trabalho cujo processo de escrita foi um grande exercício não apenas de disciplina e dedicação, mas de um diálogo interno muito verdadeiro. Para além do que queria dizer enquanto arquiteta e ativista contra o encarceramento em massa, precisei ser muito sincera com o que eu estava preparada para vivenciar como ser humano. Foi encontrando a força mais particular que pude conhecer a força em cada uma das pessoas com quem cruzei ao longo dessa intensa caminhada. Quando nos propomos a escavar fundo as nossas verdades (que nem sempre serão as mesmas para todo mundo, claramente), corremos o risco de nos envolvermos tanto que acabamos seguindo lado a lado com a vulnerabilidade, o medo, a autocrítica exagerada – seja porque essas verdades se confirmam, seja porque elas se perdem no caminho. Não é um processo fácil e tampouco somos preparados para isso. A importância do TFG enquanto processo de autodescobrimento pode trazer, para quem se propõe a enfrentá-lo além das objetividades, uma nova forma de enxergar os desafios que aceitamos ou que a vida nos traz, sem pedir permissão. O processo de escrever, desenhar, conversar, expor-se e sentir tudo que é possível sentir, foi, para mim, a parte realmente mais preciosa de todo esse trabalho. Por isso começo escrevendo sobre a beleza de cons­truirmos nossas próprias verdades, afinal, foi o primeiro grande gesto dessa monografia. Com essa introdução de boas-vindas, procuro, na mais ínfima

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apresentação


escala do particular que foi a minha vivência, tocar a verdade e o processo de cada um e cada uma que se interessar por esse trabalho – de infinitas mãos e potentes desejos. Meu pai uma vez me disse que a universalidade da história de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, era a sua capacidade de ser honestamente pessoal. Talvez, de fato, a fórmula para se comunicar seja essa: a de, ao conhecer a verdade em si, poder tocar a verdade no outro. Essa monografia, vai, portanto, contar objetiva e afetuosamente sobre todo o processo que foi o TFG, ilustrando com pesquisas e vivências o que, na verdade, são questionamentos acerca das consequências causadas pelo encarceramento em massa no Brasil (um dos elefantes brancos do nosso país) e dos novos papéis a serem ensaiados pela Arquitetura e Urbanismo. Não acredito que nessas páginas possa haver a resposta para qualquer pergunta. Não há grande certeza ou solução – apenas indagações propositivas que talvez possam servir de aporte para novos caminhos, novos olhares. O resultado projetual e estético são as marcas deixadas por aqueles com quem me encontrei e ao quais eu agradeço imensamente.

No mais, espero que aproveitem essas páginas. São nossas.

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apresentação


Metodologia de Escrita e Raciocínio | 16

PRÓPOSITO | 18 PENSANDO ARQUITETURA E URBANISMO | 23 1_Estudos e Reflexões: Projeto | 23

1.1_O Papel do Arquiteto | Coordenador | 27

1.2_Biofilia, Conectividade e Espiritualidade | 31

SUMÁRIO

1.3_Participação e Pertencimento | 35

1.4_Estratégias de Manutenção para Habitação Social na América Latina | 37 1.5_A Geometria do Controle | 39

2_Estudo de Caso Metodológico: A comunidade em Mexicali, México | 43 ESTUDO DO QUEM: SISTEMA CARCERÁRIO E RECORTE DE GÊNERO | 55 3_Nós | 59

4_Sistema Prisional Feminino Brasileiro: Origem Histórica | 63

5_Sistema Prisional Feminino Brasileiro: Origem Moral (e resistência) | 67 6_Sistema Prisional Feminino Brasileiro: Maternidade, Leite e Ferro | 77 7_Sistema Prisional Feminino Brasileiro: Dados | 85 8_Tempestade e Crique | 97 9_Dona Cacilda | 103 10_Verônica | 107

11_Michele Rosa | 111


PROJETO | 65

ESTUDO DO ONDE: TERRITÓRIO | 66 12_A Escolha do Terreno | 121

ESTUDO DO COMO: MATÉRIA PRIMA | 131 13_Desenvolvimento Sustentável: Pensar novas possibilidades | 133 14_Ida à Rewood + Pesquisa Teórica | 137 ESTUDO DO QUÊ | 145

COMPLEXO HABITACIONAL | 159 15_Intenção de Projeto | 161

16_Orçamento: Habitação Social Em Madeira | 82 17_Orçamento: Conclusão | 175

COMPLEXO INSTITUCIONAL | 185

18_Estudo de Caso Urbano: O Processo de Transformação de Medellín, Colômbia | 197 19_Estudo de Caso Institucional: As Unidades de Vida Articulada (UVAs) | 91 19.1_UVA El Paraíso | 201

19.2_A participação de arquitetos e urbanistas na constituição de Medellín | 207 20_ Intenção de Projeto | 211

21_Liberdades Articuladas | 229 22_Bibliografia | 235


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“A Luta”| Santarosa Barreto

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ELES LUTAM HÁ MAIS TEMPO

LUTAR QUE VÃO DIZER QUE

DIZER QUE ELES É QUE SABEM

FORÇA PARA LUTAR QUE VÃO

VÃO DIZER QUE VOCÊ NÃO TEM

SABE O QUE É UMA LUTA QUE

VÃO DIZER QUE VOCÊ NÃO

EXIGEM QUE VOCÊ LUTE QUE

QUE DEVE LUTAR E NÃO COMO

APRESENTAÇÃO

LUTE A LUTA COMO VOCÊ ACHA


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“A Luta”| Santarosa Barreto

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SUPOSTOS DONOS DA LUTA

QUE ELES ESTÃO LUTANDO OS

ESTÁ LUTANDO A MESMA LUTA

QUE VÃO DIZER QUE VOCÊ NÃO

DIZER QUE VOCÊ NUNCA LUTOU

VOCÊ NÃO SABE LUTAR QUE VÃO

SE LUTA QUE VÃO DIZER QUE

DIZER QUE NÃO É ASSIM QUE

DESISTIR DA LUTA QUE VÃO

DIZER QUE É MELHOR VOCÊ

DO QUE VOCÊ LUTA QUE VÃO


METODOLOGIA DE ESCRITA E RACIOCÍNIO

Este trabalho está dividido em dois eixos temáticos – Propósito e Projeto – sendo o segundo a concretização das principais indagações do primeiro. Em Propósito serão abordadas, primeiramente, questões acerca do papel do arquiteto e urbanista atualmente, pois estudos sobre novas metodologias de projetar levam a novas metodologias de aprender. Reaprendendo a aprender, podemos estar abertos a novas formas de pensar o que parecia estar congelado – no caso da Arquitetura e Urbanismo, o processo de projeto. No segundo momento de Propósito (o capítulo Estudo do Quem), um estudo extenso – teórico e prático – acerca da realidade do encarceramento em massa no Brasil, com um recorte para o gênero feminino, permitirá compreender e humanizar as mulheres criminalizadas, vítimas de um estigma eterno. Acima de tudo, a importância do capítulo Estudo do Quem, e suas diversas ramificações, se dá na imersão do contexto do usuário final selecionado para esse projeto: as mulheres egressas do sistema prisional que, mais do que desamparadas, são mulheres sobreviventes, vivas, potenciais e que merecem ser ouvidas. Ir a campo, entrevistar e pesquisar é a aplicação da metodologia de desenho e escrita proposta nesse trabalho e retomada ao longo do mesmo. O segundo eixo – Projeto – é como mencionado anteriormente, as ações propositivas frente às questões apresentadas em Propósito. O próprio movimento do projetar, dinâmico e complexo, acaba por trazer consigo, consequentemente, novas indagações. Dessa forma, subdivide-se em Estudo do Onde (território) e Estudo do Como (materialidade), com diversas pesquisas e experiências circunscritas aos subtemas, apresentando distintos estudos de caso. Para cada nova questão se fazia necessário um estudo teórico e uma aplicação prática. Após os estudos do “Quem”, “Onde” e “Como”, apresenta-se o projeto propriamente, no capítulo Estudo do Quê, cujos subitens evidenciam as intenções de desenho e estudos de caso complementares. O organograma elaborado ao lado ilustra o processo do trabalho.

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metodologia de escrita e raciocínio


PRÓPOSITO

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PROJETO

ARQ.URB

QUEM?

ONDE?

COMO?

METODOLOGIA

MULHERES EGRESSAS

ZONA SUL

MADEIRA

O QUÊ?

HABITAÇÃO

TRABALHO

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propósito

ROPÓSIT ROPÓSITO

PROPÓSITO


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propรณsito


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PENSANDO ARQUITETURA E URBANISMO RECORTE DE GÊNERO


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APRESENTAÇÃO “A maior parte do tempo, os problemas com habitação social inovadora, não são as soluções técnicas, sociais ou mesmo financeiras: elas são quase sempre políticas” (SALINGAROS et al., 2019).


ESTUDOS E REFLEXÕES: PROJETO Processo de desenho e processo de escrita, para a Arquitetura e o Urbanismo, apesar de abordagens distintas, encontram-se no mesmo fim: falar sobre algo e se explicar. São métodos dialéticos, inalienáveis e que jamais conseguirão tratar de uma realidade plural sem apoio mútuo. O mesmo ocorre entre um projeto arquitetônico e as pessoas que o constroem ou que farão a sua gestão, quando estiver acabado. E o mesmo ocorre se a linguagem estética do projeto não estiver alinhada à cultura estética da população que pretende atender. Conceber arquitetura deve estar atrelado, em suma, ao seu entendimento escrito, construtivo, orçamentário, utilitário, sensorial e gestionário.

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A proposta deste trabalho é de articulação entre diferentes frentes – iniciativa privada, poder popular e poder público – em busca da possibilidade de que sejam concebidas soluções arquitetônicas coerentes com a realidade. Personalizadas pelas usuárias, direcionadas pelas determinações técnicas da indústria e lideradas pela administração e manutenção estatal, todas as frentes serão apresentadas a partir de uma mesma metodologia de projeto: pensamento conjunto, conhecimento empírico e pesquisas. Além disso, unir essas frentes, muitas vezes antagônicas e em embate, é compreender que a resolução de questões estruturais pode ser feita, também, pela conexão de peças em conformidade com o sistema vigente, “(...) juntando financiadores e facilitadores de uma forma inesperada” (SALINGAROS et al., 2019). Esse movimento complexo e pouco confortável, requere o reconhecimento de um trabalho não linear, mas multivariado e de soluções inevitavelmente culturais. Acima de tudo, não se deve jamais perder de vista a peça que une todas as frentes: o usuário final – neste caso, as mulheres e mulheres mães egressas do sistema prisional. Para iniciar a integração dessas frentes, se fez necessário o entendimento profundo do papel da Arquitetura e do Urbanismo enquanto mediadores, buscando, portanto, referências em metodologias para projetos públicos emancipadores de seus usuários, de forma responsável e estratégica, levando em conta o contexto particular da América do Sul. Foi assim que encontrei os estudos de Nikos A. Salingaros (matemático e polímata australiano), David Brain (arquiteto e professor norte americano), Andrés M. Duany (arquiteto e urbanista cubano – responsável pela elaboração de novas propostas para a reconstrução das casas destruídas pelo furacão Katrina, no Golfo do México),

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Michael W. Mehaffy (urbanista, teórico da arquitetura, filósofo urbano, pesquisador e educador norteamericano) e Ernesto Philibert-Petit (arquiteto mexicano). Em uma série de 15 artigos escritos a partir de experiências empíricas desses arquitetos ao longo de suas carreiras profissionais, discorre-se acerca de métodos de pensamento, abordagem e efetiva construção de habitações sociais na América Latina, todos inspirados pelo livro Uma Linguagem de Padrões (A Pattern Language), escrito pelo arquiteto, matemático e urbanista vienense Christopher Alexander, atual presidente do Center for Environmental Structure e professor de Arquitetura da University of California, Berkeley. Em seu livro, Alexander constrói cerca de 253 padrões (elementos de linguagem) condensados em oito anos de trabalho empírico e teórico, cujas proposições indicam e exemplificam novos parâmetros de metodologia e desenho de projeto. Cada padrão descreve um problema contextualizado repetido inúmeras vezes, seguido de reflexões acerca de pontos centrais da solução, sem jamais ser necessário repeti-la da mesma forma. Chamar de linguagem pressupõe a junção desses padrões em rede, não sendo necessária apenas uma linha de aplicação. Essa ideia permite utilizá-los em diferentes contextos, entendendo que nenhum padrão é uma entidade isolada. Tampouco se faz necessária a utilização de todos os 253 padrões. Como exemplo, temos o Padrão 117: Lugares com Árvores – “As árvores são necessárias para o ambiente humano e o seu plantio deve ser cuidadosamente pensado para cooperar com os edifícios próximos e definir um espaço urbano coerente” (SALINGAROS, 2019 apud GEHL, 1996). As árvores se combinam com a geometria dos caminhos e as paredes externas para definir o espaço urbano, cujas dimensões e estrutura de caminhos convidam ao uso. Uma Linguagem de Padrões (A Pattern Language) é uma compilação, acima de tudo, de formas de entender a Arquitetura e o Urbanismo sob uma lógica “debaixo-para-cima”, ou seja, com olhar democrático e acessível. A importância do uso dos padrões não é a sua aplicação compulsiva, mas seu entendimento como base e adaptação colaborativa para um local particular – são uma compilação de inteligência coletiva da civilização em séculos de aperfeiçoamento. Tal inteligência está relacionada com a maneira como o ser humano opera em suas relações com a forma construída e seus valores morais, desejos e convivência social. É um desenho capaz de liberar o indivíduo ao suprimir alguns dos mais lucrativos e desumanos aspectos da indústria da construção. Os estudos de Alexander e, consequentemente, de Salingaros, Brain, Duany, Mehaffy e Philibert-Petit foram fundamentais não apenas para nortear minha forma de concepção de projeto, mas, também, para que entendesse a complexidade de uma

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metodologia não convencional, que exige um outro tempo (muito mais devagar do que o tempo do capital), um olhar honesto e real (o olhar do habitante) e uma humildade para tratar esses estudos como grandes experimentações, e não soluções engessadas. Para efeito de entendimento do pensamento que pautou a metodologia de desenho e concepção do projeto, foram elencadas algumas temáticas provenientes dos 15 artigos mencionados, em pequenos textos refletivos.

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“A não ser que uma clara responsabilidade e um sistema administrativo autônomo sejam colocados, o que nós queremos ver acontecer não vai jamais ocorrer. A burocracia impessoal do governo nunca vai se incomodar em fazer um lugar vivo e humano, porque eles podem com muito mais facilidade seguir regras não-criativas de modulação e combinação mecânica. O grupo que constrói não é responsável: ele quer terminar o seu trabalho no menor tempo e com as menores alterações possíveis. Os residentes não são suficientemente poderosos para garantir um ambiente vivo. Na realidade da construção, um projeto requer um defensor com o poder de coordenar todas estas forças” (SALINGAROS et al., 2019).


O PAPEL DO ARQUITETO COORDENADOR A ideia de repensar o papel do arquiteto tem, para mim, uma importância tanto humana quanto estratégica, pois compartilho do pensamento de Alexander sobre colecionar peças semi-independentes de subversão dentro de um sistema econômico e social cruel como o capitalismo. O objetivo em reposicionar a Arquitetura e o Urbanismo dentro do mercado, ou seja, direcionar mais esforços às classes antes impossibilitadas de usufruírem do nosso serviço, segundo meu entendimento, é se valer de uma linguagem capitalista para alcançar um objetivo social de melhoria de vida, valorização de potências individuais e, aos poucos, implodir o sistema de dentro para fora. Essa é a minha visão: agir nas entrelinhas, de forma sorrateira, como o próprio sistema faz ao, por exemplo, capitalizar ideologias estampando-as em camisetas – parece que as pessoas aderem mais fácil a esse tipo de abordagem.

1.1

A visão de Christopher Alexander endossada por Salingaros, Brain, Duany, Mehaffy e Philibert-Petit parte do princípio de que o arquiteto deve ser tanto um articulador de frentes (poder público, iniciativa privada e usuário), quanto um criador de uma estética e de um processo que aproximem esse usuário de um sentimento de responsabilidade para com a manutenção da construção. Isso é, de novo, uma medida estratégica humana, mas que abarca, também, uma economia de gastos desnecessários causados pelos maus tratos que arquiteturas impessoais acabam por sofrer. O olhar do poder público sobre o arquiteto acaba se dando de forma distinta, pois, como empregador, exige do profissional uma postura propositiva, responsável pela supervisão do desenho e da construção e pela coordenação da participação do usuário, o cliente final. “Idealmente, seria uma pessoa que tivesse um entendimento profissional dessas questões e que tivesse um sentido de responsabilidade profissional independente para supervisionar a apropriada implementação” (SALINGAROS et al., 2019). Entender o usuário como cliente final implica, por exemplo, na relevância de sua avaliação como fator de pagamento ao arquiteto, tanto do processo quanto do resultado. É necessário serem consideradas as possíveis desavenças ao longo do processo, ou seja, o método de avaliação deverá ser elaborado compreendendo

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1.1


fatores humanos que vão além das relações profissionais estabelecidas. Será, inclusive, importante considerar que o arquiteto/coordenador muitas vezes poderá lidar com uma comunidade pouco organizada em termos de construção e gestão, sendo exigido dele, inevitavelmente, o papel de agregador, organizador e articulador de lideranças – um grande desafio. A experiência de aproximação do arquiteto será capaz de ajudar, consequentemente, na desmistificação de preconceitos sofridos por comunidades “periféricas” erroneamente entendidas como organismos de caos, vítimas de articulações ilegais como o narcotráfico e reduto de más políticas. No presente momento, em meio a uma crise sanitária e econômica mundiais causadas pelo Coronavírus, somadas à crise política no Brasil, a comunidade de Paraisópolis, em São Paulo, é exemplo de organização popular. Com cerca de 100 mil pessoas vivendo em barracos e casas precárias ligadas por vielas, Paraisópolis apresenta condições sanitárias que facilitam a disseminação do vírus, além de ter uma população impossibilitada de permanecer em quarentena considerando as recorrentes más condições de trabalho – informalidade e subsalários – e um governo ineficiente em prover ajuda financeira. No entanto, priorizando a saúde de seus residentes, a comunidade se organizou para tentar entender, com a maior rapidez possível, quem teria os sintomas da doença, quem precisaria de ajuda e a situação da casa de cada família (G1, 2020). 420 moradores foram eleitos presidentes de rua, responsáveis por monitorar, cada um, 50 casas. Além disso, a rede de presidentes foi capaz de identificar famílias que perderam sua renda e, com isso, organizar voluntários para lhes prepararem marmitas. Paraisópolis é exemplo recente que demonstra a força presente em certas comunidades periféricas, merecendo, portanto, respeito e dedicação por parte de grupos de arquitetos, urbanistas e demais profissionais que se propuserem a abertura ao diálogo. Mais do que conclusões e projetos pensados verticalmente, entender a potência comunitária desperta processos de projeto democráticos, direcionando ao arquiteto e urbanista a função de articulador e não mais de solucionador solitário.

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1.1


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Imagem 1: Menino ajusta máscara na comunidade articulada de Paraisópolis | Fonte: Amanda Perobelli - Reuters

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“O caráter sagrado das vilas tradicionais e dos espaços urbanos não pode ser ignorado e tratado como antiquado nonsense (como tem sido feito atualmente). Esta é a única qualidade que conecta a vila em larga escala às pessoas e, assim, indiretamente umas às outras. Nós precisamos construir isso nos espaços urbanos” (SALINGAROS et al., 2019).


BIOFILIA, CONECTIVIDADE E ESPIRITUALIDADE A Arquitetura e o Urbanismo têm o poder, o desafio e a responsabilidade de sempre buscar abordar questões de projeto de uma forma tanto mágica quanto racional, seja na escolha de materiais, quanto no tamanho de cômodos, pré-dimensionamento de estruturas etc. As pessoas devem amar os lugares em que habitam e convivem, o que significa que a forma do ambiente construído deve ser espiritual e não industrial.

1.2

Um dos padrões de Alexander, por exemplo, fala da importância da criação de espaços sagrados que vão além do sentido religioso da palavra, mas que criam conexões emocionais com o local. Um código muito observado na tradição latinoamericana é a estrutura sagrada (sem qualquer significado religioso que não o de unir as pessoas) da praça central, onde se caminha à tarde, estabelecendo um lugar de integração social. “Há muitas lições a serem aprendidas a partir da evolução das vilas individuais (os pueblos da América Latina) que têm se desenvolvido por mais de 500 anos e possuem uma rica herança, proveniente da mistura de muitas culturas que vêm de um longínquo passado, como as culturas Tolteca, Maya, Inca, Caribenha, e as culturas mais recentes como a espanhola, portuguesa, africana, islâmica e outras tantas que também foram incorporadas” (SALINGAROS et al., 2019). Esses locais que possibilitam reuniões (re-uniões) são importantes não somente por encorajarem a coesão social, mas porque possibilitam que essa seja feita de forma variada, espontânea e honesta. De certa forma, os lugares são em si as relações sociais e não apenas contentores ou facilitadores delas. Assumindo a responsabilidade de projeção de um espaço urbano, deve-se levar em conta a complexa rede de relações sociais e apropriação da morfologia urbana, não sendo nem monofuncional e nem homogênea. Ela não pode e não é construída pelo governo central sem a intermediação de agentes do território. Como aplicação desse pensamento na concepção de efetivos projetos, é, portanto, necessário observar os padrões de atividades humanas nos assentamentos e procurar os nós integradores dessa(s) comunidade(s). A conexão entre meio ambiente e valores morais perpassam questionamentos de âmbito individual e coletivo resgatados das ancestralidades por Yi Fu Tuan, geógrafo sino-americano, desde a década de 80. Foi o que Tuan chamou de

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1.2


Imagem 2: Divido entre Área Urbana e Rural, Machu Picchu, no Peru, é um exemplo de assentamento latino americano precioso para o entendimento da conformação social da cultura Inca. As áreas verdes, no centro, são as praças de encontro da comunidade – os locais sagrados do qual fala Christopher Alexander | Fonte: Acervo pessoal

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Topofilia (do grego, tópos = lugar e philia = amor/amizade) – o entendimento de que a associação entre laços afetivos e meio ambiente promove identificação pessoal com um determinado espaço (seja ele um lote, bairro, cidade ou país), gerando, consequentemente, alegrias e ideais cotidianos. Compreendendo a dimensão afetiva em pesquisas e posicionamentos práticos, segundo o autor, “Sem a auto-compreensão não podemos esperar por soluções duradouras para os problemas ambientais que, fundamentalmente, são problemas humanos” (TUAN, 1980). Tuan resgata, portanto, a sacralidade não religiosa dos espaços, uma concepção essencial para os estudos em Arquitetura e Urbanismo. Somado ao entendimento da importância do lugar físico sagrado enquanto gerador de sentimentos pessoais está a Biofilia, termo criado por Edward Osborne Wilson, entomologista norte americano e biólogo, em 1984, cuja etimologia significa “amor à vida”. Quando não conectadas com a natureza, as pessoas tendem a adquirir comportamentos hostis e é por isso que os espaços urbanos devem se misturar com ela e não a substituir. A ideia de arquitetura biofílica, explorada por Alexander e demais pensadores, parte da premissa, portanto, de que saúde e bem-estar dependem diretamente de superfícies, materiais, detalhes, luz, geometria de ambientes mais naturais, plantas e outras formas de vida. Materiais e tipologias industriais geram desconforto, tornando-nos hostis às formas e superfícies que não nos satisfazem espiritualmente, pois nos sentimos humanamente rejeitados, alheios. Grande parte da má manutenção expressiva nos prédios de habitação social vem da indiferença dos próprios residentes, causada por esses espaços industriais, “biofóbicos”.

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1.2


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“A maior parte das pessoas não têm a menor preocupação com as virtudes formais do desenho, elas só desejam alguma coisa que possam verdadeiramente considerar suas” (SALINGAROS et al., 2019).


PARTICIPAÇÃO E PERTENCIMENTO A forma de se medir o sucesso da habitação vem do maior desafio e conquista de todos: o bem-estar físico e emocional dos residentes. A questão é que muito raramente esse conforto estará vinculado aos interesses do poder público e construtoras que, acima de tudo, prezam pela manutenção de seu poder administrativo. A complexidade necessária para uma forma espacial coerente de habitação automaticamente incorpora a complexidade do processo social individual e coletivo que, ao sair da tipologia racional vigente, é sentido como um movimento de relaxamento de autoridade. E isso não pode ser permitido por quem quer a manutenção de um confortável status quo.

1.3

Pensar na participação do usuário causa um sentimento importante de pertencimento que impacta não apenas a relação daquela população específica com seu lugar de residência, mas irradia para outras diversas relações, por exemplo, do indivíduo com outras partes da cidade e com o próprio poder público. Muitas vezes, ao longo de sua carreira, Alexander foi convidado a elaborar projetos de habitação social. Em todos os casos, e muitas vezes opondo-se ao próprio memorial elaborado pelo governo que o contratara, ele insistiu na participação da população, sofrendo, em alguns casos, com a suspensão de financiamento, evidenciando como uma iniciativa efetivamente democrática parece ameaçar um controle governamental sobre a geometria do projeto. Uma forma que Christopher Alexander encontrou para conseguir licenças de governo para construir habitações mais complexas foi apresentando um processo de construção específico (um conjunto de operações construtivas, partindo de premissas claras), mas que possibilitava a geração de projetos distintos, ainda que semelhantes. Todos os produtos dessa metodologia eram, então, aprovados automaticamente, sem a necessidade de futura licença particular.

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1.3


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“A melhor solução é simplesmente um padrão com uma distinção bem definida entre as esferas públicas e privadas mais uma capacidade coletiva de tomar responsabilidade pelo espaço” (SALINGAROS et al., 2019).


ESTRATÉGIAS DE MANUTENÇÃO PARA HABITAÇÃO SOCIAL NA AMÉRICA LATINA A manutenção das construções, hoje um insucesso no que tange as habitações sociais, pelo menos em São Paulo, perpassa, para além de hábitos culturais, um sentimento de pertencimento por parte dos usuários, ideia abordada no texto anterior Participação e Pertencimento. Como um ser vivo, o tecido urbano necessita tanto de organismos que o constituam quanto de processos metabólicos que o mantenham funcionando.

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O maior problema com habitações sociais tem sido o de manutenção interna da casa em detrimento dos espaços coletivos, sem que haja uma organização popular responsável por essas áreas comuns. Recorrer a privatizações ou abandono acaba resultando em uma sociedade cada vez mais introvertida. Manter as moradias em bom estado não pode ser feito por meio da demanda de uma autoridade central com poder de expulsão caso regras não sejam cumpridas. “Manutenção” e “governança” não precisam estar conectadas e as responsabilidades podem ser partilhadas entre a gestão pública ou privada e os residentes. Os “olhos na rua” de Jane Jacobs serão efetivos se combinados com um senso de responsabilidade e confiança coletiva. Se há uma imposição de responsabilidade regulamentada apenas “de cima para baixo” (como fazem as autoridades que regulam a habitação social), a recusa popular é maior, pois anula a responsabilidade coletiva intrínseca àquele espaço.

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“De uma maneira similar à aplicação de uma nova tecnologia na produção fabril, a justificativa é sempre apresentada em termos de custos e de eficiência, mas a lógica subjacente é a lógica do controle” (SALINGAROS et al., 2019).


A GEOMETRIA DO CONTROLE Seria inocência pensarmos que o que George Orwell escreveu em seu livro 1964 não está acontecendo atualmente. “Controle” é a palavra mais sorrateira e definidora da nossa atualidade, pois, com o advento da tecnologia, tornou-se ainda mais presente e cada vez mais indetectável. O processo contínuo de controle psicológico também pode se manifestar através da Arquitetura e do Urbanismo, seja na geometria da forma (rígida e mecânica) ou no layout urbano (disposição estratégica dos edifícios e rede de ruas). Essa geometria do poder está tão presente na arquitetura militar fascista, no período da segunda Guerra Mundial, quanto nos layouts urbanos do Minha Casa Minha Vida, produtos de períodos democráticos no Brasil (imagens 3 e 4). Em edifícios de habitação, por exemplo, dispostos de forma padronizada, o controle literal se dá na capacidade facilitada e permissão concedida à polícia de fechar a entrada de um prédio, situação praticamente impossível, por exemplo, nas favelas.

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As justificativas que motivam a padronização e relativa regulação rígida dessas habitações se pautam, majoritariamente, em argumentos de economia orçamentária e maior previsibilidade de gastos: eficiência na produção e industrialização, eficiência administrativa e um suposto progresso econômico. O que ocorre de fato é uma estratégia de controle social onde a variação construtiva (e, portanto, a aceitação de manifestações individuais) é uma ameaça à ordem. Estes argumentos apoiam a ideia de que um planejamento central padronizado é tanto uma necessidade econômica quanto social. “Isso é mais uma vez o paradigma industrial e mecânico da produção linear (e o pensamento linear), que não permite que os promotores de habitação social considerem a variação, a heterogeneidade e a complexidade como elementos essenciais de seus projetos.” (SALINGAROS et al., 2019). A natureza sofre muito com as condições da geometria do poder: as formas e disposição orgânicas são, na maioria dos casos, eliminadas, dando lugar a vazios ou à replantação de árvores não nativas e em ordenação padronizada.

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APRESENTAÇÃO Imagem 3: Programa Minha Casa Minha Vida, no Acre, evidencia o controle pela padronização | Fonte: Sérgio Vale/Secom

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Imagem 4: Programa Minha Casa Minha Vida, no Acre | Fonte: Archdaily

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Imagem 5: Desenho perspectivado feito posterior à construção das casas. O desenho é resultado da construção e não o contrário|Fonte: Six Works for Six Architects. Explorations around Invisible Links, por Gian Luca Brunetti

Imagem 6: O desenho evidencia os blocos de fundação com os reforços metálicos aparentes para serem amarrados à malha do piso laje. É possível observar o tijolo de quina com quatro lados|Fonte: The Nature of Order - Book 3, Christopher Alexander (pg. 551)

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ESTUDO DE CASO METODOLÓGICO: A COMUNIDADE EM MEXICALI, MÉXICO A experiência em uma pequena comunidade na cidade de Mexicali, capital da Baja California (México), apesar de pouco conhecida e documentada, traz uma dimensão prática interessante acerca de novas metodologias de projeto, buscando a participação dos usuários tanto na concepção do desenho dos espaços, quanto na sua construção.

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Entre os anos de 1975 e 1976, Christopher Alexander foi chamado pelo governo da Baja California a construir um conjunto-protótipo de casas e edifícios comunitários. O sistema e os métodos construtivos foram desenvolvidos no local pelo arquiteto e seus alunos, buscando, na simplicidade dos passos de execução e materiais, um entrosamento emancipador da comunidade, a independência de desenhos técnicos e resultados orgânicos satisfatórios (ALEXANDER, 2004). Apesar de o passo-a-passo ser o mesmo para toda e qualquer construção no local, como na intenção da linguagem de padrões, os resultados obtidos variaram, evidenciando o trabalho orgânico das famílias na comunidade. O canteiro de obras funcionou como pequena fábrica de construção de tijolos de solocimento (CENTER FOR ENVIRONMENTAL STRUCTURE, 2019). Responsáveis inicialmente pela demarcação do layout e posição das casas, a distribuição dos tijolos também serviu como base para a fundação das construções. Os vergalhões de aço salientes dos blocos de fundação foram amarrados à malha do piso laje, sendo possível o simples despejamento do concreto (Imagem 6). Após feita a fundação, a construção das paredes começava pelos cantos, com tijolos de quina especialmente desenhados com quatro lados, de forma tal a permitir o encaixe dos tijolos ordinários com facilidade. As quinas eram, portanto, determinantes para a posição das paredes. Pranchas de madeira em U foram necessárias em todo o perímetro das casas como preparação para a primeira camada: ripas finas de madeira trançadas (chamadas em The Nature of Order, Book 3 de “basket lath”, ou seja, uma cesta de ripas). As ripas eram então grampeadas nas pranchas de um lado para o outro, criando, exatamente, uma cesta. Como toda a execução foi feita manualmente, as formas do trançado mudavam de acordo com o desejo e forma de execução de cada família e com o movimento do vento (ALEXANDER, 2004).

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Imagem 7: Foto da construção das coberturas mostrando as finas ripas de madeira grampeadas e a camada de serapilheira por cima | Fonte: Building Living Neighbourhoods

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A segunda camada construtiva buscava um isolamento térmico leve, dada a localização da comunidade. Feita de serapilheira (burlap), um tecido utilizado para fazer sacos de batata, foi grampeada na cesta de ripas, conforme observado na Imagem 7. Em cima da serapilheira, foi aplicada uma terceira camada, de tela de galinheiro, servindo, como a malha de vergalhões, para dar maior aderência e protenção à quinta camada, um concreto fino e leve, como uma casca. A quinta e última camada, moldada pela casca de concreto fino, era feita de um concreto mais grosso e pesado, capaz de aguentar as intempéries ao longo de tempo, evitando, por exemplo, possíveis infiltrações. As pranchas de madeira, responsáveis pela ancoragem da cesta, serviram, ao final da construção das casas, como cofragens (ou fôrmas) para que fossem concretadas as vigas de borda, responsáveis pela estabilidade da cobertura abobadada. O canteiro de obras assumiu, como consequência da sua importância para a comunidade, a função de espaço sagrado (SALINGAROS et al., 2019). No entanto, apesar do sucesso das habitações (até hoje pertencentes a seus donos originais), esse espaço de canteiro de obras, que poderia ter sido transformado em um espaço de encontro, não sobreviveu. O governo de Baja California, não vendo uso para o mesmo, tampouco o ofereceu à outra comunidade ou para uso privado. Abandonado, comprometeu a conexão entre as casas ao redor.

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APRESENTAÇÃO

Imagem 8: Desenho de corte vertical esquemático aproximado da cobertura, evidenciando as camadas em suas posições e espessuras | Fonte: Building Living Neighbourhoods

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Imagem 9: Desenho de corte longitudinal evidenciando as camadas da cobertura em sequência de execução | Fonte: Building Living Neighbourhoods

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Imagem 10: O canteiro de obras de Mexicali – um potencial lugar sagrado | Fonte: Building Living Neighbourhoods

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Imagem 11: Parte interna de uma das casas | Fonte: Building Living Neighbourhoods

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Imagem 12: Corredor coberto faz a transição segura entre as casas e o exterior | Fonte: Building Living Neighbourhoods

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Imagem 13: Moradores participam da construção de suas casas em Mexicali. São momentos de trabalho e comunhão | Fonte: Building Living Neighbourhoods

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Imagem 14: Moradores participam da construção de suas casas em Mexicali. São momentos de trabalho e comunhão | Fonte: Building Living Neighbourhoods

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Imagem 15: Moradores participam da construção de suas casas em Mexicali. São momentos de trabalho e comunhão. | Fonte: Building Living Neighbourhoods

Imagem 17: Uma das residências finalizadas em Mexicali. Na frenta da foto, uma fonte | Fonte: Building Living Neighbourhoods

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Imagem 16: Moradores participam da construção de suas casas em Mexicali. São momentos de trabalho e comunhão. | Fonte: Building Living Neighbourhoods

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ESTUDO DE QUEM: SISTEMA CARCERÁRIO E RECORTE DE GÊNERO RECORTE DE GÊNERO


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“Presos que Menstruam” | Nana Queiroz | Pgs. 28 e 29

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Nascera e crescera na favela e nunca tinha feito nada de errado. Conhecia, sabia, mas nunca tinha feito. E aonde a honestidade a havia levado? Sentiu raiva, um embrulho no estômago e um frio na espinha. Saiu de casa decidida. Passou no barraco do

Abriu os armários com ansiedade, derrubando as coisas pela cozinha no APRESENTAÇÃO caminho. Tirou a tampa do pote de açúcar só para constatar que também estava vazio. Lembrou que dirigia muito bem, dirigia “feito homem”, como os caras da favela gostavam de dizer. Pensou nas propostas que recebera durante a vida toda. A qualidade era muito visada pelos assaltantes, seus vizinhos, que a convidavam para fazer fugas de assalto.


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“Presos que Menstruam” | Nana Queiroz | Pgs. 28 e 29

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Valdemar antes de buscar o filho. Quando manifestou suas intenções, outro rapaz que estava no lugar protestou: - Não, ela não - e se voltou para Safira, em um apelo. - Você não precisa disso, você sempre batalhou desde novinha, desde criança. Ao que ela respondeu: - Se eu não tenho nem o que comer dentro da minha casa! Nem o amigo pode retrucar esse argumento. Assim era a vida nas favelas de São Paulo, pensou. Era assim para ele, era assim para ela. Deu uma arma para Safira. Ela respirou fundo, pensou no leite e foi assaltar.


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“É principalmente, à mulher intelectual que seu apelo final se dirige – a ela caberá a tarefa de criar os espaços e condições de autorrepresentação e de questionar os limites representacionais, bem como seu próprio lugar de enunciação e sua cumplicidade no trabalho intelectual” Prefácio – Apresentando Spivak, por Sandra Regina Gourlart Almeida.


NÓS

Falar de encarceramento em massa no Brasil é buscar entender um problema de raízes históricas pautadas não apenas no preconceito e intolerância, mas, também, na estrutura econômica e social construída pelas elites portuguesa e brasileira desde a invasão, em 1500. Em seu texto Pode o Subalterno Falar?, Gayatri Spivak, indiana e uma das maiores críticas e teóricas do século XXI, procura, por exemplo, contestar a contribuição do pensamento intelectual ocidental para a manutenção dos interesses econômicos do Ocidente. Isso significa que, o posicionamento socioeconômico delegado ao sujeito subalterno, ou seja, a quaisquer grupos colocados às margens da sociedade, é produto direto do discurso dominante, embasado pela produção acadêmica.

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Mas ao mesmo tempo em que a Academia é capaz de criar conhecimentos, participa da omissão de outros, e o que seria um conjunto de sujeitos transformadores, torna-se uma massa intencionalmente amorfa e inalcançável aos olhos de quem a observa de longe. São diversos os casos em que o sujeito pesquisador se torna transparente em sua própria pesquisa, evidenciando apenas o sujeito a ser pesquisado (o chamado “objeto de estudo”). Quando são ignoradas as particularidades de quem analisa e generalizadas as características de quem é analisado (objeto), “a recusa do sistema de signo impede o desenvolvimento de uma teoria da ideologia” (SPIVAK, 2010 [1985]). Em outras palavras, simula-se a elaboração de trabalhos sem teor ideológico e o intelectual torna-se cúmplice na persistente constituição do Outro à sombra do Eu. Ocorre, consequentemente, uma omissão da responsabilidade social transformadora do sujeito acadêmico, eclipsando quaisquer oportunidade concomitante de autoquestionamento. Entender o encarceramento enquanto um projeto das elites (econômica, intelectual, etc.) para a submissão do sujeito subalterno é, portanto, o primeiro passo essencial, mas restam muitos outros. À medida em que somos capazes de atribuir responsabilidade à máquina pública e ao sistema econômico, devemos ser capazes, também, de atribuir autorresponsabilidade, não necessariamente como geradores do problema, mas como perpetuadores do mesmo. Racismo, oportunismo, machismo, egoísmo, homofobia, estagnação, negligência, dentre outras diversas posturas, são exemplos da responsabilidade cotidiana propagadora do sistema de encarceramento do sujeito subalterno, pois, para além do crime, existem aqueles e aquelas condenados apenas por existirem do lado marginalizado da sociedade.

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A intenção desse trabalho não é apenas informar sobre a situação do encarceramento em massa no Brasil de forma impessoal, mas um chamado de mobilização a cada cidadão e cidadã que carrega, em suas ações cotidianas, a oportunidade de não perpetração do cenário fomentador da desigualdade social e econômica em nosso país. É uma proposta feita, também, ao sujeito acadêmico, para que assuma sua posição primeira de agente civil, conferindo novo sabor aos trabalhos científicos. Colocar-se em evidência enquanto sujeito transformador possibilita não apenas mudanças estruturais em nosso sistema, mas mudanças pessoais extremamente enriquecedoras. Não há, afinal, mágica maior que a transformação dos encontros. Construir uma pesquisa-relato para essa monografia é a busca pela evidenciação do sujeito pesquisador e a melhor forma que encontrei para me conectar ao sujeito pesquisado. O encarceramento no Brasil traz consigo diversas histórias de inúmeros grupos sociais que poderiam facilmente construir a liga entre Arquitetura e Direito Penal. No entanto, foi a busca de sujeito pesquisador em evidência que possibilitou meu encontro verdadeiro com mulheres e mulheres mães egressas do sistema prisional e descobrir, nelas, a essência de injustiça, beleza e força que senti que precisava aprender sobre e relatar. Para pensar uma arquitetura que atendesse verdadeiramente às necessidades das usuárias em questão, não havia outra forma senão a de me apresentar e conhecê-las. A oportunidade de aprender sobre as origens históricas da criminalização feminina, e suas consequências atualmente, possibilitou o entendimento do antes e do durante o encarceramento dessas mulheres, evidenciados nesse trabalho. O depois me foi apresentado pessoalmente por Tempestade, dona Cacilda, Crique e Verônica, histórias ricas que possibilitaram, inclusive, o entendimento da injustiça ao qual são submetidas(o) ao serem estigmatizadas(o) como “egressas(o)”. Apesar de um passado comum, são pessoas únicas em suas soluções e vivências. Os capítulos que seguem essa introdução são, portanto, um conjunto de pesquisas sobre o contexto nacional (macro) e relatos pessoais (micro), ambas peças preciosas no entendimento do cenário técnico e afetivo produzido e produtor do encarceramento em massa. Além de estudos para a concretização de um propósito, ou seja, para a criação de um projeto arquitetônico, as próximas páginas buscam a autorresponsabilidade que cada um e cada uma poderão tirar para si mesmos, de acordo com suas limitações e crenças. Somos todos responsáveis pelos contextos que nos cercam, em maior ou menor intensidade. Que esses estudos e histórias consigam tocar, profundamente, todas as nossas almas.

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“Para o Estado e a sociedade, parece que existem somente 440mil homens e nenhuma mulher nas prisões do país. Só que, uma vez por mês, aproximadamente 28mil desses presos menstruam” Heidi Ann Cerneka, coordenadora da Pastoral Carcerária Nacional para questões femininas (Trecho retirado do livro “Presos que Menstruam”, da jornalista Nana Queiroz).


SISTEMA PRISIONAL FEMININO BRASILEIRO: ORIGEM HISTÓRICA A história do sistema prisional feminino brasileiro acontece, desde sua origem, nas brechas deixadas pelas regras masculinas. É impossível pesquisar sobre justiça criminal sem enfrentar diretamente marcadores de gênero, raça e pobreza em um país que teve, por mais de 300 anos formais (e, não nos enganemos, informalmente até hoje), sua riqueza pautada na subjugação de povos negros e indígenas (FELINTO, 1995), onde a mulher esteve, sempre, um degrau abaixo.

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Embora a prisão de mulheres já fosse uma prática recorrente no Brasil, apenas a partir de 1940 o governo federal passou a reorganizar o regime carcerário, com a aplicação do novo Código Penal (ARTUR, 2009), elaborando, por primeira vez, uma diretriz legal direcionada a mulheres que cometeram crimes. No 2º parágrafo, do Art. 29º do Código Penal de 1940 está previsto que “As mulheres cumprem pena em estabelecimento especial, ou à falta, em secção adequada de penitenciária ou prisão comum, ficando sujeitas a trabalho interno”. (Vale observar aqui a palavra “especial”, pois, mesmo que sutilmente, ela evidencia a lógica social onde o normal é masculino e o especial, o fora do comum, é feminino). Seguindo essa lei, somente duas prisões femininas foram criadas: Em São Paulo, inaugurada em 1942, ficou sob administração de freiras da Congregação do Bom Pastor D’Angers até 1973. No Rio de Janeiro, foi criada a Penitenciária Feminina da Capital Federal, também administrada por freiras da mesma congregação, até 1955 (ARTUR, 2009). No Parágrafo único do Artigo 1º do Decreto sobre a criação de “Presídios Femininos”, está previsto que “somente serão recolhidas mulheres definitivamente condenadas”, o que apontava para um número feminino reduzido nas prisões, visão sustentada por um dos maiores penitenciaristas da época, Lemos Brito. No ano de inauguração do presídio em São Paulo, foram recebidas apenas sete sentenciadas. “Na organização de nossos estabelecimentos penitenciários de mulheres, todavia, não se pode lançar uma larga visada no que entenda com o trabalho, dado o diminuto número delas. Na última visita feita a seu presídio na Capital havia trinta e cinco mulheres, mas entre estas diversas processadas” (BRITO, 1943). No prazo de dez anos, a penitenciária abrigou 212 sentenciadas, o que provoca o questionamento acerca da motivação de construção desses presídios – certamente não era pela demanda. A promiscuidade, em suas diversas formas e interpretações associadas

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ao feminino, foi uma das principais pautas de discussão acerca da necessidade de se criar estabelecimentos por gênero (ARTUR, 2009). O tratamento direto com as presas ficou, desde seus primeiros anos, sob os cuidados das freiras da Congregação do Bom Pastor D’Angers e não de agentes penitenciários ou de agentes policiais, mesmo que a administração legal continuasse submetida à Penitenciária do Estado (masculina). Curiosamente, em uma época em que o governo Vargas buscava concentrar cada vez mais poderes nas mãos do Executivo, fortalecendo mecanismos de controle, punição e repressão, delega funções importantes à uma instituição religiosa (ARTUR, 2009). Esse seria mais um indício da visão moral à qual o feminino era submetido. “A fraqueza física e a superior afetividade da mulher – palavras sempre as mesmas empregadas pelos escritores – explicam atenuações que lhes são concedidas no regime de penas” (MARREY JR., 1941). Ademais, o Presídio de Mulheres em São Paulo não foi projetado para a função penal-prisional – era a antiga residência do primeiro diretor da Penitenciária Estadual, projetada por Ramos de Azevedo em 1920, nos jardins da Penitenciária do Estado. Mais uma vez, a existência nas brechas, nas sobras.

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Imagem 18: Mulheres encarceradas na primeira prisão de São Paulo | Fonte: Agência Universitária de Notícias - USP


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“A esperança de que, nas gerações futuras do Brasil, ela [a mulher] assumirá a posição que lhe compete nos pode somente consolar de sua sorte presente” Nísia Floresta Brasileira Augusta, 1853 | Projeto Memória, 2019.


SISTEMA PRISIONAL FEMININO BRASILEIRO: ORIGEM MORAL (E RESISTÊNCIA)

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As formas de aplicação de pena, enfoques legais e condutas direcionadas à punição da mulher criminosa no Brasil têm sua origem e base na moral à qual o feminino foi sistematicamente submetido ao longo da história, fato evidenciado, por exemplo, na escassez de fontes e dados bibliográficos sobre mulher e crime (SILVA, 2012), duas palavras que, por muito tempo, beiraram o antagonismo – a mulher é devota a Deus e à família. A imagem feminina aparece historicamente como pouco ameaçadora, “(...) de resto, sua criminalidade responde à sua fragilidade (...) o crime, o delito eram assuntos de homens, atos viris cometidos na seva das cidades. (...) quanto à mulher, a literatura criminal participa do mito da eterna Eva”. (SILVA, 2012 apud PERROT, 1988). Para entender, portanto, as relações desenhadas entre os estereótipos impostos à mulher brasileira, o entendimento de “crime” e associação entre essas duas ideias, faz-se necessário voltar à época de constituição do Brasil enquanto nação independente, com a Proclamação da República em 1889, e sua busca em espelhar os valores modernos europeus - a evidenciação do complexo de vira-lata de Nelson Rodrigues. No século XIX, a Europa passava por mudanças profundas em sua conformação social, religiosa e econômica – a Inglaterra, por exemplo, sofria uma crise gravíssima devido à desigualdade social causada pelos avanços da Revolução Industrial (1760 a 1860). A França ainda se recuperava da Revolução Francesa de 1789 que havia deixado o país desgovernado, sem ordem social e política. Foi nesse contexto que novas ideias, em resposta aos grandes conflitos individuais e coletivos, que surgiram pensamentos como o Positivismo francês, de Auguste Comte. O Positivismo associava o avanço moral ao avanço científico, buscando compreender as condições sociais imutáveis (a ordem) e as leis que regiam seu desenvolvimento (o progresso). Para comprovar suas ideias, Comte elabora a Lei dos Três Estados da humanidade, o primeiro sendo o Estado Teológico (quando o ser humano acreditava em deuses), o segundo, o Estado Metafísico (quando as explicações místicas já não eram suficientes e se teve de partir para um raciocínio mais lógico), e o terceiro e atual, o Estado Positivo (quando o ser humano passa a fundamentar suas teorias na observação e empirismo, buscando na naturezas as explicações sobre ela mesma). A ciência seria a responsável, portanto, por liderar essa busca em direção ao progresso (PORFÍRIO, 2020).

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O Positivismo teve, também, grande aderência de médicos e juristas envolvidos com questões criminais. Enquanto uma vertente, A Escola Clássica, definia crime a partir de conceitos legais, com enfoque nas liberdades e responsabilidades individuais, a Escola Positivista buscava justificativas científicas para o criminoso, como forma de prévia identificação e proteção da sociedade (SILVA, 2012 apud ALAVREZ, 2003). Essa influência contribuiu para a incorporação de pensamentos acerca das condicionantes entre sexo e criminalidade, com destaque para os estudos de Cesare Lombroso (1835-1909), cientista e antropólogo italiano. Lombroso é considerado um dos primeiros a realizar uma antropologia criminal ao publicar, em 1876, o livro Homem Delinqüente e, em 1893, Mulher Delinqüente, Prostituta e a Mulher Normal, onde buscava, por meio de uma análise física e sexual, identificar os tipos físicos (e morais) propensos ao crime (SILVA, 2012). Lombroso teve suas teorias embasadas nos estudos de cranioscopia do físico alemão Franz Joseph Gall (1758-1828) – método de análise do formato externo do crânio para identificar sinais comuns a uma tipologia física criminal –, na teoria da degenerescência do psiquiatra franco-austríaco Benedict-Augustin Morel (1809-1873) – crença nas degenerações enquanto desvios doentios das qualidade originais do homem sob a influência de fatores involuntários e hereditários – e na antropometria do médico francês Paul Broca (1824-1880) – crença na hierarquização linear intelectual das raças humanas por meio da medição do cérebro. A aplicação desses métodos para a tipificação do(s) criminoso(s) masculino(s) também foi utilizada para a tipificação da(s) criminosa(s) feminina(s) em estudos com mulheres presas na Itália, onde Lombroso mediu sinais físicos como o crânio, a assimetria craniana e facial, mandíbula, estrabismo, dentes irregulares, clitóris e pequenos e grandes lábios vaginais. Nessa pesquisa, uma das primeira teorias explicava a relação entre a variação física e os tipos de crime supostamente cometido, o que resultou em três classificações da mulher criminosa: As criminosas-natas, que são o tipo mais perverso de estrutura monstruosa e com caracteres masculinos; as criminosas por ocasião, que apresentam características femininas, mas com tendência para o delito por influência do macho; e as criminosas por paixão, que atuam a partir de seu caráter animalesco, movidas pela forte intensidade de suas paixões. A primeira classificação vem da ideia de que a mulher, a partir de suas características apresenta traços de criminoso-nato e, em comparação ao homem, tem o crânio mais volumoso e cérebro mais pesado, o que dá à mulher qualquer coisa de infantil e selvagem (SILVA, 2012 apud ALMEIDA, 2006).

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Não conseguindo provar a relação entre sinais atávicos e comportamentos penalmente condenáveis, Lombroso formulou, em seu livro The Female Offender, escrito em 1895, a tese da hereditariedade criminal, com a informação de que a maioria das presas tinha, em sua família, um(a) parente com antecedentes criminais. Alheias à essa teoria, as presas lésbicas e prostitutas foram colocadas em grupos diferenciados. Lombroso foi um dos grandes responsáveis pela disseminação do racismo científico, ou seja, pela criação de grupos de pessoas socialmente indesejáveis marcadas pela associação entre delituosidade e gênero, sexualidade, raça e loucura como doença mental. O processo de medicalização da loucura no final do século XIX e começo do XX no Brasil, proporcionou o diagnóstico de um perigo social: a mulher histérica (SILVA, 2012 apud ENGEL, 1997). As situações que conduziam a um resultado de histeria no caso do gênero feminino pautavam-se na esfera de sua natureza e, sobretudo, em seu gênero, pois o “doente mental do sexo masculino é visto, essencialmente, como portador de desvios relativos aos papéis atribuídos ao homem – tais como o de trabalhador, o de provedor, etc. assim, a predisposição masculina aos distúrbios mentais seria relacionada, sobretudo, às implicações decorrentes do desempenho desses papéis ou à recusa de incorporá-los (...)” (ENGEL, 1997). Na determinação da loucura/histeria feminina, priorizava-se a análise da menstruação, gravidez e do parto. A partir da conformação social da época (e atual) de que a mulher normal é inferior ao homem por ser menos inteligente e menos propensa ao crime, porém mais conectada aos seus instintos (selvagens), o crime passional foi considerado um crime típico do gênero feminino, movido por ciúmes, vingança ou motivos mais superficiais – esses últimos sendo mais relacionados à mulher prostituta. Em The Female Offender, a mulher criminosa é classificada, agora, em oito categorias: “criminosas natas, criminosas ocasionais, ofensoras histéricas, criminosas de paixão, suicidas, mulheres criminosas lunáticas, epilépticas e moralmente insanas” (SILVA, 2012). A mulher delituosa, portanto, não era considerada uma mulher normal. O Brasil do século XIX também passava por transformações estruturais ao romper com o estado português e iniciar um novo império, a Primeira República (1889 a 1930), sob o governo de Marechal Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente. O Positivismo trazido pela elite brasileira formada na França teve papel fundamental na construção dessa nova nação desgarrada de Portugal, com a preocupação de inserir o Brasil no grupo de nações consideradas civilizadas ao estabelecer parâmetros morais de cidadania baseados no modelo da família católica, monogâmica,

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heterossexual, devidamente alfabetizada e branca (SILVA, 2012 apud ARAÚJO, 2007). Os dizeres na bandeira brasileira – Ordem e Progresso – têm sua origem no lema positivista de Comte: L’amour pour principe et l’ordre pour base; le progrès pour but (“O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”). O tema da criminalidade e do criminoso passou a ser abordado por um grupo seleto de cientistas brasileiros que buscavam construir um campo de estudo baseado nas pesquisas de Cesare Lombroso. Um dos médicos pioneiros na instituição da perícia médica-legal foi Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), empenhado em relacionar a antropologia criminal ao conceito de raça (SILVA, 2012). Em 1894, Nina Rodrigues publicou seu primeiro livro, As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, demonstrando forte preocupação com a responsabilidade da raça nos problemas patológicos da nação brasileira. “Se fundou sobre a crença de que a maldade de um homem estaria estampada em seu corpo” (SILVA, 2012 apud CARRARA, 1998). Em um movimento semelhante ao lombrosiano na Europa, se fortalecia a corrente determinista que associava crime à raça e ao gênero. Em documento da Caza de Correcção da Côrte, nota-se o enfoque na descrição física (antropometria) do suposto criminoso: Em 13 de janeiro de 1876, na nota dos signaes do galé Simphronio, consta que: “Simphronio, escravo de João de Bastos Pinheiro, morador na fazenda do Bom Retiro – Parahyba do Sul; crioulo, natural da Província de Sergipe, de 40 annos de idade, preto retinto, solteiro, de 5 pes e ½ pollegadas de altura, olhos pretos, dentes mui claros, nariz chato, boca grande, labios grossos, barba pouca, cabellos carapinhos, cheio de corpo.” Em outra nota, informam que os “galés evadidos levarão camisa e calça de algodão trançado branco e azul, calceta e corrente, cada um com peso de 2,5 kilogrammas (SILVA, 2012 apud KOUTSOUKOS, 2004). No contexto de um Brasil em processo de construção de sua identidade enquanto nação civilizada, o fortalecimento do Estado também se deu na assumpção do poder de julgar e punir, previsto no primeiro artigo do Código Penal dos Estados Unidos do Brasil (CPEUB): Ninguém poderá ser púnico por facto que não tenha sido anteriormente qualificado crime, e nem com penas que não estejam previamente estabelecido” (BRAZIL, 1890, CPEUB, art. 1º). Com a reforma penal ocorrendo concomitantemente na Europa (SILVA, 2012), os estudos que associavam criminalidade e raça também passaram a se debruçar sobre as relações entre criminalidade e gênero. Seguindo a linha de pesquisa positivista lombrosiana, Tito Lívio de Castro publica, em 1887, a obra Mulher e

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a Sociogenia, evidenciando uma preocupação em explicar a natureza feminina no contexto evolucionário humano por meio da craneologia e a fisiologia. Antes de qualquer observação psychica, antes de qualquer classificação dos atos normaes ou anormaes da mentalidade feminina, deve ser feita a descripção do craneo e do cérebro feminino conhecendo o órgão estará conhecida a função (SILVA, 2012 apud CASTRO, 1893). A partir de seus estudos e inspirado pelas teorias evolucionistas de Charles Darwin em A Origem das Espécies (1859), Castro defende que há uma diferença entre o peso e volume do cérebro masculino em relação ao feminino, o que comprovaria a superioridade biológica e, portanto, social do homem. As teorias evolucionistas serviram para justificar a hipótese da inferioridade intelectual e física da mulher pela proteção que ela supostamente teria recebido do homem ao longo dos séculos, desde as eras primitivas. A comparação da forma leva-nos a conclusão que, não somente uma mesma raça o cérebro feminino é inferior, porque tem relativamente maior massa nos lóbulos occipitaes do que nos frontaes. Uma analyse minuciosa do presente, desta sociedade complexa de nosso tempo, ou do passado, da prehistoria evocada pela sciencia, dá-nos sempre a demonstração de que há diferença mental nos dous sexos com inferioridade do sexo feminino (SILVA, 2012 apud CASTRO, 1893). Castro também buscou categorizar tipos de mulheres por sua cor de pele. Para o autor, a raça negra era a que conservava mais reflexos, mentalidade e crenças primitivas, fetichistas e místicas. Isso comprovaria, portanto, um atraso nos estágios evolucionários em comparação com o homem branco. Em vista do acordo social no que se refere às diferenças de gênero e criminalidade, o Código Criminal do Império do Brasil passou a diferenciar o tratamento penal ao determinar penas e trabalhos distintos, por exemplo, à mulher grávida (SILVA, 2012), evidenciando, mais uma vez, a correlação feita entre a identidade do gênero feminino e seus aspectos biológicos. Ao homem viril foram destinadas penas e trabalhos de maior força física e à mulher, o sexo frágil, trabalhos e penas mais brandos, relacionados aos trabalhos domésticos. Art. 43. Na mulher prenhe não se executará a pena de morte, nem mesmo ella será julgada, em caso de a merecer, senão quarenta dias depois do parto. Art. 45. A pena de galés nunca será imposta: 1º A’s mulheres, as quaes quando tiverem commettido crimes, para que esteja estabelecida esta pena, serão condemnadas pelo mesmo tempo a prisão em lugar, e com serviço análogo ao seu sexo (SILVA, 2012, apud Brazil, 1830,

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CCIB, arts. 43 e 45). Estando a condição feminina atrelada a fatores biológicos e, consequentemente, a deveres morais, como abordado no capítulo anterior, crimes como o aborto e o infanticídio eram, e são até hoje, duplamente julgados, pois se considera que a mulher negou duas vezes sua natureza: a de parir filhos saudáveis e a de cuidar deles. É a mulher que falha em sua função primeira - a de ser mãe. Em um projeto nacional republicano, heterossexual, católico romano e monogâmico, o dispositivo penal passa a direcionar e disciplinar, também, a conduta das mulheres (SILVA, 2012). Art. 197. Matar algum recemnascido. Penas - de prisão por tres a doze annos, e de multa correspondente á metade do tempo. Art. 198. Se a propria mãi matar o filho recem-nascido para occultar a sua deshonra. Penas - de prisão com trabalho por um a tres annos. Art. 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente com consentimento da mulher pejada. Penas - de prisão com trabalho por um a cinco annos. Se este crime fôr commettido sem consentimento da mulher pejada1. Penas - dobradas. Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique. Penas - de prisão com trabalho por dous a seis annos. Se este crime fôr commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de taes artes. Penas - dobradas. (SILVA, 2012 apud Brazil, CCIB, 1830, arts. 197, 198, 199 e 200) 1. mulher pejada: grávida

Mas sempre existiram vozes resistentes à essas concepções hierarquizadas por gênero, sexualidade, raça etc. no entendimento de que tais teorias sustentavam, na verdade, projetos de repressão e contenção social. No Brasil do século XIX, Nísia Floresta Brasileira Augusta (pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto), considerada a primeira feminista brasileira (MATUOKA, 2017), publica, em 1832, a obra Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, uma tradução livre de A Vindication of the Rights of Woman: with Strictures on Political and Moral Subjects, de 1792, escrito por Mary Wollstonecraft Shelley. Nísia Floresta Brasileira Augusta, nascida em Papari, no Rio Grande do Norte, em 1810, foi uma educadora, escritora e poetisa que dedicou sua vida a defender os direitos das mulheres, dos índios e dos escravizados, participando de campanhas abolicionistas e republicanas (MATUOKA, 2017). Nísia Floresta

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considerava as mulheres como figuras essenciais no crescimento das sociedades. Foi responsável, em 1838 (aos 28 anos) pela fundação da primeira escola para meninas – o Colégio Augusto – no Rio de Janeiro, com o nome, em homenagem a Auguste Comte, seu mentor e conhecido. Ao que tudo indica, sua adesão à doutrina positivista foi apenas parcial, motivada principalmente pelo respeito que a filosofia tinha por pensadoras mulheres em comparação aos demais preceitos da época (MEMÓRIA, 2019). “Por que [os homens] se interessam em nos separar das ciências a que temos tanto direito como eles, senão pelo temor de que partilhemos com eles, ou mesmo os excedamos na administração dos cargos públicos, que quase sempre tão vergonhosamente desempenham?”, Nísia Floresta (MATUOKA, 2017) A escritora e pedagoga Mary Wollstonecraft Shelley, nascida em Spitalfields, na Inglaterra, em 1759, é considerada precursora do movimento feminista na modernidade, mesmo os conceitos ainda não existindo na época. Inspirada pelos ideais da Revolução Francesa de 1789 – liberdade, igualdade e fraternidade – fundamentou seus pensamentos no questionamento das relações hierárquicas entre homens e mulheres. Aclamado como um dos documentos fundadores do feminismo (DANGELO, 2017), A Vindication of the Rights of Woman: with Strictures on Political and Moral Subjects reivindica o acesso das mulheres à educação como importante passo na direção da extinção da desigualdade de gênero, defendendo, inclusive, que ambos homens e mulheres fossem ensinados o “amor ao lar” e a importância das tarefas domésticas. O livro aborda, também, a relevância do voto feminino e a igualdade no casamento com enfoque nos direitos aos bens da esposa, à guarda dos(as) filhos(as) e até ao divórcio (DANGELO, 2017). A tradução livre do livro de Shelley feita por Nísia Floresta é dedicada às brasileiras e acadêmicos brasileiros (SILVA, 2012), aos quais faz o seguinte apelo, atemporal e inesquecível: E de vós, mocidade acadêmica, em que a nação tem depositado as mais belas esperanças, que sabereis corresponder à sua expectativa, igualmente espero, que tendendo o estado a que nosso infeliz sexo tem sido injustamente condenado, privado das vantagens de uma boa educação, longe de criticardes a minha temeridade, lamentareis a nossa sorte, pois que até em pequenas empresas não podemos desenvolver nossos talentos naturais. Assim como (espero) que, algum dia nas horas de vossos altos ministérios lançarei vista de justiça sobre nosso sexo em geral, se não para empreender uma metamorfose na ordem presente das coisas (SILVA, 2012 apud AUGUSTA, 1832).

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APRESENTAÇÃO

Imagem 20: Nísia Floresta Brasileira Augusta | Fonte: Agenda BH

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Imagem 19: Mary Wollstonecraft Shelley | Fonte: Geração Editorial

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“Peço que não seja substituída a prisão preventiva pela domiciliar, pois ela estava traficando ao invés de cuidar dos filhos” Frase proferida por uma promotora de justiça | Fonte: Relatório #MulhereSemPrisão, pg. 83 - ITTC.

“A criminosa e a mãe ocupam lugares opostos no repertório de papéis designados às mulheres na nossa sociedade” Ana Gabriela Mendes Braga|Entre a Soberania da Lei e o Chão da Prisão: A Maternidade Encarcerada, 2015.


SISTEMA PRISIONAL FEMININO BRASILEIRO: MATERNIDADE, LEITE E FERRO Relegada a um papel biológico-moral de maternidade e subserviência desde antes da construção da república brasileira, o contexto de encarceramento da mulher mãe é, até os dias de hoje, extremante subnotificado. A mulher mãe que comete um crime é duplamente julgada pelo não cumprimento de sua dita vocação natural e pelo seu considerado desvio moral, raramente sendo levado em conta, principalmente em um país desigual como o Brasil, as circunstâncias socioeconômicas na qual muitas dessas mulheres se encontram. A subjetividade da presa é reduzida ao seu crime e o interrogatório é seu único momento de fala “na Justiça” (BRAGA, 2015).

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Em 1957, A Assembleia Geral da ONU assinou as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso, orientando a conduta institucional e práticas penitenciárias. Foi apenas em 2010, cinquenta anos depois, que as mulheres e jovens meninas privadas de liberdade tiveram seus direitos e especificidades reconhecidos e sancionados pela legislação internacional da mesma Assembleia – as Regras para o Tratamento de Mulheres Presas, ou, Regras de Bangkok. A primeira norma ressalta a importância da atenção às necessidades específicas das mulheres, buscando igualdade de gênero e a não discriminação, prevista na norma seis das Regras de Bangkok. Apesar do importante passo no reconhecimento internacional de uma desigualdade no tratamento de presos e presas, o Brasil, membro da ONU desde 1948, não sofreu ou sofre quaisquer sanções pelo não cumprimento das Regras, conduta praxe nas prisões brasileiras (BRAGA, 2015). Apesar disso e a passos curtos, ao longo da última década, é possível observar avanços na legislação nacional. A Lei n. 11.942/09, por exemplo, busca assegurar às mães presas, aos recém-nascidos e às crianças, com a reescrita dos artigos 14, § 3º, 83 e 89 da Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84), condições mínimas de assistência. Um marco importante em 2018 foi a concessão do Habeas Corpus Coletivo nº 143.641/SP, pela 2ª turma do Supremo Tribunal Federal (STF), que substitui a prisão preventiva em regime fechado por prisão domiciliar a mulheres grávidas, puerpérias e mães de crianças com até 12 anos e/ou portadoras de deficiência. Os HC Coletivo, além dos esforços de inúmeros advogados e advogadas, teve a participação de políticos importantes, como o então vereador de São Paulo, Eduardo Suplicy, e entidades de

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renome, como o Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC), o que facilitou a sua aprovação. Contudo, é necessário o entendimento da distância que há entre a soberania da lei e o chão da prisão, ou seja, mesmo com a ratificação do HC Coletivo, até o presente dia, não há garantias de que ele está sendo plenamente aplicado em todas as unidades federais do Brasil. Longe da soberania da lei, o chão da prisão é feito de violações de direitos, que caracterizam o passado e o presente do sistema prisional brasileiro e se acentuam em relação às mulheres encarceradas. (...) Por conta disso, ainda hoje, milhares de mulheres vivem gestações, partos e maternidades precárias, e suas crianças formam parcela invisível da população prisional – contrariando a Regra de Tóquio n. 3, que determina que sejam registrados número e informações pessoais das crianças que ingressam nas prisões com a mãe (BRAGA, 2015, pg. 531). O encontro entre prisão e maternidade gera, por exemplo, o fenômeno da hipermaternidade – quando mulheres mães são encaminhadas a recintos controlados para cuidarem de seus filhos e filhas bebês e recém-nascidos, o que passa a ser sua única função, 24 horas por dia. Sem a possibilidade de exercerem quaisquer tipo de atividade laboral ou escolar para a remissão de pena e/ou recebimento de soldo, essas mulheres passam a experienciar a maternidade como uma segunda punição e atrofiamento de sua própria individualidade (BRAGA et al., 2015). Está previsto em lei que o tempo mínimo de permanência da mulher mãe com sua criança é de seis meses e máximo de seis anos. No entanto, os juízes costumam aplicar o direito mínimo como direito máximo, concedendo às mulheres mães presas apenas seis meses com seus filhos. Quando chega o momento da despedida, essa interrupção brusca na formação de laços entre mãe e filho(a), com o sequente direcionamento da criança para a família ou abrigo, gera a hipomaternidade. As marcas mentais e corporais da maternidade não se esvaem com a retirada de seus filhos, sendo comum a ingestão de remédios para a secagem do leite materno, a “febre emocional”, dentre outros sintomas (BRAGA et al., 2015). Para as mulheres mães na iminência de perderem seus filhos, o nervosismo e ansiedade tornam-se traumáticos. “Todo o dia eu acordo com medo de ser o dia de levarem minha filha. Quando chega às 17h fico aliviada, terei mais uma noite com ela.” Depoimento de Lucinéia, mulher e mãe presa na Penitenciária Feminina do Butantã. (BRAGA, 2015, pg. 534) 78

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Imagem 21: Mulher grĂĄvida | Fonte: Beasts Inside

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nome capĂ­tulo


Em casos recorrentes em que a mãe ou família de origem tem seu poder familiar destituído, sendo a(s) criança(s) direcionada(s) a abrigos e eventual adoção, o exercício da maternidade e constituição de laços familiares torna-se nulo e, na maioria das vezes, irrecuperável (BRAGA et al., 2015). O encarceramento torna-se responsável, portanto, pela separação de famílias. Apesar da Lei nº 12.962/14 ter assegurado a convivência de crianças e adolescentes com mães e pais privados de liberdade, prevendo explicitamente que a condenação criminal do pai ou da mãe não implicará na destituição do poder familiar e que a criança ou adolescente será mantida em sua família de origem, foram diversos os relatos colhidos, nos quais as mães relataram, angustiadas, não ter conhecimento do destino de sua criança abrigada, com medo de perdê-la para uma família adotiva (BRAGA et al., 2015). Em uma sociedade que considera caber à mulher mãe a função de cuidar de suas crianças e ser responsável pelas atividades domésticas (BRAGA, 2015), principalmente em um contexto social que escusa a ausência do pai, encarcerá-las é, direta e/ou indiretamente, encarcerar também os seus filhos e filhas. A emancipação da mulher como chefe da casa, sem a garantia de igualdade salarial com os homens, tem levado mais mulheres ao crime pela pressão financeira que acabam sofrendo ao longo dos anos. Os delitos mais comuns entre mulheres são os que podem funcionar como complemento de renda, como o tráfico de drogas (62% das condenações, segundo o Infopen de 2018), roubo (11%) e furto (9%) (QUEIROZ, 2015).

Depoimentos recolhidos ao longo da elaboração dessa monografia por parte de funcionários públicos evidenciam a violência sistêmica a qual essas mulheres mães são submetidas, tendo sua maternidade convertida em punição: há, por exemplo, mulheres mães que abdicam do direito de verem seus filhos por não quererem submetê-los às revistas vexatórias que ocorrem na maior parte das prisões no país. Ou mulheres mães que não recebem visitas de parentes ao longo de seus anos de cumprimento de pena precisamente por sofrerem com o estigma de que uma boa mulher não é naturalmente propensa ao crime. Mulheres são presas todos os dias nas revistas para entrarem nas prisões masculinas carregando drogas ou aparelhos celulares, ato que, muitas vezes, elas tampouco têm a opção de negar seja pela necessidade do dinheiro em troca desse serviço arriscado, seja sob ameaça de morte de seus próprios companheiros, muitos ligados ao PCC ou qualquer outro grupo para-governo. Existem mulheres e mulheres mães que precisam trabalhar arduamente dentro das prisões, recebendo soldos menores que um salário mínimo para pagar o pecúlio e que, portanto, não conseguem tempo para amamentar seus filhos. O estudo não é remunerado dentro dos presídios.

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Mulheres mães que são transferidas de uma cidade para outra pela ausência de defensorias públicas em suas cidades ficam ainda mais apartadas de seus filhos. Isso tudo sem contar com as mulheres mães em prisões domiciliares que, impossibilitadas de saírem de suas casas, não conseguem matricular seus filhos e filhas nas escolas ou fazerem exames de acompanhamento pré-natal nos hospitais. Isso tudo sem considerar as falhas do Estado em prover espaços e serviços dignos, submetendo mulheres grávidas a doenças provocadas por ratos e baratas (leptospirose), à falta de água quente para as cólicas menstruais, à falta de leitos para mulheres que acabaram de parir (portanto, com pontos recém feitos, o chão frio aumenta suas dores pós operatórias) ou a recusa de funcionários penitenciários em prestar auxílio a mulheres em trabalho de parto, resultando, muitas vezes, em abortos.

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1. ROSSI, P. Traité de droit penal. Vol. III, 1829, p.169 2. VAN MEENEN. “Congresso penitenciário de Bruxelas”. Annales de la Charité, 1847, p. 589s 3. DUPORT, A. “Discurso à constituinte”. Archives parlementaires. 4. Nota do escritor: O jogo entre as duas “naturezas” da prisão ainda é constante. Há alguns dias o chefe da nação lembrou o “princípio” de que a detenção só devia ser uma “privação de liberdade” – a pura essência do encarceramento libertado da realidade da prisão; e acrescentou que a prisão só se podia justificar por seus efeitos “corretivos” ou readaptadores.

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nome capítulo

APRESENTAÇÃO

Pode-se compreender o caráter de obviedade que a prisão-castigo muito cedo assumiu. Desde os primeiros anos do século XIX, ter-se-á ainda consciência de sua novidade; e entretanto ela surgiu tão ligada, e em profundidade, com o próprio funcionamento da sociedade, que relegou ao esquecimento todas as outras punições que os reformadores do século XVIII

A prisão, peça essencial no conjunto das punições, marca certamente um momento importante na história da justiça penal: seu acesso à “humanidade”. Mas também um momento importante na história desses mecanismos disciplinares que o novo poder de classe estava desenvolvendo: o momento em que aqueles colonizam a instituição judiciária. Na passagem dos dois séculos, uma nova legislação define o poder de punir como uma função geral da sociedade que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros, e na qual cada um deles é igualmente representado; mas, ao fazer da detenção a pena por excelência, ela introduz processos de dominação característicos de um tipo particular de poder. Uma justiça que se diz “igual”, um aparelho judiciário que se pretende “autônomo”, mas que é investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares, tal é a conjunção do nascimento da prisão, “pena das sociedades civilizadas”1

A prisão é menos recente do que se diz quando se faz datar seu nascimento dos novos códigos. A forma-prisão preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais. Ela se constituiu fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo o corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação, registro e notações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza. A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis, através de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão, antes que a lei a definisse como a pena por excelência. No fim do século XVIII e princípio do século XIX se dá a passagem a uma penalidade de detenção, é verdade; e era coisa nova. (...)


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Essa “obviedade” da prisão, de que nos destacamos tão mal, se fundamenta em primeiro lugar na forma simples da “privação de liberdade”. Como não seria a prisão a pena por excelência numa sociedade em que a liberdade é um bem que pertence a todos da mesma maneira e ao qual cada um está ligado por um sentimento “universal e constante”?3 Sua perda tem portanto o mesmo preço para todos; melhor que a multa, ela é o castigo “igualitário”. Clareza de certo modo jurídica da prisão. Além disso ela permite quantificar exatamente a pena segundo a variável do tempo. Há uma forma-salário da prisão que constitui, nas sociedades industriais, sua “obviedade” econômica. E permite que ela pareça como uma reparação. Retirando tempo do condenado, a prisão parece traduzir concretamente a idéia de que a infração lesou, mais além da vítima, a sociedade inteira. Obviedade econômicomoral de uma penalidade que contabiliza os castigos em dias, em meses, em anos e estabelece equivalências quantitativas delitos-duração. Daí a expressão tão freqüente, e que está tão de acordo com o funcionamento das punições, se bem que contrária à teoria estrita do direito penal, de que a pessoa está na prisão para “pagar sua dívida”. A prisão é “natural” como é “natural” na nossa sociedade o uso do tempo para medir as trocas.4

haviam imaginado. Pareceu sem alternativa, e levada pelo próprio movimento da história: Não foi o acaso, não foi o capricho do legislador que fizeram do encarceramento a base e o edifício quase inteiro de nossa escala penal atual: foi o progresso das ideias e a educação dos costumes.2 E se, em pouco mais de um século, o clima de obviedade se transformou, não desapareceu. Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil. E entretanto não “vemos” o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão.


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nome capítulo

“A seletividade penal pode ser compreendida a partir da baixa participação de outros tipos penais na distribuição total de incidências, o que indica que o aparato punitivo do Estado encontra-se voltado para a repressão a determinados tipos de crimes (a saber: crimes patrimoniais e crimes ligados ao tráfico de drogas) e ao encarceramento de determinados grupos sociais” Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (2ª edição) – Infopen Mulheres, 2016, pg. 53.


SISTEMA PRISIONAL FEMININO BRASILEIRO: DADOS As consequências da ciência moralista que pautou a constituição social brasileira, abordada à luz dos capítulos anteriores, desagua na conformação do sistema carcerário feminino atual, evidenciado por dados recolhidos desde 2004 pelo governo federal (BRASIL, 2016). O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (2ª edição) – o Infopen Mulheres – de 2016, serve como parâmetro para que se possa esboçar um quadro acerca da realidade atual do sistema carcerário brasileiro feminino hoje. Os dados do formulário são preenchidos pelos gestores das unidades prisionais.

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O Brasil é, hoje, o país com a quarta maior população prisional feminina no mundo (42.355 mulheres), atrás, apenas, dos Estados Unidos (211.870), China (107.131) e Rússia (48.478), conforme demonstrado na Tabela 01. Em uma série histórica sem precedentes internacionais, entre 2000 e 2016, a taxa de aprisionamento de mulheres no Brasil aumentou em 455%, enquanto a Rússia, por exemplo, diminuía em 2% sua taxa (Gráfico 01). Isso significa que, no Brasil, a população feminina aprisionada está crescendo vertiginosamente, contribuindo, por exemplo, para um déficit global de 15.326 vagas, ou uma taxa de ocupação de 156,7% (BRASIL, 2016), o que, na prática, significa a existência de presídios superlotados, impactando na saúde mental e física dessas mulheres, na de seus potenciais filhos e filhas e, não se pode esquecer, na de funcionários e funcionárias que frequentam os presídios diariamente. Em suma, não só a dinâmica desse sistema punitivo de encarceramento, mas também o seu evidente sucateamento, trazem claras consequências sociais, ainda pouco mapeadas. Isso tudo considerando que 45% de toda a população carcerária feminina ainda está aguardando julgamento e o faz sob a tutela do Estado em regime fechado (BRASIL, 2016).

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PA ÍS

P O P U L AÇÃO P R IS IO N A L FE MI NI NA

TAXA DE AP RI S I O NAME NTO DE MU LH E RES ( 1 00 MI L/H AB)

Tabela 1: Doze países com maior população prisional feminina do mundo | Fonte: Infopen 2016

500%

455%

400% 300% 200% 100% 0%

105% 18%

14%

100% Gráfico 1: Variação de taxa de aprisionamento nos cinco países de maior população feminina encarcerada, entre 2000 e 2015 | Fonte: Infopen 2016

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O aumento da taxa de aprisionamento de mulheres e o déficit de vagas não evidenciam, sozinhos, a direção na qual caminha a sociedade brasileira. A compreensão desses dados deve ir além do fato de que o encarceramento em massa responde a questões que excedem (e, muitas vezes, menosprezam) as demandas sociais por segurança (13ª EMENDA, 2016). Fazendo um recorte necessário de gênero, o novo posicionamento da mulher no mercado de trabalho, por exemplo, sem que haja uma resposta econômica de equiparação salarial à masculina ou de responsabilidade compartilhada na gestão da família, são fatores intrinsecamente ligados ao aumento na criminalidade feminina (DUTRA, 2018). Frente a esse cenário, não é por acaso que a população carcerária de mulheres cresceu 656% entre 2000 e 2016, em comparação a 293% da população masculina, no mesmo período. A mulher, na maioria das vezes, recorrerá ao crime como complemento de renda e encontrará no tráfico de drogas, uma maior facilidade de circulação por não se constituir como foco principal da ação policial (DUTRA, 2018 apud RIBEIRO, 2012). Do espectro de crimes cometidos pelo gênero feminino, o tráfico de drogas configura 62% dos casos, seguido de roubo (11%) e furto (9%) (Gráfico 02).

2%

0% 6%

1%

Tráfico Quadrilha ou bando

6%

Roubo

1%

Furto

9%

Receptação Homicídio Latrocínio

11% 62% 2%

Desarmamento Violência doméstica Outros

Gráfico 2: Distribuição dos crimes tentados/consumados entre os registros das mulheres encarceradas, por tipo de pena | Fonte: Infopen 2016

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Mas a recorrente exclusão da mulher de melhores condições de trabalho não comporta, evidentemente, toda a explicação a respeito do que poderia influenciá-la a recorrer à criminalidade. O contexto familiar se apresenta, muitas vezes, como fator gerador ou propulsor de seu comportamento delituoso, seja por meio de abusos sofridos dentro de casa, que podem acarretar na sua saída precoce do lar e consequente emancipação sem planejamento financeiro e/ou escolar, seja pela influência de seus parentes, majoritariamente homens (DUTRA, 2018 apud NOVAES, 2010), já previamente inseridos no crime. 50% de toda a população carcerária feminina brasileira é considerada jovem (até 29 anos), segundo a classificação do Estatuto da Juventude (Lei nº 12.852/2013) e apresenta baixo grau de escolaridade, com 45% de Ensino Fundamental Incompleto (BRASIL, 2016). Tornando a qualificação profissional, principal requisito para a possibilidade de ingresso e melhores condições de trabalho, tal exigência gerou um mercado de trabalho mais competitivo e seletivo, criando uma barreira para aqueles que não se enquadram neste perfil (DUTRA, 2018).

2%

1% 1%

0%

2%

2% Analfabeta

3%

Alfabetizada (sem cursos regulares)

15%

Ensino Fundamental incompleto Ensino Fundamental completo Ensino Médio incompleto 17%

45%

Ensino Médio completo Ensino Superior incompleto

15%

Ensino Superior completo Ensino acima de Superior completo

Gráfico 3: Escolaridade das mulheres encarceradas no Brasil | Fonte: Infopen 2016

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O tráfico de drogas acaba por oferecer a essas mulheres, portanto, as oportunidades que o mercado formal de trabalho dificilmente proporcionaria, seja pelas desigualdades de gênero intrínsecas a ele, seja pela segurança financeira para aquela mulher emancipada precocemente. Com a possibilidade de ter/complementar sua própria renda e, na maioria dos casos, de sua família, considerando que 74% das mulheres presas, independentemente de sua idade, declaram ter filhos (em comparação com 53% dos homens presos que declaram não ter filhos), segundo o Ifopen de 2016, a saída no tráfico se apresenta como alternativa sedutora para a minimização de suas necessidades 1%

0% 18 a 24 anos

9%

25 a 29 anos 27%

21%

30 a 34 anos 35 a 45 anos 46 a 60 anos

23%

18%

61 anos ou mais Mais de 70 anos

Gráfico 4: Faixa etária das mulheres encarceradas no Brasil | Fonte: Infopen 2016

5%

Sem filhos

7%

8%

26%

1 filho 2 filhos 3 filhos

17%

4 filhos 18% 20%

5 filhos 6 filhos ou mais

Gráfico 5: Número de filhos das mulheres encarceradas no Brasil | Fonte: Infopen 2016

89

7


0%

1% 0%

Branco Negra

37%

Amarela 62%

Indígena Outras

Gráfico 6: Raça, cor ou etnia das mulheres encarceradas no Brasil | Fonte: Infopen 2016

70,0

62,5

60,0 50,0 40,0

40,1

30,0 20,0 10,0 0,0 população branca

população negra

Gráfico 7: Taxa de aprisionamento por 100mil mulheres maiores de 18 anos da população branca e negra no Brasil | Fonte: Infopen 2016

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É importante ressaltar, também, como observação, a influência que o empoderamento pelo consumo, fomentado pelo capitalismo, pode gerar a partir de uma expectativa social de luxos e exarcebações. Segundo Zigmund Bauman, há uma lacuna “entre os que desejam e os que podem satisfazer seus desejos”, mais um motivo pelo qual a população, de uma forma geral (independente de seu poder aquisitivo, gênero ou raça) recorreria a crimes como furto, roubo e/ou tráfico de drogas. Para além das inconformidades de um sistema que prende arbitrariamente, ao chegar nos estabelecimentos prisionais, a mulher criminalizada se depara com ambientes que em nada contribuirão para a sua saída e/ou possível (re)inserção, sua conscientização sobre seus direitos legais, os cuidados com sua saúde ou a qualidade de vida de seus eventuais filhos e filhas, dentro ou fora das unidades prisionais. O estigma de mulher degenerada pela sua criminalidade, ou seja, pela suposta negação de sua natureza afetiva, acarreta, muitas vezes, em abandono familiar e na própria negligência do Estado em prover espaços de qualidade tanto para visitas comuns (a média nacional de espaços para visitas comuns é de 33% em unidades mistas e 49% em unidades femininas, considerando oito estados sem nenhum espaço destinado à essa função) quanto íntimas (41% dos estabelecimentos possuem espaços para essa função e, em estabelecimentos mistos, apenas 34%), quanto espaços de saúde para mulheres grávidas e lactantes (apenas 16%, o equivalente a 55 unidades prisionais no Brasil, declaram apresentar cela ou dormitório para gestantes), creches e berçários de qualidade (no país, apenas 14% dos estabelecimentos têm creches e apenas 3% tem berçários) e salas de aula e trabalho, todos esses estabelecimentos previstos como direito inalienáveis da pessoa privada de liberdade na Lei de Execução Penal. No que tange o índice de crianças institucionalizadas sob a tutela do Estado em ambientes prisionais, o Infopen Mulheres aponta para a distância existente entre os números levantados e a realidade de fato: “A disponibilidade de informação sobre o número de filhos, no entanto, permanece baixa em todo o país e foi possível analisar dados referentes a apenas 7% da população prisional feminina em Junho de 2016, o que corresponde a uma amostra de 2.689 mulheres sobre as quais se tem informações” (pgs. 50 e 51). A falta de informação acarreta, por exemplo, na desatenção em prover equipamentos de creche e atendimento médico para essas crianças que, de acordo com os dados levantados nesses 7% de população prisional, se encontra, majoritariamente, nas faixas entre 0 e 6 meses e acima de 3 anos, segundo o Infopen Mulheres, de 2016. São infâncias sacrificadas pela negligência do Estado em separar, primeiro, a criminalização da mãe da inocência do(a) filho(a) e, segundo, em garantir direitos básicos previstos em lei.

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Conforme garantido pela Lei de Execução Penal, pessoas privadas de liberdade têm, por direito, acesso integral à saúde garantida pelo Estado, seja na forma de atendimento médico, farmacêutico e/ou odontológico. Segundo dados do Infopen Mulheres, de 2016, à exceção dos estados do Rio de Janeiro e Acre – que somam quase 70% das unidades sem módulos de saúde – em âmbito nacional, foram realizadas, em média, 2,3 consultas médicas para cada mulher privada de liberdade ao longo do primeiro semestre de 2016. Comparativamente, no sistema público de saúde, são realizadas 2,77 consultas por habitante. Na saúde suplementar, ou seja, em operadoras de planos privados de saúde, são realizadas 5,4 consultas médicas por habitante ao longo de um ano. Se analisadas, proporcionalmente, no período de um ano, a média de consultas médicas para cada mulher privada de liberdade se assemelha à média da saúde suplementar. Esses dados não necessariamente indicam uma manutenção de qualidade da saúde das mulheres criminalizadas, pois não houve estudo direcionado, por exemplo, para as condições da mulher grávida que, como foi exposto nos capítulos anteriores, sofre graves violações de direitos. Para a mulher ou homem encarcerados, a iminência de sua soltura significa não apenas a volta de sua liberdade, mas também de todos os desafios e preconceitos que poderia carregar antes de sua prisão, complementados pelo eterno estigma de “criminosa(o)”. Frente a uma sociedade que a(o) condenará em todos os espaços, colocando à prova, inclusive, a suposta fé da sociedade na capacidade corretiva do sistema carcerário e a crença no perdão, as dificuldades de reinserção são inúmeras e vão desde recuperações de uma saúde possivelmente debilitada na prisão, passando por traumas psicológicos, pela reconquista de laços familiares e até pela (re)inserção do mercado formal de trabalho, quando não recorrem novamente à criminalidade seja por escolha, seja por falta de opção. Para mulheres que, ao longo de sua passagem pelo cárcere tiveram seus laços familiares comprometidos e cuidados de saúde negligenciados, a (re)inserção no mercado de trabalho, que antes já as discriminava, é tarefa árdua visto que, muitas vezes, apresentam quadros debilitados afetiva e psicologicamente. Apesar de estar prevista na Lei de Execução Penal a oferta de instrução escolar e profissional à pessoa privada de liberdade pelo Estado, visando a reintegração social da mesma, apenas 25% das mulheres de todo o país está engajado em atividades escolares (alfabetização, ensino fundamental etc), conforme apontado na Tabela 02, e 4% em atividades complementares (leitura, esportes etc), ambas permitindo a remissão de pena (BRASIL, 2016). A baixa adesão a essas atividades também é acarretada pelo fato de que não há remuneração para aquelas que

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n

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Tabela 2: Mulheres encarceradas envolvidas em atividades educacionais por estado | Fonte: Infopen 2016

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estudam. É necessária, portanto, outra fonte de renda para que as mulheres encarceradas possam sustentar a si mesmas e, eventualmente, a seus filhos e/ou parentes, visto que apenas 3% acessa o auxílio-reclusão, “(...) benefício devido aos dependentes da segurada do INSS presa em regime fechado ou semiaberto, durante o período de reclusão ou detenção” (BRASIL, 2016). Quanto às atividades laborais, 40% dos estabelecimentos prisionais femininos declaram possuir módulos de oficinas (sala de produção, sala de controle, estoque, espaço para carga/descarga de materiais, entre outros), o que pode ser surpreendente quando comparado a unidades prisionais masculinas (22%) e mistas (17%). No entanto, apenas 24% da população carcerária feminina exerce algum tipo de atividade laboral, interna (trabalho com parcerias empresariais, públicas ou de ONG´s ou atividades de apoio à administração do próprio estabelecimento penal) ou externa (trabalhos formais regulares) (BRASIL, 2016). As atividades laborais internas estão resumidas em sete áreas principais de atuação: Artefatos de concreto, Blocos e tijolos, Padaria e panificação, Corte e costura industrial, Artesanato, Marcenaria e Serralheria (BRASIL, 2016). Mesmo que não submetida ao CLT (regime de Consolidação das Leis do Trabalho), a Lei de Execução Penal prevê que a pessoa encarcerada deverá ser remunerada por suas atividades laborais em um valor não inferior a ¾ do salário mínimo, compreendido, em 2016, em R$660,00. O Gráfico 08 aponta, no entanto, para a alta incidência de trabalhos não remunerados ou abaixo dos ¾ do salário mínimo, previsto por lei, totalizando 63% da população carcerária feminina. É possível que o baixo soldo, as intensas jornadas de trabalho e uma possível saúde debilitada sejam fatores agravantes da baixa incidência de trabalhadoras no sistema carcerário. 0 (0%)

684 (8%)

Não recebe remuneração 1.748(20%)

Menos do que 3/4 do salário mínimo mensal Entre 3/4 e 1 salário mínimo mensal

2.467 (29%)

Entre 1 e 2 salários mínimos mensais Mais que 2 salários mensais

3.679(43%)

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Gráfico 8: Remuneração recebida pelas mulheres encarceradas em atividades laborais | Fonte: Infopen 2016

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Por fim, a consequência última da negligência do Estado em prover infraestrutura e serviços de qualidade para as pessoas privadas de liberdade é o óbito, sendo o suicídio (4,8 entre 10mil mulheres) a segunda maior causa, depois de mortes naturais (19,6 entre 10 mil mulheres) e dos homicídios (0,6 entre 10mil mulheres), segundo dados do Infopen de 2016. Como pode ser observado na Tabela 03 em relação aos homicídios, a taxa de 5,7 mulheres encarceradas mortas em 2015 para cada grupo de 100mil mulheres é superior à taxa de mulheres mortas no Brasil, fora da prisão (4,5 mulheres mortas em 2015 para cada grupo de 100 mil mulheres). A chances de suicídio de uma mulher encarcerada é 20 vezes maior quando comparada à mulher livre. Enquanto, entre a população brasileira total, foram registrados 2,3 suicídios a cada 100mil mulheres, 48,2 mortes autoprovocadas para cada 100 mil mulheres ocorreram dentro do sistema carcerário.

total Brasil tipo de óbito

N

Taxa por 100 mil mulheres

sistema pricional N

Taxa por 100 mil mulheres

homicídios

4.621

4,5

2

5,7

suicídios

2.396

2,3

17

48,2

causa desconhecida

2.471

2,4

2

5,7

Tabela 3: Comparação entre taxas de mortalidade no total da população feminina brasileira e entre a população prisional feminina em 2015, tipificadas por óbito | Fonte: Infopen 2016

Apesar de toda as mazelas causadas pelo sistema carcerário feminino brasileiro, o intuito dessa monografia e desse projeto não é pensar a mulher enquanto sujeito desamparado, mas enquanto grande potência na organização social do nosso país. Pensar um projeto entendendo e mapeando, primeiro, a realidade carcerária e, portanto, as condições que essa mulher deve enfrentar para sobreviver é, ao mesmo tempo, valorizar a egressa que continua, em sua maioria, com o desejo e a vontade de viver e de prosperar afetiva e financeiramente. Mas para procurar as mulheres para além do desamparo, tive de ir a campo buscá-las, porque os números dificilmente nos trarão boas notícias. Foi assim que eu encontrei Tempestade e Dona Cacilda, duas mulheres sobreviventes, viventes, vivas e, que acima de tudo, fizeram de suas experiências, motes de amor e luta.

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nome capítulo

“Fica para sempre escrito aqui, ó, na testa: Egressa”


TEMPESTADE E CRIQUE Conheci Tempestade em setembro de 2019, quando ainda estava tentando entender onde me posicionar como arquiteta, estudante e cidadã frente ao problema do encarceramento em massa. Disse a uma querida colega do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), a Viviane, que sentia que estava precisando entrar em contato com mulheres egressas para entender melhor que realidade era essa que se enfrentava após a saída da prisão. Foi assim que, no mesmo dia, que recebi o contato da Tempestade, liguei e marcamos uma ida à sua casa. “Vou estar na correria da produção de cartazes para a passeata que vai ter contra o encarceramento em massa”, ela me disse, e respondi que, então, poderia ajudar.

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Tempestade mora com seu filho em uma casa a 15 minutos de ônibus do Terminal Tucuruvi. Logo na rua da frente fica, em dias específicos, uma feira que vende alimentos e bugigangas para qualquer curioso que passe por lá. Em uma região de casas, ou seja, de baixo gabarito, onde o sol bate irrestrito e o vento sopra livre, viver inesperadamente a escala humana da feira e dos “bom dias” com certeza trouxe àquela experiência um gosto muito mais pessoal. O dia já se apresentava sincero. Tempestade me recebeu no ponto de ônibus para garantir que não me perdesse – um gesto de perceptível gentileza – e seguimos juntas até sua casa. Nunca havíamos nos visto, eu só conhecia a firmeza de sua voz, então fui surpreendida ao me deparar com uma senhora de cabelos brancos, mas de passos rápidos e determinados. Era claro que uma estava muito curiosa com a outra, afinal, nenhuma de nós muito bem sabia o que arquitetura teria em comum com o cenário do encarceramento que não fosse na construção de presídios. A dúvida e a curiosidade podem, talvez, terem sido responsáveis pela construção dos nossos primeiros laços. Tempestade foi presa duas vezes por tráfico de drogas, mas não entramos no mérito de aprofundar os motivos e nem se haviam sido prisões justas. Dentro da cadeia, ela passou a assumir o trabalho de escritório que lidava com os processos das presas e a comunicação com o exterior e, por isso, acabou se tornando uma mulher respeitada entre as colegas. Uma das maiores dificuldades das pessoas privadas de liberdade é o entendimento de seus direitos tanto enquanto cumprem as penas determinadas, quanto quando saem da prisão e Tempestade, pela oportunidade do trabalho e sua

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curiosidade viva, acabou sendo peça chave na disseminação dessas informações. Munida desse conhecimento precioso e contatos com gestores da cadeia em que estava, Tempestade foi responsável pela formalização de várias demandas coletivas pela melhoria física dos espaços. Até hoje, nos feriados em que as presas podem sair para visitar parentes, ela fica na porta das cadeias conversando com essas mulheres para garantir seu acesso à compreensão de seus direitos. Havia uma série de assuntos que eu precisava abordar para que pudesse entender melhor as necessidades básicas diretas de mulheres egressas: quais eram suas principais dificuldades ao saírem? Como a sociedade lidava com elas? Como transformar essas demandas em projetos? Eu já havia compreendido a necessidade por reinserção no mercado de trabalho formal e admito que minha ideia estava fixa apenas nessa informação que, concomitantemente, já estava sendo trabalhada em projeto. “Moradia”, Tempestade disse sem pensar duas vezes. “A maioria das mulheres é abandonada pela família e não tem pra onde ir ou já era moradora de rua antes”. Fazia todo o sentido e implicava no desenvolvimento de uma moradia que, não necessariamente, estaria nos padrões dos condomínios de habitações projetados pelo poder público (CDHUs, COHABs etc). Começamos a pensar. Tempestade sugeriu que fossem garantidos espaços de convivência, levando-se em conta a solidão que a mulher egressa carrega de sua vivência no cárcere. Cozinha e lavanderia compartilhadas seriam uma boa opção, mantendo uma pequena cozinha no módulo individual de cada casa, para que a possibilidade de convívio fosse explorada sem menosprezar a escolha dessa mulher de recolher-se em sua própria cozinha, em dias de maior introspecção. Foram ideias preciosas que davam ao projeto a possibilidade de ser fiel à uma realidade que eu ainda pouco compreendia. Os módulos habitacionais desenhados e apresentados nessa monografia são resultado direto dessa conversa que tivemos. “Fica para sempre escrito aqui, ó, na testa: Egressa”, contou Tempestade. Era o estigma social que essas mulheres passavam a carregar ao sair. De fato, apesar de essas mulheres serem o usuário principal do projeto em questão, elas não poderiam ser as únicas ocupantes, senão a arquitetura seria, mais uma vez, contribuinte da exclusão estigmatizada dessa população. O projeto não poderia, ao integrá-las, excluí-las e a linha entre uma ação e outra parecia bastante tênue. Tempestade trouxe uma dimensão humana mais próxima para toda a questão do encarceramento, pois, ao viver a realidade que poucos de nós vivemos, principalmente dentro da academia, contando sobre amigas e sobre sua própria história, restringir a liberdade desses alguéns – pessoas de nome, endereço, sonhos e aspirações – foi me parecendo ainda mais desumano. Entender a dimensão das

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consequências do encarceramento na escala da família foi fundamental, inclusive, para que não fosse gestado, em mim, qualquer sentimento de pena. Apesar de tudo, essas mulheres sobrevivem. Mais para o final da tarde, Tempestade me mostrou os bonecos que estava fazendo para a passeata que aconteceria no centro – eram, em 11, a representação dos 111 presos mortos no massacre do Carandiru. “111 é o que eles dizem, né, porque a gente sabe que foi muito mais”, observou. O trabalho estava sendo feito em conjunto com o Crique, que acabei conhecendo nesse mesmo dia. Ex detento do Carandiru e ativista ferrenho contra a ditadura militar de 64, época em que sofreu torturas brutais, Crique havia transformado sua experiência no cárcere em arte: hoje, já com mais idade mas carregando um olhar de menino, ele dá aulas de teatro e música tanto em espaços na elitizada Vila Madalena quanto em hospitais psiquiátricos. Crique tem uma energia inesgotável e sua presença é sincera, verdadeira, daquelas que dá vontade de chegar junto e ficar escutando. Nos pusemos a confeccionar os cartazes quase na hora de eu ir embora, mas acompanhar o processo criativo da dupla foi maravilhoso. Os recursos eram poucos: tinta vermelha, canetas pretas que eu havia trazido e um rolo um pouco amassado de papel kraft. Estava ficando de noite e a luz era fraca, mas isso não foi o bastante para desmotivar a Tempestade, que pegou a tinta vermelha com o dedo e se pôs a passar esse “sangue” nos cartazes. Mais do que respostas técnicas para as minhas perguntas, obtive, com essa vivência e com outros encontros que passei a ter com Tempestade e Crique (inclusive um churrasco vegetariano, que acabamos chamando de legumada), respostas afetivas, que me contaram muito mais sobre o ser humano livre do que sobre o ser humano que encarcera ou é encarcerado. Foucault diz que a maior liberdade não é a luta para alcançar o que realmente somos, mas o esforço de desprendimento da identidade que nos é imposta. Isso se aplica aos preconceitos que acabamos introjetando e que, talvez essencialmente, não nos pertençam de fato. Encontrar a alteridade é se deparar com vivências que nos fazem repensar nossas formas de olhar – é caminharmos em direção à liberdade ao encontrarmos nossa verdade essencial. Costuma-se dizer que a Arquitetura transita entre o espectro da arte e da técnica, mas não podemos esquecer que o há de comum entre essas duas esferas é a presença humana e, portanto, a experiência da troca. A vivência com Tempestade foi uma vivência de Arquitetura, uma vivência de projeto e uma consequente oportunidade da escrita desse texto. De nada valeria um projeto alheio ao real, fomentando um vício que, não como arquitetos, mas como seres humanos, nós temos de evitar a dor do descobrimento e do questionamento. É claro que é difícil, mas também é libertador.

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Tempestade e Crique são sopros de esperança dentro de um cenário desumanizador. Eles são o respiro, a boa notícia, que soube transformar a solidão do cárcere em luta, mas, acima de tudo, em gentileza. Com esse projeto, eu espero fazer jus a todo o carinho que recebi em seus gestos de hospitalidade, paciência em ensinarem e abertura para entenderem. Arrisco dizer que saí daquela casa mais livre.

Imagem 22: Alguns dos bonecos feitos por Tempestade e Crique | Fonte: Acervo pessoal

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Imagem 23: Crique em frente à Biblioteca São Paulo, projeto de Aflalo/Gasperini Arquitetos, na Zona Norte de São Paulo, local da antiga penitenciária do Carandiru | Fonte: Acervo pessoal (cedida gentilmente por Crique)

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Imagem 24: Tempestade confeccionando os cartazes para a passeata | Fonte: Acervo pessoal

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nome capítulo

“É tudo uma experiência na vida. Que você aprende muito, tira muita coisa boa e ruim. Aí vai saber aproveitar o que que é de bom e o que que é de ruim, tem escolha.”


DONA CACILDA Dona Cacilda tem uma participação especial nessa monografia e projeto, pois se dispôs a ter gravada sua história em vídeo – atitude que exige coragem e altruísmo. Verônica, sua filha e grande amiga minha, colaborou desde o primeiro momento em que perguntei se poderia entrevistar sua mãe para apresentar (e humanizar) a questão carcerária sob o olhar de uma mulher mãe que, dentre outras características, é egressa do sistema prisional. Foi necessário certo processo natural de convencimento, mas depois que os propósitos se alinharam, Dona Cacilda ficou, inclusive, ansiosa para a gravação.

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Chegado o importante dia, Verônica e eu fomos para a casa de sua irmã, Vânia, que disponibilizou gentilmente o espaço para que pudéssemos gravar o depoimento, com privacidade. Fizemos um almoço delicioso, todas juntas, e a conversa correu longe até sentirmos, estando todas à vontade, que era hora de gravar. Eu nunca havia feito isso antes, nunca tinha entrevistado ninguém, que dirá sobre um assunto complexo como esse. As meninas – dona Cacilda, Verônica e Vânia – foram essenciais para que me sentisse à vontade, inclusive para errar. Órfã aos 10 anos, dona Cacilda conta que tudo mudou após a morte de sua mãe, tanto para ela, quanto para seu pai e seus seis irmãos. Almejava, desde pequena, ser médica, mas não conseguiu chegar, ainda, em seu objetivo, pois ao assumir grandes responsabilidades desde muito cedo, acabou relegando seus sonhos a segundo plano. Mãe aos 15/16 anos, foi presa e cumpriu sua primeira condenação de um ano e seis meses quando a bebê ainda não havia completado um ano de vida. Sua segunda prisão, com menos detalhes, ocorreu brevemente mais tarde, quando dona Cacilda já tinha a segunda filha. “É como se diz o velho ditado, né, ‘bandido bom é bandido morto’. Mas nem sempre é assim. Por que será que aquele bandido foi parar lá dentro? Tem uma grande história”, ela ressalta, com sensibilidade. Sua própria vivência é capaz de sustentar o argumento e ir além, ao falar sobre a lucratividade que o encarceramento em massa traz para os envolvidos na sua manutenção: “Se desse oportunidade, não teria tanto bandido. E muitas crianças teria grande

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chance na vida, de ser alguém. Porque quanto mais um bandido lá dentro, é um giro grande de capital, é um lucro enorme, que compensa. Não compensa pra quem tá de fora, pra periferia não compensa não, mas pra quem tá por trás disso compensa”. Não senti a necessidade de perguntar o motivo de suas prisões e tampouco achei necessária a informação, visto que não era a natureza de seu julgamento que importava para a nossa conversa. Como Crique, ela também teve envolvimento na resistência à ditadura militar, mas procurou não entrar em detalhes, pois como ela mesma disse, tinha medo de comprometer sua família. Fiquei refletindo sobre a coincidência dessas duas histórias, pois, no privilégio da academia, aprende-se a respeito do golpe de 64 sob a ótica dos artistas de esquerda, dos estudantes, mas pouco se aborda o ponto de vista da periferia que presenciou, por exemplo, inúmeras desovas de corpos em terrenos baldios e demais atrocidades silenciadas na época. Dona Cacilda traz um olhar interessante a respeito de sua experiência na prisão, pois considera que foi um momento onde, ao cruzar com diferentes olhares e vivências, pôde refletir sobre sua família e sobre a educação que queria dar para suas filhas. Valeu-se de uma situação complexa e desumana para encontrar esperança e melhorar a forma de viver sua própria vida. No entanto, jamais deixou que levassem suas filhas para visitá-la. O ambiente do cárcere era traumático demais para uma criança, então optava por saber de sua família por meio de uma irmã, que ia visitá-la esporadicamente. Com poucas visitas, portanto, não recebendo o “jumbo” (como chamam, na prisão, os presentes levados por parentes e amigos, como cigarros, papel higiênico, comidas etc.), Dona Cacilda bordava para conseguir dinheiro e regalias das presas. Mesmo sem o suporte financeiro ou psicológico por parte do Estado, conta que não teve problemas em ser acolhida pela família após cumprida sua sentença e não menciona grandes dificuldades para arranjar emprego, apesar de admitir ter de tomar cuidado para que ninguém soubesse de sua passagem pelo cárcere. No entanto, tanto ela quanto suas filhas sofreram consideravelmente com o estigma de “egressa” e de mãe solteira, sendo excluídas de festas e eventos inclusive da igreja que frequentavam na época. Reflexos claros de uma sociedade muitas vezes incapaz de perdoar. “Preconceito a gente sofre todo dia. Todos os dia a gente sofre preconceito e principalmente quando sai da cadeia. É uma coisa que parece que está estampada na testa: ex presidiário. Essa é a palavra que a gente sempre escuta. Tem pra periferia, mas não tem ex presidiário para a alta sociedade”, completa.

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Nossa conversa tomou diversos rumos, inclusive com momentos em que tive de parar as gravações pois, respeitando sua privacidade e ao mesmo tempo sua vontade de contar, servi como apoio para ouvir sobre detalhes violentos. São vivências que, por sua iniciativa pessoal, deram lugar à formação de uma mulher batalhadora e sagaz, que buscou, em suas experiências, a superação e a recuperação de seus sonhos. Hoje, dona Cacilda se formou no ensino fundamental e fala em se tornar enfermeira, sonho que recebe amplo apoio de suas filhas. Por fim, já emocionada e extremamente inspirada por sua força, perguntei à Dona Cacilda, considerando que sua entrevista seria possivelmente lida por alunos e professores (com pouco ou nenhum contato com a realidade do sistema prisional brasileiro), o que gostaria de apontar como reflexão. E assim, finalizo também esse texto deixando o espaço da última fala à essa mulher encantadora:

“Eu penso que pras pessoas começarem a enxergar de uma forma diferente, para ter um futuro melhor. Porque do jeito que nosso país está indo e todo mundo fechar os olhos, cada um por si, a tendência é piorar. Então eu acho que, do momento que a pessoa tá ali, tá se formando para pegar uma área, seja lá qual for, ela tem que olhar pro próximo”.

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nome capítulo

“Vai atrás, conhece a pessoa, tenta buscar a história dela, tenta saber (...) É muito fácil julgar uma coisa que você não viveu.”


VERÔNICA

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Verônica e suas irmãs viveram, por consequência, os estigmas carregados por dona Cacilda, como me relatou enquanto conversávamos a sós. Filhas de mãe solteira, sofriam desde a infância com a exclusão de eventos da igreja ou sociais em geral, por Dona Cacilda não ser considerada uma “mulher de bem”. “Às vezes até deixavam de chamar minha mãe pra fazer alguma coisa porque ela não tinha um marido e isso pesou bastante pra gente (...) as pessoas não gostavam de chamar as filhas da mãe solteira”. Estava claro que os preconceitos vividos pela família seguiam uma série de camadas de julgamentos morais: apesar da ausência irresponsável do marido e pai, sofriam com a repulsão social à mãe solo, à cor de sua pele, à sua condição financeira e com medo de que descobrissem as passagens de Dona Cacilda. “Eu passei muito tempo com medo de dar um passo errado e ser julgada justamente porque eu cresci sendo julgada por morar na periferia, por não ter um pai, por ser filha da mãe solteira (...). Eu tinha medo de respirar errado e ser julgada”, complementa Verônica. Mas as mulheres que conheci naquele dia de almoço, conversas e entrevista, apesar de um passado pouco gentil, se propunham a viver um presente justo. Verônica, por exemplo, tem um olhar muito generoso em relação às vivências de sua mãe: “Eu nunca julguei ela por isso; nunca, nunca julguei”, comenta, “Não gosto, na verdade, nem de julgar as pessoas que acontece isso, porque a gente nunca sabe o que levou a pessoa a fazer isso, sabe? Não que isso justifique, mas a gente nunca sabe. E assim é com a minha mãe também. Eu não sei o que tava passando na cabeça dela no momento, qual era a necessidade dela, o que ela precisava pra chegar nesse ponto. Então eu nunca julguei, sempre entendi”. E finaliza perfeitamente: “Mas eu acho bom que ela passou por isso e resolveu mudar. Isso pra mim é mais importante”. As longas jornadas de trabalho da mãe, conta, priorizavam a luta pela sua educação e de suas irmãs. Dona Cacilda pagava, por exemplo, maiores valores mensais de condução para garantir que Verônica e suas irmãs estudassem em uma escola de qualidade, mesmo que mais longe. São experiências inegavelmente difíceis para crianças, que precisam do aporte dos pais durante seu amadurecimento, mas, juntas, as irmãs cresceram apoiando uma à outra e, com o tempo, foram capazes de

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entender as decisões tomadas por Dona Cacilda. “Minha mãe é uma pessoa incrível. Ela sempre deu o melhor dela pra sustentar a gente. E foi bem difícil, né, porque eu não via muito minha mãe na infância e ela sofreu bastante, né, perdeu a mãe cedo, passou por muitas dificuldades, mas sempre (...) se posicionou como uma pessoa muito forte, muito guerreira e sempre tirava dela pra dar pra gente. (...) Eu tenho muito orgulho de ser filha dela”. Dona Cacilda, Verônica e Vânia ultrapassam o estigma do desamparo para brilharem como mulheres de potência e gentileza. São exemplos de perseverança, mas também um lembrete de que cabe a nós a forma de encararmos nossas escolhas e as escolhas a nós impostas. Fui acolhida por pessoas sábias e, cada uma à sua maneira, fez de suas experiências individuais, a composição da essência desse trabalho. Sou muito grata pelos momentos que me proporcionaram e pelas histórias que compartilhamos. Se isso não é arquitetura, eu não sei o que é.

Imagem 25: Da esquerda para a direita: Verônica, Dona Cacilda e Vânia | Fonte: Acervo pessoal (cedida gentilmente por Verônica)

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nome capĂ­tulo


MICHELE ROSA

Estava claro, desde o começo, que seria impossível isentar a responsabilidade do poder público na constituição desse trabalho. Isso significaria, portanto, que pensar um projeto direcionado a mulheres e mulheres mães egressas do sistema prisional exigiria a participação do Estado na gestão, por exemplo, dos espaços, do orçamento, dos profissionais envolvidos etc, levando em conta a evidente necessidade de acompanhamento que essas mulheres deveriam receber integralmente após a sua saída do cárcere. Idealmente, essa abordagem poderia se dar de forma intersetorial, envolvendo o núcleo de direito e de arquitetura e urbanismo das Defensorias Públicas, Conselhos Tutelares, as Centrais de Atenção ao Egresso e Família (CAEFs), a Secretaria de Administração Penitenciária e a Secretaria de Habitação, dentre outros possíveis órgãos.

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A metodologia de trabalho de entendimento prático da realidade me levou a procurar compreender quais eram as atuações efetivas que o poder público tinha com as mulheres dentro e fora do cárcere, ou seja, se de fato o Estado assumia a responsabilidade de tutela e acompanhamento. Haveria um interesse da máquina pública em promover a manutenção dos direitos dessas mulheres mesmo que os números evidenciassem um cenário desfavorável? Apesar do movimento compulsivo de prisão dessas mulheres, seria possível observar, em algum momento dessa esteira (acusação, condenação, aprisionamento, saída), tentativas de reparação aos danos psicológicos e morais infligidos a essas mulheres? Foi dentro dos núcleos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo – instituição pública responsável por prestar assistência jurídica integral e gratuita a cidadãos e cidadãs que não possuam condições financeiras de pagar pelo serviço de defesa e despesas do processo – que encontrei, não uma máquina amorfa, mas seres humanos com sonhos e frustrações profissionais, como eu e como qualquer pessoa, que me receberam abertos, curiosos e pacientes para responder às perguntas básicas que no começo ainda fazia, por ser alheia ao meio. Neste percurso de busca e encontro de humanidades, tive a sorte de cruzar com Michele Rosa, advogada e assistente social – a boa notícia que os números não dão conta de mostrar.

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Ficamos tentando nos encontrar por uma série de meses em 2019 até aproveitarmos o começo do ano de 2020, mais tranquilo, para que esse encontro desse certo. A Defensoria Pública de São Paulo fica hoje ao lado do metrô São Bento, o que rende um percurso delicioso pelo centro de São Paulo, uma grande paixão pessoal. Após me identificar e subir pelo elevador, me deparei, no andar determinado, com uma porta de incêndio, pesada e espessa, que jamais se passaria por uma porta de entrada. Passados poucos minutos, Michele abriu a tal porta pesada com leveza, sorrindo (gesto que acabei percebendo mais tarde ser sua marca registrada). Percorremos os poucos corredores que nos levariam à uma mesa única e extensa de trabalho com quatro mulheres em seus respectivos computadores – duas advogadas e duas estagiárias – responsáveis, fiquei sabendo, pelo atendimento jurídico de todo o Estado de São Paulo. Cinco pessoas para todo o estado. Fui recebida com sorrisos e palavras de “bem vinda” dessas cinco mulheres que tinham, em suas mãos, a responsabilidade da vida de milhares. Todas, sem exceção, pararam para sorrir. Seria um belo dia. Michele e a equipe trabalham em um órgão de assessoria técnica da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o Convive, atuando especificamente na política de atendimento às mulheres grávidas, mulheres com filhos de até 17 anos ou com mais de 17 anos caso seja portador de alguma deficiência física, intelectual ou quaisquer circunstâncias de vulnerabilidade, chamada Mães em Cárcere, instituída em 2014 (SÃO PAULO, 2020). Antes da implementação dessa política de atendimento direcionado, não se dava visibilidade aos problemas advindos do encarceramento de mulheres grávidas e consequentes desencadeamentos como o comprometimento de vínculos familiares e institucionalização em massa de crianças e jovens (BELLOQUE, 2017). As inovações trazidas pelo Mães em Cárcere incluem, portanto, uma defesa criminal que abranja a promoção dos direitos inerentes ao vínculo familiar, a comutação de dados qualitativos e quantitativos importantes para que seja possível mapear a população carcerária feminina e entender suas demandas e uma maior efetividade na prestação de serviço a essas mulheres. Em suma, Michele trabalha promovendo a dignidade e a humanidade de uma parcela menosprezada pela lei e que corresponde a 74% da população carcerária feminina no país, segundo dados do Infopen de 2016. O trabalho não se resume, entretanto, ao escritório, recebendo fichas cadastrais de mulheres mães que precisam de atendimento jurídico (dentro do estado de São Paulo e também fora quando a cidade de origem não possui meios para atender essa mulher), computando dados, intercedendo de acordo com a necessidade do processo (contatando promotores, advogados, familiares, assistentes sociais, encaminhando

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para varas específicas etc), recebendo cartas e telefonemas com pedidos de ajuda ou denúncias de violação de direitos, dentre outras funções complexas. A equipe do Mães em Cárcere também vai a campo, nas penitenciárias femininas, procurar uma aproximação com essas mulheres e garantindo acesso aos seus direitos e às informações necessárias. “Tenho uma grande dificuldade, que também é uma frustração pessoal”, me contou Michele, “Eu sempre aviso as meninas [presas] quando vamos nas cadeias que nem sempre vou ser capaz de contar pra elas o que está acontecendo no processo delas, porque eu simplesmente não consigo o tempo para isso. É frustrante, mas a quantidade de pedidos é imensa e não damos conta de tudo”, fazendo menção ao fato de que a maioria das pessoas presas, tanto mulheres quanto homens, tem pouco acesso ao andamento de seus processos. Esse tipo de situação culmina, por exemplo, na história de um homem que foi preso passados 10 anos de sua soltura, pois havia sido condenado em uma cidade, mudara para São Paulo e não estava ciente do desenrolar de seu processo. Seu advogado não o comunicara e, ao passar pelo Poupa Tempo em função de seu emprego novo, foi preso. “Quer ser preso, só ir no Poupa Tempo”, complementou Michele. Os desafios não estão apenas nos grandes processos, mas também na implementação de pequenas mudanças, como a ficha cadastral dessas mulheres que deveria, idealmente, ser preenchida no momento em que chegam na prisão. A ficha cadastral foi uma forma encontrada de mapear dados a respeito da população carcerária feminina no estado de São Paulo, mas nem todos os agentes penitenciários ou corpo de funcionários em geral estão empenhados em aplicá-la, sendo muitas vezes eles mesmos a preenchê-la. Para além da dificuldade de comprometimento por parte das autoridades, as próprias mulheres muitas vezes apresentam impedimentos como desconfiança em fornecer seus dados (por exemplo com o medo de que localizem seus filhos e os tirem de sua tutela), são analfabetas, têm dificuldades em entender o que a ficha cadastral pede ou representa etc. Por isso que ir a campo apresentar o trabalho da Defensoria Pública, conhecer essas mulheres, estreitar laços entre população e poder público e participar da manutenção de seus direitos – trabalho curiosamente análogo ao que deveria ser a atuação da Arquitetura – se torna tão fundamental quanto o próprio desenrolar dos processos. Michele recebeu a proposta de meu trabalho com interesse, admitindo estar curiosa para saber o que Arquitetura teria a ver com Direito Penal e torcendo para que eu não estivesse propondo a construção de um novo presídio (em sua cabeça e na da maioria das pessoas, seria apenas essa a conexão entre os setores). Para além de validar os experimentos com Tempestade e dona Cacilda, precisava de um olhar de gestão para entender se o pensamento quanto à atuação do poder público poderia

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estar correto e se a ideia de projetar habitações e espaços institucionais ajudaria no suporte a mulheres egressas e demais populações necessitadas desses serviços. Michele mencionou a necessidade da atuação em rede, incluindo diversos setores públicos, o que possibilitaria a troca facilitada de informações e relacionamento com a própria população em questão, resolução que ia ao encontro das ideias que eu estava ensaiando. Alegrei-me. Passados longos momentos de conversa, Michele fez uma ressalva que foi crucial para o aprofundamento nas questões humanas desse trabalho. A primeira ideia que tive era a de que as habitações fossem temporárias, ou seja, que houvesse um prazo de estadia para que os(as) usuários(as) não se acomodassem e fossem incentivados a ir atrás de novas perspectivas, trabalhos etc. Algo como a ideia de não dar o peixe, mas sim a vara para pescar. Percebi, no entanto, que um pensamento como esse seria, para a população em questão, mais uma nova forma de punir do que efetivamente um incentivo à melhora. Pessoas encarceradas têm sua vida resumida a prazos e horários – hora de dormir, hora de acordar, hora de comer, hora de trabalhar, hora ao sol, tempo de prisão, tempo dos processos jurídicos etc. Para mulheres com seus filhos dentro do cárcere existe ainda um tempo cruel de quanto lhes resta da companhia um do outro. Tempo é quase um instrumento de tortura na cadeia. Eu não poderia, portanto, utilizar dessa medida para pensar a habitação – seria perdurar a tortura da iminência do término das coisas, seria transformar a casa em uma extensão da prisão. Pensar em habitações definitivas automaticamente traz uma série de novos desafios econômicos e de gestão, mas ao mesmo tempo permite a criação de potenciais vínculos duradouros dos moradores tanto com o espaço interno quanto com a região que os circunda. Ademais, a possibilidade de manutenção dos espaços poderia dar-se de forma mais organizada e comprometida, visto que o vínculo criado também carrega consigo a responsabilidade do cuidado (SALINGAROS et al., 2019), o que aliviaria a função de gestão e dispêndio públicos. Como a ideia de fazer os projetos em regiões periféricas da cidade seria ir ao encontro dos próprios lugares de onde grande parte da população carcerária feminina e masculina se viu forçada a sair, talvez os vínculos e interações se dessem de forma mais fácil. Parecia um desafio o qual valia a pena enfrentar. A troca de experiências e indagações, trouxe a nós duas, Michele e eu, um alento mútuo. De um lado, ela me ofereceu novos olhares e respiros acerca do comprometimento da atuação pública no desencarceramento de pessoas e eu lhe mostrei atuações públicas na América Latina que pudessem trazer esperança no papel estrutural de melhoria social que o poder público poderia ter, por exemplo, na construção de espaços de qualidade em todas as partes da cidade.

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O encontro com Michele foi um encontro sincero entre Arquitetura e Direito Penal, estudante e advogada, mas, acima de tudo, de duas mulheres empenhadas em propósitos complementares. Michele foi essencial no meu entendimento das dificuldades e empenho de atuação de parte da Defensoria Pública. Frente aos dados desestimulantes de um Brasil que encarcera cada vez mais, Michele, junto de sua equipe, compõe a resistência a essa realidade cotidianamente. Assim como a leveza com que abriu para mim aquela porta pesada de incêndio, Michele enfrenta a realidade sistêmica com a boa disposição de quem acredita profundamente no impacto do que faz. E o faz com um sorriso.

Imagem 26: Logo da iniciativa Mães em Cárcere| Fonte: Núcleo Mães em Cárcere da Defensoria Pública do Estado de São Paulo

Imagem 27: Michele Rosa recebe VI Prêmio Justiça para Todas e Todos Josephina Bacariça pela atuação da política Mães em Cárcere concedido pela Defensoria Pública do Estado | Fonte: Acervo pessoal (cedida gentilmente por Michele)

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NOTA DE AT As graves crises enfrentadas pelo Brasil e ao redor do mundo tornam impossível a sua omissão nesse trabalho. Para além de resoluções pessoais, estamos vivenciando, coletivamente, a oportunidade de entender e questionar, acima de tudo, os limites do nosso sistema econômico neoliberal, diretamente responsável pelo alastramento do coronavírus. Vivemos em um mundo capaz de tornar mercadoria até o sentimento de empoderamento pessoal, onde a sensação de igualdade social se confunde com a capacidade de aquisição de um produto, mesmo que isso signifique um possível endividamento. A sensação de empoderamento pelo consumo desperta, consequentemente, sensações de prazer e autoconfiança que se traduzirão, dentre outros, na necessidade de acesso a serviços exclusivos (e melhores) como planos privados de saúde, escolas particulares etc. Gradativamente, o poder de consumo e a adoção do princípio neoliberal do Estado mínimo condicionam, subversivamente, o acesso limitado ao que deveria ser direito inalienável de todo cidadão: qualidade na saúde, educação, habitação e, tomando como base os tempos atuais, acesso a pacote de dados de internet etc. Entretanto, a ideia de igualdade social pela acessibilidade ao consumo é desmentida em tempos como esse, no qual o Brasil e o mundo passam a depender de um protagonismo estatal na garantia de direitos laborais, ajuda financeira (Seguro Desemprego, Ajuda Emergencial etc.), atendimento de saúde gratuito, dentre outras ações. Em linhas gerais, a gestão pública retoma sua importância prática. Enquanto na Europa parte dessa importância já está estabelecida como política de Estado regulador, em países desiguais como o Brasil, a crise do coronavírus evidencia: 1) Ineficiência política com parte do governo federal, em particular o presidente Jair Bolsonaro, sistematicamente negando as recomendações da Organização Mundial de Saúde e sendo repreendido por governos estaduais; 2) Falta de prioridade econômica na demora da liberação de verba para o Auxílio Emergencial; 3) Aumento da desigualdade social na

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TUALIZAÇÃO transformação da quarentena em privilégio, não em direito; 4) Sucateamento da saúde: Sistema Único de Saúde em vias de colapso. A gestão das prisões brasileiras é, nesse momento, a manifestação clara de todas as crises ao mesmo tempo. Quando o coronavírus chegou no estado de São Paulo, por exemplo, a primeira medida adotada dentro das prisões paulistas pelo governador João Doria, foi a restrição de visitas familiares e saída de presos. Em um primeiro momento, apesar de parecer coerente, a medida não considerou um novo regime para agentes penitenciários, os principais disseminadores do vírus, causando insatisfação e culminando em fugas e rebeliões de presos (SAMPAIO, 2020). O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) entrou com um pedido de liminar para que se reduzisse a população carcerária em presídios incapazes de controlar a disseminação interna do coronavírus, considerando que mesmo doenças recorrentes no sistema prisional, como tuberculose, HIV e leptospirose, não recebem tratamentos e medidas necessários para sua erradicação. A medida foi derrubada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal que se limitou, junto ao Conselho Nacional de Justiça, a lançar recomendações ao Poder Judiciário, como penas domiciliares aos grupos de risco (SAMPAIO, 2020). Segundo relatório do Depen (Departamento Penitenciário Nacional) de dezembro de 2019, o Brasil possui 29,75% de sua população carcerária total ainda aguardando julgamento (presos provisórios). Isso significa que quase um terço da terceira maior população carcerária do mundo está submetido à desumanidade do cárcere sem sequer ter tido direito à defesa. Essas pessoas poderiam ter, por exemplo, seus processos revisados, principalmente dada a urgência que essa crise demanda. Apesar de ações específicas por parte de defensores públicos, juízes e outros funcionários públicos, nenhuma medida em âmbito federal foi tomada. Um país como o Brasil, que não prioriza o desencarceramento, principalmente em tempos de pandemia, torna evidente uma política institucional de morte.

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“Não adianta querer, tem que ser, tem que pá O mundo é diferente da ponte pra cá Não adianta querer ser, tem que ter pra trocar O mundo é diferente da ponte pra cá (...) Da ponte pra cá, antes de tudo, é uma escola” Da Ponte Pra Cá | Racionais MC’s.


A ESCOLHA DO TERRENO É de comum entendimento que um processo acadêmico deva ser, acima de tudo, científico e comprovável. Pesquisar com empenho é fundamental para direcionar o olhar, abrir a mente e, de certa forma, contextualizar o que se propõe a estudar. Não podemos esquecer, no entanto, que um trabalho acadêmico procura trazer veracidade à experimentação de um ser humano em constante descobrimento, sendo dessa a maneira que escolhi o terreno de projeto: raciocinando sua escolha e buscando comprová-la vivendo o território.

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Após entender para quem construir, a segunda pergunta voltou-se para o lugar de onde o projeto poderia emergir. Onde estariam essas mulheres? Os dados e documentos oficiais não apresentam, infelizmente, repostas à essa pergunta, mas foi possível deduzir, após pesquisas e vivências, que a maior parte das mulheres (e homens) encarcerados são residentes das periferias. É interessante que reflitamos, primeiramente, acerca do termo “periferia”, começando por compreendermos que tal designação existe tão somente pela antítese ao “centro” da cidade – onde está a maior parte dos empregos, dos pontos turísticos, dos equipamentos de lazer e dos espaços públicos de qualidade. Apesar de bem servido, o “centro” não é acessível a todos: a disparidade entre investimentos públicos e privados na manutenção de seus espaços em detrimento dos espaços “periféricos” recai sobre a qualidade de vida daqueles que moram e estudam nas “periferias”. Isso significa que investimentos qualitativos e quantitativos em serviços básicos como saúde, educação e lazer fariam das “periferias” pequenos e potentes “centros”, diminuindo, por exemplo, distâncias e gastos de deslocamento e economizando tempo de descanso. Assim como o encarceramento em massa, a centralização do poder na cidade também é um projeto sócio-político econômico. O entendimento de que muitos dos fatores que levam ao crime começam pela falta de oportunidade dada à população das periferias aponta para uma urgência na descentralização, por exemplo, com arquitetos e urbanistas tomando para si a responsabilidade de pensar espaços de qualidade. É importante ressaltar, no entanto, que a criminalidade não deve ser automaticamente conectada à periferia, pois o centro é capaz, em igual medida ou pior, de ultrapassar os limites da lei à sua vontade. A diferença é que crimes cometidos pelas elites têm

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maior probabilidade de serem esquecidos, afinal, o “centro” tem como dever essencial jamais deixar escapar o poder de suas mãos. Apesar de trabalhar com mulheres e mulheres mães recém saídas do cárcere, pensar um projeto na periferia tornou-se a forma que encontrei, dentro dos limites de minha profissão, de quebrar o ciclo da violência que poderia levar à criminalidade. Além de conseguirem pensar seu futuro após o aprisionamento, essas mulheres poderiam, igualmente, partilhar com seus filhos, familiares e conhecidos a oportunidade do vislumbre de uma história sem prisão. Fazer emergir, portanto, um projeto em uma região “periférica” me pareceu uma forma honesta de buscar, a partir do que arquitetos e urbanistas podem oferecer, reparação às gerações egressas e uma chance de evitar a criminalização das gerações futuras. Trabalho há um ano e meio em uma startup de reformas, no bairro Jardim Ibirapuera, chamada Programa Vivenda, uma região “periférica” da Zona Sul de São Paulo. A experiência de trabalhar em um local que normalmente não precisaria frequentar – o que Mano Brown chamou de “Da ponte pra cá” – proporcionou-me o privilégio de rever uma série de pré-conceitos construídos e sustentados pela minha classe social, seja por insegurança, medo, manutenção do poder, indiferença e/ou por um racismo estrutural velado do qual, infelizmente, todos nós temos de nos despir. Familiarizada com estudos de Christopher Alexander e de outros pensadores a respeito de novas premissas para o desenho arquitetônico e concepção de projeto, parecia-me impossível escolher o terreno para a arquitetura sem uma familiarização real com o território. A intenção era poder compreender a experiência de quem o vivia cotidianamente, se haveriam momentos de insegurança e seus porquês, que cheiros oferecia, onde estavam as árvores, que tipo de árvores seriam, onde moravam as pessoas etc. – era essencial entender a dinâmica local. No Vivenda, felizmente, trabalho com pessoas que são, em sua maioria, moradoras da região e que, portanto, poderiam me apresentar o território e me contar sobre suas vivências. Foi então aos meus colegas que busquei ajuda, pedindo que partissem de apenas uma premissa: “pensem em lugares utilizados, mas que são inseguros”. Foi em uma noite de agosto, após o expediente na empresa, que saímos caminhando pelo território. Já era de noite e a falta de iluminação pública de qualidade nas ruas causava certa insegurança. Havia pontos escuros que despertavam desconfiança quando visualizados ao longe.

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Começamos por um terreno abandonado apresentado informalmente como Rua dos Porcos, entre as ruas Paulo Lemore e Rua Jorge Fares. Estava cheio de lixo, com carros estacionados e um rio no meio, como uma fenda na terra. Ao lado desse terreno fica um clube de treinamento do Corinthians, chamado Chute Inicial, e muitas casas em volta, construídas ao longo de uma encosta bastante íngreme. O terreno, no pé dessa encosta, era plano, seria fácil de trabalhar e teria diversas problemáticas a serem abordadas. Apesar das possibilidades técnicas do espaço, havia algo faltando ali – o chamado afetivo. Talvez fosse necessário buscar mais, pois havia uma luta entre o reconhecimento do potencial acadêmico e a experiência emocional – a problemática era interessante, mas a conexão era pouca. Prosseguimos com a caminhada, que durou em torno de uma hora, e visitamos poucos terrenos abandonados, afinal em regiões de favela a densidade é bastante alta. Obs.: Voltei a esse terreno recentemente (dezembro/2019), passando de carro ao visitar uma cliente, e notei a construção de um muro ao seu redor. Perguntei se havia algum projeto da prefeitura ou do dono particular para esse pedaço e me responderam que não, “era só pra ninguém entrar, moça”. Olhando para essa experiência de forma retroativa, o mais interessante, definitivamente, não foi encontrar o terreno que gostaria de trabalhar naquele dia, mas, sim, a descoberta empírica de um território que não frequentava para além do meu trabalho, no período da tarde. Dentro de todas as limitações possíveis que possa haver em apenas uma caminhada para a compreensão de um contexto complexo, foi essencial que houvesse a conexão emocional com o terreno escolhido a partir do entendimento da dinâmica de seu contexto imediato. Foi essa conexão que direcionou minha escolha e que possibilitou mais muitas outras caminhadas, agora desacompanhadas, depois daquele dia. Entre a Rua José Barros Magaldi e Rua Nova do Tuparoquera está um terreno pertencente à CDHU, muito grande, desabitado e de grande desnível, que é diariamente cruzado por pessoas como “corta caminho” para chegarem tanto ao Condomínio Campo Limpo (habitação social da CDHU) ou prosseguir para a Rua Nova do Tuparoquera. Pegamos a pequena rua da CDHU e entramos dentro do terreno, sem cerca. Foi nesse momento, olhando a vista limpa de uma cidade quase adormecida, que sabia que o projeto tinha de ser ali.

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Não sei se foi a visão de luzes ao anoitecer ou a brisa, mas havia algo de diferente naquele lugar. Em São Paulo, raramente conseguimos encontrar o horizonte porque as construções sempre estão acima dos nossos olhos. O vento, portanto, sopra interrompido, a luz é direcionada, os pássaros se apoiam em fios de energia – não há muita espontaneidade na forma como a natureza pode se manifestar no meio da cidade. Naquele terreno, no entanto, o vento soprava diferente, livre. Havia árvores, havia horizonte. Ao mesmo tempo em que eu estava em um lugar encantador, soube que ali era área de desova de corpos, uso e venda de drogas, justamente por ser um terreno abandonado. Ninguém passava lá à noite – principalmente mulheres – obrigados a fazerem um caminho mais longo e igualmente perigoso, pela rua vazia e mal iluminada. À luz do dia era possível cruzar o terreno por uma escada precária, de tijolos empilhados de forma improvisada, que, apesar de possibilitar a economia no trajeto, apresentava riscos severos de segurança. Era, em suma, uma vista rara, mas pouco acessível em função de um terreno perigoso e negligenciado. Vi, naquele momento, a oportunidade de cuidar daquela vista e poder dar nova vida àquele terreno, levando em conta a necessidade essencial de cruzá-lo com segurança e conforto, mantendo esse fluxo pré-existente importante. Ele teria, em contrapartida, a função de abarcar, em seus limites geográficos, novas possibilidades de espaço público democrático para os moradores e moradoras da região e os sonhos de milhares de mulheres criminalizadas, junto aos meus. Tínhamos, eu pessoa e ele terreno, grandes responsabilidades pela frente. Obs.: Admito que ignorei os 30 metros de desnível que separavam a Rua Nova do Tuparoquera da Rua José Barros Magaldi – isso era problema para outra hora.

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Imagem 28: Vista da rua José Barros Magaldi para o horizonte. O terreno escolhido está atrás da foto| Fonte: Acervo pessoal

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Imagem 29: Vista da rua JosĂŠ Barros Magaldi do terreno escolhido, ao fundo | Fonte: Acervo pessoal

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Imagem 30: Terreno da Rua dos Porcos, o primeiro a ser visitado. A foto foi tirada em outra visita, quando o muro jĂĄ estava sendo construĂ­do | Fonte: Acervo pessoal

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ESTUDO DO COMO: MATÉRIA PRIMA


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“A madeira é o material do futuro, se quisermos ter um futuro” Carlito Calil Neto, Rewood.


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: PENSAR NOVAS POSSIBILIDADES

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Vivemos atualmente um intenso movimento de conscientização quanto à importância do Desenvolvimento Sustentável não apenas em nossos meios de produção, na escala macro, mas em nosso consumo, relações interpessoais e com a natureza, na escala micro. Segundo o Relatório de Brundtland, de 1987: “Por Desenvolvimento Sustentável entende-se o desenvolvimento que satisfaz as necessidades actuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras para satisfazerem as suas próprias necessidades” (MARQUES, 2008), uma definição que pretende englobar não apenas a esfera ambiental, mas a social/ética e a econômica. A importância da conexão entre esses três pilares considera, por exemplo, que o crescimento do consumo, o desenvolvimento das indústrias e tecnologias e demais atividades não poderia jamais ultrapassar a capacidade de renovação dos recursos ambientais. Infelizmente, devido à superestimação da esfera econômica em detrimento dos objetivos sociais e ambientais, o mundo caminha a passos de desigualdade, desmatamento e repressão social. Tomando como exemplo o assunto abordado nesse trabalho, a superlotação de presídios evidencia o lucro (pilar econômico) pautado na desigualdade das prisões e condenações (pilar social) e na construção rápida e barata de instalações carcerárias feitas de concreto, cujo componente cimento é responsável, sozinho, por 8% das emissões de dióxido carbono (gás de efeito estufa) do planeta (RODGERS, 2018) (pilar ambiental). Sérgio Ferro, pintor, desenhista, arquiteto e professor da FAU-USP, abordou em diversos estudos a dimensão sociopolítica do material, dado que, por exemplo, a utilização do concreto na construção carrega consigo condições sine qua non para o sistema capitalista, como a alienação dos trabalhadores pela fragmentação dos processos na produção, a exploração da mão de obra com baixos salários (mais valia de Marx) e, para efeito de perpetuação do capitalismo, a retirada de direitos trabalhistas. Ferro procura sinalizar, portanto, que a escolha de um material vai além do seu valor estético – é a escolha de reprodução e manutenção, ou não, de um sistema econômico. A Arquitetura e o Urbanismo carregam o compromisso evidente de discutir o que seria esse desenvolvimento sustentável, visto que lidam com necessidades e sonhos humanos (pilar social), têm um regime de trabalho e atuação determinados também

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por uma conformação econômica geral (pilar econômico) e, por exemplo, são amplos utilizadores e difusores de materiais e crescentes inovações tecnológicas (pilar ambiental). Estamos, portanto, no epicentro dessa discussão. Procurando então abordar a dimensão sociopolítica ambiental do material no projeto, foi posta em questão a utilização da madeira como uma possível alternativa ao concreto, pelo destaque que vem ganhando no continente sulamericano ao espelhar exemplos de países na Europa e América do Norte. Atuando em duas frentes, a teórica e a prática, busquei contato com uma das únicas empresas especializadas em construção em madeira no Brasil, a Rewood, e segui com pesquisas teóricas sobre o desempenho do material e porque utilizá-lo. O desafio: entender como se daria a construção de uma habitação social em madeira do ponto de vista técnico, orçamentário e sensitivo. Não há dúvidas de que a construção em concreto parece, à primeira vista, a mais barata e é, sem dúvida, a mais aceita culturalmente (tendo maior tradição no Brasil), mas levando em consideração as três premissas da sustentabilidade e sua importância vital atualmente, pareceu plausível entender o projeto para além da esfera econômica. Pensar uma construção em madeira não é simplesmente substituir o material, mas conhecer suas propriedades técnicas, sociais e ambientais que complementam o resultado orçamentário. Para projetar em madeira é necessário pensar em madeira.

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Ligação Finger-Joint com cola estrutural | Fonte: Acervo pessoal


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IDA À REWOOD + PESQUISA TEÓRICA Fui visitar a Rewood três vezes entre o final de 2019 e começo de 2020. A fábrica, que fica no Taboão da Serra, tem aquele agradável cheiro de madeira sendo trabalhada e familiares barulhos de máquinas operando. Da primeira vez, fui recebida pelo Murilo, engenheiro da empresa, que não poupou seu tempo e nem sua curiosidade para me atender. Falei das egressas, da ideia do projeto e do desafio que queria enfrentar no desenho de uma habitação social construída em madeira com o maior respaldo possível na realidade. Precisava da Rewood para entender a melhor forma de pensar essas habitações e para entender orçamentariamente o que significava construir em madeira. Fiz várias perguntas, Murilo deu várias sugestões. Ficamos em reunião por mais de uma hora.

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Da segunda vez, fui recebida pelo Calil, dono da empresa, e mais uma vez pelo Murilo, os dois bastante solícitos e entusiasmados com a ideia. Eu queria mostrar meu primeiro esboço baseado não só no que o Murilo havia me contado, mas no que eu havia apreendido sobre as necessidades das principais usuárias daquele projeto. Calil me respondeu de forma objetiva que, mesmo caminhando na direção correta, eu ainda estava projetando para o concreto e não para a madeira. Foi assim que surgiu, após essa conversa produtiva, o segundo projeto da habitação. Conversei com Calil e com Murilo por e-mail mais algumas vezes para responder dúvidas menores e falar sobre a macro cobertura do institucional, solução a qual cheguei depois da minha segunda visita à Rewood. A terceira visita se deu em janeiro de 2020 para apresentar o que considerei o projeto final. Mesmo com algumas melhorias a serem feitas, o modelo foi aprovado e eu já poderia pedir o cálculo da estrutura para orçamento. O que veremos a seguir, em formato de entrevista, é uma série de perguntas feitas a Calil e Murilo (dono da Rewood e engenheiro da empresa, respectivamente) ao longo dos nossos encontros, somada às pesquisas feitas paralelamente sobre o material e seu desempenho. Esses aportes teóricos e práticos foram essenciais para o resultado final do projeto.

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- POR QUÊ MADEIRA?

Costumamos dizer que a madeira é a o material do futuro, se quisermos ter futuro. Isso significa que, para além de apresentar uma resposta plástica interessante, nos possibilitando projetar grandes vãos (de até 25m) e peças em diferentes formas, a madeira é renovável e tem baixo consumo de energia para extração, que seria a máquina que retira e o caminhão que leva. Além disso, um metro cúbico de floresta (nativa ou plantada) consome uma tonelada de dióxido de carbono, o CO2, que é um gás de efeito estufa. Se pensarmos em termos de poluição, além dos processos da construção em madeira não serem responsáveis por quase nenhuma poluição do ponto de vista da queima de materiais e liberação de gases de efeito estufa, o canteiro de obras também não tem poluição sonora significativa, o que, para os vizinhos também faz muita diferença. - FALANDO ENTÃO EM EXTRAÇÃO, COMO SE DÁ ESSE PROCESSO?

Nós trabalhamos com madeira das árvores pinus e eucalipto, extraídas de florestas plantadas, precisando do auxílio de máquinas, mesmo sendodo auxílio de máquinas mesmo sendo mais fácil extrair madeira de reflorestamento em comparação à nativa. - DIGAMOS QUE HAJA UM CRESCIMENTO DO MERCADO DA CONSTRUÇÃO EM MADEIRA. ISSO SIGNIFICA QUE VAMOS TER UMA MAIOR DERRUBADA DE FLORESTAS NATIVAS?

O crescimento do mercado da construção em madeira pode precisar de mais terras de floresta plantada, mas isso não significa que o desmatamento é proporcional a esse crescimento. Um eucalipto demora em torno de oito anos para crescer e poder ser extraído, contra trinta anos de uma árvore de mata nativa. Isso significa que a utilização dessa madeira de reflorestamento se dá em muito menos tempo, precisando de poucas terras novas. Além disso, é só pensar na Europa que tem um mercado mais estruturado de construção em madeira: eles não retiram floresta nativa de forma irresponsável, sem controle. - PENSANDO BREVEMENTE SOBRE ESSAS FLORESTAS PLANTADAS: COMO QUE FICA A QUESTÃO DA MONOCULTURA?

O local onde essas florestas plantadas vão ficar não é escolhido aleatoriamente. Na verdade, o que eles fazem é colocar uma faixa de mata nativa alternada com uma faixa de floresta plantada, de forma tal que se consiga ter troca entre fauna e a flora e procurar não empobrecer o solo.

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- A EQUIPE DE VOCÊS TEM QUE TER TREINAMENTO PARA TRABALHAR NA FÁBRICA? OU SEJA, TEM QUE SER MÃO DE OBRA ESPECIALIZADA?

O trato com a madeira exige sim uma mão de obra especializada não só pelas dificuldades de manuseio das máquinas e garantia do sucesso e estabilidade da estrutura, mas porque é um material que deve ter um acabamento perfeito. A madeira é afetiva. Por mais que a montagem seja terceirizada, quem garante o acabamento das ligações e de toda a estrutura é a Rewood. Estamos sempre buscando novos treinamentos para a equipe, então não necessariamente precisamos que o profissional já venha totalmente especializado, mas se ele já tiver um conhecimento prévio, melhor. - QUAIS SÃO OS PADRÕES DE SEGURANÇA PARA COM OS FUNCIONÁRIOS?

Bom, atendemos às normas de segurança que exigem o EPI, mas também fazemos treinamentos específicos sobre as máquinas (linha de vida, plataforma etc) e sobre os processos de execução. A ideia é de que o EPI sirva como o último recurso de uma cadeia de segurança que leva em conta nossos funcionários no manuseio do maquinário, no contato com materiais e no canteiro de obras, com a montagem. Pra te dar um exemplo, a cola estrutural que nós usamos é uma cola mais cara, importada, de cura a frio, ou seja, sem a necessidade de calor para que ela seque. Isso evita, por exemplo, que nossos funcionários exalem qualquer tipo de componente capaz de trazer algum dano à saúde. Colas mais baratas têm, na sua composição o formoldeído, um elemento cancerígeno, e que, pela necessidade de cura a quente, compromete a saúde de quem estiver manuseando ela. Nossa preocupação vai tanto ao encontro da qualidade do material que empregamos quanto dos processos de fábrica que utilizamos. - QUE SETORES SÃO PARCEIROS NA CONSTRUÇÃO EM MADEIRA?

As construtoras são grandes parceiras porque são responsáveis pela preparação do terreno e fundação dos projetos, mas também trabalhamos com empresas de caixilharia e infraestrutura. Para além disso, a concorrência com outras empresas de construção em madeira, em um mercado que ainda está se estruturando, é muito saudável. - COMO SE DÁ O TRATAMENTO DA MADEIRA?

O tratamento do eucalipto e do pinus são diferentes, apesar de muito parecidos. Para a madeira de eucalipto, usamos um impregnante chamado stain que é melhor que

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que o verniz e de forma superficial, sem que seja necessária uma penetração profunda na madeira. Para o pinus, usamos os preservantes CCA e o CCB, com tratamento por pressão que possibilita que o produto entre profundamente dentro dos veios da madeira. Esses preservantes não podem ser descartados no solo. - VOCÊS PENSAM NOS PROCESSOS DE DESCARTE?

Essa é uma preocupação que temos, mas que ainda estamos em busca de estruturar uma boa cadeia de descarte, porque cada material (os pregos, a cola, o pó de serra etc) exige um processo próprio. A cola, por exemplo, não tem descarte controlado então ainda é um desafio a se enfrentar. Temos encontrado alternativas ao pó de serra, por exemplo, na confecção de instrumentos musicais e painéis! - EXISTEM NORMAS PARA DESCARTE?

As normas de descarte variam de país para país. O descarte de madeira tratada, no Brasil, pede um controle por rastreio. Normalmente, os resíduos são queimados, não podendo ultrapassar 30% da sua quantidade total, para não atingir a camada de ozônio. - QUAIS SÃO AS GARANTIAS QUE A EMPRESA DÁ PARA A ESTRUTURA EM MADEIRA?

Primeiro, é importante lembrar que garantia é diferente de vida útil. Tomando, de novo, a Europa como exemplo, entendemos que a vida útil de um prédio em madeira é de mais de cem anos, se feitas as devidas manutenções. Já a garantia é dada pelas empresas, faz parte do contrato de serviço. Na Rewood, a garantia é de 30 anos estruturais e 50 anos contra cupins. Mas veja, não é que o prédio terá de ser refeito depois de 30 anos; A Rewood, no período de 30 anos de garantia, se responsabiliza pela substituição de peças e reparos sem que haja custo para o cliente, caso estejam sendo feitas as manutenções. É o mesmo raciocínio que aplicamos para um carro: se a gente não cuida, perde a garantia. - PENSANDO ENTÃO NA MANUTENÇÃO COMO RESPONSABILIDADE DO CLIENTE: DE QUANTO EM QUANTO TEMPO ELA DEVE SER FEITA?

Depende muito do nível de exposição das peças. Por isso, inclusive, que sempre colocamos rufos metálicos e canaletas: a madeira pode entrar em contato com a água, mas a água não pode ficar empossada porque aumenta as chances de penetrar nos veios da madeira. Costumamos recomendar manutenção de um em um ano para peças parcialmente

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expostas, mas é uma manutenção praticamente só estética, já que, sendo um material vindo da natureza, ele também pode ir se transformando. Dentro das edificações, praticamente sem exposição, a manutenção pode ser feita num período maior de tempo. Para nosso controle, a Rewood liga para os clientes oferecendo manutenção de tempos em tempos, fazendo um acompanhamento do desempenho das peças também. Assim podemos saber quem está dentro da garantia ou não e, também, nos certificarmos do nosso trabalho. - SABEMOS QUE A MADEIRA CARREGA O ESTIGMA DE FRAGILIDADE QUANDO PENSAMOS EM INCÊNDIOS. VOCÊ PODERIA COMENTAR UM POUCO?

Essa é uma ideia super errada porque, se fosse assim, os quartéis de bombeiros no Chile não seriam de madeira. Sim, a madeira entra em combustão mais rápido, mas ela também é capaz de, ao carbonizar, criar camadas que não deixam o oxigênio entrar, ou seja, o fogo não consegue se alastrar rapidamente. Isso interfere diretamente no tempo de evacuação, que é um dos grandes índices que determinam a segurança do material nesses casos. Quando fazemos cálculos estruturais para dimensionarmos o tamanho das peças levando em conta o tempo de evacuação, um dos cálculos que fazemos, explicando por cima, é, por exemplo, de que, a 1.900 graus Celsius, a madeira perde 3mm de espessura a cada uma hora. Isso nos permite calcular o tempo de evacuação versus o tamanho das peças. Para ajudar ainda mais, utilizamos um intumescente, o CKC, que é um produto antichamas que garante a proteção da madeira. - APÓS FINALIZADAS AS PEÇAS NA FÁBRICA, COMO SE DÁ O TRANSPORTE DO MATERIAL?

Pronta a peça, ela recebe uma primeira demão de impermeabilizante (para aguentar eventuais chuvas etc), é embalada e o transporte feito por caminhões. Inclusive, uma forma de baratear o custo da construção é pensar peças que atinjam, no máximo, 12 metros de comprimento. Dessa forma, utilizamos o menor caminhão, mais barato. - EM RELAÇÃO ÀS NORMAS BRASILEIRAS DE CONSTRUÇÃO EM MADEIRA, VOCÊ ACREDITA QUE AINDA SÃO NECESSÁRIOS AJUSTES, ADIÇÕES ETC?

Particularmente, eu acredito que as normas brasileiras abordam a construção em madeira de forma completa. Vai ter uma revisão agora dizendo que, caso falte algo importante na Normas Brasileiras, podemos adotar as Normas Europeias, que são as mais atualizadas do mundo.

141


- DE QUAIS PREMISSAS PODEMOS PARTIR PARA CONSEGUIR UMA CONSTRUÇÃO BARATA E DE QUALIDADE, PENSANDO QUE PODE SERVIR DE HABITAÇÃO SOCIAL EM UM PROJETO DO GOVERNO?

1. Cobertura leve: ajuda a não sobrecarregar a estrutura, diminuindo a quantidade de material empregado. Exemplo de cobertura leve seria: telha trapezoidal com uma manta termoplástica. 2. No mesmo raciocínio de criar menos peso para a estrutura, os fechamentos devem ser leves, como wood frame, steel frame e drywall. 3. Evitar a exposição das peças às intempéries. 4. Grid estrutural deve ser feito de forma modular, criando peças de mesmo tamanho. Quanto menos personalizado, mais barato. Um bom grid seria de 5mx3m. 5. Fazer balanços proporcionais na estrutura ajuda na sua estabilidade. 6. Barrotes no piso a cada 60cm. 7. Pensando no módulo compartilhado no meio, fazê-lo de alvenaria estrutural para que a estrutura se apoie nele. 8. Concentrar as áreas molhadas no lado da parede de alvenaria estrutural.

PARAFUSO

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DETALHE DE ENCAIXE DE UMA LAMELA


FINGER JOINT

MÁQUINAS

PRÉ-LAMELAS

COLA ESTRUTURAL

RESULTADO FINAL

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APRESENTAÇÃO 144

nome capítulo


145

nome capítulo

ESTUDO DO QUÊ: PROPOSIÇÃO ARQUITETÔNICA


Foi necessário um estudo aprofundado das curvas de nível do terreno, pensando o desenho das ruas primárias e secundárias de forma favorável ao escoamento correto da água pluvial. Ambos Complexo Habitacional e Institucional foram dispostos em conformidade com o entendimento do traçado viário interno, buscando a menor movimentação de terra possível. As posições dos projetos dentro do terreno compreendem as necessidades de cada experiência – a privacidade das habitações, a atratividade das áreas públicas etc.

146

estudo do quê?


DIAGRAMA GERAL SEM ESCALA 1

2

a

b

c

1_

complexo habitacional

a_ elevador público

2_ complexo institucional b_biblioteca pública c_quadra pública 147

estudo do quê?


IMPLANTAÇÃO escala 1:1.750

148

estudo do quê


8

3

2

6

1

4

7

5

Legenda:

COTA 23 escala 1:1.750 149

1) Salas de Aula 2) Espaço Infanto - Juvenil + lazer 3) Cozinha Experimental + banheiro 4) Biblioteca pública

5) Quadra pública 6) Horta comunitária 7) Complexo habitacional 8) Elevador público

estudo do quê


1

4

7

5

COTA 20 escala 1:1.750

Legenda: 1) Salas de Aula 4) Biblioteca pública 5) Quadra pública 7) Complexo habitacional

150

estudo do quê


4.1

7

5

Legenda:

COTA 17 escala 1:1.750 151

4.1) Biblioteca: primeiro pavimento (entrada, armários, espaço de informática, leitura e estudo) 5) Quadra pública 7) Complexo habitacionalro

estudo do quê


4.2

7

5

COTA 14 escala 1:1.750

Legenda: 4.2) Biblioteca Pública: térreo (entrada, armários, banheiros, administração) + espaço para apresentações 5) Quadra pública 7) Complexo habitacional

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estudo do quê


153

estudo do quĂŞ?


CORTE AA escala 1:250

154

estudo do quĂŞ


CORTE BB escala 1:250 155

estudo do quĂŞ


CORTE CC escala 1:250

156

estudo do quĂŞ


157

estudo do quĂŞ?


158

nome capĂ­tulo


159

nome capítulo

COMPLEXO HABITACIONAL


A habitação social proposta é a concretização dos sonhos de muitas mentes. Tendo, nesse caso, as mulheres e mulheres mães egressas como centro gerador de indagações, o intuito do projeto é trazer a possibilidade de sua aplicação em diferentes contextos, considerando a necessidade amplamente discutida de habitações estatais de maior qualidade técnica e afetiva. Isso significa que, seguindo a linha de aplicação dos padrões de Christopher Alexander (alguns citados no partido de cada elemento), o que se observa na constituição do projeto poderá servir de parâmetro para novas ideias, reorganizadas e igualmente potentes.

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INTENÇÃO DE PROJETO

15

Distribuição de casas de baixo gabarito para que não se perca a identificação afetiva com os espaços, o sentimento de pertencimento e responsabilidade de manutenção dos mesmos. Padrão 21: Limite de 4 Andares – Acima dessa altura, os moradores se sentem desconectados do solo e de qualquer função social, onde o solo é o maior potencializador (SALÍNGAROS, 2005 apud ALEXANDER, 2004).

161

15


Módulo comum no meio: Lavanderia e cozinha compartilhadas cuja estrutura de tijolo baiano carrega a tradição construtiva da região e ajuda na diminuição da robustez da estrutura de madeira, apoiada nas paredes de alvenaria. Dessa forma, torna-se possível a diminuição do orçamento.

Estrutura: A madeira traz questões técnicas importantes e novas perspectivas para o mercado da construção civil (possível desenvolvimento da indústria nacional, rapidez na montagem, limpeza na obra, preço competitivo, etc). Além disso, é um material que traz conforto térmico, afetivo e segurança contra incêndios. 162

1_ Telha metálica trapezoidal 2_Viga de cobertura (MLC) = 8,40m x 0,35m 3_ Pilar (MLC) = 5,85m x 0,15m 4_ Barrote (MLC) = 7,15m x 0,20m 5_ Viga (MLC) = 2,85m x 0,30m 15


Quatro habitações unifamiliares: Quatro layouts diferentes que podem variar a posição de acordo com a necessidade de projeto: 2 layouts não acessíveis e dois layouts acessíveis (projetados a partir da Cartilha de Orientação de Acessibilidade, elaborada pela Comissão de Acessibilidade CREA-SC, em 2017). Padrão 112: Transição de entrada – Encoraje as pessoas a construir um espaço de transição, por mais modesto que seja (SALÍNGAROS, 2005 apud ALEXANDER, 2004).

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15


_Cobertura em telha metálica trapezoidal

DIAGRAMA | HABITAÇÃO sem escala

_Estrutura da cobertura em MLC

164

_ Estrutura das habitações em MLC

_ Habitação 01:
wood frame + osb + acabamento _ Habitação 02:
wood frame + osb + acabamento _ Módulo compartilhado
(cozinha e lavanderia): estrutura em tijolo baiano _ Habitação 03:
wood frame + osb + acabamento _ Habitação 04:
wood frame + osb + acabamento

15


165

15


166

15


167

15


Layout não acessível

Cozinha compartilhada

Layout acessível

PLANTA BAIXA | TÉRREO escala 1:200

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15


Layout acessível

Lavanderia compartilhada

Layout não acessível

PLANTA BAIXA | PRIMEIRO PAVIMENTO escala 1:200 169


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nome capĂ­tulo


ORÇAMENTO HABITAÇÃO SOCIAL

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Orçamento elaborado e fornecido pela empresa Rewood

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16


Orรงamento elaborado e fornecido pela empresa Rewood

172

16


Orรงamento elaborado e fornecido pela empresa Rewood

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16


174

nome capĂ­tulo


ORÇAMENTO CONCLUSÃO O orçamento elaborado pela empresa Rewood evidencia o entendimento da esfera econômica do material, levando-se em conta também custos indiretos como transporte, tipo de contratação da mão de obra etc., essenciais para a percepção de sua complexidade. A tentativa de comparação orçamentária total entre a habitação em madeira versus a mesma habitação em concreto, conforme foi possível compreender ao longo das pesquisas, poderia resultar em um estudo incompleto e infiel à realidade, caso não fossem consideradas todas as premissas necessárias de custos diretos (estrutura, fechamento, esquadrias etc) e indiretos (logística, legislação estadual, regime contratual etc), além dos impactos sociais e ambientais agregados. Seria uma tese em si.

17

O respaldo econômico é apenas um dos três pilares necessários no desenvolvimento sustentável, mas é inegavelmente o que mais é levado em conta quando uma decisão final deve ser tomada. Utilizar um material menos usual permitiu a elaboração de um projeto estrutural que chegasse a um valor de R$478,19/m2, preço bastante competitivo quando comparado ao valor de R$959,71/m2, segundo o Boletim Econômico de março de 2020, elaborado pelo SindusCon-SP (Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo) para residências unifamiliares de baixo padrão em concreto. É necessário observar, ainda, que o valor do metro quadrado da construção em madeira considera uma capacidade estrutural de comportar até quatro famílias, enquanto o valor apresentado para o metro quadrado em concreto se refere a residências de apenas uma família. Isso significa que a construção em madeira é mais barata? Não necessariamente. No entanto, a busca por um respaldo real no preço das habitações sociais em madeira, elaboradas para esse trabalho, permitiu que fosse dado mais um passo em direção a novas formas de pensar e elaborar projetos. Isso significa, em suma, que talvez seja possível pensar uma metodologia mais humana em Arquitetura e Urbanismo, com idas a campo e conversas interessadas; com a participação fundamental do poder público e de setores da iniciativa privada. À luz do experimento projetual em Mexicali, proporcionado por orçamento estatal, sem essa jornada, talvez a casa fosse mais barata, mas talvez fosse menos atraente. Talvez, sem o tempo do diálogo, não tivesse um núcleo comum com lavanderia e cozinha compartilhadas ou a lembrança de uma cozinha interna menor em tempos de introspecção. Talvez, arrisco dizer, nem mesmo a casa existiria.

175

17



Interior da Habitação



Interior do MĂłdulo nĂŁo compartilhado


20


SaĂ­da do elevador pĂşblico para vila



Rua Principal da Vila


184

nome capĂ­tulo


185

nome capítulo

COMPLEXO INSTITUCIONAL


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nome capítulo

“A qualidade da educação começa pela dignidade dos espaços” Sergio Fajardo, ex-prefeito de Medellín (2004-2007), hoje governador de Antioquia.


ESTUDO DE CASO URBANO: O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DE MEDELLÍN, COLÔMBIA Imagem 31: Vista panorâmica de São Paulo, Brasil | Fonte: Azul

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Imagem 32: Vista panorâmica de Medellín, Colômbia | Fonte: Hayo Magazine

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Imagem 34: Comuna 13, MedellĂ­n - ColĂ´mbia | Fonte: Mark Stewart

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Imagem 33: Jardim São Luiz, São Paulo - Brasil | Fonte: Phill Costa

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Medellín traz um passado de muita violência, corrupção e insegurança em função de conflitos armados entre guerrilhas, grupos paramilitares e o narcotráfico, assim como Bogotá e outras cidades pela Colômbia. Em 1990, os índices de homicídios colocavam Medellín entre as mais violentas do mundo ao lado de outras cidades em guerra civil pelo mundo. Foi esse contexto nacional instável que converteu Medellín em um refúgio para muitos migrantes em busca de novas oportunidades, constituindo hoje 20% da população da cidade.

Gráfico 9: Evolução de Taxa de Homicídios na Colômbia (entre 1999 e 2013) mostra as altas taxas de homicídio em Medellín em comparação com as outras cidades | Fonte: Liliana María Sánchez Mazo e Luis Alberto Hincapié Ballesteros

Como em São Paulo, a chegada de migrantes também foi responsável pela expansão das periferias da cidade, ocorrendo, no caso da cidade colombiana, o crescimento populacional periférico cada vez mais longe das margens do Rio Medellín (ponto inicial de origem de Medellín). Em ambos os contextos, as novas terras habitadas são de solo impróprio para a construção massiva de assentamentos, devido à sua instabilidade e topografia acidentada (Mapa 2). Atualmente, quase 60% do território de Medellín é constituído pelo que, no Brasil, é considerado “favela” (GHIONE, 2014). A exemplo de Bogotá que, entre 1955 e 2005, passou por um processo intenso de requalificação urbana, a articulação entre gestão pública, sociedade civil, iniciativa privada e academia tornou-se estratégia indispensável para a formulação de um novo projeto de cidade em Medellín. Na década de 90, a Colômbia estava passando por uma relevante transição política, com a mudança de uma Democracia Representativa para uma Democracia Participativa, na Constituição Política de Colômbia (MAZO; BALLESTEROS, 2016). Esse processo permitiu um novo olhar acerca da importância dos espaços públicos para a

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Mapa 2: Evolução de Crescimento Urbano de Medellín. Pode ser observada a expansão urbana da cidade a partir do Rio Medellín, seguindo para áreas mais afastadas não apenas da oferta de emprego como de disponibilidade de transporte público, equipamentos públicos de saúde, turismo etc. | Fonte: Liliana María Sánchez Mazo e Luis Alberto Hincapié Ballesteros

Mapa 3: Estrato Socioeconômico e Desastres Naturais. Os estratos socioeconômicos mais baixos encontram-se cada vez mais longe do Rio Medellín, onde o há maior movimentação de terra e inundações | Fonte: Liliana María Sánchez Mazo e Luis Alberto Hincapié Ballesteros

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integração social democrática e diálogo popular participativo. Foi feita, por exemplo, a alteração da Lei 9/89, que permitiu ultrapassar “a visão de ilegalidade dos assentamentos precários ao fundamentar-se na função social e ecológica da propriedade, na prevalência do interesse geral sobre o particular, na função pública do urbanismo, na distribuição equitativa dos encargos e benefícios, e incorporando conceitos do debate internacional como melhoria, realocação e prevenção” (GHIONE, 2014). Foi esse o marco e guia para a aprovação, execução e gestão do Plano de Desenvolvimento de Medellín (PDM) oriundo dos Planos de Desenvolvimento Municipal (também PDMs) e Planos de Ordenamento Territorial (POTs), esse de ordem federal. Pensar a organização e execução das cidades a nível nacional possibilitava a criação de modelos de desenvolvimento continuado para as cidades, considerando que muitos projetos excediam os períodos de governo. Os Planos de Desenvolvimento Municipal (PDMs), portanto, deveriam estar alinhados com os Planos de Ordenamento Territorial (POTs). Outra estratégia garantiu a continuidade de projetos através dos períodos de governança: a transformação, em 2002, da EDU (Empresa de Desenvolvimento Urbano) em pessoa jurídica, com autonomia administrativa e financeira. A EDU fora criada em 1990 como organismo da Prefeitura de Medellín para promoção imobiliária e desenvolvimento de projetos urbanos – isso significava, portanto, que estava estruturalmente atrelada às decisões do poder público. Ela é, hoje, a responsável pela projeção e execução de todos os PUIs (Projetos Urbanos Integrais) – subdivisões do Plano de Desenvolvimento de Medellín (PDM) – ao longo desses 15 anos de transformações urbanas. A EDU é gerida pela Junta Diretora, composta pelo prefeito e pelos Diretores Executivos, garantindo, além de autonomia integral da empresa, uma participação significativa do poder público como regulador. Foi a partir da administração do ex-prefeito Sergio Fajardo Valderrama (entre 2004-2007), hoje governador da cidade de Antioquia, que se deu início ao processo responsável pela transformação da cidade de Medellín, ao longo de quinze anos, com enfoque na requalificação, transformação e criação de espaços públicos democráticos e de qualidade. A estratégia da transformação do Plano de Desenvolvimento Municipal de Medellín, chamado Compromisso de Toda Cidadania, segundo o próprio Fajardo, esteve baseada em três questões: “implementação de um sistema de transporte público e de acessibilidade eficiente e qualificado (o Sistema Integrado de Transporte Metropolitano), provisão de serviços públicos de qualidade para toda a população e planejamento urbano e territorial de longo prazo [fortalecendo as centralidades dos bairros]” (GHIONE, 2014). Além disso, pretendia garantir a segurança da população residente de áreas de risco, realocando-a para conjuntos habitacionais. Essas foram as premissas para a criação dos Projetos Urbanos Integrais (PUIs). Já os pilares

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políticos se pautavam no combate irrestrito à corrupção, transparência nas decisões, participação popular e prioridade a equipamentos de cultura e educação. Foi o projeto eleito como “pagamento da dívida social com as regiões esquecidas pelo estado por anos”, com o slogan “Medellín, La Más Educada” (GHIONE, 2014). A gestão de Fajardo (2004-2007) e a gestão de seu sucessor, Alonso Salazar Jaramillo (2008-2011), que procurou seguir a mesma linha de intervenções políticas de seu predecessor, permitiram o desenvolvimento de programas como os Parques Bibliotecas (equipamentos de acesso democrático com programas culturais e educativos), Colégios de Qualidade (programa focado no ensino Fundamental e Médio), programa Buen Comienzo (criação de creches para o desenvolvimento de qualidade da primeira infância) e muitos outros, buscando a continuação de elaboração dos PUIs pela cidade (Mapa 4). Já nas gestões de Aníbal Gavíria (2012-2015) e Federico Gutierrez (2016-2019), criaram-se as Unidades de Vida Articulada (UVAs), com programas de lazer e esporte voltados para toda a comunidade, além da proliferação de praç

Mapa 4: Projetos Urbanos Integrais (PUIs) de Medellín. É possível observar a distribuição de PUIs pela cidade de Medellín na gestão de Fajardo (2004-2007) e de Salazar (2008-2011) | Fonte: Liliana María Sánchez Mazo e Luis Alberto Hincapié Ballesteros

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Imagem 35: Parque Biblioteca España, Medellín – Giancarlo Mazzanti | Fonte: Sergio Gómez

Imagem 36: Jardim Infantil Buen Comienzo “Presbítero Roberto Seguín”, Medellín Colômbia | Fonte: Minuto 30

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estudo do quĂŞ? 18


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nome capítulo

“La arquitectura pública siempre será una arquitectura urbana; aquella que toma como programa no solo el edificio, sino que se deriva de la atención a otras variables presentes en el contexto” Sociedad Colombiana de Arquitectos, XXV Bienal Colombiana de Arquitectura y Urbanismo.


ESTUDO DE CASO INSTITUCIONAL: AS UNIDADES DE VIDA ARTICULADA (UVAS) As Unidades de Vida Articulada são projetos de transformações urbanas em bairros majoritariamente contemplados nos PUIs, como podem ser observadas as suas diferentes localizações (Mapa 5), qualificando espaços de encontro por meio do fomento ao esporte, recreação, cultura e demais usos configurados pela própria população local, usuária. Sua execução e gestão são feitas pela EDU (Empresa de Desenvolvimento Urbano), mas com participação integrada do INDER (Instituto de Esportes e Recreação, órgão público independente da Prefeitura, responsável pelo fomento ao esporte, às atividades físicas e à recreação), da Secretaria de Cultura Cidadã (apoio financeiro e de gestão a projetos ligados à cultura) e da EPM (Empresas Públicas de Medellín, responsáveis pelo fornecimento de serviços públicos básicos como energia, água, saneamento básico e gás e o fomento à educação e cultura).

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Mapa 5: Localização das UVAs em Medellín. Integração da localização das UVAs com os PUIs, salientando a importância de projetos integrados na esfera urbana | Fonte: Liliana María Sánchez Mazo e Luis Alberto Hincapié Ballesteros

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O projeto das UVAs foi pensado a partir do Plano Maestro de Iluminação de Medellín (PMIL), estruturado pela EPM, seguindo os princípios do POT de Medellín (que pensa uma cidade sustentável) e do Regulamento Técnico de Iluminação e Iluminação Pública. Junto de outras sessenta cidades membros, o Plano Maestro estabelece critérios comuns que visam a segurança e inclusão social nas cidades, com acesso irrestrito à iluminação pública, valorizando a economia local. Foram estabelecidos quatro princípios para o PMIL a partir das premissas do POT e do Regulamento Técnico: “Social (inclusão), Ambiental (sustentabilidade), Técnico (infraestrutura de serviços públicos) e Espacial (urbano e arquitetônico)” (MAZO; BALLESTEROS, 2016). A escolha da localização de implementação dos projetos das UVAs foi feita, portanto, a partir do cruzamento de dados de áreas com pouca iluminação pública e dos índices de insegura na cidade, localizando infraestruturas como os tanques de armazenamento de água subtilizados da cidade, muitas vezes, cercados por muros. Eram grandes vazios urbanos geradores de insegurança. Dessa forma, os tanques mapeados foram divididos em três tipologias diferentes com base em sua localização: • “Entorno Natural, localizadas em meio à vegetação natural, fora do perímetro urbano e com baixa possibilidade de fruição pública; • Entorno Suburbano e Subrural, localizadas nos limites da cidade, com baixa atividade urbana e com possibilidades de se articular aos futuros projetos de contenção do crescimento da cidade; • Entorno Urbano, aquelas que se encontram em áreas extremamente adensadas que carecem de espaço público e com alto potencial de ocupação como uma rede de Parques Urbanos.” (MAZO; BALLESTEROS, 2016) A partir do mapeamento dos tanques, foram desenvolvidas duas tipologias possíveis de UVA, caracterizadas de acordo com a dificuldade de intervenção no território, complexidade projetual e orçamento. A tipologia A, ou “leve”, é desenhada, construída e gerida pela EPM (Empresas Públicas de Medellín), no perímetro dos tanques de água. A solução foi dar nova vida a esses tanques por meio de programas mais simples de brinquedotecas, salas de internet, auditório e espaços de multiuso. A tipologia B, ou “pesada”, cujo desenho é realizado pela EDU e gerenciamento e construção feitos pelo INDER, conta com um programa extenso com quadras poliesportivas, piscinas, skateparks, auditório, salas de aula, dentre outras possibilidades.

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As primeiras unidades de UVAs forma inauguradas em abril de 2014, sendo prevista, no total, a construção de vinte – doze de responsabilidade de EPM (a duas últimas entregues no início de 2017) e oito de responsabilidade do INDER, com quatro construídas atualmente.

Imagem 37: UVA Los Sueños (Tipo A), Medellín – Colombia | Fonte: EPM

Imagem 38: UVA La Imaginación (Tipo A), Medellín – Colombia | Fonte: EPM

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nome capítulo

“La arquitectura y el urbanismo como plataformas de encuentro entre el Estado con sus programas y proyectos y las comunidades con sus sueños e ideas logrando una innovación social” Sociedad Colombiana de Arquitectos, XXV Bienal Colombiana de Arquitectura y Urbanismo.


UVA EL PARAÍSO (TIPO B) A UVA El Paraíso é importante como estudo de caso para a parte institucional/pública do terreno, porque traz não apenas a importância da solução estética contundente e estruturalmente rentável como projeto de orçamento público, mas também é o resultado de um desenho participativo, feito com a comunidade local, respeitando as dinâmicas e memórias intrínsecas ao território.

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A exemplo de outras UVAs projetadas pela EDU (Empresa de Desenvolvimento Urbano), El Paraíso faz parte de uma estratégia de consolidação de novas centralidades urbanas nas periferias de Medellín (no caso desta, a comuna de San Antonio de Prado), vinculadas pelo meio do Rio La Cabuyala como, eixo ambiental, e da Biblioteca Parque San Antonio de Prado, como um equipamento cultural existente. Junto a esse eixo de transformação, o programa busca suprir, dentro do possível, a alta demanda gerada pela própria comunidade rural, em expansão, por atividades esportivas, culturais e musicais. Em 2015, a construção de El Paraíso beneficiou em torno de 95mil habitantes em seu entorno, gerando mais de 200 empregos para a região. O projeto nasce a partir de uma quadra preexistente, com quatro módulos diferentes à sua volta, sendo ela a principal articuladora de todos os programas. É um projeto sustentável não só pela preocupação com a preservação de parte da vegetação existente e trabalho com iluminação e ventilação naturais, mas, também, pelo posicionamento estratégico no terreno ao seguir suas curvas de nível originais (valendo-se delas para a concepção estética dos módulos). Além disso, é um projeto de construção coletiva, considerando ideais e sonhos locais, com um protagonismo do usuário final, buscando gerar sentimentos como o de pertencimento e responsabilidade coletiva pela manutenção dos espaços. O edifício é construído em concreto aparente moldado in loco, composto por elementos de proteção solar verticais (brise soleil) cujas cores foram escolhidas pela própria comunidade. A opção pelo concreto, nesse caso, parece adequada, pois há uma interação direta com o terreno, gerando a demanda por um material mais resistente à umidade e movimento do solo. Por possuir pouca oferta de lotes para a geração de novos espaços públicos, um pressuposto importante para a otimização da área do edifício foi a utilização de suas coberturas como parques para encontro público. Valendo-se das curvas de nível do terreno, as coberturas se convertem em mirantes para a cidade, abrigando desejos

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externalizados pela comunidade como a construção de um ginásio ao ar livre, com pista de skate, parquinho infantil, praça para eventos comunitários e um espaço interativo com água, levando sempre em conta a importância da acessibilidade como estratégia também de democratização dos espaços. Nas áreas internas dos edifícios, o programa conta com atividades de treinamento e formação, salas de ensaio de música, salas de gravação, centro esportivo, auditório, salas de dança, ludoteca etc. A UVA El Paraíso é um dos muitos exemplos da concretização efetiva do propósito de gestões públicas comprometidas com o bem estar social de forma democrática. Ela é a comprovação de que a articulação de uma frente ampla que considere poder popular, poder público e iniciativa privada pode ser, sim, uma opção viável com a qual a Arquitetura e o Urbanismo conseguem trabalhar. Os projetos federais e municipais da Colômbia ensinam que é possível sonhar, basta prioridade e articulação.

Imagem 39: Vista aérea da UVA El Paraiso com a Biblioteca Parque San Antonio de Prado ao fundo – Medellín, Colômbia | Fonte: EDU

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Imagem 40: Biblioteca Parque San Antonio de Prado | Fonte: Dairo Correa

Imagem 41: Crianรงas brincando na UVA El Paraiso | Fonte: EDU

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Imagem 42: Vista interna da área de lazer infantil na UVA El Paraiso | Fonte: EDU

Imagem 43: Planta da UVA El Paraiso com a designação de cada espaço projetado | Fonte: EDU

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estudo do quĂŞ? 19.1


206

nome capítulo

“O que se deve copiar de Medellin não são os projetos, mas a metodologia” Gustavo Restrepo, um dos arquitetos responsáveis pela transformação em Medellín.


A PARTICIPAÇÃO DE ARQUITETOS E URBANISTAS NA CONSTITUIÇÃO DE MEDELLÍN A Arquitetura e o Urbanismo se encontram, atualmente, em um momento difícil, estando cada vez mais claro que a mudança estrutural da nossa profissão se faz extremamente necessária. Nos corredores das faculdades, no entanto, apesar de o desejo por inovação ser grande, o “mas por onde começar?” provoca uma certa inércia quando pensamos na nossa relação frágil com o mercado hoje, nosso jovem conselho sindical (o CAU/BR e os 27 CAU/UF foram fundados em 15 de dezembro de 2011, segundo o próprio site do Conselho), a nossa autorrestrição quanto a quais extratos sociais atender e os diversos desafios em lidar com o poder público.

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Apesar de nossa profissão enfrentar grandes barreiras no Brasil, é entusiasmante ler a entrevista que o arquiteto colombiano Gustavo Restrepo, coordenador do processo de reabilitação da Comuna 13 (uma das comunas mais perigosas de Medellín, hoje ponto turístico da cidade) e implantação do Metroplus (parte do sistema de ônibus de Medellín), concedeu ao CAU/BR, em 2016. A entrevista ocorreu durante o evento Urban Thinkers Campus Recife, promovido pela UNHabitat no Brasil. É o depoimento de um arquiteto que foi a campo entender a sua função social. Talvez o “por onde começar” esteja na nossa urgente necessidade em (re)aprender a falar com todo tipo de usuário potencial. Gustavo Restrepo tem a autoridade de quem coordenou diversos projetos de reurbanização e criação de espaços de qualidade na cidade de Medellín. Sua metodologia perpassa, em primeiro lugar, o entendimento de que o arquiteto deve entender seu papel enquanto roda da grande engrenagem que é o planejamento urbano, indo além da tarefa de organização espacial. “É uma tarefa multidisciplinar que envolve assistentes sociais, advogados, médicos, engenheiros e outros profissionais que se unem para construir os sonhos de uma comunidade”, comenta Restrepo (CAU/BR, 2015). Em segundo lugar, Restrepo fala na importância do arquiteto entender que o cliente do planejador urbano não deve ser o prefeito, mas os cidadãos – os verdadeiros usuários dos projetos. “Nós temos que trabalhar com as pessoas. São elas que têm problemas, que não são iguais para todos, cada bairro é distinto, assim como seus sonhos”, completa

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Restrepo. (CAU/BR, 2015). A metodologia é pautada em três fases: o antes, o durante e o depois. O impulso inicial partiu da gestão do prefeito Sergio Fajardo (de 2004-2007) ao lançar o programa “Medellín, La Más Educada”, buscando superar as mazelas deixadas pelo narcotráfico. Restrepo salienta a importância da participação do cidadão como gestor de seu próprio crescimento, para além da educação coletiva. Em Medellín, essa nova cultura cidadã foi fundamental para o sucesso de implementação de um plano urbano integrado sem a gentrificação da região e mantendo sua identidade. Arquitetura é ética”, comenta (CAU/BR, 2015) A primeira fase da metodologia é procurar saber quais são os sonhos e as histórias da comunidade. “Para se chegar a eles, nada melhor que pedir para as pessoas contarem suas histórias de vida. Uma volta às raízes”, diz Restrepo (CAU/BR, 2015). Nessa etapa, os atuantes principais são os assistentes sociais, agentes do território, que identificam os líderes locais. “Nesse diálogo precisamos construir confiança. Por exemplo, em Medellín nunca perguntamos às pessoas sobre as drogas, se há alguém da família nesse mundo. Se as pessoas se sentirem à vontade elas contam, mas nesse aspecto o que mais nos importa é identificar os pontos de drogas, dado fundamental para construirmos rotas seguras para as pessoas caminharem pela comunidade” (CAU/BR, 2015). Feitas as entrevistas, na segunda fase da metodologia entram em cena os arquitetos, que percorrem o território junto aos líderes locais elegidos. São, em média, seis quadras por dia para cada profissional (CAU/BR, 2015). “Nessa caminhada as pessoas vão contando os problemas de cada área, a necessidade de um posto de saúde perto de uma escola, os pontos mais vulneráveis e assim por diante” (CAU/BR, 2015). Ao final de cada dia, os dados coletados pela equipe são transferidos para um mapa digital, georreferenciado, resultando em uma radiografia integral da região para além dos dado técnicos – é um mapa dos problemas e sonhos coletivos dos moradores. Somado a esse processo, é preciso estabelecer as prioridades, sendo elas conformadas em uma gradação de três cores: vermelho, amarelo e verde. A ideia é sempre começar pelas amarelas, pois possuem grau médio de complexidade e podem servir de referência para próximas intervenções. São feitos, então, grandes mapas estendidos pelo chão de um espaço comunitário, permitindo visão integral às pessoas sobre as soluções urbanísticas e equipamentos públicos imaginados pela equipe de projeto. Só após essa troca de opiniões com a comunidade que os projetos executivos são elaborados.

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A terceira fase da metodologia é continuar junto à comunidade, oferecendo manutenção ao que já foi feito (junto ao zelo comunitário pelos equipamentos co-criados) e elaborando novos projetos. É muito importante haver continuidade, “pois a administração tem que crescer junto com o cidadão desde que ele é criança até a fase adulta”, diz Restrepo (CAU/BR, 2015). A execução dos projetos é feita pela Empresa de Desenvolvimento Urbano (EDU), com participação de arquitetos escolhidos pelo reconhecimento público e/ou por concursos, possuindo três categorias: municipais, onde apenas participam profissionais da cidade; nacionais, para arquitetos de toda a Colômbia; e internacionais, não restritos a profissionais colombianos. “Se queríamos uma cidade educada, que incentivasse as pessoas a conversarem e chegarem a consensos, tínhamos que garantir a diversidade. Nesse sentido, os concursos ajudaram muito, trazendo uma diversidade de soluções arquitetônicas e urbanísticas, além de nos trazerem um reconhecimento nacional e, em alguns casos, também internacional”, comenta Restrepo (CAU/BR, 2015). Os concursos sempre exigem a inclusão de profissionais de diferentes áreas, estando de acordo com a visão multidisciplinar da administração. O júri é, portanto, composto por um representante da comunidade, um arquiteto e um prefeito.

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Inspirado nas metodologias e soluções arquitetônicas apresentadas nos estudos de caso colombianos, a elaboração do complexo institucional procura, assim como as habitações, convergir questões apresentadas por um nicho específico da população (mulheres e mulheres mães egressas) e de populações menos privilegiadas, de uma forma geral. A necessidade por espaços públicos de qualidade é amplamente discutida nas “periferias” de São Paulo e pelo país, pois são capazes de potencializar dinâmicas locais pré estabelecidas e compreender novas demandas. Espaços públicos não são apenas boas praças e campos de futebol patrocinados pelas prefeituras e subprefeituras – são a participação efetiva do poder público no fomento à cultura e à educação por meio, por exemplo, de projetos qualificados e qualificadores, capazes de atrair e confortar a população local. Além disso, a manutenção desses projetos e o comprometimento público na formação de profissionais capacitados para a gestão desses espaços se compreende indissociável. O projeto do complexo institucional procura abarcar essas principais questões.

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INTENÇÃO DE PROJETO

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1_Salas de aula: As salas de aula seriam espaços de aprendizado tanto para cursos mais acadêmicos (como leitura de livros e histórias para crianças) quanto com enfoque na (re)inserção no mercado formal de trabalho, como empreendedorismo, elaboração de currículos etc. Os cursos poderiam ser oferecidos por empresas interessadas, com um acompanhamento do setor público, sendo responsáveis pela absorção de profissionais e auxiliando no patrocínio das salas de aula – recurso utilizado, por exemplo, por empresas interessadas dentro da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo. A materialidade das salas de aula, com o tijolo baiano, busca rememorar e homenagear a autoconstrução das periferias de São Paulo e utilizar-se da técnica de assentamento de tijolos para brincar com a luz tanto de dentro para fora (à noite) quanto de fora para dentro (de dia). O banco de concreto projetado para a sala de aula considera o momento de espera do começo da aula. A posição da maioria das salas de aula busca trazer conforto àqueles pais que deixaram seus filhos no espaço-creche projetado, de forma tal a poderem observar seus filhos brincando enquanto participam de seus cursos.

Padrão 242: Banco na porta da frente – Se for apropriado para a cultura local, podem construir um muro baixo para sentar ou uma platibanda integrada à fachada frontal, próxima à entrada (SALÍNGAROS, 2005 apud ALEXANDER, 2004).

2_ Espaço infant-juvenil: O espaço infanto juvenil serve de suporte às mães e pais trabalhadores que, muitas vezes, não têm como deixar seus filhos com algum cuidador. Geridas pelo poder público, poderiam contar com atividades para crianças propostas por agentes de cultura da região (no caso específico do Jardim Ibirapuera, o Bloco do Beco), proporcionando uma interação entre o poder popular e o Estado (prefeituras). O espaço se amplia no ambiente externo por meio de pisos emborrachados e equipamentos de lazer, trazendo mais segurança às crianças e jovens.

3_ Cozinha Experimental: Espaço a ser utilizado tanto para cursos de gastronomia quanto para festas, possibilitando seu aluguel por parte da população local. Como exemplo de possível parceiro, a empresa Gastronomia Periférica, cujo fundador, apesar de internacionalmente conhecido, Edson Leite (nascido na região do Jardim São Luiz/Jardim Ibirapuera), sempre procura resgatar a importância da potência nas periferias. Os tijolos baianos, como as escolas, buscam a identidade da materialidade mais observada na região e, internamente, é desenhada de forma tal a transformar-se em duas salas de aula ou um espaço maior, integrado, por meio de divisórias móveis.

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4_Biblioteca: A biblioteca é, dentro do complexo institucional, a grande integradora dos contextos internos e externos do projeto em sua totalidade. Servindo, por exemplo, como suporte à escola próxima ao terreno (contexto externo), ela possibilita momentos de aprendizagem e introspeção com vista para um horizonte sem limites. Seu teto se converte em laje caminhável, fomentando a percepção desse horizonte infindável aos usuários que transitarem pelo terreno. O térreo da Biblioteca, rebaixado, cria um pátio interno potencial para apresentações de teatro ou competições de skate. Padrão 125: Degraus para sentar – Garanta que haja degraus confortáveis para que as pessoas sentem Este elemento pode catalisar o uso do espaço urbano e reforçar os elementos sagrados tais como uma grande árvore, por exemplo (SALÍNGAROS, 2005 apud ALEXANDER, 2004

5_ Quadra: A presença da quadra procura resgatar um hábito cultural bastante comum, não apenas nas periferias de São Paulo, mas em todo o território nacional. Mesmo trazendo novas proposições de projeto, é sempre importante criar elos de identificação com a cultura local, proporcionando uma interação da população com os equipamentos de forma natural e confortável. A exemplo da UVA El Paraíso, a quadra é entendida enquanto elemento integrador.

6_ Cobertura: Inspirada na cobertura de madeira projetada por Marcelo Rosenbaum e Aleph Zero para o complexo de habitações infantis no Tocantins, é o elemento de integração de todas as arquiteturas. Seu raciocínio técnico segue a mesma linha das habitações e serve como proteção para chuvas e criação de sombras. Padrão 69: Espaços públicos cobertos – O governo pode solidificar o espaço urbano construindo um quiosque — um espaço coberto e aberto. (SALÍNGAROS, 2005 apud ALEXANDER, 2004).Padrão 69: Espaços públicos cobertos – O governo pode solidificar o espaço urbano construindo um quiosque — um espaço coberto e aberto (SALÍNGAROS, 2005 apud ALEXANDER, 2004).

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estudo do quĂŞ? 20


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Biblioteca com Espaรงo Institucional ao fundo 217


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Cozinha experimental (à esquerda) e salas de aula (à direita) | Espaço institucional 219

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Horta comunitária e área das crianças ao fundo | Espaço institucional 221

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Quadra com vista para o institucional nome capĂ­tulo


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Vista interna da Sala de Aula 225


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Vista Interna da Cozinha Experimental 227


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LIBERDADES ARTICULADAS “Liberdades Articuladas”, o subtítulo dessa monografia, se apresenta dessa forma porque parte de dois princípios norteadores sobre o modo como podemos enxergar o mundo: as liberdades são diversas, individuais e coletivas, e elas se estruturam articuladas, em rede. O processo de escrita dessa monografia, da busca pelo outro na usuária egressa, nas diferentes profissões envolvidas, no território, no material madeira ou no fazer arquitetônico são, acima de tudo, uma articulação da liberdade de cada uma dessas realidades ao questionarmos, em conjunto, verdades que nos parecem, real e intimamente, passivas de mudança. A liberdade de um, será, sempre, a liberdade de todos.

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Percorremos caminhos complexos, desconstruímos verdades e reconstruímos hipóteses. Buscando o desenvolvimento de um terreno residual a partir de dinâmicas locais pré-existentes, possibilitamos um vislumbre da criação de um pequeno centro potente no bairro do Jardim Ibirapuera, região periferizada pelo centro. Questionamos o centro, descentralizamos o centro. Buscamos a voz de mulheres criminalizadas e a voz da gestão pública na Defensoria do Estado de São Paulo. Construímos em madeira uma habitação social a partir da inteligência de seres humanos que operam o material em seu cotidiano. Construímos em concreto quando necessário e construímos com tijolos, como homenagem à memória da construção local. Construímos sonhos. Escrever uma conclusão para essa monografia implicaria cometer uma insinceridade comigo mesma. Afinal, venho entendendo ao longo do percurso para esse estudo que é uma grande falácia acreditar que existiu, existe ou existirá uma certeza definitiva sobre a vida. Sem certeza, portanto, jamais haverá conclusão. Talvez possamos entender esse capítulo, então, como um Espanto (Thauma), que, para a Filosofia, equivale ao movimento de admiração. O espanto tem sua origem no questionamento e na beleza da descoberta inevitável aos quais nos direcionamos quando estamos inquietos. Admitir a infinitude da vida e, portanto, a impossibilidade de conclusões, de términos, é um movimento essencialmente de admiração. A habitação social, a vila, os espaços institucionais são, acima de tudo, uma hipótese gerada por um espanto.

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Sim, entendemos juntos que a questão do encarceramento em massa é social e, portanto, de responsabilidade coletiva. Espero que tenhamos entendido também que suas origens históricas nos preconceitos estruturais, como o machismo e o racismo, carregam consigo a responsabilidade individual que temos de, em nossas diversas realidades, não permitir a sua reprodução. Entendemos que, enquanto profissionais e estudantes de Arquitetura e Urbanismo, passamos por um momento precioso de reconstrução da nossa própria história, podendo imaginar que futuro ideal seria esse para o profissional que se reaproxima intimamente do usuário – seja ele qual for – de forma a conseguir valorizar nossa profissão para além de algo consumível e descartável. A Arquitetura e o Urbanismo são necessários porque somos ensinados a ler a cidade de forma única, como um organismo vivo, uma rede. É nossa missão, nessa reconquista de novos usuários e, portanto, de novos posicionamentos frente a essas necessidades, dar novo fôlego à nossa dignidade e valorização. Tudo isso feito de uma forma economicamente viável, sustentavelmente responsável e socialmente comprometida. O questionamento quanto ao modo de construir e onde projetar foi, para mim, uma das formas de englobar esses três compromissos. Talvez, para outros, sejam outras e isso é essencial. O sucesso da nossa profissão, no entanto, deve se basear em um fator comum a todas as arquiteturas: o bem-estar físico e emocional de seus usuários. A conclusão dessa monografia é, portanto, tão somente o espanto originado pela rica caminhada de alguém que se propôs a experimentar sua própria experimentação. É um grito de admiração, de inquietude, em sua forma de reflexão, projeto e escrita. Espero que, na tentativa de pensar novos caminhos para a Arquitetura e para o Urbanismo, articulando liberdades, tenham sido abertas novas formas de pensarmos individual e coletivamente. No mais, eu só tenho a agradecer.

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A DISTÂNCIA ENTRE O ARQUIETO E O USUÁRIO, É MUITO MENOR DO QUE FOMOS LEVADOS A PENSAR


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bibliografia



Marie Martins Henry Orientação: Profa. Denise Polonio Projeto Gráfico e Diagramação: Tamires Mazzo Finalização de Modelo, Renderização e Pós Produção: Vitor Tadeu Guimarães, Roger Rolon e Victor Skawinski

Primeira edição: Maio de 2020 São Paulo - Sp Impresso no Brasil


Fontes: Bodoni Std | Knouckout Papel: PolĂŠn 90g


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