Ian Murray
As Escrituras e as QuestĂľes
Indiferentes
Um Problema Central na ControvĂŠrsia Puritana
Os Puritanos
As Escrituras e as Questões Indiferenças – Um Problema Central na Controvérsia Puritana © Editora os Puritanos
1ª Edição em Português – 2012 – Edição eletrônica Esta publicação eletrônica pertence ao Projeto Os Puritanos e poderá ser baixada no site issuu para uso exclusivamente pessoal. Sua reprodução para fins comerciais é proibida. EDIÇÃO EM PORTUGUÊS Manoel S. Canuto EDIÇÃO GRÁFICA DIGITAL Heraldo Almeida
Murray, Ian. 2012 As Escrituras e as Questões Indiferentes – Um Problema Central na Controvérsia Puritana/Dr. Ian Murray Recife, PE: Ed. Os Puritanos, 2012 36 p.: 14 x 21 cm
1. Escrituras. 2. Indiferença. 3. Controvérsia puritana
As Escrituras e as QuestĂľes
Indiferentes
Um Problema Central na ControvĂŠrsia Puritana
Ian Murray
Sumário
Introdução...................................................................................... 5 Observações Preliminares............................................................. 7 Definindo “Essenciais e Não Essenciais”.....................................10 Origens da Controvérsia em Torno do Princípio Regulador......14 Exposição Puritana da “Adiaphora”...........................................18 Evidência Para o Princípio Regulador......................................... 23 Conclusões................................................................................... 30
Introdução
Em 1522 na Manor House de Sodbury, em Gloucestershire, William Tyndale estabeleceu o princípio fundamental do Protestantismo Inglês quando confrontou os eclesiásticos que se reuniram ao redor da mesa de jantar de Sir John Walsh com aquilo que John Foxe chama de “A Escritura Aberta e Manifesta”. Quatro anos depois o mesmo princípio passou a ser aplicado para impregnar ou levedar a nação inteira com a chegada secreta dos primeiros exemplares do Novo Testamento impressos em Inglês, vindos de Flanders. Seu tradutor, Tyndale, já então um exilado procurado pela lei, justificou sua ação ilegal nos seguintes termos: “Percebi por experiência própria que é impossível firmar as pessoas leigas em qualquer verdade, a menos que pelas Escrituras claramente abertas aos seus olhos (...). Deus estabeleceu uma regra nas Escrituras, sem a qual nada se pode fazer, nem mesmo mover um fio de cabelo, sem ser abominável aos olhos de Deus.”[1] Pagando o alto preço de grande sofrimento o Protestantismo se estabeleceu na Grã Bretanha país, não devido a grandes estatísticas ao conhecimento de seus aderentes, mas porque através das Escrituras rios de vida espiritual fluíram, de modo que ao invés dos ensinamentos e tradições de uma igreja corrupta, homens e mulheres estavam ouvindo as palavras do Deus vivo. Quando um amigo de Tyndale, John Rogers, foi julgado e condenado ao martírio, um dos seus juizes católicos declarou: “você nada pode provar pelas Escrituras: As Escrituras estão mortas e requerem eloquência de exposição”. Ao que Rogers exclamou: “Não, não, as Escrituras estão vivas”.
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É esta convicção que explica porque os cristãos nos começos da Reforma aguentaram perseguições e persistiram tanto em traduzir e divulgar a Bíblia: Eles sabiam que só nelas estão as palavras da vida eterna e que o homem só pode viver na medida em que recebe cada palavra que procede da boca de Deus. As Escrituras são a voz de Deus, e se somos ou não o objeto das bênçãos ou maldições de Deus pode ser experimentalmente determinado ao verificarmos se nós obedecemos e reverenciamos o que está escrito nas Escrituras ou não. Estar sem as Escrituras é estar sem Deus e sem esperança no mundo. Além disto, as Escrituras são o único e infalível registro que temos da vontade de Cristo. Antes da Reforma os ingleses não tinham qualquer meio de afirmar se algo teria ou não a aprovação de Cristo, porque, como escreveu John Hooper em 1547, “ele que havia buscado em todas as igrejas da Inglaterra antes dos dezesseis anos, não teria encontrado uma única Bíblia.” Foi somente quando as Escrituras foram re-abertas que o Anti-Cristo, o qual havia até então se mantido sob o disfarce do “o melhor cristão”, foi descoberto em possessão da Igreja. E quando esta Igreja apóstata mostrou sua ira contra seus assim chamados Reformadores, aqueles que sofreram pela sua fé nas Escrituras não tiveram dúvida de que estavam dando as suas vidas pela causa do Senhor Jesus Cristo. A questão da autoridade da Bíblia levantada no começo da Reforma Inglesa não estava firme de imediato. Nem quando havia apenas uma aceitação formal do Protestantismo, no reinado de Eduardo VI (15471553), nem estava firme depois do terror de Maria a “Sanguinária”, pelo Ato de Uniformidade de Elizabeth em 1559. Mais apropriadamente, o reinado de Elizabeth presenciou o emergir do movimento Puritano dentro do Protestantismo, e a força motriz desse movimento era a convicção de que a completa autoridade da Palavra de Deus ainda não havia sido aceita pela Igreja Inglesa. A luta que se seguiu nos próximos cem anos não foi uma simples tentativa Puritana para assegurar alterações em vestimentas clericais, ou cerimônias religiosas ou aspectos externos da ordem da igreja, mas foi muito além disso. Os Puritanos reivindicaram que as Escrituras não são apenas a completa revelação do Evangelho de Cristo mas que elas contém todas as informações necessárias para o governo e adoração em Sua Igreja. Eles acreditavam que esse
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era um princípio fundamental: assim como nenhum ensinamento espiritual pode ser aceito a menos que seja encontrado nas Escrituras, também nenhum significado espiritual pode ser adicionado à Igreja além daquele que está autorizado pela Palavra Escrita. Este princípio – O Princípio Regulador das Escrituras, como foi chamado posteriormente – ele assegurava estar preso ao ensinamento contido na Bíblia a respeito de sua própria autoridade. Com base nesse princípio, eles estabeleceram sua política de Reforma da igreja em duas proposições principais: 1.�������������������������������������������������������������� ������������������������������������������������������������� Qualquer coisa introduzida na Igreja sem sanção escriturística é ilegal. 2. A forma da Igreja visível no Novo Testamento está permanentemente ligada a todas as gerações de cristãos. Contra essas proposições os defensores da Igreja Elizabetana, notavelmente John Whitgift (c. 1530-1604) e Richard Hooker (c. 15541600), formularam duas contra-proposições: 1) Eles alegavam que os Puritanos havia entendido mal a intenção das Escrituras: a Bíblia faz obrigatórios todos os aspectos relacionados à salvação, enquanto permite liberdade à Igreja para introduzir “coisas indiferentes” (ADIAPHORA é o termo técnico), isto é, coisas não proibidas pelas Escrituras e que a prudência cristã entenda como benéfico ao governo e à adoração da Igreja, em certas circunstâncias. 2) Eles negavam que o padrão da Igreja do Novo Testamento fosse permanentemente obrigatório posto que a informação dada pelas Escrituras nesse assunto não é suficiente, como os Puritanos reivindicavam, mas incompleta e não decisiva, sugerindo que Cristo não intencionou que qualquer forma de governo na Igreja fosse de autoridade Divina.
Observações Preliminares
Antes de voltarmos nossa atenção para o que está envolvido nessas conflitantes afirmações farei alguns comentários preliminares:
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1. O ensino Puritano do Princípio Regulador das Escrituras, na Inglaterra, é quase tão obsoleto quanto o ensino de que o planeta Terra é achatado. Desde os últimos quarenta anos do século XVII quando a idéia de governo da Igreja por “direito divino” foi rejeitado com desdém, desprezada e excluída de julgamento, evangélicos e não evangélicos concordavam em considerar a posição Puritana como simplória e intangível. As únicas pessoas que o recente Relatório Metodista-Anglicano relacionou como os que apoiam a idéia de que “A Igreja só pode fazer aquilo que está explicitamente afirmado e comandado pelas Sagradas Escrituras” são os Radicais da Reforma, Anabatistas e Puritanos do século XVII. [2] Tudo o que precisamos dizer aqui, a respeito dessa atitude, é que ela não se baseia em qualquer refutação da posição Puritana. O que John Owen escreveu a Samuel Parker em 1669 continua verdadeiro. Parker, um firme defensor do Ato de Uniformidade de 1662, atacou o Princípio Regulador como “o alicerce de todo Puritanismo”, mas em resposta a seus argumentos, Owen declarou que Parker “não utilizou nenhum artifício que já não tenha sido utilizado mais de uma centena de vezes contra essa questão, todos mal secedidos”. Owen cita o argumento principal de Parker: “Aquilo que as Escrituras não proíbem, elas permitem; e o que permitem não é ilegal; e o que não é ilegal pode ser feito legalmente. Essa mentira, eu confesso, tem-nos sido dita muitas e muitas vezes” diz Owen, “mas ela já foi tantas vezes respondida que, por uma simples questão de raciocínio, pode se ver que é no seu todo, capciosa e sofismática”.[3] Mesmo depois de três séculos de retórica, se a questão do Culto Puritano na Igreja fosse reaberta, encontraríamos justificativa para a abordagem de Owen. 2. À primeira vista, pode parecer que o ensino Puritano nessa questão não tem relevância quanto a nossa situação contemporânea. Alguém poderia afirmar, “Qual o sentido de discutirmos a extensão da autoridade das Escrituras quando o que está sendo realmente questionado hoje é se a Bíblia tem qualquer autoridade afinal?”. A resposta Puritana a essa questão seria, que a abordagem sugere implicitamente o homem como centro: a rejeição da inerrância da Bíblia pelo mundo moderno é um problema para os evangélicos, mas há um problema mais profundo, isto é, “porque os favores de Deus já não se manifestam mais em nossas igrejas?”. À luz dessa questão não será irrelevante perguntar: “Até que ponto queria Deus que Sua Palavra fosse nossa
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única guia e regra? Estariam as Escrituras regulando a vida de nossas Igrejas, hoje, na amplitude almejada por Cristo?”. Não é impossível que nós estejamos tão preocupados em defender as Escrituras que não estejamos tendo suficientemente temor quanto à nossa própria falha na obediência da Palavra. A primeira dedução Puritana, partindo da sua crença de que as Escrituras são a voz de Deus, era que cada um é pessoalmente responsável ante Deus com respeito a tudo aquilo contido em Sua Palavra. “Enquanto temos a Palavra de Cristo para as coisas que devemos fazer ou recusar a fazer”, diz Henry Barrow, “não precisamos temer as ameaças de homens vãos e orgulhos; nem estarmos impressionados ante títulos e nomes de igrejas, sacramentos, etc. pois uma coisa é certa, não há igreja que possa nos desculpar pela quebra da Lei de Deus perante o grande Juiz”.[4] Nós não resgataremos o sentido dessa citação até reexaminarmos nossa visão geral das Escrituras. Um estudo renovado do Princípio Regulador no tempo atual não seria uma excursão teológica embolorada e azeda com problemas de uma era passada; na realidade, isto nos levaria a um confronto com o teste que a nossa cristandade moderna necessita, e levaria nossas mentes adiante, até aquele dia em que todos os atos praticados, através do nosso corpo, serão julgados pela regra ditada nas Escrituras: “A nossa total pregação deve passar pela prova das Escrituras” diz Thomas Brooks, “ou nós e nossos atos devemos ser queimados juntos”. Os Puritanos nos mostram quão grande responsabilidade pessoal deve se seguir e advir da convicção na infalibilidade das Escrituras. 3. Outra razão pela qual esse assunto é relevante para nós é que nos força a considerar a linha divisória entre uma prática legal de expediência e um compromisso com o pecado; ou seja, qual é o ponto onde as Escrituras deixam de ser nosso único guia e passamos a definir novas formas e métodos, de acordo com as circunstâncias em que nos achamos? Estamos entrando numa era em que as tradições das igrejas estão sucumbindo, e experiências estão, cada dia mais, sendo praticados no evangelismo, na adoração e nas formas de governo das igrejas. Novas experiências em música, drama religioso, técnicas audio-visuais, têm sido praticadas e algumas igrejas têm chegado ao ponto de substituir o sermão de domingo por filmes. A questão fundamental é, ATÉ QUE PONTO AS ESCRITURAS PERMITEM TAIS COISAS? Não
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há desacordo quando ao fato de que o exercício da prudência, sabedoria e bom senso são responsabilidades dos cristãos; o desacordo entre nós e os Puritanos é que temos agido como se houvesse uma ampla área na prática da Igreja que está fora do escopo do Novo Testamento. Eles traçaram a linha divisória entre expediência legítima e desobediência em um ponto diferente daquele em que nós traçamos. Como evangélicos temos sido inclinados a crer que onde quer que nossas falhas estejam, elas não estão em desobediência às Escrituras. Mas se o ensinamento Puritano do Princípio Regulador estiver correto, isto porá a nossa conduta em um outro foco.
Definindo “Essenciais e Não Essenciais”
Antes de deixarmos essas observações, uma questão adicional precisa ser considerada. Será visto que, se o ensinamento Puritano do Princípio Regulador for considerado proeminente, então inevitavelmente a questão de nossa prática sobre ordem, governo e adoração na igreja assume uma importância ímpar no meio evangélico. Poderemos, portanto, estar predispostos a concluir, com Whitgift, que os Puritanos, chamando atenção a assuntos externos e a questões “não essenciais à salvação”, não estavam corretamente fazendo distinção entre pontos fundamentais (os Evangelhos e as doutrinas da fé) e secundários. Whitgift disse a Cartwright que a tendência da política Puritana era de provocar “a derrota do Evangelho através de contendas sobre questões externas(...). Certamente, tratando-se de questões “necessárias à salvação” então há justa causa em quebrar a paz da igreja por elas; mas se são questões de menor peso, então você não poderá desculpar-se a si mesmo ou a eles”. [5] De modo semelhante, Bishop Hel declarou que era “mil vezes melhor engolir uma cerimônia do que despedaçar uma igreja”. Richard Hooker usou essa mesma distinção entre essenciais e não essenciais em resposta à acusação Puritana de que o fundamento da Igreja Elizabetana não aceita a autoridade das Escrituras na sua totalidade. Ele afirmava que rejeitar o ponto de vista Puritano de autoridade bíblica de modo algum negava “a absoluta perfeição das Escrituras”, porque Deus concebeu as Escrituras para serem “uma completa instrução em todas as coisas necessárias à salvação... assim as Escrituras, sim, cada sentença ali, é perfeita, não carecendo de nenhum requisito ao propósito para o qual Deus a deliberou”.[6] Coisas tais
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como cerimônias, ordem, disciplina, e governo, Whitgift e Hooker defendiam, são à parte do Evangelho e das questões de fé. Por alegar a necessidade da autoridade das Escrituras a questões não necessárias para a salvação, os Puritanos eram denunciados de alargarem e deturparem a Bíblia para cobrir áreas nas quais Deus nunca pretendeu dar instruções definitivas. Podemos apenas brevemente indicar a natureza da resposta Puritana a tal acusação. Eles asseguravam que o único fundamento sobre o qual a salvação de pecadores depende é a verdade concernente à pessoa e obra de Jesus Cristo (I Coríntios 3.11). Contudo há também um número de outras verdades explicitamente reveladas nas Escrituras as quais não podem ser classificadas estritamente como “necessárias à salvação”, pois um homem pode não compreendê-las ou se equivocar a respeito delas e ainda assim ser salvo. “Não tenho dúvida que muitos dos pais da Igreja Grega” afirma Cartwright, “os quais foram grandes patronos do livre-arbítrio (pelo menos até onde vão suas palavras) são salvos, mantendo-se firmes no fundamento da fé o qual é Cristo”.[7] Whitgift luta para evitar isto (repreendendo Cartwright por “falar tão perigosamente”) porque o argumento de Cartwright derruba sua premissa de que as Escrituras somente falam claramente naquilo que é “necessário para salvação”. Como um ortodoxo protestante Elizabetano ele tem que concordar que as Escrituras são decisivamente contra o livre-arbítrio. Assim sendo, se Cartwright está certo, a Bíblia fala autoritativamente sobre uma questão “não-essencial” – não essencial, isto é, de acordo com a definição de Whitgift, explicitamente, não necessária para a salvação. Whitgift não pode aceitar esta conclusão e, ao invés disso, responde que se uma pessoa morre sustentando o livre-arbítrio ela não pode ser salva. Para os Puritanos, Whitgift estava tentando manter uma distinção que não poderia ser mantida. Os Puritanos consideraram o hábito de seus oponentes de discriminar entre essenciais e não-essenciais um procedimento perigoso. Perigoso, não porque pretendiam exaltar Cristo e o Evangelho ao seu lugar supremo, mas por enfatizar que o Novo Testamento não oferece segurança àqueles que reconhecidamente negligenciam ao menor dos mandamentos de Cristo. Samuel Rutherford diz: “Nós frisamos a imutabilidade das leis de Cristo, tanto nas questões menores como nas maiores, posto que são os mandamentos de
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Cristo, o maior ou o menor, com respeito ao assunto intrínseco, tal como o uso de água no batismo, ou batizar é menos importante do que pregar a Cristo, e crer nele (I Coríntios 1.17). Contudo eles são ambos importantes, no que tange a autoridade de Cristo o Comandante (Mateus 28.18,19). E é muita ousadia alterar qualquer mandamento de Cristo, por menor que seja a questão, pois se ele reside na nossa consciência não pode ser de maior ou menor importância... mas por nos prender à autoridade do doador da Lei: assim, a autoridade de Deus é a mesma quando diz: Não adorarás falsos deuses, e quando diz, não acrescentarás de ti mesmo nem um anel ou pino à arca, tabernáculo, templo, sim, pois violar um desses mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, faz da pessoa a menor no reino dos céus (Mateus 5.18)”.[8] É verdade que uma pessoa salva pela graça pode, ��������������� através de circunstâncias e ensinamento errado, não ser capaz de ver tudo o que as Escrituras requerem relativamente à Igreja; os Puritanos nunca consideraram pontos de vista corretos sobre a constituição da Igreja como se fossem um teste da graça salvadora. Mas o seu reconhecimento de que nem todas as verdades reveladas são verdades fundamentais sem as quais ninguém é salvo, não significa, como aponta Henry Barrow, que seja permitido fazer “algumas doutrinas e algumas partes do Testamento de Cristo fundamentais e substanciais, outras acidentais e como tal podendo ser alterados ou violadas sem prejuízo ou dano para a alma”.[9] O fato de que uma pessoa possa ser incompleta em conhecimento e prática, e ainda assim ser salva por permanecer no fundamento que é Cristo, não dá permissão para dividir as Escrituras em essenciais e não-essenciais – pondo as regras concernentes à igreja visível na segunda categoria e assim podendo ser deixadas de lado. John R����������������������������������������������������������� obinson, o pastor da Pilgrim Fathers, faz a seguinte observação a respeito das verdades essenciais: “Por mais que reconheça a diferenciação de verdades, e que algumas são mais e outras menos importantes, desejo maior consciência na aplicação dessa distinção. Pois embora os ministros e o povo na Igreja Inglesa estejam sujeitos à obediência ao Novo Testamento por leis civis e eclesiásticas, isto se torna um anestésico para toda aflição pois crêem ter a substância do Evangelho, a doutrina da fé, todas as verdades fundamentais e tudo o mais que é necessário para a salvação.
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Na defesa de que (como é feito) há três perversidades: 1º) “Por isto os homens não apenas se empenham, quando muito, em curar Babel (isto é, a igreja estabelecida), mas até mesmo em fazer Babel crer que ela nem necessita ser curada: as suas feridas não são nem mortais nem perigosas”. 2º) “Isto tende a aviltar e tornar de pouco impulso ou importância muitas das verdades e ordenanças do Senhor”. 3º) “A alegação feita pelos ministros, de que eles detêm e desfrutam todas as verdades fundamentais, e tudo o mais necessário para a salvação, considerando sua finalidade, isto é, a suspensão por parte do povo do esforço para obediência e confissão da vontade de Deus e ordenanças de Cristo, são ambas danosas ao crescimento e obediência do povo de Deus”. “...Ela insinua que é suficiente ao homem servir a Deus até o ponto de obter salvação, mesmo com desobediência de grande parte da revelada vontade de Deus: leva�������������������������������������� ndo o povo a servi-Lo apenas, ou principalmente por uma paga ou retribuição, como fazem os hipócritas. Como se uma criança fosse ensinada a honrar e agradar seu pai até ponto de obter sua herança, mas não ao ponto de se, preocupar em dar a ele qualquer honra ou serviço posterior”.[10] Foi uma deturpação da posição Puritana o que fez Whitgift ao afirmar que Cartwright considerava “governo externo mais precioso do que as doutrinas da fé”.[11] A história do evangelismo Puritano Elizabetano fez tal acusação ridícula. O que os Puritanos disseram foi que a ordem correta da Igreja não pode ser desconectada do Evangelho: “Deus não apenas ordenou que a Palavra fosse pregada, mas também determinou em que ordem e por quem ela seria pregada”.[12] Eles estavam convencidos de que quando a ordem de Deus é violada o Evangelho em si mesmo será brevemente pervertido. Portanto Tyndale afirma que foi quando os bispos e a hierarquia se levantaram na Igreja que « o arado se enviesou; a Escritura se tornou obscura; Cristo não mais era percebido”.[13] Por outro lado, foi quando a Igreja se manteve próxima à Palavra, que o Evangelho brilhou em sua pureza e poder. Rutherford, fazendo uma retrospectiva em setenta anos de luta para assegurar uma melhor ordem na igreja visível, não hesitou em escrever, em 1646: “Considerem se milhares a mais
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não teriam sido convertidos se o governo de Cristo tivesse sido estabelecido como o Sr. Cartwright, Sr. Udal, Sr. Deering, e os mais santos suplicaram ao Parlamento”.[14]
Origens da Controvérsia em Torno do Princípio Regulador
O estudo do ensinamento Puritano tem geralmente começado com o primeiro uso do termo “Puritano” nos anos 1560 depois que a rainha Elizabeth subiu ao trono. Contudo, há boas razões para se crer que se tomarmos essa data como o ponto de partida do movimento Puritano nós adotaremos um ponto de vista que os próprio Puritanos não aceitariam. Desde os anos 1570 quando John Whitgift acusou Thomas Cartwright, o líder Puritano de Elizabeth, de estar ateando um “fogo de discordia”, a linha oficial padrão contra os Puritanos era a de que eles eram inovadores, culpados de perturbar a igreja com opiniões novas. Essa propaganda atingiu seu clímax nos termos do Ato de Uniformidade de 1662: “Onde no primeiro ano da finada rainha Elizabeth houve uma ordem uniforme de serviço comum e oração e da administração dos sacramentos, ritos e cerimônias, na Inglaterra... ainda assim... por grande e escandalosa negligência dos ministros em usar a dita ordem de liturgia, grande desordem e inconveniência tem ocorrido e crescido”.[15] Em contraste com essa propaganda, pode-se afirmar que o ensinamento essencial dos Puritanos Elizabetanos remonta às origens da Reforma Inglesa – trinta anos antes da rainha Elizabeth subir ao trono em 1558. Parece haver pelo menos duas razões para isto não ter sido frequentemente reconhecido. 1) Atenção não tem sido dada à divergência política entre William Tyndale (c. 1494-1536) e Thomas Cranmer (1489-1556). Esses dois homens eram mais ou menos contemporâneos em idade, embora quando Cranmer se tornou arcebispo de Canterbury em 1533, Tyndale, um fugitivo escondido em Flanders, tinha apenas três anos restantes de vida. Tyndale não era apenas um tradutor, mas também um líder natural e um escritor excepcional, capaz de impressionar outros. Não foi sem razão que Sir Thomas More o chamou de o “principal dos hereges Ingleses”. Cranmer, como sabemos, era também um influenciador político,
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levando a Reforma à posição oficial característica do reinado do rei Eduardo VI. Mas, essas eram duas posições políticas que, mesmo objetivando interesses Protestantes, não eram compatíveis entre si: a diferença essencial entre ambas se refere ao Princípio Regulador das Escrituras. Cranmer gradualmente veio a aceitar as Escrituras como a única autoridade em matéria de fé, mas não aceitou que a Igreja fosse limitada em suas cerimônias, práticas e governo, apenas ao Novo Testamento. Um exemplo disso é o fato de que em 1539 ele afirmou que o uso de confissão era “um requisito e aconselhável” embora concordasse que não era expressamente ordenada nas Escrituras.[16] Similarmente, no reinado de Edward, enquanto aceitava que “bispos e sacerdotes não eram duas coisas, mas ambos um único ofício no começo da religião de Cristo”[17] ele não via necessidade de retornar ao Novo Testamento a esse respeito. Em contraste, Tyndale exigiu que, não apenas o credo da Igreja, mas também sua organização e culto, deveriam ter bases Escriturísticas. “Nós somos os portadores do Testamento de Deus”, ele diz, “por tudo o que fizermos”. Uma das acusações contra os escritores do amigo de Tyndale, John Frith, pelos seus perseguidores católicos, era de que ele sustentava e seguia “heresia”; ou seja: “O Espírito não quer que nada seja feito, que não seja expressamente registrada em detalhes nas Escrituras”.[18] Similarmente, a seguinte “heresia” foi atribuída a Tyndale; “cerimônias de igreja afastaram o mundo de Deus”. Em apoio a esta asserção, John Foxe cita as seguintes palavras de Tyndale: “Busque a Palavra de Deus em todas as coisas, e sem ela não faça nada, mesmo que pareça glorioso”.[19] A posição de Tyndale era de que qualquer coisa introduzida na Igreja, sem o preceito ou promessa das Escrituras, não passa de mera superstição. Ouçam-no aplicando esse princípio ao culto de confirmação: “Se a confirmação tem uma promessa, então justifica-se até ao ponto onde vai a promessa. Se entretanto não tem uma promessa, então não é de Deus, como os bispos não são...Depois que os bispos abandonaram a pregação, então inventaram essa cerimônia muda de confirmação, para terem pelo menos algo através do qual pudessem reinar sobre suas dioceses... Eles dizem que o Espírito Santo é dado por meio de tais cerimônias. Se Deus assim o prometeu, então que assim seja; mas Paulo diz (Gálatas 3), que o Espírito é recebido através da pregação da fé”.[20]
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As palavras de Tyndale, é claro, descrevem a prática comum do papado, mas ao exigir uma promessa das Escrituras, ou autorização, eles estavam usando um princípio que não deveria perder sua relevância depois que os Atos de Uniformidade declararam a nação “protestante”. Uma investigação sobre Tyndale mostra que existe pouco nos ensinamentos dos Puritanos Elizabetanos que não seja uma continuidade do que já pode ser encontrado, em forma embrionária, nos escritos do mártir. Tyndale afirmou a igualdade do ofício ministerial contra o episcopado; ele denunciou a presença de bispos no parlamento: Ele defendeu a restauração do diaconato à sua função própria no Novo testamento; ele quis que os benefícios fossem devolvidos ao povo e não utilizados por senhores espirituais ou seculares: ele afirmou que a autoridade da igreja é derivada somente de Cristo, e que no domínio espiritual, “o rei é tão sujeito ao oficial espiritual a ouvir a Palavra de Deus sobre o que deve acreditar, como viver, como governar, quanto o mais pobre pedinte do reino”. Ele também ensinou que ministros devem ser escolhidos para o cargo pela congregação de crentes, de outro modo homens seriam apontados em igrejas “não por suas virtudes e aprendizado, mas por serem favorecidos por recomendações de homens influentes.” 2) Uma segunda razão porque o Puritanismo é tão frequentemente considerado como tendo suas origens no período Elizabetano é porque era do interesse de solidariedade protestante não mostrar a seriedade das divergências entre os Reformados da Inglaterra no reinado do rei Eduardo. Alguns dos mais importantes documentos relacionados à matéria ainda estão para serem impressos em inglês. As maiores referências orbitam em torno da controvérsia entre John Hooper e Nicholas Ridley, em 1550, e entre John Knox e Thomas Kraumer em 1552-1553. Essas duas controvérsias eram ambas vitalmente ligadas ao Princípio Regulador e marcaram o começo de uma oposição baseada na acusação que Hooper e Knox, juntamente com outros, estavam causando disputas desnecessárias ao deixarem de praticar coisas que não eram contrárias às Escrituras mas simplesmente indiferentes. As duas coisas particularmente em questão eram o uso de vestimentas e as rubricas ou títulos de capítulos no Segundo Livro de Orações da Igreja Anglicana exigindo a postura de joelhos na mesa de comunhão. Hooper e Knox se opuseram a essas duas coisas alegando que a Igreja não tinha autoridade para impor ritos de significado religioso, não
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prescritos nas Escrituras: “Não há nada a se fazer na Igreja”, diz Hooper, “que não seja ordenado na Palavra de Deus, seja expressamente ou por conclusão necessária”.[21]Nicholas Ridley, bispo de Londres, e o arcebispo Cranmer consideraram essa abordagem obviamente impossível e pertubadora que nem mesmo requeria refutação Escriturística. Em suas réplicas eles puseram ênfase naquilo que consideraram ser as mais nocivas consequências, se tais ensinamentos fossem aceitos. Ridley, respondendo a Hooker, disse: “Se esta razão deve ter lugar, os Apóstolos não a usaram, portanto não é legal para nós usarmos”- ou ainda, “se eles o faziam, nós necessitamos fazê-lo”. Nesse sentido, então, os cristãos não deveriam ter lugar onde residir, todos deveriam, sob pena de perdição eterna, abandonar suas possessões, como Pedro disse que fizeram, vejam, nós deixamos todas as coisas, etc.; não devemos ter ministração dos sacramentos de Cristo na igreja, porque eles não tinham igreja, mas eram obrigados a fazer tudo em suas próprias casa; devemos batizar em campo aberto, ao relento, como os apóstolos o fizeram; não podemos receber a santa ceia a não ser no jantar, e com a mesa servida com outras carnes, como os anabatistas fazem hoje, de forma cerimoniosa e que obstinadamente, afirmam que deve ser; o dar nome a uma criança no batismo, as nossas orações por ela, nossas intercessões, a nossa tripla renúncia e bata batismal, tudo deve ser abandonado, pois não podemos provar, pela Palavra de Deus que os apóstolos assim faziam.[22] Cranmer escreve na mesma linha aos Lordes do Conselho Privado do Rei que detinham as rédeas da autoridade na Igreja: “Eu sei que a sabedoria de vossas autoridades é tal que eu confio não sereis movidos por esses espíritos gloriosos e inquietos, que não querem nada a não ser o que procede de sua própria extravagância, e não cessam de criar perturbação e inquietudes quando as coisas deveriam estar serenas e em ordem. Se tais homens devem ser ouvidos, embora o livro seja renovado a cada ano, ainda assim, não deve ele ser isento de falhas na opinião deles. Mas, dizem eles, não é ordenado nas Escrituras o ajoelhar, e tudo o que não é ordenado nas
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Escrituras é contra as Escrituras, e terminantemente ilegal e pecaminoso. Mas tal declaração é o principal fundamento do erro dos anabatista e diversas outras seitas. Essa afirmação é uma subversão de toda a ordem tanto na religião quanto em política comum. Se tal declaração for verdadeira, então todo o Livro de Culto deve ser descartado. Por que deveria um homem trabalhar para estabelecer uma ordem na forma de culto, se nenhuma ordem pode ser estabelecida a não ser aquela que está prescrita pelas Escrituras? É porque não perturbarei a vossa autoridade recitando muitas Escrituras de provas com relação a essa matéria, quem quer que ensine tal doutrina (se vós me deixares) porei o meu pé ao lado do dele para ser testado pelo fogo, que tal doutrina é falsa, e não apenas falsa mas também sediosa e perigosa de ser ouvida por quem quer que seja, como algo que quebra as rédeas da obediência desprendendo-os do vínculo das leis do príncipe soberano”.[23] Vinte anos depois John Withgift desenvolveu a mesma linha de pensamento contra Cartwright. “Se tudo deve necessariamente ser reduzido à forma de governo usada no tempo dos apóstolos“, ele escreve, “então o príncipe cristão deve abdicar de sua autoridade na Igreja”.[24] Tal conclusão era monstruosa para Whitgift. Similarmente, ele argumentava que não poderia haver lógica razoável no argumento de Cartwright de que a “Igreja no tempo de S. Paulo era um corpo perfeito sem arcebispos e arquidiáconos; portanto eles não são necessários na Igreja de Cristo”. Porque se tal raciocínio fosse válido você também poderia argumentar, “então seria também perfeito sem magistrados cristãos: portanto os magistrados também devem ser retirados da Igreja”. “Esse tipo de raciocínio”, ele conclui, “é muito perigoso, e abriu uma porta ao anabatismo e à confusão”.[25]
Exposição Puritana da “Adiaphora”
A principal força da causa de Ridley e Cranmer contra o Princípio Regulador reside na alegação de que coisas tais como vestimentas e posturas na comunhão não são nem boas nem más em si mesmas, mas indiferentes, e portanto se a Igreja determinar que vestimentas e o ajoelhar-se são prudentes e úteis, então os indivíduos cristão devem se submeter. Eles arrazoavam que há muitas coisas que não podem ser
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resolvidas pelas Escrituras, por exemplo, em que lugares os cristãos devem se reunir, a que tempo, qual a frequência com que a Santa Ceia deve ser observada e assim por diante, e portanto deve ser legal para a Igreja determinar o que não pode ser determinado pelas Escrituras. A resposta Puritana a essa posição era a seguinte: Eles nunca afirmaram que a Igreja não podia fazer nada que não estivesse nas Escrituras. Isto era uma caricatura do Puritanismo que afirmava que eles procuravam por cada detalhe no Novo Testamento. O que eles afirmavam era que nada deveria ser feito à parte (distinto de uma circunstância)[26] da adoração e nada de significado espiritual deveria ser adicionado ao governo da Igreja a menos que aquilo que fosse prescrito pelas Escrituras ou autorizado por justa inferência. A área na qual podemos determinar coisas �������������������������������������� por nós mesmos é a área de circunstâncias naturais. Coisas indiferentes, eles afirmavam, não são em si mesmas coisas morais ou espirituais, mas elas são coisas naturais como físicas ou pertinentes à vida humana ordinária. Por exemplo, não é parte da adoração o lugar onde a adoração ocorre, ou o seu tempo de duração ou de que material é feito o púlpito ou o cálice usado na Santa ceia. Ou no domínio do governo da Igreja, não é uma coisa moral a nacionalidade do ministro da Igreja, mas é uma coisa moral que ele seja um oficial tal como Cristo tem apontado à Sua Igreja. Em uma área nós necessitamos a autorização da Escrituras, na outra não. Assim, em 1547 quando John Winram, sub-prior de ST. Andrew, exclamou para John Knox, “vós nos obrigaríeis a tal restrição, que não poderíamos fazer nada sem a expressa Palavra de Deus? O que aconteceria se eu pedisse para beber? Pensais vós que eu estaria pecando? E ainda assim eu não teria a Palavra de Deus para apoiar-me.” Ao que o reformador Escocês respondeu: “admiro-me de comparares coisas profanas e sagradas tão indiscriminadamente... Uma carne eu posso comer, outra posso recusar, e isso sem escrúpulo de consciência. Eu posso trocar uma por outra tão frequentemente quanto eu queira. Poderíamos fazer o mesmo em assuntos de religião? Podemos descartar como quisermos e reter como quisermos? Se me lembro bem, Moisés, em nome de Deus, disse ao povo de Israel, “Tudo o que o Senhor teu Deus te ordenar, isto farás ao Senhor teu Deus: não acrescenteis nada; não subtraiais nada”. Por esta regra eu penso que a Igreja de Cristo discernirá a Religião de Deus, e não por aquilo que pareça bom aos seus próprios olhos”.[27]
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Apesar disto os oponentes dos Puritanos estavam continuamente tomando o argumento de Winram – “As Escrituras são muito genéricas para regulamentar tudo, portanto a exigência de autorização das Escrituras é absurda”. – e em 1646 Rutherford estava ainda tendo que repetir que eles tinham sempre reconhecido uma área de coisas comuns, não pertencente à esfera espiritual mas a vida natural ordinária (comida, sono, etc.) que não requer preceito Escriturístico para sua prática: “tempo e lugar, nome, país, forma, figura, hábitos ou paramentos para afastar ... as injúrias dos céus, coisas estas nunca ordenadas, nunca proibidas de Deus, e portanto a mudança dessas circunstâncias não alteram os mandamentos de Deus, nós nunca promovemos circunstâncias, como tais à esfera de moral”.[28] Essas são todas as coisas genuinamente indiferentes e que devem ser determinadas por sabedoria e bom senso. Isto nos leva ao núcleo de controvérsia sobre coisas indiferentes. Baseados na distinção feita acima, os Puritanos foram adiante e mostraram que qualquer prática na Igreja que se proponha a ser indiferente (e portanto não requerendo autorização das Escrituras) só deve ser reconhecida como tal se atender a certas condições, George Gillespie diz o seguinte:[29] 1) “Ela deve ser apenas uma circunstância de adoração divina: não uma parte substancial da mesma: não uma cerimônia sacra, significante e eficaz.” Em outras palavras se um ministro, como Hooper, pregasse usando uma capa ordinária de mercador, aquilo era uma coisa natural e indiferente, mas se a vestimenta do ministro tivesse o propósito de conduzir a algum significado espiritual (tal como a sobrepeliz branca como símbolo de pureza) então, deixaria de ser indiferente. Isto explica porque a controvérsia sobre vestimentas e outras cerimônias no reinado de Edward esteve tão ligada ao princípio regulador. O Livro de Orações da Igreja Anglicana reivindicava algum valor e significado religioso para certas cerimonias que, embora não contidas nas Escrituras, “eram aptas para estimular a mente embotada do homem à lembrança de seus deveres para com Deus, por algum significado notável e especial pelo qual ele poderia ser edificado”. Aos Puritanos, essa adição de coisas de supostos valores espirituais na Igreja não poderia ser justificada sob a alegação de que eram coisas indiferentes. Do mesmo
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modo (eles afirmavam que, enquanto a Igreja pode legalmente determinar o tempo e lugar mais convenientes para reuniões, ela não tem autoridade para revestir de importância religiosa certos dias ou estações, nem atribuir qualquer bênção espiritual a prédios ou igrejas). 2) “Aquilo que a Igreja pode prescrever através de suas leis e ordenanças, como algo deixado à sua própria determinação, e que seja não determinado pelas Escrituras”. Qualquer coisa ordenada ou proibida nas Escrituras, seja por preceito ou exemplo, ou que possa ser justamente inferida delas, não pode ser indiferente”. 3) “Se a Igreja prescrever qualquer coisa legalmente... suas ordenanças deverão ser acompanhadas de boa razão e justificação, dadas para a satisfação de consciências sensíveis.” Por ser uma coisa que é em si mesma indiferente isto não significa que a Igreja pode ordená-la à parte de qualquer consideração das Escrituras”. “Assim como não podemos usar qualquer, coisa indiferente ao nosso bel prazer”, diz Gillespie referindo-se ao cristão individual”, também não pode a Igreja, a sua própria vontade ou prazer, ordenar o uso da mesma; mas como nossa prática, as injunções da Igreja devem ser determinadas e enquadradas de acordo com as regras dadas na Palavra de Deus; “porque aquelas coisas que em sua natureza são indiferentes, nunca são indiferentes quanto ao uso, isto porque o uso das mesmas, ou será de acordo com a Palavra de Deus, e portanto apropriado, ou não, e portanto será ilícito”.[30] Essas regras gerais governando ações e coisas não tão especificamente prescritas nas Escrituras, são estabelecidas assim pelo mesmo escritor como segue: a) Todas as ações particulares devem referir-se à glória de Deus (I Coríntios 10.31, Romanos 14.7,8) b) Nenhuma ação, embora legítima em si mesma, deve ser praticada se puder vir a ser uma pedra de tropeço ou trazer possível ocasião de dano espiritual �������������������������������������������������� à������������������������������������������������� outros (Romanos 14.21; I Coríntios 10.23); especificamente, “como no inteiro curso de nossa vida, especialmente no governo da Igreja nós não devemos fazer nada (por mais indiferente que seja em si mesmo) que não seja proveitoso para a edificação, I Coríntios 14.26, ‘Seja tudo feito para edificação’. De cujo preceito Pareus
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inferiu que nada deveria ser feito na igreja que não fosse claramente para a utilidade de todos e de cada um”. c) Não devemos nunca agir contrariamente à paz e pureza de nossa consciência, pois embora uma coisa possa ser indiferente, ainda assim se nossa consciência julgá-la ilícita, nós não podemos licitamente praticá-la (Romanos 14.14). Os Puritanos escreveram muito sobre a definição de coisas indiferentes.[31] As regras Escriturísticas que gove������������������������������ rnam seu uso e o volume de material que eles deixaram sobre esse assunto sugere que eles não subestimaram a questão ou evitaram suas dificuldades. Adiaphora tornou-se um tumultuado centro de controvérsia porque toda a força do caso contra a posição Puritana residia no argumento de que, enquanto a Igreja não ordenasse o que fosse proibido pelas Escrituras, ela poderia regular sua adoração e governo por regras gerais tais como em I Coríntios 14.40. “Que tudo seja feito decentemente e em ordem”. Assim, era dito que vestimentas e episcopado eram coisas indiferentes (não sendo expressamente proibidas pela Palavra) e portanto autorizadas se eles o fizessem pela regra geral de promoção da “ordem”. Os Puritanos eram, consequentemente, forçados a mostrar em detalhes pelas Escrituras que os escritores do Novo Testamento nunca classificaram qualquer coisa de significância espiritual como adiaphora e que as “regras gerais” contidas nos textos acima referidos não implicavam que no âmbito total de sua vida a Igreja teria apenas princípios gerais a seguir. Não concordariam com o “espírito” de que ela seria livre para implementar por adições e alterações tais assuntos espirituais conforme julgasse apropriado. Ridley e Whitgift supunham que este seria o significado das Escrituras porque de outro modo a vida da Igreja seria uma impossibilidade – várias coisas sendo necessárias para sua continuidade as quais as Escrituras não especificam, como por exemplo, a provisão de prédios adequados. A resposta Puritana, como vimos, era de que as regras gerais nas Escrituras dão ampla instrução sobre assuntos circunstanciais e coisas indiferentes as quais somos livres para ordenar, mas isto é bem diferente de prover uma sanção geral para a preservação de tais coisas como Whitgift estava argumentando: “Nós não negamos, mas certas coisas são deixadas para a ordem da Igreja” diz Cartwright, “porque elas são da natureza daquelas que
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variam com o tempo, lugar, pessoas, e outras circunstâncias, e assim não poderiam ser estabelecidas uma vez e para sempre. Assim, são deixadas para a ordem de Igreja, pois isto não vai contra as regras ditas anteriormente.* Mas a partir daí, para se dizer que certas coisas são deixadas por conta da Igreja, como a criação de um novo ministério, na pessoa de um arcebispo; alterando um ministério que é ordenado, fazendo um bispo ou pastor sem uma igreja ou rebanho; fazer um diácono sem indicar-lhe a igreja de onde seria diácono e onde poderia exercer sua função de suprir as necessidades dos pobres; abolir o nome e ofício de presbítero; e mais isso e aquilo...; faça isto siga aquilo, porque a Igreja tem poder para ordenar certas coisas, portanto tem poder para fazer o que quer com o que Deus tem ordenado e estabelecido?[32]”
Evidência Para o Princípio Regulador
Embora conhecendo a defesa Puritana contra a acusação de que eles ignoravam o terreno de legítima adiaphora, não podemos deixar o assunto aqui. O esp���������������������������������������������������� í��������������������������������������������������� rito da posição Puritana estava longe de ser defensiva e a acusação, de fato, veio como uma contra acusação à sua declaração do Princípio Regulador. É na nossa abordagem desse princípio que o veredito final sobre os Puritanos deve depender, pois embora sejamos admiradores de sua piedade e pregação, o movimento em si mesmo nunca teria varrido esse país e atravessando o Atlântico até a Nova Inglaterra, como o fez, sem essa convicção de que o Princípio Regulador é inseparável do cristianismo do Novo Testamento. Resta-nos, portanto, delinear a evidência que os conduziu a essa conclusão. A sua causa baseia-se nestas considerações: 1) As Escrituras são um guia completo de fé e prática para a Igreja. “As Escrituras estão agora, completas e inalteradamente perfeitas, contendo regras exatas para a Igreja de Deus em todos as circunstâncias e épocas sob ambos, o Velho e o Novo Testamentos, de modo que não apenas o povo de Deus de todas as classes e hierarquias, mas também os homens de Deus, e oficiais da Igreja de todas as classes e hierarquias possam ser perfeitos, e perfeitamente habilitados para toda a
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boa obra. “Toda Escritura é dada por inspiração de Deus... a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” II Timóteo 3.16,17. E na sua primeira epístola a Timóteo (que é um Diretório da Igreja para a adoração divina, disciplina e governo) ele disse, “Escrevo-te estas coisas – para que, se eu tardar, fiques ciente de como se deve proceder na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo”. (isto é dito em referência a assuntos de governo da Igreja, especialmente, I Timóteo 14.15). Assim escreveram alguns dos líderes do Presbitério de Londres em 1646 na obra, O DIREITO DIVINO DO GOVERNO DA IGREJA.[33] Semelhantemente, escreve Rutherford, “o que quer que nos faça perfeitos e perfeitamente habilitados para toda a boa obra, e essa é a finalidade para a qual foi escrito este trecho, que qualquer Timóteo, ou pastor fiel pode saber como deve proceder na Casa de Deus... deve constituir uma base perfeita de disciplina*, que não varia, sem fluxo e refluxo e sem alteração conforme o governo civil, as leis, os hábitos e os costumes dos homens. Mas as Escrituras de Deus assim instruem todos os membros da Igreja visível, tanto os governadores como os governados (II Timóteo 3.16,17, I Timóteo 3.14,15). Portanto, as Escrituras têm que se constituir na forma perfeita de Disciplina”.[34] Ele prossegue mostrando que as Escrituras não restringem sua autoridade a assuntos de fé, pois Paulo “falou de muitos e especiais preceitos e regras de conduta, para com as viúvas pobres; as esmolas a serem dadas para elas; o não censurar os anciões; o ofício de presbíteros governantes, e daqueles que trabalham na Palavra e na Doutrina; o de não receber uma acusação co������������ ntra um oficial; mas somente sob duas ou três testemunhas; a repreensão pública daqueles que ofendem publicamente; o não admitir no ministério soldados novos e não experimentados, e muitos outros detalhes da política, a respeito dos quais ele disse com toda seriedade: “Conjuro-te perante Deus e Jesus Cristo e aos anjos eleitos, que guardes esses conselhos, sem prevenção, nada fazendo com parcialidade (I Timóteo 5.21)”. Esses conselhos, nessa carta não eram um mandamento, mas todos eram preceitos da fé e do governo da Igreja”. Essa reivindicação por integridade da instrução que é suprida à Igreja pelas Escrituras era também apoiada, como afirmavam os Puri-
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tanos, por aqueles textos que expressamente excluíam os acréscimos ou diminuições humanas à Divina Palavra (Deuteronômio 4.2)**. John Owen aplica o que ele acredita ser de relevância desse e outros versículos à questão da liturgia imposta por autoridade humana em adoração, quando escreve: “Visto que o próprio Deus instituiu sua própria adoração e as questões relacionadas, também afirmou sua própria autoridade e vontade como sendo a única regra para toda a adoração por Ele aceitável; nenhuma circunstância está registrada de qualquer um que tenha feito acréscimo ou diminuição ao que Ele instituiu, sob qualquer pretensão, ou por qualquer autoridade, que tenha sido por Ele aceito; e visto que os mais iminentes dentre aqueles que tomaram para si tal poder, bem como o julgamento das razões necessárias para exercê-lo, seja por substância ou estilo, a eles foi dado, pelo justo julgamento de Deus, fazer coisas não convenientes, sim, abomináveis a Deus (como na igreja papal) – não é pois impensável aos homens exercerem sabedoria e serem muito cuidadosos para que não venham a se intrometerem nesse ingrato ofício”.[35] 2) A cristo foi dada autoridade exclusiva para estabelecer as leis e governo de sua igreja e ele fez a sua vontade conhecida somente pelas escrituras. Diz Rutherford: “Se a igreja for um reino político visível, e ela é (Mateus 13,45-48; 16.19; 8.12); e se a Palavra for a Palavra, cetro e lei do Reino, como o é (Mateus 6.10; 13.10,14; Lucas 8.10); sim, a espada e o real poder do Rei (Apocalipse 1.16; 19.15), por cujo meio Ele governa e reina em Sua Igreja (Isaías 11.4, Salmos 110.2; Hebreus 1.8,9; Salmos45.3-7; Isaías 61.1,2; II Coríntios 10.4-6; I Pedro 2.4-7), e se por essa Palavra o Rei reina, liga, desliga, e conquista almas e subjuga Seus inimigos (Mateus 18.18-20; Mateus 16.19; Apocalipse 6.2); então, certamente, Cristo reina politicamente, de forma externa e visível em Sua Igreja, e anda no meio dos sete candelabros (Apocalipse 2.1). E se Cristo, subindo ao céu como um rei vitorioso levando cativo o cativeiro,
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deu dons aos homens e determinou uma programação visível para o ajuntamento dos santos pelo ministério de certos oficiais de seu reino, como fez (Salmo 63.18, “Para que o Senhor habite no meio deles,” e, Efésios 4.11-16); então Ele deve reinar na programação visível dos pastores, mestres, mestres, pela Palavra, sacramentos e disciplina. Agora pois o próprio Rei, o Senhor que reina em Sua programação exterior visível deve ser o único legislador e Juiz (Tiago 4.12; Isaías 33.22). Não há “rabinos” ou “doutores” na terra que, como reis menores, possam fazer leis sob Ele (Mateus 23.8-10); sim, nem apóstolos que possam ensinar como o culto de adoração pode ser ordenado em sua forma visível, mas o que eles receberam do Rei da Igreja (I Coríntios 11.23, Atos 15.13-18), como a casa deve ser governada (Hebreus 3.1-5); sim, nada mais razoável, do que o que quer que seja ordenado pelo Deus dos céus, seja feito em e para a caso do Deus dos céus, sob pena de incorrermos em Sua ira (Esdras 7.23)”.[36] O texto crucial é provavelmente Mateus 28.20, “Ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado...” Comentando sobre este e outros textos semelhantes onde o Senhor requer obediência precisa às Suas ordenanças, Owen pergunta se o sentido de tais versos é “apenas prevenir a adição do que écontrário ao que Deus ordena”, deixando-nos livres para adicionar coisas tais como “aquelas que tendem a fomentar o melhor cumprimento de suas ordenanças” (como os oponentes dos Puritanos estimulavam) ou se a interpretação Puritana não seria a que tem mais justa evidência de expressão da intenção de Escritura. Ele escreve: “Nosso Senhor Jesus Cristo direciona Seus apóstolos a ensinar a Seus discípulos “a fazer e observar tudo o que Ele os havia ordenado”. Aqueles que se contentam com a última interpretação (isto é, os Puritanos) desses outros preceitos semelhantes, afirmam que há nessas palavras a restrição do escopo de sua comissão à expressa ordenança de Cristo. O que Ele ordena, dizem, é que eles deveriam ensinar os homens a observar e nada mais; nem Ele requererá de nossas mãos a observância de qualquer outra coisa. Os outros teriam a sua suposta intenção, o que quer que Ele tenha ordenado, e o que eles julgassem em ordenar, desde que não fosse contrário ao que Ele ordenara; como se Ele houvesse dito, “Ensinem os homens a observar tudo o que lhes tenho ordena-
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do; e ordene-os a observar o que vocês acharem procedente, desde que não contrarie as minhas ordenanças”. Certamente esta interpretação à primeira vista parece desfigurar a intenção principal de Cristo, naquela limitação expressa de sua comissão à sua própria ordenança. Assim também sob o Velho Testamento: dando ordem sobre sua adoração, o Senhor diz a Moisés que ele deve fazer todas as coisas de acordo com o que lhe será mostrado e revelado pelo Senhor. Na conclusão da obra que lhe foi comissionada, para mostrar que o que ele havia feito era aceitável a Deus, é repetido oito ou dez vezes que ele havia feito tudo de acordo com o que o Senhor havia lhe ordenado; nada foi omitido, nada adicionado por ele. Que a mesma conduta seja observada na seguinte prática que foi adotada na primeira instituição (isto é, a Igreja do Novo Testamento) o Senhor ordena que nada seja acrescentado ao que foi por Ele estabelecido, nada seja subtraído.”[37] De acordo com os Puritanos, o Novo Testamento faz toda obediência espiritual e tarefas espirituais derivarem suas obrigações a partir do fato de que são sancionadas pela autoridade de Cristo. A Igreja pode apenas ser o despenseiro ou administrador de Suas Leis; seu papel é cumprir Seus desígnios. Portanto, revestir as suas exigências com importância religiosa ou atribuir autoridade às suas próprias instituições, é ir contra a autoridade de Cristo em Sua Palavra e estar debaixo da mesma reprovação com que Ele condenou os fariseus por suas auto-designações de cerimônias religiosas de lavagem, seus largos filactérios, longas franjas (Mateus 23.5) e o resto: “Em vão eles me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens” (Mateus 15.9). O Senhor Jesus Cristo é a única fonte de autoridade na Igreja, e Ele não delegou autoridade ao homem a assuntos de Fé, governo de Igreja ou adoração. “O simples fato de que a regra de autoridade da Igreja na adoração a Deus é a regra da Escritura, é decisiva na inteira controvérsia em relação a ritos e cerimônias, e liga a Igreja ao ofício ministerial de administrar uma diretriz feita para ela, ao invés de presunçosamente tentar estabelecer um novo direcionamento para si mesma”[38]. Uma vez que vemos a relação do Princípio Regulador com o Senhorio de Cristo, não é mais um mistério ver como um homem cristocêntrico como Samuel Rutherford pode engajar-se tão seriamente em polêmicas da Igreja.
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3) Se adições humanas são permitidas na Igreja elas subverterão o que as Escrituras ensinam. Uma vez que o Princípio Regulador é abandonado há uma tendência inevitável de que adições alterarão e se afastarão das Escrituras. Isto pode ser negado por aqueles que rejeitam o Princípio. Eles podem alegar que suas adições não são contrárias às Escrituras, somente “paralelas” a elas, mas para os Puritanos o testemunho da história da Igreja, tanto na Bíblia quanto depois, é inequívoco. Eles viram a tendência funcionando com os primeiros Pais da Igreja, eles a viram florescer com o papado e eles se agarraram corpo a corpo na luta contra os campeões católicos na batalha da Reforma. Em 1519, Eck, o defensor do Papa, declarou que é “suficiente que a Igreja diga que uma certa coisa é verdade devendo ser cumprida e a Escritura não a contradiga.”[39] O Arg���������������������������������������� umento era que não seria negar as Escrituras dizer que seu testemunho não é completo, porque o Novo Testamento nunca pretendeu dar total e final forma da Fé da Igreja ou sua ordem. Foxe registra o seguinte incidente no julgamento de Marian mártir, Lourence Saunder, ante o bispo Bonner: “Um herege, ele prova ser, como todos aqueles”, disse Bonner, “que ensinam e acreditam que a administração dos sacramentos e todas as ordens da Igreja são tão mais puras quanto mais próximas estiverem da ordem da Igreja primitiva. Porque a Igreja estava naquele tempo em sua infância e não poderia suportar aquela perfeição que só seria dada posteriormente através das cerimônias. E por esta causa o próprio Cristo, e depois dele os apóstolos, toleravam a rudeza daquela Igreja”.[40] Contudo, enquanto as fogueiras de Marian ainda eram um memória vívida, a única resposta de Whitgift à pergunta de Cartwright sobre porque o ofício de presbítero não era r������������������������ econhecido na Igreja Inglesa foi que a presença do “magistrado cristão” fez com que a função disciplinar dos presb����������������������������������������������������� í���������������������������������������������������� teros se tornasse desnecessária, e portanto a prática do Novo Testamento não poderia ser para nós um guia nesse assunto pois Deus não havia feito naquele tempo o melhoramento da Sua Igreja tal como experimentado na Inglaterra, sob a rainha Elizabeth: “Nós não perguntamos o que a Igreja estava apta a fazer naquele tempo, ou o que tem condições de fazer agora; mas sim se o mesmo
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governo deve existir agora, que existia naquele tempo; e se o magistrado cristão não teria autoridade no governo da Igreja agora, tanto quanto o magistrado bárbaro e perseguidor daquele tempo... Deus melhor supriu sua Igreja estabelecendo nela magistrados cristãos civis, cuja autoridade é mais ampla do que o estabelecimento dos presbíteros; portanto, havendo magistrados Cristãos, o governo presbiterial é supérfluo”.[41] Da mesma maneira Richard Hooker argumenta que embora o episcopado não tenha sido a ordem estabelecida no Novo Testamento isto não é razão para que não seja considerado a melhor forma de governo da Igreja: “Embora as Escrituras não tenham insinuado o mesmo (isto é, episcopado) como sendo ordenança de Deus, e de os apóstolos o terem introduzido, embora a Igreja tenha sido reconhecida por todos os homens como sendo a primeira iniciadora daquilo muito tempo depois que os apóstolos se foram; contudo não é a autoridade dos bispos aqui ab-rogada, nem é aqui provada como sendo inadequada ou inútil para a Igreja... Reconhecemos que todas as coisas que estão na Igreja têm que ser de Deus. Mas já que há dois modos de se ver essas coisas, uma é que elas são instituição dEle e não nossa, e a outra é que elas são nossas, embora com Sua aprovação: Esse último modo não impede que a mesma coisa que é dita ser dos homens possa ser justa e verdadeiramente de Deus, uma mesma coisa dita ser do céu pode ser da terra. De todas as coisas boas, Deus é o autor, e consequentemente um aprovador das mesmas. A regra para discernir quando as ações dos homens são boas, quando elas são tais como têm que ser, é mais ampla e larga do que a lei que Deus estabeleceu na sua santa Palavra; a Escritura é apenas uma parte daquela regra a qual foi aqui declarada de forma ampla. Se portanto todas as coisas, desde que feitas de acordo com a regra do bem-fazer; e se a regra do bem-fazer é mais ampla que a Escritura; que necessidade há, que todas as coisas que são de Deus devam estar registradas nas Sagradas Escrituras?”[42] Para os Puritanos esse tipo de argumentação minava as Escrituras. Assim como os papistas efetivamente introduziram um outro evangelho arguindo que as Escrituras não são completas nas doutrinas particulares e que onde elas silenciam, por exemplo, com relação ao
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purgatório, nós as podemos ensinar desde que a Igreja julgue certo, assim também a rejeição do Princípio Regulador com relação à igreja implicou que instituições humanas substituíram a prática do Novo Testamento: Disciplina da Igreja pelo conselho de presbíteros foi substituída pela autoridade civil da rainha Elizabeth (a qual “disciplinou” muitos ministros do Evangelho expulsando-os dos púlpitos), a paridade de ministros foi substituída por hierarquia, a eleição de ministros pelas congregações e sua ordenança por presbíteros foi substituída pela autoridade Episcopal, e assim por diante.
Conclusões
1) Uma vez que o Princípio Regulador é descartado não há outro princípio que possa manter a Igreja fiel à simplicidade do novo Testamento: “Quando esta regra geral é negada, não há o que possa limitar a introdução de invenções de homens ao governo e adoração na casa de Cristo.[43] Uma vez admitindo-se que a Escritura não é suficiente para ordem na Igreja, então não há como prevenir a corrupção de seu governo e culto, como acontece sob o papado. Isto foi o que Knox e outros viram em 1552 quando eles arguíram que, se cerimônias tais como o ajoelhar-se fossem mantidas, não poderia haver posição consistente contra o papado, pois os católicos poderiam dizer, “O benefício que vem de seu ajoelhar não está expressa em nenhum lugar na Palavra de Deus, mas somente na imaginação de suas mentes... portanto nossas cerimonias devem igualmente ser mantidas com o seu ajoelhar”.[44] 2) A liberdade cristã não pode ser preservada sem a manutenção do Princípio Regulador, “a liberdade cristã expressamente nos isentou da obediência às leis dos homens não autorizadas pela Palavra de Cristo, Gálatas 5.1; Colossenses 2.20”.[45] 3) A oposição expressa contra o Princípio Regulador não é sem significância. Enquanto alguns homens bons se puseram contra a posição Puritana, em geral aqueles que contenderam contra o Princípio Regulador no período de Elizabeth e também mais tarde, frequentemente mostraram o desejo de restringir as Escrituras ao invés de serem por elas restringidos. John à Lasco, o reformador Polonês que estava na Inglaterra no reinado de Edward, escreveu uma longa carta a Cranmer sobre o Princípio Regulador na qual ele diz, quase no final:
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“Agora de fato por longo tempo tenho esperado, e agora, ardentemente, esperado ver as razões e testemunhos das Escrituras pelas quais você pensa que sua opinião pode ser derrotada. Pois quem não abraçaria voluntariamente aqueles pontos de vista que implicam em menos reprovação do que aqueles que vemos obviamente oprimir o homem com ódio, malícia e suspeitas de vários tipos”.[46] Nos anos posteriores homens que sustentaram o Princípio Regulador foram frequentemente atormentados e perseguidos pelos menos espirituais sucessores de Cranmer e Ridley, enquanto católicos e párocos ímpios foram deixados em paz. 4) O Princípio Regulador é essencialmente um princípio de união entre os cristão pois quando verdadeiramente aplicado ele afasta todas as práticas ordenadas por homens e promove um interesse comum na submissão às Escrituras, apenas. Longe de ser um princípio divisivo, diz Owen,“ é facilmente demonstrável que sem a admissão do mesmo, quanto a sua substância e finalidade principal, toda paz e acordo entre igrejas são totalmente impossíveis”.[47] Mesmo não tendo sido dado aos cristão de convicção Presbiteriana e Independente do século XVII concluir todas as dificuldades associadas com o governo da Igreja Escriturística a sua aceitação comum do Princípio Regulador levou-os a uma ampla medida de acordos em muitos pontos de debates o que de outro modo teria sido impossível, e há boa razão para que com a adesão ao mesmo princípio mais luz sobre as Escrituras será dada aos cristãos, guiando-nos através dos perigos que perturbaram o movimento Puritano de 1640. ��������������������������������������������������������������� 5) Enquanto Princípio Regulador sempre trouxe controvérsia neste mundo, a sua força principal não está em fazer os homens controversos, mas tementes a Deus. A vida do homem não é, diz Cartwright, “como os dias de um carvalho, ela é um curto período mortal compreendido entre os limites de nascimento e morte, nós não estamos aqui para viver nossas curtas vidas em uma contenda de palavras; mas se nós professamos esse Princípio, nós devemos olhar apenas para Deus, permanecer firmes na Sua Palavra, servi-lO em obediência aos Seus estatutos, e orar para que assim possamos pela Palavra de Cristo que em nós habita, ser instruídos a uma conformidade crescente à Sua vontade revelada. Pois, “então não terei de que me envergonhar, quan-
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do considerar em todos os Teus mandamentos” (Salmos 119.6). Isso era a essência do espírito do Puritanismo; queira Deus restaurar tal graça a Sua Igreja hoje.
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NOTAS: [1] William Tyndale, Expositions (Parker Society), pp. 77-8. [2] Conversations between The ��������������������������������� Church of England and The Methodist Church, 1963, p. 16 [3] John Owen, Works (Goold edit.), vol. 13, pp. 479-480. [4] Henry Barrow, Writings (Elizabethan Nonconformist Texts, 1962). P. 320. [5] John Whitghft, Works (Parker Society), vol. I, p.38, p.41. [6] Richard Hooker, Works (5th edit., 1865), vol. I, p. 334. [7] Whitgift, vol. I, p. 188. Cartwght›s Firs Reply To Whitgift is printed with Whitgift›s response. The Puritan leader›s voluminous Second Reply has never been reprinted since the sixteenth century; some brief extracts from it are given in the Parker Soc. edition of Whitift›s works [8] Samuel Rutherford, The Divine Right of Church-Government and Excommunication: or, a peaceable Dispute for the perfection of the holy Scripture in point of Ceremonies and Church-Government, 1646, pp. 19-20. [9] Op. Cit., p. 187 [10] John Robinson, Works, 1851, vol. 2, pp. 476-478. [11] Op. Cit., I, p. 187. [12] Cartwright in Whitgift, op. Cit., 2, p. 89. [13] Op. Cit., p.257. [14] Op. Cit., p. 641 [15] Text of the Uniformity Act, 1662, is printed by H. Gee and W. J. Hardy, in Documents Illustrative of English Church history, 1914, pp. 600-619. [16] Jasper Ridley, Thomas Cranmer, 1962, p. 181. [17] Given in Stillingfleet’s Irenicum, quoted by A. H. Drysdale, History of The Presbyterians in England, 1889, pp. 32,33. [18] John Foxe, acts and Monunments (Pratt’s edit.), vol. 5, p. 591. [19] Op. Cit., p. 576. [20] Tyndale, Doctrinal Treatises, p. 273. [21] Hooper’s manuscript will be publish for firt teime im English in The Reformation of the Church, 1964, by The Banner of Truth
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Ian Murray
Trust. [22] This Reply to Hooper Will be found as na appendix in John Bradford, Letters ant Treatises, pp. 375-395. [23] Printed by Peter Lorimer in John Knox and the Church of England, 1875, p. 104. [24] Op. Cit., I, p. 27 [25] Op. Cit., II, p. 108. [26] See Owen, 13, pp. 463-4, 469, 481. [27] John Knox, History of The Reformation in Scotland (Edited by William Croft Dickinson, 1949), vol. I, p. 89 [28] Rutherford, op. Cit., p. 63. [29] George Gillespie, A Dispute ������������������������������ Against the English Popish Ceremonies, printed in Gillespie’s Works, vol. I, 1846, cf. pp. 130-31. A helpful commentary on Gillespie’s conditions will be found in James Bannerman, The Church of Christ, vol. I, pp. 355-57. [30] Op. Cit., 7. [31] Besides major works like Gillespie’s, a number of shor�������� ter pieces on the subject appeared such as the anonymous Treatise of the Nature and Use of Things Indifferent (Dr. Williams Libary 12.55.3) and Daniel Cawdry’s consideration of The XXIV Cases Concerning Things Indifferent in Religious Worship, 1663. * Cartwright havia pouco antes listado as regras gerais governando o uso de adiaphora, substancialmente as mesmas que Gillespie’s citou acima. Elas devem: a) não ofender nada, especialmente à Igreja de Deus; b) ser feitas em ordem e decência; c) ser feita para edificação; d) para a glória de Deus. [32] Op. Cit., I, 196. [33] Jus Divinum Reiminis Ecclesiastici, or The Divine Right of Church Government, Bby sundry minister of Christ within the City of London, pp. 48-49. * Os Puritanos usaram essa palavra num sentido mais extenso do que o nosso uso moderno, de modo que ela cobria governo e ordem. [34] Op. Cit., 7. ** ����������������������������������������������������������� Rutherford dedica quatro páginas somente à����������������� ������������������ esse verso, Deuteronômio 32; Apocalipse 22.18,19. [35] Works, 15, pp. 39-40.
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[36] Op. Cit., pp. 16-17. [37] Vol. 15, pp. 41-42 [38] Bannerman, 1, p. 367 [39] Quoted in Rutherford, op. Cit., p. 77. [40] Foxe, vol. 6, p.615. [41] Op. Cit., 3, 180 [42] Op. Cit., 3, pp. 205-6, 212-13 [43] William Cunningham, Historical Theology, vol. 1, p. 72. [44] Lorimer, op. Cit., p. 30. [45] Rutherford, op. Cit., p. 30. [46] Daniel Gerdes, Antiquity Chest, vol. 1, part 1, pp. 656-670. This is Latin work and this import letter has not yet been printed in English. [47] Vol. 13, p. 463.
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Um Problema Central na Controvérsia Puritana Em 1522 na Manor House de Sodbury, em Gloucestershire, William Tyndale estabeleceu o princípio fundamental do Protestantismo Inglês quando confrontou os eclesiásticos que se reuniram ao redor da mesa de jantar de Sir John Walsh com aquilo que John Foxe chama de “A Escritura Aberta e Manifesta”. Quatro anos depois o mesmo princípio passou a ser aplicado para impregnar ou levedar a nação inteira com a chegada secreta dos primeiros exemplares do Novo Testamento impressos em Inglês, vindos de Flanders. Seu tradutor, Tyndale, já então um exilado procurado pela lei, justificou sua ação ilegal nos seguintes termos: “Percebi por experiência própria que é impossível firmar as pessoas leigas em qualquer verdade, a menos que pelas Escrituras claramente abertas aos seus olhos (...). Deus estabeleceu uma regra nas Escrituras, sem a qual nada se pode fazer, nem mesmo mover um fio de cabelo, sem ser abominável aos olhos de Deus.” Iain Murray Hamish nasceu em Lancashire, Inglaterra em 19 de abril de 1931. Foi convertido a Cristo com 17 anos. Tornou-se ministro assistente em São João, Summertown, Oxford em 1955. Juntamente com Jack Cullum fundou a Banner of Truth Trust, em 1957.
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