BJ Grafados - Versão resumida (Demo)

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TABLE OF CONTENTS Sumário - Demo Créditos Apresentação Para Você Leitor Alimentos - demo Animais - demo Pessoas - demo Sentido da vida - demo Sentimentos - demo Sociedade - demo Artes - demo Mentais - demo História - demo Lugares - demo Materiais - demo Ciências - demo Religião - demo Sonhos - demo Tempo - demo Sobre o Autor Herman Augusto Schmitz


Índice Apresentação Para você Leitor Alimentos Animais Pessoas Sentido da Vida Sentimentos Sociedade Artes Mentais História Lugares Materiais Ciências Religião Sonhos Tempo Sobre o Autor LINK PARA A PRÉ-VENDA: https://www.amazon.com.br/dp/B0B37TSP54


Copyright ©2022 by Herman Augusto Schmitz

ASIN: B0B37TSP54 S355j Schmitz, Herman Augusto Prefácio: Edra Morais Capa e Design Gráfico: O Autor ePub Versão 3.0 Contatos: grafados@gmail.com

Edição Independente Distribuição


APRESENTAÇÃO Acompanho o Blog Grafados de Herman Augusto Schmitz desde sua primeira postagem. Uma daquelas ideias que sabemos nascerem predestinadas ao sucesso. Ver que hoje este blog completa dez anos, e que resultará em um livro, sem dúvida, me deixou muito feliz. Ser convidada para apresentar o livro Book Jockey Grafados é uma grande responsabilidade, afinal como salientar um livro que resulta de um projeto inovador, que envolve a integração de várias artes? Grafados já foi exposição de arte visual no Londrix- Festival Literário de Londrina e hoje se aproxima da música. Resultado de dez anos de garimpagem de Herman Augusto Schimitz, autor que passeia pela poesia, ficção cientifica e pesquisa acadêmica, sempre deixando seu traço inovador e único. O livro nos é apresentado como uma “discotecagem”, onde o DJ Herman seleciona as "palavras que irão fazer o seu clima". Acredite, neste livro não há assunto definido, assim como na vida, a pausa pode refletir sobre o que beber, sentimentos humanos, dúvidas, histórias ou lugares. Sejam clássicos ou contemporâneos, a linha que costura estes textos, é o homem na sua universalidade. Algo tão inusitado e atemporal vem ao encontro da comunicação dos novos tempos, com a popularização das redes sociais e as inúmeras citações e associações, os usuários sabem que podem modelar sua imagem. Para quem busca novos seguidores, “curtidas” ou “compartilhamentos”, a estratégia


clássica de sociabilidade é estar sempre bem-informado, e demonstrar um bom nível cultural. Citações são uma maneira de associar a si uma ideia, um pensamento. No entanto, sabemos que o índice de compartilhamento e citações cuja autenticidade e autoria são questionáveis é alarmante, então tenho certeza de que este livro nasce com mais esta função. Garantir aos seus leitores, a certeza de que o que está sendo “destacado”, tem sua autoria checada. Por isto caro leitor, pode copiar, colar e compartilhar à vontade. Aprecie o BJ Grafados, assim como uma boa playlist, o DJ literário Herman pesquisou durante dez anos, coletou e registrou textos importantes e reconhecidos, de obras clássicas e contemporâneas, imprimindo nesta seleção um ritmo. Curta esta bibliotecagem e aprecie a vida sem moderação. Edra Moraes Escritora e Produtora cultural


PARA VOCÊ LEITOR A ideia de um livro feito de trechos de outros livros não é nova. O Livro dos Sonhos de Jorge Luis Borges, as coletâneas de fábulas, de aforismos, de citações célebres, ou de um subgênero, que eu carinhosamente chamo “belíssimas páginas da literatura universal”, estão sempre presentes a cada geração. Tenho alguns na minha biblioteca porque sempre gostei desses recortes, mas só que, em algum momento eu percebi que havia uma outra classe de trechos literários, com um significado bem mais pertinente aos nossos dias do que as "belíssimas" mostram. E essa talvez tenha sido a grande motivação para essa pesquisa: reunir uma coleção de textos que combinados, ajudassem no grande manual da apreciação da vida. Este livro começou a sua existência em uma terça-feira, 12 de junho de 2012. Antes, eram somente parágrafos sublinhados em alguns livros. Esse foi o dia da minha primeira postagem no Blog Grafados. Na época, a proposta era de se fazer uma leitura gráfica de alguns trechos de literatura. Com o tempo, eu fui reunindo um material significativo, mas que pela dinâmica do blog, não passavam a minha intensão. Chegou então a Pandemia e pensei melhor nesse conteúdo, e passei a organizar os textos desses 10 anos, de uma forma sistemática, deixando mais claro o que eu queria dizer com o blog. A literatura não é datada como a história, porque as ações humanas podem ocorrer em qualquer tempo, seja em um


romance clássico ou na vanguarda. A função mais nobre da literatura é descrever o ser humano universal. Essa seleção reúne autores nunca encontrados juntos em antologias, como por exemplo, Manuel de Barros, Brecht, Richard Dawkins, Boris Vian, Philip K. Dick, Kafka e Julio Cortázar além de muitos outros. Essa é uma seleção pessoal, instigada pelos autores que eu gosto e de alguns que eu conheci dentro desse processo de pesquisa para a finalização desse livro. Apresentar um conteúdo assim, exige algum tipo de ordenação. Portanto se fez uma organização alfabética para facilitar as coisas, mas o que deu mais quebradeira de cabeça foi classificar os textos nas categorias, porque muitas dessas citações, podem estar em vários lugares ao mesmo tempo, contrariando uma lei fundamental da física! Acabei tendo que optar em várias ocasiões, e se acrescentei algo a um contexto (ou me equivoquei), pode ter certeza de que sempre foi de modo intencional. Gostaria que esse livro fosse lido como uma “discotecagem”, onde está aqui o DJ das palavras, da literatura, o book jockey e é isso que está sendo agora “tocado”: Palavras na pista. A diferença, é que o leitor pode avançar e recuar à vontade. Pode ler para outros. Pode copiar e colar e compartilhar. O importante é que aqui a literatura está solta, como um solo de guitarra ou um sax na madrugada. Aqui, você leitor, é o BJ de si mesmo! Herman Augusto Schmitz Londrina, junho de 2022


ALIMENTOS A TAÇA Pouco acima daquela alvíssima coluna que é o seu pescoço, a boca é-lhe uma taça tal que, vendo-a, ou, vendo-a, sem, na realidade, a ver, de espaço a espaço, o céu da boca se me enfuna de beijos – uns, sutis, em diáfano cristal lapidados na oficina do meu Ser; outros – hóstias ideais dos meus anseios, e todos cheios, todos cheios do meu infinito amor… Taça que encerra por suma graça tudo que na terra de bom produz! Boca! o dom possuis de pores louca a minha boca! Taça de astros e flores, na qual esvoaça


meu ideal! Taça, cuja embriaguez na via-láctea do Sonho ao céu conduz! Que me enlouqueças mais… e, a mais e mais, me dês o teu delírio… a tua chama… a tua luz… Hermes Fontes - A Taça, 1908

CHEIO DE PLANOS VOLTEI A ESCREVER, entrei a fundo na história e me perdi nela. Agora quem a escrevia era eu; o conto não se escrevia mais a si próprio, de modo que não tornei a levantar a cabeça. Esqueci-me do tempo, do lugar em que me encontrava e nem sequer mandei vir outro rum Saint James. Cansara-me dele sem pensar nisso. Terminei o conto, afinal, sentindo-me realmente cansado. Reli o último parágrafo e, quando levantei os olhos à procura da moça, não a encontrei mais. Tomara que tenha ido com um homem decente, pensei. Mas sentia-me triste. Fechei o caderno, coloquei-o no bolso de dentro, pedi ao garçom uma dúzia de portugaises e meia garrafa do vinho branco seco da casa. Depois de escrever um conto sentia-me sempre vazio e simultaneamente triste e feliz, como se tivesse acabado de me entregar ao amor físico: estava seguro de que este conto que acabara de escrever era muito bom, embora não soubesse quanto o era antes de lê-lo de ponta a ponta, no dia seguinte. Comi as ostras, que possuíam forte gosto de mar e um leve travo metálico que o vinho branco gelado lavava, deixando somente o gosto de mar e a suculenta textura; à medida que


ia sorvendo o líquido frio de cada concha e o fazia descer acompanhado do estimulante sabor do vinho, o sentimento do vazio me foi abandonando e me vi de novo feliz, cheio de planos. Ernest Hemingway - Paris é uma Festa, 1964

BEBENDO SÓ SOCIALMENTE O ÁLCOOL TEM SIDO SOCIALIZADO uma vez que não só estabelece uma moral sui generis, mas também uma decoração: o álcool adorna as menores cerimônias da vida diária e serve para acompanhar um cocktail modesto ou um grande ato político de qualquer tipo. O álcool exalta o clima qualquer que ele seja: é associado ao frio em todos os mitos de aquecimento, e em pleno verão, a todas as imagens de sombra ou de frescor. Não há uma só situação de pressão física, seja a temperatura, a fome, o tédio, o emprego ou o desemprego, que não faça pensar em um pouco de álcool. Roland Barthes

O AGUARDENTE DA RAINHA DA HUNGRIA O REI CAÇAVA NOS BOSQUES de Versailles. A três ou quatro léguas dessa cidade, um guarda do séquito cai ao galopar e quebra uma perna; o rei volta-se ao Sr. De Rochechouart e lhe diz: — Senhor, vós tendes outra carroça, dá-me o prazer de levar este jovem de regresso a Versailles.


O Sr. De Rochechouart contava o fato no dia seguinte em uma casa. — O desgraçado, dizia, me causava uma pena terrível: todos os movimentos da carruagem lhe davam dores horríveis; dava gritos, rangia os dentes; aquilo me punha num estado que podeis imaginar. Felizmente, lembrei que tinha no bolso um pouco do aguardente da rainha da Hungria. — E o destes? — Não, tomei logo um grande trago e isso me permitiu suportar até Versailles. Stendhal - Cartas, 1804

O PIANO COQUETEL — QUER UM APERITIVO? — perguntou Colin. — Meu pianoquetel está pronto, você pode experimentar. — Funciona? — perguntou Chick. — Perfeitamente. Foi difícil acertar o ponto, mas o resultado está além do que eu esperava. Consegui, a partir de "Black and Tan Fantasy", uma mistura realmente assombrosa. — Qual é o princípio? — perguntou Chick. — A cada nota — disse Colin — faço corresponder uma bebida, um licor ou um aromatizante. O pedal forte corresponde a um ovo batido, e o pedal doce, ao gelo. Para a soda, basta um toque no registro agudo. As quantidades são calculadas na razão direta da duração: à semifusa equivale um dezesseis avos de dose, à semínima uma unidade, à semibreve o quádruplo da dose. Quando tocamos uma peça lenta, aciona-se um sistema de registro de modo que a


quantidade não seja aumentada, o que daria um coquetel grande demais, mas o teor de álcool, sim. E, de acordo com a duração da peça, podemos, se quisermos, fazer variar o valor da dose, reduzindo-a, por exemplo, a um centésimo, para obter uma bebida que leve em conta todas as harmonias, por meio de uma regulagem lateral. — É complicado — disse Chick. — O conjunto é comandado por contatos elétricos e relés. Não vou te dar detalhes, você sabe do que eu estou falando. E, além do mais, o piano funciona de verdade. — É maravilhoso! — disse Chick. — Só tem uma coisa chata — disse Colin —, é o pedal forte para o ovo batido. Precisei pôr um sistema de engate especial, porque, ao tocar um música mais hot, vêm uns pedaços de omelete no coquetel, é difícil de engolir. Vou mudar isso aí. Por enquanto, é só prestar atenção. Para creme de leite, sol grave. — Vou fazer um "Loveless Love" — disse Chick. — Vai ser demais. — Ainda está no meio do muquifo que virou minha oficina — disse Colin —, porque as placas de proteção ainda não estão parafusadas. Vem, vamos lá. Vou ajustar para dois coquetéis de uns duzentos mililitros, só para começar. Chick foi para o piano. Ao fim da peça, uma parte do painel da frente se abriu num golpe seco e apareceu uma fileira de vidros. Dois deles estavam cheios até a boca de uma mistura apetitosa. — Fiquei com medo — disse Colin. — Teve uma hora em que você tocou uma nota errada. Felizmente, estava na harmonia.


— Isso aí considera a harmonia? — disse Chick. — Não completamente — disse Colin. — Seria complicado demais. Só tem alguns recursos. Bebe e vem pra mesa. Boris Vian - A Espuma dos Dias, 1947

CERVEJA MATINAL BOM, eu acordei esta manhã e abri uma cerveja Bom, eu acordei esta manhã e abri uma cerveja O futuro é incerto e o fim está sempre por perto. Jim Morrison - Roadhouse Blues, 1970

RESSACA O TELEFONE ACORDOU intempestivamente Peter Fallow no interior de um ovo de casca partida que só o saco membranoso mantinha intacto. Ah! Esse saco membranoso era a sua cabeça, e o lado direito da cabeça repousava na almofada, e a gema era pesada como mercúrio, fluida como mercúrio, e comprimia-se contra a sua têmpora direita e o seu olho direito e o seu ouvido direito. Se tentasse levantarse para atender o telefone, a gema, o mercúrio, aquela massa venenosa, deslocar-se-ia, rolaria e romperia o saco, e o seu cérebro cairia ao chão. Tom Wolfe - A Fogueira Das Vaidades, 1987


A SOBRIEDADE GRATUITA A SOBRIEDADE PODE SER uma heroica virtude de cavalheiro quando vem imposta pelas circunstâncias, porém a sobriedade gratuita não conduz a nenhum lado bom e, também, produz palidez, falta de ar, inchaços na barriga e uma tristeza infinita. Deus não fez o homem para que este recuse as bendições que lhe pôs nas mãos; o caviar do Irã ou o borrego espanhol, o vinho de uva e o licor de bagaceira. Camilo José Cela - Enciclopédia do Erotismo, 1982


ANIMAIS MAIS IMPORTANTES QUE O DINHEIRO OS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO são mais importantes que o dinheiro. Para dez por cento dos ingleses entrevistados os animais eram mais importantes para a felicidade conjugal que o cônjuge. Para os vinte por cento dos entrevistados, os animais eram mais importantes que os filhos, e mais de uma terceira parte os achava mais importantes que o seu trabalho. Quase metade dos entrevistados considerava que os animais de estimação são mais importantes que o dinheiro, e noventa e quatro por cento preferia entreter-se com eles do que ver televisão! Elias Canetti - The agony of flies: notes and notations, 1992

FLOR QUE VOA A BORBOLETA é uma Flor que voa. Guy de Maupassant - O Horla, 1886

UMA FÁBULA


CONTAM QUE CERTO LAVRADOR possuía um burro que o repouso engordara e um boi que o trabalho abatera. Um dia, o boi queixou-se ao burro e perguntou-lhe: — não terás, ó irmão, algum conselho que me salve desta dura labuta? E o burro respondeu: — finge-te de doente e não comas tua ração. Vendo-te assim, nosso amo não te levará para lavrar o campo e poderás descansar. Dizem que o lavrador entendia a linguagem dos animais e compreendeu o que eles conversaram. Na manhã seguinte, viu que o boi não comera sua ração. Deixou-o e levou o burro em seu lugar. O burro foi obrigado a puxar o arado o dia todo, e quase morreu de cansaço. E lamentou o conselho que dera ao boi. Quando voltou à noite, perguntou-lhe o boi: — como vais, querido irmão? Respondeu o burro: — vou muito bem. Gostei da luz do sol e da alegria dos campos, mas ouvi algo que me fez estremecer por tua causa. Ouvi nosso amo dizer: `se o boi continuar doente, deveremos matá-lo para não perdermos sua carne.' Minha opinião é que comas tua ração e voltes para tua tarefa a fim de evitar tamanho infortúnio. O boi concordou e devorou toda a sua ração. O lavrador estava ouvindo, e riu. As Mil e Uma Noites

UMA PLATEIA SENSÍVEL — SIM, É CLARO, ACREDITO.


Ela inclina de lado a cabeça prateada. — Não, não acredita. Mas vou provar. Com essas palavras, Madame ingressa em seu fresco salão caribenho, um aposento sombreado com ventiladores de teto que giram devagar, e se instala num piano bem afinado. Continuo sentado na varanda, de onde consigo observar essa mulher sofisticada e idosa, produto de sangues variados. Ela começa a executar uma sonata de Mozart. Aos poucos os camaleões se acumularam; uma dúzia, mais uma dúzia, na maioria verdes, alguns escarlates, outros lilás. Trotavam através da varanda e se aglomeravam à porta do salão, uma plateia sensível e atenta à música executada. E que parou, porque de repente minha anfitriã se levantou e bateu o pé, ao que os camaleões se espalharam como fagulhas desprendidas por uma estrela que explodisse. Então ela me encara. — Et maintenant? C'est vrai? Truman Capote - Música para Camaleões, 1980

CAPIVARA, UM BICHO INSETOSO TUDO O QUE SE HÁ DE DIZER aqui sobre capivaras, nem as mentiras podem ser comprovadas. Se esfregam nas árvores de tarde antes do amor. Se amam sem ocupar beijos. Excitadas se femeiam por baixo dos balseiros. E ali se aleluiam. O cisco da raízes aquáticas e a bosta dos passarinhos se acumulam no lombo das capivaras. Dali se desprende ao meio dia forte calor de ordumes larvais . No lombo se criam mosquitos monarcas, daqueles de exposição, que furam até vidros e abaixam pratos de balança.


É vezo de dizer-se então que capivara é um bicho insetoso. Porquanto favorecem a estima dos pássaros, sobretudo dos bentevis que lhes almoçam larvas ao lombo. Coisa que todo mundo gosta, tirante as capivaras, é de flor. Pelo que já não entendo, existem razões particulares ou individuais que expliquem tal desgosto das capivaras por flor? Todas guardam água no olho. Manoel de Barros - O Livro das Ingnorãças, 1993.

NADA DE ABANAR O RABO EM RESTAURANTE CHINÊS OLHE PARA ESTA CIDADE tão deprimente. Há um restaurante chinês em cada esquina, e se você acha que a comida chinesa não vai dar água na boca quando você passar pela frente, então você não sabe o que é a cozinha asiática. Tem em grande estima a carne de cachorro, meu amigo. Encurralam e matam os cães no beco atrás da cozinha; vinte ou trinta por semana. Embora coloquem no menu como pato ou porco, os iniciados conseguem distinguir, e os gourmets não se enganam nem por um momento. A menos que queira acabar em uma bandeja de moo goo gai pan, você deve pensar duas vezes antes abanar o rabo na frente de um lugar desses. Entendeu, Mr. Bones? Conheça o seu inimigo… e não chegue perto dele. Paul Auster, Timbuktu, 1999


PESSOAS ASAS PARA QUÊ? NAQUELA ÉPOCA eu exercia medicina em uma cidade pequena. Uma tarde me trouxeram uma criança toda quebrada; havia caído de um precipício. Quando tirei-lhe a camisa para examiná-la vi duas asas. Examinei-as: estavam boas. Mal a criança pode falar, perguntei: — Por que não voou quando sentiu que caía? — Voar? — disse — Voar, para que as pessoas riam de mim? Enrique Anderson Imbert

O AMIGO IMPOSSÍVEL NÃO TENHO NINGUÉM EM QUEM CONFIAR. A minha família não entende nada. Aos meus amigos não posso incomodar com estas coisas. Não tenho amigos verdadeiramente íntimos, e mesmo que houvesse um amigo íntimo, como o mundo o entende, ainda assim não seria íntimo no sentido em que eu entendo a intimidade. Sou tímido e não gosto de dar a conhecer as minhas angústias. Um amigo íntimo é um dos meus ideais, um dos meus sonhos, mas um amigo íntimo é algo que nunca terei. Nenhum temperamento se adapta ao meu; não há um carácter neste mundo que dê o mais leve indício de se


aproximar do que eu sonho num amigo íntimo. Basta, não falemos mais nisto. Fernando Pessoa - Obra Essencial, 2007

EVITAR O INSTINTO CASEIRO VOLTO A REPETIR: o casamento, no sentido tradicional, me parece repulsivo. O égoisme à deux não é nada comparado a ele. É uma espécie de caçada tácita por casais: o mundo está repleto de casais, cada casal em sua própria casinha, guardando seus próprios interessinhos e cozinhando em sua própria intimidade ínfima…, é a coisa mais repulsiva da terra. — Estou bastante de acordo — disse Gerald. Tem algo inferior nisso. Porém, como se diz, qual é a alternativa? — Deve-se evitar sempre esse instinto caseiro. Não é um instinto, mas um hábito covarde. Não se deve ter uma casa nunca. D.H. Lawrence - Mulheres Apaixonadas, 1920

O ESTRANGEIRO — A QUEM MAIS AMAS TU, HOMEM ENIGMÁTICO, dizei: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão? — Eu não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão. — Teus amigos? — Você se serve de uma palavra cujo sentido me é, até hoje, desconhecido. — Tua pátria?


— Ignoro em qual latitude ela esteja situada. — A beleza? — Eu a amaria de bom grado, deusa e imortal. — O ouro? — Eu o detesto como vocês detestam Deus. — Quem é então que tu amas, extraordinário estrangeiro? — Eu amo as nuvens…, as nuvens que passam lá longe… as maravilhosas nuvens! Charles Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa, 1869


SENTIDO DA VIDA UM PASSO AS COISAS vêm e vão. Deixe-as então. Robert Creeley

SENTIDO ESTÉTICO DA VIDA MINHA MÃE ERA UMA MULHER MARAVILHOSA; totalmente romântica vivia enamorada de Lord Byron, que como você sabe era manco. Ela queria que eu fosse pintor ou músico. Um dia eu ia na frente dos meus pais, andando pelo jardim, um menino loirinho, bonito, e meu pai comentou com minha mãe: — Como está lindo o nosso menino, não é? Minha mãe respondeu: — Sim, pena que não manque um pouco. Isso é ter um sentido estético da vida! Camilo José Cela

VAMOS ÀS CEGAS AI, POR QUE TANTAS VEZES AS PESSOAS CULPAM A PROVIDÊNCIA ou a Fortuna, quando, de fato, são mais


generosas do que elas mesmas podem perceber? Este quer a riqueza, que vai ser a causa de sua morte ou sua doença; aquele quer livrar-se da prisão, e tomba vítima de sua criadagem quando retorna à casa. Há males infinitos neste mundo, e não sabemos bem o que pedimos: vamos às cegas como os pobres ratos. Se um ébrio sabe que possui um lar, ele não sabe como chegar lá, e acha escorregadio o seu caminho. Assim andamos nós em nossas vidas: perseguimos nós todos a ventura, tomando quase sempre o rumo errado. É o que se dá com todos… e comigo, que, se antes esperava piamente ter de volta a alegria e o bem-estar se me livrasse da prisão, vejo agora, apartado de meu bem, – pois não te posso ver, oh doce Emília, – que de fato estou morto, e para sempre. Geoffrey Chaucer - Os Contos de Cantuária, 1400

ADAPTAÇÃO — PARA QUE SERVE A VIDA, ALIÁS? Não leu nada a respeito daquela invenção medieval chamada "sem repouso"? Uma espécie de gaiola na qual não se podia estar nem deitado, nem sentado, nem em pé. Era de supor que uma pessoa condenada àquilo morreria em poucas semanas. Nada disso. Um homem viveu dezesseis anos numa dessas gaiolas, foi liberto e morreu velho. Agatha Christie - Cipreste Triste, 1940

ESPECIALIDADE É VIVER


MINHA ESPECIALIDADE É VIVER — era a legenda de um homem que não tinha renda porque não estava à venda E. E. Cummings

QUEM NADA POSSUI VEJO RAPAZES, CONCIDADÃOS MEUS, cuja má sorte foi terem herdado fazendas, casas, celeiro, gado e instrumentos agrícolas, porque essas coisas são mais fáceis de adquirir do que descartar-se delas. Melhor seria se tivessem nascido em pasto aberto e sido amamentados por uma loba a fim de que pudessem enxergar melhor a terra a que foram chamados a cultivar. Quem os fez servos do solo? Por que comeriam de seus vinte e quatro hectares quando o homem está condenado a comer apenas a porção de seu barro? Por que começariam a cavar seus túmulos logo que nascem? Têm é que viver a vida, deixando todas essas coisas para trás e continuando o melhor que puderem. Quantas pobres almas imortais já não encontrei esmagadas e sufocadas sob suas cargas, rastejando e empurrando pela estrada da vida afora celeiros de vinte e cinco metros por quinze, com seus estábulos de Augias nunca limpos, mais de quarenta hectares de terra para amanho, sega, pastagem, sem falar nos bosques! Quem nada possui não luta com encargos desnecessários herdados e já considera bastante a tarefa de sujeitar e cultivar seu quinhão de carne. Henry David Thoreau - Walden ou A Vida nos Bosques, 1854


PROCURANDO ONDE NÃO SE ENCONTRA NOS COMPORTAMOS COMO UM HOMEM que está bêbado como uma cabaça n'água: sabe perfeitamente que tem uma casa para onde ir, porém não sabe como chegar até lá. E o homem bêbado caminha trôpego e às cegas. É assim que nós andamos pelo mundo, buscando desesperadamente a felicidade, porém geralmente ali onde não se encontra. Geoffrey Chaucer - Os Contos de Cantuária, 1400


SENTIMENTOS O ESPÍRITO DA PERVERSIDADE MAS ESSE SENTIMENTO LOGO SE TRANSFORMOU EM IRRITAÇÃO. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano — uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Edgar Allan Poe - O Gato Preto, 1843

MORTE DO AFETO O CASAMENTO ENTRE A RAZÃO E O PESADELO, que tem dominado o século 20, deu origem a um mundo que é cada vez mais ambíguo. Pelo cenário das comunicações movemse os espectros de tecnologias sinistras e os sonhos que o dinheiro pode comprar. Sistemas de armas termonucleares e comerciais de bebidas coexistem em um ofuscante reino


governado pela publicidade e pelos pseudo-eventos, pela ciência e pela pornografia. Nossas vidas são presididas pelos grandes e geminados leitmotifs do século 20 sexo e paranóia. — Apesar do encanto de McLuhan com a alta velocidade dos mosaicos de informação, não conseguimos deixar de nos lembrar do profundo pessimismo de Freud em A Civilização e seus Descontentes. Voyeurismo, autoaversão, a base infantil de nossos sonhos e anseios — essas enfermidades da psique culminaram agora com a mais aterrorizadora perda do século: a morte do afeto. J. G. Ballard - Crash, 1973

ALEGORIAS AMANTE, O AUTOR, CONTA que durante um passeio encontrou-se diante das muralhas ameadas que circulavam um jardim de onde vinham gorjeios de passarinhos. Ele bateu à porta e Ociosa o conduziu à presença de Prazer, que era o potentado do lugar. Tomou então parte nas danças, depois andou pelo jardim e foi encontrar-se diante da Fonte do Amor. No fundo estava o perigoso Espelho. Percebendo um botão de rosas, tentou colhe-lo e recebeu do deus do Amor as flechadas que fazem amar. Pôs-se a serviço do deus e este o instruiu sobre as provas a que teria de se submeter. Bom-Acolhimento o conduziu para junto do recinto onde se encontrava Rosa, guardada por Perigo, Má-lingua e Vergonha, que o repeliram. Amante consultou então Razão e Amizade, fez as pazes com Perigo e obteve de BomAcolhimento permissão para beijar a Rosa. Grande


escândalo: Bom-Acolhimento foi encerrado numa torre e Rosa num castelo, ficando Amante entregue a sua dor. Paulo Rónai - O Romance da Rosa: poema medieval de Guillaume de Lorris, 1225

SUOR DE UM CÚMPLICE QUALQUER POR QUAL EMBUSTE DOIS OLHOS nos apartam de nossa solidão? Há fracasso mais humilhante para o espírito? O amor adormece o conhecimento; o conhecimento desperto mata o amor. A irrealidade não pode triunfar indefinidamente, nem mesmo disfarçada com a aparência da mais estimulante mentira. E, de resto, quem teria uma ilusão tão firme para encontrar no outro o que buscou em vão em si mesmo? Um calor nas entranhas nos dará o que o universo inteiro não soube oferecer-nos? E, no entanto, esse é o fundamento desta anomalia corrente e sobrenatural: resolver a dois – ou antes, suspender – todos os enigmas; graças a uma impostura. esquecer esta ficção em que está mergulhada a vida: com uma dupla carícia preencher a vacuidade geral: e – paródia do êxtase – afogar-se, finalmente, no suor de um cúmplice qualquer…) Emil Cioran - Breviário de decomposição, 1949

CÚMPLICES O MAIS IRRITANTE NO AMOR é que se trata do tipo de crime que exige um cúmplice.


Charles Baudelaire

MORRER DE AMOR DEITOU-SE O JOVEM AO LADO DELA sem lhe tocar, recolheu num só pensamento o longo amor que lhe dera, a presente dureza da dama e a perdida esperança e decidiu não viver mais. Retendo a respiração, sem fazer qualquer movimento, cerrou os punhos e morreu ao lado de Salvestra. Giovanni Boccaccio - Decamerão, 1348-53

O AMOR E A LOUCURA NO AMOR TUDO É MISTÉRIO: suas flechas e sua aljava, sua chama e sua infância eterna. Mas por que o amor é cego? Aconteceu que um certo dia o Amor e o Loucura brincavam juntos. Aquele ainda não era cego. Surgiu entre eles um desentendimento qualquer. Pretendeu então o Amor que se reunisse para tratar do assunto o conselho dos deuses. Mas a Loucura, impaciente, deu-lhe uma pancada tão violenta que lhe privou da visão. Vênus, mãe e mulher, pôs-se a clamar por vingança, aos gritos. E diante de Júpiter, Nêmesis — a deusa da vingança — e todos os juízes do Inferno, Vênus exigiu que aquele crime fosse reparado. Seu filho não podia ficar cego. Depois de estudar detalhadamente o caso, a sentença do supremo tribunal celeste consistiu em condenar a Loucura a servir de guia para o Amor.


Jean de La Fontaine - Fábulas


SOCIEDADE DESCONFIANÇA EM RELAÇÃO À FIGURA HUMANA MAS ACONTECE QUE MUITOS DAQUELES HONRADOS SENHORES não ficaram satisfeitos com essa coisa toda. Essa história de autômato ficou gravada neles, produzindo, em seguida, terrível desconfiança em relação às figuras humanas em geral. Para ficarem bem seguros de que não amavam uma boneca de madeira, alguns namorados exigiam que sua bem-amada não cantasse no compasso e nem dançasse ritmadamente; que ao ouvir uma leitura, bordasse ou tricotasse ou brincasse com seu gatinho etc. Mas, sobretudo, não se contentasse apenas em ouvir, que falasse algumas vezes e suas palavras fizessem supor fosse capaz de pensar e sentir. Algumas ligações amorosas se tornaram mais sólidas e mais agradáveis e outras foram desfeitas rapidamente. "Assim, não se pode confiar em ninguém", dizia tanto um quanto o outro. Bocejavam demais nos chás, jamais espirrando, para não despertar suspeitas. E. T. A. Hoffmann - O Homem da Areia, 1817

A IDADE IDEAL PARA RESSUSCITAR TUDO É PROVISÓRIO E TUDO SE COMPRA. O homem é um produto como qualquer outro, e com uma data de validade.


Esta é a razão pela qual eu decidi me aposentar aos 33. Dizem que é a idade ideal para ressuscitar. Frédéric Beigbeder - 13,99 euros, 2000

BANCOS O QUE É O ASSALTO A UM BANCO, comparado à fundação de um Banco? Bertolt Brecht

MÁQUINA PROPAGADORA DO ESNOBISMO E DEPOIS SE LÊ NO DIARIO DO GOBERNO: "Ontem, Sua Majestade o Rei foi divertir-se atirando nos bosques de Cintra, assistido pelo Coronel o Honorável Whiskerando Sombrero. Sua Majestade retornou a Necessidades para almoçar às etc. etc." Oh, essas Notícias da Corte! mais uma vez, eu exclamo. Abaixo as Notícias da Corte – essa máquina propagadora do esnobismo! Prometo assinar por um ano qualquer jornal diário que saia sem as Notícias da Corte – mesmo que seja o próprio Morning Herald . Quando leio esse lixo, encho-me de fúria; sinto-me desleal, um regicida, um membro do Clube dos Cabeças de Bagre. O único artigo das Notícias da Corte que me agradou foi sobre o rei da Espanha, que incendiou-se todo, porque não houve tempo para o primeiro-ministro ordenar a Lord Chamberlain que mandasse o grande Coronel da Guarda Real exigir que o primeiro pajem dissesse ao chefe


dos criados que pedisse à Criada de Honra que levasse um balde d’água para apagar Sua Majestade. William M. Thackeray - O Livro dos Esnobes, 1847

PENSANDO MELHOR NOUTRA GAVETA ENCONTREI QUASE TRINTA E SEIS LIBRAS EM NOTAS, algumas moedas europeias, algumas do Brasil, alguns duros, um pouco de ouro, um pouco de prata. A visão daquela fortuna toda me fez sorrir. — Que droga!, – exclamei em voz alta, — para que serve? Não tem o menor valor para mim, não vale nem sequer o esforço de erguer do chão. Uma única dessas facas vale toda esse dinheiro; não tenho o menor uso para você; fica onde está e vai para o fundo do mar como uma criatura cuja vida não merece ser salva. Depois, pensando melhor, eu juntei tudo e, embrulhando num pedaço de lona, comecei a pensar na construção de uma nova jangada." Daniel Defoe - Robinson Crusoé, 1719

MEIO SÉCULO NO ÓPIO THOMAS DE QUINCEY: decadente ensaísta inglês quem, aos setenta e cinco anos de idade, faleceu em razão de ter ingerido ópio durante meio século. Cyril Connolly - O Túmulo Inquieto, 1944

USO HABITUAL DA MORFINA


O TEMPERAMENTO DE BEDLOE ERA, no mais alto grau, sensível, excitável, entusiástico. Sua imaginação era singularmente vigorosa e criadora, e sem dúvida recolhia força adicional do uso habitual da morfina, que ele bebia em grande quantidade e sem a qual teria achado impossível viver. Era seu hábito tomar uma enorme dose dela, imediatamente depois do pequeno almoço, de cada manhã ou antes, imediatamente depois de uma xícara de café forte. Pois ele não comia nada antes do meio-dia, e depois saía sozinho ou acompanhado simplesmente por um cachorro, para dar um longo giro entre a cadeia de colinas ásperas e sombrias que se estendem a oeste e ao sul de Charlottesville e são ali honradas com o de Rogged Mountains (Montanhas Fragosas). Edgar Allan Poe - Uma História das Montanhas Fragosas, 1884

O BENDITO PRAZER DE FUMAR DEPOIS DE ACABAR DE COMER, e tinha sido uma refeição farta, o Homem Invisível pediu um charuto. Mordeu vigorosamente a ponta, antes que Kemp pudesse encontrar um canivete e xingou quando a folha externa soltou-se. Era estranho vê-lo fumar: a boca, garganta, faringe e narinas tornaram-se visíveis como uma espécie de molde rodopiante de fumaça. — O bendito prazer de fumar! — exclamou ele e exalou com força. H. G. Wells - O Homem Invisível, 1897


ARTES COM ARTE NÃO SE BRINCA MAN RAY PENSAVA EM SEU FERRO DE ENGOMAR cheio de pregos e outros estupendos objetos quando afirmou: De maneira nenhuma eles deviam ser confundidos com as pretensões estéticas ou o virtuosismo plástico que em geral se espera das obras de arte. Naturalmente - acrescentava a corujinha de óculos pensando na tal senhora -, os visitantes da minha exposição ficavam perplexos e não se atreviam a divertir-se, porque uma galeria de pintura é considerada um santuário onde não se brinca com a arte. E não se atreviam a divertir-se. Man Ray, como você gostaria de ter ouvido o que eu ouvi alguns meses atrás em Genebra, onde uma galeria da cidade velha prestava uma homenagem ao Dadá. Lá estava justamente o seu ferro cheio de pregos, e enquanto a senhora lá de cima o contemplava com gélido respeito, uma garota ruiva mantinha esse diálogo exemplar com outra quase loura: — No fundo, não é tão diferente do meu ferro. — Como assim? — É, com esse você se espeta e com o meu você se queima. Julio Cortázar – A Volta ao Dia em 80 Mundos, 1967

NASCIMENTO DE UMA NOVA CLAREZA


TUDO ESTÁ EM DEIXAR AMADURECER e então dar à luz. Deixar cada impressão, cada semente de um sentimento germinar por completo dentro de si, na escuridão do indizível e do inconsciente, em um ponto inalcançável para o próprio entendimento e esperar com profunda humildade e paciência a hora do nascimento de uma nova clareza: só isso se chama viver artisticamente, tanto na compreensão quanto na criação. Rainer Maria Rilke - Cartas a um Jovem Poeta, 1929

SACIAR AS FOMES DIVERSAS A IMPORTÂNCIA DE UM AUTOR decorre não somente de seu valor próprio mas ainda, e em boa parte, da oportunidade de sua mensagem. Alguns há cuja mensagem tem hoje apenas uma importância histórica e já não repercute mais; em tempos idos terá acordado consciências, alimentado entusiasmo, provocado revoluções; não nos diz mais respeito. Os grandes autores são aqueles que não satisfazem somente as necessidades de um país e de uma época mas fornecem um alimento suscetível de saciar as fomes diversas de nacionalidades diferentes e de gerações sucessivas. Michel de Montaigne - Ensaios, 1580

FRAGMENTOS DE VIDA O CINEMA, quando bem feito, proporciona pequenos fragmentos de vida que nunca se esquecerá.


Federico Fellini - Amarcord, 1973

ARTAUD FALA SOBRE CINEMA 1. QUE TIPO DE FILME VOCÊ GOSTA? Gosto de cinema. Gosto de qualquer tipo de filme. Mas todos os tipos ainda estão por criar. Acredito que o cinema pode admitir apenas um certo tipo de filme: só aquele onde todos os meios de ação sensual do cinema tiverem sido utilizados. O cinema implica uma subversão total de valores, uma desorganização completa da visão, da perspectiva, da lógica. É mais excitante que o fósforo, mais cativante que o amor. Não podemos nos dedicar indefinidamente a destruir seu poder de galvanização pelo uso de assuntos que neutralizam seus efeitos e pertencem ao teatro. 2. Que Tipo de Filme Você Gostaria que Fosse Criado? Exijo, portanto, filmes fantasmagóricos, filmes poéticos, no sentido denso, filosófico da palavra; filmes psíquicos. Antonin Artaud - Œuvres Complètes, 1970

JÁ ESTÁ PRONTO FÓRMULA PARA SE ESCREVER um bom roteiro: dê sempre um livro a quatro ou cinco amigos, para que eles leiam. Logo, pergunte-lhes o que entenderam da leitura. Em seguida, você escreve o roteiro com o que eles lhe contaram, e já está pronto.


F. Scott Fitzgerald - The Pat Hobby Stories, 1940

OS OSSOS, A CARNE E O SANGUE DOS FILMES A ANIMAÇÃO NÃO É A ARTE DOS DESENHOS QUE SE MEXEM, mas a arte dos movimentos que são desenhados. O que acontece entre cada imagem é bem mais importante do que aquilo que existe sobre cada imagem. A animação é, portanto, a arte de manipular os interstícios invisíveis que se encontram entre as imagens. Os interstícios são os ossos, a carne e o sangue do filme, o que há sobre cada imagem são apenas as roupas. Norman McLaren

PROVA DE AUSÊNCIA UMA FOTO é tanto uma pseudopresença quanto uma prova de ausência. Susan Sontag


MENTAIS CALIBRE MENTAL KERFOOT AFIRMAVA QUE OS FILHOTES DE FOCA nascem sabendo nadar e outro caçador, latimer, um esbelto moço de olhos apertados, visivelmente norte-americano, sustentava que não, que se as focas dão cria em terra é justamente porque seus filhotes têm que aprender a nadar, como os pássaros têm que aprender a voar. Os demais caçadores, debruçados sobre a mesa, ou espichados em suas enxergas, mostravam-se sumamente entretidos pelo assunto, entrando com apartes em apoio dum ou doutro e às vezes falando todos a um tempo, com muito berreiro e mímica. O assunto era pueril e a argumentação, mais ainda, nem era argumentação. O método de prova consistia em afirmar, negar, impor. provavam que um filhote de foca nasce ou não nasce sabendo nadar pela afirmação ou negação com belicosa violência, ou com ataques contra o oponente, negando-lhe cabeça e bom senso, ou insultando lhe a nacionalidade. Também o passado dum homem vinha à tona, para ajudar a prova da habilidade ou inabilidade natatória das foquinhas. Recordo isto para mostrar o calibre mental dos homens com os quais eu estava em contato. Jack London - O Lobo do Mar, 1904


UMA BIBLIOTECA QUE NÃO É COMO AS OUTRAS VÓS SABEIS QUE A NOSSA BIBLIOTECA NÃO É COMO AS OUTRAS… — Sei que tem mais livros do que qualquer outra biblioteca cristã. Sei que ao lado das vossas estantes os de Bobbio ou de Pomposa, de Cluny ou de Fleury parecem o quarto de uma criança que mal se tenha iniciado no ábaco. Sei que os seis mil códices de que se orgulhava Novalesa há mais de cem anos são pouco ao lado dos vossos, e talvez muitos deles estejam agora aqui. Sei que a vossa abadia é a única luz que a cristandade pode opor às trinta e seis bibliotecas de Bagdad, aos dez mil códices do vizir Ibn al-Alkami, que o número das vossas bíblias iguala os dois mil e quatrocentos corões de que se orgulha o Cairo, e que a realidade das vossas estantes é luminosa evidência contra a soberba lenda dos infiéis que há anos afirmavam (íntimos como são do príncipe da mentira) que a biblioteca de Trípoli era rica de seis milhões de volumes e habitada por oitenta mil comentadores e duzentos escribas. Umberto Eco - O Nome da Rosa, 1980

A BIBLIOTECA UNIVERSO BABEL: CIDADE DE LOCALIZAÇÃO INDETERMINADA, célebre por sua biblioteca, não deve ser confundida com a Babel bíblica (Gênese 11:1-9). Essa biblioteca, que alguns chamam de universo, constitui-se de um número indefinido, e quiçá infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por varandas baixíssimas. De


qualquer hexágono vêem-se os pisos inferiores e superiores interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte estantes, com cinco longas prateleiras, cobrem todos os lados, menos dois: sua altura, do chão ao teto, quase não excede a de um saguão estreito, que desemboca em outra galeria, idêntica à anterior. À esquerda e à direita do saguão há dois quartinhos minúsculos. Um é para dormir em pé; o outro é um banheiro. Por ai passa uma escada espiral, que se debruça e se eleva para o longe. No saguão há um espelho, que duplica as aparências fielmente. Os homens costumam inferir desse espelho que a biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que essa duplicação ilusória?). Cada prateleira encerra 32 livros de formato uniforme; cada livro tem 410 páginas, cada página quarenta linhas; cada linhas, umas oitenta letras na cor preta. Uma vez que os símbolos ortográficos são 25 e que a biblioteca é infinita, encontra-se ali tudo o que é dado a expressar, em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catalogo fiel da biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a verdadeira historia da morte de cada homem, a versão de cada livro em todas as línguas. Geração após geração, os bibliotecários percorrem a biblioteca em busca do livro. Jorge Luis Borges - A Biblioteca de Babel, 1941

BREVIDADE Lamento escrever-lhe uma carta tão longa, mas não tenho tempo de fazê-la mais curta.


Karl Marx a Friedrich Engels

A ESCRITA PROVOCA O ESQUECIMENTO SÓCRATES, O PERSONAGEM, narra ao discípulo a visita de Theuth, o deus das invenções, a Thamus, rei do Egito. Dentre suas numerosas invenções, das quais expõe as vantagens ao rei, que as vai aprovando ou não, Theuth fala sobre a escrita, para ele uma receita segura para a memória e a sabedoria dos egípcios. O faraó posiciona-se contrário à invenção argumentando: — Theuth, meu exemplo de inventor, o descobridor de uma arte não é o melhor juiz para avaliar o bem ou o dano que ela causará naqueles que a pratiquem. Portanto, você, que é pai da escrita, por afeição ao seu rebento, atribui-lhe o oposto de sua verdadeira função. Aqueles que a adquirem vão parar de exercitar a memória e se tornarão esquecidos; confiarão na escrita para trazer coisas à sua lembrança por sinais externos, em vez de fazê-lo por meio de seus recursos internos. O que você descobriu é a receita para a recordação, não para a memória. Platão - Fedro


HISTÓRIA HISTÓRIA FLUTUANTE NÃO TENHO HORIZONTES tenho sonhos à vela e a tempestade da história não tenho mapas tenho cartas anônimas e os gritos de seus náufragos não tenho mares tenho a garganta seca e as palavras navegáveis. Lúcio Lins, 1991

ERRO DE PORTUGUÊS QUANDO O PORTUGUÊS CHEGOU Debaixo duma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português


Oswald de Andrade, 1925

NÃO ACREDITO EM SONHOS A PROPÓSITO DE SONHOS, há cerca de oito dias tive um a respeito do Paraguai e do Brasil. Sonhei que o Brasil seria o maior império do mundo se a sua linha divisória se estendesse até a margem do rio Paraguai pelo oeste, e até o rio Paraná pelo sul. Sonhei, continuou o manhoso espião, que o Paraguai e o Brasil formavam não somente uma aliança total, mas sim uma unidade completa. Não creio, contudo, que isso seja visto pelo Império do Brasil. Por outra parte, não acredito em sonhos, disse. Augusto Roa Bastos - Eu, O Supremo, 1974

MAIOR QUE OS EUA O BRASIL, NO SENTIDO CULTURAL, ainda hoje é uma terra incógnita como, no sentido geográfico, o foi para os primeiros navegadores. Muitas vezes fiquei surpreso de ver que ideias confusas e deficientes, mesmo pessoas cultas e interessadas por coisas políticas, possuem sobre esse país que, indubitavelmente, está destinado a ser um dos mais importantes fatores do desenvolvimento futuro do mundo. Quando, por exemplo, a bordo, um negociante de Boston, de modo bastante depreciativo falou sobre pequenos países sulamericanos e eu tentei lembrar-lhe que só o Brasil compreende um território maior do que os Estados Unidos, julgou ele que eu estava gracejando e só se convenceu da


minha afirmativa diante dum mapa. (Obs.: desconsiderando o Alaska e o Havaí) Stefan Zweig - Brasil, O País do Futuro, 1941

COMENDO O MEU FUBÁ MINHA TERRA TEM PALMEIRAS onde canta o tico-tico. Enquanto isso o sabiá vive comendo o meu fubá. Antonio Carlos De Brito - Jogos Florais, 1974

MAS EXISTE AINDA O ÍNDIO TROUXE, pois, uma contribuição poderosa para a formação do Brasil de hoje. Ele dorme, as vezes, na floresta emaranhada do nosso subconsciente, amoitado entre os cipós dos nossos nervos, mas existe ainda. Humberto de Campos

ESPÍRITO PATERNAL QUERO ANTES QUE ME ADIANTE, dizer aqui uma coisa bem estranha e de grande admiração. A segunda vez que voltamos àqueles vales, quando a cidade de Antioquia foi povoada nas serras que estão encima deles, ouvi dizer, que os senhores caciques destes vales do norte buscavam nas


terras dos seus inimigos todas as mulheres que podiam, às quais, trazidas a suas casas, usavam-nas como às suas próprias, e se engravidavam deles, os filhos que nasciam eram criados com muitas regalias, até terem doze ou treze anos, e nesta idade já estando bem gordos, os comiam com grande satisfação, sem olhar que eram da sua substância e da sua própria carne, e desta maneira, tinham essas mulheres somente para terem filhos com elas, e depois comer, pecado maior a que todos eles se entregam. Pedro de Cieza de León - Crónica del Perú: El señorío de los Incas


LUGARES TOCANDO AS NUVENS COM SEUS PICOS duas montanhas estava tocando uma nuvem Por um instante A nuvem se sentiu às avessas Não foi possível encontrar Sua cabeça Malcolm de Chazal

SENSAÇÕES E CAMINHAVA, semelhante à noite. Homero - Ilíada

CRIATURAS ESPECIAIS POR QUE NOS SENTIMOS TÃO DIFERENTES DURANTE A NOITE? Por que é tão emocionante permanecer desperto enquanto todo mundo dorme? Tarde…, já é muito tarde! E no entanto, sentimo-nos cada vez mais e mais despertos, como se a cada respiração, fossemos despertando, pouco a


pouco, em um mundo novo, muito mais emocionante e excitante que o mundo da luz diurna. E de onde vem essa sensação estranha de pertencer a alguma conspiração? Katherine Mansfield - Na Baía, 1922

UMA NOITE EM IZTAPA ME LEMBRO DE UMA NOITE EM LZTAPA, às margens do pacífico, na Guatemala. A lua despontava por trás do bambual como um imenso disco vermelho. Era a hora em que as escritoras embebem suas penas no tinteiro e as macacas gritadoras, deslocando-se em bandos para o alto dos galhos, rugem como leões. Aldo Buzzi - Viagem à Terra das Moscas, 1987

QUARTOS INFINITOS QUANDO SÓ, ele se consolava com o sonho dos quartos infinitos. Sonhava que se levantava da cama, abria a porta e passava para outro quarto igual, com a mesma cama de cabeceira de ferro batido, a mesma poltrona de vime e o mesmo quadrinho da Virgem dos Remedios na parede do fundo. Desse quarto passava para outro exatamente igual, cuja porta abria para passar para outro exatamente igual, e em seguida para outro exatamente igual, até o infinito. Gostava de ir de quarto em quarto, como numa galeria de espelhos paralelos, até que Prudencio Aguilar lhe tocava o


ombro. Então voltava de quarto em quarto, acordando para trás, percorrendo o caminho inverso, e encontrava Prudencio Aguilar no quarto da realidade. Uma noite, porém, duas semanas depois de o terem levado para a cama, Prudencio Aguilar tocou-lhe o ombro num quarto intermediário, e ele ficou ali para sempre, pensando que era o quarto real. Gabriel García Márquez - Cem Anos de Solidão, 1967

NINGUÉM TIROU AS ROUPAS DO VARAL CINCO MINUTOS DE CHUVA. Ninguém tirou as roupas do varal. Duas colchas brancas, uma toalha de banho cor-derosa, um short e uma camiseta de criança. Uma calça e um par de meias. A haste do meio oscila para um lado, para o outro. O sol voltou a brilhar e as palmeiras projetam sombras aveludadas sobre a grama brilhante. O muro está sujo de terra na parte mais baixa. Uma pilha de tijolos e três estacas de madeira onde crescem os pepinos. As colchas brancas cintilam, no varal, e o verão nasce na voz das cigarras. Adriana Lisboa - Caligrafias, 2004

A UMA TRANSEUNTE A RUA ENSURDECEDORA À MINHA VOLTA BRAMIA. Alta, delicada, em luto profundo, dor majestosa, Uma mulher, de mão exuberante, passou Levantando, balançando o bordado e a barra da saia;


Ágil e nobre, com sua perna escultural. Eu, eu bebia, crispado como um insensato, Em seu olho, céu lívido onde se forma a tempestade, A doçura que fascina e o prazer que mata. Um clarão… depois, a noite! — Beldade fugitiva Cujo olhar me fez subitamente renascer, Não te verei de novo antes da eternidade? Em algum lugar, bem longe daqui! Tarde demais! Talvez jamais Pois ignoro para onde foges, tu não sabes para onde vou, Tu, a quem eu teria amado, tu que sabias disso! Charles Baudelaire - As Flores do Mal, 1857


MATERIAIS O ANEL O IMPERADOR CARLOS MAGNO, já em avançada idade, apaixonou-se por uma donzela alemã. Os barões da corte andavam muito preocupados vendo que o soberano, entregue a uma paixão amorosa que o fazia esquecer sua dignidade real, negligenciava os deveres do Império. Quando a jovem morreu subitamente, os dignitários respiraram aliviados, mas por pouco tempo, pois o amor de Carlos Magno não morreu com ela. O imperador mandou embalsamar o cadáver e transportá-lo para a sua câmara, recusando separar-se dele. O arcebispo Turpino, apavorado com essa paixão macabra, suspeitou que havia ali um sortilégio e quis examinar o cadáver. Oculto sob a língua da morta, encontrou um anel com uma pedra preciosa. A partir do momento em que o anel passou às mãos de Turpino, Carlos Magno apressou-se em mandar sepultar o cadáver e transferiu seu amor para a pessoa do arcebispo. Turpino, para fugir àquela embaraçosa situação, atirou o anel no lago Constança. Carlos Magno apaixonou-se então pelo lago e nunca mais quis se afastar de suas margens. Italo Calvino - Seis Propostas para o Próximo Milênio, 1990

MACHOS NO MAR


OS BARCOS são Femininos nos portos e machos no mar. Malcolm de Chazal

CARROS PENSANTES NO DIA EM QUE OS CARROS PENSAREM, os Rolls-Royce viverão mais angustiados que os taxis. Henri Michaux - Passages, 1950

INSTRUÇÕES PARA SUBIR UMA ESCADA AS ESCADAS SE SOBEM DE FRENTE, pois de costas ou de lado tornam-se particularmente incômodas. A atitude natural consiste em manter-se em pé, os braços dependurados sem esforço, a cabeça erguida, embora não tanto que os olhos deixem de ver os degraus imediatamente superiores ao que se está pisando, a respiração lenta e regular. Para subir uma escada começa-se por levantar aquela parte do corpo situada em baixo à direita, quase sempre envolvida em couro ou camurça e que salvo algumas exceções cabe exatamente no degrau. Colocando no primeiro degrau essa parte, que para simplificar chamaremos pé, recolhesse a parte correspondente do lado esquerdo (também chamada pé, mas que não se deve confundir com o pé já mencionado), e levando-a à altura do pé faz-se que ela continue até colocá-la no segundo degrau, com o que neste descansará o pé. (Os primeiros degraus são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária. A coincidência de nomes entre o pé


e o pé torna difícil a explicação. Deve-se ter um cuidado especial em não levantar ao mesmo tempo o pé e o pé.) Julio Cortázar - Histórias de Cronópios e de Famas, 1962

O ESPELHO NO COFRE DE VOLTA DE UMA LONGA PEREGRINAÇÃO, um homem carregava sua compra mais preciosa adquirida na cidade grande: um espelho, objeto até então desconhecido para ele. Julgando reconhecer ali o rosto do pai, encantado, ele levou o espelho para sua casa. Guardou-o num cofre no primeiro andar, sem dizer nada a sua mulher. E assim, de vez em quando, quando se sentia triste e solitário, abria o cofre para ficar contemplando "o rosto do pai". Sua mulher observou que ele tinha um aspecto diferente, um ar engraçado, toda vez que o via descer do quarto de cima. Começou a espreitá-lo e descobriu que o marido abria o cofre e ficava longo tempo olhando para dentro dele. Depois que o marido saiu, um dia ela abriu o cofre, e nele, espantada, viu o rosto de uma mulher. Inflamada de ciúme, investiu contra o marido e deu-se então uma grave briga de família. O marido sustentava até o fim que era o seu pai quem estava escondido no cofre. Por sorte, passava pela casa deles uma monja. Querendo esclarecer de vez a discussão, ela pediu que lhe mostrassem o cofre.


Depois de alguns minutos no primeiro andar, a monja comentou ainda lá de cima: — Ora, vocês estão brigando em vão: no cofre não há homem nem mulher, tão somente uma monja como eu! Conto Zem

MULTIPLICAÇÃO DOS HOMENS DO FUNDO REMOTO DO CORREDOR, o espelho nos espreitava. Descobrimos (na alta noite essa descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares lembrou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens. Jorge Luis Borges - Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, 1941

REFLEXO MORTAL QUANDO VOCÊ SAI DE CASA OBCECADO COM A IDEIA DE COMPRAR UM ESPELHO, se pode dizer que deu pela primeira vez um grande passo em sua vida. Porém se além da dita decisão descobre que não deseja um espelho comum, mas sim um especial que se adapte ao seu temperamento, seu caráter e a sua pessoa, se poderia dizer que você sabe o quer na vida. E se depois de percorrer toda a cidade, se descobre num velho bairro judeu discutindo o preço de um insignificante e carcomido espelho, você pensará que a vida e o destino foram pródigos ao brindar-lhe com essa oportunidade. E se ao chegar em casa com o espelho vai


direto ao banheiro, o pendura, o endireita e logo passa um longo instante se procurando nele, tratando de encontrar a sua imagem que não aparece de nenhuma maneira, então você terá que aceitar a realidade da sua morte. Harold Kremer - Revista Ekuóreo, Nº 100, Setembro-Dezembro, 1986


CIÊNCIAS EVOLUÇÃO O MUNDO NÃO DEVE SER TÃO VELHO ASSIM, porque os homens ainda não aprenderam a voar. Murilo Mendes - Retratos-relâmpagos

DOIS SONHOS EU SOU A BACTÉRIA GERALDA. Tenho dois sonhos na vida: ver o mar e saber o nome do antibiótico que matou toda a minha família. Assassino! Silvio de Andrade

O RIGOR EM CIÊNCIA NAQUELE IMPÉRIO, a arte da cartografia alcançou tal perfeição que o mapa duma província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do império uma província inteira. Com o tempo esses mapas desmedidos não bastaram e os colégios de cartógrafos levantaram um mapa do império, que tinha o tamanho do império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos dedicadas ao estudo da cartografia, as gerações seguintes decidiram que esse dilatado mapa era inútil e não


sem impiedades entregaram-no às inclemências do sol e dos invernos. Nos desertos do oeste perduram despedaçadas ruínas do mapa habitadas por animais e mendigos; em todo o país não há outra relíquia das disciplinas geográficas. Jorge Luis Borges - História Universal da Infâmia, 1935

COMO O ICTIOSSAURO — EU MORRERIA NO ATO sabendo que a Terra estaria limpa de toda gente. É o pensamento mais bonito e libertador. Que nunca haveria uma outra humanidade hedionda criada para uma profanação universal. — Não — disse Ursula —, não haveria nada. — O que? Nada? Somente porque a humanidade fosse varrida? Te enganas a ti mesma. Existiria tudo. — Porém, como, se não haveria gente? — Pensas que a criação depende do homem! Simplesmente não é assim. Estão também as árvores, a grama, os pássaros. Eu prefiro pensar na cotovia acordando de manhã num mundo sem humanos. O homem é um erro, deve desaparecer… O homem é um dos erros da criação…, como o ictiossauro. D.H. Lawrence - Mulheres Apaixonadas, 1920

MICROSCÓPIO O SATURNIANO REPLICOU A TODAS ESSAS RAZÕES. E a questão jamais terminaria se, por felicidade, Micrômegas, no


calor da discussão, não tivesse rompido o seu colar de diamantes. Estes caíram ao chão. Eram lindas pedras de tamanho variado, tendo as mais volumosas quatrocentas libras de peso, e as menores cinquenta. O anão apanhou algumas; ao aproximá-las dos olhos, viu que, da maneira como estavam lapidadas, constituíam excelentes microscópios. Tomou, pois, um pequeno microscópio de cento e sessenta pés de diâmetro, que aplicou à pupila; e Micrômegas escolheu um de dois mil e quinhentos pés. Eram excelentes; mas no princípio nada perceberam com o seu auxílio: era preciso adaptarem-se. Afinal o habitante de Saturno viu qualquer coisa quase imperceptível que se movia à superfície do mar Báltico: era uma baleia. Pegou-a habilmente com o dedo mínimo e, colocando-a sobre a unha do polegar, mostrou-a a Micrômegas, que se pôs a rir da excessiva pequenez dos habitantes do nosso globo. Voltaire - Micrômegas, 1752

OS ÚLTIMOS A PULAR DE ALEGRIA COMO O UNIVERSO INTEIRO ANDARÁ DE AUTOMÓVEL ou velocípede, a ocasião de pular de alegria será de muito poucos. Os raros peões indigentes que tiverem escapado aos extermínios anteriores serão cuidadosamente esmagados e tudo seguirá, em fúria, para o duplo abismo que a odiosa mecanização invoca: o da imbecilidade dos homens e o da esterilidade das mulheres. As pessoas vão "divertir-se" em podridão e demência.


Léon Bloy - Histórias Desagradáveis, 1894


RELIGIÃO ENTEÓGENO ALUCINÓGENO SIGNIFICA UMA MENTIRA. Alucinação não é nada. Eu não gosto da palavra. Eu não acho que deveria ser usado. Enteógeno é uma palavra muito melhor. Um comitê que eu fiz parte, chefiado pelo professor Carl Ruck, um acadêmico clássico da Universidade de Boston, inventou esta palavra e todos nós adotamos de forma unânime no lugar de alucinógeno para aquelas plantas reverenciadas pelo homem antigo pelo seu potencial, pela sua habilidade de impor respeito. Amanita muscaria é o principal fungo enteógeno, mas o Psilocybe genus também tem propriedades enteógenas. Enteógeno significa simplesmente Deus gerado dentro de você! R. Gordon Wasson

MONÓLOGO DO BEM E DO MAL UM DIA O MAL ENCONTROU-SE FACE A FACE COM O BEM e esteve a ponto de o engolir para acabar de uma vez por todas com aquela disputa ridícula; mas ao vê-lo tão pequenino o Mal pensou: "Isto só pode ser uma emboscada; pois se eu agora engolir o Bem, que se encontra tão fraco, as pessoas vão pensar que fiz mal, e eu vou encolher-me tanto de vergonha que o Bem não


desperdiçará a oportunidade e engolir-me-á a mim, com a diferença de que nessa altura toda a gente pensará que ele fez bem, pois é difícil arrancá-la aos seus moldes mentais consistentes de que o que o Mal faz é mau e o que o Bem faz é bom." E assim o Bem salvou-se mais uma vez. Augusto Monterroso - A Ovelha Negra e Outras Fábulas, 1969

UM HOMEM SENSATO — COMO ERA NA ÉPOCA DAS GUERRAS DOS CATÓLICOS contra os huguenotes, e ele via os católicos exterminarem os huguenotes e os huguenotes exterminarem os católicos, tudo em nome da religião, ele virou um crente misto, o que lhe permitia ser ora católico, ora huguenote. Pois bem, ele sempre dava uns passeios, com sua escopeta no ombro, por trás das cercas que acompanham as trilhas. Então, quando cruzava com um católico sozinho, a religião protestante logo prevalecia em seu espírito. Mirava sua escopeta na direção do viajante, depois, quando estava a dez passos dele, iniciava um diálogo que terminava quase sempre com o viajante abandonando a bolsa para salvar a vida. Desnecessário dizer que, quando via aproximar-se um huguenote, sentia-se arrebatado por um zelo católico tão ardoroso que não compreendia como, quinze minutos antes, pudera ter dúvidas sobre a superioridade de nossa fé sagrada. Pois eu, senhor, sou católico, já que meu pai, fiel a seus princípios, fez um huguenote de meu irmão mais velho. — E como terminou esse homem sensato? — perguntou d’Artagnan.


— Oh, o fim mais trágico, senhor. Um dia, viu-se encurralado, numa trilha erma, entre um huguenote e um católico com quem já tivera problemas. Ambos o reconheceram, de maneira que se uniram contra ele e o enforcaram numa árvore. Depois vieram gabar-se de sua bela façanha na taberna do primeiro vilarejo, onde estávamos a beber, meu irmão e eu. — E vocês, o que fizeram? — indagou d’Artagnan. — Deixamos que falassem — continuou Mousqueton. — Depois, saindo dessa taberna, ambos tomaram caminhos opostos, meu irmão foi emboscar-se no caminho do católico, e eu, no do protestante. Duas horas depois, tudo estava terminado, fizemos o que tínhamos que fazer, sempre admirando a clarividência de nosso pobre pai, que tomara a precaução de nos criar cada um numa religião diferente. Alexandre Dumas - Os Três Mosqueteiros, 1844

O MANÁ DO COMETA O PLANETA JÚPITER EXPELIU UM GRANDE COMETA que colidiu tangencialmente com a Terra por volta do ano 1500 a.C. As diversas pragas e tribulações faraônicas do Êxodo derivam todas, direta ou indiretamente, deste encontro com o cometa. O material que fez com que o rio Nilo se tornasse sangue pingou do cometa. Os insetos descritos no Êxodo foram produzidos pelo cometa - moscas e talvez escaravelhos escorregaram do cometa, enquanto sapos terrestres foram induzidos pelo calor à reprodução.


Terremotos produzidos pelo cometa destroem as habitações egípcias, mas não as hebraicas. Tudo isto cai evidentemente do coma do cometa, porque, no momento em que Moisés levanta a mão e ergue o seu bastão, o mar Vermelho abre-se ao meio, devido tanto ao campo gravitacional das marés do cometa, como a uma interação magnética ou elétrica imprecisa entre o cometa e o mar Vermelho. Então, quando os Hebreus conseguiram atravessar, o cometa passou obviamente a uma distância que permitiu que as águas afastadas se juntassem de novo e afogassem o hóspede do faraó. Os Filhos de Israel, durante os quarenta anos que se seguiram, em que deambularam pela Floresta do Pecado, são alimentados com maná que vem do céu, maná esse que é tido como sendo hidratos de carbono vindos da cauda do cometa. Immanuel Velikovsky - Mundos em Colisão, 1950

APENAS A MÃO DIREITA ELE, POBRE HOMEM, morrera afogado numa enchente, quando ainda jovem. E ela tomara anos para o livrar, por meio de orações, do purgatório budista. Finalmente, cansara-se da tarefa, tanto era o trabalho que lhe davam o filho e a terra. Quando o sacerdote lhe disse, querendo animá-la: "outras dez peças de prata e o seu marido estará inteiramente livre" — ela perguntou o que ainda restava dele no purgatório. — Apenas a mão direita — respondeu o sacerdote, encorajando-a.


Aí então, sua paciência se esgotou. Dez moedas de prata! Com tal quantia eles passariam todo o inverno. Além do mais, ela se vira obrigada a alugar mão-de-obra para a sua parte no serviço de reparação do dique, a fim de que não houvesse mais enchentes. Se é apenas uma das mãos, ele pode safar-se por si mesmo — disse com firmeza. Pearl S. Buck - O Velho Demônio, 1941

TUDO O RESTO É LOUCURA INSTANTANEAMENTE, os meus circuitos ativam-se. Examino o meu universo interior para o significado do conceito… "configuração do pensamento anterior ao universo" … etc., etc., etc…! Mesmo para mim, demora algum tempo a inspecionar a Bíblia Cristã, o Alcorão de Maomé, as doutrinas de Buda, Confúcio e Lao-Tse, os Sofistas, a filosofia Hindu, um milhão de religiões primitivas, e a inspecionar um milhar de vezes, milhares de cultos e, claro, teorias científicas. Resultado final: é fascinante. Têm todos a mesma indeterminação. Ninguém apresenta uma explicação compreensível para a origem fundamental das coisas. A ciência começa com o Big Bang. E tudo o resto é loucura. A. E. van Vogt - Quando os Computadores Conquistaram o Mundo, 1983


SONHOS O PESADELO DO METAFÍSICO SONHEI QUE ESTAVA NO INFERNO, e que o inferno é um lugar repleto desses acontecimentos que são improváveis, porém não impossíveis. Seus efeitos é que são curiosos. Alguns dos condenados, quando chegam embaixo pela primeira vez, imaginam poder enganar o tédio da eternidade por meio do jogo de cartas, mas logo descobrem a impossibilidade, porque, sempre que as cartas são embaralhadas, saem em prefeita ordem, começando com o ás de espadas e terminando com o rei de copas. Bertrand Russell - Pesadelos de Pessoas Eminentes, 1954

A FLOR DO INFERNO SAMUEL TAYLOR COLERIDGE SONHOU que andava pelo paraíso e que um anjo lhe deu uma flor como prova de que havia estado ali. Quando Coleridge despertou e se encontrou com a flor na mão, compreendeu que a flor era do inferno e que lhe foi dada apenas para o enlouquecer. Enrique Anderson Imbert - O Gato de Cheshire, 1965


O CHEGADA DO ASTRONAUTA O SENHOR K APARECEU NUMA PORTA TRIANGULAR. — Você me chamou? — perguntou, irritado. — Não — respondeu a Senhora K. — Pensei ter ouvido você gritar. — Eu? Estava cochilando e tive um sonho. — A esta hora? Não é seu costume. A Senhora K continuava sentada, imóvel, como se tivesse sido esmurrada pelo sonho. — Um sonho estranho, muito estranho — murmurou. — Ah. O Senhor K queria, evidentemente, voltar para o seu livro. — Sonhei com um homem — disse a mulher — Com um homem? — Um homem alto, de um metro e oitenta. — Que bobagem. Um gigante, um gigante disforme. — No entanto… — respondeu a Senhora K, procurando as palavras. — Ele parecia bem. Apesar de sua altura. E… acho que você vai pensar que sou louca, mas… tinha os olhos azuis! — Olhos azuis? Deuses! — exclamou o Senhor K. — Qual será seu próximo sonho? Suponho que os cabelos dele eram negros. — Como você adivinhou? — perguntou a Senhora K, excitada. O Senhor K respondeu, friamente: — Escolhi a cor mais improvável.


— Pois eram negros! — exclamou ela. — E a pele branquíssima! Era muito estranho. Usava uniforme desconhecido. Veio do céu e falou comigo amavelmente. — Veio do céu? Que bobagem! — Veio numa coisa de metal, que reluzia à luz do sol — lembrou a Senhora K, e fechou os olhos evocando a cena. — Eu olhava para o céu e alguma coisa brilhou como uma moeda que se atira ao ar, imediatamente cresceu e desceu lentamente. Era um aparelho prateado, longo e estranho. Num lado desse objeto de prata, abriu-se uma porta e apareceu o homem alto. — Se você trabalhasse um pouco mais, não teria esses sonhos malucos. Ray Bradbury - Crônicas Marcianas, 1950

QUEM SONHA MELHOR UM MUÇULMANO, UM CRISTÃO E UM JUDEU VÃO DE VIAGEM. Esgotaram suas provisões e ainda lhes resta dois dias de caminhada no deserto. Nessa noite encontraram um pão. Que fazer? Bastaria para um, porém é pouco para três. Decidem que o coma aquele que tenha o mais belo sonho. Ao amanhecer, disse o cristão: — Sonhei que um demônio me levava ao inferno, que pude contemplar em tudo o seu horror. Disse o muçulmano: — Sonhei que o anjo Gabriel me levava ao paraíso, e pude apreciar todo o seu esplendor. Disse o judeu:


— Sonhei que o demônio levava o cristão ao inferno e que o anjo Gabriel levava o muçulmano ao paraíso, e eu comi o pão. Jorge Luís Borges - O Livro dos Sonhos, 1976

O SONHADOR PROFISSIONAL SONHAR PROFISSIONALMENTE, de modo que os próprios sonhos possam ser registrados e repetidos para entretenimento de outros é algo muito difícil: requer a capacidade de regular os impulsos criadores semiconscientes e de estratificar a imaginação, combinação extraordinariamente difícil de alcançar. Alan Dean Foster - Alien, O Oitavo Passageiro, 1979

NÃO DAR ATENÇÃO AOS SONHOS AI, COMO PODES TER MEDO DE SONHOS? Os sonhos, sabe Deus, não passam de ilusões. Em geral, são provocados pelo excesso de comida e, muitas vezes, pela abundância de gases ou de certos humores do corpo. Por Deus, estou certa de que o sonho desta noite proveio de uma superfluidade de bílis vermelha, que faz as pessoas sonharem com flechas, fogo de rubras labaredas, feras vermelhas que querem morder, contendas e cães, tanto filhotes quanto adultos; enquanto o humor da melancolia frequentemente leva os que dormem a gritar de medo de ursos negros, touros negros, ou negros diabos que vêm para buscá-los. E eu poderia falar ainda de outros humores que também causam desconfortos, mas


prefiro apenas mencioná-los de passagem. Não foi Catão, um grande sábio, quem recomendou: "Não vos importeis com os sonhos"? Geoffrey Chaucer - Os contos da Cantuária, 1400


TEMPO A BOLA DE ESTERCO O BESOURO ROLA na bola de esterco o tempo futuro Luiz Bacellar

A PASSAGEM DO TEMPO OS PRIMEIROS DIAS NUM AMBIENTE NOVO têm um curso juvenil, quer dizer, vigoroso e amplo. Isto se aplica a uns seis ou oito dias. Depois, na medida em que a pessoa se "aclimata", começa a sentir uma progressiva abreviação: quem se apega à vida, ou melhor, quem gostaria de fazê-lo, talvez note com horror como os dias voltam a tornar-se leves e começam a deslizar voando; e a última semana - de quatro, por exemplo - é de uma rapidez e fugacidade inquietante. Thomas Mann - A Montanha Mágica, 1924

CUIDADO NO SENTIDO HORÁRIO


As horas que crescem no lado direito dos relógios devem ser esticadas com ajuda da preguiça, pois são elas as que mais seguramente levam para a morte. Alejo Carpentier - Viaje a la Semilla, 1944

O QUE PODE ACONTECER EM DUAS HORAS EM DUAS HORAS os músculos do coração se contraem e relaxam, se contraem e relaxam de novo, 8000 vezes apenas. A terra percorre menos de 200.000 quilômetros em sua órbita. E as lagartas, têm tempo de invadir somente uns 40 hectares de território australiano. Duas horas são quase nada. O tempo para escutar a Nona Sinfonia e dois dos quartetos póstumos, para voar de Londres a Paris, para fazer passar um jantar do estômago para o intestino delgado, para ler Macbeth, para morrer de picada de cobra ou para ganhar 1 xelim e 8 pence como diarista. Nada mais. Mas a Illidge pareceram infinitas aquelas duas horas durante as quais ficou ali, sentado, esperando que escurecesse — o cadáver estendido atrás do biombo. Aldous Huxley - Contraponto, 1928

SEM FÓRMULA NÃO PISO A EMBREAGEM, piso a paisagem e a ponho em primeira, segunda, terceira e quarta-feira de segunda à Sexta.


(às vezes dou-lhe ré, mas ela sempre me escapa). aos sábados e domingos deixo-me ficar em ponto morto diante dessas fotos já sem cor: paisagens vistas de um retrovisor? Sérgio de Castro Pinto

QUANTO? — QUANTO ME AMAS? Um milhão de alqueires? — Oh, muito mais que isso, oh, muito mais. — E amanhã? Talvez meio alqueire? — Amanhã talvez nem isso. É esta, então, a aritmética do teu coração? — Não; é o modo como o vento mede o tempo. Carl Sandburg


SOBRE O AUTOR HERMAN AUGUSTO SCHMITZ é Mestre em Letras – Estudos Literários, pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Natural de Curitiba, reside em Londrina-PR desde os anos 1990. Em 2012 foi contemplado com a Bolsa FUNARTE de Circulação Literária, com o projeto “Poesia In Concert”. Publicou o livro “Os Maracujás” de poesia e as coletâneas de Ficção científica “Terrassol” e “O Clone de Si Mesmo e outros contos breves”. Com interesses múltiplos em literatura, música, ciências, cibernética e filosofia, acompanha de perto os desdobramentos dessa nova identidade cultural contemporânea, e na esteira dessa tendência, faz o uso da “apropriação” literária, como uma subversão na criação de um novo sentido, mais atual e mais vivo, saindo dos livros fechados para uma apreciação renovada, de página aberta, folheada ao acaso dos parágrafos mais carregados de sentido, de indicadores dessa noção de vida de que a literatura é tão especial, em pôr com palavras precisas a razão de um sentimento. Só quero terminar dizendo que a construção desse livro me trouxe um prazer de natureza mental, dificilmente igualado nas práticas sociais participativas. Não sei se isso foi um reflexo do isolamento social desse tempo de pandemia, onde eu tive o tempo necessário para ler com calma e refletir sobre o valor desse diálogo com pessoas desconhecidas e já


mortas por centenas de anos, ou foi causa dessa obscuridade existencial a que estamos vítimas diariamente, ou somente por acreditar que as palavras escritas na literatura possuem um sentido mais complexo e pode ser desconectado da sua moldura base e até da sua época. Pode ser amplo, polifônico e dialógico.


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