Catálogo O Mundo Mágico de Escher

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Simetria E110; Pรกssaro/Peixe Xilogravura


S

oneto

O sol é grande, caem co’a calma as aves, o tempo em tal sazão, que sói ser fria; esta água que d’alto cai acordar-m’-ia do sono não, mas de cuidados graves. Ó cousas, todas vás, todas mudaves, qual é tal coração qu’em vós confia? Passam os tempos vai dia trás dia, incertos muito mais que ao vento as naves. Eu vira já aqui sombras, vira flores, vi tantas águas, vi tanta verdura, as aves todas cantavam d’amores. Tudo é seco e mudo; e, de mestura, também mudando-m’eu fiz doutras cores e tudo o mais renova, isto é sem cura! Sá de Miranda


Libertação 1955 Litografia 43,4 x 19,9 cm


...

D

e Passarem Aves

A memória de Sá de Miranda Das aves passam as sombras, um momento, no chão, perto d, mim. No tardo Verso que as trouxe e as demora, por que beirais não sei onde se abrigam piando como ao passar chilreiam. Um momento só. Rápidas voam! E a vida em que regressam de outras terras não é tão rápida: fiquei olhando as sombras não, mas a memória delas, das sombras não, mas de passarem aves. Jorge de Sena


Preenchimento do Plano com Pรกssaros 1949 Xilogravura 5,4 x 13 cm


D

e Passarem Aves (II)

De como e de quando as aves passaram t達o-leves aflando, as sombras pousando no ar que cortaram, falei, mas n達o sei que melancolia sentida no dia por tarde eu lembrei na tarde que havia. As aves passaram e delas alei. Do ar que cortaram as sombras ficaram, mas onde, n達o sei. Jorge de Sena


É quando as aves brancas voam para a noite que as aves negras voam para o dia, sobre as árvores, no vento, vão em bandos, batem asas pausadas. sobre as árvores as aves brancas tomam a noite clara, as negras, apostas companheiras, escurecem o dia, voam baixo, no ar para onde fogem ocupando o intervalo das outras, e as brancas só cortam o espaço, exactas guias, entre o voo das pretas. bandos, bandos

O Princípio de M. C. Escher (II) de oposto movimento, na luz de transição, lá, onde se cruzam, voam aves cinzentas para os dois lados, no lugar indeciso em que das matérias do ar e da chuva se elevam as árvores dessa parda fronteira, e sobre todas as árvores da paisagem, da matéria da noite, deslocada se formam as aves negras. as brancas giram altas e agudas, feitas da substância do dia que transpõem. imitativo e permutante é o voo das aves e aqui, nas caudas do vento, a terra estreita-se: de passarem baixas as aves negras, todas mudaves, negras, á cousas todas vás, á brancas aves de suaves claves, ides tão acima dos graves cuidados, das fundas soledades, vai tão fluido o vosso sobrevoo, aves cinzentas sobre o vale pairando equidistando do sol e da lua, tudo é tão transitório e tão roubado ao tempo. á aves condutoras, sonora companhia, sois tema e contratema, resposta e episódio, espirais dissonantes de rigor e liberdade, no bater das asas vás para cada lado da fuga sobre os rios, sobre os silvos, sobre os vidros da paisagem, sobre os cantos de ar e chuva, sol e lua, nas linhas enroladas de estridentes trinos, sois as nuvens, no sistema das aves, no manejo das aves e das árvores cromáticas e tristes, a dupla revoada, o ricercare: é quando as aves brancas voam para a noite que, no avesso, voam para o dia as aves negras e lá, onde se cruzam, cinzentas.

Vasco Graça Moura


Na poesia portuguesa contemporânea, sobretudo nas décadas de 70 e 80 do século XX, torna-se quase um lugar comum a referência a Sá de Miranda/Jorge de Sena, através da imagem do passar das aves, presente em dois poemas homônimos de Sena em homenagem a Miranda, “De passarem aves I e II”. Bom exemplo de glosa desse tópico, imagens de Sena/Miranda em torno da passagem das aves, é o poema de Vasco Graça Moura, “O Princípio de M.C. Escher (II)”. Aí, a conhecida gravura “Dia e noite”, de Escher, é lida com imagens de “O sol é grande...”, misturadas às imagens senianas em homenagem ao poeta quinhentista, através de um princípio “imitativo e permutante”, próximo do processo criativo característico da ekphrasis. Este texto pretende confrontar a gravura e os poemas portugueses envolvidos na leitura de Vasco Graça Moura, a fim de acompanhar, pela via da comparação, o processo de tradução da imagem de Escher em poema.



Dia e Noite 1938 Xilogravura 39,2 x 67,8 cm


Na série de poemas “O Princípio de M. C. Escher”, a ekphrasis se organiza como descrição que busca captar justamente a mecânica criativa das gravuras de Escher. No primeiro, que leva o subtítulo “prelúdio e fuga sobre um tema popular”, a contigüidade entre o positivo e o negativo de algumas figuras nas estampas de Escher, como a dos peixes ou das pombas, é perseguida através da repetição característica da linguagem musical infantil, sendo a escrita do poema uma espécie de decalque da gravura: “lá sai uma, saem as duas / as três pombas do papel / saem do bico da pena / que nesta folha as escreve” (Ibidem, 41). No “Princípio de M. C. Escher III”, as duas mulheres em oposição especular acabam deixando à mostra o procedimento criativo do gravurista, resumido nos versos: “são as duas a orla do voo / sobre um eixo traçado por Escher”. As imagens são descritas tentando-se captar o jogo entre o modelo e o seu

reflexo no espelho, de modo a não se distinguirem mais uma da outra, quem o reflexo quem o modelo. Pode-se dizer que no “Princípio de M. C. Escher II”, a ekphrasis como “variação regulada sobre um tema” é mais clara e evidente. Nesse processo descritivo, cuja dinâmica consiste no transporte de pequenos trechos de um discurso a outro, também interessa meditar sobre o princípio criativo que caracteriza as gravuras de Escher, na ocupação dos intervalos das figuras. Em relação às aves brancas, as negras são “opostas companheiras, escurecem o dia, voam baixo,/ no ar para onde fogem ocupando o intervalo das outras”. Reciprocamente, as aves “brancas só cortam o espaço, exactas guias, / entre o voo das pretas”. Vejamos então como a transferência dos fragmentos antológicos “aves”, “mudaves” e “de passarem aves” migram da gravura de Escher ao poema de Vasco Graça Moura.

Para se poder acompanhar o diálogo aqui proposto entre arte pictórica e poesia é fundamental o confronto visual da gravura “Dia e Noite” com o poema “O Princípio de M. C. Escher II”. O poema tem, como muitas gravuras de Escher, uma forma circular: começa e termina por descrever o vôo, oposto e recíproco, de dois bandos de aves, o das brancas e o das negras. Os primeiros versos são: “é quando as aves brancas voam para a noite que / as aves negras voam para o dia”, e os últimos: “[...] é quando/ as aves brancas voam para a noite que, no avesso, voam para o dia as aves negras e lá, onde se cruzam, as cinzentas”. As aves cinzentas ocupam o “lugar indeciso”, onde, na gravura “Dia e Noite”, se evidencia o princípio criativo de Escher, que se compraz em abolir as regras da perspectiva, desnudando a ficcionalidade da representação pictórica.


É nesta “parda fronteira” de aves cinzentas que se esboçam os bandos definidos de aves brancas e negras. É neste momento transitório entre o dia e a noite, o céu e a terra, que o poema de Vasco Graça Moura evoca as imagens senianas e mirandinas para o vôo das aves, lançando mão da transferência tópica permitida pela prática da ekphrasis: “imitativo e permutante é o// voo das aves e aqui, nas caudas do vento, a terra estreita-se:/ de passarem baixas as aves negras, todas/ mudaves, negras, ó cousas todas vãs. ó brancas/ aves de suaves claves, ides tão acima dos graves/ cuidados, das fundas soledades, vai tão fluido/ o vosso sobrevoo, aves cinzentas sobre o vale pairando/ equidistando do sol e da lua, tudo é tão transitório/ e tão roubado ao tempo”. Bem entendido, é neste estreitamento da terra, na própria escrita do poema, “aqui, nas caudas do vento”, que se reencontra a imitação e a permutação

permitidas tanto pelo princípio criativo de Escher como pela ekphrasis: a abolição das fronteiras entre a gravura e o poema, as aves e o vale, através da citação “quebrada” de trechos de versos ou imagens poéticas senianas e mirandinas. O título das homenagens de Sena, “De passarem aves”, é transposto com intercalação das baixas aves negras de Escher. As 3 rimas do primeiros 5 versos de “O sol é grande...” (aves, cuidados graves, mudaves) são todas convocadas nesta repetição, sendo citada parte do 5º verso: “ó cousas todas vãs”. Na homenagem de Sena a Miranda as aves não morriam mais com a calma, mas, ao passarem, deixavam suas sombras nos beirais melancólicos dos poetas: outras aves instigadas à atividade criativa, através da re-significação positiva da memória poética.(10) Para Graça Moura, as aves “todas mudaves” de Escher seriam “suaves claves” capazes de sobrevoar os cuidados graves de Miranda entendidos, pela anteposição do adjetivo,

menos como problemas sobre os quais refletia o sujeito do soneto mirandino, do que como música ou partitura mais suave. Agora, as aves de Escher são sonora companhia, mais ou menos como as de Sena, “chilreiam”, “em fuga”, “nas linhas enroladas de estridentes trinos”. Em última instância, há uma glosa do sentido de “O sol é grande...”, do caracter transitório ou vão das representações espaciais e temporais, fundindo-se, como na gravura, aves e paisagem: “ó aves condutoras, sonora companhia, sois/ tema e contratema, resposta e episódio, espirais dissonantes de rigor e liberdade, [...] sois as nuvens”. Neste sentido, ao lançar mão da ekphrasis, o poema de Graça Moura relê a tópica Sena/Miranda, oferecendo uma resposta particular e criativa, que deixa entrever não só um conhecimento autônomo do poeta quinhentista, mas a produtividade da criação poética nesta área de “fronteira parda” entre a poesia e a gravura.





Verticalmente Metamorfose II 1940 Xilogravura em preto, verde e marrom 19 x 389,5 cm


Cada Vez Menor 1958 Xilogravura em preto e marrom 37,8 x 37,8 cm


Desenvolvimento II 1939 Xilogravura em preto, verde e marrom 48 x 48 cm


Limite Circular IV 1960 Xilogravura 41,7 x 41,7 cm


Predestinação 1951 Litografia 29,2 x 42 cm Cisnes 1956 Xilogravura 20 x 31,7 cm



Planetoide TetraĂŠdrico 1954 Xilogravura 43 x 43 cm


Desenhando 1948 Litografia 28,2 x 33,2 cm

Exposição

Catálogo

Patrocínio Banco do Brasil

Editor Pedro Caricchio

Realização Centro Cultural Banco do Brasil

Design Gráfico Pedro Caricchio

Curadoria Nair de Paula Soares

Tratamento de Imagens Pedro Caricchio

Coordenação Geral Nair de Paula Soares Pedro Caricchio

Textos Marcia Arruda Franco

Comunicação Visual Pedro Caricchio Direção de Arte Pedro Caricchio

Todas as obras de M. C. Escher

© M. C. Escher Foundation-Baarn-Holanda

Agradecimentos Paula Cruz

Realização




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