EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
LICENCIATURA EM
História
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA I André Luiz Joanilho Cláudio Denipoti
PONTA GROSSA - PARANÁ 2011
CRÉDITOS João Carlos Gomes Reitor Carlos Luciano Sant’ana Vargas Vice-Reitor Pró-Reitoria de Assuntos Administrativos Ariangelo Hauer Dias - Pró-Reitor Pró-Reitoria de Gradução Graciete Tozetto Góes - Pró-Reitor Divisão de Educação a Distância e de Programas Especiais Maria Etelvina Madalozzo Ramos - Chefe Núcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a Distância Leide Mara Schmidt - Coordenadora Geral Cleide Aparecida Faria Rodrigues – Coordenadora Pedagógica Sistema Universidade Aberta do Brasil Hermínia Regina Bugeste Marinho – Coordenadora Geral Cleide Aparecida Faria Rodrigues – Coordenadora Adjunta Myriam Janet Sacchelli – Coordenadora de Curso Roberto Edgar Lamb – Coordenador de Tutoria Colaboradores Financeiros Luiz Antonio Martins Wosiack
Colaboradores em Informática Carlos Alberto Volpi Carmen Silvia Simão Carneiro Adilson de Oliveira Pimenta Júnior Projeto Gráfico Anselmo Rodrigues de Andrade Júnior Colaboradores em EAD Dênia Falcão de Bittencourt Jucimara Roesler Colaboradores de Publicação Maria Beatriz Ferreira – Revisão Sozângela Schemim da Matta – Revisão Edson Gil Santos Júnior – Diagramação Colaboradores Operacionais Carlos Alex Cavalcante Edson Luis Marchinski Thiago Barboza Taques
Colaboradores de Planejamento Silviane Buss Tupich
Todos os direitos reservados ao Ministério da Educação Sistema Universidade Aberta do Brasil
Ficha catalográfica elaborada pelo Setor Tratamento da Informação BICEN/UEPG.
J62h
Joanilho, André Luiz História contemporânea I / André Luiz Joanilho e Cláudio Denipoti. Ponta Grossa : UEPG/NUTEAD, 2011. 99p. il Licenciatura em História – Educação a distância. 1. Revolução Francesa. 2. Revolução Industrial. 3. Invenção das Nações. 4. Movimento e teorias sociais. I. Denipoti, Cláudio. II. T.
CDD : 909.8
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA Núcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a Distância - NUTEAD Av. Gal. Carlos Cavalcanti, 4748 - CEP 84030-900 - Ponta Grossa - PR Tel.: (42) 3220 3163 www.nutead.org 2011
APRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL A Universidade Estadual de Ponta Grossa é uma instituição de ensino superior estadual, democrática, pública e gratuita, que tem por missão responder aos desafios contemporâneos, articulando o global com o local, a qualidade científica e tecnológica com a qualidade social e cumprindo, assim, o seu compromisso com a produção e difusão do conhecimento, com a educação dos cidadãos e com o progresso da coletividade. No contexto do ensino superior brasileiro, a UEPG se destaca tanto nas atividades de ensino, como na pesquisa e na extensão Seus cursos de graduação presenciais primam pela qualidade, como comprovam os resultados do ENADE, exame nacional que avalia o desempenho dos acadêmicos e a situa entre as melhores instituições do país. A trajetória de sucesso, iniciada há mais de 40 anos, permitiu que a UEPG se aventurasse também na educação a distância, modalidade implantada na instituição no ano de 2000 e que, crescendo rapidamente, vem conquistando uma posição de destaque no cenário nacional. Atualmente, a UEPG é parceira do MEC/CAPES/FNED na execução do programas Pró-Licenciatura e do Sistema Universidade Aberta do Brasil e atua em 38 polos de apoio presencial, ofertando, diversos cursos de graduação, extensão e pós-graduação a distância nos estados do Paraná, Santa Cantarina e São Paulo. Desse modo, a UEPG se coloca numa posição de vanguarda, assumindo uma proposta educacional democratizante e qualitativamente diferenciada e se afirmando definitivamente no domínio e disseminação das tecnologias da informação e da comunicação. Os nossos cursos e programas a distância apresentam a mesma carga horária e o mesmo currículo dos cursos presenciais, mas se utilizam de metodologias, mídias e materiais próprios da EaD que, além de serem mais flexíveis e facilitarem o aprendizado, permitem constante interação entre alunos, tutores, professores e coordenação. Esperamos que você aproveite todos os recursos que oferecemos para promover a sua aprendizagem e que tenha muito sucesso no curso que está realizando. A Coordenação
SUMÁRIO ■■ PALAVRAS DOS PROFESSORES
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■■ OBJETIVOS E EMENTA
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O MUNDO EM CONVULSÃO A REVOLUÇÃO FRANCESA
■■ SEÇÃO 1 - O FIM DO ANTIGO REGIME ■■ SEÇÃO 2 - PRÁTICAS E PENSAMENTOS REVOLUCIONÁRIOS ■■ SEÇÃO 3 - O NASCIMENTO DA POLÍTICA MODERNA
O MUNDO EM MARCHA A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL
19 25
36 42 48
A INVENÇÃO DAS NAÇÕES
■■ SEÇÃO 1 - NAÇÃO E NACIONALISMO – CONCEITOS E IDEIAS CENTRAIS ■■ SEÇÃO 2 - OS HISTORIADORES E A CONSTRUÇÃO DAS HISTÓRIAS NACIONAIS
■■ SEÇÃO 1 - GENEALOGIA DA MILITÂNCIA ■■ SEÇÃO 2 - TEMPO E DISCIPLINA ■■ SEÇÃO 3 - TEORIAS E MOVIMENTOS SOCIAIS
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■■ SEÇÃO 1 - TRABALHO E SOCIEDADE ■■ SEÇÃO 2 - TRABALHO NA IDADE MÉDIA ■■ SEÇÃO 3 - O NASCIMENTO DAS FÁBRICAS
MOVIMENTOS E TEORIAS SOCIAIS
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57 58 64
71 74 79 84
■■ PALAVRAS FINAIS
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■■ REFERÊNCIAS
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■■ NOTAS SOBRE OS AUTORES
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PALAVRAS DOS PROFESSORES Caro aluno, este livro sobre História Contemporânea traz algumas escolhas que tivemos de fazer para discutir o período. Muitos acontecimentos, que mereceriam constar em qualquer texto, foram deixados de lado, não pela sua falta de importância, mas pelo espaço reduzido que oferece este livro. Isso quer dizer que fizemos determinadas opções e elas partiram principalmente do ponto de vista historiográfico que adotamos. Entendemos, em primeiro lugar, que a história não é um campo de estudos que pode dar conta de tudo o que aconteceu. Não nos é possível, inclusive fisicamente, saber de todo o passado. Mas nos vem a questão: se isso não é possível, como escolher? Em segundo lugar, a escolha é feita na possibilidade narrativa. A história tradicional, sabendo que era impossível contar tudo o que aconteceu, buscava enquadrar todos os seres humanos numa única narrativa, como se apenas um eixo comandasse as ações de todos. Assim, numa corrente historiográfica, a política era central, enquanto que em outra, a economia comandava o processo histórico. Nos últimos anos, com os avanços da crítica historiográfica e também de novas formas de abordar os acontecimentos, ficou patente que a narrativa unificadora era uma criação de historiadores e que a história não era um processo em direção a um fim inexorável. Estamos diante de possibilidades e, pensando nisso, o próprio passado é pleno delas, somente sabemos o que veio depois e não nos é possível prever o que acontecerá. Se estabelecemos algumas prioridades, na realidade elas se devem mais às convenções. Assim, Revolução Francesa, Revolução Industrial, Nacionalismo e Nações e Movimentos Sociais são temas consagrados, mas também poderíamos optar por “O amor na Era Contemporânea” ou ainda “Roupas e estilo de vida nos dois últimos séculos” e muito mais. Porém, devido ao tratamento que aqueles temas recebem, optamos por rediscuti-los dentro das nossas opções teóricas. Assim, neste volume, procuramos incorporar as recentes discussões historiográficas, buscando uma bibliografia atual e também dando importância para aspectos históricos pouco discutidos.
BONS ESTUDOS
OBJETIVOS E EMENTA Objetivo Geral ■■ Compreender os processos históricos de formação da contemporaneidade.
Objetivos Específicos ■■ Conhecer a produção historiográfica sobre a contemporaneidade. ■■ Compreender o processo de produção do conhecimento histórico a partir do Iluminismo. ■■ Analisar as relações entre processos históricos da modernidade e a sociedade contemporânea.
Ementa ■■ Mudanças e permanências na consolidação das sociedades contemporâneas e seus enfoques historiográficos. As revoluções do século XVIII e o nascimento do mundo moderno. Revolução Industrial e Revolução Francesa. O pensamento romântico e a consolidação da sociedade burguesa. O socialismo. A comuna de Paris. O nacionalismo no século XIX.
Plano de Estudo
A Revolução Francesa
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Compreender as mudanças ocorridas no final do século XVIII e sua relação com a criação da modernidade. ■■ Compreender os processos históricos geradores dessas mudanças.
ROTEIRO DE ESTUDOS ■■ SEÇÃO 1 - O fim do antigo regime ■■ SEÇÃO 2 - Práticas e pensamentos revolucionários ■■ SEÇÃO 3 - O nascimento da política moderna
UNIDADE I
O mundo em convulsão
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PARA INÍCIO DE CONVERSA A Revolução Francesa marcou a ascensão de novas formas de organização social e política. Podemos dizer que existe uma divisão entre o mundo antes e depois da Revolução. Isso não quer dizer que esse acontecimento teve a capacidade de mudar tudo. Ao contrário, essas mudanças já aconteciam na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos. Podemos encontrar práticas sociais do estilo democráticas na sociedade francesa por volta de 1780. Ou, ainda, tentativas do Estado monárquico em taxar toda a população, inclusive a nobreza. Porém, o que a Revolução marcou foi a possibilidade de essas práticas se tornarem comuns a toda população e a vários países. No entanto, a historiografia tem tratado esse acontecimento como “natural”, quer dizer, estaria inscrito na natureza humana, sendo, portanto, compreendido como causal. Dessa forma, sendo “natural”, a grande questão é saber “por que” aconteceu. Ora, a naturalização de eventos ou da própria história não deixa de ser um modo de compreender a história e, assim, projetar no futuro acontecimentos passados, ou melhor, estipular que os acontecimentos são resultados da evolução humana, portanto, são “naturais”. Nessa perspectiva, o que aconteceu deveria invariavelmente acontecer. Há certa dose de fatalismo e teleologia. O passado explica o presente e este projeta o futuro. Teleologia em história significa que o processo histórico caminha para determinada finalidade. Por exemplo, para os católicos a história humana tende para a Parusia, enquanto que para os marxistas a tendência é o próprio fim da história com o estabelecimento da sociedade comunista. Dessa forma, os acontecimentos se encadeariam e explicariam o Telos, ou seja, a direção que a história teria nesse tipo de interpretação.
A história humana estaria explicada de acordo com a sua própria finalidade, eliminando automaticamente aquilo que não se encaixa nessa projeção do que viria. Portanto, a Revolução Francesa, nessa concepção, viria a cumprir um papel específico: o de dar continuidade ao cumprimento do Telos. Esse foi o caso da historiografia marxista, que, desde o fim do século XIX, entende este evento como uma etapa necessária da História humana:
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fim da história. Após o período da ditadura do proletariado, o Estado deixaria de existir, pois a sociedade comunista o aboliria simplesmente, mesmo porque não haveria mais a luta de classes implicando o término do processo histórico devido ao fim daquilo que o movia, ou seja, a própria luta de classes. Essa posição da historiografia marxista é amplamente conhecida, estando, inclusive, majoritariamente presente nos livros didáticos. É
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o preâmbulo da Revolução Russa de 1917. Esta, por sua vez, seria o início do
essa visão que domina o aprendizado da história. Mas já é tempo de desinvestir a Revolução Francesa de toda essa interpretação. Ao invés de lançarmos a pergunta por que ela aconteceu?, talvez devêssemos fazer outra: como ela foi possível? Esse tipo de pergunta altera profundamente o questionário, pois do horizonte familiar, aquele da Revolução como etapa necessária, passamos a ver o que ela provocou naqueles que a testemunharam, o seu ineditismo. Antes de ser fatal, sempre há no evento histórico, isto é, em qualquer evento, uma dose de inesperado, de inaudito. Normalmente é o presente que “naturaliza” o passado, colocando-o numa ordem causal, explicando o próprio presente. Porém, se tomarmos os acontecimentos como inéditos, teremos outra dimensão deles. Trataremos, nesta unidade, do caráter inédito da Revolução; veremos, portanto, que esse acontecimento foi único e não pode ser naturalizado. Não se pode considerá-lo simplesmente como uma etapa de um processo histórico alheio ao que os próprios seres humanos criaram em torno de si mesmos. Desse modo, a Revolução pode ser compreendida, antes de tudo, como um evento que não estava inscrito em lugar algum. Não havia, para as pessoas envolvidas, nenhum roteiro prévio, nenhuma fórmula dizendo: “quando os governos são tirânicos, eles devem ser mudados por outras formas”. A Revolução americana estava longe demais para que se pudesse sentir o seu peso na Europa. Assim, nada prescrevia o acontecimento de 1789 antes dele próprio. Os atores tiveram de “inventar” no calor dos acontecimentos o sentido do que faziam. Isto é, ao fazerem a Revolução, os revolucionários tiveram de nomeá-la, pois não havia nenhum escrito, nenhum prenúncio de que ela aconteceria. É desse fato inédito que devemos tratar quando falamos sobre a Revolução Francesa, ao contrário do que a historiografia vem tratando há muito tempo. E é isso que você estudará nesta unidade.
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SEÇÃO 1
O FIM DO ANTIGO REGIME Tradicionalmente a historiografia costuma colocar acento na grave crise econômica que enfrentava o Estado monárquico francês perto da Revolução e também na estrutura de classes do período. Podemos dizer que os dois elementos tiveram um peso significativo, no entanto é preciso considerar outras questões quando se trata da decadência do Antigo Regime. O período que precede a Revolução Francesa ficou conhecido como Antigo Regime, em francês Ancien Régime, que também pode ser estendido a outros países. A expressão foi tomada por Alexis de Tocqueville na sua obra clássica, O Antigo Regime e a Revolução, tornando comum o seu uso.
A Revolução não pode ser reduzida a algumas causas, como se todos os seres humanos, todos os eventos coubessem nelas; ou, ainda, como se aqueles que não perceberam o acontecimento vivessem como sonâmbulos, e somente aqueles conscientes do que acontecia pudessem participar ativamente da história. Podemos dizer que a Revolução teve tantas causas quanto o número de seres humanos que existiram antes dela. Porém, cabe-nos traçar linhas de acontecimentos não por ordem de importância (esta questão deixou de ser séria há muito tempo em história), mas conforme a capacidade de explicar. A Revolução tem causas, sim, no entanto não são necessárias nem fatais. Assim, passamos da explicação econômica e política com pitadas de estrutura social, como tradicionalmente se faz, para aquela que trata das representações e práticas sociais. Quer dizer, daquilo que os homens acreditavam e praticavam no seu cotidiano, ou melhor, daquilo que dava sustentação ao que existia. Ora, para um determinado regime político existir é preciso que haja um “investimento” social nele, isto é, as pessoas precisam acreditar que ele é necessário e tem uma função a exercer. O que aconteceu com o Antigo Regime foi a descrença de parte da sociedade na capacidade da monarquia em governar e existir. Muitas pessoas deixaram de acreditar na necessidade da existência de um tipo de governo ou, então, passaram a ver que ele não cumpria o seu dever de governo, o que é quase a mesma coisa, pois a sociedade havia mudado e as formas, até então, de
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Durante todo o século XVIII, a sociedade francesa modificou profundamente a sua relação com o poder e também se modificou. A forma tradicional, a famosa pirâmide onde a figura no topo era representada pelo rei, deixou de ter funcionalidade ou, ainda, funcionava muito mal. Podemos seguir a análise de François Furet (1989) acerca dessas mudanças. Em primeiro lugar (não é por ordem de importância, mas de
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administrar do Estado estavam ultrapassadas para essa sociedade.
conveniência textual), surge uma figura nova no cenário político, social e filosófico: o indivíduo. Bem, a novidade não está exatamente em se pensar no indivíduo particularmente, mas numa nova posição dele perante a sociedade. A grande questão que atravessou o século XVIII é saber exatamente por que estaríamos juntos, ou melhor, por que os indivíduos preferem viver em sociedade no lugar de viverem isolados e livres? Vários pensadores tentaram responder a essa questão e de várias maneiras. Devemos compreender que no século XVIII havia outra compreensão do que éramos, portanto a questão não foi respondida da mesma forma que responderíamos. Assim, o modo mais comum foi partir de um hipotético “estado de natureza” para explicar a sociedade. Nesse estado os homens viviam isolados, porém por vários motivos decidiram ficar juntos. Essa é a ideia básica do Contrato Social, isto é, cansados da vida na natureza e buscando algum tipo de conforto, os seres humanos acordaram um contrato, estipulando o governo e as leis como formas de controle e segurança. Dessa forma, os indivíduos cedem sua soberania ao Estado como meio de garantir as suas existências e a possibilidade de adquirir bens. Essa teoria do direito jusnaturalista – quer dizer, as leis eram feitas com base na natureza, pelo menos esta era a crença – determinaria que as formas de governo e o próprio Estado também teriam sua origem nessas leis “naturais”. Tais proposições afrontavam as tradicionais teorias de direito pautadas na religião. O rei retira a sua soberania diretamente de Deus, isto é, acreditava-se que o poder real era sancionado pela própria divindade. Sendo assim, o jusnaturalismo se mostrava uma teoria contrária aos interesses da monarquia, pois o depositário da soberania era o povo, já que foi ele, o povo, quem acordou o contrato, sendo, portanto, este a origem do poder.
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Compreender a sociedade dessa forma levava muitos a pensar que o governo deveria buscar sua legitimidade nas vontades individuais, o que, de certa maneira, fez muitos pensadores se voltarem para a Grécia Antiga e para a República Romana, vendo ali modelos de governo e Estado que deveriam ser seguidos. Assim, durante o século XVIII se gesta uma ideia de sociedade que é totalmente diferente daquela estabelecida desde o Renascimento, com o surgimento dos Estados monárquicos, que teriam no poder real a origem de sua soberania. No caso da França, isso é mais sintomático, pois as duas teorias convivem conflituosamente, sem, no entanto, provocarem uma ruptura até a Revolução. Dos pensadores jusnaturalistas, o mais rigoroso foi, sem dúvida, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Seu livro O Contrato Social, apesar de ter sido um fracasso de vendas na época, trazia como principal formulação a ideia de que se um indivíduo entregasse a sua soberania ao todo, isto é, à maioria, estaria obedecendo a si mesmo, pois o interesse da maioria era o interesse do indivíduo. No entanto, a dificuldade reside na fórmula que Rousseau inventou para chegar a isso. Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra (1712-1778) e era filho de um relojoeiro calvinista. Aprendeu a ler e escrever cedo. Com a morte do pai, quando ele tinha dez anos, foi trabalhar. Adolescente, resolveu sair da cidade natal. Após vagar foi recebido por uma rica senhora, madame de Warens, tornando-se amante dela. Assim empreendeu os seus estudos. Já adulto chega à Paris e logo faz amizades no círculo dos letrados. Diderot o convidou para escrever sobre música na Enciclopédie. Participou de concursos de academias e ganhou vários prêmios, o que lhe deu fama e o tornou parte integrante da República das Letras.
Numa visão burguesa, a maioria se constitui por uma simples somatória. Somando-se as opiniões individuais, chega-se à opinião da maioria, isto é, cinquenta por cento mais um. Já a fórmula de Rousseau não previa uma somatória, mas uma resultante, a chamada Vontade Geral. O que exatamente ele entendia por isso não foi possível estabelecer até hoje, mas acredita-se que ele imaginava algo parecido com uma consciência coletiva. Obedecendo-a, o homem obedece a si mesmo, portanto é livre. A complicada fórmula de Rousseau lhe deu fama posterior, sendo
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nunca ter pensado nesses termos. Rousseau possivelmente consideraria que a Revolução invertia os valores nos quais ele acreditava. Para ele uma massa inculta estaria tomando o poder e não aqueles mais iluminados pelo conhecimento. Tal postura condiz com a da maioria dos pensadores que fizeram parte do Iluminismo (como você viu na disciplina de História Moderna
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considerado precursor do espírito revolucionário, apesar de ele próprio
II). Eles desejavam, antes de tudo, conduzir a população a um Estado de felicidade, isto é, a partir de um liberalismo político, pretendiam implantar uma sociedade baseada no indivíduo livre. O Iluminismo foi um movimento filosófico e científico que questionou os valores vigentes, inclusive da própria Igreja Católica. Para nós, o seu maior legado foi político, pois estudamos até hoje muitos daqueles que fizeram parte dele. Nomes como Rousseau, Voltaire, Diderot, D’Alambert, entre outros, sempre são lembrados quando se discute o século XVIII.
Como foi dito, essas ideias iam contra a ideologia monárquica, segundo a qual o rei retirava a sua soberania diretamente de Deus. Evidentemente, essas teorias não alimentaram os revolucionários, muito pelo contrário. Elas eram cultivadas nos círculos mais restritos da sociedade francesa, quer dizer, entre a nobreza. Alguns burgueses próximos à nobreza e pessoas letradas podiam também compartilhar de tais ideias. No entanto, elas circulavam livremente nos salões da aristocracia. Por isso é um grande engano dizer que o Iluminismo era uma ideologia burguesa. De modo algum. Ele fazia parte do repertório da nobreza, que desejava, cada vez mais, adquirir formas de distinção social. Ou seja, a nobreza considerava a filosofia, a ciência, as belas letras (como chamavam a literatura) bens que podiam ser tomados como privativos e exclusivos dela própria. Daí o patrocínio de encontros em salões da alta nobreza e o fomento de círculos restritos de aquisição de bens culturais, como a maçonaria. Porém, a importância do Iluminismo não estava na sua capacidade de alimentar ideologicamente revolucionários, e sim no diagnóstico de uma sociedade que estava se afastando das formas tradicionais de poder e de compreensão de si mesma. Costumava-se considerar o reino como um conjunto de súditos, não importando suas origens,
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línguas, costumes e história, pois estavam submetidos ao soberano, sendo este, portanto, o corpo e a alma da nação. Contudo, se a sociedade é composta por indivíduos e estes acordaram viver juntos, então o governo deve retirar a sua soberania do próprio povo e este, por sua vez, deve ter sua própria especificidade. Não é um povo qualquer, mas o francês, o inglês, o holandês e assim por diante, isto é, o povo é uma comunidade de interesses com língua, história, cultura e costumes comuns. A nobreza estava mais propensa a admitir essa concepção porque atendia aos seus interesses. Ela desejava, como sempre, ter poder sobre o próprio Estado, mas desde Luís XIV, havia perdido espaço em favor do poder real. A ideia de que a soberania do rei era tácita, ou melhor, foi outorgada pela sociedade, servia muito bem à nobreza, que desejava assumir um papel ativo na condução do Estado e, portanto, usufruir de maiores privilégios. Ora, numa sociedade extremamente hierarquizada como a do Antigo Regime, o exemplo sempre parte de cima. Se a própria nobreza se rebelou contra o rei, as outras classes não precisavam continuar caladas e submissas ao poder real. Há um sintoma generalizado, no final do Antigo Regime, de que o rei não impõe mais a sua vontade. Chegou 1789, e o rei detém somente o poder nominal. Reinava, mas não governava. Não conseguia mais reunir na sua pessoa o poder, pois só era obedecido na fachada. A nobreza se rebelou e não aceitava mais a sua autoridade como primus inter pares; a burguesia, por sua vez, se via às voltas com a burocracia, o emaranhado de impostos e o descontentamento; já os trabalhadores em geral, desgostosos, famintos e sediciosos, não viam utilidade alguma na hierarquia social, na existência da nobreza e na diferença de sangue entre as pessoas. Havia uma descrença generalizada na monarquia e na sociedade hierárquica. Um clamor por mudanças era sentido. Porém, o Antigo Regime resistia. Tentava manter o status quo a despeito da própria sociedade. Fechava-se cada vez mais nas tradições que se esvaziaram ao longo do século. Tentava manter a primazia do sangue em detrimento da elevação das massas populares. O preço seria alto.
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PRÁTICAS E PENSAMENTOS REVOLUCIONÁRIOS Quando se fala de Revolução Francesa geralmente se esquece de falar dos revolucionários. Ora, se a tradição quer que a Revolução seja um acontecimento “natural”, como vimos acima, ou seja, como algo
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SEÇÃO 2
que faz parte do espírito humano, logicamente os seus agentes serão essencialmente “naturais”. Quer dizer, revolucionários existem como planetas, estrelas, árvores, animais etc., bem como revoluções. A naturalização da história nos leva a enganos acerca dos acontecimentos.
Assim,
o
que
seria
inédito
num
determinado
acontecimento, deixa de ser, aparecendo-nos como fruto de uma evolução natural. Afinal, a História é a história da evolução humana, assim como a História Natural trata da evolução das espécies. Porém, se atentarmos para o evento Revolução Francesa, é possível perceber o quanto nos revela de ineditismo, pois antes que ela acontecesse nada a prenunciava, quer dizer, nenhum escrito, nenhum aviso, nenhum acontecimento prévio indicava que tal evento, um verdadeiro terremoto político, estava para acontecer alguns meses antes. Até hoje, não foi encontrado nenhum livro, panfleto, carta, bilhete, frase que, um mês antes de o conflito eclodir, dissesse: “Façamos uma Revolução”. No entanto, a Revolução aconteceu e a historiografia a trata como um evento natural, fruto do descontentamento humano com relação a governos perversos ou incompetentes. Logo, trata-se de algo que deve acontecer invariavelmente. A história seria, então, uma sucessão de banalidades? Ou o inédito viria a se instalar entre os homens e eles procurariam dar-lhe sentido, entendendo-o como normal? Podemos ter uma dimensão do que sentiam aqueles que vivenciaram os acontecimentos revolucionários? Em primeiro lugar, como vimos na seção anterior, havia uma sensação generalizada de que o rei só tinha o poder nominalmente. O rei só era respeitado superficialmente. A aristocracia da corte percebera a fraqueza de Luís XVI e procurava, ao máximo, extrair vantagens para si. Ora, numa sociedade extremamente hierarquizada como a sociedade francesa do Antigo Regime, essa situação era claramente percebida pelos extratos mais baixos. A monarquia perdia, cada vez mais, a sua aura de
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sacralidade e nas ruas de Paris a decadência da aristocracia e dos reis era especialmente sentida. Podemos situar a perda da sacralidade quando Luís XV, avô de Luís XVI, deixou de fazer o toque das escrófulas, pois se recusava a confessar pelo fato de manter como amante a Madame du Barry. Quer dizer: se estava em estado de pecado, não poderia fazer a cerimônia. Por isso o rei recebeu enormes críticas, além de ser alvo de chacota. Le Roy Ladurie nos leva a perceber a importância das cerimônias de sagração: Um primeiro traço ‘central’ põe em relevo o caráter sagrado da instituição monárquica. As cerimônias de sagração (...) e o toque régio das escrófulas, com seu efeito curativo ou miraculoso, são-lhe a expressão conhecida (...) A essência sagrada da monarquia se inscreve, por outro lado, no interior de um sistema de entidades simbólicas e de funções. A Renascença as aclara: elas incluem as noções de dignidade real e de justiça, esta fundamental em relação à instituição soberana em seu conjunto. Essa justiça e essa dignidade são imortais ou, pelo menos, sobrevivem à pessoa efêmera dos reis sucessivos. (LADURIE, 1994, p. 9-10).
A cerimônia de sagração era importante para a credibilidade da monarquia, pois esta se fazia essencialmente pela visibilidade. O tempo todo o rei devia ser visto, através de suas representações (vide as estátuas equestres de Luís XIV que ainda existem em toda a França), ou pessoalmente. As suas aparições públicas aconteciam sempre na forma de espetáculo. A entrada real nas cidades, os brasões, os decretos, as cerimônias em que o rei era figura central, inclusive a do toque real, mostravam que a ordem social iniciava-se com o próprio rei. A partir do momento em que ele deixou de ter um papel preponderante e visível, foi perdendo, paulatinamente, a aura de sacralidade, quer dizer, a instituição real deixava de ter a mesma importância, produzindo questionamentos em relação à sua utilidade. Aos poucos, os monarcas perdiam essa aura e, cada vez mais, eram motivo de chacota por parte de panfletistas e escritores do submundo parisiense. Luís XVI, por exemplo, demorou muito para gerar herdeiros, o que levantou suspeita sobre a sua virilidade e a fidelidade da rainha. Panfletos satíricos circulavam com certa facilidade. Charges associando o rei a animais não eram raras, como pode ser observado a seguir:
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História Contemporânea I Figura 01: (O rei representado como uma mistura de animais, cada um fazendo parte do imaginário popular. Ao representar assim o rei, mostrava-se uma não naturalidade, quer dizer, o rei não era natural, portanto, era uma monstruosidade. Fonte: http://chnm.gmu.edu/revolution/)
A monarquia e a aristocracia perderam a sua importância social e eram percebidos como pesos pelo restante da sociedade. As antigas funções aristocráticas, aplicar justiça, fornecer proteção e, em tempos de penúria, providenciar alguma provisão aos camponeses, perderam o sentido numa sociedade centralizada. Restava apenas o enorme peso dos impostos para financiar uma nobreza perdulária e inútil, principalmente a alta nobreza abrigada em Versalhes. Esse sentimento ainda não era revolucionário, mas permitiu e animou muito o sentimento antiaristocracia na sociedade francesa em finais do século XVIII. Um caso sintomático foi a questão dos escritores a partir de meados daquele século. Atraídos pelas obras de Voltaire, Rousseau, Diderot, entre outros, muitos jovens deslocavam-se do campo para Paris na esperança de se tornarem também escritores e participarem da chamada “República das Letras”, como Voltaire havia cunhado o pequeno círculo de “filósofos” consagrados. A esperança deles se esvaía quando percebiam que lhes
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faltavam as qualidades fundamentais, descritas por Robert Darnton, para penetrarem nesse círculo: “boa aparência, boas maneiras e um tio parisiense” (DARNTON, 1987, p. 15). Quer dizer, sem alguém para apresentar à boa sociedade, nada feito! Um escritor talentoso certamente estaria excluído do mundo das letras ou, como era chamado naquele período, Grand Monde, o Grande Mundo. Apeado para fora do círculo fechado das sinecuras e pensões garantidas aos escritores consagrados, o pretendente a escritor se via forçado a procurar o seu sustento em trabalhos menores ou, ainda, a tentar viver da pena executando obras não bem qualificadas. Ou seja, muitas vezes, se via obrigado a escrever pornografias, obras apócrifas, vender livros proibidos ou panfletos difamatórios para conseguir sobreviver. Esse foi o caso, por exemplo, de Marat, que antes de se tornar revolucionário levou uma vida errática típica de um escritor da sarjeta, isto é, de alguém que vivia de escritos de baixo tom e de expedientes. Segundo o relatório da polícia de Paris pré-revolucionária, ele era um “charlatão atrevido. M. Vicq d’Azir pede, em nome da Société Royale de Médicine, sua expulsão de Paris. É de Neuchâtel, na Suiça. Muitos doentes morreram em suas mãos, mas tem diploma de médico, sem dúvida comprado” (DARNTON, 1987, p. 37). Marat não era único, os exemplos se multiplicam, como LouisSébastien Mercier, autor do livro Tableau de Paris, agora famoso entre os historiadores, no qual mostra o cotidiano da cidade. Nas palavras da polícia de Paris: advogado, homem feroz e bizarro; não pleiteia na corte nem dá consultas. Não foi admitido na Ordem, mas usa o título de advogado. Escreveu o Tableau de Paris em quatro volumes, e outras coisas. Temente à Bastilha, andou sumido por uns tempos, mais tarde reaparecendo; mostra-se desejoso de trabalhar para a polícia. (DARNTON, 1987, p. 36).
A esperança de ganhar a vida através de seus escritos evanesceu rapidamente para muitos jovens escritores. Forçados à vida da sarjeta, isto é, da boemia literária, como a chamou Darnton, viram-se obrigados a destilar o seu ódio ao Grand Monde que os havia rejeitado através de escritos difamatórios. Com a monarquia já enfraquecida pela falta de autoridade, os
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imagem de sacralidade do rei e, além disso, contribuíram decisivamente para fabricar a imagem de inutilidade, de frivolidade e de arrogância da nobreza. Por exemplo, Charles Théveneau de Morande, um libelista conhecido,
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panfletos produzidos por esses escritores deram golpes eficazes na
dosava calúnias específicas e arengas gerais em parágrafos breves e confusos, numa antecipação do estilo dos colunistas de mexericos da moderna imprensa marrom. Prometia revelar ‘segredos de bastidores’, na melhor tradição da chronique scandaleuse (crônica escandalosa). Mas servia aos leitores mais que escândalo: A devotada esposa de um certo marechal de França (o qual sofre de imaginária moléstia pulmonar), considerado um marido dessa espécie demasiado delicado, julga seu dever religioso poupá-lo, mortificando-se com os carinhos mais crus de seu mordomo, que ainda seria mero lacaio se não houvesse dado provas de invejável robustez. (DARNTON, 1987, p. 40).
O tom do panfleto ou libelles, como eram chamados esses escritos, não podia ser mais claro. Um nobre senil impotente deixa a jovem esposa se satisfazer sexualmente nas mãos de um mordomo, quer dizer, alguém do povo. Dessa forma, a “sobrevivência” da aristocracia estaria nas mãos do próprio povo, que providenciaria a própria descendência dos nobres. Morande também atacava a realeza: Zombando da ideia de origem divina da soberania real, Morande reduzia o rei ao nível de sua corte ignorante e devassa. Fazia de Luís XV uma figura ridícula, trivial até em seu despotismo: ‘Publicou-se um anúncio: procura-se o cetro de um dos maiores reis da Europa. Depois de longa e minuciosa busca, foi encontrado na toilette de uma bela condessa, que o usa para fazer cócegas na barriga de seu gato. (DARNTON, 1987, p. 42).
Pode-se dizer que imagens e textos não eram exatamente revolucionários. Não tratavam diretamente do problema do governo ou do regime político. Denegriam, certamente, a nobreza e a monarquia, mas em momento algum clamavam por mudanças revolucionárias, pelo contrário. Geralmente lamentavam o passado perdido, no qual tanto monarcas quanto nobres cumpriam suas obrigações. Devemos ter em mente que antes de ser uma sociedade de mando e obediência, eram uma sociedade de contrato. Contrato do rei com os súditos, dos nobres com os servos e assim por diante. Se os súditos tinham obrigações, o monarca
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também: aplicar justiça, garantir paz e, quando necessário, providenciar o sustento mínimo para que não se perecesse de fome. O passado perdido, o presente corrompido e o futuro sombrio eram os temas dos panfletos: As obras pré-revolucionárias de homens como Marat, Brissot e Carra não expressam nenhum sentimento vago e ‘anti-establishment’: transpiram ódio contra os ‘aristocratas’ literários que haviam expugnado a igualitária ‘república das letras’, dela fazendo um ‘despotismo’. Foi nas profundezas do submundo intelectual que esses homens se tornaram revolucionários: ali nasceu a determinação jacobina de exterminar a aristocracia do pensamento. (DARNTON, 1987, p. 31).
Da aristocracia literária para a aristocracia propriamente dita foi um passo. Logo esses escritores pugnavam contra e qualquer privilégio social. A nobreza era decadente e corrupta. Doente, ela se comprazia em usurpar o poder real para se manter na ociosidade à custa do povo. Pelo menos essa era a visão corrente meses antes da Revolução. Os escritores, pelo menos até 1789, não eram revolucionários, ou melhor, nunca aventaram essa possibilidade, pois “os libelles careciam de programa. Não apenas sonegavam ao leitor qualquer ideia sobre que tipo de sociedade deveria substituir o Ancien Régime, na verdade mal continham ideias abstratas” (DARNTON, 1987, p. 44). Porém, esses panfletos foram elementos eficazes para insuflar o imaginário popular contra a realeza e os aristocratas. Assim, podemos concluir com Robert Darnton sobre essa literatura do submundo de Paris: O ímpeto emocional da subliteratura foi revolucionário, mesmo não possuindo programa político coerente nem idéias que os distinguisse. Tanto os philosophes quanto os libellistes foram sediciosos a sua maneira: estabelecendo-se, o Iluminismo fez concorrência desleal à fé da elite na legitimidade da ordem social; atacando a elite, os libellistes disseminaram larga e profundamente o descontentamento. (DARNTON, 1987, p. 47).
É aqui que devemos olhar quando pensamos na Revolução Francesa. A sua origem não é a dos grandes escritos e das grandes questões filosóficas. A monarquia e a nobreza soçobraram sob os duros golpes da calúnia, da difamação e da decadência moral que panfletos espalhavam por todo o lado. Podemos concluir com Darnton: “Foi nesse ódio que subia das entranhas, e não nas refinadas abstrações de uma bem
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seu verdadeiro timbre” (DARNTON, 1987, p. 49).
SEÇÃO 3
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tratada elite cultural, que o extremismo revolucionário jacobino articulou
O NASCIMENTO DA POLÍTICA MODERNA Você viu na seção anterior que o sentimento de ódio das injustiças e dos privilégios não nasce nas grandes elucubrações filosóficas do Iluminismo. Se este ajudou na Revolução foi expressar a ideia de indivíduo e de liberalismo político, mas o elemento chave foi esse ódio nascido da sarjeta, do submundo de Paris e que circulava sem ruído, pelo menos para nós. Aliás, na realidade o barulho era imenso, mas os historiadores pouco lhe prestaram atenção. Por isso não se dá muito crédito ao sentimento generalizado de raiva no povo de Paris, pois ele não tem origem “nobre”, quer dizer, não nasceu da pena de grandes filósofos. Ao contrário: emergiu dos escritos sujos de escritores sujos. Porém, ainda resta a seguinte questão: como esse ódio se transformou em Revolução? Os acontecimentos se precipitaram a partir de 1787. A grave crise econômica obrigou o rei a convocar a Assembleia dos Notáveis. Ela era composta por membros do alto clero e da nobreza. A intenção do rei, aconselhado por seu ministro das finanças, era acabar com alguns privilégios fiscais da nobreza. Porém, a total recusa de qualquer reforma obriga o rei a pensar em nova estratégia. O que é sintomático, não foi a recusa das reformas por parte da nobreza, mas a forma da recusa. Na ocasião, ficou patente a falta de autoridade de Luís XVI. O povo de Paris assistia a tudo. Vendo que o monarca não controlava os seus próprios parentes (parte da alta nobreza era consanguínea devido aos casamentos endógenos), a população o via enfraquecido e sem condições de comandar o reino. A sensação geral era de que o rei reinava, mas não governava. Assim, havia um espaço a ser preenchido, o espaço do poder. Sem saída, Luís XVI convocou, em maio de 1789, os Estados Gerais. Muitos historiadores dão importância ao fato de que eles não eram
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convocados desde 1614. Porém ele deve ser minimizado, pois, dessa feita, os representantes não foram escolhidos por aclamação de suas comunidades de origens, mas pelo voto, especialmente no Terceiro Estado. Os Estados Gerais eram compostos tradicionalmente por três ordens e tiveram sua origem na Idade Média. A teoria das três ordens foi formulada por volta do século XI. Segundo essa teoria a sociedade era dividida em três ordens: clero, nobreza e trabalhadores, cada uma devendo ter suas funções. O clero orava pela salvação da cristandade; a nobreza defendia essa mesma cristandade; os trabalhadores sustentavam as duas anteriores. Com o passar do tempo, a burguesia passou a fazer parte da terceira ordem. Esse conselho remonta à constituição dos reinos bárbaros anteriores à queda do Império Romano, aos quais os reis, na realidade chefes guerreiros, se reportavam e dos quais retiravam sua autoridade. Porém, os Estados Gerais, desde a baixa Idade Média, tornaram-se uma espécie de conselho geral do monarca, passando a ser uma figura secundária com a monarquia absoluta. Tanto que deixaram de ser convocados a partir de 1614. A sua nova convocação, em 1789, reacendeu antigas ideias a respeito de a soberania pertencer ao povo e não ao monarca.
Essa foi uma diferença fundamental, pois se abriu uma disputa entre candidatos para obter a preferência de uma determinada comunidade. A princípio isso parece não ter importância, afinal eleições são comuns. Mas não naquela época, quando a eleição proposta constituiu uma novidade. Os deputados do terceiro Estado, isto é, da burguesia e da população em geral, disputavam votos. Isso significa que, quando eleito, alguém “representaria” a vontade popular. Muitos deputados do terceiro Estado se imbuíram dessa ideia e, de acordo com as discussões sobre o indivíduo (como você viu na primeira seção desta unidade) e a soberania, viamse como legítimos representantes do povo, opondo-se ao primeiro e ao segundo Estados. Segundo Furet (1989), a convocação dos Estados Gerais e a eleição de representantes foram inábeis, pois foram misturados dois tipos de procedimentos. O antigo, no qual os representantes eram simplesmente aclamados, como no primeiro e segundo Estados, e o moderno, segundo o qual os representantes eram eleitos, como no terceiro Estado, podendo, por sua vez, reivindicar para si a soberania popular em detrimento da real. Assim, a primavera de 1789 se mostra tempestuosa. Novas forças sociais apareceram na cena política. Em vez do velho teatro do poder, no qual as ordens desfilavam sua obediência, o terceiro emergia diferente, insubordinado, querelante, pouco disposto a aceitar a velha estrutura de
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atitudes dos deputados, que, a despeito da formalidade nas atitudes, eram suficientemente audazes nas suas reivindicações. Pedindo voto por cabeça, ao contrário do esquema tradicional do voto por ordens, o terceiro Estado se insurgiu, pois no sistema antigo normalmente o clero e a nobreza votavam juntos e o terceiro sempre perdia. Com o voto por representante haveria uma grande mudança na
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voto e mando. O ódio à aristocracia e à monarquia estava latente nas
forma de votação, uma vez que o terceiro Estado era maioria absoluta. Com as negativas dos dois outros Estados e a tentativa do rei de chamar à velha ordem os Estados Gerais, tentando fechá-los, o terceiro se rebela e, em 20 de junho, os seus deputados, em reunião na sala do jogo de péla, prestam juramento de não se separarem enquanto o reino da França não tivesse uma Constituição à qual o rei devesse prestar obediência. Proclama-se, então, a Assembleia Nacional Constituinte.
Figura 02 - A sala de jogo de péla (jeu de paume em francês) era próxima ao local onde estavam reunidos os deputados. Esta sala servia a uma espécie de tênis praticado com as mãos, mas também com algum tipo de raquete. Era um esporte bastante praticado pelos nobres e membros do clero. Fonte: http://fr.wikipedia.org/wiki/Fichier:Jeu_de_paume.jpg, 8/09/2010.
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Figura 03 - Jean-Jacques David. Le serment du Jeu de Paume (O juramento do jogo de pela). 1791. Museé National du Château de Versailles.
A notícia correu rapidamente Paris, onde circulavam boatos de que tropas reais atacariam a cidade. Havia um grande temor nas ruas. Vimos que a autoridade do rei estava dramaticamente abalada, e com os deputados reunidos, a população da cidade buscou meios de se defender da monarquia e dos nobres. Revoltas explodiram até que, em 14 de julho, a população atacou a fortaleza da Bastilha em busca de pólvora e armamentos para se defenderem. Com a resistência da pequena guarnição da fortaleza, ela foi tomada à força, marcando simbolicamente o início da Revolução, pois para a população era o fim da monarquia absoluta. Como vimos, a aura de sacralidade da monarquia há muito havia acabado. Com uma direção política - a Constituição -, a população pôs em marcha uma democracia radical que nascia, em parte, dos escritos
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Figura 04 - Charge na qual se mostra o povo carregando o monarca, o clero e a nobreza. O título é “O povo sob o Antigo Regime”. Fonte: http://chnm.gmu.edu/revolution/
Dessa forma, ideias sobre o indivíduo, soberania, nação encontram-se com sentimentos de ódio e raiva, fermento necessário para a gênese da democracia moderna. Com a eclosão da Revolução, as forças reais foram acuadas e o rei ficou na defensiva. Rapidamente se organizaram partidos e a Assembleia logo se dividiu em facções. Os partidos mais famosos eram os Girondinos
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da sarjeta, nos quais se apregoava o ódio aos graúdos e endinheirados.
e os Jacobinos. A palavra girondino tem sua origem na região da Gironda, onde fica Bordeaux. Era uma facção mais moderada e sentava-se geralmente à direita na Assembleia. Os girondinos foram acusados de traidores da Revolução e muitos deles foram perseguidos, inclusive seu líder, Danton, condenado à guilhotina em abril de 1794. Jacobino vem do nome em latim de São Tiago: Jacobus. Os jacobinos se reuniam no antigo mosteiro de São Tiago, daí o nome. Eram considerados radicais e até hoje designam aqueles republicanos radicais. Por se sentarem do lado esquerdo da Assembléia acabaram por nomear como “esquerda” as posições mais extremas.
Esses dois partidos centralizavam a cena política e, pelo menos, muitos jacobinos insuflavam frequentemente o povo para mais rebeliões e para assim pressionar seus adversários. Temendo a perda total do poder após a promulgação da Constituição em 1791, Luís XVI fugiu de Paris em direção à fronteira belga-alemã, no entanto ele foi reconhecido e capturado, com a família, na pequena cidade de Varennes. Reconduzido a Paris, foi iniciado um processo de traição. Os acontecimentos se precipitaram. O rei da Prússia invadiu a França em 1792, motivo para os mais exaltados radicalizarem a Revolução. O rei foi preso junto com milhares de nobres. Foi julgado, condenado à morte na guilhotina e executado em janeiro de 1793. Sua esposa seguiu o mesmo destino, alguns meses mais tarde. Em junho de 1793, uma revolta radical deu condições para os jacobinos tomarem o poder. Iniciou-se a fase conhecida por Terror. Inimigos verdadeiros ou imaginários foram enviados às prisões e milhares foram executados. Todos os dias circulavam pelas ruas de Paris procissões de condenados em direção à guilhotina, onde hoje fica a Praça da Concórdia. Tribunais revolucionários trabalhavam sem parar. No entanto, o Terror se tornou extremamente impopular e, em 27 de julho de 1794, os girondinos articularam um golpe derrubando o líder jacobino, Robespierre, e condenando-o à guilhotina.
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A Revolução entrou numa fase tumultuosa, na qual a burguesia tentou controlá-la. A França sofre internamente pela instabilidade dos governos. Inflação, revoltas, crise econômica eram constantes. Parecia que a Revolução somente havia trazido mais fome e crise. E sofre também externamente. O país fora atacado por uma coligação de monarquias europeias. O exército francês estava acuado. Porém, um jovem general conseguiu vitórias seguidas, salvando o regime e tornando-se uma lenda: Napoleão Bonaparte. No final do século, o governo, chamado de Diretório, era instável e escândalos se sucediam. Temendo pelo regime, a burguesia apoia um Golpe de Estado em 10 de novembro de 1799 (no calendário revolucionário 18 Brumário) e um Consulado formado por três dirigentes assume temporariamente o poder. Entre esses dirigentes estava Napoleão Bonaparte, que, aos poucos, vai assumindo plenamente o poder, coroandose imperador em 1804. Muitos historiadores marcam a queda de Robespierre como o fim da Revolução. Outros afirmam que ela acaba com o Golpe do 18 Brumário. Outros, ainda, estabelecem a queda de Napoleão, em 1815, como o fim definitivo da fase revolucionária. Qualquer que seja a data escolhida, devem ser levadas em conta as dramáticas mudanças trazidas pela Revolução. A democracia moderna nasceu dela. Como vimos, a Revolução não a criou, mas a conjunção de muitos elementos permitiu a sua emergência. Devemos imputar aos acontecimentos revolucionários o lugar do vocabulário político moderno. Partidos, representação, democracia, e assim por diante foram palavras que ganharam o sentido próximo daquele que usamos ainda hoje. Portanto, a Revolução não foi um evento comum. Pelo contrário: como historiadores, devemos ter sempre em mente a sua excepcionalidade e importância.
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Nesta Unidade vimos como a Revolução Francesa marcou o aparecimento da moderna sociedade política. Entretanto, sempre devemos ter em mente que não é nela que nasce a nossa sociedade. A Revolução somente permitiu que ela fosse possível, porém, diferentemente do que pensam muitos historiadores, não foi um fruto “natural” do descontentamento humano. A Revolução foi um evento inédito na completa acepção da palavra. Ela não estava minimamente prevista, ou nada a respeito de revoluções e tomadas de poder por parte do povo havia sido escrito. Portanto, ela carrega esse caráter de uma ação humana completamente nova. Mas como ela foi possível? Em primeiro lugar, do ódio cultivado pela população contra os privilégios e o peso do Estado, ódio nascido no submundo de Paris. Ódio daqueles preteridos, ressentimento dos excluídos do mundo das letras que transmitem a sua raiva para a população. O ódio encontrou a ocasião de se expressar na convocação dos Estados Gerais. Os deputados do terceiro Estado se rebelaram contra o primeiro e o segundo Estados. A rebelião dos deputados do terceiro, que se consideravam legítimos representantes do povo, o ódio e o temor popular forneceram combustível suficiente para a máquina revolucionária. Entrando em funcionamento, ela não parou até o fim do século XVIII. Assim são conhecidas as várias fases de exacerbação e retração, até o momento em que Napoleão Bonaparte, através de um Golpe de Estado, toma o poder, encerrando praticamente o período revolucionário.
BOTO, Carlota. Na Revolução Francesa, os princípios democráticos da escola pública, laica e gratuita: o relatório de Condorcet. Educ. Soc. [online]. 2003, vol.24, n.84 [cited 2010-10-08], pp. 735762. Disponível em: http://www.scielo.br/ LAVALLE, Adrián Gurza; HOUTZAGER, Peter P. and CASTELLO, Graziela. Democracia, pluralização da representação e sociedade civil. Lua Nova [online]. 2006, n.67 [cited 2010-10-08], pp. 49-103. Disponível em: http://www.scielo.br/ ANDERSON, Perry. Trajetos de uma forma literária. Novos estud. - CEBRAP [online]. 2007, n.77 [cited 2010-10-08], pp. 205-220. Disponível em: http://www.scielo.br/ MARTIN, Olivier. Da estatística política à sociologia estatística. Desenvolvimento e transformações da análise estatística da sociedade (séculos XVII-XIX). Rev. bras. Hist.[online]. 2001, vol.21, n.41 [cited 2010-10-08], pp. 13-34 . Disponível em: http://www.scielo.br/
Procure um dos seguintes filmes sobre a Revolução Francesa e faça uma análise do valor atribuído aos eventos revolucionários pela contemporaneidade. Casanova e a Revolução (La Nuit de Varennes), Diretor: Ettore Scola, 1982. Danton, o processo da revolução (Danton), Diretor: Andrzej Wajda , 1982. Maria Antonieta (Marie-Antoinette), Diretora: Sofia Coppola, 2007.
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A Revolução Industrial
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Compreender as mudanças no mundo do trabalho que caracterizam a modernidade. ■■ Analisar a historiografia sobre o mundo do trabalho.
ROTEIRO DE ESTUDOS ■■ SEÇÃO 1 - Trabalho e sociedade ■■ SEÇÃO 2 - Trabalho na Idade Média ■■ SEÇÃO 3 - O nascimento das fábricas
UNIDADE II
O mundo em marcha
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PARA INÍCIO DE CONVERSA A Revolução Industrial foi uma espécie de acontecimento de longo prazo, apesar do nome. Ela não foi repentina, ao menos do ponto de vista da curta duração. Podemos dizer que foi um processo que ainda está acontecendo e tem quase quinhentos anos. Ou seja, o fenômeno envolve todo o período da História Moderna e Contemporânea, por isso é melhor compreendê-lo como um longo processo, quer dizer, trata-se de uma Revolução que transformou o planeta que deixou de ser essencialmente agrário para, nos nossos dias, ser predominantemente industrial. Porém, cabe aqui uma questão: como a Revolução Industrial foi possível? Grande parte da historiografia aborda esse processo do mesmo modo que a Revolução Francesa, quer dizer, como se fosse um processo natural de transformação da sociedade. A humanidade teria como pano de fundo o progresso, determinando em última instância o próprio devir. Os seres humanos progrediriam e, consequentemente, tudo que os cerca também passaria pelo mesmo processo. Afinal, fatos não comprovariam o progresso humano? No entanto, se formos mais atentos com relação a essa ideia, como aquela de ciência e de evolução, perceberemos que são noções recentes na história humana e não estão gravadas no processo histórico. Alguém poderia objetar que essas noções são recentes porque somente nos últimos séculos os homens puderam percebê-las. Poderíamos mudar a questão: não teria sido nos dois últimos séculos que os homens “inventaram” essas noções? Para acreditar que os homens eram inconscientes dessas noções, ou que não tinham capacidade para apreendê-las, é preciso considerar que todas as civilizações anteriores à nossa, inclusive aquela considerada o berço da nossa, a grega, foram incapazes de descobrir que o nosso devir está fadado ao progresso, ou ainda, vinculado a um Telos. Se mudarmos o foco da questão, podemos perceber que a nossa sociedade criou noções distintas das sociedades anteriores. A própria ciência é completamente diferente daquela produzida no período medieval ou no início do período moderno, como veremos. Não havia uma incapacidade das sociedades anteriores a nossa, ou outras civilizações, com relação a essas noções (outras também). A questão
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não haveria por que pensar nelas, ou melhor, isso não faria parte do universo mental delas. A evolução, por exemplo, nunca foi uma questão para os gregos, romanos, egípcios, etc. No entanto, naturalizamos as ações humanas e, de modo comum, levamos para o passado as nossas próprias crenças, imaginando-as perenes ou transcendentes. Dessa forma, colocamos as sociedades anteriores a nossa
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é que isso não era um problema para elas. Se não era um problema, então
na mesma escala. Porém, se hoje é comum estabelecer a diferença entre as sociedades existentes, por exemplo, a nossa e a dos Inuit (povos do norte do Canadá e Ártico), por que não fazer o mesmo com relação ao passado? Ele é a nossa diferença. Crenças, costumes, cultura, religião, enfim, todos os aspectos da vida são pensados e vividos de outra maneira. Logo, dizer que os gregos, romanos, homens do medievo europeu e as culturas ocidentais hoje fazem parte da mesma história é desconsiderar a diferença. Essas outras sociedades no tempo eram diferentes não por falta (faltarlhes-ia a ideia de progresso, de evolução, de ciência, etc.; ou, ainda, essas noções estariam em estado latente, dependendo da descoberta feita por algum homem de gênio), mas por não pertencerem à mesma lógica que a nossa, isto é, simplesmente não tinham a mesma mentalidade. Portanto, colocálas na mesma ordem de acontecimentos que as ligaria a nós mesmos é um equívoco, um anacronismo, pois não as consideramos apartadas de nós pelas suas práticas e crenças sociais, mas somente distantes temporalmente. Esse tipo de raciocínio de muitos historiadores acaba nos convencendo de que a História não passa de uma única e mesma narrativa, pois os povos que eram diferentes no passado, somente o eram por falta. A partir do momento em que tomassem contato com as recentes descobertas as adotariam e se integrariam novamente naquilo que podemos chamar de continuum. Todos os povos que existiram, todas as civilizações, todos os seres humanos teriam, no fim das contas, o mesmo destino. Assim: A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada dispersará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia – sob a forma da consciência histórica – se apropriar, novamente, de todas essas coisas mantidas à distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua morada. Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer a consciência humana o sujeito originário de todo o devir e de toda prática são as duas faces de um mesmo sistema de pensamento. O tempo é aí concebido em termos de totalização, onde as revoluções jamais passam de tomadas de consciência. (FOUCAULT, 1987, pp. 14 e 15).
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É justamente a ideia de sujeito depositário da narrativa universal que alimenta a historiografia sobre a Revolução Industrial. Esse processo é tomado, em primeiro lugar, como “natural”, quer dizer, aconteceria fatalmente; e, em segundo lugar, como uma etapa em direção a um Telos. Isso quer dizer que ele é natural porque atende à necessidade de uma finalidade última no devir histórico, de que não poderemos nos furtar. Além disso, teríamos, finalmente, a reconstituição da consciência do sujeito histórico pelo retorno, na forma de narrativa, de tudo o que a humanidade viveu. Tal proposição, além de não factível, é apenas uma ideia de história que surge em finais do século XVIII e se torna vitoriosa durante o século XIX. Quer dizer, a história como devir é recente, mas funciona muito bem, tanto que nos acostumamos a pensar dessa forma. É por isso que a Revolução Industrial, antes de ser algo inédito, é outra prática em relação ao trabalho: seria a continuidade do que se anuncia desde a pré-história – a evolução do mundo do trabalho. Nessa forma de pensar, considera-se o labor humano como algo totalmente natural. Afinal, os animais não têm de providenciar sua alimentação, abrigo das intempéries, proteção etc.? Assim seria o ser humano. Ora, o que não se leva em consideração é que não vivemos há muito tempo na natureza, ou melhor, vivemos à parte da natureza, portanto o universo do trabalho não se funda mais sobre a vida natural. Este é o ponto de partida desta unidade: a organização fabril não é uma evolução do trabalho manual, que, por sua vez, seria uma evolução do trabalho natural. Ela é uma “invenção”, ou melhor, uma “fabricação”. É uma invenção humana e nada tem a ver com a evolução da espécie.
SEÇÃO 1
TRABALHO E SOCIEDADE* A partir da discussão acima, a primeira questão que se coloca é sobre a própria noção de trabalho. Como a adquirimos? Ou melhor, como a fabricamos? A ____________________________________________________________________________________________ * Este texto foi publicado inicialmente no livro História e prática: a pesquisa em sala de aula, de André Luiz Joanilho (Campinas: Mercado de Letras, 1996).
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diferente daquelas que nos precederam ou até mesmo de sociedades no presente. Sem essa relação, a Revolução Industrial não teria sido possível. Comecemos pela etimologia da palavra. Labor origina-se do latim laboris, e significa dor ou fadiga na realização de um trabalho (Dicionário Etimológico Nova Fronteira, 1986). Consultando o Dicionário Escolar Latino Português (1991), podemos ver que no latim clássico essa palavra tem o significado de fadiga, esforço
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nossa sociedade desenvolveu uma relação bem particular com esse universo, muito
e, no sentido figurado, de doença, desventura, infelicidade. Já o verbo trabalhar vem da palavra tripaliare – torturar – que, por sua vez, vem de tripalium, significando um instrumento de tortura (Dicionário Etimológico Nova Fronteira, 1986); portanto, originalmente a palavra trabalho estava associada à tortura. Uma simples consulta em dicionários disponíveis nos mostra a origem das palavras e o seu emprego no latim de Cícero. Entretanto, hoje, temos os dois termos em alta conta. Definimos o próprio ser a partir deles. O homem é um animal que labora. Situamo-nos de acordo com a nossa profissão, e sempre procuramos dignificar a condição do trabalhador. Ditos, hoje populares, atestam essa condição: “Deus ajuda quem cedo madruga”, “o trabalho enobrece”, e assim por diante. Percebemos hoje que as palavras labor e trabalho se tornaram sinônimas, expressando uma condição do ser humano, e praticamente podemos estipular a condição de alguém somente através da sua atividade (médico, engenheiro, professor, operário) e não pela sua condição social, sexual ou moral. Mesmo se alguém é idoso, o localizamos socialmente pela sua condição de aposentado. De modo algum os termos abordados significam para nós dor ou sofrimento, muito pelo contrário. Aparecem como finalidade da vida e realização pessoal. Hoje têm valor superior na nossa sociedade, condição para que o ser se integre socialmente, isto é, não importa o que ele faça, desde que faça algo e que seja lícito, pelo menos nos nossos padrões morais. Entretanto, cabe fazer uma distinção entre esses termos. Hannah Arendt, na sua obra A condição humana (1983), nos dá uma definição mais precisa: O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. A condição humana do labor é a própria vida. O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último. O trabalho produz um mundo ‘artificial’ de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural (...) A condição humana do trabalho é a mundanidade. (ARENDT, 1983, p. 15).
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Através das definições fornecidas pela autora, podemos compreender que a ideia de labor liga-se diretamente às necessidades vitais, ou seja, laborar significa suprir a nossa necessidade de sobrevivência. Já o trabalho ultrapassa essa condição, estabelecendo um mundo à parte da própria natureza para a existência humana. Enquanto a palavra labor designa o próprio ato, a palavra trabalho pode ser aplicada para o resultado do labor (ARENDT, 1983, p. 91). Daí a autora ligar a ideia de labor ao conceito clássico de animal laborans (animal que labora), enquanto o trabalho liga-se ao de homo faber (homem que fabrica). Essa distinção é fundamental para compreender a ideia contemporânea de trabalho em comparação com a Antiguidade Clássica. Dessa forma, todas as atividades ligadas à ideia de labor eram vistas como necessárias para a manutenção da vida (ARENDT, 1983, p. 94), o que implicava a escravização do ser, pois para a manutenção da vida era necessário laborar, isto é, ter de se fatigar para se alimentar, se proteger, se vestir etc. O ser submetido às necessidades vitais era um ser escravizado, mesmo porque estava indissoluvelmente preso às paixões que governam a vida, ou ainda, aos instintos. Logo: Laborar significava ser escravizado pela necessidade, escravidão esta inerente às condições da vida humana. Pelo fato de serem sujeitos às necessidades da vida, os homens só podiam conquistar a liberdade subjugando outros que eles, à força, submetiam à necessidade. A degradação do escravo era um rude golpe do destino, um fato pior que a morte, por implicar a transformação do homem em algo semelhante a um animal doméstico. (ARENDT, 1983, p. 94).
Desse ponto de vista, podemos concluir que “a instituição da escravidão na Antiguidade não foi uma forma de obter mão de obra barata nem instrumento de exploração para fins de lucro, mas sim a tentativa de excluir o labor das condições da vida humana” (ARENDT, 1983, p. 95). A ideia de a palavra labor estar ligada ao reino da necessidade aparece em Hesíodo (Os trabalhos e os dias). Além de ser a punição imposta aos homens pelo fato de terem recebido o fogo roubado por Prometeu, essa ideia origina-se da Caixa de Pandora, de onde, aliás, provêm todos os males.
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História Contemporânea I Figura 05 - Criança operária. 1918. Corbis, The New York Times photo archive.
Essa mesma ideia aparece na tradição judaica. No Gênese, quando Adão experimenta do fruto proibido e confessa isso a Deus, é punido: porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu havia proibido de comer, a terra será maldita por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de tornar. (Gênesis, 3, 17-19).
A condenação de Adão ultrapassa a perda da condição paradisíaca, ela se estende ao tempo que o homem viveria na terra. Isso torna todo e qualquer esforço para suprir necessidade a rememoração desse ato ab origine, isto é, do início dos tempos. Através desses exemplos podemos perceber que, na Antiguidade, aquilo que chamamos de trabalho era uma atividade ligada à ideia de punição recebida pelo homem por alguma falta na sua relação com o mundo sobrenatural. Daí que o único modo de escapar a essa condição era a escravização de outros homens, a qual geralmente se dava fora do grupo dominante, isto é, os escravos eram obtidos graças a guerras ou dívidas não resgatadas. A lei mosaica, por exemplo, estabelece que “quando comprares um escravo hebreu, ele servirá seis anos; no sétimo sairá livre sem pagar nada” (Êxodo, 21, 1-2). Podemos ver que, no caso
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dos israelenses, a escravidão podia ocorrer entre eles, mas o escravo israelita tinha privilégios em relação a escravos estrangeiros. As leis mosaicas retratam bem as noções de punição recebida pelo homem. Para escapar a essa condição restava a escravização, o que livrava, pelo menos os dominantes, da situação de pecadores, ou do processo biológico de manutenção da vida. Dessa forma, podemos notar que o trabalho escravo na Antiguidade está longe de se constituir como uma necessidade econômica dos dominantes. Muito pelo contrário, era uma imposição para se escapar do ciclo vital, da reposição das energias despendidas no dia-a-dia ou, como diríamos hoje, trabalhar para o funcionamento metabólico do organismo: o desprezo pelo labor, originalmente resultante da acirrada luta do homem contra a necessidade e de uma impaciência não menos forte em relação a todo esforço que não deixasse qualquer vestígio, qualquer monumento, qualquer grande obra digna de ser lembrada, generalizou-se à medida que as exigências da vida na polis consumiam cada vez mais tempo dos cidadãos e com a ênfase em sua abstenção de qualquer atividade que não fosse política, até estender-se a tudo quanto exigisse esforço. (ARENDT, 1983, p. 91).
Como foi visto, para os gregos, pelo menos, tudo o que o homem produz não deixa rastro e, se não deixa rastro, é desprezado. Assim, tudo o que se refere ao processo vital fica reservado para o espaço privado, já que não merece ascender ao espaço público. Tal prática se desenvolve junto com a pólis. Logo, se desenvolve no pensamento “político” grego a ideia de o mundo privado ser o mundo das paixões, ou o mundo do reino da necessidade. Afinal, os animais não lutam com todas as suas forças para manter a vida? O escravo, portanto, equivale ao animal doméstico por pertencer a esse mundo, pois preferiu a vida a continuar “humano”. Ele renegou sua humanidade ao aceitar a escravidão. O cidadão que no espaço público se relaciona igualmente com os outros, no espaço privado deve se tornar senhor, pois no mundo natural, ou no reino das necessidades, o mais forte domina. O espaço público aparece como contraponto ao espaço privado, pois o primeiro é o lugar da realização do ser enquanto humano, já o segundo é o lugar da sobrevivência do homem enquanto “animal”. Dessa forma:
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Porém, enquanto o labor repõe as energias despendidas, o trabalho
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a vida ‘boa’, como Aristóteles qualificava a vida do cidadão, era, portanto, não apenas melhor, mais livre de cuidados ou mais nobre que a vida ordinária, mas possuía qualidade inteiramente diferente. Era ‘boa’ exatamente porque, tendo dominado as necessidades do mero viver, tendo-se libertado do labor e do trabalho, e tendo superado o anseio inato de sobrevivência comum a todas as criaturas vivas, deixava de ser limitada ao processo biológico da vida. (ARENDT, 1983, p. 46).
tem o caráter de permanência. O produto do trabalho não visa ao processo biológico, e sim à constituição do mundo humano, pois esse produto não será consumido no processo metabólico: “No processo de fabricação (...) o fim é indubitável: ocorre quando algo inteiramente novo com suficiente durabilidade para permanecer no mundo como unidade independente é acrescentado ao artifício humano” (ARENDT, 1983, p. 156). Advém daí o motivo de, na Antiguidade Clássica, o artesão gozar de um status superior ao do escravo. Isso não quer dizer que o artífice pudesse ser alçado à condição de cidadão, mas mostra que o fato de o produto de seu trabalho ter durabilidade lhe dava melhores condições. Mesmo assim, a valorização do trabalho se dava conforme a sua distância do labor: ele podia ser mais, ou menos valorizado (ARENDT, 1983, p. 92). Essa distinção entre labor e trabalho é importante quando nos reportamos à nossa sociedade, onde ela desapareceu, dando lugar a uma única noção: o trabalho dignifica. A condição atual ultrapassa a ideia de que trabalhar seria uma punição recebida pelo homem; muito pelo contrário, o não-trabalho é que marginaliza, coloca o ser como pária social, justamente o oposto do que os gregos achavam a respeito da atividade. Como foi possível o trabalho, ou melhor, o labor deixar a intimidade do espaço privado e adentrar no espaço público com tanta força? Como pôde se tornar uma das principais preocupações políticas dos governos e uma das principais preocupações cotidianas do ser humano?
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SEÇÃO 2
TRABALHO NA IDADE MÉDIA Para fazermos o contraponto com a nossa própria sociedade, você vai conhecer, nesta seção, as linhas gerais sobre o universo do trabalho no período medieval. A reflexão que se propõe, como foi dito no começo da unidade, é repensar a noção de trabalho como fundamento do ser. Dessa forma, poderemos verificar que essa noção não e natural. É um produto de forças sociais e em determinados períodos. Durante o período medieval a noção de trabalho não gozou de melhores considerações do que na Antiguidade Clássica. Podemos imaginar o que os mais pobres achavam dele, enquanto a classe dominante o desprezava categoricamente. Tanto a nobreza quanto o clero consideravam vil exercer atividades que lembrassem a condição inferior do homem, e isso não vinha de nenhum exercício filosófico. A tripartição da sociedade (clero – oratores; nobreza – bellatores; povo – laboratores) funcionou como uma ideologia da classe dominante – clero e nobreza – que relegava todo aspecto produtivo ao “povo”. Isso é evidente, pois “como Adão, após a falta, eles (o povo) estão condenados ao trabalho forçado, à ‘condição servil’” (DUBY, 1982, p. 182). Dessa forma, “o trabalho é o comum destino de todos os homens que não são guerreiros nem padres” (DUBY, 1982, p. 183). Esse esquema tripartido da sociedade é formulado por volta dos séculos XI e XII, quando se fizeram sentir progressos agrícolas. Logo, era necessário estabelecer quem deveria trabalhar, quem deveria zelar pela paz interna e defender a cristandade dos inimigos externos (nobres) e, finalmente, quem deveria salvar as almas (clero). Assim: é pois uma elite econômica, a que está à frente do progresso agrícola da Cristandade, entre o século IX e o século XII, e constitui a terceira ordem do esquema tripartido. Este esquema, que exprime uma imagem consagrada, sublimada da sociedade, não agrupa a totalidade das categorias sociais, mas apenas as que são dignas de exprimir os valores sociais fundamentais: valor religioso, valor militar e, o que é novidade na Cristandade medieval, valor econômico. Até no campo de trabalho a sociedade medieval, a nível cultural e ideológico, permanece uma sociedade aristocrática. (LE GOFF, 1980, p. 82).
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superior em relação à Antiguidade Clássica. Muito pelo contrário, os laboratores (não vamos esquecer da etimologia da palavra) aparecem no vocabulário associados a palavras como agricolae e rustici, isto é, completamente ligados ao trabalho com a terra. O lento avanço dos comerciantes e a introdução da moeda numa economia essencialmente de troca fazem com que se possa pensar essa nova categoria, entretanto
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Isso não significou que trabalhar tenha ascendido a uma posição
o desprezo pelas atividades ligadas ao dinheiro se acentuou. A condenação da usura e da cupidez por parte da Igreja aumentou a desconfiança voltada para quem trabalhasse e ganhasse dinheiro com isso, um velho tabu, tabu do dinheiro, que representou papel importante na luta das sociedades que viviam num quadro de economia natural contra a invasão da economia monetária. Este terror perante a moeda de metal precioso anima as maldições contra o dinheiro dos teólogos medievais (...) e estimula a hostilidade para com os mercadores, sobretudo atacados como usurários ou cambistas e, mais geralmente, para com todos os que lidam com dinheiro e para com todos assalariados agrupados sob a designação de mercenários. (LE GOFF, 1980, p. 88).
Essas condenações se fazem num quadro contrário ao da valorização do trabalho. A ascensão de determinadas categorias sociais numa sociedade que se vê imóvel instiga uma ideologia de desprezo do trabalho, colocando essas novas categorias de volta no lugar comum dos laboratores. Assim, devemos ter em conta que “a mentalidade das classes dominantes é antitécnica. Durante a maior parte da Idade Média, até o século XIII, e mesmo, em menor medida, depois deste, a ferramenta, o instrumento e o trabalho, nos seus aspectos técnicos, não aparecem na literatura e na arte senão como símbolos” (LE GOFF, 1983, p. 246). Essa mentalidade nos aponta que a noção de trabalho está presa, em primeiro lugar, à noção de punição; trabalhar, nas regras beneditinas, por exemplo, significa fazer penitência. Dessa forma, para o “povo existe um peso sobre seus ombros: peso da carne – procriação, e o homem não procria sem pecado. O pecado é a fonte da desigualdade, e são os mecanismos carnais da geração que criam os ‘gêneros’, distribuem os laicos, hereditariamente, pelas diversas condições sociais” (DUBY, 1982, p. 189). Podemos, então, compreender que:
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a divisão classista e a opressão senhorial acham-se assim justificadas pela desigualdade proveniente do impuro. Todavia, a impureza profunda dos trabalhadores que suam, que cheiram mal e se acasalam como o gado pode ser redimida pelo sofrimento físico, tal como o guerreiro, que faz o amor de maneira menos grosseira e que mata não porcos, mas homens, pode redimir as suas máculas menos graves oferecendo a sua vida pela boa causa (Igreja). Uma coisa é certa: o nosso universo, terrestre, não pode passar sem homens de armas nem homens de sofrimento. (DUBY, 1982, p. 189)
Figura 06 - Xilografia representando uma cervejaria medieval.
Essa ideologia comentada por Duby (1982) traduz o sentimento que se tinha em relação ao trabalho, sendo formulada principalmente na Igreja. Porém, em segundo lugar, a nobreza devota um grande desprezo pelo trabalho, de qualquer natureza, pela sua própria posição: são guerreiros antes de tudo, e isso quer dizer que a forma de se adquirir riquezas é através de conquistas, pilhagens ou doações. As exações que retiravam dos servos serviam para a manutenção das pequenas cortes feudais, ou seja, o senhor e seu séquito, e não tinham nenhum caráter de troca ou enriquecimento. Usando uma palavra mais contemporânea, diríamos que a exploração da terra tinha objetivo logístico, isto é, fornecer elementos necessários para que o senhor pudesse fazer a guerra.
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nenhuma ideologia ou representações contrárias às da classe dominante. Aliás, na categoria das transações, que supõem um contradom economicamente equivalente ao dom, encontramos um outro fato desconcertante. Trata-se da categoria que, de acordo com nossas concepções, deveria praticamente confundirse com o comércio. Não é nada disso. Ocasionalmente, a troca se traduz pelo vaivém de um objeto rigorosamente idêntico entre os parceiros, o que tira assim da transação toda finalidade ou toda significação econômica imaginável! O simples fato de um porco voltar a seu doador, mesmo por via indireta, troca de equivalentes, em vez de orientar-se na direção da racionalidade econômica, demonstra ser uma garantia contra a intrusão de considerações utilitárias. A única finalidade da troca é estreitar a rede de relações reforçando os laços de reciprocidade. (MALINOWSKI apud LE GOFF, 1989, p. 19).
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Dessa forma, em terceiro lugar, os que laboravam não constituíram
Assim, o sentido dado tradicionalmente à economia de troca perde seu caráter utilitarista, apontando-nos justamente o contrário a uma ideologia popular face à ideologia da classe dominante. Quer dizer, as pessoas comuns não apenas comungam da ideia de que o trabalho é vil, como praticam meios para se furtar à condição de assalariado. Entretanto, como foi possível, dentro desse universo contrário ao trabalho, ocorrer uma modificação tão violenta que tornou possível o capitalismo? O papel que o comerciante começa a desempenhar, principalmente a partir do século XII, é revelador, tanto que: na França do Norte, se intensificam então todas as formas de troca, que as feiras champanhesas conhecem impetuoso êxito (...). O dinheiro torna-se qual fantasma no espírito dos senhores que receiam não possuir o bastante para manter sua categoria, e no espírito dos camponeses que não sabem onde esconder seu magro pé-de-meia. Invasão, infecção da sociedade pelo dinheiro. (DUBY, 1982, p. 349).
A ascensão dos mercadores liga-se diretamente às novas necessidades das classes dominantes e, citando novamente Duby, vemos que o príncipe não pode passar sem ele (dinheiro). Primeiramente, o Diálogo do Juiz di-lo de maneira clara: para dar. Porque toda a prodigalidade requer agora que se tire dinheiro do cofre. Depois para conduzir a guerra: ninguém a faz já sem amuralhar as fortalezas, sem adquirir as armas modernas, ao pé das quais as antigas são ridículas, e que custam cada vez mais caro, sem falar na contratação de mercenários que exigem cada vez mais ganhos; há que abastecer os vassalos com novas montadas. (DUBY, 1982, p. 350).
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Enfim “a menor decisão política gera lancinantes preocupações financeiras”. Portanto, a importância do terceiro ‘pilar’ do Estado não deixa de crescer ‘vilões’ que não deviam orar nem combater (...). Ao lado do príncipe, a terceira função mudou. Deixou de ser função de labor, é principalmente de negotium (negar o ócio). O negócio: um trabalho, negação certamente da ociosidade e do desinteresse que convêm aos nobres, mas contudo liberto dessa maldição que pesa sobre o esforço físico, sobre o esforço dos braços e das mãos. A função negociadora torna-se a mais útil das três que, pelo incremento econômico, estão mais estreitamente ligadas ao serviço do Estado e que vemos no palácio, domesticadas pelo salário, pelo interesse, pelo dinheiro. (DUBY, 1982, p. 350).
Nesse sentido, os comerciantes devem, em grande parte, à nobreza e ao alto clero a sua ascensão social. À nobreza, pelo comércio de luxo, e ao outro, pelas construções de catedrais. Com efeito, “no início do século XIV, o mercador era sempre, essencialmente, um vendedor de produtos excepcionais, raros, luxuosos, exóticos; na realidade, a maior procura destes produtos pelas categorias superiores provocava o aumento do número e da importância dos comerciantes” (LE GOFF, 1983, p. 306). Assim, lentamente, os comerciantes ascendem à cena social se destacando do terceiro estado, do povo, criando junto com as suas atividades toda uma nova tecnologia para os negócios. Novas formas de contabilidade, bancos, letras de câmbio etc. favoreceram o desenvolvimento dessa nova classe. Devemos lembrar também que foram necessárias modificações na estrutura mental. Novos tempos. A Igreja descobre a intenção, tanto que “do final do século XI ao início do século XIII, a concepção de pecado e de penitência muda profundamente, se espiritualiza, se interioriza. De agora em diante, a gravidade do pecado é medida pela intenção do pecador” (LE GOFF, 1989, p. 11). A descoberta da intenção permite aos mercadores, principalmente aos que emprestavam dinheiro a juros, certa tranquilidade nos seus negócios, pois pela intenção pode-se medir a extensão do pecado, ou seja, de um ato exterior à vontade do indivíduo. Quando se pensava que o pecador era tentado, passa-se a um ato de intenção, “assim, a má intenção implica a condenação apenas dos mercadores que agem por cupidez – ex cupiditate –, por amor do lucro – lucri causa. Isto é deixar campo livre às ‘boas intenções’, quer dizer, a todas as camuflagens. Os processos de intenção são um primeiro passo
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libera-se das amarras o desenvolvimento de uma economia monetária, permitindo o surgimento de uma nova classe: a burguesia. Com o crescimento dos mercadores há também o crescimento urbano e das profissões ligadas essencialmente às cidades. Cria-se, então, um círculo de crescimento econômico fora das atividades dos senhorios e que aos poucos se torna independente destes. As oficinas urbanas
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na via da tolerância” (LE GOFF, 1980, p. 91). Com essa lenta modificação,
recebem cada vez mais um número maior de jornaleiros (trabalhadores por jornada) vindos do campo à procura de melhores condições, ou até mesmo expulsos por um processo de concentração de terras, inaugurando um novo ciclo econômico. De fato, quem parece lucrar mais com esta evolução da economia monetária são os mercadores. É um fato que o desenvolvimento urbano, cujos principais beneficiários são eles, está ligado aos progressos da economia monetária e que a ‘ascensão da burguesia’ representa o aparecimento de uma classe social cujo poderio econômico assenta mais no dinheiro que na terra. (LE GOFF, 1983, p. 305-306).
Figura 07 - O líder dos Luditas. Publicado em maio de 1812 por Mess, Walker and Knight.
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SEÇÃO 3
O NASCIMENTO DAS FÁBRICAS* O desenvolvimento urbano e a ascensão social da burguesia favoreceram o incremento da produção artesanal. No campo, por sua vez, modificações profundas acontecem, motivadas principalmente pela aquisição de terras por parte da burguesia junto à nobreza endividada, o que permite o aparecimento de novas relações no campo. De fato, a organização do trabalho, pelo menos nos grandes centros têxteis, assinala nitidamente este império do mercador de panos ou de sedas sobre o conjunto das operações industriais. Ele comprava as matérias-primas e ficava proprietário delas ao longo e em todos os estádios da fabricação, até o momento em que o produto tecido, ornado e tingido era finalmente vendido na sua própria loja ou, a seu cargo, nas feiras e nas cidades estrangeiras. Durante todo este tempo, o mercador-fabricante de panos decidia sozinho a marcha do trabalho: confiava a lã às escolhedoras, depois às penteadoras, às fiandeiras... Selecionava e recrutava a sua própria mão de obra para cada trabalho e, concluído este, voltava a apoderar-se da lã, do fio, do urdume ou do tecido, continuando assim senhor da marcha da empresa, do ritmo do trabalho, dos custos e dos homens. (HEERS, 1988, p. 87).
Esse controle do mercador permite dissociar o produtor do produto e também dos meios de produção (CONTE, 1979, p. 74), estabelecendo o controle do ritmo da produção. Isso é fundamental, pois o ritmo significa tempo de trabalho, e esta é a grande revolução operada nos séculos XIV e XV. Sem ela não teríamos a ampliação da produção e muito menos o capitalismo. Portanto, “quando pensamos o desenvolvimento da ordem burguesa no seio da sociedade feudal, logo imaginamos a instituição do mercado como esfera universalisante e universalizadora de uma nova ordem que se impõe” e, com efeito, essa imposição de normas e valores por um determinado setor da sociedade pode ser percebida decisivamente quando tomamos a noção de tempo útil, produzida pela ampliação da esfera do mercado e que não só disciplina a classe burguesa como também procura se introjetar no âmbito da gente trabalhadora (...). ‘Utilize cada um dos minutos como a coisa mais preciosa. E empregue-os todos no seu dever’. Pregações desse tipo ou aquelas em que o tempo se relaciona com o dinheiro nos mostram todo o artefato moral de uma classe de mercadores que se impõe a si mesma os critérios de sua identificação. (DE DECCA, 1982, p. 15). ____________________________________________________________________________________________ * Repito o título do livro de Edgar De Decca, O Nascimento das fábricas (São Paulo: Brasiliense), no qual é descrito o processo que leva à constituição das fábricas modernas, iniciado por volta do século XVI.
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de trabalho a domicílio (putting-out system). Entretanto, esse sistema não impedia que o trabalhador continuasse a manter o controle sobre a produção, além de muitos também manterem os instrumentos de trabalho, por isso o sistema de fábrica surge como solução para esse problema, já que a lógica temporal do capitalismo é diferente de quem trabalha:
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Aos poucos os “dadores” de trabalho se impõem criando o sistema
a reunião dos trabalhadores na fábrica não se deveu a nenhum avanço das técnicas de produção. Pelo contrário, o que estava em jogo era justamente um alargamento do controle e do poder por parte do capitalista sobre o conjunto de trabalhadores que ainda detinham os conhecimentos técnicos e impunham a dinâmica do processo produtivo. (DE DECCA, 1982, p. 22).
Essa dinâmica estava fortemente ligada aos tabus que pesavam sobre o labor, sobre o dinheiro e sobre o tempo. Logo, o sistema de fábrica representou, justamente, a perda desse controle pelos trabalhadores domésticos. Na fábrica, a hierarquia, a disciplina, a vigilância e outras formas de controle tornaram-se tangíveis a tal ponto que os trabalhadores acabaram por se submeter a um regime de trabalho ditado pelas normas dos mestres e contramestres, o que representou, em última instância, o domínio do capitalista sobre o processo de trabalho. (DE DECCA, 1982, p. 24).
Figura 08 - Fábrica de máquinas, Cowlairs Works. Glasgow Digital Library, http://gdl.cdlr.strath.ac.uk
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Assistimos aqui ao nascimento do capitalismo comercial. A associação dos grandes burgueses com as realezas permite o surgimento dos monopólios comerciais e das empresas coloniais. É nesse momento que o Brasil é introduzido no quadro econômico e político europeu. Porém esse controle sobre o trabalho não é tranquilo. A resistência dos trabalhadores em ceder o seu tempo para os “dadores” de trabalho é muito grande, mesmo porque trabalhar ainda não tinha sido alçado a uma condição superior. Somente os burgueses viam nessa condição uma forma de alcançar algum status social. Então, suas promoções e exortações em torno do labor faziam-no parecer uma atividade natural do ser humano. Entretanto, a resistência acirrada dos trabalhadores em relação ao ritmo de produção exigido pelo capitalismo impedia, em parte, a empreitada colonial, pois as companhias de comércio não conseguiam recrutar mão de obra suficiente para a exploração das colônias, como é o caso do plantio e da extração da cana-de-açúcar no Brasil. Dessa forma, a solução encontrada foi a escravidão. De início, vamos encontrá-la muito difundida no mundo islâmico e, em seguida, na própria África, onde tribos vencedoras de guerras locais vendiam os prisioneiros para mercadores mulçumanos. A chegada dos portugueses trouxe mais um concorrente para esses mercadores e logo é estabelecido monopólio português sobre o tráfico de escravos. A Coroa portuguesa, a partir desse monopólio, proibiu o tráfico interno de escravos nas suas colônias, especialmente no Brasil. Os colonos estavam proibidos de escravizar indígenas porque concorreriam com o monopólio real. De qualquer maneira, a escravidão permitiu “nas áreas coloniais a concentração de trabalhadores destituídos de meios de produção e expropriados de qualquer saber técnico” (DE DECCA, 1982, p. 43), sendo que essa forma apareceu como a organização de trabalho mais eficiente para se levar a cabo os interesses do lucro capitalista, e ali também a figura do empresário se tornou imprescindível para o processo de produção. Disciplina, ordem, hierarquia, foram elementos sempre presentes durante todo o período em que se desenolveu a produção colonial, e o capitalista, na busca de maiores lucros, se transformou em elemento central para a organização do trabalho. (DE DECCA, 1982, p. 43).
Nesse sentido, enquanto na Europa dos séculos XVI e XVII se tenta quebrar a resistência dos trabalhadores em relação à produção, assistimos numa área periférica do capitalismo ao nascimento do sistema de produção
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percurso da expansão europeia, muito menos aconteceu porque os homens daquele tempo eram menos esclarecidos ou desconheciam o sistema de assalariamento. A escravidão na Era Moderna, diferentemente da escravidão na Antiguidade Clássica, surge como solução para o problema da empresa colonial que não encontrava braços para o seu estabelecimento.
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fabril. Devemos, pois, considerar que a escravidão não se deu por acidente no
Figura 09 - Gravura da fábrica de Klassen & Co., 1880 (Ucrânia).
O ingresso da colônia portuguesa num sistema econômico mundial não se fez pela porta dos fundos. Os engenhos de açúcar eram, no sentido moderno, fábricas já que possuíam os elementos necessários para que formas de trabalho se impusessem como necessárias e fundamentais. A contradição entre a necessidade do trabalho no sentido capitalista e as formas de produção ainda presas a mitos como o pecado original era exposta pelo escravismo, que foi a solução nas franjas do capitalismo. Enquanto isso, na Europa, o processo capitalista avançava lentamente. A introjeção da utilidade do trabalho ganhava adeptos e ele era colocado como a grande solução para a vadiagem, a criminalidade,
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a prostituição, isto é, começa a aparecer toda uma moral em torno do trabalho como de utilidade social e individual, ou melhor, a sua promoção dentro da sociedade. A figura do capitalista torna-se indispensável para a produção e com ele surge uma casta de técnicos que, aos poucos, aprimoram o processo produtivo. Daí é um passo para a Revolução Industrial. Entretanto, era necessário acabar com antigos tabus. Cada vez mais apareciam exortações morais que buscavam apagar as antigas e introduzir novas imagens sobre o trabalho. Trabalhar é cada vez mais associado ao processo natural, ou melhor, trabalhar faz parte da natureza humana: assim como os animais se alimentam, o homem deve fazê-lo pelo esforço laboral. O que preside o processo de labor e todos os processos de trabalho executados à maneira do labor não é o esforço intencional do homem nem o produto que ele possa desejar, mas o próprio movimento do processo e o ritmo que este impõe aos operários. Os utensílios do labor aderem a este ritmo até que o corpo e o instrumento passam a agitar-se no mesmo movimento repetitivo, isto é, até que, no uso das máquinas – que, entre todos os utensílios, melhor se adaptam à performance do animal laborans – já não é o movimento do corpo que determina o movimento do utensílio, mas sim o movimento da máquina que impõe os movimentos do corpo. O fato é que nada pode ser mais facilmente e menos artificialmente mecanizado que o ritmo do processo do labor que, por sua vez, corresponde ao ritmo repetitivo do processo vital, igualmente automático, e do metabolismo da vida com a natureza. (ARENDT, 1983, p. 159).
Logo, não é à toa que o processo produtivo e a sua aceleração ocorrem concomitantemente com o avanço das ciências naturais até chegar ao ponto de a origem do homem ser absolutamente ligada à natureza, o que também “naturaliza” as ações humanas. Ou melhor, o homem se torna completamente natural, como se os fatos culturais fossem construídos pelas diferenças geográficas e étnicas, assim como a própria sociedade. Não haveria deliberação por parte do homem em construir a vida social, ele apenas estaria cumprindo a sua natureza. Nessa escala os objetos fabricados se tornam também efêmeros, não são mais feitos para durar, mas para desaparecerem após algum tempo. A própria cidade, que na Antiguidade Clássica era feita para durar, modifica-se tão rapidamente que ao cabo de alguns anos mal podemos reconhecê-la como a mesma. Assim posto, o universo do labor é imposto como natural, portanto
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humana. Se antes o homem era ligado a forças extramundo, portanto não naturais, podendo fugir da sua condição terrena, agora, naturalizado, ele não pode escapar à condição do labor, não pode escapar da sua própria natureza ou, ainda, de sua animalidade e do labor. Trabalhar, então, transforma-se em um fator determinante de humanização e a sua recusa é antinatural.
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necessário, isto é, inescapável, e a sua recusa é a recusa da própria natureza
Dessa forma, concordamos com Edgar De Decca (1982, p. 8), quando ele afirma que “a dimensão crucial dessa glorificação do trabalho encontrou suporte definitivo no surgimento da fábrica mecanizada, que se tornou a expressão suprema dessa utopia realizada, alimentando, inclusive, as novas ilusões de que a partir dela não há limites para a produtividade humana”. Na nossa sociedade todas as questões em torno do trabalho desapareceram para naturalizá-lo. Podemos chamar essa nova configuração de dessacralização da vida, já que a origem dos seres humanos faz parte do processo vital do próprio planeta. Se do ponto de vista da religião o homem é um ser à parte da natureza, com a sua inclusão no processo vital ele passa a ter como objetivo a manutenção da vida, e isso ultrapassa a condição individual. Segundo Arendt, o último estágio de uma sociedade de operários, que é a sociedade de detentores de empregos, requer de seus membros um funcionamento puramente automático, como se a vida individual realmente houvesse sido afogada no processo vital da espécie, e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse deixar-se levar, por assim dizer, abandonar sua individualidade, as dores e as penas de viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e ‘tranquilizada’ (...). É perfeitamente concebível que a era moderna (...) venha a terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu. (ARENDT, 1983, p. 335-336).
Para nos livrar do desconforto do processo vital, que é o nosso labor, são desenvolvidas em nossa sociedade tecnologias de um hedonismo mitigado. A indústria do lazer, os aparelhos de conforto que formam as nossas residências, técnicas psicológicas aplicadas no trabalho servem mais como anteparo dos conflitos individuais do que formas de elevar a vida a uma condição superior. E, com efeito, são tecnologias que dessacralizadas representam toda a mundanidade da vida, isto é, viver está indissociavelmente ligado a um processo natural.
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Outro aspecto hedonista são as formas de conforto que se instalam no processo produtivo. A ergonomia surge como uma tecnologia que visa a atender a relação entre o homem e a máquina. Ela cria uma ciência biomecânica, ou seja, uma forma de saber que estabelece uma correlação imediata e otimizada entre organismos e máquinas. A ergonomia, de início, visa a eliminar a distância temporal entre pensamento e ação, aprimorando a relação homem-máquina até o ponto de supressão dessa distância. Isso modifica, na nossa sociedade, as relações tradicionais entre tempo e espaço, pois a tendência é a constante diminuição do tempo em relação ao espaço percorrido. Cada vez mais rápido; mais veloz. Hoje cronometramos movimentos em milésimos de segundo. A ciência biomecânica (consideramos que várias disciplinas compõem esta ciência, tais como a biologia, a psicologia, a sociologia, a física, a medicina, a antropologia, enfim, todas aquelas que têm como tema principal o corpo e seu funcionamento) estipula o lugar do ser humano no mundo a partir de uma concepção de natureza que vem se estabelecendo desde finais do século XVIII. O processo fabril só pôde acontecer pelas graves modificações que a própria concepção de ser sofreu nestes últimos séculos. Porém não devemos dizer que esse foi um ato de vontade deste ou daquele grupo ou classe. Antes de ser uma intencionalidade, a configuração do processo vital é resultado de forças que se enfrentaram ao longo dos últimos cinco séculos. A Revolução Industrial foi, num sentido, um processo de “naturalização” do ser humano e a sua inclusão em procedimentos de produção que se assemelha ao metabolismo. Produzimos para a manutenção da vida e vivemos para produzir. Esse é o impacto da industrialização na nossa vida.
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Vimos nesta unidade como o mundo do trabalho se constituiu. Procuramos uma abordagem que não apenas trouxesse novos elementos, mas que apresentasse as consequências da ordem industrial no mundo contemporâneo. Tal abordagem ultrapassa as visões tradicionais da historiografia que colocam a Revolução Industrial como uma simples etapa na história humana, como se o evento fosse natural. Se encararmos o evento da forma tradicional, perderemos a perspectiva das modificações na forma de compreender a própria vida humana. E, com efeito, o sistema fabril é vencedor não porque impôs a sua ideologia e convenceu seres humanos incautos de que esta era a única forma de produzir. Ele se torna vencedor porque faz parte de uma nova configuração social. Assim, ao compararmos a nossa forma de organização fabril e a nossa noção de trabalho com a Antiguidade Clássica e a Idade Média, percebemos a distância entre as nossas civilizações. Enquanto o trabalho esteve ligado ao mundo da necessidade, na Antiguidade, era desprezado. No período medieval ele passou a ser visto como uma forma de punição, sendo também desprezado. A sua ascensão no período moderno está ligada a novas formas de compreender o ser humano, especialmente com o crescimento da burguesia em finais do medievo. Essa classe, antes de ser a mentora das mudanças, é a receptora de novas compreensões sobre o ser. Adota rapidamente novas moralidades e as pratica. O poder monetário foi o grande veículo dessas novas modalidades de compreensão da vida que terminam por moralizar o mundo do trabalho, tornando-o parte do processo vital ao ponto de termos uma disciplina para cuidar do conforto no trabalho, a ergonomia. Portanto, devemos ter em conta esse processo quando queremos compreender a industrialização e a vida moderna.
Leia o artigo de Ricardo Antunes e Giovanni Alves, As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital, para perceber como os processos iniciados nos primórdios do capitalismo ainda são fundamentais na sociedade. {Educação e Sociedade – www.scielo.br} [online]. 2004, vol.25, n.87, pp. 335-351. ISSN 0101-7330. doi: 10.1590/S010173302004000200003.}
Leia o livro Costumes em comum, de Edward P. Thompson (Companhia das Letras, 1998) e faça uma resenha, associando o conteúdo deste material de História Contenporânea I com as ideias e conclusões apresentadas no livro.
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UNIDADE 2
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OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM ■■ Compreender o nascimento e desenvolvimento das ideias de nação e nacionalismo. ■■ Entender o processo de construção do conhecimento histórico vinculado à construção da ideia de nação.
ROTEIRO DE ESTUDOS ■■ SEÇÃO 1 - Nação e nacionalismo – conceitos e ideias centrais ■■ SEÇÃO 2 - Os historiadores e a construção das histórias nacionais
UNIDADE III
A invenção das nações
Universidade Aberta do Brasil
PARA INÍCIO DE CONVERSA Nesta terceira unidade você estudará como o fim do antigo regime permitiu o surgimento de uma nova força de coesão sociopolítica – o nacionalismo – e como as modernas nações surgiram e tiveram sua construção justificada pela historiografia moderna, que nasce com esta função explícita: escrever a história nacional, buscando mitos de origem, fatos fundadores, e ideias identificadoras que permitiram que o “sentimento nacional” surgisse e transformasse populações inteiras, fundamentalmente diferentes entre si, em “franceses”, “americanos” ou “brasileiros”. Verá também que, em nome do nacionalismo, políticas de unificação e/ou dominação foram implantadas, quase nunca de modo pacífico, passando de um nacionalismo liberal que herdara seus ideais da Revolução Francesa – buscando, ao fim e ao cabo, a redenção de todos os indivíduos em suas respectivas nações – a um nacionalismo encampado por indivíduos e partidos à direita do espectro político, fundamentalmente antirracional, antiliberal e marcado pela adesão à xenofobia e racismo do final do século XIX.
SEÇÃO 1
NAÇÃO E NACIONALISMO CONCEITOS E IDEIAS CENTRAIS Surgido das convulsões revolucionárias do século XVIII, em especial a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa, o nacionalismo tornou-se um poderoso elemento ideológico dos séculos XIX e XX. Seu pressuposto fundamental era o de que a nação tinha o direito de expandir-se territorialmente, ou de conquistar seu próprio território, devido à superioridade – inicialmente cultural, mas mais tarde, racial – de uma determinada nação. A base inicial para a ideia de nação foi criada durante o iluminismo,
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estabelecimento de uma parcela educada da sociedade burguesa, que mesmo não sendo muito numerosa, foi eficaz em afirmar ideias nacionalistas através de movimentos organizados (como os movimentos “jovens”, fundados ou inspirados pelas ideias de Giuzeppe Mazzini após 1830) que são “o marco da desintegração do movimento revolucionário europeu em segmentos nacionais” (HOBSBAWM, 1986, p. 151).
Figura 10 - Foto de Giuseppe Mazzini, ca. 1870
História Contemporânea I
mas seu florescimento se deu no início do século XIX, através do
Giuseppe Mazzini (1805-1872) foi o principal mentor do nacionalismo italiano do século XIX, pregando a unificação dos estados em uma república sem invasores estrangeiros. Exilado em 1830, organizou o movimento da “Jovem Itália”, que advogava os ideais nacionalistas, e de unificação italiana. Um de seus seguidores de 1830 – também exilado para a França, que acabou imigrando para o Brasil, foi Giuseppe Garibaldi – mais tarde responsável pela unificação da península italiana em torno da monarquia do Piemonte.
Para Benedict ANDERSON (2008, p. 69) as origens específicas do nacionalismo residem na capacidade de se “imaginar ” a nação, que surge historicamente quando um conjunto de “concepções culturais fundamentais” muito antigas perderam sua influência sobre a mentalidade dos homens: A primeira delas é a ideia de que uma determinada língua escrita oferecia um acesso privilegiado à verdade ontológica, justamente por ser uma parte indissociável dessa verdade. Foi essa ideia que gerou as grandes irmandades transcontinentais da cristandade, do Ummah islâmico e de outros. A segunda é a crença de que a sociedade se organizava naturalmente em torno e abaixo de centros elevados – monarcas à parte dos outros seres humanos, que governavam por uma espécie de graça cosmológica (divina). Os deveres de lealdade eram necessariamente hierárquicos e centrípetos porque o governante, tal como a escrita sagrada, constituía um elo de acesso ao ser e era intrínseco a ele. A terceira é uma concepção da temporalidade em que a cosmologia e a história se confundem, e as origens do mundo e do homem são essencialmente as mesmas. Juntas essas ideias enraizavam profundamente a vida humana na própria natureza das coisas, conferindo um certo sentido às fatalidades diárias da existência (sobretudo a morte, a perda e a servidão) e oferecendo a redenção de maneiras variadas. (ANDERSON, 2008, p. 69, sem grifos no original).
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Superadas essas concepções – em grande parte pelos processos de descrédito na autoridade divina do monarca e do clero ocorridos ao longo do século XVIII pela ampla circulação de ideias iluministas em obras científicas e de sedição proporcionada pela explosão editorial do Iluminismo (DARNTON, 1987) – o(s) nacionalismo(s) se manifestou em torno da ideia de nação como uma “comunidade política imaginada”. Comunidade imaginada, porque “mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros”, ainda que exista entre todos eles uma viva imagem de comunhão. Essa comunidade é limitada, porque mesmo a maior das nações não se imagina englobando toda a humanidade – como frequentemente quis o pensamento iluminista e seus herdeiros liberais e socialistas. A comunidade também é soberana, pois surgiu para substituir a legitimidade monárquica. Também a própria ideia de comunidade porque anula diferenças sociais para criar uma igualdade horizontal, baseada em camaradagem fraternal que “tornou possível [que], nesses dois últimos séculos, tantos milhões de pessoas tenhamse [disposto] não tanto a matar, mas sobretudo a morrer por essas criações imaginárias limitadas (ANDERSON, 2008, p. 34). O historiador inglês Eric Hobsbawm, que se dedicou ao estudo contemporâneo do nacionalismo, identifica uma composição social bem definida na construção inicial do nacionalismo nas primeiras décadas do século XIX: além dos membros de “fraternidades revolucionárias nacionais”, como os carbonários e os fenianos, havia um forte apoio por parte dos proprietários rurais menores ou “uma pequena nobreza inferior”, descontentes com a implantação das políticas de economia liberais resultantes das revoluções do século anterior. Havia também o envolvimento de uma nascente “classe média inferior” e de intelectuais profissionais que, como você verá na terceira seção, se tornaram os porta-vozes oficiais do nacionalismo (HOBSBAWM, 1986, p. 152-4). Os Carbonários eram sociedades secretas revolucionárias fundadas na Itália, França e em Portugal no início do século XIX. Mesmo sem uma agenda política clara, eles buscavam objetivos patrióticos, com um foco liberal. Membros dos Carbonários, como Garibaldi, foram instrumentais no processo da unificação italiana na década de 1860 e nos desenvolvimentos posteriores do nacionalismo italiano. Os Fenianos eram também uma sociedade secreta devotada ao estabelecimento de uma república irlandesa independente (que aconteceu em 1919 para a Irlanda do Sul). O braço armado dos Fenianos – o Exército Revolucionário Irlandês (IRA, na sigla em inglês) manteve ações terroristas ao longo do século XX com relação à parte norte da Irlanda, ainda hoje parte do território inglês.
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características eminentemente “nacionais”, ou de “nacionalidades rivais” (húngaros contra austríacos, por exemplo) – o nacionalismo tornou-se um fenômeno de massa, descolando-se dos movimentos intelectuais do período imediatamente anterior. Simultaneamente, passou-se a associar a nação com a necessidade de um território nacional. Assim, o processo de unificação da Alemanha, comandado
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Após as revoluções de 1848 – muitas das quais tiveram
por Bismarck, mas realizado em torno da família reinante prussiana, e a unificação italiana, em torno da casa de Savóia, foram fenômenos que encontraram grande respaldo popular. Otto Von Bismarck (1815-1898) foi primeiro ministro do reino da Prússia entre 1862 e 1890, e unificou a Alemanha através de uma série de guerras (em especial contra a Dinamarca, em 1864, e contra a França, em 1870, guerra essa que precipitou a formação da Comuna de Paris, que você estudará nesta disciplina).
Da mesma forma, diversos outros movimentos nacionais tentaram criar estados independentes em territórios imperiais – Irlanda, Sérvia e Romênia são alguns exemplos. Muitos desses nacionalismos foram sufocados pela dominação imperial. É necessário, portanto, em termos analíticos, separarmos bem claramente “a formação de nações e ‘nacionalismos’ de um lado […] e a criação de estados-nações, por outro” (HOBSBAWM, 1982, p. 103). O problema não era apenas analítico, mas também prático. Pois a Europa, dexando de lado o resto do mundo, estava dividida evidentemente em “nações” cujas aspirações em fundar estados não deixava, pelo certo ou pelo errado, nenhuma dúvida, e em “nações a cerca [sic] das quais havia uma boa dose de incerteza quanto a aspirações semelhantes. O melhor guia para o primeiro tipo era o fato político, a história institucional ou a história cultural das tradições. A França, Inglaterra, Espanha e Rússia eram inegavelmente “nações” porque possuíam estados identificados com os franceses, ingleses, etc. Hungria e Polônia eram nações porque havia existido um reino húngaro como entidade separada, mesmo quando dentro do Império dos Habsburgos, e um estado polonês que também havia existido de há muito até sua destruição no final do século XVIII. A Alemanha era uma nação por força de que seus numerosos principados (apesar de nunca unidos em um único estado territorial) terem constituído outrora o então chamado “Sagrado Império Romano da Nação Germânica” e formado por outro lado a federação germânica, mas também porque todos os alemães de educação elevada partilhavam a mesma língua escrita e literatura. A Itália, apesar de nunca ter sido uma entidade política enquanto tal, possuía talvez a mais antiga das literaturas comuns à sua própria elite. (HOBSBAWM, 1982, p. 103-4).
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Em muitos casos, o nacionalismo só correspondia à formação do Estado-Nação tardiamente (como na Itália), mas, em geral, ele embasou os movimentos fundadores das Nações. Embasou também o apoio popular a esses movimentos, transformando-os em movimentos de massa, ao contrário dos movimentos iniciais, fortemente ligados a elites culturais e intelectuais. O fato de que a ampliação da educação fornecia elementos das camadas médias da sociedade para atuarem na burocracia dos estados nacionais, antigos ou recém-criados, fortaleceu os vínculos das elites com o nacionalismo. Mas esse nacionalismo, fortemente vinculado (pelo menos nesse período) ao liberalismo, forneceu a contradição fundamental dos movimentos revolucionários europeus de 1848 a 1870: “O nacionalismo […] parecia manejável na estrutura do liberalismo burguês e compatível com ele. Um mundo de nações viria a ser, acreditava-se, um mundo liberal, e um mundo liberal seria feito de nações. O futuro viria a mostrar que a relação entre os dois não era tão simples assim” (HOBSBAWM, 1982, p. 116). À medida que o século XIX chegava ao fim, essa relação passou a ser testada constantemente, pois a política de massas que acompanhou a democratização das nações ocidentais a partir de 1870 colocou a “questão nacional” em destaque. Baseando-se na capacidade fundamental de mobilização que essa democratização permite, os próprios estados se esforçam para arregimentar a identificação emocional das massas com a “sua” nação, chamando a isso de “patriotismo”. Este, por sua vez, se tornou um monopólio da extrema direita política, estabelecida na administração dos estados-nações, estigmatizando todas as outras opções políticas como “traidoras”. Essa inovação desconsiderava (ou mesmo negava) a ligação entre nacionalismo e liberalismo e o fato de que todas as vertentes políticas do século XIX renderam-se à questão nacional como sendo essencial para o debate político. Segundo Hobsbawm, as mutações operadas no nacionalismo político nesse período tinham quatro aspectos fundamentais, cujas consequências repercutiriam pelo século XX adentro: O primeiro […] é o surgimento do nacionalismo e do patriotismo como ideologia encampada pela direita política. Isto encontraria sua expressão extrema entre as duas guerras, no fascismo, cujos ancestrais ideológicos aí são encontrados. O segundo é a pressuposição, absolutamente alheia à fase liberal dos movimentos nacionais, de que a autodeterminação nacional, até e inclusive a formação de Estados soberanos independentes, aplicava-se não apenas a algumas nações que pudessem demonstrar sua viabilidade econômica, política e cultural, mas a todo e qualquer grupo que
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Esse nacionalismo, encampado pela direita política, expressava-se agora como uma rejeição profunda do liberalismo e do socialismo, que
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reivindicasse o título de “nação”. […] O terceiro era a tendência progressiva para admitir que a “autodeterminação nacional” não podia ser satisfeita por qualquer forma de autonomia inferior à plena independência do Estado. […] Finalmente, havia a nova tendência para definir uma nação em termos étnicos e especialmente em termos de linguagem. (HOBSBAWM, 1988, p. 206).
estabeleciam relações internacionais – de comércio ou de ação revolucionária – para afirmar uma forte reação contra os governos parlamentares implantados a partir da tradição revolucionária do século XVIII. Um último elemento fundamental para a compreensão do nacionalismo é a influência do romantismo filosófico. O pensamento romântico surgiu, ainda no século XVIII, como uma crítica ao excessivo racionalismo que acompanhou as ideias iluministas. Como tal, o romantismo enfatizava a capacidade humana de agir de forma instintiva e emotiva em situações cotidianas. Como parte desta ênfase e movidas pela constatação da “realidade e da possibilidade de uma mudança radical na história” apresentadas pelas revoluções, as elites intelectuais enveredaram “por uma busca das autênticas tradições nacionais, imersas num passado remoto e obscuro” (SALIBA, 2003, p. 15). Daí o interesse maior pela época medieval, pois nela, supostamente, encontrar-seiam os traços definidores de um obscuro “passado nacional”; daí também uma visão bastante mistificadora e ingênua do mundo feudal. Esse mergulho no passado era uma espécie de compensação ao espetáculo da quebra de continuidade oferecido pelo tempo presente: uma nostalgia das sociedades pré-capitalistas que ansiava por retomar o fio de uma continuidade orgânica do passado. Se, no campo político, tal atitude se desdobrou, não raro, em posições conservadoras, no campo estético forneceu vias de expressão peculiares, centradas no subjetivismo, no misticismo interiorizante e na busca da liberdade de criação artística. (SALIBA, 2003, p. 15-16)
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SEÇÃO 2
OS HISTORIADORES E A CONSTRUÇÃO DAS HISTÓRIAS NACIONAIS Desde a formulação inicial do conceito moderno de nação, durante as revoluções Americana e Francesa do fim do século XVIII, a escrita da história esteve conectada com o processo de construção da nação, criando uma “longa tradição de vínculos íntimos entre a escrita da história e o processo de “se tornar nacional” (BERGER, DONOVAN e PASSMORE, 1999, p. 3). Em cada uma das principais “nações” europeias, a construção da ideia nacional passou por formulações mitopoéticas dedicadas a fornecer os elementos de unidade adequados ao nacionalismo. Na França, onde a ideia do cidadão político (citoyen) “formava a base da coesão nacional”, os historiadores debruçaram-se sobre a Revolução de 1789 como principal mito fundador da nacionalidade. Na Inglaterra, porém, a base dessa coesão era “a identificação da nação com o desenvolvimento de uma tradição parlamentar que foi amplamente vista como epicentro da identidade nacional” (BERGER, DONOVAN e PASSMORE, 1999, p. 6). Na Alemanha, foi o conceito “altamente ambivalente, mas mesmo assim orientador ” de volk que norteou tanto as interpretações democráticas quanto as raciais, da história alemã. “Como tal [o conceito] pode ser usado como mito fundador em escritas da história que legitimavam regimes democratas, fascistas e comunistas na Alemanha” (BERGER, DONOVAN e PASSMORE, 1999, p. 5). Assim, a escrita da história esteve intimamente vinculada aos contextos políticos do século XIX que construíram a ideia nacional e seus discursos legitimadores, na história, na literatura ou na filosofia. No caso dos historiadores: Com a ascensão do nacionalismo em toda a Europa do século XIX, houve uma crescente essencialização de auto proclamadas “características nacionais” […]. Muita da historiografia britânica estava preocupada em demonstrar o processo civilizatório obtido pela Inglaterra através de sua defesa de valores constitucionais e de liberdade, e através da sua longa e contínua tradição parlamentar. Os historiadores franceses também perceberam sua nação como a campeã da ‘liberté, egualité, fraternité’. O slogan da Revolução Francesa de 1789 simbolizava o fato de que foi na Franca que o Terceiro Estado tinha, pela primeira vez, realmente se tornado uma nação.
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Na Alemanha, foi a noção da superioridade da cultura alemã, e da erudição alemã em especial, que estava no cerne do discurso nacionalista do século XIX. Na Itália este discurso estava frequentemente ligado à celebração da antiga cultura do país e à tradição de suas cidades-estado medievais. A construção de “características nacionais” do discurso historiográfico da Europa ocidental do século XIX tendia a atribuir “características eternas” às nações. (BERGER, DONOVAN e PASSMORE, 1999, p. 9-10).
Assim, as escolhas historiográficas e políticas sobre o que, no passado, deve ser lembrado ou esquecido, são fundamentais para a compreensão de como uma nação concebe a si própria. No caso alemão, mesmo advogando uma profunda imparcialidade na abordagem do historiador, Ranke (e outros historiadores alemães, como Mommsen) estava “politicamente envolvido e conhecia a função política de sua erudição”. Esse aparente paradoxo é resolvido por Ranke quando ele afirma que “uma abordagem histórica [da política] torna possível compreender as forças objetivas que operam no mundo”. Assim, a nova escola científica era, desde o início, politicamente orientada e propagandista. Os estudantes de Ranke, que ainda era um bom Europeu, formaram o cerne da assim chamada Escola Prussiana que misturava obediência à dinastia Hohenzollern com uma noção de participação popular e nacionalismo alemão. A Prússia que transcendera as fronteiras nacionais era estava agora germanizada. […] o historiador deveria ir aos arquivos, que era em si uma coisa de valor. Mas historiadores como Droysen, Sybel e Treitschke e uma hoste de seus colegas menos conhecidos iam aos arquivos com respostas pré-concebidas que eles buscavam documentar. Eles viam a si próprios como estando a serviço da dinastia Hohenzollern […] criando mitos históricos como a História da Prússia de Droysen, que já atribuía à Prússia da Idade Média uma missão germânica. (IGGERS, 1999, p. 20).
Figura 11 - Estátua de Christian Mommsen na entrada da Von Humboldt-Universität, Berlin
Christian Matthias Theodor Mommsen (1817-1903). Historiador alemão especialista em antiguidade clássica. Recebeu o prêmio Nobel de Literatura de 1902 por sua “História de Roma”.
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Na Inglaterra do século XIX, o tema da “nação” foi um padrão que se repetiu, principalmente em termos de um programa político “Whig” que se refletia diretamente na interpretação da história. O principal expoente desta vertente foi Thomas Babington Macaulay (1800-1859), mas essa interpretação teve seguidores até o início do século XX, com George Trevelyan (1876-1962). O Partido Whig resumia as tendências liberais inglesas durante os séculos XVIII e XIX. Mantinha um programa que incluía a abolição da escravidão, a emancipação dos católicos ingleses, a educação popular, entre outros itens.
Segundo a interpretação de Macaulay, o elemento nacional mais importante na Inglaterra era o “desenvolvimento de uma tradição parlamentar libertária que remontava à Magna Carta e culminava na Revolução Gloriosa de 1688” (STUCHTEY, 1999, p. 30). Para Macaulay e os liberais ingleses do período, a glorificação do passado nacional (mitificado como um passado “pacífico”) era uma resposta ao medo proFigura 12 - Thomas Babington Macaulay. Desenho de George Richmond. (1809–1896)
vocado pelo Cartismo (que você vai conhecer em História Contemporânea 2) e pelas
revoluções europeias de 1848. A história deveria proporcionar narrativas que descrevessem como os extremos políticos poderiam ser equilibrados. Nessa perspectiva, a história do povo inglês “tinha um aspecto universal […] e era não somente causa para inveja e admiração pelos países vizinhos, mas também um benefício para o mundo civilizado, o fato de que a Inglaterra gozara de liberdade parlamentar tanto tempo antes de qualquer outra nação” (STUCHTEY, 1999, p 32): Esta interpretação Whig era essencialmente um relato complacente de sucesso; uma história contemplativa de um povo que aprovava seu passado e presente. Quando Macaulay afirmou que “a história da inglaterra é enfaticamente a história do progresso” (MACAULAY, 1866, p. 298), ele pensava em uma linha contínua da civilização inglesa desde o [censo de Guilherme I em 1086] até as leis de reforma do século XIX. Por trás desta idéia estava […] uma convicção nacional e cultural da superioridade civilizacional inglesa. (STUCHTEY, 1999, p. 33).
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pensamento liberal dominante buscou uma política de compromisso, procurando apaziguar os conflitos gerados pela Revolução e garantir estabilidade e unidade. A história forneceu os meios para que eles criassem uma ideologia que acolhesse tanto os direitos individuais, herdados do tumulto revolucionário, quanto uma sensação de pertencimento mútuo à nação francesa. Assim, “nos escritos de François Guizot e Augustin
História Contemporânea I
No caso da historiografia francesa do século XIX, após 1815 o
Thierry, o passado foi reinterpretado como uma grande narrativa do propósito nacional e a Revolução foi defendida como o ápice legítimo de um longo processo de luta” (CROSSLEY, 1999, p. 50). Do outro lado do espectro político, historiadores contrarrevolucionários, como Joseph de Maistre, não distinguiam entre o espírito de 1789 e aquele do jacobinismo militante. Para eles, o individualismo era consequência do liberalismo iluminista. Esses críticos não se sentiam obrigados a equilibrar as tradições nacionais em torno da Revolução, nem a reconciliar o indivíduo com a sociedade através da reescrita da história nacional, como procuraram fazer os liberais. Coube aos liberais realizar o esforço nacional por excelência:
Figura 13 - François Pierre Guillaume Guizot, 1787-1874. Fonte: http://www.lib.utexas.edu/photodraw/ portraits/guizot.jpg. Fonte Original DuycFontekinick, Evert A. Portrait Gallery of Eminent Men and Women in Europe and America. New York: Johnson, Wilson & Company, 1873.
Historiadores liberais como Guizot e Thierry fizeram mais do que reforjar elos com o passado nacional. A História foi chamada para preencher uma função integradora, demonstrando aos indivíduos que eles a pertenciam a uma comunidade que, de algum modo, permanecia a mesma apesar de ter sido envolvida com o processo dinâmico de mudanças históricas ao longo dos séculos. A História validava a sociedade, ou, mais exatamente, a história confirmava a nação burguesa como o locus da reconciliação prometida entre o indivíduo e o propósito coletivo. (CROSSLEY, 1999, p. 53).
Partindo dos modelos europeus, os historiadores brasileiros também buscaram formas de legitimar a construção nacional no passado. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro assume a função de conciliar a tradição europeia com a novidade da independência, instaurando uma longa tradição de fuga das rupturas repentinas.
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E aqui tocamos em um ponto que nos parece central para a discussão da questão nacional no Brasil e do papel que a escrita da história desempenha neste processo: trata-se de precisar com clareza como esta historiografia definirá a Nação brasileira, dando-lhe uma identidade própria capaz de atuar tanto externa quanto internamente. No movimento de definir-se o Brasil, define-se também o “outro” em relação a esse Brasil. Num processo muito próprio ao caso brasileiro, a construção da idéia de Nação não se assenta sobre uma oposição à antiga metrópole portuguesa; muito ao contrário, a nova Nação brasileira se reconhece enquanto continuadora de uma certa tarefa civilizadora iniciada pela colonização portuguesa. Nação, Estado e Coroa aparecem enquanto uma unidade no interior da discussão historiográfica relativa ao problema nacional. Quadro bastante diverso, portanto, do exemplo europeu, em que Nação e Estado são pensados em esferas distintas. (GUIMARÃES, 1988, p.6).
A disciplina da historia ficou atrelada ao debate sobre as questões nacionais, marcando a “institucionalização do debate e delineamento de uma proposta de ‘Nação Brasileira’” (KARVAT, 2005, p. 52). O primeiro Programma histórico do IHGB, elaborado em 1839 pelo presidente da instituição, o visconde de São Leopoldo (José Feliciano de Fernandes Pinheiro), inscreve-se nessa tentativa inicial de delimitar o tema nacional sobre a história buscando definir, inclusive, os cânones de leitura do passado a partir da visão que buscava estabelecer (KARVAT, 2005, p. 55). Desta forma, também a História Geral do Brasil, de Francisco Adolpho de Varnhagen (1854), inaugurou a ideia nacional para o país, recém tornado independente, mas que devia sua unidade nacional à continuidade para com o passado colonial. Para Varnhagen, a tradição portuguesa – monárquica e católica - fornecera os principais elementos nacionais: língua, história e território (MONTALVÃO, 2006, p.2). Capistrano de Abreu também busca construir a “nação” na historiografia, porém seu foco é a introdução de uma dimensão popular, na medida em que enfatiza a conquista e a colonização do território brasileiro pelos brasileiros mestiços, e não pelos portugueses (REIS, 1999, p. 113). A busca pela “nação” ou pela história nacional vai persistir na historiografia até quase o final do século XX, quando o conceito é questionado como uma construção ideológica, ou quando a ideia mesma de nação entra em desuso como unidade de análise do passado.
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Figura 14 - Francisco Adolfo de Varnhagen Fonte: DEVERIA, Achille (1800-1857), Paris: Imp. Lemercier, ca. 1851, litografia, disponível na Biblioteca Digital da Biblioteca Nacional de Lisboa, em http://purl.pt/5639, acessado em 16/09/2010.
História Contemporânea I
Nesta terceira unidade você estudou como o fim do antigo regime permitiu o surgimento de uma nova força de coesão sociopolítica – o nacionalismo – e como as modernas nações surgiram e tiveram sua construção justificada pela historiografia moderna que nasce com esta função explícita – escrever a história nacional, buscando mitos de origem, fatos fundadores e ideias identificadoras que permitiram que o “sentimento nacional” surgisse e transformasse populações inteiras, fundamentalmente diferentes entre si, em “franceses”, “americanos” ou “brasileiros”. Viu também que, em nome do nacionalismo, políticas de unificação e/ou dominação foram implantadas, quase nunca de modo pacífico, passando de um nacionalismo liberal que herdara seus ideais da Revolução Francesa – buscando, ao fim e ao cabo, a redenção de todos os indivíduos em suas respectivas nações – a um nacionalismo encampado por indivíduos e partidos à direita do espectro político, fundamentalmente antirracional, antiliberal e marcado pela adesão à xenofobia e racismo do final do século XIX.
Procure informações adicionais sobre os processos de unificação da Alemanha e da Itália na segunda metade do século XIX, na historiografia especializada, ou em obras de referência. Leia o livro “Nações e nacionalismo desde 1870, Programa, mito e realidade” de Eric Hobsbawm (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990).
Leia e resenhe o livro “Silvio Romero; hermeneuta do Brasil”, de Alberto Luis Schneider (São Paulo: Annablume, 2005), buscando conhecer melhor como os processos de construção nacional foram adaptados para o Brasil.
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Teorias Sociais
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM ■■ Compreender as forças em oposição durante o nascimento da contemporaneidade. ■■ Analisar a historiografia sobre os temas debatidos.
ROTEIRO DE ESTUDOS ■■ SEÇÃO 1 - Genealogia da militância ■■ SEÇÃO 2 - Tempo e disciplina ■■ SEÇÃO 3 - Teorias e movimentos sociais
UNIDADE IV
Movimentos e
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PARA INÍCIO DE CONVERSA Quando pensamos em movimentos sociais, mais especificamente no movimento operário, imediatamente os associamos ao capitalismo, como se o a industrialização gerasse espontaneamente movimentos de contestação. De fato, sem a fábrica não haveria movimento operário no sentido moderno, porém a contestação social não é um movimento reflexo. De certa maneira, isso já foi compreendido. O problema é a associação do movimento operário a uma “história” das lutas sociais como se houvesse uma trajetória única estabelecida ab origine, quer dizer, desde o início dos tempos; ou, ainda, como se fizesse parte da essência humana. Cada movimento que sucedesse outro seria uma retomada num nível superior, seguindo uma espécie de espiral evolutiva. Trata-se, assim, a história dos movimentos sociais da mesma forma que a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, como vimos nas unidades anteriores, isto é, eles seriam uma manifestação natural do espírito humano, colocando-se no mesmo tipo de genealogia que a historiografia tradicional traça para o processo histórico. Nessa compreensão do processo histórico, cada acontecimento seria uma continuidade, num sentido superior ao acontecimento anterior. A essa escala evolutiva pode-se dar o nome que se quiser (marxismo, liberal, libertária), mas ela é dominante desde o século XIX, especialmente quando se trata do movimento operário, pois a sua história é ligada pela historiografia marxista às relações de produção. Isso quer dizer que a cada etapa da história humana, que pode ser contada através dos modos de produção, há um movimento de contestação correspondente. Dessa forma, a história dos movimentos sociais cabe inteiramente na história das relações de produção. Já há algum tempo a história deixou de ser o relato do Mesmo, apesar de não conseguir nos últimos anos se reunificar em conjuntos teóricos globalizadores, algo que muitos historiadores ainda almejam. Porém, a prática da disciplina permitiu abrir um leque de possibilidades de análise e compreensão do passado que modificou completamente o seu próprio estatuto. Deixou-se de buscar no passado uma unidade. Ora, até os anos sessenta do século passado, o trabalho em história
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fios soltos, urdir o tecido social que se despedaçava pelo tempo que passa. Enfim, estabelecer linhas temporais que restituíssem o contínuo da sociedade. Não existiria degredo, perda, esquecimento que não pudessem ser trazidos à luz, que a narrativa não pudesse tornar visíveis. O projeto do discurso histórico era garantir a permanência do passado para que nele nos reconhecêssemos.
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consistia na possibilidade de condensar o que seria isolado, juntar
Por outro lado, quando estabelecemos uma relação de estranheza do passado, deixamos de transportar a nossa própria imagem, deixamos de procurar o nosso reflexo. Surgem figuras diferentes, tão diferentes que mal podemos chamá-las de “antepassadas”. São outras práticas, culturas, línguas, histórias, mesmo se as palavras aparentemente forem as mesmas. A questão é saber se falamos as mesmas palavras ou se, mesmo sendo aparentemente iguais, elas não significam outra coisa. Logo, nessa relação de estranheza, deixamos de encontrar o Mesmo para nos depararmos com a Diferença. Isto serve tanto para sociedades agora longínquas como para sociedades mais próximas. No caso desta Unidade, encontramo-nos com algo muito próximo que nos faz esquecer a distância e a diferença. Achamos que é um objeto natural, acreditamos que ele sempre esteve ali, mas em estado latente, e somente num determinado momento pôde surgir. Mas se investigarmos a sua outra genealogia, ou as suas possibilidades de aparição em cena, dar-nos-emos conta de que ele não é natural e muito menos já estava em estado latente, trata-se do movimento operário. Quando se estuda este movimento, busca-se, em primeiro lugar, a sua genealogia, para, em segundo lugar, situá-lo historicamente junto com o aparecimento de teorias sociais que procuravam ordenar a sociedade de um modo diferente do capitalismo. Assim, como dissemos, o aparecimento do operariado não é uma simples decorrência da sociedade capitalista, é o encontro de linhas heterogêneas na história, como veremos adiante.
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SEÇÃO 1
GENEALOGIA DA MILITÂNCIA A primeira questão que surge é esta: como foi possível, em finais do século XVIII, a organização de uma forma de militância política que não estava inscrita nas práticas sociais anteriores, pelo menos na Europa? Quer dizer, nada havia que descrevesse a militância dos trabalhadores antes da própria Revolução Francesa. Havia, evidentemente, movimentos que questionavam a ordem social, porém nenhum deles objetivou a fábrica os as relações de produção, pelo menos de forma organizada. O que temos são outras práticas, geradas em lugares que, poderíamos dizer, nada teriam de proximidade com o universo do trabalho. A ascensão deste universo trouxe consigo novas práticas de contestação (conforme você viu na Unidade 2). No entanto, estas práticas reportam-se a diferentes séries históricas e têm, aparentemente, laços tênues entre elas. Do possível inventário, destacam-se três: utopia, militância e o pensamento nômade. São séries heterogêneas que constituíram, em momentos diferentes, as bases da moderna militância política. A primeira dessas séries refere-se à literatura utópica que emerge em meados do século XVI e ganha terreno durante os séculos XVII e XVIII, a textos que tratam de sociedades perfeitas em alhures. Elas instigaram a imaginação de muitas pessoas e podem ser ligadas às teorias sociais de finais do século XVIII, quer dizer, do espaço da imaginação para o espaço da possibilidade de realização da utopia na sociedade. A segunda trata da militância religiosa inaugurada pela Companhia de Jesus. Era uma prática diferente da pregação tradicional, pois o jesuíta dedicava a sua vida à causa. Elemento fundamental para a militância moderna, como veremos. Com relação à última série, o chamado pensamento nômade, cabe alguns esclarecimentos mais precisos. Trata-se de uma produção intelectual que não teve suporte - e muitas vezes não o pretendeu - de instituições oficiais tais como Universidades, Academias, Igreja e Estado, tendo raízes que podem ser encontradas nas heresias medievais. Mas, esse tipo de pensamento produzido fora dos quadros oficiais está associado
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sua reprodução e permanência na forma de livros – certamente havia uma produção manuscrita que, muitas vezes, alimentava ou retratava as heresias medievais e teve uma existência relativamente longa (CHARTIER, 2001, p. 802; MÉTAYER, 2001, p. 881 e ss). É dentro dessa forma de pensamento que vamos encontrar formulações científicas e filosóficas institucionalmente não aceitas,
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mais frequentemente ao aparecimento da imprensa e da possibilidade de
textos de teor iniciáticos (religiosos, morais, políticos) e, até mesmo, a literatura libertina. São escritos lembrados por Robert Darnton (Boemia Literária e Revolução, 1987), por exemplo, nos momentos que antecedem a Revolução Francesa, sendo reconhecidos como subliteratura, e que amalgamavam todos os tipos de produções que não recebiam autorização da chancelaria real para serem publicados (ABROMOVICI, 1996, p. 183 e ss.), ou estavam censurados. São textos que portam um grande leque de temas, de grosseiras pornografias a libelos políticos, mas que não podiam circular senão clandestinamente, ou pelo menos parecer produzidos à margem da “boa” literatura. É dentro de tal perspectiva que chamamos essa produção intelectual de pensamento nômade ou, ainda, de pensamento vagabundo, pois ele não participa de formas institucionais desde a Renascença, pelo menos das aceitas pelos poderes vigentes, e conhece uma circulação quase sempre clandestina, identificada pela distribuição de livros fora do espaço legal ou, ainda, de textos não aceitos pelo mundo oficial. Esse tipo de pensamento não se reporta a um lugar de produção. Se, de um lado, podemos marcar claramente os lugares de diversos saberes − medicina, filosofia, economia, etc. − por outro, o pensamento nômade tem como principal característica a não vinculação a um espaço específico para ser produzido. Muitas vezes, formulações filosóficas, políticas e até libertinas foram feitas dentro de locais institucionalizados (universidades, mosteiros), mas não tiveram sequência, devido, antes de tudo, a sua rejeição pelo mundo oficial (FOUCAULT, 1966). Nesse sentido, encontramos nesse tipo de produção elementos intelectuais, filosóficos e políticos que auxiliaram na composição da militância política já no século XIX, que posteriormente iremos verificar. Porém, ao lado do pensamento nômade com suas intricadas redes de sobrevivência e de burla dos padrões impostos temos uma literatura
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aceita, na sua maior parte, que são os textos utópicos. Entre um e outro não há uma distância muito grande, a não ser pela aceitação ou rejeição oficial. Ambos, entre outras produções, vão alimentar profundamente as formulações políticas geradas durante e após a Revolução Francesa. Daí a escolha desses dois universos: um, bem estabelecido, aceito e reconhecido como um gênero dentro da literatura; outro, fugidio, contradito, do qual seguimos muitas vezes rastros em negativo, isto é, pelos anátemas lançados pelo espaço institucional em direção a ele (censura, proibições formais, obras escritas e assim por diante). Além das séries do pensamento nômade e da utopia, a da militância é, pelo menos de forma aparente, a mais clara. A historiografia tradicionalmente localiza o seu nascimento durante os anos revolucionários e os jacobinos aparecem na cena histórica como o modelo inaugural de um novo ator social: o militante político (LEFORT, 1986, p. 121 e ss.). No entanto, creio que cabe discutir o seu surgimento tendo por base alguns outros elementos teóricos e de compreensão de processos históricos. Em primeiro lugar, remetemos à discussão feita por François Furet (1978, p. 49) na obra Penser la Révolution Française, quando nos lembra que “os militantes revolucionários identificam sua vida privada à sua vida pública e à defesa de suas ideias: lógica formidável que reconstitui, sob uma forma laicizada, o investimento psicológico das crenças religiosas”*. Este reparo posto por Furet nos remete a uma outra historicidade com relação à gênese da militância. Ao seguir essa pista, talvez devamos mergulhar num universo diferente do tradicionalmente aceito, qual seja, o de que o aparecimento em cena do militante político durante a Revolução Francesa se deve a um natural desejo do homem em lutar contra a opressão. Ora, o empenho, a dedicação, o desprendimento e a fé oferecidos por muitos daqueles que participaram nos anos revolucionários não têm similar no passado em termos políticos, isto é, como nos lembra Furet, somente podemos comparar esse tipo ação com aquele do militante religioso, mais especificamente, o jesuíta. O total desprendimento de si mesmo, o envolvimento absoluto na causa, a obediência absoluta que a Companhia exige de seus padres é o ____________________________________________________________________________________________ * * - « les militants révolutionnaires identifient donc leur vie privée à leur via publique et à la défense de leurs idées : logique formidable qui reconstitue, sous une forme laïcisée, l’investissement psychologique des croyances religieuses » (tradução livre de minha autoria).
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político. Contrassensual num primeiro momento, esta comparação é a única que torna possível explicar, em termos históricos, a fé e a dedicação de alguns durante os anos revolucionários e a formação de quadros dos partidos políticos, principalmente aqueles de esquerda, durante o século XIX. Ambos seguem um imperativo de ordem superior que teria a posse da verdade absoluta. Para uns, é a Igreja, ou melhor, o Papa; para outros, é o povo.
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que pode nos dar uma dimensão histórica para o surgimento do militante
Para relatar o aparecimento da militância política, por exemplo, a historiografia busca no passado referências de repetição, ou procura encontrar um padrão explicativo que se utiliza da recorrência do fato, senão do mesmo, ou pelo menos algo que indique uma curva evolutiva. Então, dentro do nosso caso, cria-se uma série “militantes políticos” e persegue-se tal objetivo obstinadamente através do passado. Para os mais criativos e persistentes, pode-se fazer uma linha de ascendência que remonta a Espártaco, passando pela revolta da Plebe em Roma, das Jacqueries na Idade Média e assim por diante. Dessa forma, temos um objeto completamente naturalizado, a militância, com motivações completamente naturais, luta contra a opressão. Em outros termos, o discurso tradicional da História é o discurso desse objeto. Espártaco foi um gladiador romano que liderou a Terceira Revolta dos Escravos, na República Romana, de 73 a 71 A.C. Jacquerie foi uma revolta popular no fim da Idade Média na França, em especial durante a Guerra dos Cem Anos. A palavra se tornou sinônimo de revolta popular em diversas línguas europeias desde então.
Todavia, dentro da disciplina histórica há muitos avanços. Em primeiro lugar, o reconhecimento da alteridade, o que levou a interrogar com mais acuidade os acontecimentos passados e repensar a historicidade destes. Se vários objetos foram revistos, ainda há um longo caminho a ser percorrido para pensar vários outros, e a questão da militância está entre estes. Cabe ressaltar, ainda, que a escolha desses universos ou séries deve-se também aos elementos que eles mobilizaram (e mobilizam) dentro dos imaginários sociais. Essa questão é central para buscar as possíveis correlações entre as séries e o surgimento do anarquismo de tais correlações. Assim, a utilização deste instrumento para a compreensão
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histórica se tornou comum nos últimos anos e várias obras vieram à luz sob a sua égide. Não que seja o último apanágio para uma historiografia que estaria em crise com suas próprias balizas teóricas. Pelo contrário, cremos que ele vem enriquecer as análises históricas, permitindo um olhar mais específico para vários objetos, acrescentando que: De início, seria preciso inventariar os mitos políticos modernos utilizados face ao trabalho efetuado, em relação aos outros mitos, pelos antropólogos, historiadores da Idade Média ou da Antiguidade em relação aos outros mitos (...). Ora é precisamente a historicidade dos nossos mitos políticos que constitui o problema-chave para o historiador dos imaginários sociais. Nossas sociedades modernas, sejam elas “desencantadas” também, não cessam de produzir sua própria mitologia e a política não é, sem nenhuma dúvida, o terreno menos investido pelos fantasmas e representações imaginárias” (BACZKO, 1984, p. 116)*.
Nesse sentido, é preciso superar a visão tradicional na historiografia que relaciona a militância moderna diretamente aos escritos e práticas políticos que surgiram em torno da Revolução Francesa, reduzindo a sua história a um epifenômeno da política. Não que exista um erro nessa forma de entendê-lo, pois é evidente que as formulações que redundaram no movimento em meados do século XIX partiram em grande parte do quadro revolucionário. Porém, devemos considerar Figura 15 - Gravura representando os militantes anarquistas em Chicago, em 1886
elementos do imaginário social que não se reduzem ao quadro político
originário da Revolução Francesa e da pretensa naturalização dos fatos históricos. A história do pensamento nômade, das utopias e da militância política já foi feita em vários momentos e por vários autores, porém essas séries ____________________________________________________________________________________________ * Il faudrait d’abord inventorier les mythes politiques modernes en bonne et due forme, a l’instar du travail effectué pour d’autres mythes par les anthropologues, les historiens du Moyen Age ou de l’Antiquité (…). Or, précisément c’est l’historicité de nos mythes politiques qui constitue le problèmeclé pour l’historien des imaginaires sociaux. Nos sociétés modernes, aussi « désenchantées » soientelles, ne cessent de produire leur propre mythologie et le politique n’est pas, sans doute, le terrain le moins investi par les phantasmes et représentations imaginaires (tradução livre de minha autoria).
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operária seria o resultado dessas correlações pelo menos em parte, pois há que se considerar outras ainda, mas que já foram devidamente feitas (economia e política, por exemplo).
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não foram ainda consideradas nas suas possíveis correlações. A militância
SEÇÃO 2
TEMPO E DISCIPLINA Para que a militância política passasse a ter uma efetiva atuação, era preciso encontrar o ponto de encontro, quer dizer, o local (ou locais) onde práticas diversas acabaram compondo uma nova prática social. Dois foram os locais. Um, como já vimos, foi a Revolução Francesa, locus privilegiado para a ação política de novo tipo. Outro foi o espaço da fábrica e da produção industrial. Aqui a militância política ganha os seus traços mais específicos, o de associar uma teoria a uma prática. Você viu na Unidade 2 como o trabalho passou a ser valorizado no ocidente europeu no fim do período medieval. A ascensão do mundo do trabalho implicou a imposição de um modo de produzir e, consequentemente, a possibilidade de se atingir a produção ilimitada de artefatos que compõem uma espécie de processo metabólico social. Ou seja, produz para produzir. Porém, todo esse processo de valorização do trabalho, de incorporação das horas contínuas nas manufaturas não foi sem percalços. Houve muita resistência por parte dos trabalhadores, afinal, eles eram submetidos a condições degradantes de trabalho e de existência. Salários baixos, oficinas insalubres, periculosidade, trabalho infantil, extensas jornadas, tudo contribuía para que o trabalhador fosse tratado como último na escala social. Em contrapartida, desde o início desse processo, os trabalhadores procuram resistir: ... de resto, este tempo novo cedo se torna motivo de renhido conflitos sociais. Agitação social e emoções dos trabalhadores têm, daqui em diante, a finalidade de fazer calar os Werkglocke [...]
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Perante tais revoltas, a burguesia têxtil protege o sino do trabalho, tomando medidas mais ou menos drásticas [...] Mas, aqui, a questão do sino é bem evidente. Se os operários se apoderassem deste sino para com ele dar o sinal de revolta, as mais pesadas penas os atingiriam. (LE GOFF, 1980, pp. 65-66 )
As lutas em torno das horas de trabalho indicam não apenas uma forma de controle social sobre o tempo, mas também sobre o próprio trabalhar. Os empregadores buscam cada vez mais transferir conhecimento dos artesãos para si e, dessa forma, controlar os trabalhadores que, por sua vez, são inseridos no universo do trabalho manufatureiro sem nenhuma formação. A princípio o trabalho era fornecido aos trabalhadores num sistema que ficou conhecido como putting-out system, ou seja, sistema de produção doméstica. Nele o empregador é muito mais um intermediário entre os produtores. Ele contrata a lã com o criador. Em seguida, leva-a para a fiandeira. Depois pega os fios e os leva ao tecelão para, enfim, entregar o tecido ao tingidor e, posteriormente, vendê-lo. Entrementes, os trabalhadores também cuidavam de outras tarefas como plantar, cozer, consertar ferramentas, etc. Isto é, um dia de trabalho para uma pessoa comum é cheio de tarefas variadas e que dependem das condições climáticas e sazonais como, por exemplo, plantar. No entanto, a produção manufatureira não pode depender dessa falta de sistematicidade, afinal tempo é dinheiro. Aos poucos o trabalho doméstico vai cedendo espaço para o trabalho dentro de oficinas montadas pelos empregadores, nas quais os trabalhadores se dedicam a uma única tarefa. Há mais resistências, pois o trabalho é estafante e feito em péssimas condições. Mas os empregadores precisam de mão-de-obra. Na Inglaterra, por exemplo, o crescimento das manufaturas durante os séculos XVI e XVII foi concomitante com os “cercamentos”. Esse acontecimento foi assim chamado devido à tomada dos campos comunais, na Inglaterra, por parte de grandes proprietários. Isso privou os camponeses das terras comuns onde podiam levar seus pequenos rebanhos para pastar ou as utilizar para plantio. Sem meios de subsistência, muitos camponeses se viram forçados a migrar para as cidades em busca de trabalho. Os empregadores principalmente da indústria de tecidos, encontraram nesses migrantes a mão de obra necessária para implementar
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trabalhadores num mesmo local, isto é, a constituição de um sistema de fábrica. Vejamos: ...seria possível enumerar pelo menos quatro razões importantes para o estabelecimento do regime de fábrica. Em primeiro lugar, os comerciantes precisavam controlar e comercializar toda a produção dos artesãos, com o intuito de reduzir ai mínimo as práticas de desvio dessa produção. Além disso, era do interesse desses comerciantes a maximização da produção através do aumento do número de horas de trabalho e do aumento da velocidade e do ritmo de trabalho. Um terceiro ponto muito importante era o controle da inovação tecnológica para que ela só pudesse ser aplicada no sentido de acumulação capitalista; e, por último, a fábrica criava uma organização da produção que tornava imprescindível a figura do empresário capitalista. (DE DECCA, 1982, p. 24).
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mudanças drásticas no processo de produção: a concentração dos
Dessa forma, aos poucos o putting-out system cede lugar ao sistema de fábrica, ou seja, oficinas nas quais se concentram trabalhadores, mesmo porque: O sistema de trabalho em domicílio (putting-out system) exigia muita busca, transporte e espera de materiais. O mau tempo podia prejudicar não só a agricultura, a construção e o transporte, mas também a tecelagem, pois as peças prontas tinham de ser estendidas sobre a rama para secar. (THOMPSON, 1998, p. 280).
Já nas oficinas era bem diferente. Nelas é possível parcelar as tarefas no processo de produção. É clássica a descrição de Adam Smith sobre o fabrico de alfinetes. Ele diz que dez operários não qualificados podem produzir 48 mil alfinetes por dia se dividirem as tarefas, enquanto dez operários qualificados não alcançariam a marca de 300 por dia se as tarefas não fossem divididas. Esta é a importância da divisão do trabalho. Ela aparece num momento crucial em que os trabalhadores, forçados a procurarem trabalho nas manufaturas, veem-se compelidos a aceitarem as imposições dos empregadores em troco de baixíssimas remunerações. Mesmo os recalcitrantes eram obrigados a se empregarem, pois o governo inglês, no início do século XVII, instituiu leis que impunham penas pesadíssimas às pessoas que fossem pegas sem trabalho. Pobres podiam ser marcados a ferro em brasa e serem obrigados a trabalharem em galés. Caso fossem reincidentes podiam pegar penas duríssimas ou serem deportados para as remotas colônias. Também foram criadas as
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Workhouses, locais de trabalhos forçados para as pessoas que fossem pegas sem trabalho.
Figura 16 - Clifden Workhouse Illustrated London News, 5 de janeiro de 1850
Assim, um exército de mão-de-obra se tornou disponível para os primeiros proprietários de manufaturas, nas quais se puderam desenvolver técnicas próprias para o incremento da produção. Associando-se a divisão do trabalho, trabalhadores em grande quantidade e domínio do saber produtivo, no final do século XVIII, assiste-se à introdução de máquinas, coroando um processo que ficou conhecido como Revolução Industrial. A rigidez nas oficinas denota a própria rigidez com que o governo inglês tratou a questão dos pobres. Leis anti-vadiagem foram promulgadas sob o eufemismo de Lei dos Pobres. Mas, para além das ações do governo inglês, havia um tipo de ação mais eficaz para impor a disciplina fabril: a moralização dos trabalhadores. Vimos que até finais da Idade Média e parte do período moderno, o trabalho era desprezado. Porém, as mudanças nas mentalidades acabaram alterando o quadro. A burguesia foi a primeira e, em seguida, pregadores também viram no trabalho uma forma de moralizar uma população a ele arredia, e que não se dispunha a praticá-lo com disciplina e regularidade. Reclamações eram constantes, principalmente contra costumes seculares e o ritmo irregular.
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Este ritmo irregular é comumente associado com bebedeiras no fim de semana: a Santa Segunda-Feira é alvo em muitos folhetos vitorianos sobre a temperança [...] Na década de 1790, Sir Mordaunt Martin desaprovou o recurso ao trabalho por empreitada que as pessoas aprovam, para não ter o trabalho de vigiar os seus empregados: o resultado é que o trabalho é malfeito, os trabalhadores se vangloriam na cervejaria do que eles podem gastar numa ‘mijada contra a parede’, criando descontentamento entre os homens com remunerações moderadas. (THOMPSON, 1998, p. 284).
A Santa Segunda-feira (Saint Monday, Saint Lundi, San Lunes) era uma tradição europeia. Os trabalhadores folgavam na segunda e muitos moralistas diziam que era por causa das bebedeiras de domingo. No entanto, era um costume. Aproveitava-se a segunda-feira para realizar tarefas que não eram possíveis outros dias, ou conforme o ditado francês reproduzido por THOMPSON (1998, p. 283): “Le dimanche est le jour de La famille, Le lundi celui de l’amitié (o domingo é o dia da família, a segunda-feira, o da amizade)”.
Assim, durante os séculos XVII e XVIII investe-se contra esses costumes, procurando incutir a disciplina do trabalho sistemático entre os trabalhadores. Entretanto, os principais patrocinadores dela não são os patrões, mas os puritanos, isto é, pregadores de seitas protestantes que viam na ociosidade dos indivíduos uma atitude que favorecia o pecado O caso da Igreja Metodista é exemplar. John Wesley, fundador dessa igreja, observou numa brochura que publicou em 1786 os benefícios de levantar cedo, pois [...] “tanto tempo entre os lençóis quentes, a carne é como que escaldada, e torna-se macia e flácida. Os nervos, nesse meio tempo, ficam bem debilitados” (apud THOMPSON, 1998, p. 296). Da moralização do tempo útil e do trabalho sistemático como benéfico, passamos a outro momento, que se dá no interior da fábrica. Na organização do trabalho, os empregadores passam a exigir, cada vez mais, uma rígida disciplina nas tarefas. Vejamos as regras impostas por um empresário, Josiah Wedgwood, por volta de 1780, reproduzidas por Thompson (1998, p. 291): Aqueles que chegam mais tarde do que a hora determinada devem ser notificados, e se depois de repetidos sinais de desaprovação eles não chegam na hora devida, deve-se fazer um registro do tempo que deixaram de trabalhar, e cortar a quantia correspondente de seus salários na hora do pagamento, se forem assalariados, e, se forem pagos pelo número de peças feitas, devem ser mandados de volta, depois de freqüentes avisos, na hora da primeira refeição.
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No entanto, todo esse processo não ficou sem resposta das pessoas que eram forçadas ao trabalho nas oficinas, as quais logo passaram a se organizar e lutar para modificar as condições de trabalho.
Figura 17 - Adolf Von Menzel. O ciclope moderno. 1875, Alte Nationalgalerie. Eram impostas aos operários duras condições de trabalho. (http://fr.wikipedia.org/wiki/Revolution_industrielle).
SEÇÃO 3
TEORIAS E MOVIMENTOS SOCIAIS De início, os trabalhadores se voltaram contra a lógica do capital instaurada no processo produtivo: A investida, vinda de tantas direções, contra os antigos hábitos de trabalho do povo não ficou certamente sem contestações. Na primeira etapa, encontramos a simples resistência. Mas, na etapa seguinte, quando é imposta a nova disciplina de trabalho, os trabalhadores começam a lutar, não contra o tempo, mas sobre ele.” (THOMPSON, 1998, p. 293).
As fábricas rapidamente passaram a ser associadas a prisões, devido principalmente às Workhouses, lugares de opressão onde os trabalhadores eram obrigados a aceitar as longas jornadas e as péssimas condições.
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à utilidade do tempo, ficando contra os empregadores: A primeira geração de trabalhadores nas fábricas aprendeu com seus mestres a importância do tempo; a segunda geração formou os seus comitês em prol de menos tempo de trabalho no movimento pela jornada de dez horas; a terceira geração fez greves pelas horas extras ou pelo pagamento de um percentual adicional (1,5%) pelas horas trabalhadas fora do expediente. Eles tinham aceitado as categorias de seus empregadores e aprendido a revidar os golpes dentro desses preceitos. Haviam aprendido muito bem a sua lição, a de que tempo é dinheiro.” (THOMPSON, 1998, p. 294).
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Mas, se foram compelidos a aceitar a noção de tempo útil, logo retornam
Logo, os empregadores não tinham mais diante de si trabalhadores desorganizados, indisciplinados e não qualificados, mas sim uma massa de operários prontos para reivindicarem melhores salários, condições de trabalho e tratamento humano nas fábricas. O primeiro passo na organização dos trabalhadores foram os sindicatos, herdeiros diretos das guildas medievais. Assim, no fim do século XVIII e início do século XIX, as primeiras formações sindicais já estavam atuantes na Inglaterra. Na França, os governos revolucionários após 1789 proibiram qualquer associação parecida com as guildas, dizendo que eram formas de monopólios da produção e não deviam ser aceitas. Somente muitos anos mais tarde os sindicatos foram aceitos. As guildas constituíam uma espécie de organização dos artesãos que teve uma longa história. Elas serviam para evitar a concorrência predatória entre os artesãos e também como uma caixa de socorro mútuo em caso de doença ou falecimento. Os sindicatos derivam desse tipo de prática, mas logo se especializam em setores e passam a ser mais reivindicativos do que socorristas.)”.
Um dos eventos mais famosos no início da organização sindical foi o ludismo, mais conhecido como movimento dos quebradores de máquinas. Trabalhadores de várias regiões da Inglaterra se organizaram para atacar máquinas, acreditando que elas lhes tiravam os empregos, pois uma delas podia fazer o trabalho de vários homens. No entanto, estudos puderam comprovar que na realidade era um movimento mais punitivo do que uma revolta contra o trabalho e contra o progresso. Geralmente, grupos de trabalhadores atacavam uma fábrica específica destruindo ou inutilizando as máquinas principais, justamente aquelas que eram imprescindíveis para a produção. Ao agirem assim,
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impediam o processo produtivo. Faziam isso para servir de exemplo contra maus patrões e invocavam um personagem, General Ludd, como o líder da revolta. A repressão não se fez demorar, e o movimento ludista foi cedendo espaço para um movimento sindical melhor organizado. Durante o século XIX, com o avanço das lutas dos trabalhadores, teorias sociais se sucederam, procurando não só explicar o capitalismo e a sociedade, mas também fornecendo instrumentos para modificar a situação social, mesmo porque ela era dramática. Vejamos um pouco um bairro da cidade de Londres por volta de 1840: Nas ruas a animação é intensa, um mercado de legumes e frutas de má qualidade se espalha, reduzindo o espaço para os passantes. O cheiro é nauseante. A cena torna-se mais espantosa no interior das moradias, nos pátios e nas ruelas transversais: ‘não há um único vidro de janela intacto, os muros são leprosos, os batentes das portas e janelas estão quebrados, e as portas, quando existem, são feitas de pranchas pregadas’. Nas casas até os porões são usados como lugar de morar e em toda parte acumulam-se detritos e água suja. ‘Aí moram os mais pobres dentre os pobres, os trabalhadores mal pagos misturados aos ladrões, escroques e às vítimas da prostituição. (BRESCIANI, 1982, p. 25).
Essa descrição, que se aproxima daquelas que se fazem das favelas brasileiras, dá uma dimensão da situação na Inglaterra durante o século XIX e da degradação que a massa trabalhadora atingiu nas cidades industriais. As lutas por melhores condições de trabalho e de vida duraram mais de dois séculos no capitalismo, e provavelmente é por isso que as descrições sobre a situação do trabalhador ao longo desse período não dão a verdadeira dimensão do que várias gerações enfrentaram nos seus cotidianos. Pensadores e militantes operários buscaram soluções para o problema. Podemos dividi-los em três grandes correntes, que já foram vistas em outros capítulos: o socialismo utópico, o socialismo científico e o anarquismo. A primeira corrente, a do socialismo utópico, foi assim chamada por Marx porque ele a entendia como fruto de quimeras e sonhos utópicos por parte de socialistas. Os principais pensadores desta corrente foram: • Robert Owen (1771-1858), industrial inglês que queria dar melhores condições de trabalho aos operários, educando-os e pagando melhores salários. Instiga-os a fundarem cooperativas e tenta a criação de uma vila segundo a sua utopia nos Estados Unidos, mas fracassa.
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das causas sociais. Adepto de um rigoroso planejamento das atividades industriais por parte do Estado, ele vê na industrialização a possibilidade de melhorar a vida do proletariado, dando-lhe também educação e elevação moral. • Outro socialista utópico foi Charles Fourier (1772-1837). Ele projetou os “falanstérios”, que eram uma mistura das palavras “falange”,
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• O Conde Saint-Simon (1760-1825), que era um filósofo e pensador
grupo, e “stérios”, que viria de monastério. A sua proposta era a criação de pequenas comunidades de 400 famílias, vivendo num único edifício e de forma autônoma. Os falanstérios poderiam se especializar e assim ocorrer o comércio entre eles. A vida ali seria comunitária, como, por exemplo, o refeitório comum. Várias experiências foram feitas, mas todas fracassaram. Já o socialismo científico foi o epíteto dado por Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895) para as suas próprias teorias. Nelas caberia o estudo crítico do capitalismo, compreendendo-se que essa formação é possível graças à extração da mais-valia, que é o salário não pago aos trabalhadores. Assim, o capitalismo transfere a riqueza criada pelo trabalho para o patrão. Marx entendia que essa forma de exploração terminaria, pois a concorrência exigiria sempre a extração de mais-valia e esta chegaria a um termo, tendo em vista que nada poderia mais extrair dos trabalhadores, já que eles estariam no limite da sobrevivência física. Dessa forma o capital entraria numa espécie de entropia, isto é, de esgotamento, e a classe operária acabaria chegando ao poder através de seu partido operário. Tanto que, no final de sua vida, Marx ajudou a fundar o Partido SocialDemocrata alemão. A teoria marxista influenciou movimentos em todo mundo e foi a base de todos os governos socialistas no século XX. A terceira corrente que teve forte influência no operariado foi o anarquismo. O termo anarquismo vem de duas palavras gregas: aná, negação, e arché, governo, ou seja, a recusa do governo. Foi Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) o primeiro a utilizar a palavra num sentido político, pois ela era associada à ideia de bagunça, confusão. Os anarquistas acreditavam que os homens poderiam criar uma sociedade na qual não haveria Estado ou autoridades. Todos poderiam se conscientizar de seus papéis sociais e as propriedades seriam comuns. Assim, não haveria
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motivo para desejar os bens alheios, pois tudo pertenceria a todos. Foram feitas algumas experiências com a criação de comunidades anarquistas, mas falharam. No entanto, essa corrente esteve presente no meio sindical de vários países, inclusive o Brasil, durante as primeiras décadas do século XX. A Revolução Russa de 1917, com base no socialismo marxista, e outros movimentos acabaram suplantando o anarquismo. Essas correntes das teorias sociais animaram eventos na história do movimento operário, principalmente no século XIX, com reflexos no século XX. Assim, desde a Revolução Francesa, trabalhadores buscaram elementos nas teorias para dar uma base para as suas organizações. O socialismo utópico animou formas de organização, como vimos, mas também inspirou o movimento operário. Um dos grandes exemplos foi o Cartismo, que se iniciou nos anos 30 do século XIX e marcou profundamente o imaginário das lutas sociais daquele século. O Cartismo ou o Carta do Povo foi um dos primeiros movimentos modernos do operariado inglês. Ele se baseava numa carta de princípios escrita por William Lovett e Feargus O’Connor, que nela pediam a inclusão dos trabalhadores na vida política inglesa, já que o voto era baseado na renda dos indivíduos, o que deixava de fora a maior parte dos trabalhadores. A primeira carta enviada ao Parlamento foi rejeitada em 1839. Uma segunda carta foi enviada e continha mais de três milhões de assinaturas, o que forçou o Parlamento a reconhecer algumas leis que amenizavam as péssimas condições de trabalho dos operários ingleses.
Mostrando amadurecimento nas questões sociais, o movimento operário europeu encetou uma série de revoltas em vários países e deu a impressão, num primeiro momento, de que uma vaga revolucionária popular derrubaria os governos estabelecidos. Ela foi especialmente forte na França, mas ocorreu também na Alemanha, Polônia, entre outros países. Demonstrou a força dos trabalhadores e que as forças econômicas deveriam fazer grandes concessões para conter o ímpeto revolucionário, e foi o que aconteceu. Aos poucos, governos e capitalistas cedem espaço ao movimento operário. É o início do estado de bem estar social ainda dominante na Europa. A Revolução de 1848, na França é resultado de várias linhas de acontecimentos, mas o peso da economia se fazia sentir especialmente num reino que sofria os efeitos da rápida industrialização do século XIX. O país era governado por uma monarquia que estava deslocada em relação ao seu tempo. Ela ainda sonhava com os dias de glória de Luís XIV, porém em
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pleno século XIX. A cidade de Paris era quase inabitável, dadas as suas condições de existência, e uma grave crise econômica assolava a população. Em fevereiro de 1848, violentas manifestações ocorrem em Paris. A reação do governo também foi violenta, precipitando os acontecimentos. A Guarda Nacional também se tornou insurrecta, apoiando os revolucionários. O rei, Luís-Felipe, vendo a situação sair completamente do controle, abdicou em 24 de fevereiro e, no dia seguinte, a República foi proclamada.
Em 1871, ocorreu a primeira experiência abertamente anarquista em Paris. O evento ganhou o nome de Comuna de Paris, e mostrou como o anarquismo era influente no meio operário na Europa, pelo menos até início do século XX. A organização e as lutas dos chamados communards (os revoltosos da Comuna) colocaram em prática a experiência ácrata, alimentando fortemente o imaginário dos trabalhadores na concepção de um possível governo comunista. A Comuna de Paris foi um movimento popular que tomou conta da cidade durante quarenta dias. Teve início em 18 de março, com o esforço popular de enfrentar o exército alemão que marchava em direção à cidade. O exército do imperador Luís Napoleão estava sendo derrotado. Com a insurreição popular, caiu o governo de Bonaparte. O governo francês, mesmo derrotado, atacou os communards. Sem condições de retomar a cidade por si próprio, apelou ao inimigo, selando rapidamente uma paz prejudicial à França, mas derrotando finalmente os revoltosos. Execuções sumárias foram feitas e uma dura repressão se abateu sobre a população parisiense.
As referidas teorias deram envergadura para o movimento dos trabalhadores durante os séculos XIX e XX, modificando totalmente a paisagem da economia capitalista e das fábricas. Hoje, podemos dizer que, sem essas lutas, não teríamos a sociedade que conhecemos e estaríamos mais próximos das condições de existência das primeiras gerações de trabalhadores.
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Você estudou, nesta unidade, a genealogia das lutas sociais empreendidas em torno do binômio capital/trabalho, responsáveis por moldar uma parte importante da experiência sociopolítica da contemporaneidade. Viu também como essas lutas se pautaram por discussões teóricas, às vezes excludentes, e por ações práticas ao longo do século XIX.
• Leia os artigos indicados abaixo, para uma melhor compreensão comparativa da experiência dos movimentos sociais. 1. ADDOR, Carlos Augusto. A greve de 1903: primórdios do movimento operário no Rio de Janeiro. Hist. cienc. saude-Manguinhos [online]. 2007, vol.14, n.2 [cited 2010-10-14], pp. 635-639. Disponível em: http://www.scielo.br/ 2. FERRERAS, Norberto O.. A formação da sociedade Argentina contemporânea: sociedade e trabalho entre 1880 e 1920. História [online]. 2006, vol.25, n.1 [cited 2010-10-14], pp. 170-181. Disponível em: http://www.scielo.br/ 3. SCHMIDT, Benito Bisso. O Deus do progresso: a difusão do cientificismo no movimento operário gaúcho da I República. Rev. bras. Hist. [online]. 2001, vol.21, n.41 [cited 2010-10-14], pp. 113126. Disponível em: http://www.scielo.br/
• Leia e resenhe o livro “As utopias românticas”, de Elias Thomé Saliba (São Paulo: Estação Liberdade, 2003)
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Neste livro você estudou alguns aspectos de História Contemporânea. Como dissemos, eles foram fruto de escolhas teóricas e historiográficas. Revolução Francesa, Revolução Industrial, Nações e Nacionalismo e Movimentos Sociais foram fontes para discussões sobre a nossa própria
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disciplina e como devemos construir a narrativa em história. Muitas vezes, tomamos o processo histórico como natural, como se ele devesse ocorrer de qualquer maneira, a despeito das nossas vontades e intenções, ou melhor, a despeito do que fazemos. Ao fazermos a crítica desta noção, buscamos compreender que o termo “processo” é um equívoco, pois ele denota um sistema em funcionamento, e não é essa a percepção que temos da história. No lugar dessa palavra poderíamos usar outra, tomada emprestada do sociólogo Norbert Elias: configuração. Ela implica uma maior mobilidade, sem necessariamente indicar uma necessidade. Uma configuração social ou histórica nos remete às possibilidades que os próprios homens têm diante de si, portanto não nos impõe uma ideia de que o que fazemos está subordinado a um eixo de acontecimentos que nos ultrapassa. A Revolução Francesa, por exemplo, não era fatal; se ela aconteceu, não foi porque a história humana é um processo que caminha fatalmente para um fim, mas foi o resultado de várias séries acontecimentos fortuitos e que desembocaram num determinado evento. Eles não estavam determinados de antemão e muito menos foram imprescindíveis. A história, dessa forma, não é causal, mas casual. Essa foi, em grande parte, a nossa medida. Os acontecimentos que acabamos de estudar marcam somente a convenção historiográfica e não a ordem de importância, pois para os nossos destinos, muitas vezes, eventos que nem merecem destaque nos grandes livros são mais importantes do que Revoluções, pois passam e o que é mais comezinho perdura. Até a próxima.
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André Luiz Joanilho
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NOTAS SOBRE OS AUTORES
Sou Doutor em História Social pela UNESP/SP e professor associado do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina. Fiz pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Sou autor, entre outros, de Revoltas e Rebeliões (São Paulo: Contexto, 1989); História e Prática (Campinas: Mercado das Letras, 1997); O Nascimento de uma nação (Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2004) e também co-autor da coleção Hoje é dia de história (Curitiba: Positivo, 2007). Atualmente sou professor associado da Universidade Estadual de Londrina.
Cláudio Denipoti Sou Doutor em História pela UFPR, professor associado do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa e fiz pós-doutorado na Universidade de São Paulo. Autor de Páginas de prazer; a sexualidade através da leitura no início do século (Campinas: Editora da Unicamp, 1999); co-organizador, com Geraldo Pieroni, de Saberes brasileiros; ensaios sobre identidades - séculos XVI a XX (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004) e, com Clóvis Gruner, de Nas tramas da ficção; História, Literatura e Leitura (São Paulo: Ateliê Editorial, 2009).
Joanilho e Denipoti publicaram O Jogo das possibilidades; ensaios em história cultural (Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1997) e co-organizaram Leituras em história (Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2003).
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