Horácio Santos

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AS VIAGENS DO GABRIEL



H.J. SANTOS

AS VIAGENS DO GABRIEL



O conteúdo desta obra, inclusive revisão ortográfica, é de responsabilidade exclusiva do autor horaciolsantos@gmail.com



Para o Jo達o Afonso


I Gabriel sonhava conhecer o mundo. Queria viajar por todas as cidades do planeta, visitar todas as florestas e bosques, beber água num oásis de um deserto, fazer amigos em todos os lugares, jogar à bola e correr com outros meninos. Gabriel sonhava com sítios distantes, com encantadores de serpentes, com os navios que percorrem os oceanos, com montanhas que tocam os céus, com rios que correm velozes para o mar.


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Os dias do Gabriel eram passados a sonhar. Sonhava com mundos que nunca conhecera mas que um dia havia de visitar. Gabriel vivia numa casa no topo de um prédio e dali podia avistar até muito longe. Ainda assim, o mundo que avistava era pequeno para os seus sonhos. Sabia que o planeta era muito maior do que as vistas da sua janela. Sabia pelos mapas de que tanto gostava que o que via era apenas um grão de areia numa imensa praia. Sabia que havia grandes mares, países enormes, rios que atravessam esses países, ilhas com grandes florestas e muitas outras coisas que sonhava um dia visitar.

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O Gabriel vivia com os seus pais, que saiam todos os dias muito cedo para trabalhar. Como estava de férias da escola ficava com a sua avó Anastácia. No local onde vivia não havia mais meninos da sua idade e os dias eram então passados dentro de casa, na companhia da avó e do seu gato, Agapito. Passava muito tempo a conversar com a sua avó Anastácia. Ainda não era muito velhinha mas

sabia

contar

muitas

histórias

de

antigamente, que o Gabriel adorava ouvir. Um dia a avó Anastácia contou ao Gabriel que quando era mais nova, ainda andava na escola, usava um avião de papel que a levava


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para onde ela quisesse, para conhecer todos os sítios do mundo. O Gabriel nem queria acreditar no que a sua avó lhe dizia. Como é que um avião de papel podia levar a avó a conhecer todos os sítios do mundo? A avó explicou ao Gabriel que tinha um velho globo e que quando queria viajar, apontava o avião para o local para onde queria ir, fechava os olhos e zás, estava a voar para lá. O Gabriel achou que a sua avó não podia estar bem. Como é que era possível viajar num avião de papel. Nunca tinha viajado de avião mas certa vez tinha ido ao aeroporto, onde viu que os aviões eram gigantes de metal, pesados e com motores que faziam 11


muito barulho e eram muito potentes. Da sua janela via-os passar lá muito alto a viajar para terras distantes. Um avião de papel não podia sequer voar tão alto. Naquele dia não conversou mais com a avó Anastácia porque entretanto os seus pais chegaram do trabalho e o Gabriel e a avó Anastácia foram ajudar a preparar o jantar. A avó tinha pedido ao Gabriel para não dizer nada aos pais. Piscou-lhe o olho e disse: “Não digas nada a ninguém! Não deixes a magia acabar!”. O Gabriel ficou tão espantado com aquela história da avó que quase não falou durante todo o jantar. Não podia crer: um avião de


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papel podia levĂĄ-lo a conhecer os sĂ­tios mais distantes do mundo.

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II Durante o jantar o pai do Gabriel anunciou a todos: “Já não vamos a casa da avó há muito tempo. Este fim-de-semana vamos ver como estão as coisas por lá!”. O Gabriel ficou radiante. Adorava viajar e gostava muito de visitar a casa da sua avó Anastácia. A avó tinha vindo viver com eles para não ficar sozinha e depois de ela estar na casa do Gabriel, só muito raramente iam visitar a sua aldeia. O Gabriel adorava aquela aldeia e a casa da sua avó. Era uma pequena casa de pedra, no meio de uma aldeia rodeada por uma floresta


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de carvalhos e nogueiras. Ficava a meio da encosta de uma grande serra. Muito próximo da aldeia corria um ribeiro que vinha lá do alto e que trazia água tão fresca e limpa que até se podia beber. Junto da aldeia tinham construído uma represa que servia para juntar água para regar algumas terras onde os habitantes cultivavam os seus legumes. Era também na represa que os animais, cabras, ovelhas e a passarada, iam matar a sua sede. Nos dias mais quentes de verão, também o Gabriel gostava de tomar banho naquela água fresca. Já não havia muitas pessoas na aldeia. Como a sua avó Anastácia, que já era velhinha, 15


muitos dos habitantes tinham ido embora. Diziam os adultos que a vida na aldeia era muito difícil e que tinham que ir para as cidades para viverem melhor. O Gabriel não entendia isso muito bem. Ele gostava muito mais da liberdade da aldeia, dos animais, do ribeiro e da casa da sua avó do que da confusão da cidade, do barulho dos carros e das pessoas desconhecidas que não se falavam. Na aldeia era tudo muito mais simples mas os adultos é que sabiam sempre tudo. Como todos os fins-de-semana que passava na aldeia da sua avó, também este acabou muito depressa. Parecia que ainda mal tinha


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chegado e já o seu pai o mandava entrar para o carro para fazer a viagem de regresso. Já durante a viagem, olhou para a avó que ia ao seu lado no banco de trás do carro e reparou que ela levava qualquer coisa ao seu lado, num saco fechado. Esteve quase a perguntar-lhe o que era mas lembrou-se do que a avó lhe tinha dito: “não deixes a magia acabar”. Acabou por adormecer e só acordou no dia seguinte, já na sua cama, em casa.

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III Quando acordou sentiu-se um pouco perdido. Passado uns instantes lembrou-se que vinha no carro do pai de regresso da aldeia da sua avó. Devia ter adormecido e o seu pai levou-o ao colo para a cama. Também se lembrou do saco que a avó Anastácia trazia consigo. Tinha a certeza que devia ter alguma coisa a ver com a história do avião de papel e do globo. Levantou-se. Andou pela casa e não viu ninguém. Os seus pais tinham ido trabalhar e a avó devia ter saído para ir ao supermercado. Não era


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habitual o Gabriel ficar sozinho em casa mas como já era um menino crescido e muito responsável, por vezes a avó saía por breves momentos

para

ir

às

compras

ao

supermercado que ficava no rés-do-chão do prédio. Quando passou em frente à porta do quarto da avó, não resistiu a espreitar. Ficou deliciado com o que viu: na cómoda da avó estava um bonito globo antigo com uma base redonda em madeira. Aproximou-se. Apoiado na base de madeira estava um grande arco e dentro desse arco uma magnífica bola onde estavam

desenhados

os

países,

os

continentes e os mares. O globo tinha muitos 19


nomes, alguns que lhe eram estranhos e tinha desenhadas muitas linhas sobre os mares. Numa das partes inferiores tinha também uma espécie de estrela com letras nas pontas e dessa estrela saíam também muitas linhas retas em todas as direções. A bola onde estava desenhado o mundo rodava dentro do arco, segura por uma vara que lhe passava pelo interior. O Gabriel estava deliciado com a beleza do globo. Nunca se tinha sentido tão fascinado por um objeto, nem mesmo por qualquer dos seus brinquedos preferidos. Sempre teve uma grande paixão pela geografia. Era fascinado por mapas e por isso aquele globo estava a


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parecer-lhe mais do que qualquer tesouro. Seria mesmo mágico? O pequeno ainda não sabia se o globo era realmente mágico mas já estava enfeitiçado por aquela bola que lhe permitia ter o mundo nas mãos. Ao olhar para o globo, ao segurá-lo nas suas mãos, sentia-se muito grande e muito importante. A avó Anastácia regressou e foi encontrar o Gabriel a olhar para o globo com magia nos seus olhos. Rapidamente o Gabriel quase sufocou a sua avó com as mais variadas perguntas. Queria saber tudo sobre a magia que lhe permitia voar para outras paragens e

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conhecer novos lugares. A avó acalmou-o e disse que lhe iria explicar tudo. Sentaram-se no bordo da cama, com o globo entre os dois, e avó explicou ao Gabriel que o globo tinha sido deixado por um estranho viajante quando ela tinha mais ou menos a sua idade. Explicou-lhe que o globo era mágico e que bastava fazer um avião de papel, tocar com ele no ponto do globo para onde se queria ir e logo a viagem começava. A única coisa que era necessária para funcionar era acreditar. Quando se acredita muito em alguma coisa é muito mais fácil que se torne realidade.

O

viajante

desapareceu

misteriosamente deixando o globo e um


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bilhete onde se lia: “não deixes a magia acabar”. A avó ainda explicou ao Gabriel que quase todos os adultos deixavam de acreditar na magia das coisas. Quando deixavam de ser crianças começavam a dar importância a coisas que não tinham nenhuma magia e o mundo transformava-se num local pouco divertido onde as pessoas só pensam no seu trabalho e em dinheiro e deixam morrer os seus sonhos. Nessa altura, esquecem-se que vivem num mundo e que estão rodeados de muitas outras pessoas. Esquecem-se de todas as coisas maravilhosas que existem na terra e no céu e ficam prisioneiras de um mundo 23


mais feio e sem magia. Por estes motivos, não podia contar a nenhum adulto que tinha aquele globo mágico. Se contasse, o adulto certamente não iria acreditar e a magia rapidamente iria desaparecer. Também não podia usar o globo com adultos por perto. Se o tentasse fazer, a magia não iria funcionar e todos iriam achar, injustamente, que o Gabriel não andava no seu juízo perfeito. Teria que ter muito cuidado.


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IV O Gabriel ainda estava um pouco incrédulo. A sua avó deixou-o levar o globo para o seu quarto. Colocou-o em cima da sua cómoda e sentouse na cama a olhá-lo. Pensou que a sua avó Anastácia nunca o enganaria e o globo só podia mesmo ser mágico. Aproximou-se de uma pequena mesa que havia no seu quarto, onde costumava fazer os trabalhos de casa. Pegou numa folha de papel e começou a dobrar de um lado e de outro até que ficou com um lindo avião nas mãos. 25


Hesitou durante alguns segundos até que se aproximou do globo. Não sabia ao certo o que fazer mas girou o globo e como sempre quis conhecer uma ilha, influência de alguns livros de piratas que tinha lido, escolheu umas ilhas muito pequeninas, que mal se viam, no Oceano Índico. Com o bico do avião que tinha acabado de fazer apontou para as ilhas e de repente, depois de ficar envolto numa nuvem de fumo, estava a voar sobre uma praia de areias claras com um mar tão transparente que uns barcos que se viam pareciam estar a voar sobre o fundo. O seu avião de papel aterrou e, por magia certamente, voltou a ficar pequeno. Achatou-


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o pelas dobras que tinha e guardou-o no bolso. Não sabia bem como iria voltar para casa mas não se preocupou muito com isso. A magia haveria de funcionar. Olhou à sua volta e viu que um pouco adiante, entre o mar e umas palmeiras, numa pequena praia, havia um grupo de meninos a jogar à bola. Aproximou-se deles, disse-lhes olá e eles convidaram-no a juntar-se ao jogo. Brincou com eles durante algum tempo mas estava quase sempre a distrair-se a olhar para aquelas palmeiras muito altas, a sentir a areia fina e limpa nos seus pés e a admirar a transparência

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da

água.

De

uma

vez,


aproximou-se e viu um peixe enorme que parecia voar naquela água límpida. De repente prestou mais atenção aos meninos que brincavam com ele. Apesar de se estarem a divertir muito, o Gabriel achou que a cara deles não estava assim tão alegre. Apesar de rirem, pareciam ter dentro de si alguma tristeza que teimava em não passar. Os lábios sorriam mas os olhos não transmitiam alegria. Sentou-se um pouco junto de um menino que lhe disse chamar-se Abdul e perguntou-lhe por que razão pareciam estar tristes, apesar de rirem e de estarem a brincar divertidos.


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Então o menino explicou-lhe que aquela ilha onde viviam estava cada vez a ficar mais pequena. O mar chegava cada vez mais longe e havia alguns adultos que diziam que dentro de pouco tempo a ilha iria desaparecer, tal como todas as ilhas vizinhas. O Abdul não sabia ao certo o que estava a provocar aquele problema mas tinha ouvido falar em poluição que estava a fazer a terra aquecer e a fazer subir a altura do mar. O Gabriel sabia que isso era verdade. Na escola já tinham falado disso e também no seu país as praias estavam a ficar mais pequenas. Aquela ilha onde estava era quase

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plana e logo imaginou que não era preciso o mar subir muito para a engolir. Ficou também muito triste. Sabia que por os homens estarem a destruir o ambiente, o nível do mar estava a subir. Já tinha ouvido muita gente a falar sobre isso mas nunca se tinha dado conta de que se nada fosse feito, havia meninos como ele que iriam ficar sem sítio para viver. Como era possível os adultos não pensarem nestes meninos, que iam ficar sem

um

local

para

jogar

a

bola?

Provavelmente iam ser levados para uma qualquer cidade e iam ficar a viver num apartamento, sem uma praia para jogar à bola e sem um mar onde vissem os peixes e


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pudessem tomar banho. Iam ser meninos e meninas muito tristes. Era preciso que os adultos fizessem alguma coisa. Entretanto começou a chover e despediu-se do Abdul, que foi para casa. Era uma chuva que não era fria, sabia-lhe bem senti-la escorrer pelos cabelos. Foi andando até ao sítio onde tinha aterrado, sem saber como iria regressar. A chuva parou e ficou novamente calor. Era um calor que provocava sono ao Gabriel. Decidiu descansar um pouco e acabou por adormecer na areia, na sombra de uma palmeira.

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V Quando acordou estava no seu quarto, deitado na sua cama. Olhou à volta e nada de diferente viu. Lembrou-se do seu novo amigo Abdul e dos novos companheiros que jogaram com ele à bola naquela ilha maravilhosa. Teria sonhado tudo aquilo e o globo não era nada mágico? Não! Olhou para os pés descalços e viu que ainda tinham coladas algumas areias da praia. Era tudo verdade, tinha mesmo acontecido. De imediato o Gabriel começou a viajar, em pensamento, para todos os locais de que se


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conseguia lembrar. Tendo aquele globo mágico ia poder percorrer todo o mundo e conhecer todos os sítios que pudesse imaginar. Não queria ainda acreditar que tinha a sorte de poder percorrer todo o mundo. Começou logo a pensar na sua próxima viagem. Iria para outra ilha? Ia, desta vez, visitar uma floresta? Ou iria só viajar para uma qualquer cidade distante? Não conseguindo decidir para onde ir, resolveu ir em busca da sorte e apontou o seu avião de papel para o gigante Oceano Pacífico. A magia funcionou novamente e por

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entre uma nova nuvem de fumo encontrou-se a sobrevoar a imensidão do mar. Mas, ao olhar em todas as direções, ficou muito surpreendido com o que viu. Esperava uma imensidão de azul-marinho a tocar o azul-celeste, cortado por carneirinhos de espuma branca mas o que se avistava até onde os seus olhos alcançavam era um amontoado de lixo flutuante. Não podia acreditar no que viam os seus olhos. Tudo quanto era lixo flutuava naquela zona. Não avistava nenhum esguicho da respiração de uma

baleia,

toneladas

apenas de

toneladas

plástico.

Os

e

mais

minutos

transformaram-se em horas e o seu avião de


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papel continuava a sobrevoar a ilha de lixo. Não podia acreditar que o mar estivesse transformado numa imensa lixeira. Onde andariam os peixes? Provavelmente teriam fugido para bem longe daquele espetáculo horrível. O Gabriel concluiu que todo o lixo que era deixado nas praias e atirado para os rios devia vir parar aquela ilha monstruosa. Também as pessoas que viajavam em barcos deviam atirar muito lixo para o mar. Só assim era possível que o oceano estivesse tão sujo. Por entre a tristeza de ver um oceano tão sujo e o cansaço de tanto tempo com a mesma visão, o Gabriel acabou por adormecer no seu 35


avião, talvez mais de tristeza do que de cansaço.


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VI Estava novamente deitado na sua cama quando acordou de mais esta aventura. Não queria ainda acreditar na quantidade enorme de lixo que flutuava no oceano. Como era possível que as pessoas não respeitassem a natureza? Como era possível que as pessoas não respeitassem o planeta em que vivem? Saiu da cama e andou pela casa à procura da sua avó Anastácia. Queria falar com ela e contar-lhe tudo o que tinha visto. Certamente que iria ficar surpreendida e preocupada ao saber que o estado em que o mundo está. 37


Espreitou pela porta do quarto da avó e viu que ela ainda dormia. Não a querendo acordar, voltou para o seu quarto e tentou distrair-se com alguns brinquedos. Não conseguiu! A sua apreensão era grande quando se voltou a aproximar do globo. Os pensamentos iam passando pela sua cabeça até que se decidiu a fazer outra viagem. Farto de más visões tentou escolher um local que fosse bonito e simpático e onde o ambiente fosse respeitado. As cores do globo davam a entender que existiam locais repletos de florestas e esses sítios deviam ser bastante bonitos, com muito verde, muitos pássaros e outros animais que se deviam ouvir numa


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agradável sinfonia. Mais uma vez pegou no seu avião de papel, tocou no ponto do globo para onde pretendia ser transportado e, por entre nuvens de fumo, deu por si a voar sobre um local que, ao contrário do que pretendia, não se assemelhava a uma floresta. Havia pelo chão muitos restos de ramos e folhagens já secas. Nos caminhos via marcas de grandes pneus e alguns lamaçais e logo imaginou que houve grandes camiões ou máquinas que por ali andaram. Avistou ao fundo o que lhe pareceu ser uma aldeia e inclinou-se no seu avião em direção a ela, pousando próximo das casas.

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Deambulou um pouco por ali, por entre alguns tocos enormes que outrora terão sido altas árvores. Havia um grande silêncio no ar, nada de animais, nada de aves coloridas e barulhentas. Muito ao longe pareceu-lhe ouvir sons de motores, não sabia se de camiões ou de outras máquinas. Mais perto, distinguiu o som de alguém a chorar, de alguém que não devia ser mais velho do que ele. Aproximouse e viu um menino sentado num toco do que havia sido uma árvore, com a cabeça entre os punhos.

Aproximou-se

do

menino

e

perguntou-lhe por que chorava embora no seu íntimo já soubesse a razão. O menino


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devia estar a chorar porque a floresta à volta da sua aldeia estava destruída. Foi isso mesmo que o menino lhe disse. Agora que a floresta estava destruída, não tinha árvores para brincar, já não se ouviam os sons dos animas e, pior do que tudo isso, não havia frutos para colher e comer. Os adultos da aldeia tinham que ir cada vez mais longe para encontrar alimentos e ficavam vários dias longe das suas casas. Os animais que caçavam para

se

alimentarem

tinham

também

desaparecido em busca de novas florestas onde pudessem sobreviver. Até mesmo os peixes desapareceram para procurar outras partes do rio onde houvesse sombras e onde 41


os seus alimentos continuassem a cair das árvores. A vida na aldeia era agora mais difícil. Longe do seu pai, que tinha partido em busca de alimentos e longe da floresta que lhe proporcionava muitas brincadeiras e alegrias, a tristeza estava marcada no rosto do menino. Chamava-se Raoni, que significava chefe e grande

guerreiro,

mas

sentia-se

muito

pequeno e indefeso. O Gabriel não conseguia entender por que motivo a floresta tinha sido destruída. Imaginou a aldeia da sua avó e como seria ela sem os seus bosques de castanheiros, sem a frescura das sombras e sem o chilrear dos


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pássaros que matavam a sua sede no ribeiro. Era como se o mundo perdesse o sentido, como se as coisas deixassem de ter razão para existir. Sem forças para conseguir confortar o seu novo amigo Raoni, afastou-se da aldeia pensando em como o mundo era injusto e nas razões que levavam os adultos a destruir florestas, a encher o mar de lixo e a destruir o clima ao ponto de deixar crianças sem sítio para viver. Sentou-se na margem de um pequeno charco sem vida fechando os olhos para rapidamente voltar para o seu quarto e esquecer as viagens que tinha feito e que lhe tinham revelado um 43


mundo muito diferente daquele que tinha imaginado.


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VII Mais uma vez acordou na sua cama. Estava muito triste. A surpresa de ter um globo mรกgico e poder viajar para todo o mundo estava a tornar-se num pesadelo. Para onde ia apenas encontrava coisas feias e mรกs e pessoas infelizes. A sua vontade de conhecer o mundo estava a desaparecer debaixo da tristeza que as suas primeiras viagens lhe tinham transmitido. Iria tentar mais uma vez. Iria escolher uma grande cidade na esperanรงa de que a

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civilização

lhe

proporcionasse

uma

experiência diferente das anteriores. Estava enganado. Ao aproximar-se da grande cidade ainda pensou estar perante uma imagem do topo dos altos prédios a espreitarem sobre o nevoeiro mas o facto é que se tratava de um fumo castanho que dificultava a respiração. Afinal, a suposta civilização também não era exemplar

em

cuidar

do

ambiente

e

proporcionar boas condições de vida às pessoas. Debaixo daquele manto de névoa castanha a vida das pessoas devia ser muito difícil. Não imaginava que fosse possível, por


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exemplo, jogar à bola no parque sem ficar com falta de ar. Não conseguia fazer descer o seu avião para se aproximar da superfície tal era a densidade da névoa. Imaginou que aquela poluição fosse provocada

pelo

trânsito

incessante

de

automóveis e de fábricas que não tinham os devidos cuidados com os seus resíduos. Não ia conseguir pousar para fazer amizade e brincar com os meninos daquela cidade. Assim,

afastou-se

sentido

pena

dos

habitantes daquela cidade que se deviam sentir fechados sobre aquele espesso manto, imaginando que devia mesmo ser difícil ver o sol. 47


Despediu-se daquela cidade e viajou em direção ao pôr-do-sol, um pôr-do-sol que, tendo-se afastado daquele terrível nevoeiro, mostrou a sua beleza num esplendoroso espetáculo. Adormeceu enquanto pensava na tristeza das pessoas daquela cidade que se viam privadas de um espetáculo magnífico.


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VII Bateram à porta. O Gabriel não ligou pois normalmente era a sua avó que costumava abrir. Mas, bateram novamente. Estranhando que a sua avó não tenha ido abrir a porta, procurou-a pela casa. Não a encontrando, foi perguntar quem batia. Não obteve resposta. Ainda assim e contrariando tudo o que lhe tinham ensinado, sentiu que era seguro abrir a porta. Mais do que seguro, de alguma forma estranha sentiu que tinha que abrir a porta. Era como se soubesse que algo importante o aguardava do outro lado. 49


Abriu. Ao ver quem estava do outro lado, não podia ter ficado mais surpreendido. Alguém vestido com uma longa capa castanha com capuz a fazer lembrar as vestes dos monges. Mal dava para ver as feições mas notava-se que era alguém já com alguma idade. Apoiava-se num longo bordão, meio tosco, usando a sua mão direita. O bordão chegavalhe mais ou menos à altura dos olhos. Num dos dedos da mão que segurava o Bordão, o Gabriel reparou num anel com uma pedra do azul mais bonito que alguma vez tinha visto. Por momentos não conseguiu deixar de fitar o anel, ficando sem palavras. Fitando o anel, apercebeu-se que havia nele movimentos.


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Algo que se assemelhava a nuvens parecia, de vez em quando, cobrir o azul do anel, sem contudo lhe retirar o brilho. O velho interrompeu os pensamentos do Gabriel: - Posso entrar Gabriel? - Sim. – respondeu o Gabriel. Quem és? – perguntou entretanto. - Sou um amigo, o dono do globo que tens no teu quarto. Podemos lá ir vê-lo? O Gabriel respondeu que sim. Dirigiram-se para o quarto. O estranho sentou-se numa cadeira e o Gabriel na borda da cama. Sem deixar o Gabriel fazer mais perguntas, o velho começou a falar:

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- Chamo-me Baltazar e sou o guardião do globo que tens sobre a tua mesa. Como já viste o globo permite que tu viajes para os sítios que quiseres. O velho Baltazar falava de uma forma muito tranquila, com uma voz que parecia ter música. Continuou: -

Sei

que

ficaste

muito desiludido e

preocupado com as viagens que fizeste. Infelizmente, os homens não têm tratado o mundo como seria de esperar e há muitas pessoas a sofrer com isso. O anel continuava a brilhar com um azul que quase hipnotizava atravessado por nuvens de um branco imaculado. Baltazar prosseguiu:


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- Em tempos deixei o globo à tua avó Anastácia. O globo só pode ficar com pessoas que sejam boas e acreditem na sua magia. A tua avó sempre acreditou e tu também acreditas. Por isso deixei que o globo passasse para ti. O velho Baltazar continuava a falar de uma maneira que parecia impedir o Gabriel de responder, apenas o deixava ouvir: - Nas tuas viagens viste coisas más mas agora preciso que continues a acreditar na magia. Mais do que viajar, a magia permite que se continue a sonhar com um mundo melhor. Ainda é possível tornar o mundo numa casa

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que abrigue todas as pessoas e onde todos possam ser felizes. O velho continuava: - A magia não é voar para onde queres. A magia é acreditares que podes fazer algo para tornar o mundo melhor. Magia é lutares para mudar as coisas que estão erradas. Magia é fazeres o que é correto apesar de às vezes não ser o mais fácil. O velho levantou-se e preparou-se para sair deixando ao Gabriel um último conselho: - Eu sei que tu acreditas. Sei que tens a magia dentro de ti e vais passá-la a outros meninos e meninas e fazer com que o mundo seja um lugar melhor.


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Antes de sair, Baltazar virou-se uma última vez para o Gabriel que olhava para o anel de azul brilhante e disse: - Não deixes a magia acabar! O Gabriel ficou a olhar para a porta que se tinha acabado de fechar refletindo no que o velho lhe tinha acabado de dizer. Sabia agora que sempre iria haver pessoas a maltratar o mundo e as outras pessoas mas o importante é acreditar sempre que o mundo pode ser um lugar melhor e fazer o que estiver ao nosso alcance para o tornar melhor. Essa é a verdadeira magia. O Gabriel ficou decidido a não mais parar de viajar e a tentar sempre tornar o mundo um 55


melhor lugar para viver, certo de iria conhecer muitos sĂ­tios maravilhosos.

FIM


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