Intolerância a moradores de rua

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A realidade das rua é dura. Sujeitos a todo tipo de vulnerabilidade, pessoas que vivem neste cntexto social enfrentam diariamente obstáculos para sua sobrevivência. Diante de crises financeiras, perda de referência familiar, dificuldades de arrumar emprego e até mesmo alguma dependência química, muitas pessoas acabam procurando a rua como refúgio. Estima-se que cerca 1,8 milhões de pessoas estejam em situação de rua de acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2012. É nesta realidade rodeada de preconceito, intolerância e discriminação que vive Ricardo, que atende pelo nome de “Richele Ketelen” na rua. Aos 29 anos, ele conta que vem de família humilde, saiu de casa aos sete anos de idade e começou a vida nas ruas. Negro e homossexual, ele logo fala da dificuldade que enfrenta em seu dia a dia. “O povo tem muito preconceito, já fui atropelado 2 vezes por ser morador de rua. ”

Esquecidos, discriminados e invisíveis Cresce a cada dia o número de pessoas em sitação de rua, um lugar hostil, propício a diversos tipos de vulnerabilidade e que nega os direitos básicos da dignidade humana. Marisla Mendes, Silvana Sousa e Darciane Diogo

Diante de todo o cenário das ruas, o morador acabou caindo também no uso das drogas. Ricardo afirma que a solidão e a revolta foram os principais motivos que o levaram a se envolver com as substâncias ilícitas. “O jeito é usar drogas, para esquecer os problemas”, afirma Ricardo. A psicóloga Mirella Imbroisi, especialista em assistência social, explica que a invisibilidade e a intolerância acabam influenciando nos moradores de rua para o uso de drogas e o apareci-

“Se tem um morador de rua na sua comunidade, não é ele que está adoecido e sim a comunidade que precisa de cuidados, o problema é nosso”. mento de doenças como a depressão. “Vemos alterações no comportamento muito severas em alguns, qualquer um de nós que fosse destratado ou invisível para toda uma sociedade, possivelmente adoeceria”, afirmou. Assim como Ricardo, Alex de Sousa, de 32 anos também sofre preconceitos por estar em situação de rua e diz que os casos são frequentes. “Certa vez, estava passando em frente ao ‘Bar

da Boa’, que fica ali em Taguatinga Sul. Eu estava revirando o lixo, procurando comida, quando dois homens me empurraram, rasgaram minhas roupas, e até me apontaram uma faca, tudo isso gratuito, apenas por eu ser morador de rua”.

Origens do preconceito

▶Morador de rua que frequenta do Centro Pop de Brasília.

A psicóloga Mirella Imbroisi afirma que, no caso específico de moradores de rua, há uma predisposição da sociedade em trata-los com discriminação e intolerância – sem que haja a intenção de reinseri-los socialmente. “Eu que trabalho com essa população, eu não vejo contextos onde haja uma permissibilidade maior a esse público”, disse. Ela afirma também que os estereótipos podem influenciar no surgimento de atitudes intolerantes. “Nossa cultura é totalmente relacionada ao belo, então isso colabora para criar esse afastamento.” Para estabelecer uma relação em que o cidadão comece a olhar para o morador de rua de outra forma, a psicóloga alerta que a mudança tem que partir da sociedade. “Se tem um morador de rua na sua comunidade, não é ele que está adoecido e sim a comunidade que precisa de cuidados, o problema é nosso”. “Para evitar atitudes preconceituosas, você deve evitar o distanciamento do próximo, ver o outro como sujeito. Então, se você quer dar o primeiro passo, seria o primeiro contato”, completa a psicóloga como uma instrução para diminuir o preconceito.


Responsabilidade do Estado Uma das grandes questões levantadas quando se trata da situação dos moradores de rua é sobre quem é responsável por estas pessoas. A situação de rua é uma violação grave dos Direito Humanos, devido ao fato deles não possuírem moradia, meios de subsistência, e pouco ou nenhum acesso às suas necessidades básicas. Sendo assim, no Estado democrático de direito, fundamentado na dignidade da pessoa humana, a existência de tantas pessoas nesta situação revela uma complexa desigualdade social. A legislação brasileira prevê que é responsabilidade do Estado acionar políticas para reduzir o problema, como descrito no artigo 3ª da Constituição: “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. No Brasil, existem alguns mecanismos, como a Lei de nº 5.924, que dispõe sobre a criação do Programa Especial de Ressocialização dos Moradores de Ruas. Sancionada em setembro de 2011, ela prevê a promoção de direitos civis, políticos e econômicos, sociais, culturais e ambientais, além de assegurar o acesso amplo aos serviços e programas que integram as políticas públicas como saúde, educação e trabalho – e a contagem oficial da pessoa em situação de rua. Numa tentativa de cumprir a lei, o governo federal criou os chamados Centros POP, que fazem parte do SUAS (Sistema Único de Assistência Social), tendo como principal objetivo da unidade oferecer serviços básicos, como espaço de higienização, banheiros e alimentação e, principalmente facilitar, o acesso do morador de rua a políticas públicas. “Um dos principais objetivos do Centro é incluir o sujeito em um acompanhamento, pois é um espaço multidisciplinar. Dispomos de psicólogos, médicos e assistentes sociais. Ao fazer esse acompanhamento, nós auxiliamos o sujeito a redesenhar um novo projeto de vida, tendo como base a superação e saída da situação de rua. Mas se mesmo assim, o morador desejar permanecer na rua, nosso papel é que mesmo nesta situação ele tenha uma qualidade de vida melhor”, afirma Luan Grisolia, responsável pela unidade do Centro POP em Brasília.

▶ Alex acabou na realidade das ruas após uma grave crise finaceira Apesar das políticas públicas existirem, elas ainda são insuficientes para atender toda a população de rua do Brasil. Alex, morador citado no início da reportagem, diz haver ainda muita negligência por parte de Estado. “Os benefícios sociais não chegam a todos nós, pois a lista de espera é grande demais, estou esperando desde o ano passado por um auxílio aluguel, para que eu possa sair dessa situação e arrumar um emprego, mas não consigo”.

O diretor responsável pelo centro acha que o melhor caminho para que a questão dos moradores de rua melhore no Brasil é o da inclusão, e não o da “higienização”, como foi adotado, por exemplo, nas Olimpíadas de 2016, onde a prefeitura do Rio de Janeiro tirou os morados das regiões centrais da cidade, com o objetivo de deixar o ambiente mais “agradável” para as pessoas que frequentariam a cidade durante os jogos. “A gente é contra a ideia de higienização, de você limpar a cidade como se os seres humanos fossem sujeira. Estamos discutindo agora com o pessoal que deseja fazer a modernização do setor comercial sul, mostrando que é possível fazer uma modernização, deixar um lugar mais bonito, sem excluir essas pessoas. Por exemplo: precisa fazer a manutenção dos jardins, por que não pensar em incluir essas pessoas para estarem fazendo essas manutenções? Mas é claro que a nossa população ainda lida de maneira

preconceituosa com a questão do morador de rua.” Alex reclama que não existe uma política de ressocialização efetiva. “Eu vejo um descaso do governo, de não ter um lugar onde a gente possa ficar mesmo, repousar. Eles poderiam dar um curso de capacitação, aqui mesmo no centro, não deixar a gente desocupado, sabe? O governo acha que chegar aqui, dar comida, e assistir televisão, está ótimo em termos sociais, mas nem todos nós queremos isso”. O morador disse ainda que, muitas vezes, por falta dessas oportunidades, as pessoas acabam se acomodando na situação de rua, pois se acostumam com a comida certa todo dia no centro, e com as es-

“A gente é contra a ideia de higienização, de você limpar a cidade como se os seres humanos fossem sujeira.” molas que ganham na rua vigiando carros. O responsável pelo centro conclui que “quanto mais a sociedade for lidando com a questão das pessoas em situação de maneira mais humana, mais fácil vai ser enfrentar esse problema”. Ele afirma ainda que “somos uma sociedade, onde nós fazermos parte e nós a construímos, então temos alguma reponsabilidade nisso.”


Movimento Nacional da População de Rua (MNPR)

Com o objetivo dar voz e lutar pelos direitos da população de rua, o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) começou com pequenas manifestações em diversas cidades brasileiras apoiadas por organizações sociais. Apesar das mobilizações realizadas terem ganhado força nos anos 2000, o movimento se consolidou apenas em 2004, após o episódio conhecido como “Massacre da Sé”, em que sete moradores de ruas foram assassinados a golpes na cabeça enquanto dormiam na Praça da Sé, localizada na região Central da Capital Paulista, com vários atos de violência semelhantes em vários pontos do país. O movimento conta hoje com conquistas como a Pesquisa Nacional de Contagem da População de Rua, o Decreto Presidencial nº 7053, de 2009, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua, além do Projeto de Capacitação e Fortalecimento dos moradores de rua. O MNPR conquistou ainda espaço em importantes instâncias de participação e deliberação política, como Conferências e Conselhos da Saúde e Assistência Social, tendo assim mais força para cumprir seus objetivos iniciais.

▶Apesar da dura realidade das ruas, José não deixa de sonhar, seu maior desejo é ter uma família.

“Não deixarei a intolerância vencer” Com uma visão de futuro e várias metas a traçar, o morador de rua José(que não teve o sobrenome identificado), de apenas 22 anos, enfrenta uma dificuldade ainda maior: além de não ter moradia, ele é portador de deficiência física que o obriga a andar de cadeira de rodas. Segundo o IBGE, mais de 45 milhões de brasileiros (23,9% da população) possuem algum tipo de deficiência física no Brasil. Esses dados revelam que o país ainda carece de políticas públicas para garantir acessibilidade a quem usa cadeira de rodas. Nascido em São Paulo, José foi abandonado pelos pais e frequentou um orfanato até os 18 anos de idade, mas após este período teve de abandonar o local por ser de maior de idade. Foi quando começou a se deparar com grandes dificuldades de preconceito e intolerância. “As pes-

soas são muito maldosas, por eu ser cadeirante e praticamente morador de rua, é muito difícil, já fui xingado”, declara José. Com a cabeça erguida, diz não se importar com o que a sociedade fala, e afirma não se considerar alguém diferente dos demais. “Não me considero um deficiênte, sou igual a todos, e sou feliz.” José frequenta o Centro POP e acha que o auxílio recebido no local pode lhe ajudar em futuras oportunidades de vida. “O Centro tem me ajudado muito, sem eles eu não conseguiria um lugar para ficar”. Frequentador de um albergue, José ainda pretende ir atrás de uma bolsa aluguel, e o seu maior sonho é poder arrumar um emprego e ter sua própria família. O morador de rua deixa seu recado para toda a sociedade: “não dê esmola, dê uma oportunidade”.


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