História da oftalmologia portuguesa

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BOLETIM DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE OFTALMOLOGIA

História da Oftalmologia Portuguesa (SÉCULO XVII) (Continuação do capitulo publicado no número do BOLETIM)

Por AUGUSTO DA SILVA CARVALHO

I Clínicos de doença de olhos e cirurgiões ambulantes estrangeiros. Oftalmologistas do Hospital de Todos-os-Santos. A primeira notícia sôbre hemeralopia. Aos curandeiros com licença de tratar de doenças de olhos e cirurgiões ambulantes, a que nos referimos no capítulo anterior juntamos os seguintes. É de 10 de Março de 1456 a carta régia assinada em Evora, dando licença para obrar da arte e cura que pertence à enfermidade dos olhos, a Ruy Gonçalves, morador em Lisboa1. A 20 de Janeiro de 1523 Maria Lopes, que residia na côrte e que o físico e cirurgião mór do reino, Dr. Mestre Gil achou «auta e soficiente para usar da dita doemça dolhos» teve carta2 de D. João III, que lhe dava «lugar e licença que ela posa curar de toda doemça dolhos e pôr vemtosa pôr sedenho por todos nossos Reinos e senhorios». 1 2

Chancelaria de D. Afonso.V. L. 13, fl. 179. Chancelaria de D. João III. L. 3, fl. 106.


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A especialidade conservou-se na família, porque a sua filha Isabel Mendes, o mesmo monarca passar carta,1 assinada em Almeirim a 27 de Dezembro de 1543, de quem se diz: «…avemdo eu respeito e emformação que me ho marques de Villa Real, meu muito amado e prezado primo, deu de Isabel Mendez, filha de Maria Lopez, de como era auta e suficiente pera curar de doemça dolhos por ter curado o dito marques e seus filhos e outras pesoas de sua casa, e por a dita sua may ter carta per ho dito meu sorlogiao moor pera curar da dita doemça e amtes do seu falecimento lhe emsynar como avia de curar, ey por bem e me praz lhe daar lugar e licemça pera que ella posa curar da dita doemça dolhos e pôr ventosas e sedenho…» André de Resende num manuscrito2 que deixou, conta que ouve um «João Freire de Andrada, natural de Beja, homem bem assombrado, de olhos formosos e claros, mas um tanto saídos para fora, que via a melhor obstrução interna nos olhos alheios e por isso se tornou excelentíssimo operador de cataratas». Outra maravilha dêsse tempo. Miguel Tavares, filho de Pedro de Alcáçova, o secretario e conselheiro del-rei. D. Sebastião e neto de António Carneiro, o escrivão da puridade de D. Manoel, nasceu cego e formou-se em Medicina. Seu irmão também era cego de nascença e foi em religião fr. António Carneiro franciscano3. No fim dêste século e princípio do seguinte continuaram a afluir a Portugal os especialistas de enfermidades de olhos. Filipe Franco era tudesco e chegado a Lisboa, depois de examinado pelo Dr. Ambrósio Nunes, obteve licença a 22 de Junho de 1596 para curar doenças cirúrgicas e particularmente carnosidades, quebraduras, pedra da bexiga, cataratas e mal de olhos, chagas abertas, fontes e todos os mais casos de cirurgia4. 1

Chancelaria de D. João III. L. 6, fl. 26. Fr. Manoel Teixeira de Azevedo. Correcção de Abusos, v. 2, pag. 32. 3 António Cordeiro. História Insulana das Ilhas a Portugal sujeitas no Oceano Ocidental. 4 Ementas. L.6 no A. N. da T. do T. 2


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O especialista em oftalmologia do Hospital de Todos-os-Santos, do qual contámos1 as denuncias que fêz ao Santo Ofício em 1597 por Gaspar Monteiro Rebelo, cirurgião catarateiro, natural do Peso, perto de Lamego, casado com Isabel da Silva, que viera para Lisboa e se hospedara em casa de João Fernandes de Lacerna, meirinho da Inquisição. Disse que aquêle era cristão novo2, morava nas casas do Hospital e por vêzes dizia aos clientes – se vos eu faço o que Deus não faz. Em 1601 ainda estava em Lisboa, porque a 11 de Julho fo uma das numerosas testemunhas dos casamentos dos escravos pretos da freguesia de S. Sebastião da Mouraria. No registo paroquial que esta cerimónia se refere, é designado por Gaspar Monteiro de Rebelo das cataratas3. Eugénio Agoado de Salasar, que suponho espanhol, «cirurgião de cataratas e tirar pedras» do Hospital de Todos-os-Santos,4 por despacho de 2 de Julho de 1615 poude cobrar da fazenda dêste estabelecimento dois mil reis por cada pessoa que operasse de catarata dentro ou fóra do Hospital, só recebendo esta remuneração quando o doente ficava curado, obrigando-se êle a assistir nesta cidade quatro meses a partir daquela data. Mas a 4 de Novembro de 1621 ainda continuava no Hospital, porque nêsse dia se determinou que daí em diante recebesse apenas 1600 reis por cada cura e que por conta das antigas se lhe pagasse a sessenta e cinco reales, o que perfazia quatrocentos e quarenta e sete mil reis, quantia que recebeu. Jacomo de Sousa era natural de Messina, no reino da Sicília, filho do conde Paulo de Sousa e cirurgião especializado no tratamento 1

História da Oftalmologia Portuguesa até ao fim do século XVI, pág. 19-21. António Baião – A Inquisição em Portugal e Brasil. Sendo cristão novo e filho de mestre Luis, falta averiguar quem foi este. De todos os que tinham este nome no último quartel no século XVI, só encontramos dois, de que se possa suspeitar esta paternidade. Um era Mestre Luís, «turco de nação, médico aprovado e autor duma receita para tôda a doença interior (Mesinhas e Remédios de Segredo, p. 8) composta de salsaparrilha, sene, funcho, e sandalo. O outro era Mestre Luís, cristão novo, natural de Faro e filho de Diogo Fernandes e Guiomar Dias, que foi cirurgião na sua terra. Era irmão de Manuel Dias e Diogo Fernandes e tio de Mestre Diogo, ambos cirurgiões naquela cidade, os três cirurgiões em Faro e tio Baltasar Nunes, médico em Lisboa. Êste Mestre Luís é o que tem mais probabilidades de ser o pai de Luís Teles (Processo da Inquisição de Lisboa, n.º 3480) no A. N. da T. de T. 3 Prestage e Pedro de Azevedo. Registo da Freguesia da Sé, v. 2, p. 319. 4 Registo Geral. L. 2, fl. 105 no Arquivo dos Hospitais civis. 2


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de cataratas e todas as outras doenças de olhos. Vindo para Portugal foi examinado perante o Cirurgião Mor do Reino Pedro de Barros Pinto pelos cirurgiões da cidade de Coimbra Gonçalo Dias e António Ferreira e teve carta de cirurgia a 25 de Outubro de 16111. Nos escritos dos portugueses quer no século XVI percorreram longas terras, encontram-se várias referências de doenças de olhos que observaram ou durante as viagens por mar ou nas costas da Africa, Asia e América. O depoimento mais interessante a tal respeito foi dado por fr. João dos Santos, da ordem dos pregadores, que no último quartel do século XVI e primeiro do seguinte tantos serviços prestou em Moçambique e noutras partes onde exerceu os seus apostólicos ministérios, vindo a morrer em Gôa em 1622. Dá-nos êle notícia da hemerologia que grassava endemicamente na costa da Africa, no seu livro Ethiopia Oriental e varia história de cousas notáveis do Oriente, cuja primeira edição é de 1611. Dizia assim: 2 «Outro género de doença há sòmente em Moçambique, que vem a muitas pessoas sem se saber de que procede, a qual é, privar da vista de noute, não sòmente a portugueses, mas também a cafres, sem lhe causar dôr nem pena alguma, mais que a de não poderem vêr de noite; e esta cegueira lhe começa desde que se põe o sol até que torne a nascer, no qual tempo nenhuma cousa veem, ainda que faça muito grande luar e tão cegos ficam como se o fossem de nascença. Mas tanto que o sol nasce, logo tornam a ver muito bem e todo o dia vem, inda que o sol ande encoberto. «Dizem alguns, que os fígados de cação assados nas brasas e comidos são remédio com que se tira êste mal. Outros dizem que lavando os olhos com água dos bebedouros das pombas também saram. Outros afirmam que todo o que tiver êste mal, se se fôr de Moçambique para outra qualquer terra, também se lhe tirará e verá de noite como dantes».

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Chancelaria de Filipe II. L. 21. P. 304 da edição de 1891.


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A nictalopia foi estudada pelo médico inglês Guilherme Herberden em 1767, estudo publicado nas Medical Transactiou do ano seguinte. Século e meio antes aquêle religioso não só descrevia o sindroma, mas também mencionava a terapeutica conveniente e ainda o facto de a doença se curar pela simples mudança de habitat. Também é muito notável a informação, de que a endemia não só atacava europeus, mas também os indígenas. Não refere fr. João, que algum dos seus companheiros missioniarios sofresse da moléstia, o que bem se pode explicar pela diferença de alimentação, que os pusesse ao abrigo da avitaminose, causa daquela perturbação visual.

II Opinião e praticas de João Bravo Chamiço, Monlalto, Rodrigo da Fonseca, Zacuto, Morato Roma, Rodrigues de Castro, António Ferreira, Curvo Semmedo e Carlos Villet. Vejamos agora o que sobre a matéria que nos interessa, disseram os tratadistas portugueses dêste tempo. Manuel de Abreu, que ensinou medicina em Coimbra na primeira metade do século XVIII, deixou entre outros manuscritos um Tractatus de Ophtalmia, que se perdeu.1 No livro de João Bravo Chamiço De medendis corpovis malis per manualem operationem não se encontra matéria digna de registo para a história da Oftalmologia. Quási que só trata das feridas dos olhos e das conjuntivites e nestes capítulos repete apenas o pouco que se encontrava nos tratados do século anterior, de maneira que nada se aproveita de novo sôbre a etiológia, patologia e terapêutica ocular.

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Biblioteca Lusitana, v. III.


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Já não acontece o mesmo aos autores que se lhe seguiram. A ordem cronológica dos seus escritos mostra-nos em primeiro lugar um médico beirão, de vida aventurosa a mais não poder ser, cuja biografia completa reservamos para ocasião oportuna. Era o famoso Filipe Rodrigues Montalto,1 natural de Castelo Branco, que se estabeleceu em Lisboa (morava no largo de S. Domingos, e fugindo à Inquisição foi para Itália, onde adquiriu grande nome, a ponto de ser convidado para ensinar nas universidades de Bolonha, Padua, Pisa e Messina e que foi chamado pela rainha de França, Maria de Medicis, a-pesar-de lhe ter declarado que só aceitaria o convite se pudesse em França continuar a professar a sua religião, ao que aquela princesa acedeu, diz-se, depois de ter obtido a licença do Soberano Pontífice. Publicou uma obra oferecida ao príncipe Cosme de Medicis, intitulada Philippe Montalto Lusitani Medicinœ Doctoris Óptica/Intra Philosophiœ, ε Medicinœ aream, De visu, de visus organo, ε objecto theoriam accurate complectens – Florença, 1606 (dez anos antes de morrer). Consta dos cinco capítulos seguintes; In Quo agitur De visus Prœstantia deq: oculifabrica, et natura. De loco, in quo Visio perficitur, ε de modo, quo visiva facultas operatur, de que primo ipsius organo. De usu particularum omninm primo visus organus obsrvantium. De coloribus oculorum. De visus objecto (de triplici corporum differentia fluido, diapho ε opaco. Visus item objectum generatin expliçatur). É um tratado de Anatomia e Fisiologia do aparelho visual, seguido das idéas ao tempo correntes sôbre a Fíisica da luz. É certo que dois anos antes em Francfort saïra o livro de Kepler Ad Vitellionem, Paralipomena, que era um tratado da visão, em que se demonstrava que a retina é a parte essencial desta função e que a convergencia dos raios visuais antes de alcançarem a retina é a causa da miopia. Arauzi já em 1587 demonstrara a reversão da imagem projetada na retina da vaca. Mas êstes trabalhos podiam ser ignorados por Montalto. Só muitos anos depois, em 1619 o astronomo jesuita Scheiner no Oculus precisou melhor a forma como se formam as imagens na retina, expôs as modificações de curvatura do cristalino 1

Usou outros nomes, como Elias, Philateo, Elianio, etc.


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por efeito da acomodação e vulgarisou a experiência da forquilha oca, que tem o seu nome. Descartes na sua Dioptrica em 1636, tratando da acomodação do ôlho às diferentes distâncias, explicou-a pela variação da curvatura das lentes que os raios luminosos atravessam; muito mais anterior a estas descobertas, Montalto teve o merecimento de ser o primeiro tratadista do nosso país, que compreendeu esta matéria e por isso merece logar distinto na História da Oftalmologia Portuguesa. E maior valor teria, se não desconhecesse o livro espanhol a que adiante faremos referência. O livro de Montalto foi desconhecido por muito tempo no nosso país, assim se explica que os que escreveram sôbre o mesmo assunto em portugues, se mostrassem tão ignorantes da Anatomia do ôlho e da Fisilogia da visão. Rodrigo da Fonseca1 refere a observação duma mulher, que pelo abalo produzido pela morte do marido teve a suspensão dos menstruos e chorou tanto, que lhe sobreveiu uma conjuntivite muito dolorosa e rebelde ao tratamento. Aquêle insigne professor proibiu-lhe o vinho e aconselhou-lhe a água fervida com cinamomo. Com a intenção de restabelecer o fluxo menstrual prescreveu-lhe laxantes e sangrias pequenas, mas repetidas, ventosas na região pubica e nos membros inferiores, banhos quentes aos pés e fumigações de ervas aromaticas dirigidas ao utero por um tubo introduzido na vagina. Ao mesmo tempo submeteu-se a banhos de chuva mornos e gerais. Aplicava-lhe nos olhos esponjas embebidas em cozimentos de macela, rosas e malvas e o colirio branco de Rasis, composto de leite de mulher e opio e mais tarde outro com água de rosas e um sal de antimónio. A própósito do caso dum alemão de noventa anos, que apresentava uma catarata do tamanho dum grão de milho, expõe a doutrina humoral corrente sôbre a origem desta doença, considera as suas causas mais freqüentes, as vigilias, os cuidados e o abuso da leitura. Celebra o famoso belga Martim Rolando da cidade de Flessinghen, autor duma água antioftalmica, que não só curava as oftalmias, mas também as cataratas confirmadas. Era composta de croci metallorum, água de celidonia e devia ser aplicada na dose de 1

Consultationes Médica, v. I, cons. XVIII e XIX.


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três a quatro gôtas. E êle próprio a experimentou com bom resultado numa deminuição da vista que o perseguiu durante meses. Julgava também muito proveitoso um colírio preparado com antimonio queimado com mel e apagado com soro de leite e depois reduzido a pó impalpavel, aplicado com água de celidonia às gôtas. Termina êste capítulo louvando muito o tratamento pelo mercúrio vivo, não só nos galicados, mas também nos que o não são. Refere também um caso de fistula lacrimal,1 resultante de dacriocistite manifestada num homem de 25 anos. Preconisa em casos dêstes a dilatação do canal e a sua cauterisação por um estilete aquecido. É voz corrente que o parisiense Pedro Brisseau foi quem de 1706 a 1708 publicou os primeiros trabalhos demonstrativos de que a catarata é constituída pela opacidade do cristalino. Ora Rodrigo da Fonseca na observação dum velho de sessenta anos com catarata, depois de referir os sintomas observados escreveu:2 «Locus vero particularis oculi, qui afficitur, est tenuis humor, qui occupat spatium totum inter pupilllam, seu vueam, cristallinum humorem», isto é, verdadeiramente o logar próprio de ôlho, que é afectado, é o humor ternue que ocupa todo o espaço da pupila, ou úvea, e o humor cristalino. Pois isto foi publicado em 1625 e escrito quatro anos mais cedo, como se vê pela dedicatória da obra, cêrca de oitenta anos antes dos escritos de Pedro Brisseau. Zacuto na sua Praxis Médica Admiranda traz as seguintes observações da sua clínica.

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Consultationes, v. 2, p. 56. Nouvelles observatons sur la cataracte – Torunay, 1706 Int. 12. E Suite dês observations sur la cataracte – Tournay, 1708. Parece que Mestre João em 1692 tinha verificado êste facto numa autopsia, mas essa observação ficou ignorada até às publicações de Brisseau. 3 Consultationes Medica, v. I, p.140.

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Um caso de cegueira consecutivo a uma bofetada1. Cegueira que se manifestou num sifilítico depois da excisão de talpárias2. Lágrimas sanguinolentas consecutivas a um icto congestivo em rapaz de quinze anos,3 uma das primeiras observações conhecidas deste sindroma, no dizer de M. Lemos. Corrimento contínuo de lágrimas, que resultou duma úlcera do canto do olho4. Amaurose ou gôta serena curada com ervas5. Oftalmia em que a sangria da salvatela determinou a cura6. Oftalmia silítica curada pelo mercúrio e suores. Aqui cita-se o dito de Mercurial – Quando virdes qualquer doença que resiste aos remédios, julgai que se trata do gálico7. Belidas curadas por instilação dum colírio preparado com várias plantas8. Estrabismo num adolescente, que se curou depois dum fontículo aberto na nuca9. Um caso de epífora abundante, em que com as lágrimas saíam vermes,10 que M. Lemos lembrou poderiam ser a filaria lacrimal, parasita que segundoVan Beneden se encontra11 em Flandres. Tumor das pálpebras tratado eficazmente pela cauterisação12. Ptiriase e palpebral curada com uma pomada mercurial13. Zacuto ocupa-se em saber se a visão do olho direito é inferior ou menos perfeita do que do a esquerdo e conclue ser assim,14 em concordância com o que contra as opiniões de Luiz de Lemos e Pedro 1

Ob. LII. Ob. LIII. 3 Ob. LIV. 4 Ob. LV. 5 Ob. LVI. 6 Ob. LVII. 7 Ob. LVIII. 8 Ob. LX. 9 Ob. LXI. 10 Ob. LXI. 11 Zacuto Luzitano, pag. 334. 12 Ob. LXIII. 13 Ob. LV. 14 De medicorum principum história, v. II. 2


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Lopes de Avis tinham afirmado Amato e V. Fortunato Plemp, que Maximiano Lemos justamente considera o maior detractor de Zacuta1. Francisco Morato Roma deu à estampa em Lisboa em 1638 um opúsculo intitulado Apologia em que se dẽfendẽ huas sangrias de pés dadas em hũa inflamação de olhos complicada com gonorrhea purulenta de seis dias. Tratava-se duma conjuntivite blenorragica. Naquêle tempo englobava-se no mesmo capítulo a espermatorrea e a blenorrogia. Tudo sob a designação de gonorrea, distinguindo-se esta última pela qualificação de purulenta. Era então da moda terapêutica tentar fazer a derivação dos males manifestados na cabeça, fazendo correr o sangue venoso das extremidades inferiores, especialidade terapêutica que muito contribuiu para a fama de que gosou em Paris o grande clínico português João Batista Silva, médico do rei2. Aquela obra do Morato Roma não tem nada de notável, apenas merece ser consultada pelo grande número de clínicos lisboetas da época, a que se refere. Demonstra bem a ignorância que ainda então reinava na terapêutica desta afecção, carencia que ainda se prolongou por mais dum século. Estevão Rodrigues de Castro num livro pouco conhecido Syntaxis Prœdicictionvm Medicarvm3, publicado em 1661, trás as observações de casos, em que a impressão de ver tudo avermelhado se produziu como prenuncio duma hemorragia critica, e duma creança, que se queixava de ver carvões acesos, quando estava para se produzir a erupção variólica. Noutro capítulo trata dos sinais úteis para o prognóstico de várias doenças pelas alterações dos movimentos oculares e pelo encovar dos olhos. O licendiado Antonio Ferreira na Luz Verdadeyra e Rcopilado Exame de Tôda a Cirurgia, 1670., trata das doenças de olhos na seção de Apostemas. Diz que as oftalmias são de diferente espécie e origem. Quanto aos sinais ensina: 1

Zacuto Luzitano, p. 293. Silva carvalho. Um célebre médico português. João Baptista Silva. 3 P. 268 e 274.6. 2


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«Sendo de colera (bílis) haverá dor veemente, quentura forte e aguda, vermelhidão clara na (conjuntiva) e todo o olho, lágrimas com acrimonia, picadas e mordicação dentro no olho, que parece tem aveia. «Sendo de fleima ha muita inchação, pouca vermelhidão, pouca dor, lágrimas sem nenhuma acrimonia e ás vezes cresce a túnica albuginea sobre a córnea. «Sendo de melancolia, ha de tudo pouco. «Se fôr por ventosidade, os olhos se inchão, sente (o doente) uma extensão no olho, que lhe dá pena e estará vermelho, pouco ou nenhum peso na cabeça e grande ruido nos ouvidos». Quanto aos conselhos a dar aos doentes, recomenda: «… mantimentos temperados, mais cosidos do que assados, mais de engulir do que mastigar, evite todas as cousas salgadas, vaporosas, azedas e de especiaria. O sono é louvado, durma com a cabeça alta sobre a parte sã. Evite todo o movimento e mais paixões da alma. O ar seja sempre temperado fora do fumo, pó e ventos, sem claridade. Tenha diante de si panos de côr e não brancos. O olho fechado e se poder ter ambos (assim), melhor, porque deste modo não fará com êle movimento, que é de grande dano …» Traz um longo capitulo sobre a catarata, copioso em erros, superstições e fantasias, sobre a etiologia, sintomatologia e prognostico da doença. Mostra acreditar ainda nos medicamentos aplicados no principio da moléstia e depois relativamente ao remédio da operação, declara «sempre he trabalhoso & poucas vezes seguro, segundo Guido, & como tal mais para viandantes (cirurgiões ambulantes) que para cirurgiões scientes: & só se deve sugeitar a ella o miserável, que nam tiver esperança de outro. Com tanto, que não seja velho, nem minino: buscando pessoa em semelhante obra exercitada, com bastante obra confirmada». Como tratamento aconselha sangrias no braço do lado do olho doente ou na veia da cabeça, ventosas, esfregações e ataduras nos membros inferiores. A sangria será nos pés se a doença provier da supressão de menstruos, ou de fluxo hemorroidal.


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A seguir purgantes: agua de endívia, borragem, agua de lingua de vaca, cana fistula, maná, sumo de rosas, xarope Persico, electuario. Indo, xarope Regio, etc. Como aplicações externas os seguintes remédios, sempre mornos: «… Clara de ovo bem batida com agua rosada, colírio branco de Razis sem opio, em agua de tanchagem. Nas fontes ponham-se panos molhados em clara de ovo batida com agua rosada e leite de peito (que se deve misturar imediatamente antes de aplicar o remédio e não mais cedo porque se corrompe). O leite deve ser de mulher que amamente criança do sexo feminino, por ser mais temperado. «Agua rosada com pingos de vinagre. Pós de bolo Armenio. Mucilagens de alforfas em agua de coroa de Rei, ou semente de funcho. Cataplasmas de pêro cosido, miolo de pão, agua rosada, leite, gema de ovo, trociscos de Razis com ópio (se a dôr é muito grande), clara de ovo batida com agua de dormideiras, etc.» Sendo a oftalmia antiga e que não obedece aos remédios: «… serve o sedenho no toutiço e fontes nos braços, para divertir o humor e evacua-lo, também se usa furar as orelhas e meter-lhe uma casca de trovisco; outros usam de cautério no alto da moleira, junto á comissura coronal, que seja pequeno e redondo e esteja pouco tempo sobre o osso». Ferreira informa que no seu tempo este remédio era pouco usado. Trata depois dos Apostemas do lacrimal, que diz, uns são duros e movediços, não se maduram, nem abrem, outros pequenos e saniosos, que em geral amadurecem e muitas vezes deixam fistulas. Curam-se com certa facilidade, se são recentes, pelo regimento, sangrias e purgas já referidas, e aplicação de cosimento de malvas, violas, agua rosada com leite de peito, sumo de erva moura e incenso. Também aconselha outras ervas, caracóis pisados e açafrão, esterco de pombos pisado com casca de incenso e clara de ovo. Havendo supuração, emplastro de malvas e violas pisadas com manteiga, gema de ovo e farinha. Depois abra-se o apostema, sem esperar muito, para que o osso não seja atacado, com lanceta e incisão não pequena e afastada do olho.


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Se se formar endurecimento das partes moles e demora da cicatrização, metem-se mechas com pós de Joanes ou unguento Egipciaco, ou com aguardente, mel rosado e mirra. Se os ossos forem atacados, dilate-se a incisão e cauterise-se o fundo com cautério delgado de ponta romba e que pode proteger-se com canudo de prata e tendo o cuidado de defender o globo ocular com uma esponja ou pano dobrado molhado em agua rosada. Polverise-se com incenso e apliquem-se compressas com clara de ovo ou agua rosada. E assim se continue, até se eliminar a escara. Ao terminar êste século foi publicada por João Curvo Semmedo a Polyanthea Medicinal, a que se seguiram as Observaçoens medicas Doutrinaes de Cem Casos gravíssimos e a Atalaya da Vida contra as Hostilidades da Morte, tratados que foram muito apreciados pelos clínicos e na sua instrução tiveram decidida influência. Foi de certo êste autor o que antes do livro de Santana mais se ocupou das doenças dos olhos e quem pretender formar a idéia do que nos séculos XVII e XVIII se sabia em Portugal sôbre Anatomia, Fisiologia, patologia e Terapêutica ocular, basta-lhe consultar aquelas três obras. Sôbre Anatomia entendia que o olho se compunha de túnicas e de humores, além dos músculos, nervos, artérias, veias e glândulas. As túnicas entendia serem sete: adnata ou conjuntiva, tendinosa, córnea, uvea (iris) com a pupila, a que o povo chamava menina, seliar, que cobre o humor vítreo, para que se não misturecom o aqueo, arachnoydes ou aracnea e reticular (retina). Os humores são o albugineo ou aqueo, cristalino e vitreo. Como tratamento da conjuntivite preferia sangrias copiosas e se estas não determinavam a cura, as purgas, pôr sôbre os olhos talhadas de carne crua golpeadas e molhadas em água rosada em que se tenha deitado meia oitava de pós de Quintilio. Declara ter visto inflamações dos olhos indomáveis, curarem-se com a água que escorre das galaduras de ovos batidos, a que se junte um escropulo de pedra hematites, ou com a seguinte receita: «Tomem nove onças de morangos verdes, machuquem-se levemente com quatro onças de açúcar branco, que não esteja refinado com cal e se meta tudo numa garrafa de vidro, que se enterre em esterco quente de cavalo durante três dias e no fim destes se tire aquela massa e se meta num alambique de vidro e em banho de água fervendo se destile e da água que sair se deitem algumas gôtas dentro do olho».


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Como úitimo recurso aconselha colocar causticos por trás das orelhas, abrir um sedenho na nuca, não esquecendo purgar muito o corpo antes desta derivação. Contra a unha dos olhos (pterigio) gabava depois das evacuações por sangrias e purgas, fomentar o olho com cosimento de malvas, malvaísco e alforvas. As raíses do cardo santo pisadas com três duzias de bichos chamados Millepedes, no seu entender curam infalivelmente a doença no espaço de trinta dias. Mas o remédio supremo consiste em introduzir dentro do olho a erva Apium risus pisada, durante quinze dias. Se ficassem algumas escoriações na conjuntiva, devia aplicar-se clara de ovo cosida e pisada com açúcar branco da ilha da Madeira, em partes iguais. Depois trata do pano dos olhos, cobertura vermelha ou branca da conjuntiva, da sugilação, que diz ser nódoa vermelha, roxa ou negra sôbre a córnea, dos achaques dos humores aquoso, cristalino e vítreo e nestes inclue o glaucoma, a miopia, diplopia, presbitia e hemeralopia, para que aconselha purgar répetidas vezes, instilar no olho o líquido que deita de si o fígado de cabra mal assado e golpeado e comer durante três meses fígados de cabra, cabrito, pato ou galinha, receita que se pode aproximar do que hoje se aconselha como opoterapia. Nos seus outros livros insiste sôbre as extraordinárias virtudes, comprovadas por muitas e celebradas curas, da dieta de fígado, agora já era de porco, com a condição muito recomendada do que fosse assado no espeto, mas muito pouco assado. Sobre a comichão que vem às pálpebras depois das conjuntivites ou outras doenças, diz: «O maior remédio que tenho sabido, depois do corpo bem evacuado, é dar ao doente seis vêzes em dias alternados uma pílula de quatro grãos de Turbit mineral, que é o mercúrio preparado com óleo de enxofre, porque me atrevo a dizer que o mercúrio é remédio muito mais eficaz para as oftalmias e achaques dos olhos, que para o gálico». Depois de conselhos muito curiosos para quási tôdas as doenças dos olhos, passa a tratar da catarata, que supõe porvir de humores maus, que ou se geram no olho, ou descem de cérebro, ou sobem do estômago. Condena as sangrias no tratamento desta doença, louva as purgas e remédios depurativos. Feito isto, «se a catarata está já congelada e madura, o verdadeiro remédio é a obra da agulha, para a


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qual se buscará o cirurgião mais dextro e se o não houver, ou o doente fôr tão medroso que se não atreva a sofrer a obra, daremos unturas de azougue». Acreditava no bom efeito de pentear o doente de diante para trás durante meia hora cada dia, durante três meses, na instilação de remédios preparados com fel de víbora, galo, lebre ou cabra, o esterco do lagarto ou a enxundia da lebre, beber vinho com bichos de conta e caldos de víboras. Além de muitas advertências sôbre o tratamento, que merecem ser lidas, trás o mesmo autor a seguinte curiosa informação, em seguida a aconselhar que a operação se não faça, senão depois de curada qualquer inflamação que haja nos olhos: «Se a catarata estiver formada e madura, entrará a obra da agulha, se houver cirurgião ciente, nem sirva de medo aos doentes o considerar que a dôr há-de ser excessiva… porque consta da confissão dos mesmos doentes, a quem Cláudio Vellier, cirurgião do senhor Rei Dom Pedro1 fêz esta obra em minha presença, e informando-me eu dos tais doentes, me responderam dizendo que a dôr da agulha era maior quando esperada, do que quando possuída». Quem era êste cirurgião? Aparece em vários documentos o seu nome escrito Vellet, Villet, Vethet, Wellere. Veiu com a Rainha Francisca Isabel de Sabóia e no Registo da Freguesia dos Santos Reis do Campo Grande aparece em batisados que constam das fls. 69 v. e 84 v., em que se diz que estava em Lisboa desde 1680. Foi clínico muito estimado da Rainha e de D. Pedro II e pelos serviços que lhes prestou teve as mercês de rendosas tenças e a do hábito de Cristo, para cuja habilitação houve muitas dúvidas, que ameaçavam impossibilitar aquela concessão. Curvo na Polyanthea Medicinal trata longamente das mesmas enfermidades. Para o que então se chamava Amaurose e vulgarmente gota serena, celebra entusiasticamente uns aposemas de decocto de muitas plantas e xarope Rey e as pílulas de Lucis e Cochias e a tal respeito cita os nomes dos que assim tinham recuperado a vista. 1

Pag. 379 e 387.


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Nas Observações Médicas lá se encontram mais casos felizes da sua clínica pelos tratamentos já ditos.

III Caldas. S.ta Luzia. Provérbios. A Bica dos olhos. Fabricantes e vendedores de óculos. O livro Uso de los antojos. Lisboa afamada pelos seus oculistas no século XVII. Um frade português, grande optico. Os óculos de D. João V. O monopólio da venda de óculos. A raridade dos óculos nas pinturas portuguêsas até ao século XVII. Em varias termas há a tradição de aproveitaram em lavagens nas doenças de olhos. Uma delas é Monchique1. O mesmo se tem dito de algumas aguas santas, como se designavam as que nasciam ao pé da capelas ou de lugares, onde se contava terem aparecido imagens milagrosas. Antes de prosseguirmos lembraremos que entre nós é Santa Luzía2 a advogada dos males dos olhos. Na parede exterior da sua igreja em Lisboa, há uma pedra em que está esculpida em baixo relevo uma cruz, que os doentes tocam levando depois as mãos aos olhos e quando ali vão fazer as suas orações e promessas. Há a tradição de que a bica de água, que ainda hoje se vê na esquina do prédio da rua da Boa Vista para a travessa do Marquez do Sampaio, conhecida pela bica dos olhos, foi descoberta em 1596 por Duarte Belo, carpinteiro das Naus da Ribeira, onde vem a designação para uma via publica da Bica Duarte Belo. Fica no vão duma porta, saindo duma pedra trabalhada, que ao alto tem esculpido o navio, como se vê nas armas de Lisboa encimado pela legenda – He obrigado o dono desta propriedade a conservar esta bica sempre corrente à sua custa. Era 1675 – Diz-se que em 1709 o senado da câmara aforou por 200 reis cada ano o terreno donde a agua emergia a Antonio Ferreira, com a condição dêle mudar a fonte à sua 1 2

Silva Carvalho. Memorias das Caldas de Monchique. A sua festa celebra-se a 13 de Dezembro.


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custa e repara-la sempre que fosse preciso, obrigação que se estenderia aos seus herdeiros. Conta-se que um frances colheu grossos cabedais vendendo a agua em frasquinhos. Em 1813 havia uma guarda inglesa à bica1, cujo cabo feriu com baioneta um italiano chamado Leonardo2. Em 1937 a agua cessou de correr, o que causou grande alarme no bairro, por se atribuir o facto a malvadez de quem tivesse interesse de acabar com a fonte, alarme que se explica, porque ainda hoje é grande a frequência dos que ali vão lavar os olhos doentes;3 mas poucos dias depois a água voltou a correr. A existência desta fonte de singular virtude teria alguma relação com ser chamada a rua mais tarde – Da Boa Vista? Bluteau depois de tratar dos óculos de ver ao longe, define os óculos pequenos de caixas: «São dous vidros redondos, paralelos e embutidos em uns círculos de couro, ponta de boi ou outra matéria, lavrados de madeira, que postos no nariz e diante dos olhos ajudão a vista dos que a tem curta por velhice ou por enfermidade».

1

Papeis enviados pelo Ministério do reino. Intendência de Polícia. Contas para as Secretarias. L. 14, p. 48. 2 Intendência da Polícia. Contas para as Secretarias. L. XIX, fl. 42. 3 Diário de Notícias de 15 e 17 de Outubro de 1937.


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Diziam-se óculos de punho os que os franceses designam por lorgnom e que talvez se pudessem chamar de cabo. Eram os que o bispo do Grão Pará nas suas Memorias1 diziam ser moda no seu tempo. Chamaram-se antolhos umas vendas de panos ou de esparto, que os frades penitentes colocavam sôbre os olhos para castigo de seus pecados e instrumento de humilhação2. Há um provérbio pouco couhecido que diz: Quem quizer olho são, até a mão. Parece-me que isto não pode entender-se senão como preceito, que decorre da observação de que a causa mais frequente das doenças dos olhos é a infecção pelo toque de mãos sujas. Faz parelha com êste ditado o que ensina: Males de olhos curam-se com o cotovelo. Agora já não se trata de criminar as mãos de serem as portadoras dos germens morbigenos, mas de pela mesma razão de falta de aceio, se oporem à cura das enfermidades dos olhos. Raramente se encontrarão no riquíssimo tesouro dos rifões e ditados mais ajuisados sentanças do que esta e que melhores frutos demonstrem da observação e da experiência. Em 1552 havia em Lisboa duas casas em que se faziam obras de vidro, cada uma das quais ocupava seis homens. Na venda das ruas empregavam-se sete homens e catorse mulheres. Havia seis ou sete tendas em que se faziam vidraças de toda a sorte3 . No Summario de Cristovão Rodrigues de Oliveira, atribuído a 1554 registavam-se – homens que fazem vidraças quatro e mulheres que vendem vidro quinze. Aos homens que faziam e vendiam óculos, se chamavam oculistas, dos quais descobrimos no século XVI os seguintes. Em 1581 havia em Lisboa à Madalena, um que suponho seria francês, casado com Isabel Rodrigues e era conhecido por André Bom 1

Publicadas por Camilo, p. 137. Fr. Belchior de Santa Anna. 3 João Brandão. Tratado da Majestade, Grandeza e Abastança da Cidade de Lisboa, p. 204 e 210. 2


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Sargento, que ainda exercia a mesma profissão em 15881 e tinha um concorrente chamado Roquez, provalvelmente seu patrício2. Mas ainda havia nesse ano um terceiro oculista, donde se pode inferir que os fregueses eram numerosos na corte, visto que sustentavam três lojas. Era conhecido por Jacques oculista3, que não sei se seria o mesmo que foi casado com Isabel Bernaldes e em 1568 era designado por Jacques oculino. Êste ainda vivia em Agosto de 1581 e já então era tratado por oculista4. Não sei se estes tres comerciantes se limitavam a vender oculos, que viessem de fora, ou se também os fabricavam. Quem com certeza os fazia, era um Gaspar Jaques preto5 em 1593, e aprendera provavelmente a sua arte com mestre Jacques, que morava na freguesia de S. Nicolau e morrera antes de 1591 e de quem era escravo. É provável que este mestre Jacques fosse o acima referido. Em 1601 havia um Julião Torres, oculista da Misericordia, casado com Antónia Roiz6. Porque se dizia oculista da Misericordia? Seria porque êle trabalha ali ou fornecia o pessoal da Misericordia ou os seus tutelados, ou porque a sua oficina e loja seria perto daquele estabelecimento de assistência, portanto lá para a Conceição Velha? Parece-nos mais provável, que fosse porque êle fizesse o seu negócio nalguma das tendas que havia debaixo das arcadas do Hospital de Todos-os-Santos no Rocio, que eram alugadas pela Misericordia. Confirma-nos nesta suposição a referencia bem expressa, feita num documento oficial do terceiro quartel do século XVIII, a que adiante publicaremos, às lojas da Misericórdia, onde se vendiam óculos. Já tinha chegado a esta conclusão, quando encontrei o registo dum batismo em que a madrinha era a mulher do Jacques oculino e o neófito era um João Galhardo, morador nas tendas de Misericórdia.

1

Registo da freguesia da Sé por Prestage e P. d’ Azevedo, t. I, p. 168, 418 e 437. Registo da freguesia da Conceição (1518-1581). 3 Registo da freguesia da Sé, t. I, p. 45. E da freguesia da Conceição, pag. 45. 4 R. P. B. F. da Conceição, fl. 45. É possível que tambem fosse oculista Francisco Prometeu, que em 1580 morava à Jubeteria (R. P. O. F. da Conceição, fl. 18 v.). 5 Registo da freguesia da Sé, t. I, p. 337 e 455. 6 Registo da freguesia da Sé t. I, p. 160 e t, 2, p. 418 e 437. 2


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Depois aparece Manoel Antunes, que fazia óculos e morava à Madalena1 em 1614. Devia ser filho do preto Gaspar Jacques oculista no fim do século XVI Ambrósio Jacques,2 preto livre, que era oficial de óculos e tratavam por doutor em 1673. Benito Daça de Valdês (modernamente é designado por Daza de Valdês) era notário da Inquisição de Sevilha e sem ser físico, nem médico de profissão, publicou um livro notavel, que foi reimpresso com comentários de D. Manuel Marquez em 1923 na Biblioteca Clássica de la Medicina Española3, Vso de los Antoios para todo genero de vistas: En que se enseña a conocer los grados que a cada vno le faltan de su vista, y los que tienen qualesquier antojos. Y assi mismo a qve tiempo se an de vsar, y como se pediran en ausência, con otros avisos importantes, a la utilidad y conservacion de la vista. Dedicado anvestra señora de la Fuensanta de la Ciudad de Cordoua. (Uma xilogravura representado uns óculos em cujos vidros estão figurados o sol e a lua; nos quatro cantos há a figura dum olho). Com privilegio. Impresso en Sevilha, por Diogo Perez Ano de 1623. 8.º 19,5 X 125, mancha tipográfica 139 X 92. 109 fls. Com muitas gravuras. Existem em Espanha 12 exemplares desta obra e há um na Biblioteca Nacional de Lisboa. Êste livro constitue um tratado de oculistica, que se deve considerar completo para a sua época, não havendo nenhum físico, num médico que antes tivesse publicado obra comparável durante o muito tempo foi o primeiro da especialidade.

1

R. P. C. F. Santa Catarina. L. 2, fl. 106 v. Ibidem, fl. 79 v. 3 Há uma tradução inglesa L’outriale all’occhio por Carlo Antonio Manzini – Bolonha, 1660 e uma francesa de Albertotti, impressa em 1892. 2


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À parte a antiga crença de que são os olhos que emitem os raios que permitem a visão,1 em tudo o mais é perfeito, na teoria da miopia, presbitia e hipermetropia, das lentes apropriadas para corregir êstes defeitos de visão2 e dos diferentes graos que devem ter, e nesta parte não adopta as distâncias focais, mas as inversas, de maneira que êsses graos correspondem aproximadamente às dioptrias de hoje. Passa por ser o primeiro autor que publicou as tabelas para a escolha dos oculos. Recomendava o uso das lentes aos operados de catarata. Começa por ocupar-se dos óculos e nesta parte do tratado emprega a forma de diálogo entre um médico, um óptico e três pessoas que precisam corrigir os seus defeitos de visão. No primeiro diálogo um dêstes diz aos outros dois: «Qué antojos podeis vos haber visto, ni el señor Marcelo, sino tres o cuatro, malos y de vidrio, que llegan aqui (Sevilha) por gran milagro; y éstos quizas contrários a vuestra vista, y que os la dañen? Enviad a Madrid o a Lisboa, que es la fuente de ellos, o ide n persona y alli hallareis de menester para vuestra vista, pues por lo menos vernéis satisfechos de que no há quedado por diligencia, porque lo demás es vivir a ciegas y andar buscando una sortija en casa de herrador.» Um dos interlocutores responde-lhe: «Tengo noticia de que en Sevilla hay un maestro que los (oculos) hace buenos». Diz-nos pois aqui a pessoa que tinha estudado tão perfeitamente êste assunto, que ninguém lhe ganhava em autoridade, que Lisboa era no primeiro quartel do século XVII a verdadeira fonte dos bons óculos. 1

O médico e astrólogo árabe Alhazen ou Alhazan já em 996 tinha defendido a opinião de Aristóteles e Euclides, de que os raios luminosos provenientes dos objectos é que determinavam a visão, mas o erro continuou depois dêles. 2 É provável que Valdês conhecesse os trabalhos de Leonardo de Vinci aproveitados em vários tratados do fim do século XVI.


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Não conhecemos a mínima referência a esta obra tão importante em nenhum autor português dêsse ou do nosso tempo. Ainda neste século viveu o religioso da ordem de S. Caetano, Tomaz Beckeman, natural de Lisboa, que aprendeu Óptica em Florença e fabricava óculos de ver ao longe e ao perto. Faleceu em 1729 e deixou um manuscrito intitulado Tratado em que se ensina com doutrinas especulativas, e práticas tôda a sorte de lavrar vidros para Telescópios de tôda a grandeza, assim de Dous, como de quatro vidros, cameras escuras, lenternas (sic) mágicas, e outras curiosidades dignas de se saberem dos que tem propensão à Arte Óptica, obra que existiu na livraria dos padres Teatinos1. Numas cartas de 18 de Abril de 1739 a 25 de Junho de 1743 do guarda-jóias de D. João V, Pedro António Vergolino ao médico Francisco Mendes de Goês, que pertencia à legação de Portugal em Paris e era encarregado além doutras funções, como de redigir relatórios sôbre tôdas as novidades políticas daquela côrte, de fazer tôdas as compras para o Paço e para as Secretárias do Estado e serviços dela dependentes, se encomendavam óculos n.º 18 para D. João V, sendo a última encomenda de duas dúzias. O que essa correspondência não recomendava, como noutras ocasiões, era que Mendes de Goês indagasse antes de fazer a compra, quais eram os óculos que se usavam em Varsailles, conforme a preocupação constante da côrte de Lisboa. Em 1764 tinha loja na rua de S. Bento, logo abaixo da botica delrei, Joaquim Francisco Franco, que vendia óculos de vêr ao longe de nova invenção e grandes e pequenos de algibeira»2 Em 1787 ainda os profissionais dos ofícios em Lisboa estavam agrupados e defendiam na Casa dos Vinte e Quatro e perante as Secretarias do estado as suas imunidades e privilégios. Naqueêle ano os vidraceiros revindicaram para si a venda dos vidros importados e o trabalho de colocar as vidraças que fabricavam e vendiam e 1

Bibliotheca Lusitana, v. III, p. 720. Hebdomadário Lisbonense, de 1764, n.º 6. 3 J. M. Cordeiro de Sousa. Notícias do passado. D. João V usava oculos, no Diário de Noticias.

2


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pretenderam que fosse proíbido aos que fabricavam e vendiam oculos, esta industria e comercio, que aos primeiros deviam exclusivamente pertencer. Relativamente a esta ultima pretensão respondeu a Junta do Comercio: «Quanto aos óculos a que eles chamam de nariz, lembra em primeiro lugar que os suplicantes não estão assistidos do conhecimento das proporções para opticarem os óculos á administração dos graus, resultando daqui que na pretendida venda privativa seria prejudicado o povo, proibindo-se o exercício de alguns manufactores, que, sendo estranhos ao oficio de vidraceiros, tem contudo alguma particular perícia na factura e ajustamento das proporções para os referidos óculos; mas também lembra que estes peritos tem a liberdade de se valerem da real determinação de Sua Magestade, que os manda admitir sem precedência de formalidade do exame, nem na qualidade de incorporados nos ofícios, pelo que êles poderão requerer nos termos de se mostrarem insignes e com particular perícia das mesmas obras. «Lembra mais que o intento dos vidraceiros parece o de monopolizar a venda dos óculos, ao mesmo tempo que o comercio dêste género é de considerável importância, e se pode dizer de necassidade primaria; o regimento não lhes concedeu até agora esta privativa venda, nem os vidraceiros, que por exercitarem o oficio, não tem direito para fazerem especialmente seu o comercio neste género, podem pretender com justiça, que ás tojas da Capela e Misericórdia, as quais estão no costume de venderem este genero, se tire esta permissão; pelo que, atendida principalmente a utilidade publica em não se restringir a poucos vendedores um genero, cuja necessidade abranje muita parte do povo, e atendendo tambem ao bem comum do comercio, parece que, ficando cumulativa a mesma venda ás lojas da Misericordia e aos mestres vidraceiros, com inibição a todas as mais pessoas para a venda de oculos pelo miudo, ficam os suplicantes favorecidos, o povo com alguma liberdade nas compras, e os comerciantes sem motivo bem fundado para a sua queixa»1. 1

Livro XII do regimento de cartas do Senado, fl 83, transcrito nos Elementos para a história do Município de Lisboa, T. XVII, p. 147.8.


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Disse-se que os óculos foram inventados por Rogério Bacon no século XIV. Outros pretendem que o foram por Salvino de Armato degli Armati (antes de 1317), por Giordono de Rivalto (1311), ou Alessandro della Spina (antes de 1313). Ha referencias aos oculos nas obras de Arnaldo de Villanova e de Guido de Cauliaco. Há quem afirme que a primeira representação gráfica dos óculos é um fresco de Tomaso da Modena (meado do século XIII) em S. Nicolo de Treviso, em que se vê S. Jerónimo estudando. Nas obras dos nossos primitivos procuram-se de balde os oculos, embora nas pinturas do século XV dos museus estrangeiros, não sejam raros. Aos competentes deixamos o trabalho de averiguarem quando apareceram na pintura portuguesa. De longa data se sabe que os maritímos tem vista invejavel no alcance. Nós que tão cedo começámos a viver no mar e para o mar e que fomos dos mais notáveis em ver atravez dos oceanos que a longas distancias havia terras para cultivar, produtos naturais para explorare gentes para civilizar, não deviamos precisar óculos muito cedo.


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