História da oftalmologia portuguesa

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BOLETIM DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE OFTALMOLOGIA

História da Oftalmologia Portuguesa (Na segunda metade do século XVII) Por AUGUSTO DA SILVA CARVALHO

I Vários catarateiros nacionais e estrangeiros. O primeiro professor de oftalmologia David Philip Schhwartz. Em 1587 havia em Lisboa um cirurgião, Gaspar Monteiro Rebêlo, que operava cataratas e dizia aos clientes: Eu vos faço o que Deus não faz. Era natural do Pêso, perto de Lamego, casado com Isabel da Silva e morava em casa de João Fernandes de Lucena, meirinho da Inquisição.1 Jacomo de Luca, natural de Messina e filho do Conde Paulo de Luca, teve carta para «tratar de toda a sciencia de cataratas e todas as enfermidades dos olhos com obras de mãos», depois de ter sido examinado perante o Cirurgião-Mór do Reino, o Dr. Pedro de Barros Pinto, por dois cirurgiões de Coimbra, Gonçalo Dias e António Ferreira. O diploma datado de Coimbra, a 25 de Outubro de 1611, designa o oftalmologista por licenciado.2 O Cirurgião-Mór do Regimento de Infantaria da Côrte anunciou:3

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António Baião – A Inquisição em Portugal e Brasil. Mercês de Filipe II – Livro 21, fl.218. 3 Gazeta de Lisboa – 1740, pág. 240 e 492. 2


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«O Licenciado Francisco Gonçalves Pereira, Cirurgiam Anathomico aprovado nesta Corte, tem hum remedio especifico de virtude tam peregrina como admiravel para curar todo o genero de lobinhos, e tumores scyrrosos com a mayor facilidade que atégora se tem visto, e outro singularissimo com que cura maravilhosamente nam só as inflamaçoens dos olhos, mas todas as nevoas delles procedidas por qualquer causa. Vive defronte da Igreja de S. Thomé, onde o podem procurar as pessoas, que se quizerem aproveitar destes remedios, e cura aos pobres pelo amor de Deos. Tem licença do Fisico mór do Reyno». Um tal Manuel Du Pré, natural de S. João de Laurinana, cirurgião, licenciado, que teve carta de Cirurgia a 27 de Agôsto de 1742, e se intitulava oculista do Infante D. António, anunciou declarando praticar a cura radical dos apertos da uretra pelo método do Dr. Durand, e além disso tratar tôdas as doenças dos olhos. Demorou-se em Lisboa cêrca de seis anos.1 Neste tempo havia um boticário conhecido por preparar um remédio com urina, que pondo-se a ferver em S. Paulo fazia suar em enfêrmo, que estava no Bom Sucesso. Êste insigne inventor também preparava um bálsamo sulfuris muito útil nas doenças de olhos. Chamava-se António Lopes de Lima, era natural de Vila Franca de Xira e filho de Pascoal Nunes de Lima e Ana Maria e tinha uma botica ao Chafariz de Dentro.2 É possível que fôsse êste boticário que deu o nome a um beco do Cura de Olhos, que havia na freguesia de Santa Justa.3 D. José, que estimava muito o pintor Alexandre Guisti, quando êste cegou, mandou-o a França com grandes recomendações, para lhe tirarem as cataractas, o que se não pôde conseguir.4 Na segunda metade do século XVIII e primeira do seguinte, houve pela menos sete clínicos, que se chamavam António José da Costa. 1

Chancelaria de D. João V – V. Livro 105, fl. 108 e Gazeta de Lisboa, de 1748, págs 592 e 652. 2 Silva Carvalho – Médicos e Curandeiros, pág. 109. 3 Tombo de 1755. Livro 10 do Bairro do Rossio no Arquivo Nacional da Tôrre do Tombo. 4 As honras da Pintura, Escultura e Architectura, por J. Pedro Belloni, trad. portuguesa – Lisboa, 1815, pág. 109.


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Um dêles, natural da Guarda e filho de António da Guerra, foi cirurgião militar. Em certa altura da sua carreira julgou conveniente apresentar um rol das suas proesas clínicas, entre as quais citou uma de que aproveitou João António Vidigal, a quem, por ter dado uma grande queda, lhe saltou um ôlho fora da órbita. Empenharam-se médicos e cirurgiões em repôr o fugitivo no seu domicílio e tudo foi debalde. Então o cirurgião militar conseguiu esta façanha, «com furor lho colocou no seu lugar», mas esqueceu-se de dizer como procedeu.1 Em 1751 chegou a Lisboa um alemão David Philip Schwartz2, filho de Frederico Otto Schwart e Maria Ana, que depois de ter na clínica adquirido fama de perito no tratamento das doenças dos olhos, obteve a seguinte nomeação: «Eu El Rey faço saber aos que este alvará virem que tendo consideração a se achar nomeado para reger a cadeira de Optica estabelecida no Hospital Real de Todos-os-Santos desta cidade o Oculista David Philip Schwartz e pela boa informação que tenho da sua sciencia de Optica e ter mostrado nas curas que tem feito ser perito na arte da Cirurgia: Hei por bem fazer-lhe mercê por graça especial em quanto reger a dita cadeira e Eu não mandar o contrario de 300 mil reis cada ano com obrigação de servir-me no que eu fôr servido ordenar-lhe e os ditos 300 mil reis serão pagos aos quarteis pelo rendimento da Alfandega desta cidade, mostrando certidão de como está regendo a dita cadeira e terá o seu vencimento do primeiro de Outubro do ano passado de 1751. Pelo que mando aos vedores da minha fazenda lhe façam assentar nos Livros dela os ditos 300 mil reis e levar em cada um ano na folha do assentamento da dita Alfandega para lhe serem pagos como dito é, etc. Lisboa 1 de Janeiro de 1752.»3 Na Mesa da Misericordia fez-se o seguinte assento.4 «Nossos irmãos oficiais da Fazenda do Hospital Real de Todos-osSantos façam logo despejar uma casa para acomodação do Oculista 1 Ver o meu Dicionário inédito, p. 185, Decretamentos, Livro 45, no A. N. da T. do T. 2 Algumas vezes foi designado entre nós por Filipe Daniel Schwartz ou Studart, mas nos documentos oficiais sempre figurou com o nome acima. 3 Chancelaria de D. José – Livro 44, fl. 298 v. 4 Jornal de Pharmacia e Sciencias Acessórias – 1868, pág. 149


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David Filipe Schwartz, que Sua Magestade manda lêr no dito hospital, de cuja fazenda se lhe darão 100 mil reais de ordenado em cada ano, por assim o ordenar a essa mesa o dito senhor. Lisboa, em mesa, 1 de Janeiro de 1752». Seguem as assinaturas do Provedor Marquês do Louriçal e dos outros membros da mesa. Parece que a casa se não poude encontrar no Hospital e por isso lhe foi arbitradaa a verba anual de 40 mil réis para subsídio da renda que tivesse de pagar. Em 1758 foi-lhe passado o seguinte atestado de bons serviços.1 «D. Jorge Francisco Machado de Mendonça Eça Castro Vasconcellos e Magalhães, enfermeiro mór e thesoureiro executor da fazenda do hospital de Todos-os-Santos d’esta cidade de Lisboa, etc.. «Faço saber aos que a presente attestação virem que David Filippe Schwartz, cyrurgião oculista d’este hospital real, tem cumprido com a sua obrigação, nos tres mezes vencidos no fim dos mez de setembro do presente anno, e para constar do referido lhe mandei passar a presente; que por certeza vae por mim assignada e sellada com o selo do dito hospital. Lisboa, 6 de outubro de 1758. D. Jorge Francisco Machado de Mendonça Eça Castro Vasconcellos e Magalhães. O Rei mandou-o a 31 de Janeiro de 1763 a Tavira para tratar duma doença de olhos o Governador e Capitão General do Algarve, Marquês de Louriçal. Parece ter falecido em 1785. Como se vê tratava-se duma inovação em matéria de ensino médico de excepcional importância. Creava-se uma clínica especial, que a Universidade não teve senão depois dum século. Esta instuição era autêntica novidade. Em Paris, em que já desde o reinado de Luís IX (1226-1270) havia um hospital especial para o tratamento das doenças de olhos, o dos Quinze-Vingts, fundado em 1260, só em 1765 o ensino desta especialidade clínica entrou no ensino, o primeiro professor foi Gendron e em Viena J. Barth iniciou idêntico curso apenas em 1773. J. C. Loureiro informou sôbre Schwartz: 1

Breve Memorial, pelo Enfermeiro-Mór Machado de Mendonça.


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«Era chamado para todos os casos graves de molestias de olhos, não só em Lisboa, como em todo o reino e desempenhava com geral aprovação todas as suas obrigações» havendo um atestado de Enfermeiro-Mór Machado de Mendonça do que cumprira a sua obrigação no Hospital. E acrescentou: «Durante trinta e tres anos que exerceu a ocolistica em Lisboa, nada nos deixou que revele os progressos, que a sua especialidade tinha feito». No meiado dêste século exerceu clínica no Pôrto um cirurgião estrangeiro Hilmer, que se dizia oftalmologista. Em 24 de Julho de 1755 anunciava-se em Lisboa:1 «Em Sevilha se acha de partida para esta côrte o doutor Hillmer, Lente de Medicina, Conselheiro e Médico do Serenissimo Rei da Prússia e traz remedios mui particulares, com que tem feito notáveis curar em varias côrtes e alguns mui especiais para os olhos, para as queixas do estômago e para purificar o estomago». Da sua estada em Lisboa não há notícia, mas sabe-se que passou ao Pôrto, onde parece não ter sido bem sucedido, porque Manuel Gomes de Lima escreveu2 a seu respeito: «Não há muito (antes de 1756) que aqui chegou outro (charlatão) chamado Hilmer de quem eu já tinha noticia pelas Memorias da Real Academia de Paris para desprezar, e ter por hum mero impostor. Sem embargo muitas pessoas não só forão cegar perfeitamente às suas mãos, mas pagarão-lhe o trabalho muito bem. Dizem, que alguns professores nossos o autorizarão. Se assim foi, ignoro, mas sei, que devo reprovar huma protecção tão prejudicial ao bem publico.»

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Gazeta de Lisboa, de 1775, pág. 236. O Praticante do hospital Convencido, pág. 175.

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Ora a verdade era, que nós não precisávamos recorrer a estrangeiros, visto possuirmos um clínico especializado, de que resa o seguinte anúncio: «Manuel Ferreira Cupido, Cirurgião Portuguez aprovado, Oculista, e Enfermeiro mór no Hospital Real da Santa Misericordia da cidade de Elvas, cura as cataratas com tam feliz sucesso e acerto, como testemunham as confissoens de muytas pessoas, que estando cegas foram restituidas á sua vista e se acham todas exercendo os mesmos empregos que de antes tinham. Toda a pessoa que se quiser curar de semelhante queixa, pode recorrer ao seu Ministério. Os que tiverem meyos satisfaçam o merecimento da Cura, e está pronto para curar pelo amor de Deus todo o que totalmente fôr pobre, como já tem feyto a muytos». Jacob de castro Sarmento publicou em 1756 e tradução do Tratado das Operaçoens de Cirurgia de S. Sharp, cirurgião do Hospital de Guy em Londres e com essa publicação prestou bons serviços aos clínicos portugueses. Relativamente ao assunto, que nos interessa encontram-se ali alguns erros manifestos, como por exemplo considerar o glaucoma a mesma enfermidade do que a catarata. Na operação desta não recomenda o uso do speculum oculi. Refere a grande freqüencia das intensas e perigosas inflamações consecutivas a intervenções cirúrgicas, que atribue à ignorância dos que em Inglaterra as praticavam sem terem competência para o fazer. Descreve também a iridectomia1. Entre nós quem não queria meter-se nas mãos de estrangeiros, tinha cá alguns remédios nacionais de confiança. Assim o boticário Inácio de Oliveira, primeiramente estabelecido na Rua das Flores e depois na Rua da Rosa das Partilhas e que vendia vários remédios, entre os quais o unguento verdadeiro do Doutor Presunto (sic), preparava também o unguento de enxundia de galinha para os olhos2. 1 2

Gazeta de Lisboa, de 13 de Junho de 1754. Gazeta de Lisboa, de 1757, n.º 10.


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No ano seguinte anunciou-se, que o capitão Manuel Lopo da Costa, Cavaleiro da Ordem de Cristo, morador na vila de Torres Novas tinha um remédio específico para tirar nódoas e belidas dos olhos e porque faz êste admirável efeito o aplicava e dava gratuitamente e vinha dar esta notícia, para que pudessem aproveitá-lo todos que quizessem1. Nêste tempo apareceram em Lisboa uns poucos de estrangeiros com o apelido de Salamam2. Um de nome José, natural de Veneza, depois de examinado perante o comissário do Cirurgião Mór do Reino, Luis Gomes Correia da Fonseca pelos cirurgiões José Homem da Rocha e Bernardo de Figueiredo, teve carta de Cirurgia a 7 de Novembro de 17603. Pouco tempo depois anunciava estar elevado à alta dignidade de Cirurgião químico da Casa do Sereníssimo Senhor Infante D. Manuel e oferecer ao público vários remédios aprovados pelo Físico Mór do Reino, residir na Rua do Pasteleiro ao Chiado e depois se mudar para a Rua da Rosa, junto à Portaria de S. Pedro de Alcântara, à esquina da Travessa do Forno. Entre esses remédios excelentes figuravam um óleo para uma infinidade de doenças e um emplastro, que até curava cancros. Tratava todas as doenças cirúrgicas, compreendendo as queixas de olhos4. Ainda cá estava em 1761. Não sabemos desde quando estaria entre nós o cirurgião, a que se refere a seguinte notícia de Madrid: «Dizem de Lisboa, que desde que o célebre, chamado Mr. Gralhat, chegou áquela corte, deu a vista a muitas pessoas com o seu novo método d’extrair o humor cristalino vicioso, conhecido pelo nome de carataracta. Os Facultativos e o Professor e Demonsrador Real de Anatomia presenciaram uma operação executada por este Artista com a maior rapidez a 20 de Dezembro ultimo no olho direito do Sr. Gaspar de Sousa Barreto. A sua destreza e feliz sucesso lhe grangearam aplauso geral de toda a assistência. Os homens d’arte que 1

Ibidem, de 1758, pág. 636. Vide o meu Dicionário inédito. 3 Gazeta de Lisboa de 7 de Janeiro de 1753 e outras. 4 Chancelaria de D. José. Livro 49. 2


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ali estavam foram testemunhas da excepcional habilidade deste famoso Oculista, admirando a perfeição com que executa o novo metodo de curar a cataracta põe extração. Também cura todas as enfermidades dos olhos, de qualquer espécie que sejam. A’s pessoas que o consultarem por escrito, responderá pontualmente indicando o que devem fazer para a perfeita cura. Reside em Lisboa em casa do Dr. Gaspar de Sousa Barreto Ramires, na rua da(s) Farinha(s). Devem franquear as cartas»1. Muitos anos depois apareceu de novo em Lisboa, mas tinha-lhe crescido o nome, como se vê do seguinte anúncio: «Mr. Gralhat dês Ahys, Médico-Cirurgião Oculista de S. M. Imp. E Real, approvado pelo Real Proto-Medicato d’Hespanha e pelo de Portugal, bem conhecido por varias famosas operações anunciadas na Gazeta de Madrid, e nas de vários outros países, e cuja reputação se tem aumentado consideravelmente por uma muito dificultosa operação que ha pouco fez á irmã do Dentista Hespanhol, que assiste defronte do Paço da Madeira à Boavista, dá a saber ao Publico que elle, com a maior destreza, faz todas as operações dos olhos, e cura todosos achques deles, mostrando a sua aptidão pelo feliz sucesso que até agora tem tido similhantes curas. Toda a pessoa que quiser servirse do seu préstimo, o poderá procurar na Bica Grande em casa do Manoel José de Paiva». Em 1788 residia na Rua Formosa, ao pé da Ermida2 e passou depois ao Porto, tendo endireitado o nome como se declara na Gazeta:3 «Pedro Gralhat de Hayes, Doutor em Medicina e Cirurgião Oculista das cortes de Viana e Madrid, havendo ultimamente estado em Lisboa, aonde fez admiráveis curas, restabelecendo a 42 pessoas faltas de vista, 3 das quaes estavão com gota de serena: faz publico que elle foi chamado á cidade do Porto, onde todas as pessoas que se

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Gazeta de Madrid, n.º 5 de 31 de Janeiro de 1769. Gazeta de Lisboa, de 26 de Agosto de 1786. 3 Almanaque de Lisboa, de 1788. 2


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quiserem servir do seu préstimo o poderão procurar em casa de Luis Lobo, até o fim de Julho do presente anno1». Voltemos agora atrás para dar conta do que se observou no nosso país em matéria de curandeiros, principalmente a partir de 1787. Belchior de Reis e Melo dizia ser doutor em Medicina pela Universidade de Reims e aprovado pela Real Junta do Proto-Medicato a 14 de Julho de 1787. Anunciou que tinha á disposição dos doentes três remédios que inventara, um dos quais era «um tópico para as excoriações dos bordos das pálpebras, que procedem de fazer uma linfa misturada de óleo uma massa friavel, a qual passando pelos poros das pastanas (sic) vai colar-se na sua raiz sobre a cútis, onde faz o mal, que é de consequência».2 Como se vê não honrava a Universidade de Reims. No ano seguinte apareceu um Henrique da Costa, que se não habilitara no estrangeiro, mas que vendia uma pomada, que além de curar o mal se S. Lázaro, nada menos, e as hemorróides, era remédio soberano contra as pastanas (sic) reviradas3. Ouçamos agora o médico José Manuel Chaves que tanto bradou contra os charlatães. «Os barbeiros e curões applicam indifferentemente os remédios… por isso tambem he que há tanta gente cega. O uso do palito de prata para raspar as belidas devia tirar-se da mão destes idiotas como uma faca de ponta, que prohibem justamente as leis de Sua Magestade; pois na mão destes intrépidos que o não sabem manejar, dá cauda a mil erros irremediáveis. Eu vi uma pessoa de ilustre qualidade confiarse d’um barbeiro, ou cirurgião de meia carta, que tudo vale o mesmo, para lhe curar uma opftalmia com belida. Tanto que o barbeiro se viu aceite pelo Fidalgo, puxou do instrumento com um prudente desembaraço e nada mais fez romper a córnea transparente, lançar-se fóra o humor aqueo e formar um horrendo staphyloma, que custou a 1

Gazeta de Lisboa, de 15 de Maio de 1790. Chancelaria de D. Maria I. Livro 22, fl. 318 v. e Gazeta de Lisboa, de 11 de Agosto de 1789. 3 Gazeta de Lisboa, n.º 53 de 1782. 2


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curar-se no espaço de tres mezes, e ainda assim ficou o doente cego. Eu pudera contar muitos casos d’estas barbaridades, mas nem são do meu instituto, nem com descreve-las impediria os seus progressos»1. Dêste testemunho insuspeito se conclue que os barbeiros, que já faziam concorrência aos sangradores, cristaleiros e dentistas, tinham já invadido o campo dos oftalmologistas. Mas os curões não se assustavam com êste vigoroso protesto. De resto os doentes não faltavam. O autor da Description de la ville de Lisbonne verberou o abuso das sangrias que em Portugal era maior do que em qualquer outro país e entre cujas consequências citava «o grande número de pessoas, que sofrem dos seus maus efeitos, tendo muitos avista fraca, que são obrigados a usar oculos, o que se atribue também à grande intensidade luminosa, que ha nesta região». E continuava a importação dos curandeiros, como o Cavalheiro Pinetti, que traria um Museu de Física, que instalara no Largo do Carmo em 1790 e no ano seguinte se propunha tratar as doenças de olhos pelo emprêgo da electricidade2. Em 1792 havia uma inglesa, que morava Fornos de Cal, para lá da ponte da Alcântara, que praparava uma água, que dizia ser muito eficaz «para gastar mortinhos, belidas e nevoas»3. II António Soldati. Vários médicos e cirurgiões portugueses se ocupam de Oftalmologia. Joaquim José de Santana e o seu tratado. Cessa o curso da especialidade no Hospital de S. José. No mesmo ano apareceu em Lisboa António Soldati, cirurgião, natural de Itália, que foi morar na Travessa defronte da ponte do Regueirão dos Anjos, no terceiro andar da casa de Manuel de Silva e a 1

Febriologia, p. 227 8. Gazeta de Lisboa, de 19 de Fevereiro e 19 de Março de 1791. 3 Ibidem, de 24 de Março de 1792. 2


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18 de Maio do ano seguinte anunciou1 que, achando a estação favorável praticara várias operações de catarata, uma das quais numa mulher, a que assistiu o Dr. Caetano Trové. A 17 de Novembro anunciava2 morar na casa à Ribeira Nova na travessa defronte da ponte do Boqueirão na primeira escada à mão direita, dizia estar de passagem para Londres e ter no Setembro anterior, operado várias cataratas, das quais uma a 22 de Outubro a Domingos Pereira Lima, de 70 anos, morador em Arroios, defronte de S.ta Bárbara, operação nos dois olhos que «executou com tanta destreza e felicidade, que mereceo o aplauso do doutor Caetano Trové, medico do Excelentissimo Embaixador de Espanha e outros Ministros estrangeiros, como egualmente de outros professores, que estavam presentes». A 18 de Maio do ano seguinte veio participar nova façanha3. Disse-se que Tomás Woodhouse, charlatão que foi oculista de Jacoboo II e de Guilherme II, foi quem primeiramente propôs a iridotomia em 1711,4 mas de positivo o que se sabe é que foi o grande cirurgião inglês W. Cheselden, que em 1728 pela primeira vez mostrou a vantagem de praticar esta operação, servindo-se duma agulha para obter a pupila artificial5. Pois Soldati operando em ambos os olhos Bernardo Sena, que morava defronte da igreja do Paraíso «foi obrigado, contava êle, a abrir a menina dum olho para facilitar a operação da catarata, depois do que ficou gozando da vista». Na mesma ocasião anunciava curar os pobres por caridade e prapticar tôdas as outras operações cirúrgicas alheias à sua especialidade. Morava então no Largo do Quintela no terceiro andar das casas, que faziam esquina para a Rua do Alecrim. Em Novembro de 1795, ainda estava em Lisboa e proticava ter feito várias extirpações de cataratas, uma das quais num empregado da casa Pia do Castelo. Dava então consultas às 8 da manhã na sua nova

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Gazeta de Lisboa, de 18 de Maio de 1793. Ibidem, de 17 de Novembro de 1793. 3 Ibidem, de 21 de Setembro de 1795. 4 Garrison. História da Medicina, t. I, p. 411. 5 Philosophical Transactivas, de 1728, p. 447. 2


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residência defronte do teatro de S. Carlos, do lado do ingresso real, no terceiro andar1. Depois ausentou-se só voltando a Lisboa na primavera de 1798 e foi alojar-se em casa de D. Francisco de Almeida ao campo de Santana, onde dava consulta. Suponho que desta vez pouco se demorou.2 Veio mais tarde e foi nomeado Cirurgião Mór do Hospital Militar de Elvas por decreto de 27 de Agosto de 1802 com o sôldo de quarenta mil reis por mês, para substituir o cirurgião João Carvalho e como êste dirigir a aula de Cirurgia, que ali funcionava. Na primavera de 1803 pediu licença para se ausentar de Elvas e vir a Lisboa tratar doentes dos olhos e voltar para casa de D. Francisco de Almeida,3 mas parece que a sua ausência se prolongou ou se repetia, porque lhe sucedeu José Fradesso Belo, que foi nomeado lente substituto em 1803 e efectivo a 30 de Maio de 1807.4 A Rainha D. Maria I, dada por alienada incurável, teve em 1793 uma doença dos olhos, que inspirou grande cuidado.5 O seu assistente era o doutor Francisco Tavares, que naturalmente aconselharia a consulta dum especialista. Quem se impunha como tal, era Joaquim José de Santana, não só pela sua qualidade de lente no Hospital de S. José, mas também pela sua incontestada competência. Mas tal se não fez e foi chamado o cirurgião Norberto Chalbert, que curou a doente. O padre Manuel de Jesus, natural da Ilha da Madeira, onde residia, anunciou6 neste tempo ter verificado tanto na sua terra, como em Lisboa, a eficácia nas doenças dos olhos do seguinte medicamento. «Tomam-se pontas dos ramos de alecrim verde e introduzem-se num frasco, que se tapa com cera e se expõem ao sol três ou quatro horas, do que resulta destilar o alecrim uma água cristalina, que se utilisa instilando-a nos olhos com a rama duma pena quatro ou cinco 1

Gazeta de Lisboa, de 7 de Novembro de 1795. Ibidem, de 1 de Abril de 1797. 3 Ibidem, 2.º Suplemento ao n.º 13. 4 Ibidem de 21 de Agosto de 1802 e Jornal de Coimbra de 1814 e 1815. 5 Luís Pinto de Sousa. Correspondência oficial para Londres, citado por Augusto de Castro em Manuel Constancio, valioso trabalho publicado nos Arquivos da História de Medicina Portuguesa, de 1922, pág. 117. 6 Gazeta de Lisboa, de 2 de Fevereiro de 1793. 2


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vezes por dia. A moléstia fica remediada em pouco tempo e a vista fica mais clara». Outro ecleriastico, o padre Houet, residente em 1797 no convento da Graça em Lisboa, vendia remédios para várias doenças, em que estavam compreendidas doenças dos olhos.1 José Candido Loureiro,2 muito douto e abalisado oftalmologista escreveu que a influência de Taylor durante a sua estada em Portugal se traduziu na prática de dois médicos, os drs. Ortigão e Francisco José Mendes de Carvalho e dois cirurgiões José Elias da Fonseca e José Gonçalves Correia, que tratavam da oculistica com perfeição, mas não deixaram nada escrito, pela qual se pudesse avaliar a escola que seguiam de perferencia. Mas enquanto cá esteve Schwartz, tanto êle, como o oftalmologista francês, impediam pela sua concorrência que Joaquim José de Santana começasse a ser apreciado na clínica. Sôbre êste cirurgião não há dados publicados relativamente à sua naturalidade, filiação e vida anterior à sua nomeação para substituir Schwartz, que teve lugar a 15 de Fevereiro de 1783.3 João Jacques Bas, saboiano, obteve aprovação da Junta do Protomedicato para tratar por aplicação da máquina eléctrica várias doenças, entre as quáis as dos olhos. Assistia a Buenos Aires, por trás de S. Francisco de Paulo, ao pé da galeria.4 Não consta de ter tido qualquer sucesso na clínica das moléstias de olhos. Em 4 de Maio de 1789 os vencimentos de Santana foram elevados a 440 reis, equiparando-os aos que recebia Schwartz, com a condição de fazer o ensino sem exigir nenhuma paga dos alunos e de lhes comunicar a composição dos remédios que empregava «sem dêles fazer segrêdos».5 Como se vê, no seu livro, desde 1783, se encontram as fórmulas dêsses medicamentos. 1

Gazeta de Lisboa, de 11 de Março de 1797. Do congresso oftalmológico em relação às diferentes épocas de oftalmologia em Portugal no Jornal da Sociedade das Sciências Médicas de Lisboa, de 1868, pág. 230 e seguintes. 3 Oportunamente publicaremos o que conseguirmos apurar a tal respeito. 4 Suplemento à Gazeta de Lisboa, de 1799, n.º 35. 5 Livros 3, 4 e 5 do Registo Geral, dos Hospitais Civis. 2


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Mas êle não se satisfez e por duas vezes requereu aumento de ordenado e na segunda vez pedia também que seu filho, Diogo José Vito Santana, já habilitado para exercer a Cirúrgia fôsse nomeado seu substituto. Estas duas pretensões não foram satisfeitas, porque o Enfermeiro Mór do Hospital as informou desfavoravelmente, indo até afirmar, que o pretendente era o menos hábil cirurgião do Hospital e que a habilitação do seu filho era a simples aprovação num exame feito perante a Junta do Proto-Medicato, que todos sabiam que pouco valor tinha. D. Francisco de Almeida de Melo e Castro afirmou até que no Hospital não havia necessidade de qualquer cirurgião especialista de Oftalmologia, a não ser que fôsse de muito notável merecimento e suprimiu o lugar de oftalmologista, continuando porém a pagar a Santana o seu vencimento. Por fim Santana reformou-se com o ordenado por inteiro por decreto de 27 de Outubro de 1814.1 E assim se encerrou êste ensino, que fôra tão profícuo e que não conseguiu ser restaurado na criação das Regias Escolas de Cirurgia, nem mesmo nas suas duas reformas. Publicou: Elementos / De / Cirurgia Ocular / Offerecidos / A sua Alteza Real / O senhor / D. João / Principe doBrasil / Por / Joaquim José de Santa Anna, / Lente Oculista do Hospital Real de S. José / desta Côrte. / Segue-se uma citação de Cícero. Um brasão com armas reais. Lisboa, M. DCC.LXXXXIII. Na Officina de Simão Thadeo Ferreira. Com Licença da Real Mesa da Comissão Geral sobre o Exame, e Censura dos Livros. 240×153 com VIII – 279 páginas e três folhas com estampas. 1

Resava assim o documento da Chancelaria de D. Maria I: «Hei por bem que haja da Minha Real Fazenda trezentos mil reais anuais, pagos pelo rendimento da Alfandega grande desta cidade de Lisboa de trinta de Maio dêste ano de mil setecentos e oitenta e nove, dia da sua posse, que é o mesmo que tinha o seu antecessor, etc.»


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Dedicatória ao Rei. Prologo em que declara que o motivo de publicação desta obra foi a necessidade dum compêndio em vulgar, visto reprovar o uso das postilas e não encontrar nenhum tratado, que o satisfizesse. Segue-se em Tratado de anatomia e Física dos olhos e primeiro dos ossos, que entrão na composição das cavidades, que chamamos Órbitas. Cumpreende também a Física e a Fisiologia da Visão. Vem depois o Tratado das moléstias dos olhos, que consta de 130 capítulos. Segue-se Collecção de differentes remédios no uso interno e externo, que consta de quarenta e uma formulas e constituía também novodade muito apreciável. Vem depois Reflexões sôbre os principais Instrumentos, que se tem inventado para a segurança do globo, n operação da catarata, que depois da parte histórica, traz a descrição de dois instrumentos inventados pelo autor, um, que denominou Echmommo, destinado a imobilisar o globo ocular e as pálpebras e uma pinça de anéis muito delgada, para extrair a catara ou alguma porção dela, que tenha dificuldade em sair. Índice, a que se seguem três fôlhas com estampas desenhadas por Silva e gravadas por Queiroz. A primeira representa o cirurgião praticando a operação da catarata do ôlho direito, tendo o doente a cabeça imobilisada pelo ajundante, que está por trás dêle. É de notar que o cirurgião com rabicho, veste comprida casaca, calção apresilhado do lado exterior, calção, meia branca e sapatos de fivela. Numa mesa ao lado está p tricorne e espada. O ajudante veste da mesma maneira. O operador colocado de maneira que a cabeça do paciente fica à altura do seu pescoço, com os joelhos fixa os braços e pernas do doente. O grupo está muito perto e à esquerda duma janela ampla. Sôbre o valor da obra e o merecimento do autor, fale por mim Loureiro. «Não se limitou nesta obra a amontoar matéria para formar um compêndio como é trivial, para satisfazer a um dever, ou para se fazer conhecido. «Discute e interpreta com clareza as teorias mais engenhosas da Fisiologia, da Farmacodinamica e da Física ocular.


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«Os autores que êle mais presava era Plenk e Wardenburgo, êste autor dum trabalho sôbre a catarata, etc. e aquele do da doutrina das moléstias dos olhos. «Não lhe eram estranhas as teorias de Beer, que começavam a dominar a Oftalmologia,bem como as obras de Palluci, David, Sharpe, Guerin, Pamard, Jean Janin, Pellier e sôbre todos, a de DeshaisGendron. «É para registar o capítulo que consagra ao estudo das leis de Optica e de Dioptrica, em que entra em largas apreciações sôbre a teoria da visão de Juzin, então a mais adoptada. «Em seguida trata aforristicamente de quási tôdas as moléstias de olhos, que eram conhecidas e de maneira tal, que não fica ïnferior aos melhores tratados da especialidade, que apareceram naquela época. «Sôbre as moléstias mais importantes é suficientemente explicito e mostra conhecer tudo quanto se tinha dito e feito até então. «Santana não era só um bom médico ocular, como também um operador distinto. Praticava tôdas as operações com destrêza e perfeição, na da catarata simples ou complicada era então insigne. Na catarata ordinária empregava o processo da extracção por keratotomia inferior, como o praticavam quási todos os oculistas célebres. Era a prática alemã. «É curioso ver os instrumentos de que êle se servia e alguns mesmo de sua invenção. «Era de opinião que se devia operar qualquer catarata, logo que ela se completasse em um ôlho, pois que assim se retradava, ou evitava a formação da do outro. «Fimalmente Santana entregue, por assim dizer, à escola alemã, partilhava também as mesmas idéias sôbre a especialidade das oftalmias. É um dos pontos mais interessantes da sua obra ver como êle segue de perto a formação da purulência ocular, descriminando-a da que resulta da inoculação sifílitica. É a separação completa da oftalmia purulenta, da blenorrágica de hoje. «E prosseguindo neste estudo descreve com conhecimento e precisão o tracoma das pálpebras, a granulação palpebral dos nossos dias, como certamente não era conhecida entre nós em 1844, quando chegámos de França». Arquive se ainda estas informações de Loureiro sôbre o sucessor de Sehwarte.


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«Santana era um talento vulgar, modesto, altivo e trabalhador incansável, mas dum trato pouco acessível, impróprio para se tornar o reformador de que tanto a ciência carecia». E acrescenta, que à proporção que a cirurgia em Portugal se engrandecia e apareciam cirurgiões distintos, que rivalizavam com os melhores médicos da Universidade de Coimbra, Santana era cada vez mais violentamente atacado.

III O cirurgião António de Almeida e o capítulo sobre Oftalmologia do seu Tratado Completo de Cirurgia Operatoria. O que mais deve ter contribuído para que se formasse a opinião de que era dispensável a especialidade clínica e docente da Oftalmologia, foram os sucessos do ainda não assaz celebrado cirurgião António de Almeida na clínica hospitalar e civil, exalçados pela publicação da sua obra em quatro volumes Tratado Completo de Medicina Operatória, oferecido a sua Alteza Real o Príncipe Regente Nosso Senhor1Lisboa, 1800. No volume terceiro a parte que diz respeito ao assunto, que nos interessa, ocupa de páginas 125 a 287, isto é, 163 páginas. O capítulo Das operações, que se praticam nas vias lacrimais tem uma parte anatómica, a que se segue a etiologia e patologia da obstrução dos canais lacrimais e depois a descrição da operação, que se pratica para curá-la, que descreve com pormenores, assim como a empregada, quando se não praticar aquela, ou se ela não tivesse tido resultado. Trata depois da obstrução do saco e conduto lacrimal e do que hoje se chama dacriocistite e das suas conseqüências (carie, abcessos, fístulas, etc.), e faz desenvolvida exposição dos processos curativos, a 1

Não se encontra explicação do silêncio de Loureiro sôbre António de Almeida na história, que traçou da Oftalmologia no nosso país.


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propósito dos quais se refere à invenção da sonda de Anel e aos sucessivos aperfeiçoamentos do seu processo por Heister, Pott, Mejean, Cabanis, Forest e Aquapendente. Refere os processos da sonda metálica permanente, sedenho, canulas e o de estabelecer um canal artificial para evacuar as lágrimas, preferindo para êste fim o processo de Pellier filho. Passando depois às moléstias das pálpebras, trata do edema, abcesso, ecchymoma1 (infiltração homorrágica), poro ou águia (tumor semelhante a um calo, que algumas vezes se segue às úlceras) que extirpava com tesoura, tracoma, de que distingue três variedades, da sites, sicosis e thilosis. Segue-se o que diz respeito ao hordeolo ou torção (que o vulgo actualmente designa por terçol ou terçolho2), chalazion ou granizo, tumores cirrosos ou enquistados, verrugas, cancro das pálpebras (em que no caso de extirpação aconselha, que se fixe o tumor com o tenáculo3), varizes, pedra ou areias e trichiasis, em que distingue duas variedades, phtosis e distichiasis e a propósito trata do arrancamento das pestanas com uma tenaz. Cita a phalangosis, que define «relaxação das pálpebras, particularmente da de cima, resultando a interrupção da vista pela impossibilidade de abrir o ôlho», que declara ser alguma vez devida a paralisia e que aconselha se trate levantando a pele da pálpebra com uma pinça ordinária de maneira a formar uma prega ao correr da pálpebra, que se corta e depois a ferida oval que fica se fecha cozendo os seus dois bordos. Segue-se o ectropio ou inversão das pálpebras, cujo tratamento cirúrgico descreve, lagoftalmia ou ôlho de lebre pelo encolhimento da pálpebra superior, em que aconselha o uso «de antolhos verdes, ou guardapó (sic), anchylollephoro ou união contra a natureza das pálpebras, congénita ou adquirida, cujos processos operatórios descreve eckantis, excrecência que se forma na caruncula lacrimal, contra a qual reprova a aplicação de cáusticos e aconselha a extirpação e argueiros e outros corpos estranhos nos olhos, que diz extraírem-se muitas vezes com facilidade, metendo as pestanas da pálpebras inferior entre o globo do ôlho e a pálpebra superior e sobrepor esta 1

Reproduzimos a ortografia dos termos médicos, que se encontra no livro. Bluteau traz também tercò. 3 Os dicionários são mudos quanto a êste termo, que o Vocabulário da Academia regista. 2


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por cima da inferior, deixando-a estar assim algum tempo para que as pestanas se peguem ao argueiro, ou quando êste processo não consegue a extracção, fazê-la com a ponta dum lenço torcida e molhada ou com a tenda ou sonda de botão. A seguir no capítulo Das moléstias das membranas do olho ocupase da oftalmia, nome com que designa a conjuntivite, cujas causas enumera, entre as quais a produzia pela matéria da gonorrea, levada pelas mãos sujas de natureza sililítica. No tratamento inclue as sangrias gerais ou locais, os laxantes, as escarificações, que louva muito, as cataplasmas de miolo de pão ou polpa de peros, as emborcações de leite e vários colírios, dos quais prefere a solução de doze grãos de chumbo, quatro a seis de sal amoníaco numa libra de água destilada, além das águas chamadas oftálmicas, de rosas, funcho, Eufrásia, celidínia, murta, coroa de rei e as preparações de chumbo, mercúrio, zinco ou cobre. Adverte que os remédios ácidos, variólico, de sumo de limão ou vinagre, são muitas vezes prejudiciais. Contra a oftalmia gonorreia recomenda o mercúrio dôce na dose de oito a dez grãos, dissolvido numa libra de água destilada com alguma goma arábica, ou três grãos de sublimado corrosivo com seis a oito de sal amoníaco na mesma quantidade de água, a que se junte algumas gôtas de tintura de ópio ou mucilagem de pevide de marmelo. Também julga úteis os ungüentes, mas reprova o uso interno dos preparados mercuriais. Seguenm-se o edema da conjuntiva, a equimose da mesma, as suas pústulas ou farpões, a phyctena, que aberta espontaneamente ou com a lanceta, trata com as águas saturninas e, se é muito ardente, além de rompê-la o mais cêdo possível, emprega os remédios internos e externos contra a inflamação. Segue-se o pterigio, pano ou unguis, para que são úteis as águas saturninas ou vitriólicas ou os pós de assucar, sal de chumbo, e vitríolo branco soprados por um canudinho e se não se conseguir resultado, aconselha a extripação usando do tenáculo, bistori ou tesoura, mas não levantando o pterigio com linha passada por baixo dêle, como alguns praticavam. Vem depois os obcessos, ónix ou mancha branca formada por matéria interposta nas lâminas de eclerótica, estafiloma, em que distingue o verdadeiro do falso. Consiste o primeiro na saída das membranas do ôlho através duma rutura da córnea e o falso na


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dilatação dalgumas dessas membranas, quando as externas se destroem. Dá pouco crédito aos remédios internos e louva os colírios adstringentes e a compressão, a perfuração ou a abertura franca, mas não o processo do estrangulamento pela linha passada com agulha. Quanto á opacidade da córnea trnasparente e o leucoma recomenda o bórax, pedra ume, vitríolo branco e particularmente o mercúrio dôce, misturados com assúcar cândi, casca de ovo ou de ostra, dissolvidos em sumo de limão ou do espírito volátil de ponta de veado e reprova o processo de Pellier filho de engastar no ôlho, uma córnea artificial feita de vidro. Trata depois das excrescências da córnea transparente e das fístulas, em que aconselha o nitrato de prata e o leite. Quando ao hipópio, que distingue do derramamento de sangue, aconselha a abertura da câmara anterior na parte mais baixa da córnea transparente. Faz ligeiras considerações sôbre a mydriasis ou dilatação da pupila e quanto á phtísis, nome com que designa a contração da mesma, estabelece confusão com a hemeralopia; descreve a operação da iridotomia e declara preferir para êste fim penetrar na câmara anterior e fazer o corte verticalmente servindo-se da faca curva. Na amaurosis ou gôta serena, depois de citar as causas, que lhe atribuem, diz tirar-se algumas vezes resultados com as sangrias gerais e locais, eméticos repetidos, aturado uso de calomelanos e outro tratamento mercurial, tónicos, banhos frios, aplicações eléctricas e águas termais. Na hidroftalmia ou aumento do humor aquoso ou do vítreo, para o qual não acredita nos remédios preconisados aconselha abrir a córnea, como na catarata e confirmado o glaucoma, fazer a pararentese do ôlho, em que prefere a incisão á perfuração com trocarte, como fazia Wolhouse. Quanto à catarata depois das causas e sinais, ocupa-se do prognóstico de maneira interessante e dando pouco crédito aos remédios aconselhados por alguns, passa a tratar da intervenção cirúrgica pelo processo do abaixamento, que designa por depressão. Refere as diferentes agulhas propostas para esta operação, das quais prefere as de Brisseau e Pallucy em forma de lança e de mediana largura. O ponto da esclerótica por onde se tenta fazer penetrar a agulha, que julgava preferível, era «um pouco abaixo do diâmetro transverso da córnea e linha e meia afastada do seu limbo». Nêste capitulo cita Ferrein, Petit, Taylor e La Faye.


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Começa o capítulo Da extracção da catarata pela história muito interessante desta operação e quando chega Daviel, escreve: «Posto que Daviel interrompesse a prática desta operação por algum tempo, com tudo até o ano 1752 tinha feito 206 operações, das quais aproveitaram 182, apesar-dos instrumentos não serem os mais próprios, os quais consistiam em uma agulha cortante semicurva, com que fazia a primeira abertura na córnea, outra romba mais larga e cortante, com que aumentava a dita abertura, dois pares de tesouras curvas, com que cortava o resto da córnea até completar o meio círculo, uma pequena espátula de ouro, prata, ou aço para levantar o alçapão, uma agulha à maneira de lança para cortar a cápsula do cristalino, um pequena colher de ouro para tirar os fragmentos deste se ele se desfazia, finalmente umas delicadas pinças para extrair alguma porção membranosa, que se apresentasse». Históría depois as simplificações do instrumental devidas a Garengeot, La Faye, Poyet, Sharp, Berrenger e outros até Wenzel, que António de Almeida adoptava. Enumera depois os instrumentos empregados para fixar o globo ocular desde o speculum oculi inventado por Petit e melhorado por Lecat, que reprova por muito perigoso, a ponto de dever chamar-se-lhe vasa-olhos, a tenaz de Guerin, a pinça de Pope, o fio de Pyer, a haste de Pamard, a meia lua dentada de Pellier, que julga menos conveniente do que a precedente, o dedal do Rompelt, preferido por Wensel, o oftalmostato de Demours, a que se seguiram ou mais ou menos semelhantes, que António de Almeida considerava todos perigosos, preferindo-lhes a haste de Pamard. A operação, como a praticava, é assim descrita: «Sentado o enfermo em uma cadeira defronte da janela, mas de modo que a luz caia oblìquamente do ângulo externo para o interno e tapado o ôlho que se não opera com um chumaço sustido por meio de uma venda, um ajudante situado por detrás segura a cabeça encostada ao seu peito com uma das mãos e com o dedo indicador da outra levanta a pálpebra inferior, aproximando o tarso da borda orbitaria. Isto feito, senta-se o operador defronte do paciente em uma cadeira mais elevada e põe o pé correspondente ao ôlho, que se há-de operar, em cima do assento da cadeira o enfermo para o joelho servir de apoio ao cotovelo e, abaixando com os dedos indicador e mediano, um pouco afastados um do outro, a pálpebra inferior, toma na mão com


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que há-de operar, isto é, na direita, operando no ôlho esquerdo e viceversa, o canivete, como se pegara em uma pena para escrever. Então descançando o cotovelo sôbre o joelho firma a mão do canivete com od dois últimos dedos apoiados na parte externa da órbita, tendo o canivete em uma direcção oblíqua de cima para baixo e de fóra para dentro. Nesta situação espera que o ôlho se volte alguma cousa para o ângulo externo e cessem os movimentos convulsivos excitados pelo temór e mete a ponta do canivete na parte superior e externa da córnea, a um quarto de linha afastada da esclerótica e o vai dirigindo na mesma direcção até a ponta sair na mesma distância da dita esclerótica no ponto diametralmente oposto, isto é, na parte inferior e interna da córnea transparente. Atravessada a córnea, pára com o canivete e espera que o ôlho pelos seus movimentos seja o que acabe o corte, mas se nisto houver alguma dificuldade, meterá a unha do dedo mediano, que segura a pálpebra, entre a esclerótica e a ponta do canivete, para que, imprimindo neste alguma fôrça, acabe o corte muito devagar e com muita suavidade. «Feita a secção da córnea, soltam-se as pálpebras e conserva-se o ôlho fechado por algum espaço de tempo para cessar o estímulo e abaixando-se a pálpebra inferior, se fazem ligeiras e aturadas compressões na parte inferior do globo com as costas da colher, para fazer sair a catarata, mas, se estas são baldadas, cumpre cortar-se a cápsula do cristalino com a ponta da faca curva ocular, metida com o dorso voltado para o ângulo interno, até chegar defronte da pupila, e então dirigindo a ponta ao cristalino e ficando o dorso contra o alçapão da córnea, devide a dita cápsula de cima a baixo, sem tocar na iris, seguindo-se a isto retirar a faca e fazendo brancas compressões, como acima, para sair a catarata. «Se quando o canivete vai passando pela câmara anterior, a uvea o vier embrulhar, o que é muito fácil, particularmente tendo-se entornado alguma porção do humor aquoso, o operador com a polpa do dedo mediano, que segurava a pálpebra inferior, fará ligueiras fricções sôbre a córnea até que a uvea ganhe a sua situação natural e se retire». Depois de descrever o canivete preferido, que era o de Wenzel pai, vulgarmente chamado de Richeter e de recomendar que não haja pressa de fazer a operação, ao contrário do que os saltimbancos (sic) faziam, torna a recomendar a haste de Pamard para fixar o globo do ôlho, mas que de modo nenhum se deve aplicar, a ponta como


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aconselhava o seu inventor, na córnea transparente, porque além de não poder segurar devidamente o globo ocular, pode causar o glaucoma. Depois de referir as complicações que podem dar-se durante a operação e depois dela e as maneiras de preveni-las e remediá-las, discute qual seja o logar mais próprio para a secção da córnea, faz a comparação entre dois processos, abaixamento e extracção, pronunciando-se francamente a favor deste último. Trata nos capítulos seguintes do estrabismo, miopia, presbiopia, saída da órbita do globo, sua extirpação e olhos artificiais. Da leitura desta importante parte do Tratado resultam duas conclusões, a valiosa erudição do seu autor, auxiliada pelo são critério, que lhe permite pesar e escolher dentre as opiniões e processos expendidos os mais aceitáveis e úteis e a certeza de que António de Almeida ao publicar esta obra, já tinha prática muito apreciável da maior parte das operações cirúrgicas, a que se refere, o que, dado o ambiente se simpatia e respeito de que gozava, lhe devia proporcionar farta clientela, tanto para a cirurgia geral, como para a especialidade oftalmológica. Pena é que o seu merecimento apresente uma sombra, constituída pelo silêncio que manteve relativamente aos portugueses, que o precederam e especialmente a Santana. Êste facto e o regresso dos enviados a estudar principalmente em Inglaterra nas escolas práticas, onde estavam representados os avanços marcados especialmente na Obstetrícia e Cirurgia, foram as causas principais, que moveram o Enfermeiro Mór dos Hospitais Civis a dispensar o ensino ministrado por Santana, êrro de que talvez não chegasse a arrepender-se.

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Vê-se pois, que o século XVIII acabara no nosso país por forma tal, que se pode bem dizer, que os adiamentos, que nele se tinham feito nas ciências médicas e que se conseguira trazer até nós, eram principalmente os que diziam respeito à Cirurgia e de tôdas as especialidades clínicas era a Oftalmologia a única, que se organizara no ensino e na prática e se podia considerar como digno reflexo do movimento do progresso havido nas nações mais adiantadas, o que fora exclusivamente feito em Lisboa e no seu hospital, fora de a influência universitária. A Obstetrícia havia pouco tempo que era ensinada em idênticas condições, mas não tendo no seu activo dois tratados deste valor, sem contar o de Montalto, e com a circunstância de os clínicos que a exerciam com competência terem sido educados no estrangeiro nas missões, que de Lisboa tinham sido ali enviadas.


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