História da Oftalmologia Portuguesa

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Julgava úteis na hemeralopia as fumigações de castor, mas não se refere ao uso dos fígados de carneiro e cabra, já usados desde o tempo de Hipócrates.

História da Oftalmologia Portuguesa

No meado do Século XVI havia em Argel um médico chamado Alexandre, que tratava de doenças de olhos e ali ficara cativo. D. João III escreveu ao rei mouro com o fim de resgatá-lo 1.

I

Amato Lusitano nas suas Centurias referiu-se a uma epidemia oftálmica, que grassou em Lisboa em 1560 2.

Aditamentos aos precedentes capítulos. Remédios aconselhados pelo nosso Pedro Julião para as doenças dos olhos. O oftalmologista Alexandre. Uma epidemia no Séc. XVI. Receita de D. João de Castelo Branco. Uma observação de Zacuto. Três oculistas em Lisboa. Os óculos de beril encomendados pela rainha D. Catarina. Exportação de óculos para o Brasil.

No último quartel do século XVI entre muitas receitas medicinais de D. João Castelo Branco, encontrava-se a da Agoa para os olhos Vorica e excelente de Dom Pedro faxardo (Fajardo), que ensinou a D. Manoel de Portugal e se transladou da própria 3. Era um composto de sal comum, sal amoníaco, salitre e sais de cobre, prata e ouro.

Pedro Julião no seu Tesouro dos pobres deixou entre outras receitas as seguintes:

O oftalmologista Mackensie cita uma observação de Zacuto dum doente com uma oftalmia rebelde, curada em sete dias pelos mercuriais4.

Recomendava um colírio preparado com funcho e outro feito de semente de abóbora, goma arábica, adagranta e alcaçuz fervidos em vinho branco até o líquido se reduzir a metade.

Ao que escrevemos sobre os oculistas dos séculos XVI e XVII 5, deve juntar-se o seguinte:

Julgava útil nas doenças provenientes de humores frios e fleumáticos os mirabolanos, cana fístula e um colírio composto de fel de andorinha e de perdiz, sumo de funcho e arruda em vinho branco.

Em 1530 havia em Lisboa um Francisco Prometeu, casado com Leonor de Paiva e morador à Jubetaria, que fazia óculos. 6 No século seguinte Joaquim Francisco, francês, estabelecido na rua de S. Bento, logo abaixo da Botica de Elrei, era vidraceiro e vendia óculos de ver ao longe, de sua invenção e outros de algibeira, grandes e pequenos7.

Aconselhava também o fel de touro ou da ave que quebra os ossos das lebres (a águia?) do abutre, grou, pardal, raposa, cão, carneiro bravo, da ave tardus, gato, totinegra ou do bode misturado com fezes humanas. Entendia que o terçol devia picar-se com um grão de cevada, ou com uma formiga morta, introduzida entre as pálpebras. Aos tumores formados no bordo das pálpebras aplicava durante a noite bofe quente de boi ou de lebre.

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Ms. do mosteiro de S. Vicente. L. III, no A.N. da T. do T. O Escholiaste Medico de 1851, pág. 36 3 Ms. 49-­‐II-­‐74 e 75 da Biblioteca da Ajuda 4 Harry Friendenwald. Abraham Zacutus, p. 476 nota 5 Silva Carvalho. História da Oftalmologia Portuguesa (até ao fim do Séc. XVII), p. 19. 6 R.P.C.F. da Conceição Nova, fl. 18 v.

Nos traumatismos, ardores ou irritações louva a aplicação da gema ou melhor da clara de ovo.

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Na uugula (pterígio) usava o sangue de inguia viva, ou, remédio de Constantino, o sumo de várias ervas e na blefarite, que designava por caractlila, recomendava o azeite, em que se tivesse fervido lagartas.

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Hebdomadario Lisbonense de 1764, nº 6


quatro, de três dos quais démos notícia11, sendo o último Mestre Jacques Mocet12, a que se referem os mandados da Raínha D. Catarina, que transcrevemos. Devia ser o mais hábil, não só por ser o preferido na côrte, mas por se depreender dos escritos agora publicados, que êle afeiçoava os cristais vindos da India. Que a sua obra era perfeita mostra o valor que lhe davam na côrte, pois constituía presente precioso com que D. Catarina mimoseava as pessoas que desejava obsequiar.

Manuel Antunes, que provavelmente herdara o ofício de oculista de seu pai, o preto fôrro Gaspar Jacques, viveu em 1637 e não em 1673.8 A rainha D. Catarina, esposa de D. João III, que desde a morte deste até Dezembro de 1562 exerceu a regência do reino, ordenou: «Afonso de coulígua mandouos que pagueis a Jacques que faz óculos vinte e nove mil e seiscemtos rs de vinte e quatro pares de óculos que per meu mandadofez de hüa pedra veryll9 que me veio da Imdia E lhe foy emtregue em minha Recamara E asi de corregimento de certos espelhos de crystal. E de outras cousas que fez e se lhe montou de tudo o que fez os ditos vimte e nove mil e seis cemtos rs, e por este que não passaraa pella chancellarya. E seu conhecimento feito pello escrivão de vosso carguo vos serão leuados Em comta. Sem mais outra Rezão do que se fez dos óculos por quanto quando mos trouxe o dito Jacques eu fiz mercê deles algüas p33 E por isso se não carreguarão nhüs Em receita Em minha Recamara bastião da fonsequa o fez ë Lixª a sete dias de Junho de mil quinhentos cincoëta E quatro Antº de Sampayo o fez escrever

A fama que os óculos feitos em Lisboa tinham adquirido e que chamava a esta cidade os espanhóis, como referimos devia em parte serlhe devida. A este propósito convém arquivar a notícia de que no fim do século XVII se exportavam óculos para o Brasil. Um Domingos Martins contou que na Baía deixara nove «óculos de vista curta e óculos de idade» e depois mandara para ali seis dúzias e meia, dos quais dôze eram de vista curta13. Daqui se conclue que no Brasil a miopia era muito menos freqüente que a hipermetropia.

Raynha»

t

«Alua º Lopez mandouos que deyes a Jacques francês que faz óculos quatro mil rs de quatro pares de óculos que fez de hüa pedra veri que lhe foy emtregue ë minha Recamara E do corregimento de certos espelhos de crystal, dos quaes óculos não há saber Receita, bastião daº sequa o fez ë Lisboa axbiyº de março de mil bc cimcoemta E seys. Antº Sampayo o fez escrever.

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História da Oftalmologia Portuguesa até ao fim do século XVII, pág. 2I. Com êle aconteceu o seguinte episódio , que lhe podia ter saído muito caro. Morava junto à igreja da Madalena, como o seu colega e patrício André Bom Sargento. Tinha uma escrava que estava lavando uma toalha a um domingo. Algum fanático, quem sabe se familiar do Santo Ofício, exprobou êste quasi pecado, de trabalhar no dia de descanso preceituado pela igreja e para lhe fazer mais sentir e se gratificar a si mesmo pelo seu zêlo, tirou-­‐lhe a toalha e levou-­‐a. Indignou-­‐se o mestre oculista e clamou dizendo que custava a crer que o Arcebispo de Lisboa (ainda não havia Patriarca) consentisse, que se fizesse esta extorsão e a seguir defendeu calorosamente as pessoas, que por necessidade trabalhavam ao domingo. E terminou declarando que se não lhe restituíssem o objecto roubado, se havia de vingar em algum clérigo ou frade nos óculos que lhe vendesse, provavelmente fazendo com que levasse alguns imperfeitos. Sendo denunciado foi chamado à mesa da Inquisição e a 2I de Abril de I572 confessou a sua culpa. Não consta que fosse processado, talvez porque o inquisidor tivesse receio e que lhe entortasse mais a vista, do que já estava, a não ser que o Paço lhe valesse, mas deve ter apanhado um grande susto. (Denuncias. Livro 7, fl.229 no Arquivo Nacional da Tôrre do Tombo). 13 No testamento de Domingos Martins, aberto a I2 de Dezembro de I694 lê-­‐se: «Ficaram-­‐me na Baía na mão de Manuel da Costa dos Santos quarenta e um pares de punhos de espada falsos, morador na dita cidade, na rua Direita indo para as portas do Carmo; e vindo os ditos ou o seu procedido, se entregará a Manuel Nunes Colares e ficaram na mão do dito Manuel da Costa dos Santos quando da Baía parti, nove óculos de vista curta e oito óculos de edade e remeti mais ao mesmo seis dúzias e meia de óculos, em que entram doze de vista curta e tres espelhos de barbeiro. (Testamentos. L. 72, fl 7 no Arquivo Nacional da Tôre do Tombo). 12

Raynha»10 Já referimos que no meado do século XVI havia em Lisboa vários fabricantes de óculos. Cristóvão Rodrigues de Oliveira escreveu que eram

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R.P.C.F. de Santa Catarina. L.2, fl 79 v. Leonel da Costa o tradutor e anotador das Eglogas e Georgicas de Virgílio escreveu beril, no primeiro quartel do Séc. XVII, mas o geral dos escritores antigos, designavam este cristal por berillo e mais ramente por beryllo. Diziam ser verde, ou entre verde a azul, atribuíam-­‐lhe virtude contra certas doenças dos olhos (feridas e humidades). Julgavam uns serem esmeraldas com cor apagada, outros consideravam-­‐nos variedades de topasio e outros ainda tinham-­‐nos como águas marinhas. 10 Corpo Chronologico. Parte I.ª. Março 97 doc. nº I2I no Arquivo Nacional da Tôrre do Tombo. 9


Feliciano de Almeida16 considerava a oftalmia como uma erisipela e nela distinguia a taraxis ou conturbação, que é a conjuntivite ligeira e a neuroftalmia ou oftalmia sêca; a propósito destas enfermidades aconselha:

II Primeira metade do século XVIII. Um clérigo operador de cataratas. Luis Gomes Ferreira. Feliciano de Almeida. O Escudo apologético. João Lopes Correia. O tratado traduzido por João Vigier. Receitas do Curvo Semedo.

«Na cama (do doente) tenha cobertor verde, ou alguma cortina ou pano da mesma côr, porque he muyto grata aos olhos, em razão de os não ofender pelo seu brando luzimento; não use de cobertores vermelhos, porque são lucidos à vista.»

No princípio do século XVIII em Portugal ao passo que os cirurgiões se não atreviam a operar a catarata, havia alguns curiosos que se abalançavam a tanto. José Rodrigues de Abreu, conta 14:

Louva como bebida o cosimento de cevada. Como remédio as sangrias, laxantes e diaforéticos. Em aplicações directas a água de clara de ovo, água rosada, de tanchagem e outras emolientes e acima de todas o cozimento de camoesas, misturado com aquelas águas e mucilagem de marmelo, assucar, cânfora e açafrão. No declinar da doença usava a lavagem com água ardente. Nas oftalmias antigas prescrevia um colírio com azebre e tutia. Tôdas as oftalmias que resistiam a êste tratamento, considerava de natureza sifilítica e por isso entendia deverem ser tratadas pelos remédios desta afecção.

«Aqui vimos e conhecemos hum clérigo velho, natural e assistente na Villa da Vidigueira da província do Alem-Tejo, sem alguma notícia de Cirurgia, porém com a grande habilidade de abater Cataratas, chamou-se à Corte para executar esta obra em varias pessoas, que a dependião; na nossa presença fez algumas em mezes determinados do anno e quando julgava estarem capazes, observamos que os doentes adquirião alívio, mas não permanente, porque nenhum melhorou de todo, e assim forão vivendo em trabalho, até que acabarão a carreira de vida com a mesma queixa.»

A propósito do pterigio ou unha, lembra que Amato aconselhava o uso de água forte dos ourives, destemperada com água de rosas, que Feliciano de Almeida diz que se não deve usar como os colírios, deitandoa dentro do olhos, mas servindo apenas para se molhar uma pena de ave, com que depois se toque a lesão.

Cêrca de 1710 estava no Brasil um cirurgião, Luis Gomes Ferreira, que vendia remédios para várias doenças entre elas, para névoas e belidas. No Syntagma Cirurgico15, que é tradução do tratado de João de Vigo, publicado em Lisboa em 1710, o cirurgião José Ferreira de Moura trata das chagas, manchas e panos dos olhos, máculas, comichão, sarna e aspereza das pálpebras, unha, sebel que define a «panículo elevado sobre a conjuntiva e a córnea, com inchação das veias daquela membrana, dos cabelos que nascem à volta das pálpebras», que aconselha se arranquem, etc…

Depois de recomendar outros medicamentos, aconselha um colírio, que na dose de cinco ou seis gotas, duas vezes ao dia se deitará dentro do ôlho. Era composto por vitriolo romano, ferrugem de metal ou verdete, água-mel destilada e vinho branco. Se a tudo isto resiste a lesão, opera-se assim: «Sentado o doente em huma cadeyra, & ministros que nella o tenhaõ firme, & seguro, abriraõ as pálpebras do olho doente com hum speculo oculi feyto de chumbo, ou de prata & se conservem abertas com este instrumento. Entaõ o Cirurgiaõ com hum gancho pequeno feyto de

14 15

Historiologia Médica, t. II, pág. 888. Existe um exemplar na Biblioteca Nacional de Lisboa com a cota S.A. I335 preto

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Cirurgia reformada – Lisboa, 1715


agulha, levantará a unha ou peterygio no meyo. Dahi com huma agulha delgada com fio dobrado, metido por entre a tunica adnata, & a unha, se aperte & passado o fio se mova, ou abata a unha levantando-a para sima, & com huma lanceta curvada se principie a separar a unha com cautela, que se não offenda a córnea, nem a tunica adnata. Separada a unha, a cortarão com as pontas de huma tenaz redonda, fugindo todo o possível de deyxar nada della, porque facilmente então despreza a cura, principalmente se a unha for cartilaginosa.»

então designavam por exolftalmia, que além doutras causas, pode ser produzida na grávida por tomar o puxo com grande fôrça, tendo tapada a boca e o nariz, e nos que tocam trombeta, nos casos de tumores intracranianos, etc.. Segue-se o estrabismo, que o vulgo então chamava vesgo, para o qual refere a aplicação dos oculos escuros com um buraquinho no centro, para obrigar os doentes a olhar por êles e a recomendação de não os alumiar com candeias postas ao lado, mas sim na frente, para que o desvio não aumente.

Depois trata da sugilação, névoa (que confunde com glaucoma), albugo ou leucoma, chaga da córnea, procidência da uvea (iris) e anchylops, que define «tumor pequeno como furúnculo, com inflamação ou sem ela, nascido entre o lacrimal, ou canto grande do olho e o nariz.»

Depois trata do fico cancroso (carcinoma), a propósito do qual descreve umas chagas dolorosas na iris, com veias em roda. Considera-o incurável e aconselha o clínico a que assim o declare à família e apenas tente remédios paliativos.

Pouco depois publicou-se: Escudo Apologético, Physico, Optico Opposto a várias objecoens, onde se mostra como & de que parte se faz, ou se determina a sensação do objectivo visivo, por Bernardino Botelho de Oliveira, - Lisboa, por Matias Teixeira da Silva e João Antunes Pedroso, 1720. In-4.º.

Contra a tracoma aconselha deitar no ôlho leite de mulher. Designa o edema das pálpebras por enfizema, e aconselha a aplicação de queijo fresco, casca de rabanos, etc.. Refere-se à aglutinação das pálpebras, a que chama coalito, ao eclropio, vulgarmente conhecido por inverso, para o qual preconiza a abstenção da intervenção cirúrgica.

Sob a forma de diálogo diz ser falsa a doutrina de que as imagens dos objectos vistos atravessam a retina e vão pelos nervos ópticos até impressionar o que o autor chama o imaginativo.

Depois trata do lagoflalmos ou afecto lepurino que consiste na retracção da pálpebra inferior.

Botelho de Oliveira era natural de Lisboa e, escreveu Barbosa Machado, era ornado de inclinação para a Poética, de profunda especulação para a Filosofia e de inúmera habilidade para todas as Artes Mecânicas, em que fêz admiráveis inventos. Apesar de tantas habilidades e méritos, ignorava não só o que escrevera Montalto na sua Optica, mas também o que já no seu tempo era matéria corrente sobre a Fisiologia do aparelho visual. O cirurgião do Hospital de Todos-os-Santos, João Lopes algumas novidades17. Depois de fazer o elogio muito olhos, começa a enumeração das doenças que podem bugalho do ôlho, que são a atrofia, e a procidência, que

Seguem-se os capítulos sôbre a hidatide, «substância pingue ou pedaço de gordura, que nasce no couro da pálpebra superior» ordeolo «tumor comprido e duro, que vem entre as pestanas», grando, que o vulgo conhece por saraiva ou pedrisco, «tumor redondo que nasce nas pestanas», madaroseo «difluvio das pestanas», triquíase e falangosis, nomes das afecções que determinam a má implantação das pestanas e a irritação que produzem na conjuntiva, ptiriasis ou piolhos louros das pestanas, riade, que importa a deminuição da caruncula, encantis «tumor feito no canto do ôlho, junto ao nariz» fistula, do lacrimal e passa a tratar da oftalmia, que confunde com epifora, sendo muito extravagante a dieta, que aconselha.

Correia, traz-nos interessante dos manifestar-se no alguns autores já

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Caslelo forte contra todas as enfermidades, etc. – Lisboa, 1723.


É muito extenso o capítulo da terapêutica, em que se dá conta de remédios particulares de vários autores e entre êles, dos preconizados pelo nosso Zacuto.

No 2.° volume João Lopes Correia ainda se ocupa da Chaga da túnica córnea (pág. 108), das Feridas dos olhos (302), Feridas das pálpebras (303), Feridas das sobrancelhas e dos olhos dadas em sua substância (305), das Cousas notáveis acerca dos olhos (309) e da Oftalmia (504).

Ocupa-se depois da oftalmia por ventosidade, pterigio ou unha, pano dos olhos, hyposphagma ou sugilação, vícios ou enfermidades, que vêm aos olhos, belidas ou albugos, nebulas ou nubeculas, flitenas da cornea, hipopios, procedência da uvea, dilatação da pupila e sua angustia ou diminuição, sufusão dos olhos, debilidade da vista e gota serena.

Apesar das superstições do que está cheia, esta obra merece ser consultada pela extensão das noticias sôbre as doenças dos olhos e pelas contribuições que traz sôbre o vocabulário e medicina popular. Na travessa da Chancelaria-Mór do Reino, também conhecida por travessa do Rato, havia uma botica, onde em 1729 se anunciava entre outros preparados secretos de efeito maravilhoso, o Óleo singularíssimo experimentado há mais de trinta anos, o qual cura com brevidade e sem perigo nos olhos as névoas, belidas e farpões, e também há diversas águas e ungüentos para as inflamações e dôres dos ditos olhos18.

Designava a catarata por sufusão e definia-a «uma lesão na vista, feita de humores crassos e ácidos no humor aqueo, vitreo ou cristalino, e as suas causas obstruções que impedem o trânsito dos espíritos animais, feitas de humores, que descem do cérebro e se ajuntam na pupila, ou do estômago. Ao princípio o doente vê uns corpusculos, como que andam voando, que lhe parecem moscas, cabelos ou teias; mais tarde lhe parece o ar nebuloso, parece-lhe estar vendo por um vidro grosso e a pupila parece turva e nebulosa como vidro manchado». Todos estes sinais são permanentes.

Feliciano de Almeida conselha19 que estando a catarata madura e purgado o doente, se sofrer de prisão de ventre e curada qualquer outra enfermidade de que êle padeça, escolher-se-á o verão, por ser o ar mais temperado e pelas nove horas da manhã, se fará a operação, que descreve assim:

Acreditava no uso de laxantes e sangrias, de várias ervas, do sangue quente de qualquer animal e principalmente do pombo, fel do peixe chamado carpico, fígado fresco, bofe, mel, etc.. Quando estes remédios não davam resultado, aconselhava «meter o doente em unturas de azougue» como fêz numa Isabel que veio cega de todo ao Hospital de Todos-os-Santos a 15 de Outubro de 1696 e que completamente ficou curada.

«Mandarão sentar o doente em parte adonde não haja muyta luz do dia, atar-lhe-hão os pés, & as mãos, & hum ministro20 lhe terá a cabeça bem firme, & ao lado do enfermo terão huma luz acesa; sobre o olho lhe porão hum pouco de algodão, ou outra qualquer cousa molle, & o atarão, para que assim evitando o movimento do olho são, se não mova o doente; então o Cirurgião com a agulha, que será de aço, ou de prata, a começará a meter pela parte pequena do olho, por entre a pellicula, & a tunica cornea, separando, & deytando para bayxo a dita pelicula. Tirada a agulha, porão no olho clara de ovo batida com agua rosada, molhando nella hum pano que porão em cima, em forma que comprehenda as partes vizinhas, para impedir alguma inflammação, & o olho saõ estará

Em última instância se recorrerá «às obras de mãos», mas esta está contraindicada, se a catarata fôr verde, escura ou negra, não estiver madura ou seja em velhos ou crianças. Sôbre a operação nada diz, apenas recomenda que só se faça em tempo quente e temperado, e que para evitar a recidiva se façam fontes para derivar a matéria e o doente ao levantar mastigue sementes de funcho e lave os olhos com vinho quente, traga oculos e duas vezes por mês use o remédio feito de enxundia de codorniz com mel e lave os olhos com urina quente e, se fôr da própria será melhor, e em tudo que comer deite eufrasia.

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Ms. 1566 do Fundo Geral da Biblioteca Nacional de Lisboa, fl. 114. Cirurgia Reformada, edição de 1738, pg. 97-­‐9. 20 Aquele que ajuda alguém em alguma cousa (Bluteau). Aquela descrição da operação deve ser tirada da tradução espanhola da Cirurgia de Guilo Cauliano, feita em 1636 e lá vem designado o ajudante pelo termo — ministro. 19


tambem fechado para evitar o movimento. Depois de feyta a obra mandaraõ deytar o doente na cama, com a cabeça alta, encomendandolhe naõ façaõ matinada21, nem falle muyto, nem lhe dera a comer cousas duras, para que as maxillas se naõ movaõ; pelo que convem que os mantimentos sejaõ liquidos, & de boa nutrição, como saõ os caldos, & apistos22 de galinha, a jalèa, os ovos brandos para se sorverem, & outros semelhantes alimentos. Ao oytavo dia se tornará a bolir na cura, lavando os olhos, & faces com agua rosada, & tirando pouco a pouco os paninhos para que o doente veja a luz, a qual convem que seja pouca na primeira ocasiaõ, porque sendo muyta a claridade offende a vista, & passados alguns dias, tornaraõ a descubrir, assim continuaraõ atè de todo estar a luz do olho forte, & a vista perfeita.»

ôlho artificial com que poderia um cego ver. Nenhum bibliógrafo dá conta dêste escrito.

Feliciano de Almeida, incontestàvelmente o mais erudito cirurgião do seu tempo em Portugal e que tento lucrou com as viagens pela Europa culta, acrescenta que tendo havido algumas destas operações bem sucedidas, assim ensina a prática a seguir, embora não aconselhe aos cirurgiões a fazê-la.

Verdete e incenso macho metidos em ameixas, mergulhadas durante uma noite em água rosada, coava-se depois esta por um papel mataborrão. Usava-se às gotas no ôlho doente.

A Cirurgia Methodica de Soares de Ribeira traduzida por Manuel Gomes Pereira — Lisboa, 1721, nada diz sôbre a operação da catarata. Mas até os clínicos mais afamados não estavam mais desconhecedores desta matéria. Assim o famoso Curvo Semmedo24 para as conjuntivites aconselhava os seguintes remédios. Infusão de pevides de marmelo em água rosada, com uma clara de ovo batida e assucar de chumbo; de seis em seis horas instilar no ôlho duas gotas. Infusão de cravo da Índia em vinho generoso, a que se junta dez réis de tutia; três gotas duas a quatro vezes ao dia.

Havendo muitas dôres, a pôlpa do camoês, em que se deitava uma colhér de leite do peito, ou sangrava na veia leonina, debaixo da língua.

Na Cirurgia de Le Clerk, traduzida por João Vigier — Lisboa, 1715, p. 233, lê-se sôbre a operação da catarata:

Se a cabeça do doente mostrava grande quentura, e a conjuntivite persistia apesar dêstes remédios, aconselhava embrocações de água fria e leite.

«O cirurgiaõ toma uma agulha de aço redonda, ou chata, como melhor lhe parecer, fura a conjunctiva na ponta da cornea do fundo do pequeno angulo do olho, puxa a agulha com destreza até sobre o meyo da cataracta, puxa a cataracta para cima para a desapegar com a ponta da agulha, & logo a puxa para bayxo & a detem algum tempo por baixo da menina com a agulha; se torna para cima, depois de a haver largado, he necessario bayxalla outra vez; a operaçaõ se conhece estar feyta, quando a catarata fica no lugar aonde foy abatida. Não se retira a agulha em quanto a cataracta não está de todo abatida, & que naõ fique no lugar para onde a empurraraõ.»

Nos casos mais graves, depois de muitas sangrias, purgava o doente com extracto Alcaest, a que mandava juntar laudano. Mas também considerava remédio soberano em tais casos, aplicar ortigas pisadas na testa, fontes e detrás das orelhas, assim como pôr sôbre os olhos doentes um pano de linho ensopado na urina do próprio doente. Para combater a epífora celebrava a infusão em água rosada da casca dum pau, chamado largis, que vinha da Índia e se vendia nas tendas do Paço, assim como o queijo fresco, muitas vezes lavado, amassado com clara de ôvo.

Jerónimo Contador de Argote23 apresentou na Academia Real de História o Paradoxo Physico Malhematico, em que explicava a forma dum

Na exoftalmia ou olhos procidentes empregava os pós de escaravelho «que nascem no esterco dos cavalos», alvaiade, cronus metalorum,

21

Estrondo, ruído, tumulto (Blutéau). Suco do carne picada, ou muito cosida, que se dá aos doentes que não podem mastigar (Ibidem). 23 Gaseta de Lisboa de 1718, p. 248.

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24

Atalaya da vida contra as hostitidades da morte — Lisboa, 1720, p. 141 e 454-­‐464.


tagalhas em pó e pedra hume e com esta mistura pulverisava «a madre e o serro» e referia outro remédio, que foi experimentado com proveito em João Batista Virale, deitar uma ventosa sêca na nuca.

III

A sugilacão ou nódoa de sangue era tratada deitando no ôlho doente o sangue tirado da asa dum pombo, a espinha alvar, o sigillum salomonis, o sumo da erva marragem e o pó de cuminhos.

Daviel. A sua chegada a Portugal. A sua clientela. Partida para o estrangeiro. Breves notas sôbre o seu processo operatório da catarata, A sua morte e comemoração. Referências de alguns clínicos portugueses.

O hypopion curava-se purgando muitas vezes o doente e administrando-lhe urina de «menino virgem» (parece que os havia muito sabidos) colhida de manhã em jejum, misturada com mel de enxame novo. E abonava-se nesta indicação com Zacuto na Medicorum principum historia, fls. 178 e 179.

A catarata até ao principio do século XVIII era considerada como uma película, que se desenvolvia por diante do cristalino e operava-se segundo o processo de Celso por abaixamento, repelindo-a para trás do íris, onde se reabsorvia. Mestre João25 em 1692 verificou que a catarata era formada pelo cristalino tornado opaco e endurecido por um processo mórbido. Em 1706 Brisseau26 expunha as mesmas idéias, nas quais Mestre João insistiu pouco depois (1707). No ano seguinte Charles Saint-Yves fez na casa de S. Lazaro a primeira operação da catarata por extracção, abrindo com uma lanceta a córnea e retirando o cristalino27.

Para as cataratas preconisa o sumo de funcho, gala crista, celidonia, tutia preparada, aloes, tudo destilado por alambique, para lavagens e instilações, os fumos da água em que se coser dois vintens de bom açafrão, lavagens ou fomentações de pau guiaco (pau santo) e a água que escorre duma porção de formigas levadas ao Forno. Confundindo a catarata com as nevoas refere casos admiráveis de cura perfeita com a seguinte receita: «mastigue hum menino em jejum funcho, & folhas verdes de loureyro molhadas em mel de enxame novo, & bafeje o olho da nevoa vinte dias em jejum».

Êste processo, que fôra utilizado como um expediente de ocasião, foi vulgarizado e adoptado como processo de escolha, por Daviel, que o divulgou em França e no estrangeiro. Jacques Daviel tinha nascido em Barre, cêrca de Evreux a 11 de Agôsto de 1696. Começou os seus estudos cirúrgicos com seu tio em Ruão e depois passou a ser discípulo de Bondon no Hotel-Dieu. Em 1719 foi enviado para a Provence, onde a peste grassava com grande intensidade. Fixou-se em Marselha, onde teve ocasião de prestar muitos serviços.

Gabava-se de ter feito recuperar a vista a muitos doentes, que a tinham perdido, fazendo com que durante seis meses comessem de manhã em jejum, figado de porco, galinha, cabrito, carneiro, vaca, bode ou pato, assado na grelha, mas pouco assado e nunca cosido ou frito. Contra nevoas ou belidas aconselhava o açúcar candi, esterco de galinha com sumo de limão galego, pó de casco de caveira com pó de casca de ovo em água rosada e leite de égua ou sumo de centaurea com mel.

Em 1728 dedicou-se especialmente à clínica das doenças de olhos. Depois de ter percorrido grande parte da França estacionando em Carcanova, Castelnaudary, Montauban, Tolosa, Bordéus, S. João de Luz e Baiona, entrou em Espanha e esteve em S. Sebastian, Victoria, Bilbau e Madrid, onde chegou em Setembro de 1736. Foi hospedar-se na

25

Introducion a Ia Historia de Itt Medicina por Garrison, trad. espanhola. t. I, pág. 367. Nouvelles observations sur Ia cataracte por Pierre Brisseau – Tournay. 27 Histoire de Ia Medicine par Meunier. pág. 370. 26


estalagem da Cruz de Ouro no largo de S. Domingos e anunciou oferecendo os seus serviços clínicos e dizendo-se oculista agregado da Real Academia das Ciências de Tolosa28.

Logo que chegou, começou tratando dos olhos uma pessoa de alta consideração e anunciou30 que dava consultas da sua especialidade na casa de M. Chevalier, onde residia, na Rua dos Remolares, na escada de pedra que ficava junto à Cruz de Ouro31 Começaram a afluir os doentes e a crear grande fama, sendo recebido pelo rei e por tôda a família real a 26 de Janeiro de 1737. Praticou muitas vezes a operação da catarata na presença dos primeiros clínicos lisbonenses e no fim dêste mês estava tratando um doente de gerarquia, depois do que se propunha partir a 15 de Fevereiro para Cadiz, dirigindose, no caso de não ir por mar, por Montemór, Estremoz e Elvas e depois de estar em Cadiz, alojando-se na casa do Café, passar a Malaga, onde contava chegar a 4 de Março, estando a 11 em Granada, a 22 em Alicante, a 28 em Valência, a 8 de Abril em Tortosa, a 12 em Tarragona e a 16 em Barcelona, donde depois de oito dias entraria em França por Perpinhão32. Mas não poude cumprir esta promessa, porque teve de operar uma religiosa de Santa Clara, D. Tereza de Portugal, irmã do secretário de estado António Guedes Pereira, operação que fez em três minutos e que teve o melhor resultado. Por isso só poude sair de Portugal em Março, deixando os seus doentes a um seu compatriota Deriol, médico pela Faculdade de Monpilher, que morava em casa dum francês M. Nencis, defronte da Cruz de Cata que Farás e a êste se deviam dirigir as pessoas que de futuro necessitassem dos seus serviços clínicos33. Quando aqui esteve, como se vê, foi muito antes de 1745, ano em que, conta êle, em Marselha, tentou pela primeira vez por uma larga abertura da córnea extrair o cristalino que, abaixado pelo processo até então seguido, se tinha fragmentado e caído na câmara anterior34. Foi só em 1747 que êle deliberadamente empregou êste método, abrindo a córnea com uma lanceta muito aguda, dilatando a incisão com outra arredondada em meia lua, depois do que cortava a córnea dos dois lados com tesoura e levantando o retalho com uma espátula de ouro,

Em Novembro partiu para Portugal pela Estremadura29 e em 8 de Dezembro chegou a Lisboa, declarando ser da cidade de Marselha, mestre em artes e em cirurgia, cavaleiro de S. Roque, cirurgião do Rei cristianíssimo nas galés de França e sócio da Academia Real das Ciências de Tolosa.

30

Gazeta de Lisboa, n.° 51, de 20 de Dezembro de 1736. Gazeta de Lisboa, n.° 51, de 20 de Dezembro de 1736. 32 Ibidem, n.º 5, de 31 de Janeiro de 1737. 33 Ibidem, n.º 9, de 28 de Fevereiro de 1737 34 Memoires de l’Academie de Chirurgie, v.II, pág. 337 31

28 29

Gaseta de Madrid, n.º 43, de 23 de Outubro de 1736 Ibidem, n.º 47, de 20 de Novembro de 1736


dilacerava a cápsula com uma agulha e metendo-a entre a iris e o cristalino, soltava êste e exercendo pressão na pálpebra inferior, tentava prevenir a rasgadura do folheto posterior da cápsula e a saída do humor vítreo.

Em Outubro de 1885 inaugurou-se na Suíça no cemitério de GrandJacomus um monumento à sua memória. Era construido em mármore e colocado perto do muro exterior do cemitério e ornado com um medalhão em bronze do notável cirurgião, tendo em volta a legenda Post tenebras lux e por baixo a inscrição: Jacques Daviel, nascido em La Barre em 1696 e falecido em Genebra em 1762, o primeiro cirugião oculista, que curou a catarata por extracção, repousa neste cemitério levantado pelos oculistas suiços, 1885. EM 1927 foi publicada a seguinte notícia: «Daviel. Marseille a commemoré, hier 20 de Abril 1927, le souvenir de Daviel, qui fut un homme de bien et un grand médecin. «Normand de naissance, Daviel, né á Ia fin du dix-septiéme siècle, vint se fixer à Marseille où, lors de la peste de 1720, il fit preuve d'un admirable dévouement. «On prétend aussi que, le premier, il tenta l'opération de la cataracte par extraction. Ce n'est pus exact, car elle était connue bien avant lui. Mais il en perfectionna la technique et obtint des guérisons nombreuses, alors qu'auparavant elles étaient fort rares. Daviel fut donc un bienfaiteur de l'humanité, et c'est à bon droit que Marseille lui a élevé, dans son Hotel-Dieu, un monument commémoratif». Na sessão da Sociedade das Ciências Médicas de 3 de Abril de 1887 Sabino Coelho referiu o bom resultado do método de Daviel na extracção da catarata, que tinha empregado havia cinco anos. A sua prática confirmou as vantagens, que muitos clínicos lhe tinham atribuído de tornar menos fácil a saída do humor vitreo, evitar as hemorragias da iris, que dificultam às vezes muito a discissão da cápsula, não tornar tão fácil como quando se pratica a iridectomia, a interposição da cápsula nos bordos da ferida, conservar a forma pupilar, etc. Com respeito ao astigmatismo post-operatório, entendia que diminuindo a refracção no plano perpendicular à direcção da incisão, a operação umas vezes atenuará, agravando outras o astigmatismo pre-operatório.

Daviel veiu em 1754 a Espanha, chamado por Fernando VI e recusou os tentadores oferecimentos deste, para que ali ficasse exercendo a sua especialidade.


O socio Jones disse que já há 6 anos ouvira ao professor Manuel Bento de Sousa, então lente de clínica cirúrgica, que o método de Daviel era preferível ao de Graefe, devendo praticar-se a iridectomia apenas quando há glaucoma.

Quando chegava a qualquer povoação, começava por fazer uma conferência sôbre os olhos, exprimindo-se em estilo empolado. Assim na que fêz na Universidade de Oxford, principiou assim: «Os olhos, ilustríssimos filhos das musas, eruditíssimos Oxónios, cuja fama ouvi celebrar em tôdas as partes do mundo, os olhos, estes espantosíssimos, estupendos, incompreensíveis, milagrosos órgãos, os olhos são o Proteu das paixões, os mensageiros do espírito, os intérpretes do coração e as janelas da alma. Os olhos dominam todas as coisas. O mundo foi feito para os olhos e os olhos para o mundo.

IV John Taylor. A sua biografia. A vinda a Espanha e a forma por que de lá fugiu. Entrada em Portugal, que percorreu do Porto ao Algarve. A sua estada em Coimbra e a grande impressão produzida nos lentes da Universidade. As suas pretenções e conversão. Bibliografia. A sua autobiografia. Seu filho.

«O meu assunto é a Luz, ilustríssimos filhos da Literatura – a Luz intelectual. Ah! A minha filosófica, metafísica, clássica, matemática, mecânica, teológica e crítica exposição, o meu assunto são os olhos.

Na primeira metade do século XVIII floresceram em Inglaterra famosos charlatães, entre os quais se contaram Joshua Ward, a senhora Mapp, que exercia a cirurgia, Joana Stevens, a inventora dos célebres pós contra os cálculos urinários e muitos outros. Mas o mais célebre foi decerto John Taylor, que foi denominado o rei dos charlatães, figurando em muitas farças e sátiras, assim corno em caricaturas dessa época, entre as quais há a de Hogart estampada em 1736, reproduzindo dôze charlatães contemporâneos, de grandes cabeleiras e bastão de castão de ouro, um dos quais era o oftalmologista. A legenda dêste desenho era Company of Undertakers Et Plurima mortis imago. Intitulava-se Cavaleiro John Taylor, Ophtalmiator, Pontifical, Imperial e Real, que tratara o papa Benedicto XIV, Augusto III, rei da Polónia, Frederico V, rei da Dinamarca e da Noruega e Frederico Adolfo, rei da Suécia. O dr. King35 escreveu a seu respeito «nenhum charlatão apareceu nunca com faculdades melhores e mais adequadas. Tinha boa aparência, muito boas mãos, magníficos instrumentos e fazia tôdas as operações da sua especialidade com grande destreza. Viajou por tôda a Europa com uma equipagem própria de pessoa de distinção e foi recebido por muitos príncipes reinantes».

35

Citado por C. J. S. Thompson in The Quacks of Old London, pág. 282.


«Vós sois o ôlho da Inglaterra. «A Inglaterra tem dois olhos – Oxford e Cambridge. «Vós sois o ôlho direito, a irmã mais velha da ciência e a primeira fonte do saber em toda a Europa. «O ôlho é o espôso da alma! «O ôlho é infatigável. O ôlho é uma faculdade angelical. O ôlho a êste respeito é feminino. O ôlho nunca se cança de ver e de gozar todo o vigôr da Natureza».

Aqui aprendeu também as regras da esgrima e dos torneios e a prática dos duelos. Dizia conhecer perfeitamente todos os castigos que nos diferentes países aplicavam para punir crimes, assim corno diversas formas de tortura empregadas para obter dos criminosos a confissão das suas culpas. Assistiu a muitas operações de embalsamar cadáveres de grandes, personagens. Por tudo isto afirmava, que ninguém mais do que êle, tinha material de observação digno de ser transmitido à posteridade.

Costumava construir as frases como se falasse latim, começando por o genitivo do complemento e terminando pelo verbo, língua que dizia conhecer a fundo e ser do estilo de Cícero, mas que realmente era um latim macarrónico muito ridículo. Quando urna vez se gabava desta prenda na presença de Samuel Johnson, desafiou êste para falar com êle naquela língua. Johnson recitou-lhe um trecho de Horácio, que Taylor supôs ser do seu interlocutor. Boswell, a quem Johnson referiu o caso, disse que apesar de engraçado, era o homem mais ignorante que tinha conhecido.

Foi êste celebrado charlatão, que se demorou alguns anos em Portugal e sôbre cuja biografia possuo informações curiosas e inéditas. Antes de prosseguir, convenho que no seu activo Taylor tinha muitos conhecimentos de oftalmologia, foi o primeiro que aconselhou os cortes dos músculos para melhorar o estrabismo, assim como se referiu às córneas cónicas. Inventou vários instrumentos, tinha manifesta habilidade manual e era muito desembaraçado. Serviram-lhes estas atenuantes para em parte compensar, se não para fazer esquecer, as suas maneiras de charlatão, que, embora em menor grau, outros, como Daviel, também usaram.

Nestas conferências aparecia vestido de preto e adornado com uma comprida cabeleira empoada. Subia ao estrado e colocava-se por detraz duma grande mesa coberta com um antigo tapete, onde estava bordado um coche escuro com quatro penachos pretos, como carros fúnebres. Na mesa havia quatro candieiros grandes, um vaso com água e um copo.

John Taylor nasceu a 16 de Agosto de 1703, sendo o primogénito doutro do mesmo nome, cirurgião e boticário em Norwich.

Dizia ter sido sempre fiel às duas senhoras mais amáveis do seu tempo, Lady Inverness e Lady Mackintosh, que dizia serem as duas mais agradáveis tagarelas e as mais formosas discutidoras e os melhores árbitros dos encantos da alta sociedade, que êle encontrou.

Em 1722 empregou-se como ajudante ou praticante de botica em Londres e estudou cirurgia com William Cheselden no Hospital de S. Tomás, interessando-se principalmente pelo tratamento das doenças de olhos. Foi depois exercer na sua terra cirurgia e oftalmologia, mas não tendo tido grande sucesso, resolveu-se a percorrer a Inglaterra, Irlanda e Escócia, desde 1727 até o fim de 1733, em que voltou a Londres, onde ficou até Março do ano seguinte, em que partiu para Paris. Poucos meses depois recomeçou a clínica ambulante por tôda a França e a Flandres, doutorando-se a 26 de Outubro de 1734 na Universidade de Basilea e a 2 de Maio do ano seguinte na de Colónia. Em Novembro do ano seguinte foi nomeado oftalmologista e operador ordinário do rei Jorge II. Em 1735 já estava de novo em Londres, voltando a Paris em Março, onde publicou o

Contava ter entrado em muitos conventos de diferentes ordens e na maior parte dos de freiras, e afirmava que poderia escrever muitos volumes com as aventuras das formosas monjas. Presenciou a profissão de muitas noviças e assistiu a grandes festividades religiosas. Esteve em muitas festas reais, como as grandes caçadas de animais bravos na Polónia e as corridas de touros em Espanha e Portugal, em que os fidalgos mostravam a sua coragem, destreza e elegância.


Indo procurar o primeiro médico da côrte40, que a raínha estimava particularmente por ter vindo de Parma, o arquiatro mostrou-se muito ofendido por não ter Taylor recorrido a êle para o apresentar à família real e às pessoas mais nobres e por isso pediu à rainha que o não protejesse e fizesse com que saísse da côrte.

seu primeiro trabalho Traité sur les maladies de L'organe immédiat de Ia vue – Paris, 1735, i. 12. Há outra edição do mesmo ano em Amsterdam com o mesmo formato. Saiu traduzido em alemão em Berlim em 1735 i. 8.º. Partindo em Junho, atravessando o nordeste da França e parte da Espanha, chegou em Outubro de 1737 a Madrid. Depois de pequena demora foi percorrer quási toda a Espanha e em Abril do ano seguinte, como todos os seus colegas cirurgiões ambulantes e vagabundos, mandou anunciar a sua chegada à côrte, prometendo publicar ali o seu último tratado, em que revelaria o modo de curar a gota serena, glaucoma e catarata. Só chegou em Setembro vindo de Saragoça no principio de Maio36; anunciando no dia 3, que estava hospedado na estalagem da Fuente del Oro, rua de Jacomotreso. Propunha-se tratar as doenças de olhos e do saco lacrimal37.

Em pouco tempo o cirurgião inglês tratava mais de quinhentos doentes. A guerra que lhe moveram os colegas e sobretudo o primeiro médico do rei, cresceu a ponto de baixar ordem para que saísse de Espanha. Resistiu o intimado e foi refugiar-se na embaixada do seu país e publicou um papel historiando as perseguições, que lhe movia José Cervi» que por sua vez ameaçou que se retiraria para Parma, se não lhe dessem satisfação às suas reclamações, e o resultado foi nova ordem de expulsão. Fugiu então a ocultas, deixando em Madrid carruagens, criados e muitas coisas suas e dirigiu-se para o nosso país.

Pouco depois mudou-se para a rua do Príncipe de Ias Tôrres, para a casa onde estivera antes um estanco de tabaco38.

Na sua pretendida autobiografia Taylor oculta tudo isto e diz: continuei em Madrid até que a guerra foi declarada em 1739. Ora isto é

A sua pretendida autobiografia é muda sôbre esta estada em Madrid, mas em compensação possuímos hoje um documento do próprio Taylor, que tivemos a fortuna de descobrir e a que adiante nos referiremos, que nos diz alguma coisa muito interessante sôbre êste período da sua vida.

a opinião de seu neto, foi o seu autor Henry Jones, que aproveitou apontamentos deixados por Taylor e a tradição conservada na sua família e nos seus contemporâneos. Como se verá pelas informações que conseguimos reunir, este escrito está errado nuns pontos e noutros é propositadamente omisso. 40 Êste médico era José Cervi, que nasceu em Parma em 1663 e na sua terra exerceu clínica e professou medicina. Quando a princesa Isabel Farnésio veio casar com Filipe V, trouxe-­‐o como médico e depressa conseguiu que fosse nomeado primeiro médico do rei. Gosou de muito prestigio e teve grande e rendosa clientela. Erradamente se disse (Enciclopédia Espanhola de Spasa e Biographie Médicale) que escrevera a Pharmacopeia Malritensis, Regii ac supremi Hispaniarum proto-­‐medicatus, auctoritate, jussu atque auspiciis nunc primum elaborata, publicada por D. Miguel Rodrigues (seria o médico natural de Mora, que vivia nesse tempo?) em Madrid em 1739, obra que é apenas dedicada ao médico italiano e contem o seu retrato, mas não é escrita por êle. Também não é verdade, que tivesse fundado a Academia de Medicina de Sevilha, à qual legou a sua biblioteca. Esta agremiação foi iniciada em 1732, sendo os seus estatutos aprovados em 13 de Setembro de 1734. Nomeou José Cervi seu presidente perpétuo, por êle desempenhar o cargo de primeiro médico de Filipe V, certamente para conseguir a protecção deste, que a 15 de Julho de 1838 lha concedeu oficialmente. Quando em 1743 se fundou em Madrid a Academia de N. S.ª da Esperança debaixo da protecção da rainha viúva D. Isabel e do infante D. Luiz, José Cervi não apareceu entre os nomes dos fundadores (História bibliográfica la Medicina Española, por Morejon, t. VI, pág. 336.8). Assistiu com os clínicos Huiggins, Suñol, Burlet e Pedro Acuenza ao rei D. Luiz, no ataque de variola que o matou (Clinica Egregia, por Luiz Comenge, pág. 107 e 286). Morreu a 25 de janeiro de 1748 no palácio do Buen Retiro, em Madrid, deixando a seu sobrinho mais de três milhões de duros.

Munido de cartas de recomendação que trouxera de França, apresentou-se ao duque de Montagu; também se dizia muito amigo do duque de Maine, que o levou a Aranjuez à presença do rei e a seguir foi apresentado aos outros membros da família real, e logo depois nas principais casas de Madrid. Ouçamos agora o que nos diz o próprio Taylor na minuta dum memorial, que fornos encontrar em Coimbra39.

36

Na biografia diz-­‐se que foi em Setembro, mas o anúncio da Gazeta mostra que foi em Maio. Gazeta de Madrid, nº 22, de 3 de Maio de 1738. 38 Ibidem, n.º 23, de 10 de Junho de 1838. 39 Miscelanea n.° 677 da Bib. da Universidade de Coimbra. A maior parte destes dados são colhidos no livro publicado depois da sua morte The History of Travels and adventures of the chevalier John Taylor, Ophtalmister—Londres, 1761. In 8.°. A redacção é como se se tratasse duma autobiografia, mas houve quem dissesse que fôra escrito por seu filho e segundo 37


absolutamente falso, neste ano assinou-se o tratado de Viena, que por um tempo pareceu afastar de todo os receios que havia de conflito com a Alemanha e foi só no último quartel de 1741 que a guerra se declarou.

Bazilla (sic) em os três Cantoens, Lieja, e Colonia em Alemanha, Ec Humilissimamente oferecidas Á Soberana Magestade delRey- D. Joam V. de Portugal. (Uma gravura representando um coração com azas, trespassado por duas setas cruzadas e ostentando um monograma A M V encimado por uma coroa) Lisboa Ocidental. Na Oficina de Pedro Ferreira, Impressor da Augustissima Rainha. N. S. Ano 1738. Com todas as licenças.

Quando vinha para Portugal, foi atacado na fronteira por um bandido que lhe roubou objectos de grande valor e correu a voz de que tinha sido assassinado.

Tinha o parecer do físico mór do reino, o dr. Manuel da Costa Pereira, em que se lia a propósito de Taylor «me parece ser digno da graça que pede (a licença para a impressão das certidões) pois na minha opinião é um dos mais insignes oculistas, que veio a este Reyno». Esta licença tinha a data de 13 de Novembro de 1738.

Em quanto esteve em Espanha publicou em 1736 em Londres New treatise on the diseases of the chrystalline humour. 8.º e em Paris em 1738 De vera causa strabismi. 8.º. A 24 de Junho de 1738 anunciou a Gaseta de Madrid «el tratado del Doctor Taylor, Medico Oculista del Rey de Inglaterra, sobre el nuevo modo de curar Viscos, Gotas serenas, y atras enfermedades, que hasta aqui se havia tenido por incurables». Vendia-se em casa do autor na Carrera de S. Jeronimo. Intitulava-se Mechanism of the eyes, with figures and a description of the different diseases of the eyes — Madrid, 1738. 8.º.

Entre as certidões encontram-se as seguintes: «Afirmo, e atesto, que com feliz evento chegou a esta Cidade para remédio dos pobres D. João Taylor, de Nação Inglês, Medico Oculista; e na minha presença, e de quasi toda a minha Faculdade fez muitas operações em pessoas de ambos os sexos, e em toda a idade, sendo nós convocados por êle para isso mesmo, e em o primeiro, e segundo dia, que eu presenciey as tais, o julguey nelas muito déstro, subtil, agil e sciente, assim nas praxes, como no especulativo, pois na nossa presença mostrou juntas, e separadas as partes todas, que compõem a admiravel fabrica do Olho, e mostrou tambem conhecer quais eram as que prestavam uso, e qual era especial, e licitiva da vista, e assim pelo que vi nestes dous dias, e pelo que me consta, tem continuado na mesma cidade em todos os mais, me parece eminente, e singular na sua profissão, o que tudo afirmo sob juramento do meu grao. Coimbra, e de Setembro 9, de 1738. O Doutor Manuel dos Reis e Sousa.

Dirigiu-se em primeiro lugar a Coimbra, onde chegou nos primeiros dias de Setembro de 1738, convocando logo os lentes e mais médicos e praticando várias operações em doentes dos olhos, dos quais recebia a paga, quando podiam dá-la e dispensando-a aos pobres, Dissertou sôbre a fisiologia e patologia do olho perante êste selecto auditório, a quem mostrou o seu último livro, impresso em Paris no ano anterior. E viram-no tratar glaucomas, cataratas, fistulas lacrimaes, tumores das palpebras, névoas e sugilaçôes. O método que empregava na operação da catarata, consistia em incisar a córnea a uma linha e meia ou a duas linhas do centro, abrir a cápsula do cristalino com uma agulha convexa na ponta e abaixar ou extrair o cristalino. Tudo isto está relatado num opúsculo que publicou intitulado Certidoens Em Que Os Catedraticos, e mais Doutores professos da Faculdade de Medicina da real insigne famosa Universidade de Coimbra, Reyno de Portugal Atestão, e expendem seus sentimentos sobre as operaçoens, e rnethodo de curar as enfermidades dos olhos de Joam Taylor, Equestre inglez, Doutor em Medicina, E Medico Oculista delRey de Inglaterra, Socio Academico das Academias das cidades de

«Por ser tambem presente nas relatadas ocasiões e operações, e a outras mais, que com admiravel destreza, sublime agilidade, e elevada subtileza obrou o subredito D. João Taylor, de Nação Inglesa, o julguey no meu conceito peritissimo, perfeito, e eminente, e consumado na sciencia, ou arte Optica, e singularmente profícuo em todos os achaques, a que se pode extender a dita arte, e sciencia, e como tal digno de todo o louvor podendo-se-lhe aplicar na restituição: Suo modo possibili da vista o que diz ele no Introito de um livro, que da sciencia Optica compoz


em língua Francesa: Qui dat videre, date vivere...» Doutor João Pessoa da Fonseca.

O secretário da Universidade Francisco Marques de Andrade e Silva autenticou as assinaturas dêstes atestados e contou que, concorrendo muita gente pobre a consultar o especialista inglês, o economo administrador das rendas da Mitra à custa delas fez curar os pobres achacados dos olhos, prestando-se Taylor a curá-los mesmo de graça.

«D. João Taylor, Inglês de Nação, é sem dúvida Oculista insigne em obrar todos os males de olhos, corno belidas, névoas, cataratas & coeter, fazendo em semelhante parte operações, que admiram, a que muito o ajudam muitos, e proporcionados instrumentos, que traz, sem embargo da sua perícia, e no que tem por profissão al incurabilis…» Doutor Bento Gomes dos Santos.

O doutor Manuel Monteiro da Fonseca, antigo lente condutário e médico da Relação do Pôrto passou igual atestado laudatório, datado de 13 de Outubro, depois de Taylor ter ido a essa cidade chamado pelo doutor Vicente José de Sousa Magalhães, em cuja casa estabeleceu consultório.

O mesmo atestou o doutor Manuel Simões Pinheiro. O doutor Manuel Dias Ortigão, entre outras coisas, escreveu dêle «traz a maior atestação nas suas mesmas operações. Eu o vi desde que aqui entrou, quasi todos Os dias fazendo-as, assim na presença de toda a minha faculdade, como particularmente em Glaucomas, Cataratas, Fistulas lacrimaes, Tumores dos parpados, Nevoas, Sujilações, & c. E assentei que todo o achaque de olhos curavel pela operação, ainda tendo dificuldade, ele havia de curar vencendo-a... e julgo ser mayor que quantos escreveram da Optica até o século presente; e o primeiro nesta profissão...»

Segue-se a tradução espanhola da certidão de ter sido Taylor nomeado oculista e operador ordinário do rei Jorge da Inglaterra, passada a 21 de Maio de 1736. Vem depois os atestados do doutoramento de Taylor em Reims a 16 de Dezembro de 1734, em Basiléa a 26 de Outubro do mesmo ano, em Colónia a 2 de Maio de 1535 e em Leyda no mesmo ano. Ainda nesse tempo não se tinham iniciado os doutoramentos que depois da Reforma pombalina aproveitaram os mestres estrangeiros chamados a ensinar em Coimbra, por isso apesar do deslumbramento que produzira no corpo docente da Universidade, não poude ter as honras de doutor honoris causa e teve de contentar-se com aquele feixe de atestados altamente lisongeiros, as melhores credenciais com que podia apresentar-se na côrte.

O doutor Amaro Rogerio da Costa honrou-o ainda com maior exagero. O doutor João Duarte da Fonseca escreveu: «D. João Taylor, como nova fonte da Ciência Optica os (olhos) possue de Lince na agudeza, e de Argos na circunspecção, de sorte que vendo tudo dos morbozos, não podem ver nestes nevoas, que não dissipem, cataratas, que não iluminem, fístulas, que não sistão, e toda a espécie de lesão ocular, que não venção, e ainda os esplendidos olhos de meus Mestres e Companheiros ficaram cativos presenceando aquelas memoraveis demonstrações, e estas prodigiosas operações, das quais são testemunhas de vista os mesmos cegos, que a receberam, e se viram resgatados do miseravel cativeiro da sua enfermidade...»

Na Gazeta de Lisboa n.º 45 de 1738 lê-se: «Tem chegado a esta corte o Doutor João Taylor Medico oculista del Rey da Gran Bretanha, e socio de muytas academias celebres tam conhecido pelas viajes que tem feyto por toda a Europa, como pelos escritos que tem publicado, que todos foram examinados, e aprovados pelos Cathedraticos desta faculdade na Universidade de Coimbra. Todas as pessoas que desejarem ver o seu methodo Curativo, se podem achar em sua caza, na rua das flores, defronte da caza de Mons. Trinité, terça feira 11 do corrente pelas tres horas da tarde, onde ouvirão um discurso

Não menos o louvou o lente condutario Manuel de Carvalho e o doutor Alvaro Antunes das Neves e os condutarios doutores Antonio Amado de Brito e Antonio José da Silva.


sobre a natureza, e vantagem das suas operações; o que continuará a fazer todos os dias em quanto se detiver nesta corte.

cirurgião português que por ter opinião contrária se prontiflcou a operálo, mas o conde ficou cego.

«Todas as pessoas pobres que se acharem molestadas dos olhos, poderam daqui por diante concorrer a sua caza todos os dias pelas oito horas da manhã, aos quaes assiste gratis tanto pelo trabalho, como pelas medicinas, como tem feito em todas as Côrtes aonde tem estado; para o que tem licença do Fisico mor deste Reino.»

A 20 de Novembro anunciava: «Teve o Doutor Joam Taylor a honra de apresentar a sua Magestade impressas as certidões e pareceres dos Lentes das Universidades de Coimbra, de Reims, de Basileia e Colónia sôbre as vantagens do seu método de curar as enfermidades dos olhos, o que vai exercitando nesta Côrte com grande benefício de muitos queixosos deste achaque».

Da Gazeta de Lisboa n.º 47, de 173841: «Todos os dias concorre uma prodigiosa quantidade de gente à rua das Flores à caza do Doutor João Taylor, Medico oculista de Sua Mag. Britannica, entrando neste concurso cavalheiros, Medicos, e pessoas curiosas, para ver o seu methodo de curar os achaques dos olhos, o que continuará a fazer todos os dias pelas treze horas da tarde, enquanto se detiver nesta Corte; e como é grande o numero das pessoas, a que tem curado, depois que chegou; é também grande a quantidade das que concorrem a receber o mesmo beneficio; brevemente se verão impressos os pareceres dos Lentes da Universidade de Coimbra sobre as vantagens do seu rnethodo curativo».

Gabou-se de conhecer era Portugal não só D. João V e a rainha, mas também o príncipe D. Manuel, com quem viajou e pôde estar bem ao facto das suas aventuras, e o príncipe D. Francisco «so famous for his deeds, when admiral Norris lay before Lisbon». Citando estas façanhas referia-se ao que se deu quando o estouvado príncipe, em que devia haver a heredosifilis a promover muito disparate, aventurando-se ao mar à saída de Cascais, esteve para ser aprisionado pelos piratas argelinos, de que o não livraria a sua qualidade de grão mestre da Ordem de Malta, cuja missão era limpar os mares dos infieis. Dizia também ter as melhores relações com o duque de Aveiro e ter conhecido em Coimbra «the elder brother of the late duke de Aveiro (now living at Florence), who was obliged for an affair of gallantry (the particulars of which I am well acquainted with) to lese his aldership». Êste fidalgo era D. João Mascarenhas, o sétimo conde de Santa Cruz e quarto marquês de Gouveia, com honras de parente e mordomo mór da casa real, como seu pai. Apesar de ser casado namorou-se duma dama do paço, D. Maria da Penha de França de Mendonça, casada com o mestresala D. Lourenço de Almada e fugiu com ela de Lisboa na noite de 11 de Novembro de 1724. Foram para a Galiza e em Tuy à ordem do bispo, a senhora foi presa e encerrada num convento e D. João, a quem talvez o nome tivesse fadado para estas aventuras, internou-se em Espanha e mais tarde foi para Inglaterra44. Portanto Taylor conheceu-o em Espanha, o que está de acôrdo com a sua afirmação de que êste conhecimento se deu poucos dias antes de passar a fronteira, onde foi atacado por um

Fácil lhe foi obter licença do físico mór para exercer clínica. Pouco depois anunciou citando o seu cargo de cirurgião e oculista do rei da Gran Bretanha e os seus diplomas de sócio de várias academias e enviando às pessoas que quisessem conhecê-lo para a casa de Mr. Trinité à rua das Flores, onde no dia 11 de Novembro às três horas lhe fazia um discurso shre a natureza e vantagens das operações que praticava42. A sua fama cresceu ràpidamente e viu-se assediado por muitos doentes, entre os quais se contavam pessoas da mais alta gerarquia. Dêstes era o conde da Ericeira43, que Taylor se recusou a operar alegando que a falta de vista de que se queixava «mais podia provir do defeito da natureza, que dos acidentes que a costumam ofender». Houve um

41

Gazeta de Lisboa, de 6 de Novembro de 1738 Ibidem de 20 do mesmo mês e ano. 43 Elogio do Conde da Ericeira, por D. José Barbosa.

42

44

Brazões da sala de Cïntra, vol. II pág. 35.


bandido. O que não está certo é dizer que o conheceu em Coimbra. Já vimos qual foi «the affair of gallantry» que o obrigou a expatriar-se, quanto à perda do seu direito de progenitura, era natural que essa perda se desse logo depois da sua fuga; Braamcamp Freire diz que êle deve ter nascido cerca de 1739, porque foi só depois que seu irmão D. José Mascarenhas lhe sucedeu nos títulos e na mordomia45, por cartas régias de 1739 e 1741. Daqui pode inferir-se que não houve a renúncia de que falam Taylor e alguns autores portugueses, a não ser que a suposição daquêle historiador, quanto à época provável da morte de D. João, seja errada. Taylor diz que na época em que escreveu a sua autobiografia, ou os apontamentos que serviram para a compôr, aquêle fidalgo vivia em Florença. Ora em 1742 Taylor estava ainda em Portugal e foi muitos anos depois, a julgar pelos mesmos manuscritos que relata e provàvelmente depois de ter voltado para Inglaterra, que se resolveu a escrever as suas memórias. Portanto, se fala verdade, o marquês de Gouveia morreu muito mais tarde, do que Braamcamp supôs.

Também tratou o padre Luiz Alves, confessor do infante D. António, o conde de Alva46 e, dizia êle, D. Assis de Saldanha, que fôra vice-rei de Goa ou das índias. Houve um D. Ayres de Saldanha, que foi vice-rei da índia em 1600 e morreu em 1605. O seu homonimo, a quem Taylor se refere, só podia ser o camarista do infante D. António47, que foi coronel no exército da Liga e governador do Rio de Janeiro em 1723 e só se explica tê-lo designado por governador das índias, pelo uso que havia entre estrangeiros de chamar ao Brasil Índias Orientais. É a êste fidalgo que se refere o opusculo que na autobiografia do cirurgião inglês é citado com o titulo de A treatise on the extraordinary desorder and recovery of sight of Don A. de Saldanha viceroy of the Indies, que disse ter dado á estampa eu português em Lisboa em 1740 e ser in 8.º. Nenhum biografo ou bibliografo faz menção dêste opúsculo. Igualmente se desconhece outro, que diz ter publicado no mesmo ano em Lisboa e também em português, que na sua autobiografia vem designado por A treatise on the defect Knowm by lhe name of strabismus or squinting. 8.º e outro em 1739 também em Lisboa e em português An essay on the action of the muscles of the globe of the eye. 8.º.

O duque de Aveiro, a quem Taylor inclue nos fidalgos que conheceu intimamente, era D. José Mascarenhas, considerado como o oitavo representante daquela casa. O cirurgião inglês também se dizia particularmente honrado com a amisade do último marquês de Távora e respectiva família. Era D. Francisco Assis de Távora, terceiro conde de Alvôr, e quarto marquês de Távora, um dos justiçados em Belém depois do atentado contra D. José.

Foi novamente chamado ao Porto, onde foi também muito falado o caso a que se refere o seguinte raríssimo opúsculo de 13 pags. Intitulado: Discripção da Doença Singular dos Olhos do Senhor Vicente Joseph de Sousa e Magalhães Doutor de Capello e Cavalleiro professo na Ordem de Christo da Cidade do Porto, o qual era tratado pelo Senhor João Taylor Doutor em Medicina, e Médico Oculista de Sua Magestade Britânica, e da Academia de Medicina Imperial, de Colónia, Basilia, Rheims, Leige, Ec. E o feliz sucesso da dita doença contra a opinião de todas as pessoas, as

Ainda na lista dos nobres que tratou ou com quem teve relações de amisade, figura a senhora designada por ser a mãi do duque de Bragança. Não sei a quem pretenda referir-se, porque o último dêste título, o oitavo duque viveu no século XVIII e sua mãi não podia ser viva no segundo quartel do século seguinte. Seria a mãi de D. Pedro de Bragança, duque de Lafões?

46

O Conde Alva, primeiro do título, era D. João Diogo de Ataíde, filho do sexto conde de Atouguia, que foi general da armada rial e que morreu a 11 de Abril de 1740 e teve o mau gosto depois disso de vir em fantasmática figura aparecer na quinta de Belas e no palácio dos Pombeiros à Bemposta. O segundo conde de Alva, foi D. Luiz filho segundo da casa da Fronteira, D. Luis de Mascarenhas (filho segundo da casa Fronteira) e que foi vice-­‐rei da India (Brazões da sala de Cintra, vol. I, p. 2]). 47 Suponho que se chamava Aires de Saldanha de Mascarenhas, casado com D. Maria Leonor de Meneses e residente em 1731 na casa que tinha na Junqueira com quinta anexa (Registo dos obitos da Freguesia da Nª Sª da Ajuda, p. 8)

Também conta ter privado em Lisboa com lord Trauley. Era o enviado da Grã Bretanha em Lisboa, onde se conservou de 1728 até 8 de Julho de 1740, data em que embarcou para Inglaterra e já tinha o titulo de barão.

45

Ibidem.


quais declarão com todos os Autores, que é moralmente impossível restituir em tal caso a minima vista, e o maior sucesso que pode alcançar, é impedir vazar os olhos. Affirmado pelo dito Doutor Vicente Joseph mesmo, e por seus parentes, assistentes Ec.

observação, sem nenhuma esperança, aplicou um botão de fogo ao ôlho esquerdo. E acrescenta: «...fez mais de trinta diversas operações, e mais que dez delas com a agulha dentro do corpo do ôlho, depois de restituir a abertura da Iris no ólho esquerdo, em estado de passar a luz para o eixo do ôlho, e fez um buraco artificial perto da maior circunferência da Iris; e no ôlho direito depois que restituiu todas as partes das córneas fora das cicatrizes, ou as ditas roturas, á sua transparência natural; teve tanta felicidade que restabeleceu a vista não só num único ôlho, mas em ambos, e com tal perfeição que o ôlho direito tem conhecimento de todos os objectos em diversas distâncias, mas sem assistência de oculos, não pode distinguir com perfeição os objectos senão perto, nem pode ler sem êles, porque como o cristalino falta neste ôlho, a regra optica mostra, a necessidade substitue esta perda com oculos convexos...»

Pela razão natural sem o mínimo conhecimento das enfirmidades dos olhos todos os que se dão ao trabalho de ler, com alguma attenção, esta fiel discripção da extraordinária doença do Doutor Vicente José, verão com maior certeza que sem assistência das operações do Doutor Taylor, ambos os olhos do dito senhor, não somente seriam agora sem a minima vista, ou esperança de a ter em algum tempo; mas ambos serião indubitàvelmente vazados: deixando só na cabeça as membranas dos olhos. O doutor referindo-se ao seu cliente diz: «Quando o attendeo da primeira vez, achou em ambos os olhos a cornea irregularmente aberta em seu centro até a terceira parte do seu mayor diâmetro no olho esquerdo, e mais metade no olho direito; e todas as partes da iris, e uvea, as quais formam a menina do olho, de tal maneira rotas, e mudadas as que passarão pelos ditos buracos da cornea de hum, e outro olho, e formara humas elevaçoens regulares tão grandes, que quási não podia fixar os olhos e tudo acompanhado com inflamação violenta, dores, &c».

«E no ôlho esquerdo vê lateralmente em pouca distância com perfeição natural, mas em todas as distâncias, nem em todas as direcções não pode distinguir com igual perfeição, porque como a cicatriz se achou no centro da córnea, e a abertura da Iris no seu centro que necessária neste ôlho corresponder ao centro do cristalino, que não está no outro por defeito do dito humor, a luz caindo obliquamente no eixo do ôlho não pode ver quaesquer objectos em pouca distância, e nas mesmas direcções».

Taylor achou o caso incurável, dizendo que no olho direito havia um abcesso, que era preciso evacuar quanto antes e que no esquerdo já saíra o humor aquoso e estava quási a sair o vitreo.

Conclue o opúsculo ter-se demonstrado por esta observação que: «...quando a córnea estiver aberta e a uvea sai para fora do dito buraco, a vista pode ser restabelecida... quando a córnea está aberta até à terceira parte do seu diâmetro, que é possível de fechar o dito buraco, e por consequência impedir vazar o globo... que é possível fazer uma menina artificial, ou buraco na Iris, com assistência da qual se pode restituir a vista...»

Perfurou o abcesso do olho direito, esvasiando-se êste por uma abertura onde cabia uma pena grossa de galinha. Pela abertura da cornea do esquerdo cabia uma pena de pomba. Conseguiu o cirurgião deminuir a agudeza da inflamação e combater a dôr, projetando tentar mais tarde a operação da pupila artificial, saiu do Pôrto para Lisboa.

Atestou o referido e assinou o doente Vicente José de Magalhães, seu pai Manual de Sousa Dias, o seu parente António José de Sousa e Magalhães, fr. Sebastião da Natividade, Miguel Ferreira dos Santos, o padre Gaspar Lopes de Carvalho e fr. Rosário de S. Domingos.

Tendo meses depois recebido notícia que se cicatrisara a úlcera da córnea esquerda, voltou ao Pôrto e quási um ano depois da primeira

Sousa e Caetano Caetano João do


Segue-se o reconhecimento do tabelião. Êste atestado é datado do Pôrto a 13 de Fevereiro de 1740.

Figueira. Quando foi agradecer a êste a sua comparência deitou-se-lhe aos pés e disse-lhe que removida a dificuldade da sua religião e tendo já disposto as coisas na sua terra para não ser prejudicado pela sua conversão, estava chegada a ocasião de lhe ser concedida a mercê que pedira e de fixar-se definitivamente em terra de cristãos. Promeieu-lhe o prelado patrocinar a sua pretensão; passados dias comunicou-lhe que escrevera sôbre o caso ao cardeal da Mota e disse-lhe que voltasse para a côrte.

O cirurgião inglês, depois de se referir ao parecer de vários tratados, do qual se devia inferir a dificuldade ou até a impossibilidade de alcançar tão brilhantes resultados, termina o opúsculo com a declaração de que se não publicam atestados médicos, visto que o médico assistente do doente tinha sido êle. Quando estava no Pôrto para fazer êste tratamento, choveu tanto que o rio subiu de nível cêrca de quarenta pés, a cidade baixa inundou-se e muitos navios que estavam ancorados, tiveram de sair para o mar.

Saindo de Coimbra parou em Tomar e alojou-se no Convento de Cristo para tratar dum olho o filho do conde de Alvor, no que foi muito feliz, assim como no tratamento do prior e doutros religiosos.

Taylor percorreu o norte do país fazendo clínica, e demorou-se no Minho quási um ano.

Veiu depois para Lisboa e fez o memorial em que se encontram todas estas informaç3es e que existe com o n.º 677 entre os manuscritos da Biblioteca da Universidade de Coimbra. Não está assinado nem datado, mas pelo referido vê-se que foi escrito em 1740. Não se sabe a quem era dirigido, tratando essa pessoa por V. Ex.ª Ill.ma. Não devia ser o cardeal da Mota, pela forma como a êste se refere.

Voltemos agora um pouco atrás para dar conta dum incidente memorável. Como em Portugal não havia ainda nenhuma Academia e Taylor não queria, palavras dêle, sair de Portugal sem alguma aprovação solene (parece que o molho de atestados dos Lentes de Coimbra não lhe bastava) pediu o hábito de Cristo, encarregando-se o conde de Alva de apresentar o memorial. Passaram-se semanas e quando estava no Pôrto, soube que oficialmente se tinha mandado inquirir se êle era católico romano. Alegou então que a sua crença era essa e tanto que o seu filho único era católico e estava estudando no Colégio que a Companhia de Jesus tinha em Paris, mas que êle, sendo oficial da casa do rei de Inglaterra, ri-to podia públicamente confessar isto, sem o risco de perder por confisco os bens que tinha em Inglaterra. Mas que estava absolutamente disposto a abjurar a seita anglicana, em que tinha sido criado e abraçar o catolicismo, logo que lhe fôsse possível. Por isso em quanto andou pelo Minho, deu as instruções precisas para Inglaterra para pôr a salvo o que ali tinha.

Em quanto esperava pelo deferimento da sua pretensão, sôbre a qual nada consta nas Habilitações da Ordem de Cristo existentes no Arquivo Nacional da Tôrre do Tombo, continuou a exercer clínica, e foi pouco depois ao Algarve. Quando estava em Faro, viu com espanto que diáriamente passavam a uma légua da costa aparecendo durante muito tempo, quinze a vinte milhares dum paixe do tamanho dum homem (atuns) que dias antes da quaresma vinham em cardumes, o que era providencial porque nos conventos durante esta época serviam para a alimentação dos religiosos. Voltou para Lisboa antes do meio de Setembro de 1740, onde se demorou até Março do ano seguinte. Foi chamado de novo ao Algarve e nesta província e na do Alemtejo andou exercendo a sua profissão até ao princípio de Setembro de 1742.

De volta do norte, na quaresma de 1740, parou em Coimbra, onde aprendeu o catecismo e foi batisado a 23 de Abril, no Colégio Novo, onde estavam alojados os jesuitas, sendo seu padrinho o bispo conde e com a assistência do reformador da Universidade Francisco Carneiro de

Tinha então perdida a esperança de obter a mercê, que tanto desejou e para obter a qual fizera grandes sacrifícios e deligências e resolveu partir.


Antes de prosseguirmos vejamos corno em Lisboa foi julgado com menos benevolência do que em Coimbra por o corpo clínico.

Embarcou pois em fins de Setembro de 1742 e nos primeiros dias de Dezembro estava em Londres e percorreu novamente todo o Reino Unido até Setembro de 1746, mês em que partiu para os Países Baixos. Em Fevereiro do ano seguinte estava em Colónia, donde começou a viajar pela Alemanha e daqui passou a Viena de Austria, voltou a Mecklemburgo, Hamburgo, Dinamarca, Estocolmo, foi à Sibéria, percorreu o Palatinado, esteve em Varsóvia, na Curlandia e daqui passou a Riga, S. Petersburgo e Moscovo.

Escreveu José Rodrigues de Abreu48: «Presentemente passou por esta Côrte, com demora de algum tempo, João Taylor oculista Inglês bem conhecido na maior parte da Europa, porque tem vagado, trazendo honradas atestações de ser eminente na Optica especulativa, e pratica. Ofereceu-se a curar com brevidade e metodo novo todas e quaesquer queixas que costumam ofender ou eclipsar o nobre orgão da vista; valeu a diligencia, que introduziu a novidade. Alegravam-se os necessitados com esta visita recomendável pela sua presença e bom tratamento, como também pela vista de muitos, exquisitos, excelentes, delicados e primorosos instrumentos, que mostrava, necessarios para operações diferentes e até aqui nunca vistos nestes paiz.

Voltou à Alemanha e à Boémia e daqui foi a Itália e em Junho de 1755 eslava em Nápoles e intitulava-se Professor de Óptica, diplomado pelas Universidades de Roma e de Pádua, médico oculista do papa por diploma de 24 de Dezembro de 1754, do imperador dos romanos, dos reis de Inglaterra, Polónia, Suécia e Dinamarca e dizia ter publicado vinte e sete tratados sôbre as queixas dos olhos. A 14 de Maio do ano seguinte obteve do primeiro médico do rei das Duas Sicilias, Francis Buoncuore, e do rei de Espanha, um atestado em que declara que, tendo assistido às suas operações e verificado o seu bom resultado, o convidou «a man the most excellent that perhaps any age has produced, as well for the theory, as practise, in what he professes; and I further declare, that I consider him well worthy the benevolence of sovereigns, the esteem of the learned, and the care of flue public». Transcrevemos êstes louvores na língua em que foram escritos49, para que se veja que além dos médicos de Coimbra, houve mais quem ficasse deslumbrado pelo grande charlatão.

«Começou a executalas com grande desembaraço seu e não menos expectação dos assistentes, tratando a fabrica dos olhos com tal intimidade, como quem não reciava damno em alguma das muitas partes liquidas e solidas que a compoem. Não fez cousa em que se não conhecesse muito da sua pericia e ligeireza, ainda que com a infelicidade de um geral mau sucesso, porque não tocou em pessoa, a quem deixasse satisfeita e consolada de todo. Punha-as em termo de verem com fome a estrêla ao meio dia, mas observou-se que ninguém viu mais, menos muitos. Houve no curso da cura quem experimentou algum beneficio, porém com o sentimento de perder-se logo, ficando uns no mesmo estado antecedente, outros em muito peior: foi mais bem livrado, quem não madrugou para o remédio, porque não perdeu cousa alguma do que tinha».

Esteve outra vez em Viena, Alemanha e Países Baixos e em 1758 voltou para Inglaterra, que percorreu novamente durante três anos. Estava rico e abarrotando de diplomas honoríficos, só lhe faltando a carta régia concedendo-lhe o ingresso na ordem portuguesa.

Como se vê houve nesta apreciação muita má vontade e exagero e não menor injustiça, visto que a ser verdade o que afirma, seria impossível a Taylor conservar a sua fama e prestígio durante tanto tempo no nosso paiz.

Foi neste ano de 1761 que se publicou em Londres in 8.º The History of lhe Travels and Adventures of the Chevalier John Taylor, Opthalmister, que está redigida como se fôra a sua autobiografia, mas segundo alguns

48

49

Historiologia Medica, t. II, p. 884.

Gazeta da Lisboa 1755, pág. 161.


bibliografos, foi escrita por seu filho e no dizer do seu neto, que já referimos, foi escrita por Flenry Jones sobre apontamentos de Taylor.

com quem privou, sendo recebido nos seus palácios, convidado a tomar refeições e a hospedar-se ali; acompanhou essas personagens nas viagens, caçada e grandes solenidades. Igualmente privou com os maiores fidalgos e altas personalidades do exército, da magistratura, das finanças e das grandes empresas. E da maior parte recebeu não só valiosos presentes, mas importantes confidências, e outras provas de maior consideração.

O que se encontra na citada autobiografia relativamente à vinda a Portugal, é simplesmente o seguinte: «De Paris em Junho (de 1736) parti para Madrid, onde cheguei em Outubro de 1737. Depois de curta estada em Madrid fui percorrer a Espanha e depois de andar muitos milhares de milhas pela posta, da cidade em cidade, voltei a Madrid em Setembro de 1738 e lá fiquei, até que a guerra foi declarada em 1739, partindo logo para Lisboa, onde cheguei em Setembro. Durante um mês dei Ma volta a todo o Portugal e ao reino do Algarve, com tão espantosa rapidez, que consegui voltar a Lisboa antes do meado de Setembro de 1740 e lá me conservei até Março de 1741.

No mundo das artes e letras teve, como clientes ou amigos, grandes poetas51, pintores célebres52, músicos afamados53 nas ciências físicoquímicas e naturais54 igualmente conheceu de perto e tratou homens muito notáveis e na medicina deu-se com os maiores clínicos e patologistas55 do seu tempo, mas neste ponto mostrou ser bastante ingrato, porque ao enumerar estes, não se lembrou dos lentes de Coimbra, que lhe tinham passado aquelas certidões, que na ocasião apreciou tanto.

«Percorri depois pela segunda vez o Algarve, onde tinha sido chamado e o sul de Portugal, voltando a Lisboa no princípio de Setembro de 1742. No mesmo mês embarquei para Inglaterra, onde cheguei 'nos primeiros dias de Setembro do mesmo ano».

Tal era o pomposo cortejo de grandes e célebres personagens, que Taylor fez desfilar diante do seu antagonista para deslumbrando-o lhe provar, como fôra mais favorecido pela fortuna e soubera obter pelos seus méritos, a clientela e amisade de tais senhores, mais e maiores do que as relações de que Poellnitz se gabava nas suas Memórias.

E a respeito do que passou em Espanha e Portugal, nem uma palavra. Além disso as datas estão erradas. Um aventureiro que viajava muito por tôda a Europa, publicou Lettres et mémoires du baron dc Poellnitz, contenant le caractère des personnes qui composent les principales cours d l'Europe, cuja terceira edição foi impressa em Amsterdam, em 1737 e a seguinte em Londres dez anos depois, publicação, que teve em muitas côrtes grande sucesso de escândalo.

Orange, Izabel da Polónia, Georgia, Saxe-Gotha, Mechlemburgo, Brunswick, Bareith, HesseCassel, S. Severo, Henrique da Prússia, Xavier da Saxonia, princesas Justiniana de Roma e Hatfield de Breslau, Arquiduquezas da Áustria, Izabel, irmã de Carlos V e o Landgrave de Hesse-Cassel. Além dos fidalgos portugueses e espanhóis de que já falámos, os Duques da Rússia, Modena, Hulstein, Mecklemburgo, Wymer, Berwick, Ormand, Lorena, Auspach, Bridgwater, Saboia, o doge de Veneza, os marechais de Saxe, Lowendal, Apraxin, Keith, Brown, Daun, feld marechal Bart, cardeais Fleury, da Motta, Valtini e Albani, Bestuches e Worenshoff, Caunitz e Coloredo, Bruhl, Lyna, condes de Bristol, Brau, Belk, Yarmouth Dewentwater e outros, lords Bolinbroke, Oxford, Euston, sir Robert Rich, Benjamim Keene e Hanbury William, o chanceler da Prússia, o primeiro ministro de Viena, o chanceler da Austria, Mr. Keith, Laws, Knight Titley, e outros. 51 La Fontaine, Voltaire, Pope, Yonng, Gondoli e Metastasio 52 Rysso, Hogarth e outros 53 Farinelli, Cinicini, Guardini e Pompiata. 54 Linneo, Sweden, Woolhouse, o físico Petit, Saint Yves e Annel. 55 Boerhaave, Van Swieten, La Mettrie, Astrue, Chicoyneau, Haller, Albinus, Morgagni, Hainalt, Hunter, Nicols, Monro, Bratwaite, Morland, Petit e Garengeot

Não agradaram ao cirurgião inglês as referências, que nessa obra se lhe faziam e por isso ocupa grande parte da sua autobiografia a despicarse com o seu autor, tentando provar que êle conhecera muito mais pessoas importantes das côrtes da Europa e delas recebera dádivas, mercês honorificas e outras distinções. Assim cita os reis e príncipes50

50

O papa Clemente XIII, Jorge I e II da Grã Bretanha, Carlos VI e VII, Filipe V, os reis de Portugal, Polónia, Dinamarca, Suécia, Sardenha, Prússia, Nápoles e Córsega e as respectivas rainhas, Carlos II, Madame de França, Príncipes de Portugal, Parma, Zerbst,


Cêrca de 1767 deixou a Inglaterra, residiu um tempo em Paris e veiu a morrer cego, ironia do destino, num convento de Praga em 1772, o que permite supor, que, o catecúmeno de Coimbra, se não conseguiu ter o hábito de Cristo, se conservou até ao fim fiel à nova religião, que adoptou em Portugal.

Holle, 1766, fól.. Frontespicio e vinte e duas gravuras em cobre. Muito raro. Da sua mulher Ann King houve um filho com o seu nome, que nasceu em Londres em 1724, foi educado no colégio de Plessis em Paris, voltou para Londres em 1739 e depois de seu pai ter chegado a esta cidade em 1742, praticou com êle, dedicando-se à mesma especialidade e por morte do barão de Wouzel, sucedeu-lhe no cargo de oftalmologista de Jorge III. Estava estabelecido em Halton Garden e ganhou fortuna avultada. Morreu em Londres a 17 de Setembro de 1787.

Na sua bibliografia, além das obras a que nos referimos e daquelas que êle declarou ter publicado em Portugal e de cuja existência duvidamos, há as seguintes. Segundo a Bibliographie Medicale, publicou Account of the mechanism of the globe of the eye. Norwich, 1727, 8.º; Londres, 1730, 8.º. Traduzido em francês em Paris, 1738, 8.º; em latim em 1737, 8.º; em espanhol, em Madrid, em 1738, 8.º; ibidem, em 8.º; ibidem, em 1750, 8.º; em português, em Lisboa, 1738, 8.º; em alemão, em Francfort, 1750, 8.º; em sueco, em Stockolmo, 1753,8.º; em italiano, em Napoles, 1756, 4.º e em dinamarquês, em Copenhague, 1753, 8.º.

Thompson56 disse dêle: «He is described as an illeterate and cunning scoundrel, without the rederwing qualities which made his parent amusing».

*

Há aqui vários erros, a começar pelo título da obra. Assim o autor no seu opúsculo Discripção de doença singular diz ter feito uma edição em Londres em 1727, 8.º.

*

*

O seu filho mais velho, também chamado John Taylor, o terceiro de nome foi oftalmologista de Jorge III e de Jorge IV57.

Traité de les maladies de l'organe immédiat de la vue, Paris, 1735, 12; Amsterdam, 1735, 12 e traduzido em alemão, em Berlim, 1735, 8.º; em inglês, Londres, 1743.

Impartial inquiry into the seat of the immediat organ of sight, Londres, 1743, 8.º.

Não sei se seria irmão dêste um cirurgião José Taylor, que esteve em Portugal e a respeito do qual só consegui averiguar que era cirurgião do regimento de fusileiros escoceses em Glascow, quando foi engajado para servir o exército libertador. Embarcou com 448 praças no navio Royal Glascow, que naufragou e foi o unico que se salvou. Em Lisboa serviu no Deposito Geral dos Recrutas até que este se extinguiu e a 13 de Junho de 1834 foi como cirurgião mór para o regimento de granadeiros da Rainha. Foi demitido deste regimento a 28 de Março de 1835, por portaria de 1 de Outubro58. Voltou depois para o serviço de S. M. Britanica.

An Exact Account of 243 Different Diseases to which the Eye and its Covering are exposed, Edimburgo, 1759. Na sua autobiografia está Edimburgo, 1761.

Parece que nada tinha que ver com êste, outro cirurgião da mesma nacionalidade e com o mesmo apelido Reynald James Taylor que veiu com o exército libertador.

Treatise on the Immediate Organ of the eye, Londres, 1735. New Treatise on the disease of the eye, troof the Cataract or Glaucoma, Paris, 1735, 8.º; Londres, 1736, 8.º; Edimburgo, 1736,8.º. De vera causa strabismi, Paris, 1738, 8.º.

Ultimamente descobriu-se um exemplar da seguinte obra:

Nova nosographia ophthalmica; hoc est accurata recensio ducentorum et quadraginta trium affectuum, qui oculum humanum partesque vicinas ullo modo loedere aut ipsum visnm adimere possunt, Lipsia, Grund a

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Dictionary of National Biography, por Sidney Lee — Londres, 1898 Loc. cit. p. 285. 58 Gazeta de Lisboa, de 21 de Janeiro de 1815. Ordem do dia de 23 de Março de 1852, e 13 de Setembro do mesmo ano, A Guarda Avançada de 1835, n.°67. Pagina da Historia Militar. Informação que devo ao favor do coronel médico sr. dr. Manuel Gião. 57


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