História da Oftalmologia Portuguesa

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BOLETIM DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE OFTALMOLOGIA

História da Oftalmologia Portuguesa (ATÉ AO FIM DO SÉCULO XVI) Por SILVA CARVALHO (LISBOA) Sumário: A Oftalmologia dos árabes da península. Quem exercia esta especialidade na Edade Média. Os escritos de Pedro Julião. O primeiro mestre de olhos diplomado. O inicio do ensino em Portugal. Rui Gonçalves. O tratado de Valesco de Tranta. O livro de Pedro Vaz. Luiz de Almeida no Japão. Vários oftalmologistas do século XVI. Contribuições de Amato Lusitano e Tomas Rodrigues da Veiga. O primeiro cirurgião dos olhos no Hospital de Todos-os-Santos, Luís Teles.

Para corresponder ao amável convite da comissão preparatória desta agremiação, julguei que seria prova da minha gratidão, tentar fazer a história da Oftalmologia Portuguesa (empresa que não foi tentada por ninguém) que pelo menos quisesse fugir à censura de Simão Machado, quando nas Comédias da Pastora Alfea escreveu: «Em fim por natureza E constelação do clima, Esta nação portuguesa O nada estrangeiro estima, O muito dos seus despreza». Mas outro incentivo me levou a encarregar-me desta tarefa, foi o praser que antevi, de poder demonstrar que a especialidade clínica, que nesta instituição vai constituir o objecto de estudo e o motivo de


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culto profissional e cientifico, é em Portugal a mais nobre de tôdas as especialidades por muitos títulos de primazia. As investigações que nos últimos tempos se tem feito nos centros mais importantes de estudo da História da Medicina dos Árabes, têm sido muito produtivas e de grande interêsse, especialmente pelo que diz respeito à Patologia Externa e à Cirurgia. Ora a dominação árabe na península teve decidida influência nos médicos portugueses da Idade Média. Por isso a quem pretender reünir os materiais para a História da Oftalmologia em Portugal, incumbe ter em conta o que naquele tempo se fazia na clínica dos musulmanos e se ensinava nas escolas da Andalusia. Não falando numa mulher beduína, chamada Zaynab, que tratava os doentes dos olhos nos tempos mais antigos da medicina árabe1, nem no célebre Paraíso da Sabedoria, a obra mais importante de Ali ibn Rabban, que viveu no meado do século nono da nossa era2 e no treceiro discurso daquela enciclopédia tratava das doenças das pálpebras e dos globos oculares, lembremos muito por alto o que se passou mais perto da constituïção na nossa nacionalidade. Albucassis (936-1013) foi o mestre mais notável a êste respeito na Espanha moura. Na sua célebre obra Al Tasrif há um tartado de Cirurgia que foi o mais consultado no Ocidente, por conter o relato do que estava disperso nas obras árabes, que o antecederam e por ter lançado os fundamentos do novo ramo da Medicina, que entendia deverem assentar no estudo da Anatomia. Os competentes consideram que a sua técnica operatória em oftalmologia era já muito adiantada3. Depois ocupa lugar eminente na clínica e no ensino o sevilhano Avenzoar (1126-1198) principalmente pelo seu tratado Teissir. Descreveu a dacriocistite e prescreveu a sondagem dos canis lacrimais4. Da mesma época foi o autor da célebre obra Congregation de oculis quem compilavit Alcoatim filius Salomonis Christianus 1

H. P. J. Renaud – La Medicine Árabe, p. 19. Ibidem, p.43. 3 Zki Aly – La chirurgie árabe en Espagne in Bulletin da la Société Française d’Histoire de la Médicine,t. XXVI (1932), p. 236 3 seg. 4 Ibidem. 2


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Tolelanus ano 1159, começada em Toledo e terminava em Sevilha a pedido de Abd el Numen, príncipe dos crentes. Era êste tratado, no dizer competentíssimo de P. Pansier,1 a compilação das obras de Hipocrates, Galeno, Johanitius, Johannes Damascenus, Jsaac, Rasés (Liber Amechi ou Hamechi) Abeniaur, Embicilanus, Beneycen, e Albucassis, de cujos livros copiou a parte cirúrgica e as figuras dos instrumentos. Ultimamente o erudito historiador da Medicina Max Mayerhof publicou Al-Morchid fil’-Kohhl ou le guide d’Oculistique, ouvrage inedit de l’oculist árabe-espagnol Mohammad ibn quassoûm ibn Aslam al-Ghâfiqui (XIIe siècle) traduction dês parties ophtalmologiques d’après le manuscrit conserve à la bibliothèque de l’Escuriel.2 Êste autor considera trinte e sete afecções das pálpebras, três espécies mórbidas do sistema lacrimal, treze da córnea e quatro da íris. Trata da catarata e da sua operação e das doenças internas do globo ocular. Descreve os processos operatórios, representa os instrumentos empregados e expõe as fórmulas de muitos colírios e doutras aplicações terapêuticas. Nesse tempo, refere Pansier,3 a clínica oftalmológica era exercida por judeus, pelos rustici, que faziam vida como curandeiros, pelos cirurgiões oculistas e pelos religiosos. Entre os primeiros, que prosperaram principalmente em Espanha, foi célebre Habraym, judeu aragonês, que foi a França tratar duma doença de olhos Afonso, conde de Poitiers (1220-1273). Havia então famílias em que esta especialidade era exercida durante muitas gerações. Nos conventos os frades que se dedicaram especialmente ao estudo da Farmácia e da Clínica, Tratavam pelos meios médicos e cirúrgicos estas doenças. Os rustici que compreendiam os curandeiros de ambos os sexos e os ervanários e boticários, exploravam receitas de família e utilizavam principalmente os remédios populares. Os cirurgiões que exerciam a especialidade, habilitavam-se em Salerno ou na Escola de Montpellier, onde tomavam o grau de doutor. 1

La pratique de l’ophtalmologie dans le moyen-âge latin in Janus de 1904, p.

3 e seg.

2

Instituto gráfico Oliva de Villanova, Barcelona, 1933. Loc., cit.

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Adiante veremos aparecerem em Portugal os seus sucessores e bem de-pressa os nacionais de ambos os sexos começarem a fazer-lhes concorrência. No século XIII um médico ilustre, nascido em Lisboa, Pedro Julião, mais conhecido por Petrus Hispanus, depois de ter-se feito admirar como professor de Filosofia em Paris e de L’formulário terapêutico destinado à clínica dos que não eram abastados, onde se encontra em dois capítulos a compilação das receitas de numerosos práticos e autores, como Avicena, os mestres Pedro e Henrique, Comentados, Avenrrois, Pedro Barbaroxa, Raimundo, Sixto, Lapidário, Ricardo, Macencio, Dioscorides, paterio, Teodórico, Isaac, Pedro Logrero, Tulio, Giraldo e Gilberto. Hirschberg1referindo-se aos três autores que trataram da oftalmologia na idade média, Mestre Zacarias Benevuto Grafeo e Pedro Hispano, que diz que o primeiro recebeu o ensino da especialidade em Constantinopla, o segundo trouxe-o do Oriente e o terceiro não parece tê-lo recebido. O professor Scalinci2 faz notar que tanto mestre Zacarias, que demonstrou não ter aprendido dos gregos, mas ser inspirado pelos mestres da Escola Salernitana e que colheu para o seu escrito muito da Cirurgia de Rugero, afirmando que fôra discípulo dum Teófilo, como Pedro Hispano dizia ter recebido lições de Teodoro, parecerem ter evocado estes dois nomes, ambos designados por arquiatras e tendo ainda de comum derivarem do mesmo elemento etimológico, Theos, para afirmarem ter tido educação clínica especial e fugirem à designação de simples compiladores dos gregos e dos mestres da escola de Salerno. Nas fórmulas destinadas principalmente a melhorar as dôres e a inflamação nas doenças das pálpebras e dos globos oculares, assim como a desgastar as opacidades da conjuntiva e da córnea, Pedro Hispano utilizava as claras e as gemas dos ovos, o leite de cadela ou de mulher, o queijo fresco, a aguardente, o vinho, e muitas plantas como a sanguinha, rosmaninho, mil fôlhas, betónica, arruda, lírio, rosas, funcho, sangue de drago, malvas, aipo, amêndoas, favas, 1

Graefe – Saemisch. Handb. d. g. Ophtalmol.XIII, § 295. L’Oculista Medioevale M.º Zaccaria e le fonti della sua Sisilacera in Atti dell’VIIIº Congresso Internazionale de Storia della Medicina – Roma, 1931, p. 353. 2


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pulmão de perdiz, de galo ou de certos peixes1 e outros animais, cinzas de andorinhas ou de estêrco humano ou de pombas, banhas de peixe fritas, tutia amassada com urina humana, urina com mel, etc. Recomenda como profilático das doenças de olhos trazer ao pescoço um saquinho com olhos de gralha, caranguejo ou lôbo.2 Mas a parte mais importante da obra dêste autor é a que deixou dispersa em dezenas de manuscritos, que foram reunidos e extractados primeiramente por G. Petella e outros, sendo por fim completada esta obra de vulgarização com a valiosa monografia de A. M. Berger onde vem in-extenso em latim e em alemão reproduzido o códice que começa: Incipit Breviarium magistri petri yspani de egritudinibus oculorum et curis. Começa o tratado definido os olhos como membros nobres radiantes, por emitirem raios visuais, que vão até aos objectos, mostrando assim as côres e asa figuras e estabelecendo a ligação do nosso espírito com o meio ambiente, órgãos portanto preciosos, que nenhum filósofo estudou e descreveu com perfeição. E acrescenta: «Ego magister p. yspanus artis medicine professor minimus medicorum veritatis indagator hunc librum in multis libris collegi ratione et experientia ad preces mei discipuli f(abiani) uil. Salernitani qui liber a me est intitulatus». Diz constar o ôlho de sete túnicas e três humores. Aquelas são a retina, a secunda ou secundina (corodeia), scliros (esclerótica), crânea tela (íris), uvea, córnea e conjuntiva. Os humores são o cristalino (onde se formam as imagens dos objectos), o vítreo e o albugíneo ou aquoso. Chamava lacerti aos músculos motores do ôlho, de que contava oito, incluindo o elevado e o orbicular. São as seguintes as espécies mórbidas a que se refere: obtalmia (de ob = contra e talmon = ôlho), tremor, prurigo, petia (equimose 1

O fel de peixe já citado para a cura da cegueira de Tobias, referida na Biblia. No manuscrito descoberto por Sudhoff refere-se às dietas mais convenientes para os que sofrem de doenças de olhos. (Beitz. z. Gesch. der Chirurgie in Mittelalter, 2 Tl., Leipzip, 1918). 2


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conjuntival por ferimento ou contusão), ungula (peterigion), cancer (tumor formado nos bordos palpebrais) inflatio, aqua, imaginatio, perfuratio, petrositas, duritie (glaucoma?), sistula, oxium, gateritilia (conjuntivite?), panno, pústula, ambitus cohaptation, ordum, (terçol), auratus, grando, pediculi, ozimum, formica, favus (tinha) passio (onde incluía a hemeralopia, mas sem se referir à nictolopia, que já então era conhecida, mas tratada apenas por exorcismos), além das doenças dos músculos. Pedro Julião, como Mestre Zacarias, considerava a invasão dos maus humores nos olhos a causa da afecção que designava por gutta, mas reservava êste têrmo, donde nós tirámos gota, para o que chamava gutta serena, sinónimo de amaurose. Trata também das fístulas lacrimais e da catarata, mas não se refere à operação por abaixamento, que então se praticava por meio de agulhas de prata ou de ouro. Empregava estas muito aquecidas para cauterizar os folículos das pestanas, que a seguir lavava com água limarasicea (?) nos casos de triquiase. Os mesmos instrumentos lhe serviam, assim como a tesoura de prata, para incisar a grangola, que se não percebe o que fôsse. Condena os jejuns quando há doença de olhos, aconselha que se evitem os fumos e as poeiras e na alimentação as frituras, o queijo, o pão ázimo e o vinho puro. Considera também muito prejudiciais os actos venéreos. Recomenda os caldos de peixe fresco ou de carne, o vinho com água e louva o sene, o aloes, as fumigações com decocto de branca ursina e de malvas, o hermodacte, os mirabolanos e a cassia fístula. Como colírios preconizava o de funcho, outro com pevides de abóbora, goma arábica, adraganto e alcaçús, tudo fervido em vinho branco até reduzir a metade e outro feito com fel de andorinha e de perdiz, semente de funcho e arruda e vinho branco. Além disto empregava largamente os produtos do reino animal, que já referimos1.

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Die Ophtalmologie (liber de oculo) dês Petures Hispanus – Munich, 1899.


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Aparece-nos em 1434 ou antes em Lisboa um judeu, Mestre Nacim que operava nas doenças de olhos, o que causou tal admiração, que o rei D. Duarte foi presencear essa novidade e tão satisfeito ficou, que em seu benefício assinou a carta que se segue com muitos privilégios e prerrogativas e que foi confirmada por D. Afonso V cinco anos depois, o que prova que êste cirurgião se conservou na país e não fêz como os seus colegas, os cirurgiões ambulantes1 que muitas vêzes só paravam nos castelos ou nas feiras alguns dias, recebendo o preço dos tratamentos que faziam, retirando-se logo para longe antes de poderem ser apreciados pelos pacientes o resultado da sua intervenção. «Dom Afonso etc. A quantos esta carta virem fazemos saber que mestre Nicim judeu, morador em esta cidade de Lisboa nos enviou mostrar hũa carta que tinha do mui alto excellente e meu senhor e padre cuja alma Deus haja da qual o teor tal he – Dom Eduarte etc. A todalas Justiças dos nossos reynos a que esta carta for mostrado (ou) o trelado della em pubrica forma do sinal de taballião saude. Sabede que nós querendo fazer graça e mercê a mestre Nicim judeu morador em esta cidade de Lisboa por quanto fomos certo que he mestre na arte dos olhos e he idoneo e pertencente2 pêra ello por algũas curas que nós em presença da nossa pessoa vimos feitas per suas maos temos por bem que elle sem embargo de quaesquer defesas mandados nem ordenações que per nós ou per os Reis d’ante nós sejam feitas em contrairo deste use e possa usar per todalas as cidades e vilas e logares dos nossos regnos da dita arte e outro nenhum nom (a use) salvo aquelles que per elle dito mestre Nacim forem examinados e que disser que som pertencentes e idóneos pêra ello ao qual nós damos logar e poder que os examine e possa examinar e mandamos que aquelles que elle assi examinar e houver por examinados obrem e possam obrar da dita arte sem embargo das ditas lex e ordenações comtanto que esses que elle assi examinar hajam sobre esto nossas cartas assinadas pelo dito mestre Nacim e selladas do nosso sello. E 1

Silva Carvalho, Os cirurgiões urogistas ambulantes em Portugal e Espanha,

1939.

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Pertencente, diz Bluteau, é o que tem prendas e requisitos pertencentes ao exercício de algum cargo.


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porem vos mandamos que o hajaes por nosso (servidor) e sob nossa guarda e encommenda e nom consentaes a nenhũ de qualquer condiçom per poderosa pessoa que seja que lhe faça nenhũ mal nem desaguisado nem consentaes que outro nenhum obre e use da dita arte salvo o dito mestre Nacim e aquelles que por elle assy forem examinados como dito he e se achardes que outros algũs obram dello mandamosvos que os prendaes e nolos envieis presos á cadeia da nossa corte para lhe mandarmos dar aquelle escarmento e pena que devem d’haver aquelles que vão contra mandado e lex e ordenações de seu Rey e senhor e em tal guisa o fazei que nom achemos nós hi al depois pelo contrário, unde huns e outros al nom façades. Dada em Santarem V dias de Junho. Affonso de Beja a fez anno de quatrocentos trinta e quatro. E pedionos por mercê que lha confirmássemos e mandássemos comprir e guardar da qual cousa a nós praz etc., em forma. Dada a confirmaçom em Lisboa XII dias de Março. ElRey o mandou com autoridade da senhora Rainha sua madre titor e curador e com acordo do Iffante Dom Pedro seu tio defensor por el de seus regnos e senhorio. Affonso Esteves de Beja a fez era de Jesu Christo de mil quatrocentos trinta e nove.»1 Note-se que tal documento foi passado ao mestre dos olhos, sem a exigência de que êste fôsse examinado por algum dos físicos ou cirurgiões da casa do rei e que contra as prerogativas dêstes foi concedido ao judeu não só o privilégio de exercer a sua arte, mas de ser o único a examinar e passar carta aos que de futuro pretendessem exercer no país. É portanto êste o início do ensino oftalmológico em Portugal. O assim tão beneficiado especialista deve ter-se demorado em Lisboa por longo tempo, porque a 11 de Outubro de 1464 foi passada carta de cirurgia2 a um seu correligionário Mestre Daniel Colobro, que

1

Chancelaria de D. Afonso V. L. 20, fl. 45 v. no A. N. da Tôrre do Tombo, foi publicada em O Correio Médico de Lisboa de 1876, p. 66 e depois por Sousa Viterbo na 4.ª série das Notícias sôbre alguns médicos portuguese, p. 4. 2 Chancelaria de D. Afonso V. L. 8, fl. 22, citada por Sousa Viterbo na mesma Notícia, p. 42.


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declarou ser morador em Lisboa e criado1 do Mestre Nacim e que portanto devia ser seu discípulo e ajudante. Antes já mestre Nacim encontrara entre os portugueses um imitador, mas êste já se submeteu ao exame de cirurgião mor do reino e físico do rei, Mestre Gil e depois desta formalidade obteve a licença para exercer a especialidade, mas sem o monopólio que fôra concedido ao judeu. A carta régia resava assim: «Dom afonso, etc. a todolos juízes e Justiça dos nossos Regnos e Senhorio a que esta nossa carta fôr mostrada saude sabede q nos querendo fazer graça e mercê a Ruy Gonçalves morador em a cidade de Lisboa mestre dos olhos avemos por bem e damoslhe licença e lugar q elle possa obrar darte e cura q pertence aa enfermidade dos olhos por quanto fomos certo por mestre gill nosso selorgião moor a que o mandámos examynar e o achou edonyo e pertemcente pa usar da dita arte pois nós mandamos e defemdemos q o leixeis obrar e usar da dita arte e nõ prendaaes nẽ faciaaes prender nẽ lhe consentaais q fão outº algum desaguysado por quanto he p a dita cura e all nõ façades dada ẽ euª X ds de Março ElRey o mandou p mestre gill seu celogiam moor Brás afons afez ano do sº euª X ds de Março ElRey o mandou p mestre gill seu celogiam moor Brás afons afez ano do sºr jhũ xº de myl iiijbj».2 Anos depois, isto é no último quartel do século XV, aparece a obra doutro português que se ilustrou na clínica e no ensino, Valesco de Tarnta, o Philonium, célebre tratado de Medicina e Cirurgia, qur foi adoptado em muitas universidades e guiou muitos clínicos por tôdas as partes onde a língua latina era entendida. Muitas dezenas de páginas aí eram destinadas à oftalmologia. A Anatomia já apresentava grande avanço sôbre o que se encontrava na obra de Pedro Julião. Referia que do cérebro saíam sete pares de nervos e do ventrículo anterior nascia o primeiro par, que convergindo para a linha média se cruzava com o do lado oposto, atravessando as túnicas ou membranas do globo ocular, indo abrir-se na retina. Aparece o termo musculus

1 Criado nesse tempo não queria dizer sempre servo e mais frequentemente significava o que tivera a sua criação em casa de alguém. 2 Chancelaria de D. Afonso V. L. 13, fl. 179.


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para designar o que se chamava lacertus, dos quais conta seis. Depois fazia referência às artérias e veias. A primeira doença estudada é a oftalmia, de que descreve sete variedades. A etiologia é muito mais desenvolvida do que nos autores mais antigos e nela se atendem não só causas externas, mas também às internas, representadas principalmente pelas perturbações humorais. Igualmente representa progresso evidente a forma como são expostos os sintomas e se estabelecem as condições do prognóstico nas crianças e adultos. Quanto ao tratamento figuram em primeiro lugar depois da supressão das causas morbígenas, a aplicação dos purgantes e das sangrias, a água rosada, o leite de mulher, as compressas de pano de linho embebidas em cozimentos emolientes, e as cataolasmas da mesma natureza. Procurava fazer derivação dos humores pecantes para os membros inferiores, para as fossas nasais, pescoço, etc. Recomendava aos clínicos que se abstivessem de empregar colírios nos primeiros dias da doença e especialmente de ópio. Aconselha que o doente esteja às escuras e ao abrigo do vento e das poeiras, que a cabeceira da cama seja alta e que se abstenha do vinho e carnes. A sangria mais útil, dizia, é a da veia cefálica do lado oposto à lesão e em segundo lugar a da safena e das veias da região temporal. Dum modo geral a diferença notada neste capítulo consta da deminuïção dos produtos extravagantes do reino animal, que nos tempos anteriores constituíam quási tôda a terapêutica em tais casos. Os remédios do reino vegetal são mais numerosos, mirabolanos, cevada, sangue de drago, tamarindos, etc. Os banhos também são muito aconselhados. Recomenda com muita instância que se evite com o maior cuidado provocar ou entreter a supuração. Os capítulos seguintes tratam de dor dos olhos, bothor, (formação mórbida na conjuntiva ou na córnea deixando opacidade), pannículo (que parecia ser um grau superior ao bothor) ungula (pterigion), mácula, carne supérflua ocolorum vel deminuta, fístula lacrimali (a dilatação fazia-se com a genciana e com esponja com um unguento de alúmen e mel e outras aplicações e no caso de se não obter a cura, recorria-se ao cirurgião que com lanceta ou navalha excisava as partes, que algumas vezes cauterizava depois e aplicando mechas, procurava obter a cicatrização não se esquecendo de verificar se havia lesão


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óssea para a tratar) pruritus, absque scabis, tumor da conjuntiva, ulcera, de lacrimis, corpos estranhos, duritie da conjuntiva, vesica, câncer, ruptura e humectatione coloris córneæ, de mutatione coloris corneæ, de sânie retro corneæ, de dilactione pupillæ. De suffusione. Neste capítulo se trata da catarata para cuja operação o autor aconselha dieta, preparar o doente com purgas, clisteres e sangria e assegurar-se de que não haja tosse. Num dia claro, em que a lua esteja na quadratura fora do signo Áries, em que a conjunção e a oposição se faça por quinze graus, à hora da têrça (reza que se fazia de manhã no coro dos conventos) isto é, às nove horas, posto o operador num degrau, um ajudante segurará com firmeza a cabeça do operador. Fecha-se o ôlho são com algodão e uma atadura e o operador colocado em plano mais elevado, pode observar bem a região em que vai operar. Depois de fazer o sinal da cruz o cirurgião introduzirá a agulha pelo branco do ôlho dirigindo-a para o ângulo interno, evitando ferir as veias rubras da conjuntiva, e introduzi-la-á até ao lugar designado e a inclinará para a pupila na sua parte média e mesmo mais além, até a ver bem através da córnea e então com a sua ponta empurrará a catarata e levantando o instrumento, a trará para baixo, deixando-a entre as membranas ou túnicas do ôlho, repetindo esta operação até que a catarata fique abaixo da abertura da iris e aí se conserve durante o tempo em que se rezam cinco Ave-Marias. Evitese ferir a iris e penetrar nos outros humores. Retirada a agulha, aplicase sôbre o ôlho a gêma de ovo1 com óleo rosado. Conserve-se o ôlho são tapado, para que os movimentos não provoquem os da parte operada e o doente fique deitado às escuras. Neste capítulo Valesco refere-se à gota serena e à sua incurabilidade, empregando-se assim um têrmo que até aos nossos dias foi usado nos casos em que a cegueira não tinha causa conhecida, nem lesão manifesta. Seguem-se os capítulos De imbecilitate visus, em que se referem as perfurações da vista pela icterícia e outros estados mórbidos internos e como efeitos da insulação, excessos venéreos, etc. 1

A gêma e clara de ovo, o leite sobretudo de mulher, o vinho e a aguardente eram as principais substâncias, relativamente asépticas, que instintivamente procuravam os clínicos avisados daquele tempo para usar nas pessoas que mais cuidados lhes davam.


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Vem depois tratada a nictalopia, o estrabismo, a exoftalmia, os parasitas das pálpebras, a inversão destas, as dificuldades de as abrir ou fechar, a sua inflamação, congestionamento e ulceração, o seu prurido, inversão das pestanas, os treçóis, etc. Tal era em resumo o que se encontrava sôbre a oftalmologia no tratado que andou em tôdas as mãos até ao século XVII e que era obra de compilação e produto da prática dum mestre português. Antes de passarmos adiante lembremos a louvável intenção do autor em tratar da cirurgia com grande interêsse e cuidado, numa época em que a prática dêste ramo da medicina por ser obra de mãos, implicava o menosprêzo de quem a exercia, colocando o cirurgião a par dos barbeiros, enfermeiros e criados dos médicos. Em segundo lugar, admirável é também a preocupação do sábio médico português em dar tôda a importância à higiene e cuidados de tôda a natureza, que julgava e bem, serem elementos importantes da terapêutica, assim como a preocupação de procurar as causas das doenças, para evitá-las ou mais facilmente as combater. Ainda merecem referência especial a independência e são critério com que Valesco critica as opiniões dos clássicos gregos e latinos e a manifesta disposição para o abandono de muitas de muitas superstições e práticas condenáveis. Pedro Vaz1 expõe no capítulo X De oculorum affectibus do seu tratado e discute as opiniões de vários autores sobre o papel que representa na visão o cérebro e o cristalino, para deduzir quais desarranjos de qualquer dêstes órgãos podem influir nas perturbações da visão. Refere-se à amaurose ou gota serena e à ambliopia e suas causas. Os capítulos da sua obra, que nos interessam intitulam-se: Ad suffusionem. Ad lippitudinem seu ofthalmiam. Ad præservationem oculorum á lippitudine. Ad albuginem. Diuturnis oculorum affectibus. Ad ofthamiam. 1

Médico natural da Covilhã na sua obra mais importante Commentarius Medicus multa rei medicæ subcura lucidans, etc. – Mântua, 1576.


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Ad ulcera oculorum sórdida, crassinibus succis.

ε purulenta, ε

ad lippitudinem a

A 1 de Novembro de 1503 foi assinada a carta régia que permitia que Mestre Sancho, biscainho, vista a informação de Mestre Gil, cirurgião-mor do reino que o examinou, pudesse tirar cataratas e unhas (pterígions). Anos depois, a 22 de Setembro de 1516, Mestre Simão, morador nas Entradas (a Campo de Ourique, no Alemtejo) obteve licença1 para usar da dita arte, a que se acrescenta pela primeira vez – e ciência e depois de ter sido examinado pelo cirurgião-mor do reino, o doutor Diogo de Faria. Mais tarde veio um estrangeiro, Mestre João Biscaínho, morador em Penela, em cuja carta2 dada em Lisboa a 27 de Julho de 1518 há várias novidades. Era autorizado a tratar cataratas, névoas, bolidas e úngulas e tôdas as outras enfermidades dos olhos. Ordenava-se que todos os que quisessem exercer a mesma especialidade sem carta ou licença régia, fôssem presos a requerimento de Mestre João e só fôssem soltos com licença do rei ou do cirurgião-mor. Além disto pela primeira vez se declara, que o beneficiado com êste privilégio jurara na chancelaria aos santos evangelhos que bem e verdadeiramente serviria o dito ofício, guardando o serviço de Deus e do rei e bem do povo, fórmula que não devia ser muito cómoda para os judeus. No meado dêste século houve um cirurgião português que pertenceu à Companhia de Jesus e no Japão foi célebre, de que dão testemunho agradecido os historiadores de medicina desse país, o padre Luiz de Almeida. Não só fêz clínica afamada, mas conquistou grande prestígio por isso e por ter fundado e mantido um hospital para leprosos, uma maternidade e asilo de crianças, mas também por ter 1

Chancelaria de D. Manoel. L. 35, fl. 52. Sousa Viterbo, loc. cit., 3ª série, p. 9. Ibidem, L. 25, fl. 105 v., loc. cit. p. 12. 3 Ibidem, L. 38, fl. 33 v., loc. cit. p. 10. 2


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criado o ensino de medicina onde se instruíram muitos japoneses, sendo assim o introdutor da ciência europeia naquela parte do mundo.

Pois este ilustre representante da nossa terra, deveu parte do prestígio que alcançou aos serviços clínicos prestados na prática da oftalmologia.

Aos dois mestres insignes já citados vem juntar-se um terceiro no meado dêste século. Amato Lusitano, que com interêsse e zelo seguira nos hospitais de Salamanca a clínica de patologia externa1 e tantas intervenções cirúrgicas realizou na sua prática e registou nos seus livros, inclui nêles um caso de pterigion tratado com êxito numa rapariga pelo nitro e gema de ôvo depois de purgar a doente e refere-se a vários casos da sua observação, em que a água forte temperada com água de rosas produziu bom resultado.2 Aconselhava para preservar os olhos nos variolosos untar as pálpebras com pena macia molhada em água de rosas, tanchagem, açafrão e cânfora e instilava um colírio com as mesmas drogas e outras.3 Conta que seu irmão José Amato, de temperamento bilioso, estava sofrendo de dor dos globos oculares acompanhada de rubor e tendo-lhe administrado ao deitar umas pílulas preparadas com diagridia e vinho, achou-se melhor duma coisa e doutra no dia seguinte. Pôs-lhe ventosas nas espáduas e fêz-lhe 1

No seu colóquio com Vancio, à pregunta deste sobre se ele exercera a cirurgia e quando, responde Amato: «Sub præceptoribus Salmanticæ maxime, vbi cùm nondum decimum octauum ætatis meæ annum agerem, præceptores Pontanus Oliuarius, tantum mihi et diligentiæ tribuebant meæ, ut decorum hospitalium, variis ægrotantibus promiscuis refertorum mihi curam committerent, quórum alterum titulum diuæ Crucis, alterum vero diuæ Blanchæ, si recte teneo, habet, postea vero in patriam reuocatus parum de arte chirurgica exercenda curiosus fui» (Centurice Dvæ Quinta et Sexta – Lugduni, 1564, p. 603). 2 Centuria III, cur. 82. 3 Ibidem, cur. 15.


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lavagens dos olhos com água de roasas preparada com tutia (óxido de zinco por calinação) e a cura foi completa.1 Há outra observação2 que já capitula de oftalmia dolorosa, acompanhada de cephalalgia intensa. Prescreveu sangria da cefálica, o uso dum xarope de rosas, borragem, chicórea, azedas e lavagens com um cozimento de rosas, malvas e alforvas e umas pílulas déscamonéa. Examinando atentamente o globo ocular descobriu-lhe na córnea uma pequena úlcera, que lhe pareceu de origem sifilítica e por isso lhe aplicou um cozimento de borragem, lúpulo, fumaria, polipódio do carvalho, fôlhas de sene, cevada, casca de mirabolanos da Índia e passas de Corinto e um colírio branco e verde d’aloés e tutia preparada. Traz outro caso3 numa rapariga com erisipela da face e pálpebras. Noutra4 tratou umas névoas e, como soubesse que ela fôra concebida quando o pai sofria de sífilis, aplicoul-lhe aos olhos cozimento de quaiaco e internamente mel, pontas de funcho, flores de sabugueiro e Eufrásia; e as opacidades desapareceram. Numa mulher5 casada com um sifilítico, que sofria de cefalea, um tubérculo na fronte, úlcera do nariz e dacriocistite com fístula, além do tratamento interno anti-sifilítico, empregou um emplastro da sua invenção e que em muitos casos semelhantes lhe deu magnífico resultado, composto de cascas de caracóis, aloes, mirra, incenso, goma da Pércia, sangue de Drago, alvaiade, erva panacéa dissolvida em vinagre, hematites, açafrão, cera e resina e a doente curou-se. Num judeu6 que apresentava uma catarata (pela Primeira vez emprega êste têrmo) num dos olhos e na outra uma nubécula com flictena e na face exantema, obteve também melhoras sensíveis com um colírio, purgas e outros tratamentos.

1

Centuria IV, cur. 49. Ibidem, cur. 68. 3 Ibidem, cur. 73. 4 Centuria V, cur. 53. 5 Ibidem, cur 68. 6 Ibidem, cur. 77. 2


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Com tutia em vinho curou um homem que sofria de distellatione (lagrimejar) oculorum1 e também obteve bom resultado numa mulher com oftalmia gravíssima, a quem aplicou um colírio opiado e poz a dieta e por não poder tomar clisteres, prescreveu um bolo purgativo2. Conta o caso3 duma mulher, a quem o marido deu uma bofetada, que imediatamente a cegou, não se observando lesão alguma que explicasse esta afecção, que quando êle a observou, já durava havia anos. E termina esta observação escrevendo – Tu vero docto lector considera. Outra observação4 também curiosa refere, a duma rapariga a quem apareceu no ângulo interno do ôlho uma lombriga esbranquiçada, muito delgada e de meio palmo de comprimento, que facilmente foi extraída. Antes de prosseguirmos, devemos chamar a atenção para o facto de que Arnato nas célebres Centúrias revelou progresso evidente neste ramo de medicina, relativamente aos seus antecessores, não só na linguagem que empregava, forma da sua observação, habilidade do diagnóstico, em que repetidas vezes reconhecia com facilidade a etiologia que importava determinar, mas também na terapêutica médica e cirúrgica que adoptava com feliz êxito. Outro mestre e clínico insigne vem ainda neste século brilhar nos fastos da oftalmologia portuguesa, o grande Tomaz, o doutor Rodrigues da Veiga. No seu tratado postumo, Prática Médica encontram-se três capítulos que a êste propósito nos interessam. O mais importante é o primeiro De ophtalmia, quási todo ocupado pelos conselhos higiénicos, em que se destacam as referências aos óculos escuros, à vantagem de não trazer o pescoço apertado, não usar os cabelos compridos, dormir muito, com a cabeça levantada e inclinada para o lado são, passar sem ceia ou fazê-la muito leve, imobilizar não só o ôlho doente, mas também o são e começar o tratamento pelas evacuações sanguíneas, sangria geral ou parcial, ventosas sarjadas, sanguessugas em volta dos olhos, na região temporal, atrás das orelhas, etc., seguido dos laxantes, etc. 1

Ibidem, cur. 96. Centuria VI, cur. 180. 3 Centuria VII, cur. 44. 4 Ibidem, cur. 63. 2


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Quanto à terapêutica é muito favorável ao leite de mulher e aos ovos, queijo fresco e manteiga, aos cozimentos de plantas, rosas, violetas, funco, etc., cânfora, sangue de drago, bolo arménio, ópio, aloes, etc. Cita branco e em certas fórmulas recomenda a água da chuva. O notável mestre não fez alusão à parte cirúrgica da oftalmologia e tembém no seu tratado se não encontra nenhuma notícia de que em Coimbra se praticasse a operação da catarata ou outras do mesmo género. Vejamos o que a tal respeito se praticava na corte neste tempo. A primeira referência que encontrámos ao cirurgião Luís Teles, que exercia clínica em Lisboa, foi a de ter aparecido a 27 de Março de 1584 no Santo Ofício a denunciar várias pessoas e por essa ocasião se intitulou cirurgião e médico de olhos e declarou ser filho de mestre Luís e residente no Hospital d’El-Rei.1 Foi nomeado em 17 de Setembro de 1587 com o ordenado de 10.000 réis por ano e casa para viver dentro do Hospital, catarateiro para o serviço dêste estabelecimento, mas no ano seguinte abandonou o seu lugar,2 parecendo que continuou a servir na Misericórdia. Julgado desnecessário aquêle cargo no Hospital, foi suprimido por despacho de 28 de Junho de 1590. Mais tarde pretendeu voltar a ocupar o mesmo lugar, alegando que havia muitos anos que exercia a clínica dos olhos no Hospital e Misericórdia. A Mesa assentou3 «que se tomasse e aceitasse Luís Teles para curar neste hospital todos os homẽs e mulheres de cataratas e as mais doenças dos olhos assi da Mi(sirecordi)a como do Hospital cõ ordenado de vinte mil rs. E oito mil rs. Pêra casas e disto se desse conta a S. A. (sua altesa) pera o q eu vise o q lhe parecer muito acertado e q ouver por cousa di(g)na desta casa/se aceitou com declaração q viviria na bistegua (bitesga) em casas do hospital. Feito em mesa oje 23 dabril de 1593 e no L.º da fazenda se Registará este acẽnto»

1

António Baião – A Inquisição em Portugal e Brasil. Livro de Despesas de 1587-8, fl. 124 no Arquivo dos Hospitais Civis. 3 António Baião – A Inquisição em Portugal e Brasil. 2


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Dois meses depois tomou-se outra deliberação:1 «A mesa ha por bem q o sup.te vença o ordenado q tinha o físico das cataratas de Janeiro presente em que começou a era de 93 visto largar o q merecia da cura q fez em os pobres q curou de cataratas e Mandão aos oficiaes da fazenda q assi cumprão e lhe paguẽ seu ordenado a este Resp.to e aja de tudo acento no L.º da fazenda deste despacho e do atrás. 16 de junho de 593. M.el pinto/o provedor M.g.elo de Castelo Branco»2 Vê-se dêste documento que na ausência de Luís Teles, houvera um físico das cataratas, depois aquêle esteve curando os pobres tutelados pela Misericórdia deste Janeiro de 1593 e por isso não recebera ou dispensara a remuneração. Parece ter havido qualquer embaraço demorado no cumprimento desta resolução, ou então Luís Teles, fêz nova ausência, porque a 30 de Agosto de 1596 determinou3 a Mesa que êle fôsse readmitido, mas se lhe não pagasse mais que os vinte mil reis da sua primeira nomeação, começados a contar do dia da Visitação de Santa Isabel dêsse ano e se lhe concedesse que voltasse a ocupar a casa em que antes morava no edifício do Hospital, que para isso se despejaria, se estivesse ocupada. Em 1598 o vice-rei Marquez de Castelo Rodrigo, D. Cristóvão de Moura, o maior traidor e corruptor de consciências que Felipe I teve a seu serviço, chamou Luís Teles para o tratar e êste tornou a abandonar a clínica oftálmica do Hospital e da Misericórdia. Mais tarde pretendeu ser reintegrado no mesmo lugar e fêz petição nesse sentido e o despacho da Mesa foi que «por não estar sempre d’assento na terra» se lhe abonasse apenas dois mil reis por cada enfêrmo de cataratas que curasse. Esta resolução tem a data de 25 de Maio de 1600, mas uma nota à margem diz que a data exacta é 1603.

1

Registo Geral, L. I, fl. 361. Ibidem, fl. 379 v. 3 Ibidem, L. 2, fl. 13 v. 2


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Em 20 de Setembro de 1601 se determinou1 por ordem do príncipe Alberto, que se lhe pagasse vinte mil reis por tôdas as curas de cataratas e outras doenças de olhos que tinha feito nêsse ano e de futuro além dêste ordenado recebesse vinte cruzados para casa, sendo ambos os vencimentos pagos aos quartéis, além das pitanças2 ordenadas para os físicos do Hospital. Não se conformou Luís Teles com esta determinação e insistiu em que lhe restabelecessem todos os vencimentos que anteriormente tinha recebido e como não lhe satisfizessem esta reclamação despediuse. O lugar ficou vago até dez anos depois, como veremos no capítulo seguinte.

1

Registo Geral, L. I, fl. 407 v. Os físicos recebiam em géneros cada ano um moio de trigo, outro de cevada e uma porção de grão de bico, chicharos, carne de carneiro e de porco. 2


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