A Cristologia do Novo Testamento
Humberto Macharetti Seminรกrio Teolรณgico Batista Carioca Rio de Janeiro, Brasil 2017
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1. Introdução – Porque fazer uma cristologia? Por que fazer uma cristologia? Há cerca de dois mil anos passados, apareceu na Galileia dos gentios um artífice, filho de família pobre, anunciando a chegada do reino de Deus. No nascimento, recebeu o mesmo nome do grande libertador de Israel, Iechua, Josué, Jesus. Ele foi ouvido, aceito e seguido por um grupo não muito grande de homens, cerca de setenta, que se tornaram seus discípulos e o acompanhavam nas intermináveis viagens a pé pelo território palestino. Dentre estes escolheu doze que foram chamados de apóstolos, aos quais instruiu mais precisamente e concedeu autonomia para prosseguirem sozinhos pregando a mesma mensagem que dele haviam ouvido: “o Reino de Deus chegou”1. As autoridades locais viram nele uma ameaça à estabilidade política e social da região que era, naquela época submissa ao governo romano. Arquitetaram e executaram um plano que acabou ocasionando sua morte com a conivência da autoridade dominadora. Esperavam que essa morte colocaria um ponto final no movimento popular que ele iniciou e que reivindicava ser a realização dos planos de Deus para a sua nação. Muito pelo contrário, o ânimo dos discípulos não arrefeceu, ele continuaram pregando e fazendo novos adeptos 2. A parte mais importante da mensagem destes estava na declaração de que o seu mestre martirizado havia ressurgido dentre os mortos e continuou a lhes dar instruções por um espaço de quarenta dias ao fim dos quais foi elevado aos céus3. Ensinavam também que ele voltaria brevemente para completar a obra de instalação do Reino de Deus4, que fora apenas temporariamente interrompida. Que foi esse homem? Essa pergunta foi ouvida e respondida por aqueles que passaram a usar o nome de cristãos? De onde ele veio? Para onde ele foi? O que ele faz agora? Quando ele voltará? Quem são vocês? O que esperam do futuro? Essas perguntas fervilhavam nas cabeças de todos quanto, a partir da segunda geração de crentes, ouviam a mensagem e os testemunhos dos primeiros seguidores. Os apóstolos e discípulos precisaram elaborar respostas inteligíveis aos questionadores para responder com clareza o que pensavam de seu mestre. Do conjunto dessas respostas nascia uma cristologia5. Nasciam também uma escatologia6 e uma 1
Ora, depois que João foi entregue, veio Jesus para a Galileia pregando o evangelho de Deus e dizendo: O tempo está cumprido, e é chegado o reino de Deus. Arrependei-vos, e crede no evangelho. Mc 1.14,15.
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Flávio Josefo (37-100 d.C.), Antiguidades Judaicas, livro 18, parágrafos 63 e 64, 93 d.C. "Havia neste tempo Jesus, um homem sábio [se é lícito chamá-lo de homem, porque ele foi o autor de coisas admiráveis, um professor tal que fazia os homens receberem a verdade com prazer]. Ele fez seguidores tanto entre os judeus como entre os gentios. [Ele era o Cristo] E quando Pilatos, seguindo a sugestão dos principais entre nós, condenou-o à cruz, os que o amaram no princípio não o esqueceram;[porque ele apareceu a eles vivo novamente no terceiro dia; como os divinos profetas tinham previsto estas e milhares de outras coisas maravilhosas a respeito dele] . E a tribo dos cristãos, assim chamados por causa dele, não está extinta até hoje." Ora, eu vos lembro, irmãos, o evangelho que já vos anunciei; o qual também recebestes, e no qual perseverais, pelo qual também sois salvos, se é que o conservais tal como vo-lo anunciei; se não é que crestes em vão. Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado; que foi ressuscitado ao terceiro dia, segundo as Escrituras; que apareceu a Cefas, e depois aos doze; depois apareceu a mais de quinhentos irmãos duma vez, dos quais vive ainda a maior parte, mas alguns já dormiram; depois apareceu a Tiago, então a todos os apóstolos; I Co 15.1-7. Estando eles com os olhos fitos no céu, enquanto ele subia, eis que junto deles apareceram dois varões vestidos de branco, os quais lhes disseram: Varões galileus, por que ficais aí olhando para o céu? Esse Jesus, que dentre vós foi elevado para o céu, há de vir assim como para o céu o vistes ir. At 1.10,11. Cristologia é um discurso acerca de Jesus Cristo. Estudo das coisas que acontecerão nos tempos futuros, no fim. 2
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eclesiologia7. Na cristologia os crentes mostravam a identidade de seu mestre. Na eclesiologia mostravam sua própria identidade. Na escatologia criavam um sistema no qual ancoravam todas as suas esperanças para o futuro imediato e remoto. É necessário também que lembremos que o cristianismo não se desenvolveu isolado como se fosse uma planta de estufa protegida das influências ambientais. Muito pelo contrário, desde o início o estabelecimento e o crescimento da comunidade de cristãos ocorreu em um campo onde tinha que dialogar constantemente com opositores que nem sempre eram muito cordiais. Judeus, romanos, religiões pagãs. Alguns deles passavam do diálogo à hostilidade com tremenda facilidade. As perseguições se tornaram inevitáveis e frequentes. Em consequência, os cristãos necessitaram desenvolver um rígido e abrangente sistema doutrinário com o objetivo de preparar os novos aderentes a firmarem sua fé e a não apostatarem nas horas em que mais sofriam as adversidades decorrentes da escolha que fizeram. Ao meso tempo, precisavam ter argumentos para apresentar aos seus opositores explicando tudo o que faziam e diziam. Acabaram elaborando uma teologia completa. Neste estudo, pretendemos apreciar como os primeiros cristãos elaboraram seus ensinamentos acerca da pessoa de Jesus Cristo, seu líder, apresentado tanto como deus quanto como homem. Hoje os teólogos usam duas expressões para expor este assunto. Fala-se em baixa cristologia quando assumimos para Jesus Cristo uma identidade que enfatiza sua humanidade. Por outro lado, fala-se em alta cristologia, quando se enfatiza a sua divindade. Encontramos os dois modelos de cristologias no Novo Testamento. A baixa cristologia presume a divinização de um ser humano, no caso, o Jesus de Nazaré, que em um determinado tempo de sua vida, no caso, o momento de seu batismo como descreve o evangelho de Marcos, ou na sua ressurreição, como descrito por Paulo, é adotado por Deus como filho e passa a mostrar atributos divinos recebidos do pai. Essa versão é conhecida como adocianismo. A alta cristologia, por outro lado presume que um ser divino preexistente desce a este mundo por meio de uma encarnação assume todas as virtudes e vícios inerentes aos humanos. Ehrman8 propõe uma nomenclatura diferente para essas duas interpretações que é bastante elucidativa. Ele fala de cristologia de exaltação para se referir a um processo no qual um ser humano normal é, em algum momento, exaltado ao nível da divindade recebendo atributos que não são próprios de homens. Por outro lado, ele fala de uma cristologia de encarnação para descrever o processo no qual um ser divino preexistente se desvincula de seus atributos divinos e assume a humanidade.
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Eclesiologia diz respeito à doutrina da igreja. Ehrman, Bart D., Como Jesus se tornou Deus, tradução de Lúcia Britto, São Paulo, LeYa, 2014.
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2. Paulo – a cristologia do Kyrios ressurreto Paulo foi provavelmente o primeiro escritor do Novo Testamento. Suas epístolas mais antigas datam do início da década de 50. Se, como querem alguns, ele foi precedido por Tiago, isso não faz diferença para nós porque a epístola desse apóstolo é totalmente omissa em termos de Cristologia. É razoável, portanto, que iniciemos o estudo da cristologia do Novo Testamento pelos escritos de Paulo. A pergunta que se coloca inicialmente é: “Por que razão Paulo precisou elaborar uma cristologia?” Sua resposta deriva da pesquisa histórica. Paulo foi, antes de tudo, um judeu vinculado à tradição de Israel. Foi também adepto do farisaísmo, um grupo religioso que tinha exigências muito fortes em termos de pureza e de respeito à Lei de Moisés9. Foi ainda um indivíduo culto instruído nas artes e na filosofia helênica. Foi, como declara Heyer10, um “homem de dois mundos”. Sua entrada no Cristianismo se deu de maneira espetacular e traumatizante. O Senhor ressurreto lhe apareceu no caminho e o convocou a ser um profeta que levaria a mensagem do evangelho até os confins da terra. Depois dessa experiência, Paulo nunca mais foi o mesmo. Chegou a desprezar seu nome de batismo que apontava para a realeza judaica e assumiu um nome muito humilde que era usado por escravos. Descobriu, pouco tempo depois, que seu público-alvo não era o povo judeu e sim os gentios que os judeus desprezavam e que a ele fora reservada a missão de evangelizá-los. Sua base escriturística para essa interpretação ele a achou na narrativa d chamada de Abraão 11. A leitura que fez desse texto12 levou-o a concluir que o plano redentor de Deus não se restringia aos seus irmãos de etnia, os judeus, mas, se estendia a todo e qualquer ser humano que fosse capaz de exercitar a fé no Deus vivo. Na execução de sua missão, Paulo necessitou apresentar Jesus como salvador a todos os seus ouvintes. E estes não se restringiam a judeus e a prosélitos do judaísmo. Seu público-alvo foi constituído por todos os súditos do Império Romano. A palavra-chave que Paulo usou para identificar Jesus para os romanos foi a mesma que eles usavam para honrar seu imperador: “κυρίoς”, Senhor13. Em contrapartida, a si mesmo se chamava “δοῦλος”, escravo. É evidente que ninguém pode ser escravo de um morto e, portanto, para Paulo, o fato de que Jesus estava vivo implicava em que ele havia ressuscitado dos mortos. Sua cristologia foi centrada na ressurreição. Outro aspecto importante é o fato de que Paulo é praticamente o único autor do Novo Testamento que usa a expressão “Cristo Jesus” para identificar aquele a quem ele prega. Todos os outros autores se referem a ele como Jesus Cristo. Essa escolha implica em dar prioridade ao Cristo ressurreto em detrimento da pessoa do Jesus humano 14. Paulo nos apresenta, portanto, uma alta cristologia. Ele enfatiza e divindade do Cristo e relativiza a humanidade do Jesus de Nazaré.
A identidade de Cristo Jesus Iniciando sua epístola aos cristãos de Roma, Paulo declara: “Paulo, servo de Cristo Jesus15, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus, que ele antes havia prometido pelos seus profetas nas santas Escrituras, acerca de seu Filho, que nasceu da descendência de Davi segundo a 9 Fp. 3,5,6, 10 Den Heyer, C. J., Paulo, um homem de dois mundos. São Paulo, Paulus, 2009. 11 Gn. 12,1-3. 12 Rm. 4. 13 O imperador Domiciano (81-96 d.C.) segundo nos informa o historiador romano Suetônio, na obra “A vida dos doze Césares”, com análoga arrogância, ditou em nome dos procuradores, uma carta circular que começava com o seguinte período: “Nosso senhor e deus ordena que assim se faça”. A partir disso, então, o uso estabelecido, de forma que ninguém, escrevendo ou falando, lhe chamasse de outra maneira 14 II Co. 5.16 - Por isso daqui por diante a ninguém conhecemos segundo a carne; e, ainda que tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, contudo agora já não o conhecemos desse modo. 15 A expresão: “Χριστοῦ Ἰησοῦ” aparece no texto crítico do N.T. 4
carne, e que com poder foi declarado Filho de Deus segundo o espírito de santidade, pela ressurreição dentre os mortos-Jesus Cristo nosso Senhor.16” 1. O primeiro ponto importante para a compreensão da cristologia paulina está na apresentação de Jesus Cristo como sendo aquele cuja vinda foi prometida aos antigos por meio dos profetas, nas santas escrituras, e que havia nascido, segundo a carne da descendência de Davi. Nessa declaração fica evidente que Paulo desconhecia qualquer ideia a respeito de um nascimento virginal de Jesus Cristo. Seu nascimento se deu naturalmente, segundo a carne. Essa declaração concorda com a informação que Paulo passa aos crentes da Galácia: “mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido debaixo de lei”,17 2. O segundo aspecto colocado em evidência foi a sua divindade. Ela se revelou quando Jesus foi declarado Filho de Deus (υἱοῦ θεοῦ). Para um judeu a palavra filho (υἱοῦ) implicava em compartilhamento de natureza. Quando Jesus chamou João e Tiago de “filhos do trovão” 18 estava enfatizando sua natureza ruidosa. Paulo, ao chamar Jesus de filho de Deus enfatizava sua natureza divina. Paulo definia, portanto, uma alta cristologia. 3. O terceiro aspecto esclarecido nesta passagem é a compatibilização da divindade de Jesus com sua humanidade. Este tema permaneceu uma espécie de “espinho na carne” dos cristãos pelos milênios que se seguiram. Paulo declara que a revelação da divindade de Jesus Cristo ocorre no momento de sua ressurreição. A partir daí ele passa a ser “Jesus Cristo nosso Senhor”
Jesus, o deus esvaziado Para Paulo Jesus foi homem desde que nasceu até o momento em que morreu pregado na cruz. Nada do que ele disse ou fez pode ser explicado por uma pretensa divindade. Não podemos lhe atribuir onisciência, onipotência, onipresença ou qualquer outro atributo divino. Dessa forma, só nos resta recorrer a uma vocação profética muito especial para explicar as curas, os exorcismos ou as revelações particulares saídas de sua boca. Estamos tremendamente restringidos. Para Paulo isso não era problema porque seu compromisso não foi com um Jesus judeu de Nazaré mas com o Cristo universal. A adoção de uma alta cristologia, entretanto, não pode prescindir da aceitação da preexistência do Cristo. Como poderia um deus não ser eterno? Como poderia um deus haver surgido na história depois da existência do universo de cuja criação ele mesmo havia participado? Paulo resolve esse problema com a “cristologia cenótica” ou “cristologia do esvaziamento” exposta na epístola aos filipenses19. Tende em vós aquele sentimento que houve também em Cristo Jesus, o qual, subsistindo em forma de Deus, não considerou o ser igual a Deus coisa a que se devia aferrar, mas esvaziouse a si mesmo, tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu o nome que é sobre todo nome; para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai. A chave para a compreensão da compatibilização da humanidade de Jesus com a divindade do Cristo está em um processo de esvaziamento (cenosis) a que ele voluntariamente se submeteu por ocasião da sua encarnação. Ao assumir a humanidade, na identidade do Jesus de Nazaré, o Cristo 16 Rm. 1.1-4. 17 Gl. 4.4. 18 καὶ Ἰάκωβον τὸν τοῦ Ζεβεδαίου καὶ Ἰωάννην τὸν ἀδελφὸν τοῦ Ἰακώβου, καὶ ἐπέθηκεν αὐτοῖς ὀνόματα Βοανηργές, ὅ ἐστιν υἱοὶ βροντῆς· 19 Fp. 2.5-11 5
preexistente se despojou de todos os seus atributos divinos para poder se identificar com os homens e comunicar-se com eles. Quem olhava para ele não via um deus glorioso e sim um homem humilhado. Tão humilhado que admitiu o vilipêndio da crucificação. Tão humilhado que assumiu a maldição ao ser pregado no madeiro.
O Cristo vitorioso e glorificado Depois de sua ressurreição o Cristo reassumiu a glória e os atributos divinos. A simples menção de seu nome é suficiente para motivar todos os que estão nos céus (anjos fiéis e decaídos), na terra (vivos), e debaixo da terra (mortos) a se ajoelharem e a confessar seu senhorio. Uma expansão dessa cristologia é encontrada na epístola aos colossenses, hoje considerada deuteropaulina: “… e que nos tirou do poder das trevas, e nos transportou para o reino do seu Filho amado; em quem temos a redenção, a saber, a remissão dos pecados; o qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades; tudo foi criado por ele e para ele. Ele é antes de todas as coisas, e nele subsistem todas as coisas; também ele é a cabeça do corpo, da igreja; é o princípio, o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a preeminência, porque aprouve a Deus que nele habitasse toda a plenitude, e que, havendo por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão nos céus.20” Esse texto contém declarações que exaltam a divindade do Cristo: 1. É a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação – Aqui se ressalta o fato de que o Cristo não foi criado e sim gerado por Deus antes mesmo de a criação ter sido feita. Ele é anterior e superior a tudo quanto foi criado, sejam homens, anjos ou poderes espirituais. 2. Nele foram criadas todas as coisas – O universo e tudo que ele contém se inspira no Cristo. O próprio homem reflete a sua imagem. 3. Tudo foi criado por ele – Sua participação não se limita a servir como modelo mas serve também como agente da criação. De maneira semelhante ao que foi imputado à sabedoria de Deus na leitura veterotestamentária21, ao Cristo foi imputada na visão dos escritores do Novo Testamento, a autoria de toda a obra criada. 4. Ele reconciliou consigo mesmo todas as coisas – destaca-se sua função redentora. Aqui passamos da cristologia cenótica para a cristologia cósmica a qual, segundo Leonardo Boff22 “não visa apenas entender as dimensões da realidade do Cristo que alcançaram até o Universo, mas quer também responder uma indagação que está sempre presente no espírito humano: qual é o fator, a energia, o elo que faz com que o Universo seja um cosmos e não um caos; que apresente uma surpreendente unidade no interior mesmo de sua incomensurável diversidade de seres, de estrelas e de galáxias?” Em conclusão, Paulo nos apresenta uma alta cristologia. Admite a preexistência do Cristo. Compatibiliza sua divindade com dua humanidade pelo fenômeno do esvaziamento. Exalta sua glorificação a partir da ressurreição. Finalmente, aguarda sua volta imediata para implantar o reino de Deus neste mundo.
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Cl. 1.13-20, Pv. 8.22-31. Boff, L., Evangelho do Cristo cósmico, Rio de Janeiro, Record. 2008, p.12,
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3. Marcos, o filho de Deus presente no meio dos homens O filho de Deus O evangelho cuja autoria é atribuída a Marcos foi escrita por volta do ano 68 da era cristã em meio a guerra judaico romana. Segundo a tradição, neste ano o apóstolo Paulo foi martirizado em Roma. Na sua composição existe uma grande quantidade de material muito antigo, produzida por contemporâneos de Jesus Cristo e transmitida por tradição oral. A ela agregaram-se interpretações da comunidade cristã das origens a respeito de seu fundador. Segundo o que é mais aceito pela crítica bíblica atual o evangelho de Marcos foi escrito em Roma para cristãos gentios e teve como propósito inocentar as autoridades romanas pela execução de Jesus Cristo na Cruz. Ele descreve várias ocasiões em que fariseus e herodianos se uniram para conspirar contra Jesus e apanhá-lo em algum erro que justificasse a aplicação da pena de morte. Qual seria a razão do ódio que motivou a conspiração? A resposta é simples: fariseus e herodianos se recusam a reconhecer e a aceitar que o Jesus de Nazaré era o “filho de Deus” e que, portanto, compartilhava da natureza divina do PAI. Neste evangelho Jesus é apresentado como “o filho de Deus”. O texto mais expressivo é aquele em que ele foi interrogado pelo sumo sacerdote que lhe perguntou se ele era o filho do Deus bendito. Sua resposta foi: eu o sou”23. Outras menções de sua filiação divina são encontradas em: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, o filho de Deus” 24. Observa-se que a expressão “filho de Deus” não aparece nos textos mais antigos deste versículo o que ocorre no “códex sinaiticus”. Provavelmente um copista, que interpretou a posição teológica do autor a adicionou como nota marginal e, posteriormente, foi incorporada ao texto. Essa expressão é colocada também na boca de espíritos imundos evidenciando que eles estavam enfrentando alguém cuja autoridade reconheciam e respeitavam25. De onde teria vindo essa identificação? A terminologia “filius divi” (filho do divino) era usada pelos romanos como fórmula de culto e reverência para honrar seu imperador. Ela foi usada, por exemplo, para César Augusto, primeiro imperador romano que foi feito filho adotivo de Júlio César, o qual foi divinizado por decreto do império romano. Outros imperadores a usaram posteriormente. O equivalente grego desta expressão “ὁ υἱὸς τοῦ θεοῦ”, é usado várias vezes no Novo Testamento e indica a exclusividade da qualificação. Jesus não é um filho de um deus, ele é o filho do Deus altíssimo26.
Sinais: curas, exorcismos e outros milagres. O evangelho de Marcos nos apresenta uma grande série de curas, exorcismos e de outros sinais maravilhosos operados por Jesus Cristo. Cumpre-nos avaliar a intenção do autor ao relatá-los e o significado do relato. Com relação às curas é necessário recuperar o entendimento que os contemporâneos de Jesus tinham a respeito das causas das doenças e dos motivos das curas. Aceitavam os judeus naquele tempo que as doenças eram castigos divinos para pecados cometidos por uma pessoa ou por um ancestral da mesma. O exemplo indiscutível dessa interpretação é visto na história de Miriam, a irmã do profeta Moisés. No livro de números27 se lê: “Assim se acendeu a ira do Senhor contra eles; e ele se retirou; também a 23 24 25 26 27
Mc. 14.60-63. Mc.1.1. Mc.3.11. At. 9.20 Nm. 12.9-10.
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nuvem se retirou de sobre a tenda; e eis que Míria se tornara leprosa, branca como a neve; e olhou Arão para Miriam e eis que estava leprosa.” Esse “castigo” foi ocasionado pela crítica que Miriam e seu irmão “Arão” fizeram a Moisés depois que ele contraiu núpcias com uma mulher estrangeira. A “ira do Senhor”, isto é, o braço negativo de sua justiça, se voltou contra Miriam e fez com que ela ficasse leprosa. Os judeus estendiam esse conceito ao extremo admitindo que o ser humano poderia pecar mesmo antes do nascimento, enquanto ainda estava no útero da mãe?28 Outra possibilidade considerada seria de alguém sofrer em decorrência de pecados cometidos por antepassados. A tradição sacerdotal, advogava esta tese baseada no mandamento contra a idolatria “Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás diante delas, nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam.”29 Essa interpretação começou a ser demolida na tradição profética que fez com que a responsabilidade dos males que ocorrem ao homem migrasse da esfera corporativa para a esfera individual: “Que quereis vós dizer, citando na terra de Israel este provérbio: Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos se embotaram? Vivo eu, diz e Senhor Deus, não se vos permite mais usar deste provérbio em Israel. Eis que todas as almas são minhas; como o é a alma do pai, assim também a alma do filho é minha: a alma que pecar, essa morrerá.” 30 Se, por um lado, a doença era vista como um castigo por um pecado, por outro, acura era entendida como recompensa pelo perdão dado ao pecador arrependido. Dessa forma, quem curava doenças tinha poder para perdoar pecados. Sendo esse poder um atributo exclusivamente divino aquele que o ostentava participava, de alguma forma da natureza divina. No exemplo de Miriam, citado acima, Moisés foi o intermediário para a obtenção da cura: “Clamou, pois, Moisés ao Senhor, dizendo: Ó Deus, rogo-te que a cures. Respondeu o Senhor a Moisés: Se seu pai lhe tivesse cuspido na cara não seria envergonhada por sete dias? Esteja fechada por sete dias fora do arraial, e depois se recolherá outra vez. Assim Miriam esteve fechada fora do arraial por sete dias; e o povo não partiu, enquanto Miriam não se recolheu de novo.” 31 O evangelho de Marcos mostra Jesus sendo questionado por fariseus por causa das curas que realizava. Caso os fariseus admitissem a autenticidade da cura também teriam que admitir em Jesus a autoridade para perdoar pecados e, portanto, sua divindade. Essa verdade fica bem evidente no episódio da cura do paralítico que foi trazido à presença de Jesus por quatro amigos 32. Nisso vieram alguns a trazer-lhe um paralítico, carregado por quatro; e não podendo aproximar-se dele, por causa da multidão, descobriram o telhado onde estava e, fazendo uma abertura, baixaram o leito em que jazia o paralítico. E Jesus, vendo-lhes a fé, disse ao paralítico: Filho, perdoados são os teus pecados. Ora, estavam ali sentados alguns dos escribas, que arrazoavam em seus corações, dizendo: Por que fala assim este homem? Ele blasfema. Quem pode perdoar pecados senão um só, que é Deus? Mas Jesus logo percebeu em seu espírito que eles assim arrazoavam dentro de si, e perguntou-lhes: Por que arrazoais desse modo em vossos corações? Qual é mais fácil? dizer ao paralítico: Perdoados são os teus pecados; ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito, e anda? Ora, para que saibais que o Filho do homem tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados (disse ao paralítico), a ti te digo, levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa. Então ele se levantou e, tomando logo o leito, saiu à vista de todos; de modo que todos pasmavam e glorificavam a Deus, dizendo: Nunca vimos coisa semelhante. 28 29 30 31 32
Jo. 9.1,2. Ex. 20.4,5. Ez.18.2-4. Nm 12.13-15. Mc 2.3-11.
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Os exorcismos de Jesus se inserem no mesmo contexto. Os judeus criam na possibilidade da interação de espíritos imundos (anjos decaídos) com os humanos. Quando isso ocorria, seguramente com a permissão divina, o homem ficava afetado por uma enfermidade que o deixava ritualmente impuro. A restauração da saúde e, consequentemente, do estado de pureza ritual, implicava, portanto, não apenas no perdão do pecado mas, também na expulsão do espírito imundo. A história do patriarca jó ilustra esta crença: “Saiu, pois, Satanás da presença do Senhor, e feriu Jó de úlceras malignas, desde a planta do pé até o alto da cabeça. E Jó, tomando um caco para com ele se raspar, sentou-se no meio da cinza.”33 A assimilação da cultura helenística pelo povo judeu que ocorreu a partir do século II a.C., fez com que os anjos decaídos ou espíritos imundos fossem sincretizados com os demônios (povos invisíveis) da mitologia grega. O fato de Jesus exorcizar espíritos imundos, ou demônios, também apontava para sua natureza e filiação divinas. Se era necessário que Deus desse permissão para que um espírito imundo perturbasse a vida de um homem era também necessária uma ordem divina para que ele deixasse o homem em paz. Essa crença é esclarecida no episódio em que os fariseus acusam Jesus praticar exorcismos por haver feito um pacto com Belzebú34. E os escribas que tinham descido de Jerusalém diziam: Ele está possesso de Belzebu; e: É pelo príncipe dos demônios que expulsa os demônios. Então Jesus os chamou e lhes disse por parábolas: Como pode Satanás expulsar Satanás? Pois, se um reino se dividir contra si mesmo, tal reino não pode subsistir; ou, se uma casa se dividir contra si mesma, tal casa não poderá subsistir; e se Satanás se tem levantado contra si mesmo, e está dividido, tampouco pode ele subsistir; antes tem fim. Pois ninguém pode entrar na casa do valente e roubar-lhe os bens, se primeiro não amarrar o valente; e então lhe saqueará a casa. Jesus mencionava um escrito muito popular entre judeus daquele tempo. O livro conhecido como “Enoque etíope” porque seu manuscrito mais antigo está escrito em língua etíope. Nessa obra existe uma descrição da rebelião dos anjos contra Deus que foi comandada pelo arcanjo Azazel 35. Como pena por sua rebelião, Azazel, mais tarde sincretizado por Satanás, foi submetido e amarrado pelo arcanjo Rafael que o encerrou em um profundo poço onde deveria aguardar o dia de seu juízo 36. Jesus alegava em defesa própria que ele só podia saquear os bens do valente, isto é, resgatar as vidas sequestradas por Satanás, porque já havia submetido e amarrado o próprio Satanás. Essa tarefa é inconcebível para um simples homem. Apenas um ser divino pode executá-la. Segundo o texto paralelo de Mateus37 o fato de Jesus fazer exorcismo comprova a chegada do reino de Deus a este mundo. Outros milagres são citados mostrando que Jesus Cristo tinha poder sobre os elementos da natureza. No capítulo 4, versículos 35 a 41, encontramos Jesus acalmando uma tempestade no mar da Galileia: Naquele dia, quando já era tarde, disse-lhes: Passemos para o outro lado. E eles, deixando a multidão, o levaram consigo, assim como estava, no barco; e havia com ele também outros barcos. E se levantou grande tempestade de vento, e as ondas batiam dentro do barco, de modo que já se enchia. Ele, porém, estava na popa dormindo sobre a almofada; e 33 34 35
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Jó 2.7,8. Mc.3.22-27. Na antiga tradição judaica Azazel era o nome dado a um espírito que habitava no deserto. Segundo a lei, no dia da expiação pelos pecados do povo o sacerdote deveria tomar dois bodes e, por sorteio, determinar um que seria oferecido ao Senhor como oferta pelo pecado. O segundo bode era levado ao deserto (azazel) vivo e oferecido a Azazel. Lv.16.1-10. O livro dos Anjos, primeira parte do livro de Enoque (I Enoque) in: Proença, E. & Proença, E.O., edd, Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia. Novo Século, São Paulo. Pp. 261 – 264. Mt, 12.28.
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despertaram-no, e lhe perguntaram: Mestre, não se te dá que pereçamos? E ele, levantandose, repreendeu o vento, e disse ao mar: Cala-te, aquieta-te. E cessou o vento, e fez-se grande bonança. Então lhes perguntou: Por que sois assim tímidos? Ainda não tendes fé? Encheramse de grande temor, e diziam uns aos outros: Quem, porventura, é este, que até o vento e o mar lhe obedecem? Nesse episódio Jesus é mostrado como alguém que tem poder para controlar as forças da natureza. Para seus leitores romanos, de cultura grega, a força dos ventos que produziam as tempestades no mar estavam sob controle do deus Éolo38. Dessa forma, controlar ventos e tempestades não era coisa de homem, era coisa de Deus, ou do filho de Deus. Em conclusão, Marcos nos apresenta uma baixaa cristologia. Nada declara sobre a preexistência do Cristo, também não menciona sua concepção virginal. Para ele Jesus é filho de Deus apenas a partir do batismo quando foi adotado. Poderiamos dizer que Marcos nos apresenta uma proposta adocianista. Assim como Cesar Augusto tornou-se “filho do divino” Júlio César quando foi por ele dotado, Jesus se tornoo “filho do Altíssimo” quando foi adotado por Ele no batismo. Seus atos provam que ele administrava o poder do Divino, entretanto, em proporção parecida com qualquer profeta da antiguidade.
38Éolo
era o senhor da ilha Eólia, e era querido dos deuses imortais. Odisseu chegou à sua ilha, e lá passou um mês, contando as suas aventuras. Éolo lhe entregou um saco de couro de um novilho de nove anos de idade, em que estavam presos todos os ventos, porque Zeus fizera de Éolo o senhor dos ventos. Éolo deixou apenas o vento do Oeste solto, para levar Odisseu de volta para sua casa mas, seus homens, achando que havia ouro e prata no saco, o abriram, libertando todos os ventos, o que os afastou de Ítaca, retornando para a ilha Eólia. Nas versões racionalizadas da mitologia grega, Éolo foi um sábio que conhecia sobre os ventos, sendo por isso chamado de senhor dos ventos. Verbete Éolo – Wikipedia. 10
4. Mateus, o segundo Moisés e descendente de Davi A leitura do evangelho segundo Mateus impressiona qualquer leitor pela riqueza de referências ao Antigo Testamento, tanto à lei quanto aos profetas. Nele, mas que em qualquer outro livro do Novo Testamento, se percebe a ideia subjacente de que em Jesus Cristo se deu o pleno cumprimento das promessas messiânicas, feitas aos antigos. Este evangelho é claramente dirigido a uma comunidade de cristãos de cultura e raízes judaicas. Salvo apenas pela epístola de Tiago, é o mais judaico de todos os livros do Novo Testamento. A autoria deste livro é tradicionalmente atribuída a Mateus, um dos doze apóstolos. Papias (138 DC) menciona Mateus como autor e informa que ele teria escrito originalmente em Aramaico. Seu livro teria sido posteriormente vertido para a língua Grega. As evidências internas apontam para um autor judeu convertido ao Cristianismo e que enfrentava dura oposição dos líderes da comunidade judaica. A referência ao escriba que se converte39 tem sido interpretada como uma nota autobiográfica. O evangelho de Mateus é posterior ao de Marcos uma vez que o seu autor utilizou aquele livro como roteiro para organizar a sua obra e como fonte de material para a reconstituição histórica do ministério de Jesus Cristo. Como o livro de Marcos foi escrito no período de 64 – 68 da era cristã, somos então levados a admitir data posterior para Mateus. No evangelho de Mateus encontramos a narrativa da conhecida “Parábola das bodas”. No texto desta parábola40 encontramos a declaração: “Mas o rei encolerizou-se; e enviando os seus exércitos,
destruiu aqueles homicidas, e incendiou a sua cidade.” Esta menção ao incêndio da cidade, inserida em uma parábola tipicamente antijudaica tem sido interpretada como referência à destruição de Jerusalém pelas tropas romanas comandadas por Tito, que ocorreu no ano 70, feita com objetivo de lembrar o leitor que Jesus havia predito tudo quanto veio a ocorrer.
Os leitores originais eram judeus cristãos que estavam enfrentando a primeira crise de identidade do cristianismo: como ser cristão sem deixar de ser judeu? Dessa forma, Jesus Cristo tinha de ser apresentado de maneira que pudesse ser identificado pelos judeus com figuras existentes em sua cultura. O autor escolheu dois modelos o “filho de Davi”41 e o “segundo profeta”42 semelhante a Moisés. O título “filho de Davi” é dado a Jesus Cristo nada menos de 10 vezes no curso desse livro. Fato significativo está em que este evangelho, diferente do de Marcos que lhe serviu como base, apresenta uma rebuscada genealogia de Jesus mostrando que ele era descendente (filho) de Abraão e descendente (filho) de Davi 43. Essa genealogia é apresentada observando os princípios de sucessão prescritos na lei judaica. Dessa forma, Jesus é apresentado como descendente de Abraão e de Davi por uma linhagem sucessória que passa por seu pai, José e não por Maria, sua mãe. A semelhança com Moisés pode ser inferida das narrativas incluídas no texto. Moisés, pouco depois de seu nascimento, foi miraculosamente salvo da morte ordenada por Faraó quando seus pais, divinamente orientados, o deixaram em um cesto flutuando sobre as águas do rio Nilo, no Egito. 44 Jesus, pouco depois do nascimento, foi salvo da morte ordenada por Herodes porque seus pais, também divinamente orientados, fugiram para o 39 40 41 42 43 44
Mt.13.52 Mt.22.7 Mt 21.9 Dt. 18.15-19. Mt.1.16. Ex.1.27-2.4
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Egito.45 Moisés, antes de receber a lei permaneceu no monte quarenta dias em jejum: “E Moisés esteve ali com o Senhor quarenta dias e quarenta noites; não comeu pão, nem bebeu água, e escreveu nas tábuas as palavras do pacto, os dez mandamentos.” 46 Jesus, da mesma forma, antes de começar seu ministério com a reformulação da lei, foi levado ao deserto, onde permaneceu 40 dias: “Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo Diabo. E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome.”47 Moisés transcreveu a lei do Senhor para seu povo. Jesus se apresentou como sendo alguém com autoridade para interpretar e atualizar a lei de Moisés. As expressões: “Ouvistes o que foi dito aos antigos … eu, porém, vos digo” aparecem repetidas vezes no sermão do monte mostrando que Jesus tinha autoridade concedida por Deus para reformular a Torah. O próprio evangelho é uma coleção de cinco discursos de Jesus, estruturados à semelhança dos discursos de Moisés, no Deuteronômio. Essa visão, se tomada isoladamente, nos induz à conclusão de que Mateus nos apresenta uma baixa cristologia, isto é que ele enfatiza a humanidade de Jesus, revelada nos seus ofícios real e profético, e despreza o lado divino de sua personalidade. Mateus usa para Jesus o título “filho de Deus” apenas esporadicamente. Nas duas citações iniciais ele é colocado na boca de Satanás 48: Chegando, então, o tentador, disse-lhe: Se tu és Filho de Deus manda que estas pedras se tornem em pães. Então o Diabo o levou à cidade santa, colocou-o sobre o pináculo do templo, 6 e disse-lhe: Se tu és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo; porque está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu respeito; e: eles te susterão nas mãos, para que nunca tropeces em alguma pedra. A seguir, ele é colocado na boca de possessos residentes em Gadara 49; E eis que gritaram, dizendo: Que temos nós contigo, Filho de Deus? Vieste aqui atormentar-nos antes do tempo? O reconhecimento por parte dos homens é mais tardio. Ele aparece quando Jesus encontra os discípulos em um barco caminhando sobre o Mar da Galileia 50. Então os que estavam no barco adoraram-no, dizendo: Verdadeiramente tu és Filho de Deus. De novo, ela aparece na voz de Pedro como resposta a uma pergunta do mestre 51: Respondeu-lhe Simão Pedro: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. Aparece também, no interrogatório do sumo sacerdote com resposta positiva 52: Jesus, porém, guardava silêncio. E o sumo sacerdote disse-lhe: Conjuro-te pelo Deus vivo que 45 46 47 48 49 50 51 52
Mt.2.3-15 Ex.34.28. Mt.4.1,2. Mt.4.3,5,6. Mt,8.29 Mt.14.33. Mt.16.16. Mt.23.63,64.
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nos digas se tu és o Cristo, o Filho do Deus. Respondeu-lhe Jesus: É como disseste; contudo vos digo que vereis em breve o Filho do homem assentado à direita do Poder, e vindo sobre as nuvens do céu. Aparece ainda nas imprecações lançadas contra o mestre crucificado53: e dizendo: Tu, que destróis o santuário e em três dias o reedificas, salva-te a ti mesmo; se és Filho de Deus, desce da cruz. De igual modo também os principais sacerdotes, com os escribas e anciãos, escarnecendo, diziam: A outros salvou; a si mesmo não pode salvar. Rei de Israel é ele; desça agora da cruz, e creremos nele; confiou em Deus, livre-o ele agora, se lhe quer bem; porque disse: Sou Filho de Deus. Finalmente, aparece no testemunho de um pagão54: ora, o centurião e os que com ele guardavam Jesus, vendo o terremoto e as coisas que aconteciam, tiveram grande temor, e disseram: Verdadeiramente este era filho de Deus. Essas citações têm um caráter mais apologético que confessional. A expressão “Filho de Davi” é aplicada a Jesus oito vezes e mais uma a sei pai, José. Embora Mateus relate a concepção virginal de Jesus, ele nada fala a respeito de sua preexistência. Mateus, em conclusão nos apresenta, da mesma forma que Marcos, uma baixa cristologia e restringe a manifestação da glória divina em Jesus ao batismo e à transfiguração. Os cristãos da comunidade mateana, que aceitavam a filiação divina de Jesus foram perseguidos pelos judeus não convertidos que os chamavam de politeístas porque a crença expressada pelos seguidores de Jesus de Nazaré conflitava com o shemá, a profissão de fé judaica que declarava a existência de um só Deus. A ênfase do autor, entretanto, está colocada no reformador da lei e não no operador de sinais maravilhosos. Em conclusão, Mateus herdou de Marcos a cristologia adocianista, segundo a qual, a filiação divina de Jesus se revela no batismo. Entretanto Mateus, seguindo uma tradição que se desenvolveu na segunda metade do século I, faz remontar a filiação divina de Jesus Cristo ao seu nascimento. Ele menciona a crença na concepção virginal de Jesus operada pelo Espírito Santo. Essa interpretação á baseada, por um lado, na crença de filiação divina dos imperadores romnos, por outro, na alusão encontrada no Gênesis de que os filhos de Deus cohabitaram com as filhas dos homens e geraram filhos55. Essa crença está melhor descrita no livro dos guardiões, incluído no Enoque etíope. Mateus, além disso, vincula a crença na concepção virginal de Jesus ao cumprimento de uma profecia do profeta Isaías: “14 Portanto o Senhor mesmo vos dará um sinal: eis que uma virgem conceberá, e dará à luz um filho, e será o seu nome Emanuel.” 56
53 54 55 56
Mt.27.40-43 Mt.27-54. Gn. 6.1-4 Is. 7.14, Mt.1.22,23.
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5. Lucas - Jesus, o profeta controlado pelo espírito Entramos agora em universo diferente. O terceiro evangelho é o único livro do novo testamento escrito por um autor não judeu para leitor(es) de cultura helenística. Ele é dedicado a um certo Teófilo, provavelmente um judeu helenista da diáspora que se converteu ao cristianismo e desejava, tanto quanto precisava, conhecer melhor personalidade do seu salvador. O evangelho de Lucas tem composição contemporânea ao de Mateus mas, dele se distingue por ter uma população-alvo de cultura helenística e não judaico palestina. A compreensão de Lucas a respeito da personalidade de Jesus não pode prescindir da análise das duas partes de sua obra: O evangelho e o livro de Atos dos Apóstolos. Na elaboração do evangelho Lucas seguiu o esquema deixado por Marcos. No livro de Atos ele foi totalmente original. O ponto de contato entre as duas obras que garante a harmonia e continuidade é apenas um: O grande regente de tudo é o Espírito de Deus. Esse espírito que habitou nos profetas do passado e os habilitou a realizar maravilhas também habitou no Jesus de Nazaré e nos seus apóstolos, depois de sua morte e ressurreição. Em Lucas Jesus é caracterizado como profeta, o que indica uma baixa cristologia. A sua apresentação inicial, colocada na boca do anjo Gabriel destaca duas qualidades 57: “Este será grande e será chamado filho do Altíssimo; o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi seu pai; e reinará eternamente sobre a casa de Jacó, e o seu reino não terá fim.” Para Lucas sobressaem a grandeza e a realiza de Jesus, o filho (descendente) de Davi que será, pelo poder do Altíssimo, que se declara seu pai, colocado em um trono do qual nunca será removido. Lucas, da mesma forma de Mateus, coloca a tese da concepção provocada pela ação do Espírito Santo mas ignora totalmente qualquer possibilidade de preexistência do Salvador. Mais tarde, descrevendo a ressurreição do jovem, filho de uma viúva residente na cidade de Naim, registra o comentário do povo sobre o ocorrido 58 “O medo se apoderou de todos, e glorificavam a Deus, dizendo: Um grande profeta se levantou entre nós; e: Deus visitou o seu povo.”
Jesus, totalmente controlado pelo espírito. Diferentemente dos evangelhos de Marcos, Mateus e João, bem como da pregação de Paulo, que são essencialmente cristocêntricos, o evangelho de Lucas é essencialmente paracletocêntrico 59. A expressão Espírito Santo aparece na primeira parte de sua obra nada menos de treze vezes. Enquanto Mateus vê em Jesus o cumprimento de profecias feitas aos antigos, Lucas identifica o cumprimento de determinações recentes do Espírito. Lucas começa informando que o nascimento sobrenatural de Jesus ocorreria porque o Espírito Santo assumiria a iniciativa de provocá-lo60. No ato da circuncisão, quando Jesus foi levado ao templo, o Espírito Santo se apossou de Simeão e lhe revelou que aquele menino era o ungido do Senhor, prometido aos antigos61. Nos Atos dos Apóstolos a expressão Espírito Santo aparece ainda quarenta vezes. Podemos então concluir que no drama lucano Jesus foi um ator. Os apóstolos que o sucederam também foram atores. O diretor de toda a ação foi o Espírito Santo que dava todas as ordens e orientações. Aos atores cumpria apenas seguir fielmente o “script”. Em conclusão, a cristologia de Lucas pode ser classificada como uma baixa cristologia uma vez que 57 58 59 60 61
Lc.1.32,33. Lc.7.16. Confere maior importância à atuação do Espírito Santo que à atuação de Jesus Cristo. Lc.1.31-35. Lc.2.25-32.
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ele não faz qualquer menção à preexistência de Jesus Cristo e atribui todas as maravilhas que ele operou a atuação do Espírito Santo por meio dele. Lucas, da mesma forma que Mateus, seguindo uma tradição que se desenvolveu na segunda metade do século I, faz remontar a filiação divina de Jesus Cristo ao seu nascimento. Ele menciona a crença na concepção virginal de Jesus operada pelo Espírito Santo62. Essa interpretação á baseada, por um lado, na crença de filiação divina dos imperadores romanos, por outro, na alusão encontrada no Gênesis de que os filhos de Deus cohabitaram com as filhas dos homens e geraram filhos63. Essa crença está melhor descrita no livro dos guardiões, incluído no Enoque etíope.
62 63
Lc.1.35. Gn. 6.1-4
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6. Gnosticismo – Jesus, parece homem, mas não é. Incluir uma cristologia gnóstica em um estudo de cristologia do novo testamento pode parecer inadequado. A final de contas, o gnosticismo foi combatido pelos pais da igreja dos três primeiros séculos tais como Tertuliano e Irineu e, finalmente foi banido como heresia no século IV. Entretanto, enquanto conviveram com os membros da igreja apostólica, os gnósticos interagiram com a fé cristã, tanto de maneira positiva quanto negativa e forneceram estímulo para que os cristãos apostólicos formulassem e fixassem suas próprias doutrinas.
O que é gnosticismo? O nome gnosticismo deriva da palavra grega “gnosis” que significa conhecimento revelado de caráter esotérico, em contraste com o conhecimento empírico e experimental (episteme) 64. Podemos conceituar o Gnosticismo como um sistema filosófico e religioso no qual a salvação é alcançada pelo conhecimento de nomes e fórmulas mágicas que o adepto usará após a morte, na viagem de retorno para suas origens. O Gnosticismo da atualidade é organizado na forma de sociedade secreta de cunho esotérico, análogo e relacionado à Ordem Rosa-cruz, à Teosofia e à Maçonaria. Ensinavam os adeptos deste sistema religioso que o homem, cujo espírito se origina do pleroma 65, deve após a morte, quando se libera da escravidão da matéria, empreender uma viagem de retorno às suas origens. Nessa viagem ele deverá enfrentar a oposição dos governantes das sete esferas celestes66, os arcontes, que tentarão impedir a sua reintegração no pleroma 67. Para ser vitorioso nesta viagem, o espírito precisa conhecer os nomes dos arcontes e as fórmulas mágicas que serão usadas para iludi-los e conseguir a passagem para a esfera superior. Essas fórmulas mágicas, segundo os mestres gnósticos, haviam sido reveladas aos primeiros líderes pelo “redentor que veio do céu”, atravessando as sete esferas, e que só poderiam ser reveladas aos iniciados de sua escola. Dessa forma, o Gnosticismo pode ser conceituado essencialmente como uma religião de mistério, ou esotérica, que distingue os iniciados dos não iniciados.
A cristologia gnóstica. A cristologia predominante no Gnosticismo nos tempos bíblicos foi o docetismo, palavra que significa aparência. Os gnósticos identificavam o Jesus Cristo com o “redentor que veio do céu” de natureza essencialmente divina. Admitiam, portanto, sua preexistência. Em decorrência dessa natureza divina, diziam eles, o Cristo jamais poderia ter sido envolvido em um corpo de matéria porque a matéria é essencialmente má e corrupta nada do divino pode ter contato com a matéria. Ensinavam eles que o corpo de Cristo era imaterial, razão porque gozava de propriedades muito particulares tais como atravessar paredes para penetrar em recintos fechados, caminhar sobre as águas do mar, andar sem deixar pegadas e se apresentar com aspectos diferentes para duas ou mais 64 Procurando salvar o homem não pelo reconhecimento e submissão a Deus, mas pelo conhecimento e pela " ciência do bem e do mal ", a gnose ao mesmo tempo é um ateísmo prático e uma forma de racionalismo. " Concretamente, escreve o prof. Drago Romano, o gnosticismo que contaminou nossa civilização é uma forma herética do Cristianismo. Os gnósticos tinham conhecimento do dado revelado mas dele serviam-se como matéria a ser informada pela racionalidade e até pela imaginação para [...] produzir cosmologias e antropologias fantasiosas " A GNOSE E A " MORTE DE DEUS " Hélio Drago Romano http://www.permanencia.org.br/revista/filosofia/drago3.htm 65 Pleroma é considerado como Plenitude, o Todo, o Tao. Acredita-se que sua definição esteja além da compreensão humana, pois os antigos gnósticos o descrevem como o nada. 66 As sete esferas correspondem aos sete corpos celestes conhecidos na ocasião: Lua, Sol, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno. Para os gnósticos cada um deles é governado por um príncipe ou arconte cuja função é dificultar a reintegração do espírito ao pleroma a qual ocorre após a morte. 67 Ef. 6.10-12 - Quanto ao mais, sede fortalecidos no Senhor e na força do seu poder. Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para poderdes ficar firmes contra as ciladas do diabo; porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes 16
pessoas ao mesmo tempo. Enquanto um discípulo via Cristo com a aparência de um menino, o outro, ao mesmo tempo, o via com a aparência de um velho. O corpo de Jesus Cristo era, para eles, algo semelhante a um holograma, uma aparência de corpo físico. Esta explicação é inaceitável para cristãos autênticos porque se acreditamos que Jesus Cristo não viveu em um corpo verdadeiramente de carne real, e sim numa aparência de corpo, teremos que aceitar que sua morte também não foi real, foi apenas de aparência. O quarto evangelho coloca a tese contrária. No prólogo lê-se “o verbo (Jesus) se fez carne 68” e o testemunho de Tomé, reconhecendo a divindade do Cristo foi dado depois de tocar o seu corpo, ver e sentir as marcas dos ferimentos deixados pela execução na cruz 69. Também a primeira epístola de João começa declarando a realidade da humanidade de Jesus Cristo e conclui declarando e que qualquer pessoa que negue esta realidade não senão o próprio anticristo.
Incompatibilidade da doutrina O fato de os gnósticos docéticos negarem a realidade da humanidade de Jesus tem implicações muito sérias para a nossa maneira de crer. O apóstolo Paulo, em sua primeira epístola aos crentes que habitavam na cidade de Corinto nos dá o que podemos chamar de um protótipo do credo apostólico: Ora, eu vos lembro, irmãos, o evangelho que já vos anunciei; o qual também recebestes, e no qual perseverais, pelo qual também sois salvos, se é que o conservais tal como vo-lo anunciei; se não é que crestes em vão. Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado; que foi ressuscitado ao terceiro dia, segundo as Escrituras; que apareceu a Cefas, e depois aos doze; depois apareceu a mais de quinhentos irmãos duma vez, dos quais vive ainda a maior parte, mas alguns já dormiram; depois apareceu a Tiago, então a todos os apóstolos; e por derradeiro de todos apareceu também a mim, como a um abortivo70. O primeiro ponto a ser considerado é a declaração paulina de que “Cristo morreu por nossos pecados”. A se acreditar que a humanidade de Cristo não foi real teremos que admitir que sua morte também não foi real. Foi uma encenação. Assim sendo, teremos de negar qualquer efeito dela na nossa redenção. Para os gnósticos isso não trazia nenhum problema porque ele ensinavam que “pecado não existe” e que o problema real do homem é a ignorância e não qualquer coisa que possa ser identificada como pecado. Chegavam eles a elaborar explicações fantasiosas para a crucificação como aquela que diz que Jesus Cristo foi substituído por Simão cireneu na hora de ser pendurado no madeiro. O segundo ponto está na declaração de que ele “ressuscitou ao terceiro dia”. Para os gnósticos ressurreição não existe porque o corpo de matéria é apenas um cárcere que detém o espírito do homem durante sua jornada terrena. Jamais poderiam eles imaginar que um encarcerado, que tivesse acabado de cumprir sua pena, voltasse voluntariamente à prisão depois de ter sido posto em liberdade. No evangelho de Judas Iscariotes71 descreve-se o seguinte diálogo: Judas disse a Jesus, “Olha, o que farão os que foram batizados em teu nome?” Jesus disse “Verdadeiramente eu digo [a você], … Judas, aqueles que oferecem sacrifícios a Saklas… tudo que é mau. Mas você excederá a todos eles. Pois você sacrificará o homem que me reveste”. Jesus está, na prática elogiando Judas Iscariotes por ter participado no planejamente e na execução de sua morte que o libertou da escravidão da matéria. Assim sendo, negam, contra a experiência de Tomé, que o Cristo que apareceu aos discípulos após a 68 69 70 71
João 1.14. João 8.26-28. I Coríntios 15.1-8. Obra gnóstica do século II
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morte tivesse um corpo material. Para eles era, da mesma forma que aconteceu antes da crucificação apenas uma aparência de corpo, uma ilusão para aqueles com quem se relacionava. Em conclusão, o gnosticismo nos apresenta uma alta cristologia. Um Jesus Cristo preexistente vem do mais elevado céu, assume a forma humana, mas não a essência da humanidade, convive com um grupo de escolhidos e lhes comunica o que necessitam saber para, após a morte, entrarem na plenitude da comunhão de Deus. Ele sempre foi deus mas nunca foi homem.
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7. João – O Cristo, o filho de Deus e o logos. O autor do quarto evangelho declara seu objetivo: Jesus, na verdade, operou na presença de seus discípulos ainda muitos outros sinais que não estão escritos neste livro; estes, porém, estão escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome72. Este evangelho foi escrito no final do século I ou, quem sabe no início do século II. O público-alvo do autor se constituía de judeus legalistas que, peremptoriamente, se recusavam a aceitar que o Jesus de Nazaré, que havia convivido com a geração que lhes antecedeu, era o ungido (cristo) e filho de Deus. A estratégia adotada pelo autor para convencê-los foi recontar o episódio da paixão, morte e ressurreição, precedido de uma coleção muito bem elaborada de testemunhos de, homens e de Deus, a respeito de sua autoridade. O autor do quarto evangelho não se preocupou em historiar a vida de Jesus Cristo. Nada fala de seu nascimento ou de sua infância. Para ele a vida pública de Jesus inicia quando ele se vincula ao grupo de convertidos de João Batista. A ênfase dada por ele aos sinais praticados durante o ministério terreno de Jesus vem da sua concepção teológica que entendia Jesus como o profeta semelhante a Moisés, um homem celestial pré-existente, a um tempo divino e humano. Assim como o ministério de Moisés foi confirmado por muitos sinais o de Jesus também o foi. O livro dos sinais não é uma obra biográfica e sim uma obra apologética que visa provar aos líderes dos judeus que, naquele tempo, tinham sua sede em Jâmnia, a divindade de Jesus. A narrativa desses sinais também objetiva provar que Jesus, por ser de natureza divina, tinha poder para subjugar os inimigos que o homem temia: O poder da Lei e de seus representantes, as forças da natureza, as doenças (cuja ocorrência era atribuída pelo povo ignorante à atuação de demônios), e, também, a própria morte. Muitas das passagens deste livro tem sido e continuarão sendo usadas como permanente fonte de inspiração para a confecção de sermões evangelísticos.
O testemunho de Deus Primeiro sinal: Transformação da água em vinho nas bodas em Caná da Galileia 73 - O primeiro sinal apresentado pelo autor já nos mostra alguns dos critérios usados na escolha de todos eles. Em primeiro lugar ele foi feito em público – uma festa de casamento – diante dos olhos de muitas testemunhas. Adicionalmente, ele foi objeto do exame de um especialista no assunto: O Mestre-sala, provavelmente o único, além de Jesus Cristo, que não estava bêbado durante o casamento, examinou o vinho recentemente chegado e atestou a qualidade superior do mesmo. Esse sinal nos remete à crença helênica de que Dionisos (Baco), o deus da vegetação e, portanto, também do vinho, era capaz de transformar água em vinho justamente porque era deus. Jesus, transformando água em vinho, comprovava sua natureza divina e, fazendo o melhor vinho, mostrava sua superioridade aos deuses greco-romanos. Segundo sinal: Uma cura à distância74 - Nesta ocasião Jesus se encontrava em Caná, a mesma cidade onde havia transformado a água em vinho. Foi procurado por um homem cujo filho estava doente, à beira da morte, na cidade de Cafarnaum, há quilômetros de distância. Este lhe pede que restaurasse a saúde do filho. Jesus prometeu àquele homem que seu filho não morreria e o despediu. Chegando em casa aquele homem encontrou o filho curado e, perguntando a que horas a melhora havia acontecido, recebeu a informação de que foi exatamente na hora em que Jesus lhe disse que seu filho não morreria. Esse milagre parece apontar para a onipresença (virtude divina) de Jesus, que podia operar em dois lugares diferentes ao mesmo tempo. 72 73 74
João 20.30-31. Jo.2.1-11 Jo,4.43-54
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Terceiro sinal: Cura de um paralítico no sábado 75 - A cura do paralítico no alpendre do tanque de Bethesda coloca em evidência a onipotência de Jesus Cristo quando mostra que para ele o impossível não existe. A crença popular dizia que periodicamente um anjo descia naquele local e que o vento provocado pelo movimento de suas asas agitava as águas. O primeiro que tocava as águas nesse momento seria curado. A cura do paralítico era impossível porque ele não tinha nenhuma chance de ser o primeiro a tocar as águas agitadas. Jesus o curou sem necessitar das águas. Outro aspecto importante é que o ex-paralítico saiu correndo e pulando imediatamente depois da cura mesmo carregando o peso de uma paralisia de 38 anos de duração. A experiência de qualquer pessoa que tenha sido submetida a uma imobilização temporária depois de uma cirurgia ortopédica mostra que é necessário um longo tempo de fisioterapia para a remoção dos bloqueios articulares e para a recuperação da musculatura atrofiada. Aquele homem imediatamente se levantou e saiu andando. Só Jesus, por ser Deus, pode fazer semelhante coisa! Quarto sinal – A multiplicação dos pães76 - Neste episódio Jesus, dispondo apenas de cinco pães e dois peixes, alimenta uma multidão de milhares de pessoas. Esse sinal aponta para a onipotência do Mestre que não era limitado por falta de poder. Alguns críticos querem ver aqui uma interpretação alternativa segundo a qual o milagre consistiria apenas em estimular a solidariedade do povo e levar cada um a expor o alimento que trazia escondido. Ainda que assim fosse seria um milagre, mas, não parece que essa interpretação esteja coerente com objetivo teológico do autor do evangelho. Quinto sinal – Jesus caminha sobre as águas 77- Mas uma vez, a mitologia helênica nos ajuda a entender o significado de uma perícope bíblica. Os gregos acreditavam que Poseidon (Netuno para os romanos) podia caminhar sobre as águas porque era deus dos mares. Mostrando que Jesus era capaz de caminhar sobre as águas, o autor, mais uma vez coloca um argumento a favor da divindade de Cristo. A referência ao vento impetuoso lembra a figura de outro deus da mitologia grega: Éolo que controlava a fúria dos ventos. Sexto sinal – Jesus cura um cego de nascença78 - A narrativa deste sinal está muito bem documentada, inclusive com a referência a um processo instaurado pelos fariseus no qual o cego e os pais dele foram ouvidos. O peculiar deste sinal, que aponta mais uma vez para a superioridade de Jesus, é colocado pelo próprio autor no texto: “Nunca se ouviu dizer que alguém houvesse aberto os olhos a um cego de nascença”. Para os judeus a cura de um cego de nascença era um dos três milagres de competência exclusiva do Messias 79. Dessa forma foi feito imediatamente um inquérito para comprovar sua veracidade. O fato de o cego ter sido curado é um argumento fortíssimo a favor da messianidade de Jesus Cristo e esta é a razão porque esse sinal foi incluído na coleção de relatos. Sétimo sinal – A ressurreição de Lázaro de Betânia 80- Ressurreição era uma doutrina judaica. Os gregos, alternativamente acreditavam na imortalidade da alma e na possibilidade de um retorno à vida em outro corpo de carne (reencarnação). Esse sinal, portanto, é colocado visando abalar as concepções judaicas. O diferente neste sinal é que os judeus, bem como outros povos da antiguidade, admitiam que a ressurreição só era possível enquanto se preservava a integridade do corpo do defunto, o que, em países frios, têm um limite aproximado de três dias. Jesus, ressuscitando um homem, morto por um tempo superior a este, não estava apenas devolvendo a vida, estava também devolvendo a integridade a um corpo em princípio de degradação. Ele estava criando matéria nova, coisa que nenhum homem, apenas Deus, podia fazer. 75 76 77
78 79 80
Jo.5.1-16 Jo.6.1-15 Jo.6.16-24
Jo.9. 1-41 Fruchtembaum, A.G,. Or três milagres messiânicos; http://www.arunrjesh.com/BibleStudy/mbs035m.pdf. Jo.11.1-44
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Os testemunhos dos homens O autor apresenta alguns testemunhos de pessoas que eram consideradas dignas de confiança pela comunidade ou que representavam um número significativo de testemunhas oculares. Dentre eles destacamos Nicodemos, João Batista e toda uma aldeia de Samaritanos. O testeumunho de Nicodemos81 se descreve dessa forma: “Ora, havia entre os fariseus um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus. Este foi ter com Jesus, de noite, e disselhe: Rabi, sabemos que és Mestre, vindo de Deus; pois ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.” Nicodemos é descrito como fariseu, homem muito religioso, conhecedor da lei, e principal (príncipe, líder) dos judeus. Era alguém com autoridade para analisar os fatos e emitir opinião sobre os mesmos. Ele descreve sua conclusão de maneira simples: Tu, Jesus és Mestre de origem divina porquê de outra forma não poderias fazer os sinais que tu fazes. João o batista, que era tido por todos os judeus como profeta, portanto uma pessoa de cuja boca saiam palavras de Deus, se referiu a Jesus dizendo: “Este é aquele de quem eu disse: o que vem depois de mim passou adiante de mim porque antes que eu existisse ele já existia”.82 Ao proclamar a preexistência de Jesus, João proclamava também sua divindade. João era reconhecido por todos como profeta e, portanto, sua palavra não podia ser posta em dúvida. Um grupo de samaritanos que ouviram a palavra da mulher e foram por ela levados a Jesus declararam: “e diziam à mulher: Já não é pela tua palavra que nós cremos; pois agora nós mesmos temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o salvador do mundo”.83
O logos O prólogo do quarto evangelho usa para Jesus uma designação particular: O verbo (logos). Essa palavra aparece apenas quatro vezes no novo testamento e sempre na literatura joanina: João 1.1, João 1.14, I João 1.1 e Apocalipse 19.13.
O Logos (em grego λόγος), significava inicialmente a palavra escrita ou falada — o Verbo. Passa a ser um conceito filosófico traduzido como razão, tanto como a capacidade de racionalização individual ou como um princípio cósmico da Verdade e da Beleza. Podemos afirmar que o logos era o princípio que garantia o funcionamento harmônico e produtivo de todas as forças do universo. Lógico é tudo aquilo que está sob o controle do logos. Na cultura hebraica esse papel cabia à sabedoria de Deus. No livro de Provérbios encontramos o cântico da sabedoria, texto que inspirou o autor do prólogo do quarto evangelho84:
81
O Senhor me criou como a primeira das suas obras, o princípio dos seus feitos mais antigos. Desde a eternidade fui constituída, desde o princípio, antes de existir a terra. Antes de haver abismos, fui gerada, e antes ainda de haver fontes cheias d` água. Antes que os montes fossem firmados, antes dos outeiros eu nasci, quando ele ainda não tinha feito a terra com seus campos, nem sequer o princípio do pó do mundo. Quando ele preparava os céus, aí estava eu; quando traçava um círculo sobre a face do abismo, quando estabelecia o firmamento em cima, quando se firmavam as fontes do abismo, quando ele fixava ao mar o seu termo, para que as águas não traspassassem o seu mando, quando traçava os fundamentos da terra, então eu estava ao seu lado como arquiteto; e era cada dia as suas delícias, alegrando-me perante ele em todo o tempo; folgando no seu mundo habitável, e Jo 3.1,2.
82
Jo 1.15 Jo 4.42 84 Jó 8,22-31 83
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achando as minhas delícias com os filhos dos homens.
Este cântico declara a preexistência e o poder criador da sabedoria de Deus. Declara ainda que a sabedoria foi gerada por Deus e dele nasceu. Declara ainda que a sabedoria participou ativamente de toda a obra da criação. Todos esses atributos são conferidos ao logos, no prólogo do quarto evangelho. O particular nesse caso é a afirmação sobre a encarnação do logos glorioso: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai.” A cristologia joanina é a mais elevada do novo testamento. Jesus, o logos preexistente e encarnado. É também glorioso não apenas nos momentos do batismo, da transfiguração ou da ressurreição. Ele é glorioso todos os dias de sua vida: “Assim deu Jesus início aos seus sinais em Caná da Galileia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele”85.
85
João 2.11.
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8. Hebreus – o sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque A epístola aos hebreus é dedicada a judeus que haviam aceito Jesus como o ungido de Deus e estavam sendo estimulados a apostatar da fé e retornar ao judaísmo legalista para ficar livres da perseguição movida pelo império: “não abandonando a nossa congregação, como é costume de alguns, antes admoestando-nos uns aos outros; e tanto mais, quanto vedes que se vai aproximando aquele dia.”86 Até hoje não foi identificado seu autor. Entretanto, algumas características dele podem ser inferidas do texto. Aceita-se que se tratava de um judeu culto, provavelmente natural de Alexandria, no Egito, que cria em Jesus Cristo como o ungido de Israel e que se chocou ao ver muito de seus irmãos israelitas desistirem da fé quando atingidos pela feroz perseguição ocorrida, provavelmente, no tempo do imperador Nero. Sua tese é grandiosa e maravilhosa. Ele tenta convencer seus leitores da superioridade inquestionável e absoluta de Jesus Cristo. Trabalha uma argumentação baseada na lógica aristotélica que pretende desestimulá-los de voltar do meio do caminho. Sua conclusão: Para o cristão fiel o único caminho possível é a perseverança. Na sua exposição da pessoa do salvador ele parece ignorar completamente os aspectos pura e simplesmente humanos de sua personalidade. A ele interessam apenas os aspectos sobrenaturais e divinos. Começa por afirmar a superioridade de Jesus a todos os profetas, inclusive Moisés: Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias a nós nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por quem fez também o mundo87; O primeiro contraste é feito entre a palavra trazida por meio do ministério dos profetas (προφήταις) e a palavra trazida por meio do ministério do filho (υἱῷ) que foi constiuido herdeiro de todas as coisas e que participou da criação de tudo (o mundo - αἰῶνας). Se o filho participou na criação do mundo, ou do universo, ele é anterior à criação e, portanto preexistente. O autor começa se mostrando defensor de uma alta cristologia. Sendo ele o resplendor da sua glória e a expressa imagem do seu Ser, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, havendo ele mesmo feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade nas alturas88. A seguir, aborda um outro tema muito apropriado à ocasião. Jesus é superior aos anjos. Naquela época quando, por falta de escrituras cristãs autorizadas pela igreja, muitas versões equivocadas de liturgia se espalhavam nas igrejas. No final do primeiro século espalhou-se dentre os cristãos uma linha de pensamento que preconizava a adoração aos anjos. Tal foi o caso na chamada “heresia colossense”. O autor dessa epístola chama a atenção de seus leitores para o fato de que o filho (υἱῷ) é superior aos anjos ( ἀγγέλων). Existe aqui uma construção de raciocínio lógico magistral: Se a palavra falada por meio dos profetas se cumpriu. E se a palavra falada por meio dos anjos, também se cumpriu. Não há justificativa para que não demos crédito à palavra trazida pelo filho que é superior aos profetas a aos anjos. Um outro ponto colocado em discussão pelo autor é a sucessão de sacerdócios. Ele destaca o caráter transitório e finito do sacerdócio levítico e enfatiza o aspecto perene e eterno do sacerdócio de Jesus 89. De sorte que, se a perfeição fosse pelo sacerdócio levítico (pois sob este o povo recebeu a lei), que necessidade havia ainda de que outro sacerdote se levantasse, segundo a ordem de Melquisedeque, e que não fosse contado segundo a ordem de Arão? Pois, mudando-se o sacerdócio, necessariamente se faz também mudança da lei. Porque aquele, de quem estas 86 87 88 89
Hebreus 10.25 Hebreus 1.1,2. Hebreus 1.3. Hebreus 7.11-17.
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coisas se dizem, pertence a outra tribo, da qual ninguém ainda serviu ao altar, visto ser manifesto que nosso Senhor procedeu de Judá, tribo da qual Moisés nada falou acerca de sacerdotes. E ainda muito mais manifesto é isto, se à semelhança de Melquisedeque se levanta outro sacerdote, que não foi feito conforme a lei de um mandamento carnal, mas segundo o poder duma vida indissolúvel. Porque dele assim se testifica: Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque. O modelo cristológico adotado pelo autor aponta para o unigênito de Deus, preexistente à própria criação, que desce ao mundo e assume um sacerdócio superior ao sacerdócio levítico cujo ocupante ofereceu sacrifício único por toda humanidade e assumiu o lugar de honra á direita de Deus no céu. Observa-se reflexos de uma cultura oriental na qual um Deus transcendente, inaccessível, cercado de seres celestiais denominados como principados, potestades, hostes etc., abre um canal de comunicação com os seres humanos por meio de profetas que Ele chama, nomeia e habilita conferindo-lhes parte reduzida de Seus próprios poderes. Em um segundo tempo, o próprio Deus assume a forma humana pela encarnação e se torna o Deus imanente que conversa com os homens face a face sem perder nenhum de seus atributos divinos. Ele, o Deus filho é superior a tudo e a todos. Salvo apenas pela encarnação do logos joanino essa é a mais elevada cristologia de todo o novo Testamento.
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9. Apocalipse – o cristo vitorioso sobre tudo e sobre todos O apocalipse de João é uma espécie de “corpo estranho” no cânone do novo testamento. Ele usa uma linguagem totalmente simbólica para falar dos males que afligiam a igreja no tempo em que foi escrito. Não chega a surpreender que isso tenha acontecido. É muito frequente que autores que escrevem em tempos de opressão e de perseguição governamental tenham que usar símbolos, figuras e até pseudônimos para não atrair para si a ira dos governantes. Esse livro foi escrito em uma situação desse tipo. Acredita-se que sua primeira versão tenha sido produzida na época da perseguição movida pelo imperador Nero e que sua edição tenha sido fechada na época do imperador Domiciano. Podemos datá-lo, então da quinta a décima década do primeiro século. Nesses períodos os cristãos foram muitas vezes oprimidos pelos governantes que faziam questão de ser não apenas saudados mas também adorados como “senhor e deus”. Esse foi, por exemplo, o caso do imperador Domiciano, como nos narra seu historiador Suetônio 90. Com análoga arrogância, ditou [Domiciano] em nome dos procuradores, uma carta circular que começava com o seguinte período: “Nosso senhor e deus ordena que assim se faça”. A partir disso, então, o uso estabelecido, de forma que ninguém, escrevendo ou falando, lhe chamasse de outra maneira O livro é dirigido principalmente aos cristãos da província da Ásia que estavam sendo pressionados pelas autoridades locais à prestação de culto ao imperador. Apresenta-lhes um desafio: “aquele que perseverar até o fim será salvo” e um estímulo “o Cristo que perseverou e venceu”. A imagem que melhor descreve Jesus Cristo neste livro é a do cavaleiro assentado sobre um cavalo branco: E vi o céu aberto, e eis um cavalo branco; e o que estava montado nele chama-se Fiel e Verdadeiro; e julga a peleja com justiça. Os seus olhos eram como chama de fogo; sobre a sua cabeça havia muitos diademas; e tinha um nome escrito, que ninguém sabia sabia senão ele mesmo. Estava vestido de um manto salpicado de sangue; e o nome pelo qual se chama é o Verbo de Deus. Seguiam-no os exércitos que estão no céu, em cavalos brancos, e vestidos de linho fino, branco e puro. Da sua boca saía uma espada afiada, para ferir com ela as nações; ele as regerá com vara de ferro; e ele mesmo é o que pisa o lagar do vinho do furor da ira do Deus Todo-Poderoso. No manto, sobre a sua coxa tem escrito o nome: Rei dos reis e Senhor dos senhores91. A visão se explica por si mesma. A cor branca simboliza vitória. Assim como o imperador Domiciano, alguns anos antes (70 d,C,) havia entrado em Jerusalém cavalgando um cavalo branco para comemorar a vitória das tropas comandadas por seu irmão mais vielho, Tito, sobre a resistância Judaica, agora, o grande vencedor descerá do céu cavalgando um cavalo branco para extinguir o poder do império sustentado pela energia de Satanás. O manto salpicado de sangue aponta para a profecia de Isaías 92: Quem é este, que vem de Edom, de Bozra, com vestiduras tintas de escarlate? este que é glorioso no seu traje, que marcha na plenitude da sua força? Sou eu, que falo em justiça, poderoso para salvar. Por que está vermelha a tua vestidura, e as tuas vestes como as daquele que pisa no lagar? Eu sozinho pisei no lagar, e dos povos ninguém houve comigo; eu os pisei na minha ira, e os esmaguei no meu furor, e o seu sangue salpicou as minhas vestes, e manchei toda a minha vestidura. Porque o dia da vingança estava no meu coração, e o ano dos meus remidos é chegado. Olhei, mas não havia quem me ajudasse; e admirei-me de não 90 91 92
v. nota de rodapé 12. Ap. 19,11-16, Isaías 63.1-6.
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haver quem me sustivesse; pelo que o meu próprio braço me trouxe a vitória; e o meu furor é que me susteve. Pisei os povos na minha ira, e os embriaguei no meu furor; e derramei sobre a terra o seu sangue. Sua identidide é colocada de maneira inequívoca em três títulos: “Verbo de Deus” e “Rei dos Reis” e “Senhor dos senhores”. A grande promessa do Apocalipse de João é o regresso do Jesus vitorioso e glorificado acima de tudo e de todos.
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