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Sangue, suor e rock n’ roll Maio/Junho 2014 R$ 16,50

MÖTLEY CRÜE O FIM

ALICE COOPER OLHA PARA O PASSADO: “Não peço desculpas por nada” JIM MORRISON - SEXY, PERIGOSO E IMORTAL: Por que o mito continua vivo?



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CARTA DO EDITOR Aposentadoria com o dever cumprido

“The Final Tour” é o último ato na carreira de um gigante da música pesada, motivo mais do que suficiente para termos o MÖTLEY CRÜE como matéria de capa. Desde que a Bud Rock surgiu no mercado editorial, só dois álbuns foram lançados pela banda: New Tattoo (2000) e Saints Of Los Angeles (2008) que representou uma volta aos bons tempos com um grande sucesso.

rock n’ roll”, e tiveram a sorte de sobreviver. Hoje são senhores experientes e com marcas profundas deixadas pela vida intensa que levaram por muitos anos, mas têm consciência de que fizeram um excelente trabalho e que influenciaram uma infinidade de grandes músicos do Heavy Metal no mundo todo. Resta ainda uma turnê que deve durar cerca de dois anos e fará a alegria de muitos fãs, especialmente daqueles que conseguirem assistir a alguma dessas últimas apresentações ao vivo, as quais serão abertas por Alice Cooper, o qual também tivemos o prazer de entrevistar nesta edição.

Vince (53), Nikki (55), Mick (62) e Tommy (51) personificaram a mais perfeita imagem do que há de mais extravagante no mundo da música. Abusaram da fantasia que o showbizz pode proporcionar tentando fazer valer a ilusão e a loucura da expressão “sexo, drogas e

Iann Tomé

Sangue, suor e rock n’ roll

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Edição #182

Maio/Junho 2014

Ano 16


sumário Entrevista Alice Cooper olha para o passado: “Eu não peço desculpas por nada” Novidade ........................ 13 Courtney Love: música inédita

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Ao vivo ........................... 18 Com performance energética e discurso de superação, Demi Lovato emociona público em São Paulo

Eletrônica ........................ 24 DJs que dominam o mundo

Beatles ........................... 56

Entrevista ....................... 69 Estúdio pede ajuda para recuperar mesa de mixagem que gravou Ten do Pearl Jam

45 CAPA Mötley Crüe - O Fim Top ................................. 49 Os 100 maiores guitarristas de todos os tempos

Autógrafos dos Beatles em painel do programa The Ed Sullivan Show podem render US$ 800 mil em leilão

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Especial Jim Morrison - sexy, perigoso e imortal: por que o mito continua vivo? 5



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OLHA PARA O PASSADO:

“Eu não peço desculpas por nada”

O astro do rock é tema do documentário Super Duper Alice Cooper, que acabou de estrear no festival Festival de Cinema de Tribeca. Além disso, participa como banda de abertura na turnê de despedida da banda de capa desta edição da BUD ROCK, Mötley Crüe.

Por Kory Grow

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“Nós não trouxemos a galinha”, diz Alice Cooper à BUD ROCK, fazendo um gesto enfático com a mão em um hotel em Nova York. Em setembro deste ano, serão completados 45 anos desde que Alice Cooper se tornou Alice Cooper depois de encarar o público no show Toronto Rock’n’Roll Revival, enquanto abria para John Lennon. Reza a lenda que alguém jogou a ave no palco, e, pensando que ela iria voar (“Eu sou de Detroit e nunca havia pisado em uma fazenda na vida”, ele diz até hoje), jogou-a de volta para a plateia – apenas para ver o público desmembrá-la. “Quando eu percebi que as cinco primeiras fileiras eram de pessoas em cadeiras de rodas, tudo ficou ainda mais macabro”, relembra Cooper. O frontman credita a esse dia à inspiração para a persona que ele usa no palco até hoje. “Eu percebi que a plateia está louca por um vilão”, diz Cooper, que ainda se veste inteiramente de preto, incluindo as calças de

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couro. “Eles realmente querem um vilão – e quem melhor para interpretá-lo do que eu?” Cooper tem feito algumas reflexões profundas nestes últimos meses, depois de ter participado de um documentário sobre a vida dele, Super Duper Alice Cooper (o filme acabou de estrear no Festival de Cinema de Tribeca). Com um elenco que inclui Elton John, Bernie Taupin, Johnny Rotten, Iggy Pop, a mãe de Cooper e, é claro, o próprio Cooper, Super explica como Vincent Furnier, de Detroit, se tornou o vilão que atrai fãs para o pesadelo que ele cria em cima do palco e em álbuns como Love it to Death e Billion Dollar Babies desde os anos 1960.

Eu percebi que a plateia está louca por um vilão

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O documentário, que foi feito pelas mesmas pessoas que produziram Beyond the Lighted Stage, sobre o Rush, combina animação e gravações antigas, examina como Cooper se tornou um nome familiar e como o personagem quase levou a melhor sobre ele. Fala sobre quando o cantor conheceu Salvador Dalí, as turnês cheias de álcool e até sobre o motivo de Cooper ter encontrado consolo no Cristianismo. É uma história de sobrevivência, resistência e força.

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BR: Como foi assistir a sua vida passar diante dos próprios olhos? AC: É engraçado, porque eu não não vivo no passado. Eu entendo que as pessoas queiram saber como foi que tudo deu certo, como eu comecei, e é uma história interessante. Mas foi divertido voltar. Eu não peço desculpas por nada – tudo aconteceu na “Era de Ouro”, quando você podia fazer referências a Jimi Hendrix e Jim Morrison e perceber: “Eu ficava bêbado com esses caras”.

BR: À medida que você reconta essas histórias de pessoas como Hendrix e Morrison, o que vem a sua mente? AC: O que eu aprendi com eles – tirando John Lennon, é claro, que era um lance muito diferente – é que eles viviam tudo ao extremo. Jim Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Keith Moon: todos eles tinham a mentalidade de “Preciso fazer agora, porque eu não quero estar fazendo isso aos 30”. E minha mentalidade era: “Eu preciso descobrir como separar a minha personalidade deste personagem, ou isso vai me matar” [risos]. Para mim, era tentar descobrir como eliminar esse meio termo para poder ter uma vida minha, e Alice Cooper ter uma vida dele.

BR: Você fala sobre religião no documentário. Isso já limitou Alice, o personagem? AC: Até hoje, existe um momento em que penso: “Será que Alice faria isso?” Eu gosto do fato de existirem coisas que Alice não faria. Alice nunca xinga; isso não é legal. Existe uma elegância nele. Há músicas que eu não cantaria como Alice que eu escrevi há muito tempo, coisas que eu não quero que Alice promova.

BR: Falando dos enforcamentos e guilhotinas que você usa no palco. Você já conseguiu antever algo perigoso demais antes de ir em frente?

AC: Não perigoso demais, mas houve momentos “Spinal Tap”. Já surgiram coisas do tipo: “Vamos colocar Alice em um canhão”. E compramos um canhão, e deu certo. Eu entrava no canhão, saía pela parte de trás, eles colocavam um boneco e atiravam; enquanto isso, eu já estava do outro lado e saía andando. É uma ilusão, mas ficava ótimo. Mas nada foi muito perigoso. A guilhotina é uma lâmina de quase 20 quilos; ela por pouco não me pega todas as noites, pelos últimos 40 anos. A mesma coisa com o enforcamento – você tem que esperar que o cabo do piano tenha sido testado naquela noite. Quando você tem uma cobra python de quase quatro metros no palco, 99% do tempo ela vai estar bem – mas e se chega uma noite que ela decide fazer outra coisa? Eu sempre gostei da ideia de existir a possibilidade de alguma coisa acontecer.

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BR: O documentário inclui o show de Toronto no qual os fãs jogaram a galinha no palco, você jogou de volta e a plateia a desmembrou. Na apresentação, você estava abrindo para John Lennon. Ele te disse alguma vez o que ele achou daquilo? AC: Ah, ele amou aquilo. John Lennon era um vampiro de Hollywood. Ele era um dos que bebia. Mas era John Lennon e Yoko quando eles estavam fazendo a arte deles. Então, eles viram aquilo como arte; Yoko e John ficaram, tipo: “Isso é ótimo”. John achou engraçado. E eu não matei a galinha. [Risos] Mesmo que eles quisessem, eu não teria matado a galinha. Mas eu percebi naquele momento o quão loucas por sangue estavam aquelas pessoas no festival paz-e-amor – e era isso o que ele era. Eles não viam problema nenhum em matar a galinha.

BR: Falando de estrelas do rock: tem uma cena interessante no filme, que é quando você conhece o seu empresário, Shep Gordon, no Landmark Hotel, e tromba com Janis Joplin, Jimi Hendrix e Jim Morrison em

john lennon era um vampiro de hollywood

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um quarto repleto de fumaça de maconha. Aquela cena deixou uma impressão sobre você. AC: Você precisa se lembrar que nós éramos uma banda jovem de Arizona, e que nós conseguíamos fazer um baseado durar uma semana, porque era tudo o que tínhamos. E você entra em um quarto tão cheio de fumaça que não consegue ver a pessoa na sua frente, e quando a fumaça se dissipa [suspira]: “Olha, é o Jimi Hendrix ali.” E Shep, nosso empresário, abre uma gaveta, e tem uma gaveta [de maconha], e ele pega um punhado. “Esse é o nosso empresário. Isso vai ser demais.” Em 68, 69, essa era a coisa mais legal do mundo. Então, é, ver aqueles caras nos fez pirar. O engraçado é que a nossa banda era formada por bebedores de cerveja. Era muito estranho que as bandas com uma má reputação eram formadas por bebedores de cerveja, enquanto Mamas and the Papas, Jackson Browne e o resto estavam usando heroína. Era o oposto do que você imaginaria ser. Os caras do The Monkees sempre usavam ácido. Nós bebíamos Budweiser [risos].


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MĂśtley CrĂźe o fim

por steven rosen

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Depois de 33 anos de atividades, nove discos de estúdio, incontáveis turnês e uma imensa lista de escândalos distribuídos ao longo desse tempo, o Mötley Crüe está saindo de cena. Determinados a encerrar sua trajetória por cima (em 2013, a banda foi uma das que mais excursionou), Tommy Lee, Mick Mars, Nikki Sixx e Vince Neil neuniram a imprensa em Hollywood, na Califórnia, para anunciar sua decisão e a turnê intitulada “The Final Tour”, que está prevista para durar dois anos. Para tornar tudo mais oficial (e mais dramático), cada músico assinou um documento que eles chamaram de Acordo de Encerramento de Turnês, no qual fica explícito que o Mötley Crüe jamais voltará a se apresentar sob esse nome a menos que haja a anuência explícita dos quatro integrantes. Na entrevista, além de planos futuros, também falam da tour, anunciando que Alice Cooper irá abrir os shows.

BR: Por que vocês resolveram chamar essa turnê de “The Final Tour”, e não “Farewell Tour” (N.T.: turnê de despedida)? VN: Nós começamos a falar a respeito há alguns anos e desde o início concordamos que não iríamos

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P A fazer como essas bandas que continuam com apenas um integrante ou com irmão de algum músico original ou algo do tipo. Queríamos continuar e parar com os quatro membros originais. E deixar o legado dessa banda chamada Mötley Crüe. NS: Nós temos muito orgulho dessa banda. Nós a fundamos, no começo ninguém acreditava em nós, nenhuma gravadora queria nos contratar. Nenhum de nós completou sequer o segundo grau, mas descobrimos como distribuir nossos próprios discos. Nosso primeiro disco vendeu 40 mil cópias, Too Fast For Love (1981), e foi ele que catapultou nossa carreira. Desde então, nós sempre nos mantivemos proativos sobre tudo que envolve nossa carreira, inclusive seu encerramento. Tommy definiu isso muito bem recentemente: “Uma turnê de despedida é quando a banda se despede, depois volta e faz outra turnê de despedida, e continua assim enquanto tiver dinheiro para arrancar do público. Isso é enganar os fãs!” Então nós resolvemos chama-la “The Final Tour”, porque nós queremos continuar tendo orgulho do Mötley Crüe e queremos que nossos fãs também se orgulhem de nós por muitas décadas.


“nós queremos continuar tendo orgulho do Mötley Crüe e queremos que nossos fãs também se orgulhem de nós por muitas décadas.” BR: Quando vocês começaram a banda, podiam imaginar que 30 anos depois teriam conseguido tudo o que conquistaram? MM: Posso responder apenas por mim, e posso garantir que tinha intenção, sim, de fazer tudo o que fizemos. Nós conseguimos e agora estamos encerrando nossa carreira. Estamos aqui, fizemos isso tudo, nos amamos como irmãos e vamos sair de cena definitivamente.

BR: No ano passado, vocês foram uma das bandas que mais ganhou dinheiro em shows. Por que parar justamente agora? NS: Resolvemos parar agora porque estamos no topo. Porque estamos nos dando muito bem, esta-

mos tocando melhor do que nunca e estamos soando muito bem. Queríamos deixar um legado e manter nossa dignidade. Nós começamos o grupo por causa de algo em que acreditávamos: o rock n’ roll. Queríamos vencer e sentir orgulho de nós mesmos. Chega a ser embaraçoso o que anda acontecendo no mercado musical. Mas não vou citar nomes.

BR: E o que vocês vão fazer quando a turnê acabar? VN: Estou na área de restaurantes há muito tempo, devo continuar. E também na música, nunca vou deixar de subir num palco para cantar. E vou levar a bandeira do Mötley Crüe cada vez que fizer um show. NS: Gosto muito do meu projeto paralelo, o Sixx:A.M., e pretendo continuá-lo. Também tenho um programa de rádio, o Sixx Sense, e estou trabalhando num musical da Broadway. Continuo na música, enfim. Acredito que nós 4 somos muito criativos, então vai ser muito legal acompanhar o que cada um vier a fazer. TL: Eu tenho algumas grandes surpresas sobre as quais ainda não posso falar, mas vem coisa por aí... (risos)

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BR: O Mötley Crüe sempre foi maior do que seus músicos individualmente. Isso de alguma forma incomoda vocês? TL: Isso é algo que acontece. Mas acredito que há muita gente que gosta de mim e de Mick acima do Mötley. Mas a guitarra e a bateria são instrumentos que chamam mais a atenção, e por mais que isso seja bom, as vezes acho que isso se deve mais à minha performance ao vivo do que à técnica propriamente dita. MM: Estou trabalhando sério num disco solo e pretendo escrever uma autobiografia. Além disso, me mudei recentemente para Nashville, e há uma multidão de músicos para trabalhar junto, não só do Country. Acho que vou fazer um disco bem diversificado, vai ser divertido.

BR: Como vocês gostariam que fosse o legado do Mötley Crüe? VN: Sempre imaginei algo como “eles fizeram do jeito deles”. Eu sei que é meio clichê, mas foi assim que aconteceu. Nós sempre andamos na contramão. Nós nunca fomos os queridinhos da crítica, nem ganhamos grandes prêmios da música, mas sempre tivemos muitos fãs. Acho que vão lembrar da gente porque fizemos as coisas do jeito certo e do jeito que queríamos.

BR: As suas músicas favoritas da banda são as mesmas que os fãs adoram? TL: Acho que sim e que não... Há músicas muito populares e que todo mundo adora, inclusive nós. Mas há outras não tão populares que são tecnicamente mais ousadas e se tornam um desafio para escrever e gravar. Mas isso nem sempre fica evidente para os fãs, e muitas vezes músicas assim acabam caindo no ostracismo.

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BR: O Mötley Crüe vai gravar um último disco de músicas inéditas? TL: Nós não chegamos a conversar sobre essa possibilidade.

BR: Isso faz com que “Saints Of Los Angeles” (2008) seja seu último disco. Olhando para trás, como você avalia esse disco no sentido de ser “as últimas palavras” da banda? TL: Eu entendo o que você quer dizer com isso, mas esse disco não teve esse sentido. Então, não sei se ele poderia representar nosso derradeiro trabalho como banda.

BR: Você gostaria de um dia voltar a fazer mais música com o Mötley Crüe? TL: Acho que vai ser divertido gravar mais algumas músicas para o filme que está sendo feito baseado no livro “The Dirt” (2001), nossa biografia. Acho que vai ser bem legal, vai ser algo que vamos fazer para o encerramento do filme. Creio que vai fazer sentido e ter um propósito, não vai ser simplesmente uma música feita sem um motivo.


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JIM MORRISON Sexy, perigoso e imortal: por que o mito continua vivo? Na edição de maio da Bud Rock, investigamos a história do vocalista do The Doors, apresentamos uma entrevista histórica com o astro e ainda comentamos a discografia da banda. por Paulo Cavalcanti

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Jim Morrison, se estivesse vivo hoje, teria 70 anos e pouco mais de um mês. Um dos mais notórios membros do chamado “clube dos 27”, ele definitivamente não foi feito para durar ou ter cabelos brancos e rugas. A morte não é heroica, mas a mitologia que envolve o fim do vocalista do The Doors segue reproduzida infinitamente. Cada grande astro do rock que surgiu na década de 50 e 60 deixou uma marca e modificou o panorama social para as gerações seguintes. Mas Jim Morrison foi além; no fim das contas, ele não precisava se esforçar muito para ser mais moderno do que os contemporâneos. Na edição de maio da Bud Rock, você conhece todas as facetas de Morrison, lê uma entrevista histórica com o cantor e ainda conhece a discografia e a videografia do Doors.


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Rebelde autêntico, o artista renegou a família – dizia que os pais estavam mortos, o que não era verdade. Nunca mais quis saber deles, especialmente do pai, almirante da Marinha norte-americana. Mais preocupado com a poesia do que com a cultura jovem e rock and roll, a princípio ele passou longe de toda a efervescência criada pelos Beatles e pelos Rolling Stones. Depois do surgimento do Fab Four, todo jovem dos Estados Unidos aprendeu a tocar guitarra e montou uma banda de garagem. Morrison, não – virou músico por acaso. Ray Manzarek, colega dele na UCLA (Faculdade de Cinema da Califórnia), tinha uma banda iniciante chamada Rick and the Ravens. Depois do decisivo encontro na praia de Venice com Manzarek, onde Morrison mostrou ao colega algumas das poesias que havia feito, o tecladista ficou impressionado e convidou o poeta aspirante para se unir à banda. Usando a flexível e expressiva voz de barítono que aperfeiçoou ouvindo LPs de Frank Sinatra, Morrison ganhou o cargo de frontman sem muito esforço.

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Com o peito nu e usando apenas um colar, Morrison posou para fotos promocionais que depois seriam apelidadas de “O Jovem Leão” (imagem que você confere na próxima página). Essas imagens, feitas por Joel Brodsky, são até hoje reproduzidas e todo mundo as conhece – há cerca de 45 anos vendem com perfeição a ideia do jovem e sensual deus do rock. As feições de Morrison eram tão perfeitas que pareciam ter sido esculpidas. Só que não havia nada de feminino ou andrógino nele. Bonito, sim, e particularmente perigoso.

Assim, com Morrison se juntando a Manzarek, Robby Krieger (guitarra) e John Densmore (bateria), o som do The Doors se formou. Os elementos básicos eram imagens retiradas da poesia beat e da literatura romântica, mais pitadas de música oriental e flamenca e jazz moderno da costa oeste. Mas o blues, paixão dos quatro integrantes, é que dava poder à banda e sustentava a parede sonora. E o tempero dessa salada era o ácido, a verdadeira fonte da lisergia californiana. The Doors (março de 1967), o primeiro álbum, jogou uma luz escura no otimismo da contracultura. A Guerra do Vietnã, levando potenciais fãs do The Doors a morrer do outro lado do mundo, fervia enquanto alguns sonhavam. Contendo imagens caóticas de incesto, destruição, violência, fim da noite e até misticismo, o Doors foi a trilha sonora para o conflito no leste da Ásia. “The End” parecia decretar que a velha geração tinha abandonado os filhos, que agora clamavam por uma amarga vingança.

“‘The End’ parecia decretar que a velha geração tinha abandonado os filhos” No começo, Morrison jogou o jogo. Estudante de imagem, sabia como vender as feições apolíneas com as quais foi abençoado. Ele pediu a Jay Sebring (cabeleireiro top de Los Angeles e mais tarde vítima da gangue de Charles Manson), que fizesse nele um corte de cabelo chamado “Alexandre, o Grande”.

No verão de 1967, o Doors era onipresente na cultura pop – ninguém conseguia escapar de ouvir “Light My Fire”. Morrison, o Rei Lagarto, um xamã dionisíaco pingando sexo, desfilava pela região de Sunset Strip trajando calças de couro negro apertadas que não deixavam nada para imaginação. Com toda a arrogância do mundo, a banda contradizia o Beatles – o Fab Four dizia que “precisávamos de amor”, mas Morrison e companhia clamavam em “When the Music Is Over”: “Nos queremos o mundo e o queremos agora”.

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Como artista, Morrison tinha uma dupla reputação. Era idolatrado por fãs adolescentes, mas o material que produzia muitas vezes era proibido para menores de 18 anos. Não se considerava um astro do rock, um cantor virtuoso ou ídolo adolescente, e sim um poeta que cantava o material que produzia. Vivia uma vida de vagabundo de luxo. Poderia ter a mansão mais luxuosa em Beverly Hills, mas, em vez disso, dormia em hotéis baratos ou no apartamento em Laurel Canyon que bancava para a namorada, Pamela Courson, com quem vivia entre tapas e beijos. Carrões e bens materiais não eram do interesse dele. Dava dinheiro e presentes a mendigos e amigos bêbados. E poetas não são poetas se não enchem a cara. Morrison nunca foi junkie. Detestava cocaína, experimentou profusamente LSD de 1965 a 1967, mas as viagens de ácido pararam quando viu que o álcool resolvia os problemas que tinha. Quando sóbrio, era um cavalheiro do sul, gentil e de fala mansa. O problema de encher a cara é que ele se tornava inconveniente e disposto a cometer mesquinharias com quem estava ao seu redor e se importava com ele. Tanto causava encrenca nos shows que chegou a ser preso em pleno palco em um show em New Haven. Costumava dizer que queria usar os métodos de provocação da trupe do Living Theater. A grande tragédia na vida de Morrison viria em 1º março de 1969, em uma apresentação no Dinner Key Auditorium em Miami (Flórida), justamente o estado onde o artista nasceu. O show começou com duas horas de atraso, devido a um desentendimento entre os promotores do evento. Morrison entrou no palco bêbado, não concluiu nenhuma canção e entoava discursos inflamados para provocar a plateia. Em certo ponto, abaixou a calça de couro e ameaçou mostrar o pênis – por debaixo da calça ele usava uma cueca sambacanção. Ninguém sabe exatamente o que aconteceu naquela fatídica noite – se Morrison expôs os genitais ou não – e nem os integrantes do Doors, nem os policiais ou o público de 10 mil pessoas conseguiram formar uma opinião definitiva. Finalmente, no encerramento da apresentação, o cantor pediu que o público tomasse conta do palco e o caos foi instaurado. Morrison, antes um dos astros mais espertos e literatos do rock, agora era um palhaço alcoólatra e inconveniente. O que ninguém percebeu é que, com um gesto extremo como esse, o astro clamava por ajuda, e não por veneração barata.

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Na época, a própria Rolling Stone EUA achou que o episódio foi mais constrangedor do que ultrajante. Na famosa reportagem que a revista publicou na ocasião, Morrison aparecia em um pôster de “procurado” do velho oeste. A crítica e o movimento underground, que tanto incensaram o Doors em 1966 e 1967, agora decretavam que a banda era “peso leve”, e que Morrison não passava de um bufão cantorzinho de baladas.


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Poucos meses após o incidente de Miami, apareceu Charles Manson, outro fantasma a assombrar a contracultura. Morrison foi deixado de lado e perdeu o título de homem mais odiado dos Estados Unidos. Talvez o cantor tenha achado que o fato de ser bonito prejudicasse o desejo de ser levado a sério como artista. Para sufocar o “Jovem Leão”, ele guardou as calças de couro, engordou e escondeu o rosto atrás de uma barba e óculos escuros. A Justiça norte-americana queria transformar Morrison em exemplo. Ele foi julgado, condenado, teve de pagar pesadas multas e viu sua energia esvaída em meio a idas e vindas ao tribunal. Acabou condenado a seis meses de prisão. Apelou, mas temia o dia em que seria encarcerado. Mas o Doors era uma mini-indústria, e mesmo com seu homem de frente envolto em problemas, a banda precisava produzir, gravar e se apresentar. Depois de Miami, os promotores de espetáculos achavam que Jim Morrison era uma bomba-relógio, e o número de apresentações caiu consideravelmente. Em compensação, a banda se recuperou em estúdio, lançando Morrison Hotel e gravando L.A. Woman, dois álbuns consistentes e mais focados que apontavam para dias melhores. Morrison perdeu a fé, se fechou para o mundo e entrou em forte depressão. Não era fácil conviver com ele, e ele próprio sabia disso. Os amigos se afastaram discretamente. Longe de ser um mártir de alguma causa ou um herói da liberdade de expressão, Jim Morrison era apenas um cara perdido. Em março de 1971, foi para a França, terra dos poetas e dos artistas surrealistas que tanto adorava. Nessa tentativa de recuperar a musa poética em terra estrangeira, não teve tempo de produzir muito. Mas pelo menos parecia estar mais sossegado, longe do assédio e das pressões. A morte de Jim Morrison, oficialmente vitimado por um ataque cardíaco em 3 de julho de 1971, gerou dezenas de teorias de conspiração – repassá-las aqui nem valeria a pena. Mas, ao morrer no apartamento em que vivia, Morrison teve o final que sempre quis: o do poeta nu, morto silenciosamente dentro da banheira. E não deixou de ser um dedo do meio para aqueles que o queriam atrás das grades e humilhado. Quando Morrison se foi, os outros três membros do The Doors teimosamente seguiram em frente. Lançaram dois álbuns que passaram despercebidos e logo encerraram as atividades. Morrison tornava tudo difícil, mas sem ele a banda perdia sua entidade. A poesia caótica de fim do mundo do Doors foi literalmente sepultada pelo resto da década de 70.

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“A poesia caótica de fim do mundo do Doors foi literalmente sepultada pelo resto da década de 70” Em tempos de glam, rock progressivo e disco music, a visão sinistra de Morrison não tinha espaço. Claro, muitos fãs do Doors acabaram militarando no punk, mas a visibilidade da banda e de seu carismático e complicado frontman parecia ter esgotado. Em 1979, o diretor Francis Ford Coppola usou “The End” de forma decisiva no épico Apocalypse Now. As memórias da Guerra do Vietnã estavam de volta, e seu bardo mais eloquente também. Jim Morrison era assunto nas livrarias com o best-seller Ninguém Sai Vivo Daqui e na capa da Rolling Stone com a provocativa chamada “He’s Hot, He’s Sexy and He’s Dead” (Ele é Quente, Ele é Sexy, Ele está Morto). Os anos 80 foram infestados de bandas que se calcavam no som baseado em teclados e abusavam de imagens surrealistas – de Echo & the Bunnymen a The Cult, todo mundo queria um pedacinho do The Doors. Talvez em termos de mitologia póstuma, hoje Morrison tenha sido suplantado por Kurt Cobain como o grande garoto problema do rock. O líder do Nirvana e o vocalista do Doors foram verdadeiramente heróis trágicos. Morrison, em particular, praticou o conceito da húbris – tornou-se tão arrogante que desafiou a fonte de seus poderes e, no processo, foi destruído. Ele ainda está enterrado no cemitério Père Lachaise, em Paris, e todo ano a administração local toma medidas para impedir o caos e o vandalismo que cercam a lápide do cantor, que até ficaria contente com isso. E enquanto a poderosa música do The Doors passar de geração para geração e as fotos do Jovem Leão circularem, o espectro do Rei Lagarto estará conosco.

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