PACS - Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul
Junho, 2015 n. 66
Por um out ro model o de desenvol viment o: a experiência da Feira Agroecol ógica da Freguesia Por Aline Lima, educadora popular,graduada em psicologia pela Universidade Federal Fluminense, pós graduada em terapia através do movimento: corpo e subjetivação.
A cidade do Rio de janeiro, em especial a Zona Oeste, hoje é o palco da implementação de megaprojetos de desenvolvimento como os megaeventos (copa e olimpíadas) e de megaempreendimentos industriais. Os olhos do mundo e do capital estão voltados para o Rio de Janeiro, que com sua hospitalidade e isenções fiscais recebe o capital internacional como um simpático anfitrião. Esses megaprojetos nunca chegam sozinhos. Sempre são marcados por grandes obras de infraestrutura que na maioria das vezes com o apoio/ financiamento dos governos mudam a vida de toda a população. A grande parte menos favorecida da cidade sente bastante os efeitos desses megaprojetos, seja pelas remoções forçadas seja pelo aumento da criminalização da pobreza seja pela falta de investimento em serviços básicos como saúde e educação, dentre outros. E tudo isso é feito em nome de um tal desenvolvimento que nós do Pacs, dentre outros grupos da sociedade civil, buscamos desconstruir e reconstruir a partir de um outro prisma. Um modelo de desenvolvimento no qual o lucro está acima da dignidade da vida, da terra de mulheres e de homens não nos interessa, não nos satisfaz. Em outros momentos já aprofundamos esse debate focando nos meageventos e megaempreendimentos (Em outras ocasiões já nos aprofundamos nessa discussão. Ver, por exemplo: Massa Crítica sobre Pan Americano e Massa Crítica sobre TKCSA). Neste contexto, perguntamos: desenvol viment o pra quem e pra quê?
Se os megaprojetos só contemplam a pequena fração mais rica da população, deixando de fora uma população empobrecida quase na sua totalidade; Se os mega empreendimentos só beneficiam as grandes corporações e ao contrário do que se diz não geram aumento efetivo no número de empregos e benefícios pra população, pra quem é esse desenvolvimento?
O que está em questão nesta cidade de contradições é o modelo de desenvolvimento. Do lado ?cartão postal da cidade? temos muitos estádios sendo construídos e grandes obras de Fot o: Facebook Feira Agroecol ógica da Freguesia infraestrutura. Do outro lado, porém, nas margens da cidade, nos quilombos, nas favelas há total falta de investimentos. A Zona Oeste ocupa mais da metade de todo território da cidade. É uma região acompanhada quase que na sua totalidade pelo Maciço da Pedra Branca. Um maciço que guarda uma diversidade enorme de fauna, flora e vida. É lá onde moram inúmeras famílias há mais de um século, vivendo da agricultura e preservando Fot o:Comunicação Pacs aquele ambiente. É lá também que os primeiros quilombos da cidade foram erguidos, memória da resistência de um povo explorado por séculos de escravidão. Lá vivem histórias e causos de um tempo de segregação que não vivemos, que não está mais ali, mas que ao mesmo tempo é tão atual que seus reflexos são sentidos até hoje.
Massa Crítica 66 * pacs.org.br * Análise de conjuntura nacional e internacional É também nas margens e no próprio Maciço da Pedra Branca que crescem os olhos da especulação imobiliária que com o pretexto de alargar e expandir a cidade passa por cima da história de toda uma região com seu rolo compressor. É na Zona Oeste também onde uma grande empresa siderúrgica foi instalada às margens da Baía de Sepetiba sob o pretexto de gerar empregos e progresso, mas que acaba com o trabalho de pescadores/ as, artesanais, agrava a contaminação da água e o assoreamento da Baía e adoece a população com os resíduos jogados a céu aberto nas casas, nas ruas, na vida das pessoas que construíram suas história ali, naquele território em disputa. Se de um lado temos a vida de mais ou menos 2 milhões de pessoas: agricultoras/ es, pescadores/ as, quilombolas, trabalhadores/ as que querem permanecer produzindo em seus territórios como fizeram seus antepassados; do outro temos o avanço do capital que sob a forma de um feitor compra uma cidade que não deveria estar à venda. No plano diretor da cidade do Rio de Janeiro não se considera a existência de áreas rurais, pois a cidade é considerada 100% urbana. Como as políticas públicas voltadas pra agricultura só beneficiam áreas rurais, os agricultores e agricultoras que estão dentro dos limites da cidade são invisibilizados/ as. A prefeitura do Rio de Janeiro não reconhece os agricultores/ as que aqui vivem, embora eles e elas estejam estão produzindo e trabalhando a terra há muitos anos. Como afirmar uma prática produtiva que a própria cidade desconhece? De que maneira visibilizar essas iniciativas que se afirmam como resistência a um modelo que produz pobreza e acirra desigualdades? Como contribuir para potencializar as ações populares que existem na cidade? Foi nesse cenário que nos juntamos.
>> O início de t udo Em Novembro de 2012, nós do PACS, outras 7 organizações e entidades de apoio e fomento a agroecologia (AS-PTA, Fiocruz, CAPINA, , Rede Ecológica, UFRRJ, CRAS Cecília Meireles) e Fot o:Comunicação Pacs
produzidos pelos/ as próprios/ as agricultores/ as familiares da região? Paralelo a esse processo tivemos notícia de que a associação de moradores da Freguesia (sub-bairro de Jacarepaguá, Zona Oeste) tinha solicitado à Secretaria Especial de Desenvolvimento Econômico Solidário (SEDES) que o Circuito Carioca de Feiras fosse ampliado e contemplasse também essa região da cidade. O circuito até então só abarcava a Zona Sul. Importante ressaltar Fot o:Comunicação Pacs que o grupo que na época reuniu-se para discutir a questão integra a Rede Carioca de Agricultura Urbana, um coletivo composto por mais 30 organizações, militantes e agricultores/ as. A rede foi fundada em 2007 e é composta por técnicas e técnicos, agricultoras e agricultores e entidades de apoio e fomento à agroecologia e à agricultura urbana e consumidores. O objetivo é visibilizar a agricultura urbana na cidade. Já discutíamos há muito tempo um modelo de desenvolvimento para além desse modelo perverso e contraditório, que privilegiasse a vida em lugar do lucro, que considerasse a questão da soberania alimentar nos territórios. Decidimos nos reunir e pensar de que maneira nós viabilizaríamos uma feira. E essa feira não era qualquer feira. Tinha que ter a cara de todos e todas nós. Tinha que ser construída coletivamente como o modelo de sociedade em que acreditamos.Tinha que partir dos anseios dos territórios ali representados. Tinha que surgir daquele espaço de lutas e resistências.
Quef eir a ser ia aquel a?
Então começamos a realizar encontros quinzenais pra pensar onde estávamos e pra onde queríamos ir. Que feira seria aquela? Queríamos uma feira dentro do circuito carioca de feiras orgânicas? Quem chamaríamos pra ?engrossar o caldo? da nossa panela? agricultores (as) da Zona Oeste do Rio, da região metropolitana e da região serrana do Estado começávamos uma discussão sobre a produção de alimentos saudáveis (sem agrotóxicos, vindos da agricultura familiar) na Zona Oeste da cidade e os desafios de comercializar esses produtos. Como fazer chegar à casa dos/ as consumidores/ as da cidade produtos saudáveis
Para uma feira fazer parte do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas a produção de todos os agricultores e agricultoras deve ser certificada como produção orgânica, isto é, produzida sem uso de agrotóxicos. E no nosso coletivo somente uma agricultora tinha a certificação, embora produzir sem veneno fosse uma prática de todos.
Massa Crítica 67 * pacs.org.br * Análise de conjuntura nacional e internacional Uma questão que aparecia naquele momento fundamental para o grupo foi: precisamos de uma certificação? Se sim, como faríamos isso? Existem três mecanismos de garantia da conformidade orgânica, ou seja, três modalidades para certificar que um produto é orgânico: Auditoria, Organismos de Controle Social (OCS) e Sistema Participativo de Garantia (SPG). Na auditoria, a concessão da certificação é feita por uma certificadora pública ou privada credenciada no Ministério da Agricultura. O organismo de avaliação da conformidade obedece a procedimentos e critérios reconhecidos internacionalmente, além dos requisitos técnicos estabelecidos pela legislação brasileira. No OCS, organismos ou instituições credenciados certificam, através de visita e fiscalização, os produtos. No SPG, há é uma certificação de responsabilidade coletiva. Todos os membros (agricultores e agricultoras) fazem visitas regulares a seus pares em que observam as exigências e certificam a produção. Nessa modalidade, existe a figura de um técnico anteriormente habilitado por uma instituição certificadora pra acompanhar o processo. Os agricultores e agricultoras envolvidos no processo de construção da Feira Agroecológica da Freguesia optaram pelo Sistema Participativo de Garantia (SPG). Um grupo de agricultores (as), técnicos e consumidores formavam um coletivo certificador que se encarregava de certificar a produção de todos os agricultores. Esse processo permitiu que tanto os agricultores tivessem autonomia sobre o processo de certificação como também permitiu que consumidores conhecessem de onde vêm e como são produzidos os alimentos que chegarão à sua mesa. Permitiu ainda que sete agricultores
familiares da Zona Oeste do Rio de Janeiro fossem certificados como produtores orgânicos.
O processo de f ormação da f eira durou nove meses e durant e esse t empo t udo f oi negociado col et ivament e. Desde o preço dos produt os, passando pel a organização das barracas at é o regiment o int erno da Feira. Os encont ros de f ormação que ant es eram quinzenais passaram a ser semanais no aproximar da dat a de inauguração. Em rel ação à gest ão da Feira, decidiu-se que seria uma gest ão compart il hada e que não haveria a f igura de um coordenador como acont ece em t odas as out ras f eiras do circuit o, mas que essa f unção t ransit aria ent re t odos os f eirant es de t empo em t empos. Cada um trouxe o que tinha e entre troca de sementes, receitas e saberes foi se formando um coletivo vivo, que já não era mais um grupo de agricultores (as) e técnicas (os) que estavam trabalhando para uma feira sair do papel, mas estávamos diante de um coletivo que disputava um território, que disputava uma nova maneira de produzir, gerir e comercializar para além das amarras do capital. Muitas questões foram colocadas, algumas resolvidas, outras não, umas ficaram pelo meio do caminho, outras carregaremos conosco. O fato é que hoje nossa Feira já está há quase dois anos na rua.
Fot o: Facebook Feira Agroecol ógica da Freguesia
Massa Crítica 66 * pacs.org.br * Análise de conjuntura nacional e internacional Fot o: Facebook Feira Agroecol ógica da Freguesia
A const rução da f eira como um processo pol ít ico pedagógico Assim como o modelo de desenvolvimento capitalista disputa a cidade, também disputa o que a constitui: práticas, ideologias, espaços. No campo da educação também existem disputas. Entre uma educação que é voltada para um ensino técnico-científico, para o mercado, para a formação de mão de obra, para a manutenção de um modelo de desenvolvimento que reproduz hierarquias sociais a educação e uma educação que vai na direção de uma prática libertária e emancipatória, que considera a formação das subjetividades e ganha corpo no coletivo, uma prática educativa que considera os saberes e as lutas populares e que ali ganham força. Um saber que passava pelas remoções
Durante todo o processo de formação da Feira Agroecológica da Freguesia vimos surgir um saber construído naquele e por aquele grupo, um saber que cada um/ a trazia consigo em experiências vividas na roça, na universidade, no campo e na cidade.
forçadas na cidade por conta da especulação imobiliária, pela invisibilidade da agricultura na cidade, pela invisibilidade do trabalho das mulheres, pela dificuldade de transporte público e acesso a serviços de saúde. Um saber marcado pela luta do povo por uma nova economia, por uma nova maneira de produzir, consumir e comercializar na cidade. Esse saber só pode ser construído através da luta do povo. E é nessa direção que está a educação popular construída coletivamente nos processos de resistência visíveis e invisíveis da cidade e do campo.
Na educação popular, o trabalho é afirmado como princípio educativo porque é através dele que o coletivo se organiza, é através dele que o saber é construído e, no caso da Feira da Freguesia, é através dele que o coletivo reinvidica permanência e território. Essa educação só é possível dentro das resistências de um povo. Só é possível quando parte, se estrutura e se reestrutura dentro da demanda das lutas populares por moradia, por trabalho, por terra e por uma vida digna pautadas na cooperação e na solidariedade. Só é possível por que é pautada na justiça social.
>>O Pacs entende que debater ideias e pensamento crítico sobre a realidade é um dos momentos envolvidos na atividade de transformar o mundo em que a gente vive. Por isso, acha importante compartilhar reflexões, análises e conteúdos dos temas que pautam nossa atuação com parceiros/ as de caminhada. O Massa Crítica é o espaço onde a nossa equipe expõe, problematiza e reflete sobre a conjuntura local, nacional e internacional. Em 2015, passamos a publicar edições mensais! Acompanhe! Assine: pacsinstituto@gmail.com Acesse edições ant eriores: http:/ / www.pacs.org.br/ 2013/ 04/ 25/ serie-massa-critica/
Fot o:divul gação