PARA ALÉM DA CIDADE EXPERIÊNCIA E APONTAMENTOS PARA A PRÁTICA DE ASSESSORIA TÉCNICA NO ASSENTAMENTO HO CHI MINH (MST)
IARA PEZZUTI DOS SANTOS ORIENTADOR: TIAGO CASTELO BRANCO LOURENÇO CO-ORIENTADORA: MARGARETE MARIA DE ARAÚJO SILVA
às famílias do Assentamento Ho Chi Minh e a todas e todos que lutam pela democratização da terra por esse Brasila afora. ao meu avô Italo (in memorian), meu arquiteto favorito.
1 INTRODUÇÃO
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PARTE 1
2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO
CAMPO/CIDADE NO BRASIL 20
2.1 LUTA PELA TERRA E A BUSCA PELA
CIDADANIA NO CAMPO 21
2.2 A CONSTRUÇÃO DE UM PARADIGMA
CONTRA-HEGEMÔNICO 31
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PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES AO TERRITÓRIO 36 3.1 O MST E CONFLITOS NA RMBH 37
3.2 ENTRE A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E A MONOCULTURA DAS BANANAS
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O ASSENTAMENTO HO CHI MINH 49 4.1 O PERCURSO DE UMA ESCRITA 48 4.2 O PROCESSO DE OCUPAÇÃO 53
4.3 DO ACAMPAMENTO AO ASSENTAMENTO
E AS RUPTURAS NA COLETIVIDADE 60
4.4 POLÍTICAS PÚBLICAS E SEUS ENTRAVES 66
SUMÁRIO 5
PROCESSOS EM CURSO 74
5.1 A CRIAÇÃO DA COOPERATIVA DA REGIONAL METROPOLITANA 76 5.2 A IMPLANTAÇÃO DO VIVEIRO DE MUDAS 78
PARTE 2
0 DISCUTINDO O TERRITÓRIO 84 01 FOTOGRAFIA + TEATRO 92 02 CONSTRUÇÃO DA MAQUETE+
MAPEAMENTO COLETIVO 112
03 FESTA DAS CRIANÇAS 04 MINI CURSO DE CINEMA
6 REFLEXÕES FINAIS 7 AGRADECIMENTOS 8 REFERÊNCIAS
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1. INTRODUÇÃO Dentro de um espaço amplamente urbanizado, portanto, não mais vejo como pensar uma reforma agrária, utópica ou não, sem ancorá-la no problema mais primordial do planejamento do território como um todo e em suas várias dimensões: física, geográfica, política, econômica, social, legal e cultural. [...] Romperam-se tanto os muros que separavam o campo e a cidade, o lavrador e a tecnologia, quanto as divisões rígidas entre os saberes com que pensávamos seus problemas. (BRANDÃO, 2008, p. 193) 6
A luta pela terra no Brasil tem relação com a formação das classes sociais e do poder econômico e político no país. Para além da conquista da terra em si, a luta pela verdadeira Reforma Agrária é, portanto, uma luta por mudanças sociais e políticas, pela alteração da questão estrutural da propriedade da terra e da condição da terra como mercadoria, uma luta por uma sociedade mais justa e igualitária (STEDILE, 1993). Esta é, também, uma luta pela correlação de forças entre os espaços do campo e da cidade, pela conquista de direitos da população residente no campo, pela reversão das condições de precariedade do campesinato e dos pequenos produtores rurais no Brasil e da subordinação destes à cidade. Meu interesse pelo tema deste trabalho se deu a partir de uma disciplina de extensão ofertada pela professora Margarete Maria de Araújo Silva na Escola de Arquitetura da UFMG em julho de 2018, em parceria com a Associação Arquitetas Sem Fronteiras (ASF Brasil)1 e a Associação de Produção Agropecuária Ho Chi Minh (ASPRA). Durante uma semana permanecemos acampados e trabalhando junto às famílias do Assentamento Ho Chi Minh, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) localizado no município de Nova União, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), com o objetivo de organizar documentos e elaborar projetos para viabilizar o acesso pelas famílias ao Programa Minha Casa Minha 1 Passei a fazer parte da ASF depois desta experiência de extensão e hoje integro a equipe de supervisão de projetos da Associação. 7
Vida - Rural. Através desta experiência pudemos2 perceber algumas das dificuldades impostas aos assentados da Reforma Agrária para consolidar suas vidas no campo, a princípio, pela dificuldade em acessar os recursos governamentais disponíveis que poderiam ajudá-los a expandir a produção e a melhorar suas condições de vida. Após 14 anos da conquista da terra pelo Movimento, muitos ainda vivem em habitações provisórias e tem dificuldade em manter o sustento familiar sem o aporte das políticas públicas existentes3. Nos impressionou, por outro lado, a força com que estas famílias mantém sua vida e a forma carinhosa com que nos receberam, mesmo depois de tantos anos de tentativas frustradas em acessar os programas governamentais. A consciência militante destas famílias, conquistada após tantos anos de luta pela (e na) terra, é a força motriz que inspira este trabalho. Para Ecléa Bosi (1986, p. 16), “atrás deles está uma pessoa que percebe, luta, cujas mãos tecem o tecido vivo da história; seguremos com força os fios dessa trama!” O objetivo deste estudo consiste, inicialmente, em investigar as dificuldades enfrentadas por quem assume a luta pela permanência no campo, mais especificamente pelas assentadas e assentados do Assentamento Ho Chi Minh. E, através dessa investigação, buscar entender os principais entraves para o desenvolvimento territorial local, pautados principalmente pela dificuldade de acesso às políticas públicas e pelo enfraquecimento gradativo da mobilização popular e da coesão social dentro do assentamento. 2 Algumas vezes utilizo a primeira pessoal do plural por entender que em muitos momentos as percepções e as reflexões que construí ao longo da experiência de extensão não foram despertadas individualmente por mim, mas compartilhadas e construídas através das conversas com os outros alunos da disciplina, amigos, membros da ASF e todas e todos que se envolveram especialmente nesta parte inicial do trabalho. 3 Os aspectos relativos às políticas públicas serão melhor detalhados no capítulo 4, item 4.4 - Políticas Públicas e seus entraves. 8
Por desenvolvimento territorial entende-se que, de acordo com Saquet (2017, p. 20): [...] o desenvolvimento tem um conteúdo territorial e é compreendido como movimento contínuo de conquistas sociais (econômicas, políticas e culturais) e ambientais (ambiente recuperado e preservado; manejo adequado do solo, das plantas, das águas e dos animais) para a maioria da população, de valorização das identidades (patrimônio histórico-cultural), da participação, da solidariedade, da cooperação, da partilha [...]. O desenvolvimento assume, necessariamente, um conteúdo territorial multidimensional ou pluridimensional, em favor do direito à cidade, do direito ao campo e do lugar da boa convivência, sempre contrário à valorização do capital e à reprodução do estado burguês [...]
O desenvolvimento territorial, nos moldes do que propõe Saquet, depende fundamentalmente de dois processos que devem acontecer simultaneamente: “[...] da mobilização popular e da concretização de políticas públicas eficientes, participativas, qualificadas, bem planejadas e definidas conforme os interesses e as necessidades do povo, tanto rural como urbano” (SAQUET, 2017, p. 20). A mobilização popular é condição que torna possível a efetivação das políticas públicas, uma vez que estas se tornam objeto da reivindicação do povo. Assim, é necessária uma luta constante e uma organização popular consistente para o acesso às políticas existentes, especialmente no contexto do campo, historicamente privado do acesso aos direitos no Brasil4. Da mesma forma, sem políticas públicas eficientes como suporte - econômico ou político - para que o desenvolvimento territorial seja viabilizado, a mobilização popular acaba por ser enfraquecida ao longo do tempo. Sem capital para investir na terra, o assentado muitas vezes não consegue expandir 4 Tentarei construir este argumento no segundo capítulo, através da ideia de cidadania no campo (AVRTIZER, 2008) 9
sua produção, sendo forçado a trabalhar como mão de obra superexplorada no campo para terceiros, ou mesmo manter vínculos de trabalho muitas vezes precarizado na cidade. No caso do Ho Chi Minh, por exemplo, as tentativas de acesso aos programas e créditos governamentais pelas assentadas e assentados são muitas vezes frustradas. Nesse sentido, o caráter extremamente tecnicista das políticas existentes hoje destinadas aos territórios da Reforma Agrária no Brasil (ROCHA, 2013) constitui-se como um dos principais entraves para a efetivação das mesmas no campo. A necessidade e dependência a projetos técnicos para o acesso a tais políticas constitui-se de uma barreira muitas vezes não superada pelos camponeses, dada a frequente interrupção dos serviços de assessoria técnica e extensão no meio rural (NUNES, 2018). Além disso, entende-se que o desenvolvimento territorial deve possuir um conteúdo territorial multidimensional ou seja, envolve, de acordo com Saquet (2017, p. 20) “[...] relações e redes efetivadas todos os dias pelos sujeitos em cada relação espaço-tempo, das apropriações, distintas produções, enfim, das práticas cotidianas espaciotemporais”. Assim, se nossa aproximação ao Assentamento Ho Chi Minh se deu a partir da questão da moradia, neste trabalho - e a partir da própria atuação da ASF (credenciada como ATER) -, percebi a necessidade de expandir o olhar para além da questão habitacional, somando-se a ela uma série de fatores condicionantes da situação social das famílias camponesas: as relações de cooperação, o uso da terra, o trabalho, as rupturas e permanências na coletividade, enfim, realizar um esforço de se “colocar em relação sistemática campos de investigação muitas vezes mantidos separados” (COMERFORD, 2003, p. 21). Nesse sentido, olhar para o território significa, em última instância, considerar segundo Saquet (2017, p. 38)“[...] o processo histórico, entendido como duração e movimento, e as 10
simultaneidades e coexistências, no tempo e no espaço5”. Por falar em tempo e em processos, foram ao todo cerca de 15 viagens ao Ho Chi Minh no período de um ano e meio, com permanência mínima de 2 ou 3 dias em cada viagem, cozinhando, dormindo, acordando e compartilhando conversas com os moradores. Tal forma de trabalho possibilitou uma imersão no cotidiano das famílias assentadas e nos aproximou de detalhes e situações que provavelmente passariam desapercebidas nas chamadas visitas de campo6. Depois da primeira viagem junto à turma da disciplina UNI009, quando ficamos sete dias acampados com uma equipe de cerca de 20 pessoas no quintal de um morador, firmamos um contato e uma parceria com a comunidade que nos fortaleceu mutuamente em todos os trabalhos e encontros seguintes. Através das mini-imersões - ainda que não tão longas quanto a primeira, nos esforçamos por desfazer (ou pelo menos enfraquecer) os alicerces da relação de dominação epistemológica muitas vezes exercida pela Academia em pesquisas e trabalhos de extensão. Nessa experiência de um ano e meio de trabalho em campo, destaco a importância da permanência prolongada, sempre que possível, e da presença assídua e comprometida para com a comunidade na intenção de exercer um trabalho contínuo e fundamentado em relações de troca, reciprocidade e valorização dos diversos saberes locais. Permitir-se imergir em um contexto significa também, nesse caso, permitir-se mudar os caminhos à medida em que as 5 Vale ressaltar que Saquet não entende espaço e território como conceitos antagônicos, mas como categorias que se relacionam de forma dialética. Para o autor (2017, p. 38), “os territórios resultam do processo de construção histórica do e no espaço. Cada combinação específica de cada relação espaço-tempo é produto, acompanha e condiciona os fenômenos e processos territoriais”. 6 Comumente adotadas em trabalhos extensionistas, entendo as visitas de campo como práticas pouco efetivas para o conhecimento e a formulação crítica dada a limitação de tempo e convivência com as comunidades parceiras. 11
situações se desenham e se alteram ao longo do tempo. Se inicialmente a intenção deste trabalho era lançar luz sobre as políticas e programas existentes em um esforço de se compreender sua efetividade e seus reflexos, ao analisar o processo de ocupação e consolidação do Assentamento Ho Chi Minh, a conjuntura política atual e a baixa perspectiva de acesso às políticas públicas impõe uma mudança de rumo em meu objetivo. A nova postura e posição política do governo que se instala no país demonstra indícios de redução - ou mesmo extinção - das políticas públicas destinadas aos assentados da Reforma Agrária, bem como corte de relações e diálogos com os movimentos sociais7. Neste cenário, a postura de resistência ativa por parte do Movimento Sem Terra indica um período de revisão de práticas e de reorganização interna em busca de maior autonomia em relação ao governo, e de um aumento das práticas de cooperação, tanto internas ao Movimento, quanto pela busca de novas redes e parcerias. Em um contexto de revisão de práticas e de baixa perspectiva de acesso às políticas públicas, este trabalho constitui-se também como um esforço em me aproximar aos movimentos sociais do campo - mais especificamente o MST - por acreditar que nossa práxis enquanto arquitetos e urbanistas junto aos assentados da Reforma Agrária pode ir além da questão habitacional e envolver também a discussão acerca do território, de forma a estimular questionamentos, o senso crítico e as relações de pertencimento, enraizamento, cooperação, enfim, contribuir para a luta destas pessoas em permanecerem e conquistarem sua cidadania no campo (AVRITZER, 2008; LOPES, 2015), bem como fortalecerem os vínculos territoriais. Nesse sentido, seria possível imaginarmos outras formas de atuação nesses territórios, que extrapolem as tradicionais práticas de assistência 7 Ver notícias: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/02/incrarompe-com-mst-e-determina-fim-de-dialogo-com-lideres-sem-terra.shtml e https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/governo-bolsonaro-recua-e-anulaorientacao-para-romper-dialogo-com-o-mst.shtml. Acesso em 06/06/2019.
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técnica existentes, dêem conta da complexidade territorial e fortaleçam a autonomia das famílias camponesas? A quais processos em curso no Assentamento Ho Chi Minh poderiam se somar práticas de discussão espacial e territorial? Como eu poderia me encaixar nesses processos e que tipo de discussões poderíamos construir coletivamente? Abrindo a Parte I, no Capítulo 2 busco compreender melhor a relação entre campo e cidade no Brasil, através do diálogo entre autores que tratam 1) da relação histórica entre campo e cidade; 2) da Reforma Agrária. Quais as particularidades da questão agrária no nosso país? Como o MST entende a Reforma Agrária nos dias de hoje? Dada a conjuntura política atual, o que seria a construção de um paradigma contra-hegemônico por parte do Movimento? No Capítulo 3 será feita uma breve contextualização do assentamento Ho Chi Minh em relação aos outros assentamentos e acampamentos do MST na RMBH, de forma a compreender melhor as relações estabelecidas e realizar uma primeira aproximação ao território, seus conflitos e potencialidades em escala metropolitana. No Capítulo 4, o trabalho tem como foco o Assentamento Ho Chi Minh e busca, em um primeiro momento, compreender como foi o processo de ocupação da terra, quais os agentes envolvidos e quais as principais dificuldades enfrentadas pelas famílias assentadas durante o período de acampamento. Além disso, busca elucidar quais os principais fatores coletivos e de cooperação presentes nesta etapa, muitas vezes enfraquecidos após os anos seguintes de luta pela consolidação da vida no campo. Em um segundo momento, o capítulo se volta para a transição da condição de acampados para a condição de assentados, em um esforço de se compreender 13
quais as implicações dessa transição sobre a coletividade no assentamento. Por último, a discussão se volta para as políticas públicas existentes e busca investigar as principais dificuldades dos assentados do Ho Chi Minh em acessar tais políticas, bem como identificar os pontos de fragilidade e imaginar como estas poderiam ser redesenhadas ou alteradas para um melhor funcionamento, especialmente no que diz respeito aos serviços de assistência e/ou assessoria técnica no campo. O Capítulo 5 busca, a partir das reflexões construídas ao longo deste texto, analisar os processos em curso no assentamento, bem como vislumbrar as possibilidades de atuação no segundo semestre de 2019. Com a baixa perspectiva de acesso às políticas públicas, a questão da mobilização social ganha importância ainda maior. Como minha atuação poderia se dar no sentido de fortalecer os processos coletivos em curso? Como mobilizar os assentados - principalmente os jovens - a participar e colaborar nestes processos? Por fim, a Parte II deste trabalho pretende apresentar um relato das experimentações críticas realizadas junto aos jovens no 2º semestre. Apesar do curto tempo para o desenvolvimento de tais atividades, espero que os relatos possam servir como inspiração ou ponto de partida para trabalhos futuros, seja no Ho Chi Minh, seja em outros assentamentos rurais, e que possam despertar novos inquietamentos e perspectivas para a atuação da assessoria técnica nestes contextos.
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9.394
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Figura 1: Linha do tempo e informaçþes sobre o processo de assentamento no Ho Chi Minh. Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados do INCRA (2019)
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PARTE
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2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO CAMPO/ CIDADE NO BRASIL 20
2.1 LUTA PELA TERRA E A BUSCA PELA CIDADANIA NO CAMPO A disputa pela terra no Brasil remonta aos anos iniciais de estabelecimento da colônia. Através de um processo violento que massacrou milhões de indígenas que ocupavam a região, a Coroa Portuguesa tomou para si as terras brasileiras e as entregou como concessão a nobres portugueses, conhecidos como donatários, através das chamadas capitanias hereditárias. Como aponta Morissawa (2001, p. 57), vale ressaltar que tais terras “[...] não foram dadas a esses nobres. Elas continuaram pertencendo à Coroa portuguesa até 1822 e depois ao Império brasileiro até 1850”. Os donatários não podiam vender as capitanias, mas possuíam amplos poderes sobre as terras, de forma que podiam distribuí-las na forma de sesmarias a pessoas que possuíssem capital para investir e produzir nelas, em geral nobres e comerciantes vindos de Portugal. Estes, por sua vez, para viabilizar a produção nas terras concedidas, dependiam da mão de obra escrava - primeiro a partir da escravização dos indígenas, posteriormente substituída pela mão de obra de escravos oriundos da África (MORISSAWA, 2001). Assim, como analisa Stedile et al (1993, p. 15), “o domínio e a posse de áreas de terra fazem parte da formação das classes sociais e do poder econômico e político em nossa sociedade”. Além da posse das terras, obtidas a partir de um poder político e econômico pré-estabelecido - ou seja, tinham direito à terra aqueles que já possuíam certo prestígio social, no Brasil é peculiar a autonomia com que estes senhores de terra podiam governar suas propriedades. Leonardo Avritzer (2008) caracteriza como enclausuramento normativo a forma como os proprietários de terra agiam frente às leis mais gerais da colônia: 21
Por enclausuramento normativo estou entendendo a autoprodução de normas pelos proprietários de terras, assim como sua não subordinação a uma normatividade mais ampla instaurada pelo poder político. O enclausuramento normativo no caso brasileiro haveria começado com as prerrogativas ampliadas dos capitães que tinham até mesmo poder de decretar sentenças de morte nos casos de índios e negros e atribuições administrativas de defesa do território. (AVRITZER, 2008, p. 155)
Este enclausuramento normativo foi responsável pela manutenção do poder nas mãos daqueles que detinham a concessão sobre o uso da terra. Em 1822, no entanto, já não havia mais terras a distribuir, e a ocupação passou a se dar através do sistema de posse (MORISSAWA, 2001). A primeira lei sobre o uso das terras foi decretada somente em 1850, conhecida como Lei de Terras, quando a Coroa brasileira passou a vender suas propriedades - condição que aumentou ainda mais a disputa e a concentração de terras nas mãos das classes mais abastadas da sociedade (STEDILE et al, 1993), as únicas que possuíam capital para comprá-las. Como bem aponta Morissawa (2001, p. 71), “a Lei de Terras significou o casamento do capital com a propriedade da terra”. Em outras palavras, a terra foi então transformada em mercadoria à qual só poderiam ter acesso as camadas mais ricas da sociedade. Ainda, a Lei Áurea, de 1888, impediu o trabalho escravo mas, por outro lado, não garantiu condição aos ex-escravos de acessarem a terra, uma vez que não possuíam dinheiro para comprá-las. Sendo assim, agravaram-se no campo - e também nas cidades - as desigualdades sociais e a concentração fundiária e de poder na mão de grandes proprietários. Os gráficos na sequência mostram a expressividade dos latifúndios em relação à área ocupada pelos mesmos. Do total de propriedades rurais, apenas 1% possui mais de 1000 hectares, porém esta mesma parcela ocupa quase a metade do território nacional: 45% do total. 22
Figura 2: Porcentagem de propriedades rurais por área no Brasil. Fonte: Elaborado pela autora a partir de MORISSAWA (2001).
O estabelecimento da República pouco alterou esta condição. Ainda de acordo com Avritzer (2008), a instauração da República no Brasil, em 1889, envolveu um pacto por um federalismo oligárquico, onde o campo continuou a se desenvolver através da ocupação por grandes proprietários de terra, com títulos de origem duvidosa. Segundo o autor, a subordinação das condições de vida no campo à cidade foi ainda amparada pela limitação ao sufrágio pela Constituição de 1891, que oficializou a segmentação de direitos entre o campo 23
e a cidade. Esta condição ainda perpetuaria pelas décadas seguintes da história do país. Por exemplo, as conquistas de direitos trabalhistas nas Constituições Varguistas de 1934 e 1937 (jornada de 48 horas, aposentadoria, entre outras) se aplicavam inicialmente apenas aos trabalhadores urbanos. Segundo Avritzer (2008, p. 158): “tivemos no Brasil uma estrutura de direitos duplamente segmentada: segmentada entre os trabalhadores urbanos de acordo com o reconhecimento da profissão pelo Estado, e segmentada entre os trabalhadores urbanos com direitos e os trabalhadores rurais sem direitos”. Em outras palavras, a subordinação do campo à cidade e a consequente produção de pobreza e desigualdade social no campo está relacionada não apenas às estruturas agrárias e aos modelos de ocupação de terras, mas também ao impedimento do exercício do que o autor denomina como cidadania no campo. Ou seja, por não ocupar o espaço da cidade, o camponês é desvinculado da condição de cidadão e torna-se invisível aos olhos do Estado, que deveria gerir todo o território nacional. Os conflitos por terra aumentaram ainda mais durante o período ditatorial (STEDILE et al, 1993). A pauta da reforma agrária, por representar uma possibilidade de redistribuição das terras brasileiras e a consequente redução de poder da mão dos grandes latifundiários, foi severamente combatida pelo regime militar. Na época, como aponta Morissawa (2001), as principais lideranças dos movimentos do campo foram presas ou exiladas, e todas as organizações de trabalhadores rurais foram fechadas. Além disso, os sindicatos que não foram fechados pelo regime tiveram de alterar completamente seus métodos e objetivos, assumindo um caráter assistencialista e burocrático especialmente a partir da criação do Funrural1. Ainda, de acordo 1 Criado pelo presidente-general Médici, o Funrural foi um “[...] órgão de previdência voltado para o campo, e deu aos sindicatos a responsabilidade pelas suas atividades burocráticas” (MORISSAWA, 2001, p. 95). Isto significou, segundo o autor, uma mudança na forma de atuação dos sindicatos, que perderam, naquela época, seu importante papel como forma de auto-organização dos trabalhadores 24
com Silva (1980), o chamado período do milagre econômico de 1967 a 1973 nada mais fez do que beneficiar uma minoria privilegiada através do aumento dos chamados produtos de exportação (como o café, soja, etc) em detrimento dos chamados produtos alimentícios (como o feijão, o arroz, etc). E, entre os que tinham sido penalizados, estavam os trabalhadores em geral, e, de modo particular, os trabalhadores rurais: [...] essa expansão destruiu outros milhares de pequenas unidades de produção, onde o trabalhador rural obtinha não apenas parte de sua própria alimentação, como também alguns produtos que vendia nas cidades. Foi essa mesma expansão que transformou o colono em boia-fria, que agravou os conflitos entre grileiros e posseiros, fazendeiros e índios, e que concentrou ainda mais a propriedade da terra. (SILVA, 1980, p. 12)
Uma tentativa institucional de alteração desta condição só viria a acontecer com a reabertura do regime e a Constituição de 1988 que estabelece a Reforma Agrária enquanto política de diretriz nacional, bem como a desapropriação de imóveis rurais que não cumprem sua função social. Em realidade, o debate acerca da Reforma Agrária aparece aqui, assim como em muitos países, após a Segunda Guerra Mundial com o intuito de rever a questão da terra e a situação da população residente no campo, a princípio de maneira embrionária e conservadora (ROCHA, 2013). No entanto, deve-se destacar as particularidades da questão agrária no Brasil e em países da América Latina em comparação aos países europeus, uma vez que segundo Rocha (2013, p. 28) “[...] as teorias ocidentais referentes à conceitualização da Reforma Agrária eram, em sua grande maioria, fundamentadas em noções tecnocráticas de mudança ou em ideologias das nações industrializadas, capitalistas ou socialistas”. Nesse sentido, o autor analisa em sua dissertação de mestrado os diferentes territórios produzidos pelas distintas rurais para dar lugar a uma atuação burocrática em função das necessidades do próprio Funrural. 25
reformas agrárias no Brasil. Baseia-se em Garcia (1973) e divide os processos de Reforma Agrária ocorridos na América Latina em três grandes categorias: A primeira tratou da Reforma Agrária Estrutural, baseada num processo reformista revolucionário, liderado por novas forças sociais e fundamentada na modificação radical das relações de poder de uma determinada sociedade e nas normas institucionais que as sustentavam. A segunda categoria diz respeito à Reforma Agrária Convencional, apoiada em uma operação negociada entre antigas e novas forças sociais, que visa modificar o funcionamento da estrutura agrária sem grandes mudanças nas normas institucionais da sociedade tradicional. A terceira categoria abordou a Reforma Agrária Marginal ou Contra-Reforma Agrária, que pretende manter o monopólio sobre a terra ou sobre as estruturas fundiárias, promovendo uma reparação superficial, desviando a pressão dos movimentos socioterritoriais de luta pela terra. (ROCHA, 2013, p. 29)
O autor utiliza momentos distintos da história do país para exemplificar cada categoria apontada por Garcia. Assim, enquadra a Reforma Agrária implementada durante a ditadura militar na terceira categoria - Contra-Reforma Agrária, pois (ROCHA, 2013, p. 30) “[...] além de marginalizar os camponeses que lutavam por terra, criando projetos de colonização em áreas deficientes em infra-estruturas e equipamentos públicos, os militares utilizaram de violência para coibir a organização camponesa, ao mesmo tempo que fortaleciam o território capitalista no campo”. A segunda categoria - a Reforma Agrária Conservadora - pode ser ilustrada durante os governos de Sarney e Lula que, apesar de buscarem atender às reivindicações dos camponeses através do diálogo com os movimentos sociais, (ROCHA, 2013, p. 30) “[...] como as forças em ambos os governos era contrária a alterações profundas nas estruturas que mantêm o status quo, [...] ficaram aquém das metas estabelecidas”. O autor 26
destaca como ponto principal para a não efetivação de tais metas (ROCHA, 2013, p. 31) “a estreita ligação dos interesses econômicos e políticos com os interesses agrários”. Tal postura institui o que o jornalista Alceu Luís Castilho (2012, apud ROCHA, 2013, p. 31) define como “Partido da terra, que visa garantir os interesses e consolidar a hegemonia do agronegócio e de setores conservadores do campo brasileiro”. Na contra-mão das duas categorias exemplificadas sucintamente acima estaria a Reforma Agrária Estrutural, buscada por movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Criado por volta da década de 1980 com o intuito de recolocar a Reforma Agrária na pauta política do país, o MST sempre teve como base a luta contra as relações capitalistas no campo: [...] em seu desenvolvimento, o MST sempre teve como referências estes princípios: lutar contra o capital na construção de uma sociedade sem exploração; lutar pela terra e pela reforma agrária, para que a terra esteja sempre a serviço de toda a sociedade; lutar pela dignidade humana, por meio da justa distribuição da terra e das riquezas produzidas pelo trabalho; lutar sempre pela justiça com base nos direitos humanos; lutar contra todas as formas de dominação e procurar em todo tempo e lugar a participação igualitária da mulher (FERNANDES, 1999, p. 77, apud ROCHA, 2013, p. 38).
Para além da luta pela terra e pela reestruturação fundiária no Brasil o MST luta, portanto, pela conquista dos direitos no campo e pela reversão da condição de subordinação do campo - ou melhor, dos camponeses e trabalhadores rurais, à cidade. Para sintetizar, como bem aponta Lopes (2015, p. 59, grifo da autora): [...] os sem terra disputam essa territorialidade estabelecida pelos estatutos legais que também conformam as condições da vida civil nas cidades brasileiras e que, portanto, conformam ainda os 27
mecanismos de ordenação social que condenam a “descartáveis “ aqueles considerados “incapazes” de inserção no mercado urbanizado e globalizado de nossos dias. [...] a possibilidade de imaginar, como sujeitos políticos que falam - ou que resgatam a possibilidade de fala -, uma cidadania no campo ou, como dizemos, uma cidadania sem cidade. Trata-se, portanto, do próprio campo pensando a si mesmo em direção a uma urbanidade que se propõe transformada.
O processo de industrialização pelo qual o Brasil passou, especialmente no século XX, levou à expansão dos núcleos urbanos e a consequente transferência e concentração de serviços e riquezas para o espaço das cidades. A dificuldade em se obter melhores condições de vida no campo, o desemprego gerado pela modernização da agricultura e a esperança de uma vida melhor nas cidades levou muitas pessoas a abandonarem o campo em busca de uma vida melhor - processo largamente conhecido enquanto êxodo rural. As consequências deste processo foram e ainda são sentidas em ambos os espaços, tanto pelo aumento expressivo da população nas cidades quanto pela manutenção das condições de pobreza no campo. Entretanto, apesar da expansão das cidades em termos dessa urbanização extensiva (MONTE-MÓR, 1994) do território, pautada pelo avanço do sistema capitalista que em teoria tende a apagar as diferenças sócio-espaciais entre o campo e a cidade, podese dizer que em vários aspectos a divisão entre ambos ainda permanece muito marcada, especialmente pela dificuldade dos trabalhadores rurais e pequenos proprietários de terra em conquistarem a chamada cidadania no campo. A discussão entre o que é urbano ou rural, do ponto de vista teórico, é extensa e não será aprofundada aqui. Neste momento, interessa entender que, no campo, “o desenvolvimento das relações de produção capitalistas [...] se faz industrializando a própria agricultura” (SILVA, 1980, p. 14), e que esse desenvolvimento tem se mostrado na maioria das vezes prejudicial aos pequenos proprietários de terra e trabalhadores rurais. Nesse sentido, se 28
cada vez mais os espaços do campo e da cidade se conectam territorialmente, uma importante pergunta se impõe: Caberia ainda insistir no argumento de uma Reforma Agrária exclusivamente defendida pela lógica da produção do alimento, como condição irredutível para a erradicação da miséria? Isto é, bastaria repartir a terra, plantar mais, colher mais e alimentar mais para que se desfizessem os alicerces de uma estrutura social injusta e espoliatória? (LOPES, 2015, p. 74)
É talvez a partir dessa percepção que o MST vem alterando sua frente de luta em torno de uma reforma agrária popular a partir de bandeiras como a agroecologia, a produção de alimentos saudáveis, o acesso à cultura, a democratização dos meios de comunicação, a participação efetiva das mulheres enfim, em uma tentativa de modificar a lógica de produção e as condições da vida no campo e construir uma relação menos dicotômica entre o esse e a cidade, de forma que as trabalhadoras e os trabalhadores rurais consigam romper com a lógica de superexploração capitalista a qual estão submetidos. Na sequência, tentarei me deter um pouco mais sobre estas novas frentes de luta, e buscar compreender de que forma elas representam um modelo contra-hegemônico para o campo no Brasil.
Figura 3: Dona Lourdes e família em frente a sua casa. Fotos: Acervo da disciplina UNI009, 2019.
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Figura 4: Arranjo e mística preparados por integrantes do Movimento para o Seminário de Reestruturação Produtiva, no Ho Chi Minh. Fotos: Joyce Fonseca, 2019.
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2.2 A CONSTRUÇÃO DE UM PARADIGMA CONTRA-HEGEMÔNICO Uma terra que é doente, adoece o trabalhador. (Seu Toninho, 2019)
O processo de desenvolvimento territorial do campo, quando não atrelado a uma reestruturação fundiária e democratização dos meios de produção e circulação das mercadorias para os centros de consumo, como aponta Lopes (2015, p. 75) “nada mais faz que contribuir para a constituição de imensos contingentes de miseráveis que permanecem vagando pelo campo ou, em sua maioria, acabam migrando para as cidades – acarretando resultados bastante conhecidos.” Em suma, para a alteração estrutural das condições de vida no campo no Brasil, parece necessária uma abordagem que não propicie a manutenção da dominação capitalista e a transformação do campo em território do agronegócio. Sob esta perspectiva, uma verdadeira reforma agrária deveria, antes de tudo, ser pensada a partir de uma conjunção de saberes transdisciplinares que representem um esforço em se pensar o campo para além de reforçar a dicotomia entre o mesmo e a cidade. Pensar um novo projeto de existência no campo significaria, de acordo com Lopes (2015, p. 71) [...] estender novos territórios para a reinvenção de práticas, para a instituição de novos ofícios, para a criação de alternativas para os processos produtivos tradicionais, para a constituição de uma nova sociabilidade, etc. Significaria alçar propostas também no campo da vida coletiva, do lazer e da cultura, da saúde e da educação, do conhecimento e da tecnologia, da possibilidade de uma existência no campo sem abdicar de todos os benefícios que a urbanidade conquistou ao longo de séculos. Significaria imaginar possível uma 31
“pólis” reinventada, onde sua “ágora” se estendesse para além do restrito território das cidades. Significaria reafirmar a “vontade de permanecer no campo, inventando uma perspectiva, à primeira vista bizarra, de construção de uma cidadania sem cidade.
Nesse sentido, a partir do final da década de 1990, o MST começa a incorporar às suas pautas e lutas políticas o tema da proteção do meio ambiente, por entendê-la como essencial na recuperação dos territórios degradados pelo desenvolvimento das relações capitalistas no campo, principalmente a partir da Revolução Verde nos anos 1960-70, segundo Saquet (2017, p. 77) “um processo de mecanização da agricultura e intensificação do uso de insumos químicos”. Na cartilha do MST de 2014 “Como construir uma Reforma Agrária Popular em nossos assentamentos”, o Movimento apresenta como missão principal: 1 - Produzir alimentos saudáveis, de forma massiva, para atender às necessidades de todo o povo brasileiro! 2 - Recuperar e cuidar dos bens naturais, como a terra, sementes, biodiversidade, água, matas e as florestas, que estão sob o nosso controle.
Figura 5: Feijão orgânico produzido no Ho Chi Minh. Foto: Acervo da disciplina UNI009, 2019.
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Através de práticas agroecológicas, da cooperação agrícola, da produção de alimentos saudáveis, da reprodução de sementes crioulas, enfim, de práticas consideradas contrahegemônicas por serem, segundo Saquet (2017, p. 26) opostas ao “[...] movimento de expansão da agricultura industrial, do agronegócio, da produção e comercialização em larga escala”, o MST busca romper com a lógica de transformação do campo em território da exploração capitalista. Em relação especificamente ao tema da Agroecologia, a mesma cartilha aponta como principais objetivos: a) Viabilizar a mudança de matriz tecnológica de produção de alimentos nos assentamentos. b) Criar as condições para produção em escala de insumos agroecológicos, possibilitando a transição agroecológica da produção das famílias nos assentamentos. c) Alterar a visão de mundo das famílias camponesas na medida em que se estabeleça novas relações sociais de produção com base no respeito à vida. (MST, 2014, p. 11)
Ainda, a partir do atual contexto político brasileiro, o novo governo que se instala no país demonstra claros indícios de redução - ou mesmo extinção - das políticas públicas destinadas aos assentados da Reforma Agrária, bem como corte de relação e diálogo com os movimentos sociais. Sob esta perspectiva, a construção de um paradigma contrahegemônico envolve também a luta pela reorganização interna e busca por desenvolvimento territorial com maior autonomia1 em relação ao Estado, naquilo que o movimento tem chamado de resistência ativa. Como pontuou um dos integrantes da coordenação estadual do Movimento em um 1 Autonomia, aqui, poderia ser definida nos moldes de Governa (2005, p. 58-59) como “[...] capacidade do nível local de se relacionar autonomamente com o exterior; de definir processos de auto-organização e auto-regulação, controlando, respondendo e redefinindo endogenamente”. 33
seminário realizado no Ho Chi Minh neste ano de 2019, que a luta pelas políticas públicas enquanto direito não seja deixada de lado, mas que se some a ela uma leitura crítica dos processos realizados, da conjuntura política, das potencialidades e dos desafios no contexto atual, bem como a busca por novas redes e parcerias. Como disseram no mesmo seminário: “não está distante de nois se organizar!”. E a organização e constituição de redes de solidariedade e cooperação é condição essencial para a construção de um projeto que seja de fato emancipatório. Esse olhar para dentro deve buscar romper com a lógica do capitalismo eurocentrado e colonial (QUIJANO, 2000) e buscar, de acordo com Saquet (2017, p. 29, grifo do original): [...] a ancoragem territorial, [...] juntamente com as relações de pertencimento, proximidade, reciprocidade e confiança, também são fundamentais. Nesse sentido, o território corresponde a um objeto de valorização por diversas formas de ação coletiva ancoradas geograficamente. [...] A ancoragem, os vínculos, o enraizamento, a proximidade, a identidade, o acoplamento e a conexão podem favorecer a organização e a luta política, portanto, uma práxis precisa considerar o sentido de pertencimento a uma classe social e a um lugar [...], num movimento contrário à reprodução ampliada do capital e à degradação ambiental, e em favor do manejo ecológico na produção agropecuária, da valorização dos conhecimentos populares, das culturas historicamente construídas etc, ou seja, num movimento de resistência à mundialização (LEVY, 2003), e num processo decisório realizado COM os sujeitos dos lugares e dos territórios, que também produzem conhecimentos, técnicas, tecnologias, comidas, saberes, cooperações, parcerias, etc.
Assim, muito mais do que a produção de alimentos saudáveis para abastecer a cidade, o processo de construção deste modelo contra-hegemônico deve envolver o desenvolvimento do que Saquet (2017) denomina como consciência de lugar, ou seja, a criação de vínculos com o lugar que se ocupa, a reprodução do lugar como espaço de convivência, de cooperação e 34
estabelecimento de relações comunitárias, contrário à lógica hegemônica do agronegócio. Essa consciência de lugar precisa ser desenvolvida no território, construída pelos próprios sujeitos que o constituem, em busca de práticas que os permitam não só imaginar, como viver e construir relações não-exploratórias em seu cotidiano. Pensar em um modelo contra-hegemônico deve, portanto, possibilitar a ampliação do imaginário acerca do campo no Brasil, a partir do contexto brasileiro, com todas as suas particularidades e desafios, e buscar neste contexto alternativas para a criação de uma nova relação entre os espaços do campo e da cidade. Figura 6: Seu João. Foto: André Siqueira, 2019.
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3. PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES AO TERRITÓRIO 36
3.1 O MST E CONFLITOS NA RMBH Segundo o site do MST, a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) conta hoje com 5 assentamentos e 3 acampamentos, que juntos compõe a Regional Metropolitana de Produção do Movimento. Sabe-se que o Acampamento 2 de Julho é o mais antigo - sendo conhecido, talvez por isto, como assentamento, apesar das 50 famílias que ocupam o local ainda não possuírem o Contrato de Concessão de Uso (CCU) sobre a terra1. De acordo com dados do INCRA (2019), os assentamentos Resistência, Ho Chi minh e João Pedro Teixeira somam, ao todo, aproximadamente 1380 hectares e cerca de 80 famílias assentadas. O quinto assentamento, conhecido como Ismene Mendes, não foi encontrado na lista de assentamentos do INCRA. Com relação aos acampamentos, sabe-se que são eles: Maria da Conceição, localizado em Itatiaiuçu; Pátria Livre e Zequinha, localizados em São Joaquim de Bicas, nas terras das fazendas improdutivas de Eike Batista. No entanto, não foram encontradas outras informações sobre os mesmos no site do INCRA. O mapa a seguir traz alguns dados sobre os 4 assentamentos existentes na RMBH e sobre o acampamento 2 de Julho. A escolha destes 5 refere-se à intenção da Regional Metropolitana do Setor de Produção do MST de realizar um levantamento e a reestruturação produtiva destes territórios. Voltarei a este assunto ao final do trabalho, quando falarei sobre os processos em curso no Ho Chi Minh. Por ora, pode-se construir uma noção da localização destes assentamentos entre si e em relação à metrópole. 1 Ver matéria em http://gilvander.org.br/site/mst-pre-assentamento-doisde-julho-13-anos-de-luta-e-resistencia/. Acesso em 08/06/2019. 37
Com mais de 5 milhões de habitantes, a RMBH caracterizase como uma região dotada de conflitos socioambientais2, pautados, entre outros motivos, pela presença de expressiva atividade minerária3, pela contaminação das águas devido à utilização de insumos químicos na agricultura, enfim, por uma série de disputas e conflitos relativos aos diversos usos do solo e dos recursos naturais existentes nestes territórios. Nesses contextos críticos, a presença do movimento social organizado faz-se ainda mais importante. Ao meu ver, no caso do MST essa importância é ressaltada pela possibilidade oferecida de se pensar outros tipos de usos e ocupações para estas áreas, menos predatórios e que ofereçam maior possibilidade de controle e justiça social para as populações locais, bem como a possibilidade de reestruturação ambiental das áreas destruídas ou passíveis de destruição pelas atividades minerárias e pela agricultura convencional. No mapa de conflitos socioambientais elaborado pelo Gesta, grupo de pesquisa da UFMG, pode-se identificar em amarelo um ponto no município de Nova União, descrito como “Contaminação do Rio Preto por agrotóxico no Assentamento Ho Chi Minh (MST)”4. Segundo tal fonte, depois das chuvas do início de 2008 houve uma grande mortandade de peixes e os moradores associaram este episódio ao fato de a maioria dos bananicultores da região - que juntos totalizam cerca de 1100 hectares de produção de bananas - utilizarem agrotóxicos em suas plantações. Os demais conflitos variam quanto à natureza 2 Ver https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/observatorio-de-conflitosambientais/mapa-dos-conflitos-ambientais/. Acesso em 08/06/2019. 3 O rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho em janeiro deste ano afetou dois acampamentos do MST e é apenas um dos exemplos dos conflitos na região. Ver reportagem: http://www.mst.org.br/2019/01/31/ em-mg-acampamentos-do-mst-sao-afetados-pelo-rompimento-da-barragem-debrumadinho.html. Acesso em 08/06/2019. 4 Ver matéria completa no link: https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/ conflito/?id=200. Acesso em 29/10/2019. 38
Figura 7 - Assentamentos do MST na RMBH. Elaborado por Raul Lemos e Iara Pezzuti, 2019.
Figura 8 - Mapa dos conflitos socioambientais na RMBH. Fonte: GESTA, 2019
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Figura 9 - Região do Ho Chi Minh. Destaque para a degradação do solo local. Foo: Iara Pezzuti, 2019.
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Figura 10 - Produção de banana no Ho Chi Minh. Fonte: Acervo da disciplina UNI009, 2019.
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e ao tipo, mas grande parte deles relaciona-se também à contaminação das águas, seja pelo uso de agrotóxicos, seja pela destinação indevida de esgotos ou por atividades minerárias, de forma que o abastecimento de água da RMBH torna-se uma questão central para o planejamento a nível metropolitano.
3.2 ENTRE A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E A MONOCULTURA DA BANANA O Assentamento Ho Chi Minh está localizado dentro dos limites do município de Nova União, na RMBH. De acordo com o Plano Diretor de Nova União (2018), [...] o município se insere na dinâmica metropolitana de produção agropecuária e tem essa atividade como principal atividade econômica municipal. No entanto, a atividade agropecuária também vem sendo identificada como um conflito ambiental devido ao uso de produtos químicos na produção. Cabe destacar também o potencial turístico do município ligado principalmente ao ecoturismo aproveitando-se da potencialidade do patrimônio ambiental do município.
De acordo com o Macrozoneamento da RMBH (UFMG, 2014), o município de Nova União enquadra-se, junto a Taquaraçu de Minas, parte do município de Caeté e de Jaboticatubas, em uma Zona de Interesse Ambiental, a ZIM Taquaraçu. Segundo este zoneamento, a ZIM Taquaraçu caracteriza-se como: [...] correspondente à bacia de captação do Rio Taquaraçu para o futuro abastecimento de água da região metropolitana segundo planejamento da COPASA, que orienta-se pelo interesse metropolitano de proteção dos mananciais, fomento à agroecologia, ao ecoturismo e consolidação de um modelo de ocupação territorial 43
de baixo impacto, apresentando como principais Funções Públicas de Interesse Comum a proteção e gestão de recursos naturais, com adoção de padrões compatíveis de uso e ocupação do solo e desenvolvimento socioeconômico, através de fomento de atividades sustentáveis e emprego de técnicas conservacionistas.
Fica evidente a importância ambiental da região no sentido de recarga das águas e pela presença das diversas nascentes nesse território. Apesar da intenção de promover a proteção dos mananciais através de um zoneamento específico, a região do Vale do Rio Preto - principal rio que corta o assentamento Ho Chi Minh e integrante da bacia do Rio Taquaraçu, é conhecida hoje como Vale das Bananas justamente pela expressividade da produção de bananas no âmbito da RMBH e também no estado de Minas Gerais. A reprodução de tal monocultura engendra práticas ecologicamente incorretas, caracterizadas pelo uso de defensivos agrícolas e produtos químicos para correção dos solos, entre outros. Além disso, a prática da monocultura da banana implica, como aponta a ASPRA (2018) “[...] na criação de dependência socioeconômica da região, na desvalorização da mão de obra local, na concentração da riqueza em poucos e grandes produtores e atravessadores que controlam a cadeia produtiva de modo a estrangular os pequenos produtores”. Apesar disto, a produção da banana confere um tipo de característica especial, uma particularidade da região refletida pela presença de festas típicas - a tradicional Festa da Banana de Nova União, indústrias locais de beneficiamento etc. Essa identidade, no entanto, parece ainda beneficiar mais os grandes produtores, capazes de produzir e comercializar em larga escala, enquanto os pequenos agricultores continuam na mão de atravessadores para escoar sua produção, literalmente, a preço de banana. Desta forma, tem-se uma dupla condição: uma atividade que, como foi apontado, apresenta problemas relativos à 44
conservação ambiental e que, ao mesmo tempo, confere um tipo de identidade ao território, identidade esta que parece servir mais para a reprodução de um modelo hegemônico de produção através da monocultura, do que se converter em benefícios para os pequenos agricultores. Por outro lado, a característica ambiental da região, a exuberância de rios, serras, possíveis trilhas ecológicas, enfim, atividades compatíveis com a preservação ambiental não são estimuladas pelo poder público, tampouco apropriadas pela população como forma de geração de renda, mas representam grande potencial para o desenvolvimento territorial local (SAQUET, 2017).
Figura 11: Macrozoneamento metropolitano Fonte: Revisão dos Planos Diretores, 2018.
Figura 12: Mapa da RMBH, com destaque para o município de Nova União.
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Elaborado pela autora, 2018.
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Figura 13: Vista aĂŠrea do Ho Chi Minh, realizada por drone.
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Foto: Eduardo Gontijo, 2018
4. O ASSENTAMENTO HO CHI MINH 48
4.1 O PERCURSO DE UMA ESCRITA A escrita deste capítulo é resultado do contato com alguns dos diversos atores envolvidos no processo de implantação de um assentamento da Reforma Agrária: famílias, lideranças do Movimento, representantes do Estado, técnicos etc. Este contato - algumas vezes formal e em muitas outras nem tanto, permitiu que eu pudesse construir uma visão um pouco mais ampliada, no tempo e no espaço, do processo de assentamento do Ho Chi Minh. Dessa forma, mais do que um relato ou uma pesquisa descritiva, trarei ao longo do texto críticas que partem de uma interpretação minha de alguns acontecimentos e que não são, necessariamente, compartilhadas por todos os envolvidos no processo, nem pretendem representar uma verdade única e absoluta sobre como ele se deu. No entanto, acredito que tais reflexões podem ser úteis para despertar alguns questionamentos, especialmente relativos às relações de cooperação, solidariedade, competição e disputas dentro do assentamento durante seu processo de consolidação. Com relação às famílias, foram realizadas entrevistas e também almoços, reuniões e festas que me permitiram uma maior aproximação a alguns dos assentados e, como diria Comerford (2003, p. 18) “em certo sentido, eu passei da sala para a cozinha [...] em outras palavras, a minha presença ali abriria (como de fato abriu) uma perspectiva de uma relação de amizade, confiança e proximidade”. Foi a partir desta relação que Dona Das Dores e Seu Liu me receberam em sua casa para contar sobre o processo de ocupação e consolidação do Ho Chi Minh. Trarei, ao longo do texto, algumas falas de ambos no sentido de elucidar este processo, consciente de que podem representar apenas uma versão da história e que esta, por sua vez, não seja compartilhada da mesma forma por outras famílias. No entanto, 49
foi através desta entrevista bem como de outras conversas com outras pessoas, não transcritas aqui, que construí tais reflexões. Do ponto de vista técnico e institucional, entrevistei algumas pessoas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e da CAIXA5, mas trouxe para este texto apenas citações diretas de minha entrevista com Rogério, funcionário do INCRA. Esta escolha se deu por entender que ele tratou de forma mais ampla a questão das políticas públicas, enquanto as outras entrevistas acabaram sendo mais voltadas para os programas habitacionais, os quais acabei não concentrando muito foco neste trabalho, mas que certamente poderão ser de grande utilidade em outra ocasião. Além destas duas entrevistas e das conversas espontâneas com outros assentados em diversas situações, participei de um Seminário do Setor de Produção do MST em Minas Gerais, realizado no Ho Chi Minh em abril deste ano, onde tive contato mais intenso com algumas lideranças estaduais e outros integrantes do Movimento e de outros assentamentos. Espero, através do cruzamento de todas essas conversas, pontos de vista, trabalho de campo e pesquisa, contribuir para uma leitura mais ampliada e crítica sobre a situação do Assentamento frente aos novos desafios que estão por vir.
5 A CAIXA é uma das entidades financiadoras do Programa Minha Casa Minha Vida Rural. 50
Figura 14: Seu AdĂŁo em sua cozinha durante entrevista. Foto: Alice Almada, 2018
Figura 15: Dona Das Dores e Seu Liu em sua sala durante entrevista. Foto: Joyce Fonseca, 2019.
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Figura 16: Imagem aĂŠrea da regiĂŁo do Ho Chi Minh. Destaque para o Rio Preto, principal rio que corta o Assentamento. Fonte: Google Earth, 2019.
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4.2 O PROCESSO DE OCUPAÇÃO O Assentamento Ho Chi Minh foi criado em 2005 a partir da aquisição do terreno da antiga Fazenda Belo Horizonte pelo INCRA, considerada como grande latifúndio improdutivo a partir dos parâmetros estabelecidos pela lei1. Sua área total é de aproximadamente 784 hectares, o que inclui a área de estradas de uso comum, área comunitária, áreas de Reserva Legal e 37 lotes. As terras adquiridas pelo INCRA destinam-se muitas vezes à instalação de famílias que, após a ocupação e despejo em outros lugares, são indicadas pelo Movimento para finalmente conquistar sua parcela de terra com certa segurança de posse e de permanência no local mediante um Contrato de Concessão de Uso (CCU)2. A conquista da terra sempre vem após longos períodos de luta e resistência coletiva. Como aponta Morissawa (2001, p. 226), a principal característica de um assentamento do MST está no fato de ele ter sido resultado de longos meses de lutas, com os acampamentos no campo de na cidade, as marchas, os atos públicos, a repressão… Nessa trajetória, os fatores fundamentais de êxito foram a união, a solidariedade, a resistência e a cooperação.
No caso particular do Ho Chi Minh, muitas famílias já se conheciam de outros acampamentos - em especial do acampamento 2 de Julho, próximo à cidade de Betim, onde 1
Estatuto da Terra - Lei nº 4504/64.
2 Os beneficiados assinam com a autarquia - no caso, o INCRA, o Contrato de Concessão de Uso (CCU), documento que dá direito ao assentado de morar e explorar a parcela pelo tempo que ele desejar e de receber sua posse, se cumpridas todas as exigências constantes na legislação. 53
aguardavam juntas a liberação de terra onde pudessem se fixar em definitivo. Grande parte destas famílias aderiram ao movimento a partir do trabalho das chamadas frentes de massa, setor que, como diz Fernandes (1996) apud Morissawa (2001, p. 205), “faz a travessia das pessoas de fora para dentro do MST”. A partir do trabalho das frentes de massa e do setor de formação as famílias se integram aos poucos ao Movimento, que as possibilita “[...] uma formação sociopolítica da qual os trabalhadores em geral sempre foram privados” (MORISSAWA, 2001, p. 205). Dona Das Dores e seu companheiro Seu Liu, moradores do Assentamento Ho Chi Minh, já haviam passado por dois acampamentos diferentes antes de irem para o 2 de Julho. Em entrevista3, Das Dores conta como sua família entrou para o movimento em 2003, quando ela foi com a filha para o acampamento Santa Helena, próximo ao município de Juatuba: Nós morava em Betim, aí [...] chegou uma dona lá pra mim e falou assim: cês conhece um movimento que tem que eles passa terra pra gente [...], libera terra pra prantar e tudo? Eu falei: ah nunca ouvi falar. E eu nunca tinha ouvido falar mesmo! Aí depois [...] ela marcou reunião. “Ah tem reunião marcada no outro bairro”. Aí eu fui, ele nem tava em casa. [...] cheguei lá e eles conversaram, aí na outra próxima ele foi. Aí a gente gostou da ideia né, porque morar ni cidade é diferente que ni roça né? [...] Aí a gente pegou e foi participar das reunião mesmo, e aí a gente acabou ndo pra terra mesmo né. Fomo primeiro lá [...] pra uma tal de Santa Helena que chama, um acampamento primeiro que saiu, Santa Helena…
Das Dores criou as duas filhas sozinha nos acampamentos enquanto Seu Liu trabalhava na cidade, uma vez que garantir a sobrevivência da família exclusivamente através da agricultura era muito difícil no momento inicial de ocupação, primeiro 3 Entrevista concedida à Iara Pezzuti no dia 07/04/2019, realizada na casa de Dona Das Dores e Seu Liu. 54
pela impossibilidade de acesso às políticas públicas na condição de acampados4; segundo, pela insegurança de posse, uma vez que o acampamento poderia ou não ser legitimado, e os assentados corriam então o risco de terem que deixar para trás toda plantação e o investimento que fizessem no local onde se encontravam provisoriamente. Das Dores relembra os tempos de fome entre companheiras e companheiros: Ô gente.. eu cansei de ir ni Juatuba a pé buscar verdura velha pras familia la. Nois ia a pé. Porque ô gente, mesmo que não tava faltando pra mim, mas pra mim TAVA faltando pra mim. Porque tava faltando pro próximo, aí nó, eu ficava chateada sabe? Aí eu passava a mão ni carrinho, ia e buscava pra eles. Aí chegava eles tava comendo até.. (risos) brotinho de assa peixe frito gente! Tinha dia que nem gordura direito tinha. Eles punha água naquela coisa e comia.
As dificuldades iniciais e a ausência do Estado no suporte às famílias impunham ainda mais o fortalecimento dos vínculos e as práticas de cooperação entre os sem-terra. A luta deste período é formada e formadora da consciência de classe, sendo, como bem aponta Saquet (2017, p. 29), [...] um dos resultados possíveis a união dos trabalhadores, que também é condição da luta e da construção de uma consciência política transformadora, processo no qual a invenção é fundamental, bem como sua espacialização com regionalização e territorialização em redes sociais de mobilização, cooperação e solidariedade. 4 Para o acesso à maioria dos créditos governamentais, é necessário que o assentamento já esteja parcelado. Segundo a entrevista realizada com o Rogério (2019), funcionário do INCRA, sob a ótica institucional isto se justifica para que os investimentos feitos não sejam desperdiçados. Por exemplo, para que seja concedido o crédito de instalação, que possibilitaria a construção de cerca ou de infra-estruturas iniciais, é necessário que o assentado já saiba com precisão onde irá se instalar, para não acontecer de ele investir no terreno através do crédito e depois perder o investimento feito caso precise mudar de lote. Todavia, como o processo de parcelamento dos lotes é demorado, os assentados permanecem muito tempo sem conseguir acesso à qualquer crédito, o que impõe condições extremamente difíceis nos primeiros anos de ocupação. 55
Na sequência da entrevista, Das Dores conta como foi a saída do acampamento Santa Helena para o acampamento Samurá, na beira do Rio Paraopeba: [...] eu tive ela quando tava no Samurá e aquela luta né. Aquela eu deixava com os outros pra ir fazer alguma coisa na roça, aquela coisa toda... ô dificuldade! [...] Sem o companheiro em casa é difícil. E tudo passava de hora, tudo... Tudo, tudo... E aí foi ficando, ficando. Depois, de lá, que a gente foi… eles tava organizando essa [ocupação] aqui. Aí enquanto eles não resolveu essa, nós foi pra Fazenda 2 de Julho [...] porque eles já tava dando ordem de despejo na [ocupação] que nós tava. Aí deu ordem de despejo, nós teve que sair. Aí nós saimo [...] e fomos pro 2 de Julho emprestado uns dias, até essa sair. Aí quando resolveu aqui nois veio pra cá.
O relato enfatiza a dinamicidade do período de luta pela terra que antecede a fixação em um território. Ainda, o processo de consolidação dos chamados territórios da reforma agrária (ROCHA, 2013) é demorado e desgastante. O INCRA divide a etapa de consolidação em duas fases, A e B. A fase A deve durar até dois anos, e inclui os procedimentos de compra e regularização das terras, seleção dos beneficiários, realização de anteprojeto de assentamento, entre outros. Já a fase B deve durar até cinco anos, e inclui, de acordo com Rocha (2013, p. 27): [...] execução dos serviços topográficos; contratação de assistência técnica e elaboração do Plano de Desenvolvimento a partir do anteprojeto; implantação, crédito e infraestrutura; habitação; PRONERA - Programa Nacional de Educação para a Reforma Agrária; capacitação dos assentados; investimento produtivo; Terra sol; avaliação e consolidação.
Isso significa que, caso tudo ocorra como o planejado, o processo de assentamento dura pelo menos cerca de sete anos. O Ho Chi Minh seguiu aproximadamente este planejamento apesar de, até hoje, muitas famílias ainda possuírem dificuldade em relação a infraestruturas básicas como o acesso à água e 56
aos lotes. O processo inicial de ocupação das terras da antiga Fazenda Belo Horizonte aconteceu ao longo do ano de 2005. Seu Liu relembra os tempos de espera e as expectativas que antecederam a ida para o Ho Chi Minh: Liu: Aí eu peguei, conversei com ele que era pra ele buscar as coisas da gente lá na roça, lá no Samurá e vir embora, trazer pra cá [para a cidade]. Aí a Dona do Carmo... cês conhecem, Maria do Carmo, que tem o barzinho ali, falou: nãaao! Cê não vai embora não porque a gente ta indo lá pra Nova União, e lá já é definitivo. Aí demorou um pouquinho, porque aqui, pelo que a gente ficou sabendo, desde 2003 tava em processo, mas não poderia entrar porque tinha que ter autorização do juiz para entrar. Se a gente entrasse antes, parava o processo. Então tinha que esperar. [...] e a gente ficou no controle, que ia chegar um determinado tempo que a gente tinha que sair de lá. [...] Parece que a maioria chegou aqui foi julho, né? É, os primeiro foi em julho. Julho de 2005. E dezembro nós recebemos foi a carta de assentamento mesmo.... Das Dores: Eu lembro que tava frio… Liu: Foi isso memo. Diz que carrapato aqui era mato!
As famílias que chegavam eram alocadas e montavam acampamento nas imediações da Antiga Sede da fazenda, até que a piquetagem5 dos lotes fosse feita. Da chegada das famílias em 2005 até o sorteio definitivo dos lotes passaram-se 5 anos, sendo este realizado somente no ano de 2010. Como foi dito, esse período de luta e de resistência envolve a necessidade de cooperação e do fortalecimento da coletividade do grupo, de forma a enfrentarem juntos as condições mais adversas. Muitos assentados remetem aos períodos de acampamento como a época em que era todo mundo unido. Seu Liu conta que ele e sua família ficaram em barraca pelo menos um ano, até construírem, em 2006, um barraco provisório, de alvenaria, dentro dos limites de onde hoje encontra-se o lote da Dona Eva. 5 Piquetagem é a marcação no terreno das linhas e divisórias que representarão a divisão dos lotes propriamente ditos. 57
Uma primeira particularidade do Ho Chi Minh em comparação aos outros acampamentos pelos quais o casal passou é, portanto, a condição de que as famílias foram para a terra com certa segurança de que poderiam de fato se fixar ali, uma vez que o acordo foi feito previamente à ocupação do local pelo Movimento. Como bem descreve Lopes (2015, p. 62): Não se tratava mais do lugar da passagem, do efêmero, do tênue limite entre o precisar ir e o poder deixar-se ficar, o lugar do acúmulo de nada mais ter senão a companhia de quem também nada mais tem. Tratava-se de fincar as unhas naquele chão e construir, como quem constrói barricadas, o acúmulo de forças necessário para o enfrentamento dos dias que se seguiriam.
A segurança de posse não significa, é claro, que as famílias não enfrentaram medo e insegurança, uma vez que a ocupação de terras incide, como foi dito, sobre a estrutura agrária no Brasil, fator que abala sobretudo as classes dominantes e detentoras de grandes propriedades - os latifundiários. Em nível local, isto pode significar o conflito com latifundiários vizinhos e com os próprios moradores das cidades mais próximas, que não veem com bons olhos aquelas pessoas de fora. Além disso, as dificuldades em se instalar em uma terra desconhecida vão desde a ausência de infra-estrutura como estradas, captação de água e energia, ao desconhecimento do próprio clima e tipo de solo local, tornando a luta e a adaptação destas pessoas ainda mais dura – daí a alusão do autor às barricadas, de forma que o acúmulo de forças e as formas de cooperação mútua entre os assentados foram essenciais para a permanência das famílias, especialmente neste primeiro momento de ocupação do território. Uma segunda questão relativa à chamada segurança de posse relaciona-se ao estado de equilíbrio estabelecido a partir do momento em que o Movimento conquista a terra. A parceria 58
com o INCRA – que como diz Seu Liu (2019) “é aquela parceria, sabe, que precisa de boa vontade política (...), tem que ir lá, discutir e até brigar com eles, se puder”– e a garantia do acesso à terra instauram uma situação onde, diferentemente do período de acampamento provisório onde a pressão política e a mobilização popular são constantes e essenciais para que se consiga qualquer tipo de negociação, nos assentamentos são evitados enfrentamentos diretos do Movimento com os órgãos responsáveis, uma vez que finalmente a conquista da terra parece tão próxima. Assim, a demora em todo o processo burocrático de liberação da terra e realização do plano de assentamento, execução das obras de infra-estrutura (estrada, captação de água, eletricidade, entre outras), divisão dos lotes e etc, acaba por enfraquecer e minar aos poucos a mobilização popular e a coesão social existente no período inicial da ocupação. Este enfraquecimento do coletivo e da mobilização também se relaciona - pelo menos no caso do Ho Chi Minh, uma vez que existem outros modelos de parcelamento - ao modelo de divisão e individualização dos lotes, que demarcou a transformação da condição de acampamento para assentamento e, neste caso, promoveu a pulverização das famílias pelo território em lotes individuais.
Figura 17: Bandeira do MST na casa de um morador. Fonte: Acervo da disciplina UNI009, 2019.
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4.3 DO ACAMPAMENTO AO ASSENTAMENTO E AS RUPTURAS NA COLETIVIDADE Se por um lado a tão sonhada conquista de um lote e de uma terra definitiva para se plantar trouxe alegria e encheu de esperança as famílias, a divisão das famílias em lotes individuais reforçou valores individualistas que incidiram sobre a coletividade do grupo, ainda que resistam práticas de cooperação e vínculos entre as famílias. Como aponta Lopes (2015, p. 65): Quando [...] são distribuídos os lotes e firmados os contratos de assentamento com cada família – o que define sua condição de “assentada” -, ocorre um processo inverso de dispersão e aquela centralidade perde seu vigor e denota, como foi possível constatar neste caso, um certo enfraquecimento da coalizão inicialmente estabelecida em função da ordem pragmática demandada pela estratégia de ocupação.
No caso do Ho Chi Minh, a divisão dos lotes foi realizada através de sorteio, com possibilidade de trocas entre as famílias, pautadas pelas moradias que já haviam sido construídas ou mesmo por relações estabelecidas durante aquele período: Liu: A maioria depois foi pelo sorteio. As vezes aonde que ele tava, que ele queria ficar, ele nem poderia ficar. No caso, vamos supor, que se eu quisesse ficar naquele local lá embaixo, eu tinha que entrar em acordo com a Eva: quer trocar comigo de lote? [...] teve pessoa que trocou, igual a Dona Marilene, o lote era lá naquela menina, [...] Julia. Do outro lado. Mas como eles já tava alocado, já foi criado ali, então eles preferiu ficar lá. Até que pra menina de cá [Marilene] foi bom, porque a parte de terra de cá é melhor. Aí “uai, nós trocamo”, aí veio pra beira de estrada e ela ficou lá. E assim muitos foram trocando. 60
Das Dores: na época eles queriam que eu trocasse com o Everton, da Do Carmo. Pensando bem, se eu tivesse pensado, pensado, eu tinha trocado. Autora: Por que, é melhor lá? Das Dores: Tinha, lá é muito melhor. Tem água... lá é muito melhor.
Este momento do sorteio parece crucial para os anos que se seguiram, especialmente no que diz respeito à coesão social e à mobilização dentro do assentamento que venho tentando discutir. Para além da individualização decorrente do processo de divisão dos lotes em si, vale ressaltar que o
Figura 18: Mapa do Assentamento Ho Chi Minh com a divisão dos 37 lotes. Elaboração: Eduardo Gontijo, 2018.
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território em questão não se conforma como uma camada geográfica homogênea. Cada lote tem características – e desafios, especialmente em relação ao acesso aos lotes, à captação de água e às próprias condições do terreno – muito diferentes entre si. Desta forma, o conhecimento do território é condição indispensável para que as trocas sejam realizadas conscientemente, e também para que todos estejam cientes das dificuldades existentes para as outras famílias, de forma a fortalecer as práticas de cooperação e solidariedade e socializar os desafios a serem enfrentados coletivamente. No caso do Ho Chi Minh, ao conversar com as famílias, percebe-se ainda hoje dificuldades e conflitos decorrentes desta época do sorteio. Alguns reclamam de estarem muito longe das estradas principais, outros da dificuldade em se captar água, até o caso mais extremo de uma assentada que até hoje não conseguiu construir sua casa em seu lote definitivo devido a ausência de uma estrada para acessá-lo. Estas dificuldades, no entanto, não parecem ser totalmente socializadas entre as famílias. Ainda, com relação à época do sorteio, apesar de uns saberem e reproduzirem causos – no melhor jeito de comunicação das famílias camponesas –, não se sabe ao certo como foram as reuniões e como as famílias tomaram as decisões de trocarem ou não de lotes entre si. Houve participação consciente das famílias em todas as decisões? Como as lideranças da época lidaram com estes desafios? De qualquer maneira, parece claro que um modelo de propriedade coletiva, por exemplo, poderia potencializar muito mais a dimensão da coletividade – e, portanto, funcionar melhor no sentido de promover a mobilização popular necessária para o desenvolvimento territorial local. No entanto, o que quero ressaltar é que mesmo o modelo de individualização dos lotes poderia ser mais satisfatório caso a dimensão coletiva fosse fortalecida através da socialização das dificuldades, 62
de forma que as famílias pudessem discutir e pensar juntas formas de enfrentamento destas – coletivamente! Além disso, a individualização da produção e da comercialização, representada pela ausência de uma cooperativa no assentamento, acirra ainda mais os conflitos e as indisposições internas entre as famílias. As dificuldades em dar vazão à produção individual e a ausência de um transporte capaz de atender a todos igualitariamente impõe divisões e rupturas nas relações de cooperação. “Cada um no seu quadrado”, como diz Das Dores, e sem um mote coletivo no âmbito do trabalho e da produção, fica difícil estabelecer parcerias dentro do assentamento: Liu: [...] se cê voltar lá atrás, quando a gente tava lá em Samurá, lá nós era mais unido. Lá todo mundo tinha sua gleba de terra, todo mundo plantava, uns ajudava aos outros. Aí depois que nós viemo pra cá falou assim “assentou”, parece que o povo foi desligando. Das Dores: Cada um no seu quadrado… Liu: Cada um pegou sua área e falou “tá tranquilo”, mas não tá. Realmente não tá. Um vai pra um lado, outro vai pro outro. Portanto que a questão é que hoje nós somo mais trabalhar unido com gente que é de fora, que não é do assentamento, de que com os próprio daqui de dentro. Fazendo troca de serviço, ou diária. De que com os próprio daqui de dentro. Porque desvinculou a turma, um foi prum lado, outro foi pro outro, e ficou aquele negócio.
Um outro fator apontado pelas famílias como de extrema influência na confiança e na coesão social dentro do assentamento está relacionado aos projetos e promessas - não só do Movimento ou de políticos, mas de eventuais parceiros, como ONG’s ou empresas contratadas para assistência técnica nunca concretizados. Seu Liu resume com precisão esta questão: [...] A confiança dentro de um assentamento, ela ajuda muito. Mas aqui chega um ponto, que a desconfiança entrou no meio do povo. Sabe? Quando, vamos supor. Igual a sociedade. Ocê fala, faz sociedade com a pessoa, não importa quantas pessoas seja, se um da turma desconfiar de alguém dentro da sociedade a coisa 63
começa a atrapalhar. E se um afastar aí já começa a dar problema pra todos né. Então o povo assim, de tanto, vamos supor… Se você faz uma proposta pra uma pessoa, ela espera de você concretizar essa proposta. E você fica esperando a proposta concretizar. Então muitas pessoa já viu muitas proposta e já desanimou. E então aqui foi desconfiança no povo, e então a desunião estraga [...] o assentamento. E isso desvincula muito as pessoa, a pessoa não quer nem reunir mais. [...] Igual hoje nós temo a associação, já tamo tentando ir pra cooperativa regional. Quando você fala com a pessoa “vamo reunir, vamo sentar e fazer uma reunião pra discutir isso”, eles fala “não, eu não vou lá assistir blablabla não que eu tô cansado de blablabla”.
Nesta fala de Seu Liu também é possível identificar um ponto fundamental a ser desdobrado mais à frente no texto: o caráter assistencialista, como pressupõe o nome, dos serviços de assistência técnica no meio rural, que aparecem muitas vezes com projetos e propostas prontas, submetidos à existência de verba e diversas outras condicionantes externas para que sejam de fato executados. Seu Liu enfatiza com precisão a disruptura ocorrida à medida em que essas promessas não são concretizadas, e os efeitos disso na coletividade e na mobilização dentro do assentamento: “Eu tô cansado de blablabla”! Em resumo, até este momento quatro fatores parecem ter sido, em conjunto, responsáveis pelo enfraquecimento gradual da coletividade e da mobilização dentro do Ho Chi Minh desde a consolidação deste como assentamento: 1) dificuldade na socialização das informações sobre o território para que a divisão dos lotes possa ser feita de forma mais consciente, bem como dificuldade atual em socializar as questões individuais de cada assentado para que possam ser melhor discutidas (e quem sabe solucionadas) em coletivo; 2) ausência de uma cooperativa voltada para a produção ou comercialização coletiva dos produtos, de forma que o trabalho se mantém individualizado e à mercê de parcerias externas; 3) frequente 64
interrupção dos serviços de assistência técnica, que geram desconfiança e desânimo por parte dos assentados e dificultam o acesso às políticas públicas; 4) caráter assistencialista dos serviços, que criam dependência para acesso aos créditos e oferecem pouca autonomia aos assentados. Esta condição de desarticulação ocorrida ao longo do tempo incide diretamente sobre o desenvolvimento territorial local. De acordo com Saquet (2017, p. 20) “trata-se – o desenvolvimento – de um processo resultante da mobilização popular e da concretização de políticas públicas eficientes, participativas, qualificadas, bem planejadas [...]”. Ou seja, sem mobilização popular não há boa vontade política que por si só concretize todas as promessas e diretrizes das políticas públicas existentes. E, da mesma forma, sem a existência de políticas públicas eficientes e participativas, a mobilização popular acaba por se esvair no decorrer do tempo - a não ser em períodos onde a ameaça ou o risco iminente de conflitos externos confere fermento para que se fortaleça a coletividade do grupo. Além disso, o próprio formato das políticas e programas muitas vezes não colabora para que estas sejam efetivadas. O caráter tecnicista, a dependência nos serviços de assistência, a frequente interrupção de tais serviços e a própria forma como são realizados são algumas das questões que tentarei desdobrar na sequência.
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4.4 POLÍTICAS PÚBLICAS E SEUS ENTRAVES A conquista da terra é apenas um primeiro e importante passo na luta pela transformação e superação das relações de dominação exercidas pelos grandes latifundiários sobre os semterra. Todavia, conquistada a terra, abrem-se ainda uma série de desafios para que os assentados consigam de fato se estabelecer e consolidar sua vida e seu trabalho no campo, desafios pautados especialmente pela falta de capital necessário para que possam investir e desenvolver sua produção, construir moradias que satisfaçam as necessidades das famílias, entre outros. Como apontou Saquet (2017), para que o desenvolvimento territorial se dê são necessárias políticas públicas eficientes e, no caso específico dos sem-terra, que concedam não só créditos mas todo o apoio necessário - incluídos aí os serviços de assistência ou assessoria técnica e apoio institucional. Além disso, como afirma Rocha (2013, p. 213): No campo brasileiro, o campesinato e o agronegócio postulam a condição de determinar a conduta da política agrícola-fundiária nacional. A política pública é um dos meios utilizados por esses dois grupos, na criação, recriação e fortalecimento dos seus respectivos territórios, dentro de um jogo político articulado por conflitos, antagonismos e hegemonias.
Dentro deste jogo de poderes e de disputa, a Reforma Agrária enquanto política nacional se viabiliza através do PNRA Programa Nacional da Reforma Agrária. Segundo o site do INCRA (2019)1, o primeiro PNRA (I) foi criado em 1985, e 1 O site oficial do PNRA, agora sob domínio do Ministério de Desenvolvimento Regional (criado a partir da fusão dos antigos Ministério da Cidade e Ministério da Integração Nacional, após a extinção de ambos pelo 66
o segundo PNRA (II) em 2003, “fruto do esforço coletivo de servidores e técnicos, com o acúmulo dos movimentos sociais e da reflexão acadêmica”. No âmbito do PNRA, existem uma série de políticas e programas, algumas de caráter compensatório, outras de caráter emancipatório (FERNANDES, 2012)2 . Além de promover o assentamento e a redistribuição de terras, o INCRA opera um sistema de créditos destinados aos beneficiários do PNRA com o intuito de auxiliar no desenvolvimento de atividades produtivas nos lotes conquistados – os chamados créditos de instalação (INCRA, 2018). Dentre as modalidades de créditos disponíveis destacamse, no caso do Ho Chi Minh: o apoio inicial, para aquisição de itens de primeira necessidade (até R$ 5.200,00); o fomento, para a implementação de projetos produtivos e estímulo à geração de renda (até R$ 6.400,00); o fomento mulher, semelhante ao anterior porém destinado exclusivamente a projetos sob responsabilidade da mulher titular do lote (até R$ 5.000,00); e, mais recentemente, os créditos para financiamento da construção de novas habitações rurais (até R$ 34.000,00) ou reforma das habitações existentes (até R$ 17.000,00)3. (Decreto 9.424/2018). Além dos créditos de instalação, o INCRA é também o responsável pela operação de outros programas, governo atual) encontra-se fora do ar pelo menos desde Março deste ano, impossibilitando o acesso a informações atualizadas sobre o programa. 2 De acordo com Fernandes (2012, p. 2-3) apud Rocha (2013, p. 217), “as políticas compensatórias, quase sempre, são elaboradas de cima para baixo com o objetivo de controle político das populações subalternas. As políticas emancipatórias, quase sempre, são elaboradas de baixo para cima com o objetivo de construir autonomias relativas e formas de enfrentamento e resistência na perspectiva de superação da subalternidade”. Como exemplo da primeira, o autor cita o PAC (Programa de Consolidação e Emancipação de Assentamentos Resultantes da Reforma Agrária); e da segunda, o PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária); 3 Renato, funcionário do setor de habitação do INCRA, me disse em entrevista (2019) que até o presente momento nenhuma habitação foi construída em Minas Gerais através do Decreto 9424/2018. 67
como o Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf). Apesar da existência de tais programas no âmbito institucional, o acesso aos mesmos é muitas vezes inviabilizado, como já foi dito, devido primeiramente à necessidade de elaboração de projetos técnicos; e, ao mesmo tempo, à frequente interrupção dos serviços de assistência técnica e extensão rural (NUNES, 2018). O quadro a seguir, retirado do site do INCRA, traz um
Figura 19: Painel de assentamentos sob jurisdição do INCRA em Minas Gerais. Fonte: INCRA, 2019.
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panorama dos assentamentos da Reforma Agrária4 em Minas Gerais. Os números permitem ter uma noção da efetivação de algumas políticas destinadas aos assentados da Reforma Agrária no estado de Minas Gerais. Das 15.675 famílias assentadas, menos de 1% obteve acesso ao crédito de Apoio Inicial; e menos de 3% obteve acesso ao Minha Casa Minha Vida Rural. Ainda, segundo o mesmo quadro, 30% das famílias foram atendidas pela política da ATER até 2017, no entanto não são apresentadas especificações quanto ao tipo ou a perenidade de tal serviço. No caso específico do Ho Chi Minh, por exemplo, algumas famílias foram atendidas por empresas de assistência técnica que abandonaram o trabalho pela metade, ou que realizaram assistência voltada para o acesso a determinado crédito e, depois de acessado, não voltaram mais ao assentamento para acompanhar a aplicação ou orientar o desenvolvimento daquela atividade. Em outras palavras, a política de ATER não funciona (pelo menos ao analisar o exemplo concreto do Ho Chi Minh) com um caráter de continuidade, tampouco de formação dos assentados para que possam de fato conquistar a autonomia e o acesso às informações necessárias para desenvolver e qualificar sua produção; pelo contrário, é pautada por uma perspectiva assistencialista, voltada para o acesso ao crédito como fim último. A respeito deste assunto entrevistei Rogério Carvalho5, 4 Vale ressaltar que o INCRA reconhece como beneficiários do PNRA não só os assentados pelos Projetos de Assentamento Federal (PA) criados pelo próprio INCRA, como também as Reservas Extrativistas (RESEX), Territórios Remanescentes Quilombola (TRQ), Reassentamento de Barragem (PRB), entre outros criados por outras instituições governamentais. Em outras palavras, o valor total de assentamentos apresentado na tabela - 339 assentamento - não corresponde exclusivamente aos PA’s criados pelo INCRA, mas inclui também outros assentamentos contemplados pelo PNRA e que não são especificados no site. 5 Entrevista realizada por Iara Pezzuti no dia 03/03/2019, na sede do INCRA em Belo Horizonte. 69
funcionário do INCRA há 22 anos, hoje no cargo de Assegurador das Ações de Pronaf. Segundo Rogério, o grande problema da política de ATER - além da inconstância nos serviços já mencionada - é justamente o fato de ela ser muito voltada para o crédito e não possuir um caráter de continuidade no assentamento: Eu, particularmente, sempre achei que a assistência técnica ela é muito mais importante do que qualquer crédito. [...] A assistência técnica, pra mim, é importantíssima para, não só organizar o assentamento, mas tomar um rumo né, saber o que ele quer produzir, em que contexto produtivo e de comercialização ele está inserido, ambientalmente falando também… Porque sem esse fio condutor, na minha visão, [...] da assistência técnica, o crédito pode inclusive ser uma coisa negativa pra eles. [...] Quando criou o assentamento já tinha que ter uma assistência técnica lá, mas uma assistência perene, permanente, que não dependa de recurso do INCRA, de orçamento do INCRA, que não dependa de muita interferência. Que ela fosse perene, que o assentado pudesse acessar ela o tempo todo né. Para amadurecer ao ponto de chegar no crédito de instalação, de chegar no PRONAF, e nos outros PRONAFs que virão em seguinte. [...] O crédito [...] deveria vir a reboque, e no entanto o que a gente vê hoje é que o crédito que vem puxando a assistência técnica. E aí vem todos os problemas inerentes a esse tipo de coisa. Se a pessoa quer o crédito, quer o crédito, quer o crédito, a assistência técnica fica correndo atrás, comendo poeira.
A fala de Rogério é bastante elucidativa e aborda uma questão muitas vezes deixada de lado: o formato da assistência técnica. Como já foi colocado, a necessidade de capital para investir na terra é tão grande que este acaba muitas vezes sendo o foco das ações das empresas de assistência técnica e das próprias reivindicações do Movimento. De volta às categorias de Fernandes (2012), a política de assistência técnica, voltada única e exclusivamente para o acesso ao crédito, acaba por incluir o camponês no sistema capitalista de produção sem
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oferecer possibilidades de emancipação do mesmo da condição de pequeno agricultor superexplorado dentro de um sistema que privilegia o agronegócio e os grandes latifundiários. Em outras palavras, são políticas que concedem o peixe mas não ensinam a pescar, ou seja, oferecem crédito mas muitas vezes não possibilitam a formação técnica dos assentados para que eles possam, por si mesmos ou coletivamente dentro dos assentamentos, discutir os rumos a serem tomados. Além disso, como apontei acima, esse serviço de assistência é muitas vezes realizado por empresas privadas inseridas numa lógica mercadológica e de prestação de serviço. Ou seja, essas empresas vão até o local, prestam o serviço combinado – elaboração de um projeto técnico para acesso a um recurso – e depois vão embora. Rogério fala um pouco sobre isso e aponta também a importância da Emater6, mas reitera que nem sempre esta consegue suprir as demandas de todos os assentados e agricultores familiares: [...] implantou o projeto, fez tudo direitinho, deu o acompanhamento lá, essa assistência técnica obrigatória acabou. E aí sim, o assentado, ou o agricultor familiar de modo geral, pode ficar na mão, porque e o depois? “Ah eu to com minhas vacas aqui, eu implantei esse projeto há 5 anos atrás”, não é mais financiado por essa assistência técnica bancária, vamos dizer assim, e aí deu uma doença lá... uma mastite lá nas vacas. Vou recorrer a quem? Normalmente eu vou na Emater, porque a Emater tá lá no município, e a Emater vai lá e dá uma consultoria e ainda resolve. Mas e o município que não tem Emater? [...] Então a minha sensação mesmo é essa descontinuidade da assistência técnica. Quando tem a Emater no município o assentado ainda fica um pouco mais protegido porque se aparecer uma emergência, a Emater ta lá. Ou então assim, se o assentamento lá na frente demandar um curso de capacitação para produção de queijos, por exemplo. Beleza, a Emater vai lá e vai dar um curso para capacitação para produção de queijos, ou… agroindústria caseira, de doces... Mas e o município que não tem? 6 Empresa público-privada de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais. 71
Ainda assim, ressalvada a importância da Emater nos municípios onde esta atua no sentido de prestar assistência técnica aos agricultores familiares, é necessário ressaltar que sua atuação – especialmente junto ao MST, entendido enquanto Movimento social com forte viés político – fica limitada a disputas e interesses políticos. Nem sempre a Emater terá relações de cooperação e solidariedade para com o movimento social. A execução dos serviços por parte da Emater depende muito do técnico em exercício, e tal situação acaba muitas vezes por reativar, como aponta Garcia (2003, p. 176), formas de dependência pessoal. Isso fica muito evidente no caso do Ho Chi Minh, onde a atuação da Emater muitas vezes se limita a algumas famílias as quais possui uma relação de maior proximidade, e tal situação pode intensificar conflitos, disputas e rupturas dentro do próprio assentamento. Por último, a aplicação de tais créditos e a efetivação das políticas de caráter não emancipatório coloca os assentados na dependência da boa vontade política, como bem disse Seu Liu. Em um momento de transição de um governo onde o financiamento de tais programas pode ser simplesmente cortado, os assentados ficam a ver navios sem saber a quem ou onde recorrer. Políticas de caráter emancipatório, por outro lado, possibilitariam que os assentados se resguardassem mesmo em situações de desamparo político, de forma a depender cada vez menos das ações assistencialistas do Estado. O caráter emancipatório, nesse sentido, significaria permitir aos assentados buscarem seus próprios meios para alcançar as metas que possuem, uma vez que teriam as ferramentas e o conhecimento técnico necessário para desenvolver autonomamente seus projetos.
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Figura 20: Sem acesso aos programas de habitação popular, moradores do Ho Chi Minh constroem por conta própria suas casas. Fonte: Acervo da disciplina UNI009, 2019.
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5. PROCESSOS EM CURSO 74
Em suma, como já foi adiantado no capítulo 2, a conjuntura política atual do Brasil impõe que o MST retorne aos assentamentos e acampamentos, busque olhar para dentro e enxergar as rupturas e as continuidades, os pontos fracos e as potencialidades, em uma tentativa de se fortalecer internamente e buscar formas de desenvolvimento mais autônomas em relação ao Estado. Se o desenvolvimento territorial nos moldes de Saquet (2017) depende, como apontei no início, das políticas públicas e da mobilização popular, a situação política atual me motiva a caminhar junto ao MST e buscar analisar as potencialidades de seus territórios e, sobretudo, investir na mobilização social como forma de fortalecer internamente os assentamentos para os difíceis anos que se anunciam. A partir deste contexto, descrevo brevemente na sequência alguns processos em curso no Ho Chi Minh, em uma tentativa de sistematizar as possibilidades de atuação da assessoria técnica junto ao assentamento a partir dos processos em curso nos dias atuais. 75
5.1 A CRIAÇÃO DA COOPERATIVA DA REGIONAL METROPOLITANA No âmbito da RMBH, a Coordenação Estadual de Produção do MST se reuniu no Seminário de Reestruturação Produtiva da RMBH1 e decidiu pela criação de uma cooperativa em nível regional, que terá como foco a comercialização de produtos produzidos nos 5 assentamentos2 do MST na região: 2 de Julho, Ismene Mendes, Resistência, João Pedro Teixeira e Ho Chi Minh. Um dos primeiros passos para o estabelecimento de tal cooperativa apontado no seminário, além dos aspectos burocráticos e institucionais, consiste na realização de um levantamento e de um diagnóstico produtivo dos assentamentos e acampamentos, de forma a organizar e sistematizar os dados produtivos e investigar as potencialidades de comercialização a partir desta cooperativa. Nesse sentido, foi proposto na reunião que se fizesse uma espécie de levantamento piloto no Ho Chi Minh, que pudesse envolver especialmente os filhos das assentadas e assentados a partir da aplicação de questionários porta-a-porta. Além do levantamento quantitativo relativo à produção, foi também apontado o interesse em investigar, através destes questionários ou de outras metodologias possíveis, aspectos qualitativos e outras atividades exercidas pelos assentados, referentes às potencialidades de desenvolvimento do território para além das produções individuais. Quais outras atividades são desenvolvidas no assentamento e poderiam ser 1 Realizado em abril de 2019 no Ho Chi Minh, o Seminário contou com a participação de representantes dos acampamentos e assentamentos da RMBH, coordenadores estaduais do MST, membros da ASF e estudantes da UFMG. 2 Inicialmente prevê a cooperação entre os 5 assentamentos, sendo os acampamentos incorporados posteriormente ao processo. 76
Figura 21: Seminário de Reestruturação Produtiva no galpão comunitário do Ho Chi Minh. Foto: Joyce Fonseca, 2019.
incorporadas ao funcionamento da cooperativa? Quais aspectos do território podem ser discutidos, valorizados, questionados tendo em vista, como propõe Saquet (2017, p. 29) “a ancoragem, os vínculos, o enraizamento, a proximidade, a identidade, o acoplamento e a conexão”? Quais metodologias poderiam ser usadas para a realização deste levantamento? A partir desse contexto, um trabalho de assessoria técnica poderia consistir em pensar e propor formas de despertar o interesse dos jovens pela questão territorial a qual estou aludindo e, antes de envolvê-los na aplicação dos questionários, pensar também formas de possibilitar que participem da própria elaboração de tal metodologia. Penso que o trabalho precisa fazer sentido para estes jovens e, para isto, eles precisam se envolver do início ao fim do processo, e não apenas trabalharem na aplicação de questionários com perguntas que talvez não façam sentido para eles. Além de promover uma aproximação e discussão acerca do território, esta poderia ser uma forma de iniciar um trabalho de mobilização entre os jovens do 77
assentamento e, quem sabe, propiciar o desenvolvimento da consciência de lugar apontada por Saquet (2017). Na Parte II, retomarei este assunto ao narrar a experiência que tive de construção de uma maquete e início de um mapeamento coletivo com os jovens e as crianças do Ho Chi Minh.
5.2 A IMPLANTAÇÃO DO VIVEIRO DE MUDAS Outro processo em curso no Assentamento é a implantação de um viveiro de mudas próximo ao local onde funcionava o antigo alambique da Fazenda. O galpão, como é conhecido pelos assentados, constitui-se hoje como o único espaço comunitário do assentamento – além da Igreja –, e serviu como sede para o Seminário de Reestruturação Produtiva, já mencionado neste trabalho. Após anos em estado de abandono e praticamente inutilizado, o galpão passa agora por um processo de requalificação e reapropriação enquanto espaço coletivo do assentamento, a partir dos recursos destinados à implantação de infraestruturas para o funcionamento do viveiro. Financiado através de um edital da CEMIG e parte de um projeto maior que envolve a implantação de outros viveiros e ações educativas na área ambiental pelos assentamentos da Reforma Agrária em Minas Gerais, o projeto Implantação de Sistemas Agroflorestais em Assentamentos de Reforma Agrária como Estratégia para Recuperação de Áreas Degradadas (2018) visa “[...] a recuperação ambiental de cerca de 280 (duzentos e oitenta) hectares de áreas selecionadas conforme necessidade de compensação florestal da CEMIG” no estado de Minas Gerais. O projeto de implantação do Viveiro no Ho Chi Minh é coordenado por Fabinho, uma das lideranças locais, e representa uma oportunidade de desenvolvimento territorial para o assentamento, uma vez que 78
propõe o cultivo de mudas nativas a serem comercializadas e utilizadas para o reflorestamento de áreas degradadas ambientalmente3, dentro e fora do assentamento. Além do Fabinho como coordenador, Joice (filha da Dona Das Dores), Josi (filha da Júlia), Cláudio (filho da Rosalia) e Seu Antônio, todos assentados e/ou filhos de assentados do Ho Chi Minh, foram contratados4 como auxiliares viveiristas e terão também a oportunidade de participar de cursos de formação ofertados no âmbito do mesmo edital, bem como visitar outros assentamentos e experiências semelhantes realizadas pelo Movimento em Minas Gerais. A equipe conta ainda com dois técnicos em meio ambiente, Bárbara e Robinho, que se mudaram para o Ho Chi Minh a fim de acompanhar os dois primeiros anos de funcionamento do viveiro. Durante o seminário, o projeto do viveiro foi apresentado aos participantes e representantes dos assentamentos presentes, e uma das questões levantadas para discussão foi colocada justamente pela Joice, auxiliar viveirista do projeto. Segundo ela, muitas pessoas se referem ao viveiro como “projeto do Fabinho”. Novamente a questão da desmobilização e desconfiança interna vem à tona. Depois de muitos projetos que começaram e não foram à frente, e também por conta das divisões e conflitos internos já mencionados, muitos assentados vêem com desconfiança essa iniciativa e acabam por não se envolver no processo. A pergunta de Joice era justamente como 3 As condições do edital implicam que o viveiro produza, nos dois primeiros anos, mudas exclusivamente para a CEMIG e para o reflorestamento das áreas degradadas ambientalmente. Durante este período, apenas a equipe contratada possui uma remuneração que é fixa, não existindo possibilidade de venda das mudas para público externo. Após estes dois anos, será possível também a comercialização de mudas para fora do Assentamento. 4 A equipe contratada via edital da CEMIG possui remuneração fixa e se divide em escalas para trabalhar no viveiro. A remuneração é garantida pelo orçamento do próprio edital, durante os dois primeiros anos de funcionamento. 79
quebrar com essa ideia e mostrar para todas e todos que aquele projeto era coletivo, do Assentamento, e que caso fosse apoiado poderia render benefícios para todos os assentados. Novamente, uma questão de mobilização! Algumas lideranças presentes comentaram que aquilo era normal e que as pessoas chegariam aos poucos, à medida em que vissem os benefícios que aquela ação poderia render para o coletivo. Apesar de a princípio o viveiro se constituir como um projeto de cima para baixo, ou seja, de ter sido pensado e elaborado em instâncias de decisão de certa forma afastadas do próprio assentamento onde ele seria instalado, vale ressaltar que muitas vezes o Movimento se vê pressionado por prazos e procedimentos burocráticos que impedem que o processo seja construído de outra forma. Em outras palavras, entre urgências e oportunidades, muitas vezes o Movimento ou as coordenações são pressionados a decidir e a elaborar os projetos com certo distanciamento das famílias assentadas. Os prazos impostos pelos editais simplesmente não permitem que os projetos sejam elaborados com a participação de todos de forma horizontal, o que demandaria tempo e discussões muito grandes, e a forma como todo esse processo ocorre pode gerar um distanciamento das famílias ao que é decidido em instâncias superiores. É bem provável que a desconfiança e o sentimento de que aquilo não se transformará em benefício para elas seja fruto da forma como tudo isso ocorre. No entanto, também poderia-se pensar em um movimento inverso: como esses processos, já conquistados e construídos de cima para baixo, poderiam orientar futuras construções coletivas? Como envolver as famílias depois que o processo já foi iniciado? A partir dessas perguntas, apresentarei na sequência as atividades que desenvolvi no Assentamento durante o segundo semestre de 2019 com a intenção de despertar o interesse dos jovens pelas diversas questões territoriais existentes, bem como investigar as possibilidades para a assessoria técnica no assentamento e os desafios para o 80
fortalecimento da mobilização social.
Figura 22: Produção de mudas no viveiro 3 meses após a inauguração. Foto: Iara Pezzuti, 2019.
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PARTE
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0. DISCUTINDO O TERRITÓRIO 84
As práticas propostas para o segundo semestre visaram, em primeiro lugar, colaborar para uma discussão ampliada entre os jovens acerca do território do Ho Chi Minh; e, em segundo lugar, contribuir para a mobilização social e o fortalecimento da coletividade dentro do Assentamento. Optei, nesse sentido, pela utilização da palavra território por entender como fundamentais algumas categorias incluídas neste conceito que talvez extrapolem a noção de espaço, entre elas: identidade, relações de poder, redes de circulação e comunicação, vínculos sociais (individuais e coletivos) e territoriais (terra, objetos, pessoas, lugares) (SAQUET, 2017). Território, nesse sentido, poderia também ser entendido como espaço socialmente produzido (SANTOS, 1979)1, ou seja, mais do que o espaço ou território em sua dimensão material, ou enquanto locus de poder exclusivamente, é fundamental enfatizar o papel ativo dos sujeitos que o constituem e são constituídos por ele. Em maio de 2019, durante o Encontro Nacional da Associação Brasileira de Pós-Graduação (ENANPUR), presenciei uma pergunta do geógrafo Rogério Haesbaert a uma pesquisadora que apresentava seu trabalho junto ao MST no Rio Grande do Sul. Em poucas palavras, Haesbaert se mostrava curioso em entender como o MST trabalha a ideia de território, uma vez que para os povos tradicionais, por exemplo, a noção de território é muito apropriada – e inclusive utilizada como ferramenta de luta pelos próprios povos tradicionais para o reconhecimento e defesa de seus direitos, a partir especialmente da dimensão simbólica referente à noção de território. Então, como pensar na construção de uma territorialidade a partir da ausência de um território com o qual se poderia estabelecer uma conexão? Haesbaert estava, imagino eu, refletindo acerca dos acampamentos, entretanto, a partir do momento em que 1 85
LEVEBVRE, 1984; KAPP, 2018;
a terra é conquistada e determinadas famílias são selecionadas para ocupar e habitar aquela terra, os sem terra passam desta para a condição de assentados e, consequentemente, passam a constituir, juntos, aquele território, espaço socialmente produzido e que os constitui enquanto grupo sócio-espacial dialeticamente (KAPP, 2018). As famílias conseguem, finalmente, o direito de ocupar um lugar e, mais do que isso, passam a ser parte daquele lugar, trazem consigo suas histórias individuais e coletivas, suas vivências em outros lugares antes de aderirem ao Movimento, sua experiência na militância, em outros empregos, enfim. Como lidar com estes territórios, com toda a complexidade presente nestes processos de assentamento que envolvem pessoas vindas de diferentes lugares, com diferentes raízes e trajetórias, reunidas em um espaço o qual elas passam a produzir cotidianamente? Refleti sobre aquela pergunta por muito tempo por entender que não se tratava de uma discussão exclusivamente teórica, mas que refletir sobre este conceito pode de fato ser importante para que o Movimento possa avançar no sentido de compreender melhor como lidar com a criação de novos assentamentos de forma a proporcionar maior autonomia para os mesmos, a fim de que os próprios assentados possam estabelecer uma conexão maior com as terras por eles conquistadas. E por que a necessidade desta conexão? No caso do Ho Chi Minh, por exemplo, é evidente o envelhecimento da população assentada. Com a dificuldade dos assentados em manter a terra conquistada sem o aporte das políticas públicas, como enfatizei no capítulo anterior, muitos jovens costumam retornar para a cidade em busca de emprego e melhores condições de vida após passarem anos vendo os pais com dificuldade em ganhar dinheiro vivendo na roça. Muitos eram bem pequenos quando da época da luta pela terra e da passagem dos pais por diversos acampamentos e, portanto, a dimensão da cooperação e da consciência de classe adquiridas durante os anos iniciais de luta 86
tornam-se apenas imaginação na cabeça dos jovens a partir dos relatos dos pais, relatos estes atravessados por sentimentos diversos gestados durante os anos seguintes da conquista da terra: desânimo pela dificuldade em se manter no campo, decepção com promessas não concretizadas etc. Nesse cenário, o sentimento de coletividade construído nos anos iniciais de luta pela terra acaba, muitas vezes, por se desvanecer no tempo e no espaço. Instaura-se, a partir daí, um processo de desmobilização social, onde cada família começa a buscar os próprios meios de sobrevivência, seja através de vínculos de trabalho precarizado nas grandes cidades, seja através da prestação de serviço aos fazendeiros vizinhos. “Cada um no seu quadrado”, como diria Dona Das Dores, tentando por conta própria resolver seus problemas, que tornam-se ainda mais difíceis de serem solucionados individualmente. Além disso, a sobrecarga em cima do Movimento – gerir centenas de terras conquistadas e em processo de conquista em todo o país – torna inviável uma relação de dependência assentamentos-Movimento2. Para que seja possível o desenvolvimento territorial dos assentamentos criados é imprescindível, além das políticas públicas eficientes e da mobilização popular como apontou Saquet (2017), a autonomia das famílias assentadas, o compartilhamento da maior quantidade possível de informações sobre o território para que as famílias possam, coletivamente e através de relações de cooperação, unidas pela luta e pela consciência de classe, alcançar a autogestão de seus territórios. Isso não significa um rompimento com o Movimento, obviamente, mas uma relação 2 Ciente disto, o MST propõe a criação da coordenação do Assentamento e organização de núcleos locais, com a intenção de aumentar o controle social e a comunicação interna, bem como facilitar o contato com setores externos. Entretanto, a experiência do Ho Chi Minh demonstra que tais instrumentos, muito ativos nos anos iniciais do assentamento, acabam por ser enfraquecidos com o passar dos anos, devido sobretudo à desmobilização ocorrida frente aos processos não concretizados. 87
de maior independência dos assentamentos para que possam se desenvolver mesmo quando o Movimento não pode se fazer tão presente no território. Ademais, ainda acerca da dependência ou autonomia das famílias, a forma assistencialista como os serviços de assessoria técnica geralmente atuam no assentamento enfatiza e estimula uma postura passiva dos assentados em relação aos processos em curso. Em outras palavras, o hábito criado – a partir da forma como as próprias empresas, ONG’s e instituições costumam atuar – de esperar que alguém apareça para prestar um serviço, resolver o problema e depois ir embora, diminui o papel ativo dos sujeitos na produção daquele território e na resolução de suas questões. As reuniões são esvaziadas e, portanto, decisões que deveriam ser coletivas acabam por recair sobre algumas poucas pessoas que ainda tem paciência de participar das discussões em grupo. Nesse sentido, estimular a discussão acerca do território e das dificuldades de sua constituição pode também significar uma oportunidade de rever práticas, de visitar o passado, o presente e imaginar novas possibilidades de ser e de habitar as terras conquistadas no futuro. Sob essa perspectiva, apropriar dos territórios conquistados com autonomia, consciência de classe e de lugar são condições indispensáveis para o desenvolvimento territorial apontado por Saquet (2017). Avançar no sentido do fortalecimento de uma territorialidade envolve, portanto, a apropriação do território como um todo, para além dos lotes individuais, capaz de ampliar a mobilização e potencializar o papel ativo que os próprios sujeitos possuem na produção daquele lugar. A partir dessa perspectiva, o trabalho realizado com os jovens durante o segundo semestre de 2019 teve como objetivo 88
evidenciar elementos e categorias constituintes do território, em uma tentativa de, como propõe Silke Kapp (2018, p. 232) ao conceituar a atuação da assessoria técnica, “[...] encontrar meios para apoiar e ampliar as iniciativas, trazer os conflitos à tona, facilitar negociações [...]”, enfim, ampliar a percepção acerca das questões relacionadas ao território do Ho Chi Minh de forma que eles próprios possam, ao longo do tempo, construírem uma mobilização em torno das causas coletivas que julgarem convenientes. Por considerar o trabalho de mobilização como um processo longo, demorado, as atividades não tiveram como objetivo efetivar essa mobilização logo de início – pois isto seria impossível –, mas representam o princípio da busca por pontos e interesses que sejam comuns aos jovens e que possam fomentar ações e encontros futuros no sentido de fortalecer os vínculos territoriais. Em julho de 2019, após a finalização da primeira etapa deste trabalho, fui ao assentamento para a inauguração do Viveiro de Mudas com o objetivo de conversar com as pessoas acerca das minhas intenções de trabalho para o segundo semestre. Naquela ocasião estiveram presentes representantes e coordenadores dos acampamentos e assentamentos da Regional Metropolitana3, que foram tanto para prestigiar a inauguração do viveiro quanto para realizar um encontro geral da Regional a fim de discutir questões internas dos acampamentos e assentamentos e compartilhá-las entre si. Dentre as discussões surgidas a respeito do Ho Chi Minh, a principal delas foi justamente a questão da desarticulação, o não comparecimento às reuniões, enfim, as dificuldades encontradas pela coordenação devido à desmobilização existente no assentamento. Aproveitei a oportunidade para conversar com os representantes presentes do Ho Chi Minh sobre minha proposta de trabalho com os 3 Presentes da Regional Metropolitana: acampamentos Zequinha, Pátria Livre e Maria da Conceição; assentamentos Ho Chi Minh, 2 de Julho e João Pedro Teixeira. 89
jovens para o segundo semestre. Cada um pontuou as questões que acharam pertinentes, mas no geral todos se mostraram favoráveis à realização do trabalho, especialmente por perceberem um distanciamento cada vez maior dos jovens às questões relativas ao assentamento e a necessidade de trazê-los novamente para perto. Naquela ocasião, peguei os contatos de algumas pessoas que se dispuseram a me ajudar na divulgação das atividades entre os jovens do assentamento. A divulgação do primeiro encontro foi realizada via grupo de Whatsapp a partir da elaboração de um flyer, no entanto depois percebi que tal método era desnecessário pois grande parte dos jovens do assentamento não possui celular ou acesso à internet em casa. Dessa forma, nos encontros seguintes, mantive o contato via Whatsapp com algumas poucas pessoas, que se responsabilizavam por espalhar as notícias e contatar os vizinhos. Descrevo, na sequência, as atividades realizadas nesse curto período que tive de experimentação crítica com as crianças e os jovens na expectativa de que possam servir de inspiração para trabalhos posteriores, seja no Ho Chi Minh, seja em outros assentamentos rurais. Para cumprir com este objetivo, optei por apresentar as atividades realizadas sob a forma de relatos livres, por acreditar que dessa maneira revelam de forma mais honesta como as atividades aconteceram, as dificuldades, as escolhas realizadas em função das situações, enfim. Vale enfatizar que, com estes relatos, não tenho a pretensão de fechar uma metodologia replicável em vários contextos. Mas espero, dessa forma, transmitir nossas experiências e abrir espaço para que sejam experimentadas, discutidas, aprofundadas ou redesenhadas por quem desejar.
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Figura 23: Oficina de cinema, chegada da equipe na casa da Dona Lourdes. Foto: Iara Pezzuti, 2019.
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ENCONTRO 01
FOTOGRAFIA + TEATRO Data: Sábado, 24-08-2019. Duração da atividade: 2 hrs e meia (10 hrs às 12:30 hrs). Presentes: 17 participantes, com idade entre 8 e 18 anos. Objetivo: Conhecer melhor os jovens do assentamento, buscar evidenciar demandas e interesses em comum que possam guiar os encontros seguintes. 92
1 – JOGOS TEATRO DO OPRIMIDO (T.O.) 1 - Batizado mineiro A oficina começou com um jogo do Teatro do Oprimido chamado Batizado Mineiro, adaptado por mim a partir do livro “Teatro do Oprimido na educação de jovens e adultos”, do educador social Dimir Viana (2016), inspirado nos trabalhos de Augusto Boal (2004). Instruções: Em círculo. Uma pessoa dá um passo à frente, diz o nome, uma coisa que goste de fazer, e faz um gesto que represente essa coisa. Todo mundo repete o nome e o gesto da pessoa. Um por um, até todos se apresentarem. Preferi não falar muito nem explicar nada nesse início. Ainda muito tímidos e sem entender direito o que estava acontecendo, o exercício serviu mais para que falassem seus nomes, pois muitos apenas repetiram o gesto da pessoa anterior. Depois fui descobrir que nem todos sabiam que se trataria de uma oficina de teatro e fotografia: na divulgação boca a boca, a conversa foi que seria feita uma reunião com os jovens do assentamento, então muitos foram achando que seria mais uma reunião chata (nas palavras deles). Suponho que, por conta dessa expectativa, nesse primeiro exercício os jovens não se soltaram tanto pois ainda estavam desconfiados do que aconteceria na sequência. 93
2 – Círculo máximo e círculo mínimo Referência: Augusto Boal (2004). De mãos dadas em roda, ocupar o maior espaço possível. Depois, o menor espaço possível... depois o maior... depois o menor… Nesse momento, sem precisar utilizar a fala ou representar qualquer coisa, os meninos já foram se soltando. Deu para perceber a proximidade existente entre eles, inclusive dos mais velhos com os mais novos. Muitas risadas rolaram! Foi ótimo para descontrair o corpo e conhecermos melhor uns aos outros.
3 – Hipnotismo colombiano Referência: Dimir Viana (2016), Augusto Boal (2004). Em duplas. Uma pessoa será o hipnotizador e a outra o hipnotizado. O hipnotizador estende a palma da mão à frente do hipnotizado, mantendo um palmo de distância. O hipnotizador deve ir mexendo essa mão pelo espaço, sempre mantendo a mesma distância do rosto do hipnotizado, que deve segui-lo também cuidando para manter a mesma distância. Depois invertem-se os papéis. É um exercício de foco, atenção e sintonia entre as duplas! Cuidado para não machucar o colega! Este jogo deu incrivelmente certo! Comecei a explicar e parei a explicação no meio dizendo “olha, eu não sei explicar bem, mas sei mostrar”. Tomei o Raul, amigo e colaborador nessa pesquisa, como exemplo e simulei o exercício enquanto todos observavam atentamente. Aqui já ficava claro como a FALA 94
se constituía como uma barreira. Realmente parece que os meninos cresceram traumatizados com a ideia de reuniões onde se fala muito e se faz pouco! Mais descontraídos mas ainda sim bastante centrados, levaram a proposta super a sério e o exercício foi ótimo para soltar o corpo e estimular a utilização do mesmo, já que nos dois exercícios anteriores todo mundo ainda estava bastante travado.
2 – A CÂMERA E A FOTÓGRAFA1 Material utilizado: 5 câmeras, 1 tripé, 1 projetor, 1 computador, 1 extensão, 1 adaptador, 1 rolo de papel kraft, 2 canetões, 1 celular para gravar o áudio.
Depois de um tempo jogando Hipnotismo Colombiano, encerrei a atividade e anunciei que faríamos uma atividade de fotografia. A intenção do exercício era dupla: tanto desenvolver de forma bastante inicial a percepção sobre fotografia e enquadramento, quanto estimular a contação de histórias e memórias dos meninos sobre a época do acampamento. Misturam-se as pessoas e formam-se novas duplas. Decidese quem será a fotógrafa e quem será a câmera (pessoa da dupla que simulará a atuação como uma câmera). Como havia mais jovens do que eu esperava e não consegui câmeras digitais suficientes, resolvi na hora montar trios e sugeri que houvesse um jovem mais velho com dois mais novos por 1 Aprendi esse exercício com Isabela Izidoro, Felipe De Brot e Lina Maria em uma oficina que demos juntos no Projeto Manuelzão (UFMG). No entanto, adaptei algumas etapas e inseri outras camadas ao exercício, a fim de buscar novos resultados. 95
trio. Os meninos se organizaram sozinhos. Primeiro, expliquei de forma bem sucinta para todos juntos como seria o exercício; depois dividi a turma em Fotógrafas / Câmeras, e expliquei separadamente qual seria o papel de cada um na atividade: A fotógrafa de cada trio deve pensar no tema “Ho Chi Minh na época do acampamento”, e andar pelas redondezas do galpão procurando algo (algum objeto, vista, textura) que a lembre da época do acampamento – caso seja mais nova ou não se lembre, deve pensar no que já ouviu os pais ou parentes contarem e tentar pensar em algo que represente isto. Com a câmera digital, deve fazer uma (e somente uma!) foto do que escolher. Voltam para a sala e entregam a câmera na mão da pessoa responsável por passar as fotos para o computador. [enquanto fizerem o restante da atividade, o ajudante deve passar as fotos tiradas para o computador, identificando na legenda o nome de quem tirou; ao final da atividade as fotos serão projetadas, então tudo deve estar no jeito para não haver muita dispersão entre as etapas da atividade] Enquanto as fotógrafas saíram procurando o que iriam fotografar, as câmeras receberam sua instrução: Devem confiar na fotógrafa e manter os olhos fechados! Só poderão abrir os olhos quando a fotógrafa disser “já!”. Então, já realizadas as fotografias e entregues as câmeras digitais, os trios saem de mãos dadas entre si, as fotógrafas conduzem as câmeras (estas de olhos fechados) até o local escolhido onde tiraram a foto. Podem ajeitar as câmeras como quiserem. Quando estiverem prontas, devem dizer “já”. Nesse momento, as câmeras devem abrir os olhos e, sem mexer a cabeça, prestar atenção em tudo que conseguem ver. Não é permitido falar nesse momento! Apenas observar. A 96
fotógrafa conta (mentalmente) até 10, e, ao final, aperta a mão de suas câmeras, que devem novamente fechar os olhos. As fotógrafas devem levar as câmeras de volta para sala, cuidando para que não se machuquem no caminho. Como eram muitos participantes, foi um pouco difícil acompanhar de perto todos na atividade, motivo pelo qual acabei deixando-os bastante livres para fazer da forma que quisessem. Não consegui controlar bem se realmente estavam de olhos fechados ou não. Pedi que, quando terminassem, voltassem para a sala onde montamos o projetor e sentassem no chão em volta da projeção. O processo de passar as fotos para o computador foi um pouco confuso, algumas câmeras deram problema, mas conseguimos contornar sem que houvesse muita dispersão. Imagino que nesse momento eles já estavam muito animados pelo fato de não terem que ficar apenas sentados ouvindo blablabla, como eles dizem. Em seguida: Senta-se a primeira câmera de costas para a projeção e começa a descrever o que viu e imaginar porque a fotógrafa escolheu aquele ponto de vista. Depois, a fotógrafa explica porque escolheu aquilo e que ideia queria passar com a foto. O restante dos participantes deve opinar se a intenção da fotógrafa correspondeu com o que a câmera viu! Pedi que um dos trios se voluntariasse a ir primeiro. Projetamos a foto que Jéssica tirou e, suas duas câmeras sentadas de costas para a projeção, pedi que descrevessem o que viram quando abriram os olhos. Falaram sobre a torre, sobre as árvores e montanhas, enquanto o restante dos participantes observava a projeção. Pedi que todos (e não só as câmeras) imaginassem porque ela tinha escolhido aquela imagem, e alguns começaram a falar sobre a cachaça que ouviram dizer que era feita na fazenda antes da criação do assentamento. Depois, Jéssica disse 97
que escolheu tirar aquela foto porque ela se lembrava de um homem doido que subia no alto da torre para colocar a bandeira do MST na época que ainda estavam acampados juntos. Muitos não sabiam dessa história e ficaram impressionados… Nesse momento foi interessante o fato de estarem misturados meninos mais velhos com mais novos, os mais velhos foram contando o que lembravam e os mais novos, curiosos, prestando atenção. Quando acabaram de falar, comentei sobre o enquadramento da foto, e também sobre as sensações possíveis: o céu azul me passava a sensação de alegria, de coisa boa - uma das jovens me contrapôs e disse que ia ficar mais feliz se estivesse tudo nublado, porque ela ama tempo chuvoso. Também comentaram sobre as nuvens, que segundo eles as câmeras não tinham reparado bem, mas também faziam parte da foto. E assim as duplas foram apresentando sucessivamente. Achei que deu bastante certo a ideia de colocar as câmeras de costas para a projeção enquanto os outros olhavam, pois criou uma certa dinâmica para o jogo: todos prestavam atenção porque todos estavam participando, ainda que não fosse a vez de seu trio apresentar. Dentre as memórias que surgiram, falaram muito sobre cachaça e rapadura - alguns não sabiam que lá também era feita rapadura, sobre queimar lixo (nesse momento alguém disse: ah, isso até hoje a gente queima porque não tem onde jogar!), sobre escrever nomes na parede dos meninos e meninas que gostavam quando eram mais novos, entre outras memória coletivas. O último trio a se apresentar foi o da Joice. Ela tirou uma foto do viveiro e das mudas, apesar da regra ser tirar apenas uma foto. Deixei rolar... Os participantes descreveram o que viram e, quando perguntei porque ela tinha tirado as fotos, alguém falou “por causa da lona, porque antes morávamos em lona”. 98
Outro corrigiu “antes não, alguns ainda moram!”. E então Joice descreveu as lembranças que tinha de quando as barracas eram todas umas do lado das outras, e que ela às vezes no meio da noite rolava para o lado e quando acordava, já estava na barraca de outra pessoa. Dona Lourdes, que observava a atividade à distância, entrou na conversa e concordou com ela, dizendo que lembrava dela pequena fazendo isso. Os meninos mais novos se mostraram surpresos com as histórias antigas, e os mais velhos pareceram felizes em compartilhá-las com eles. Ao final, devido ao curto tempo que tínhamos, perguntei se eles prefeririam trocar os papéis entre os trios e repetir a atividade, ou se fazíamos a atividade de teatro que eu tinha preparado. A maioria começou a gritar “teatro, teatro!”, e então passamos para a última atividade da oficina.
3 - TEATRO IMAGEM2 Existem várias formas de registrar um pensamento ou sentimento sobre alguma coisa ou algum lugar. Na atividade anterior, inicialmente trabalhou-se com a imagem (visão), depois com a fala (descrição do que se vê); agora a forma de registro será outra: o próprio corpo! Baseado na técnica de Teatro do Oprimido conhecida por Teatro-imagem, realizei uma adaptação do método de Boal (1991), a princípio com a ideia de discutir com os meninos como é viver no Ho Chi Minh hoje em dia (presente); e, depois, como eles gostariam que fosse (futuro)3.
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2 BOAL, Augusto. (1991) Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro, Brasil. Civilização Brasileira. 3 Encontra-se disponível no Youtube um vídeo de parte do jogo de TeatroImagem que fizemos. Para acessá-lo basta acessar: https://www.youtube.com/watch?v=KYkU4ZMkXZ4&feature=youtu.be ou clicar AQUI.
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Figura 24: Fotos tiradas pelos jovens e crianรงas durante a oficina de fotografia. Fonte: Acervo da autora, 2019.
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Como eu havia sido surpreendida pela quantidade de jovens e crianças que apareceram para a oficina, abortei a ideia inicial que seria: seguir à risca o método, dividir a turma em dois grupos, explicar para cada grupo o tema e deixar que conversassem entre si e pensassem juntos qual cena fariam. As crianças estavam muito agitadas e demandavam minha atenção constantemente, então pensei que seria difícil mediar sozinha os dois grupos simultaneamente. Adaptando a ideia, resolvi mantê-los juntos em um grande grupo, explicar o tema e pedir que um a um fossem alterando a cena, de forma que as pessoas que estavam de fora da oficina puderam observar e ir narrando o que estavam vendo: PRESENTE Novamente todos juntos na sala. Alguém deve se candidatar a ser o escultor, e os outros serão suas esculturas. O tema agora é: “Como é viver no Ho Chi Minh hoje”. Sem falar, o escultor deve usar os corpos dos outros participantes, posicioná-los da forma que quiser e esculpir um conjunto de estátuas que representem como é a vida no assentamento hoje. O escultor deve mostrar como cada um vai ficar na cena, da posição do corpo até a expressão facial. (Pode reproduzir como quiser a expressão para que a escultura entenda e o imite, mas não pode falar!!!). O próprio escultor também deve participar da cena e assumir seu papel de estátua. Depois, um de cada vez, cada estátua deve sair de sua posição, observar e fazer as alterações que julgar necessárias, sempre voltando a ser estátua. Esse processo continua até chegar em uma imagem onde todas estátuas/ escultoras estão satisfeitas, tudo isso sem falar! Está é a etapa que Boal denomina como a imagem real. Todos devem decorar suas posições.
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Figura 25: “Como é viver no Ho Chi Minh hoje”, performance de teatro-imagem com jovens e crianças do assentamento. Fonte: Acervo da autora, 2019.
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Ao final, sentamos em roda e pedi que falassem porque tinham realizado aquelas modificações. Inicialmente, Claudio manteve todos em roda e foi um por um levantando e empunhando o braço esquerdo à frente do corpo. Ao final ele disse que queria dizer com aquilo que morar no assentamento hoje é ter muita luta e muita força. Depois Marcelo passou um por um colocando o braço direito no peito. Nesse momento, eles ainda estavam presos à ideia da roda e não se atentaram muito para a composição de uma cena voltada para o público que estava os assistindo. Talvez nesse momento eu deveria ter interrompido e pedido que imaginassem essa cena para o pessoal que estava lá, mas não o fiz. Aos poucos eles foram compreendendo por conta própria e alterando essa disposição. Essa atividade girou mais ou menos em torno desse tema, sendo que alguns pegaram a bandeira do MST que ficava na sala e a utilizaram para compor a cena, sempre aludindo à ideia de luta, garra, força, uns trabalhando, uns lutando à frente enquanto outro imploravam por ajuda, enfim. Ao final, quando perguntei o significado daquelas ações, a maioria não quis falar, novamente ficando evidente a barreira da FALA enquanto possibilidade de comunicação. O ponto fora da curva e talvez a postura mais crítica nessa etapa foi a da Letícia, que foi um a um jogando todos espalhados aleatoriamente pelo chão, e ao final ela própria sentou “bagunçada”, como ela disse, jogou a bandeira no chão e a mandou para longe. Ao final, quando perguntei porque ela tinha feito aquilo, ela disse que é porque lá era tudo bagunçado e desorganizado, cada um jogado para um lado (inclusive ela mesma). Enquanto a maioria repetiu um certo clichê em torno da militância e da utilização da bandeira como símbolo, além de reproduzir a ideia da luta e do trabalho provavelmente muito influenciados pelo que sempre ouviram dos pais e do Movimento, Letícia rompeu drasticamente com tal visão romantizada, trazendo à tona o ponto principal que me 104
motivou a fazer esse trabalho: a ideia da desorganização e da desmobilização em torno das causas coletivas decorrente dos anos passados após a conquista da terra. Senti que alguns dos meninos perceberam tal ato e ficaram reflexivos em torno daquilo. Depois, quando ninguém mais quis falar, pedi que todos ficassem de pé e dei as instruções do tema seguinte: FUTURO Depois, pede-se que o escultor expresse “Como ele gostaria que viver no Ho Chi Minh fosse”. Novamente, um por um, devem ir posicionando e alterando até chegar a uma imagem ideal e decorar suas posições. [novamente, alguém de fora pode tentar interpretar enquanto um ajudante registra, e as estátuas permanecem em silêncio] Nessa etapa, já sabendo o quê e como deveriam fazer, os meninos se mostraram bem mais concentrados e independentes da minha presença. Tive que intervir poucas vezes, sendo que ao final sentei afastada e não precisei falar uma palavra, eles próprios foram revezando entre si e alterando a cena em silêncio, bastante concentrados e entretidos no que estavam fazendo. Uma das ideias que mais apareceu foi novamente a questão do trabalho e, dessa vez, também o tema do estudo, demonstrando uma lacuna e um interesse deles por estudar e “crescer” na vida para além do trabalho que os pais realizavam hoje. Chamou atenção nessa etapa a postura do Gabriel, que pediu que todos se levantassem e foi os colocando, um por um, juntos e abraçados. Lembro de alguns dizerem no momento em que ele alterava “nossa, quero saber porque ele ta fazendo isso!”, e ele, que no exercício anterior havia apenas repetido o que o colega anterior havia feito, parece ter incorporado a fala da Letícia e pensado a 105
Figura 26: “Como você gostaria que viver no assentamento fosse”, performance de teatroimagem com jovens e crianças do assentamento. Fonte: Acervo da autora, 2019.
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partir do que a colega apresentou. Quando perguntamos porque ele havia colocado todos em roda e abraçados, ele disse que era porque ele queria que todos fossem unidos e que não houvesse mais brigas no Assentamento. Outra visão polêmica foi a do Johnie, que colocou os meninos trabalhando e as mulheres todas sentadas. Nesse momento, as mulheres presentes na plateia ficaram revoltadas e rindo bastante, dizendo “ah isso até eu quero ir lá mudar”. Depois ele explicou que havia feito aquilo porque queria que para cada homem trabalhando tivesse uma mulher servindo água. As adolescentes e adultas ficaram revoltadas, e já as meninas menores acharam ótimo, disseram, porque não teriam mais de trabalhar. Depois, Claudio pegou as cadeiras e colocou todos sentados em roda, com a Helen e Kenia no meio apertando a mão uma da outra. Disse que fez aquilo porque hoje em dia ele não gosta de participar das reuniões pois acontecem muitas brigas, e que ele gostaria que no futuro não houvessem mais brigas e que todos pudessem participar e ter vontade de ir nas reuniões. Por último, a Joice, que não quis participar das etapas anteriores e estava sentada na plateia, perguntou se poderia entrar na brincadeira e modificar a cena. Hesitei por um momento e disse que sim, mas que para isso ela teria de pensar em uma posição para ela na cena. Ela modificou um por um cuidadosamente, e ao final explicou sua ação: “[...] Os pequenos aprendendo desde o início, não só no geral, mas algumas coisas que… por exemplo, a gente mora na roça, a maioria de nossos pais veio para a roça por desejo de cultivar. Aí nossos pais pelo menos ensinarem a eles o que é o básico, para que depois eles possam decidir o que eles querem da vida, se eles querem isso ou não. [...] coloquei o johnie explicando para ele como é fazer um cultivo, que é alguém instruindo para eles como plantar. Igual tem aqui a Bárbara, os técnicos, eles estão instruindo a gente a plantar de uma maneira certa. Aí vem a Letícia e o Gabriel, vendo projeto, montando projeto. Não tem nada aqui mas eles já estão olhando lá na frente… Coloquei os outros vendendo os produtos que cultivam aqui, podendo vender esses produtos. E que no futuro possa ser assim, uns cultivando, outros vendendo, 107
outros estudando…”
A atividade continuaria da seguinte forma: Por último, pede-se aos atores que retornem para a imagem real e então que pensem o que cada um deve alterar na sua posição para aproximar da imagem ideal criada no exercício anterior. É a cena de trânsito. Em outras palavras, é o que precisaria ser feito por cada um para transformar o Ho Chi Minh no ideal que se imagina! Ao final, os atores podem novamente voltar a falar e discutir o que queriam representar com suas ações e refletir, a partir das vontades que aparecerem, o que poderíamos fazer juntos até o fim do ano a fim de caminhar para a transformação que eles desejam no assentamento. Segundo Boal, essa parte é crucial para o Teatro Imagem, no entanto não foi possível realizá-la com sucesso. Devido ao prolongamento da oficina e ao atraso para começar, os meninos já estavam cansados e a oficina já atravessava o horário do almoço. A realização com um grupo único e a condição de cada um ir alterando por vez (eram aproximadamente 17 no total) fez com que cada cena demorasse muito a ser finalizada. Foi um erro de mediação, pois acho que eu poderia ter forçado um pouquinho para refazer a cena do “como é viver no assentamento hoje”, mas no momento senti que seria difícil retomar essa cena, especialmente porque a parte sobre o futuro tinha rendido muito e eu mesma não conseguia lembrar exatamente como a cena do presente tinha ficado (como na parte do presente eu precisei intervir com certa constância, não consegui ir anotando ao mesmo tempo sobre as cenas que eram formadas). A alternativa que pensei no momento foi de continuar então a conversa sobre o que tinha aparecido em relação ao futuro e como poderíamos alcançar aquelas ideias, 108
partindo-se das questões que cada um havia levantado. Surgiram algumas ideias, como a da Letícia de gravar um vídeo onde os mais velhos vão contando as histórias antigas segundo ela, seria uma forma de aproximá-los e, portanto, não deveríamos falar sobre conflitos ou brigas, mas sobre histórias engraçadas. Também não deveria ser um vídeo “programado”, segundo ela, deveria ser mais espontâneo, onde as pessoas pudessem ir falando e eles gravando, “de uma forma bem natural”, segundo Letícia. Também foi falado de se realizar uma festa em comemoração ao aniversário do assentamento. No entanto, a conversa não estava rendendo muito e chegava a hora de encerrar a oficina pois já passava de 12:30. Gastei os minutos finais para explicar sobre meu trabalho, que se tratava de fazer um registro sobre o assentamento (no meu caso, um registro escrito), mas que haviam mais formas de se registrar as ideias que eles tinham - por exemplo, a fotografia, o vídeo, maquete (mapeamento das questões), enfim. Não conseguimos definir naquele momento o que seria feito na oficina seguinte, mas pedi que fossem pensando a respeito disso e que poderíamos conversar mais no próximo encontro. Falei sobre o cronograma e o tempo disponível que eu teria para trabalhar com eles, que não era um tempo muito longo mas que se todos se comprometessem a participar poderíamos fazer algo bem legal juntos. Perguntei das expectativas sobre aquele encontro e se tinha sido como eles imaginavam e disseram que não, pois pensavam que seria mais uma reunião chata e com muitos blablablas, mas que haviam gostado do jeito que foi. Lembro de alguém falar “é bem mais legal reunir dessa forma”. A Joice comentou que esperava que eu falasse um pouco mais da parte técnica de fotografia, sobre “como tirar uma boa foto”.
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Perguntei sobre horário e ficou acordado que começaríamos o encontro seguinte mais cedo - 8 da manhã - para dar tempo de render mais sem atrapalhar o horário de almoço. Ficamos entre duas datas para decidir o próximo encontro, e ficou acordado decidiríamos no grupo do whatsapp e uns avisariam aos outros.
4 - REFLEXÕES Fiquei bastante satisfeita com o resultado da oficina. Achei que foi ótimo para conversar e despertar o olhar deles para algumas questões, e percebi um engajamento bem maior deles durante as atividades do que quando pedia que eles falassem sobre algo. Realmente o corpo se mostrou uma ferramenta interessante e apropriada por eles para colocar ideias em discussão. A parte da fotografia também foi legal e gerou engajamento, especialmente a ideia de transformar a parte da projeção das fotografias em uma espécie de jogo de adivinhação - eu já tinha realizado esse tipo de atividade outras vezes e geralmente a parte de projetar Figura 27: Palavras anotadas durante as atividades de fotografia e teatro. Fonte: Acervo da autora, 2019.
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as imagens e discutir sobre elas sempre corre o risco de se transformar em algo monótono e gerar dispersão. Unir a parte da discussão com a ideia de um jogo aberto pareceu funcionar bem para contornar esse risco. Tinha pensado em pedir de para-casa que eles registrassem, com o celular, alguma coisa que remetesse a memória do acampamento, e também algo sobre a produção que os pais realizam, no entanto quando perguntei quem tinha celular, para nossa surpresa e contrapondo o que costumamos perceber nos movimentos urbanos, pouquíssimos levantaram a mão. Preferi, no momento, não deixar tarefa para casa e pensar melhor o que poderia ser feito no segundo encontro a partir das questões que surgiram durante a oficina. Como a questão da desunião e da desmobilização entre os adultos surgiu dos próprios jovens e crianças, continuar na perspectiva de realizar um registro sobre o Assentamento pareceu uma boa alternativa!
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ENCONTRO 02
MAQUETE + MAPEAMENTO COLETIVO Data: Sábado, 21-09-2019. Duração da atividade: 4 horas (08:30 hrs às 12:30 hrs). Presentes: Cerca de 20 participantes Objetivo: Promover entre os jovens discussões relativas às questões físicas do território - construção da maquete - e às questões relativas à produção e aos saberes e ofícios dos familiares - mapeamento coletivo. 112
1 – CONSTRUÇÃO DA MAQUETE Materiais utilizados: 9 metros de EVA para a construção de maquete em escala 1:5000 (houve bastante sobra!); impressão da imagem de satélite em adesivo formato A0; pistola de ar quente para colagem do adesivo; cola para EVA;
A ideia de construir uma maquete junto aos jovens e crianças surgiu com a intenção de promover uma discussão sobre as questões físico-territoriais, além de buscar entender melhor qual a relação e o engajamento deles com as produções e atividades realizadas pelos pais, os lugares e pontos de interesse coletivo do assentamento etc. A construção da maquete começou logo que chegamos, a fim de adiantar o processo uma vez que alguns participantes só poderiam chegar um pouco mais tarde, devido a um outro evento marcado de última hora pelo CRAS. Como havíamos muito trabalho a fazer, deixamos para fazer as apresentações e conversar assim que todos chegassem, mas iniciamos a montagem logo cedo para conseguirmos fazer tudo o que planejamos. Toda atividade que envolve a participação de muitas pessoas especialmente jovens e crianças - demanda uma organização prévia para que tudo esteja acertado no momento da oficina e para que não haja dispersão entre os participantes. Nesse sentido, optamos por levar as peças de EVA previamente cortadas (utilizamos a cortadora à laser) e numeradas, de forma que a construção da maquete consistiu em colar as peças 113
de acordo com os números (cada peça possuía um número referente à peça a ser colada na sequência). A montagem da maquete se assemelhou à de um quebra-cabeças e instigou principalmente os mais novos, que se auto-organizavam entre os que buscavam as próximas peças e os que colavam. Além disso, o exercício permitiu que apontássemos a formação dos vales e topos de morro, à medida que esses se constituíam pela sobreposição das curvas de nível de EVA. Alguns deles conseguiram enxergar e perceber tais elementos físicoterritoriais, seguindo o percurso do rio com os dedos e especulando sobre a localização dos lugares que conheciam. Ao final dessa etapa, antes da colagem do adesivo, saímos com os jovens pelo entorno do galpão com a maquete em mãos. O local permite uma ampla visão do relevo e do entorno. Assim, aproveitamos para instigá-los a identificar no próprio território algumas de suas características físicas e da paisagem que apareciam na maquete: inicialmente falamos sobre a orientação da peça de acordo com o eixo do rio - que corre próximo ao galpão. Depois, identificamos os pontos mais altos, as encostas, os pontos de referência da paisagem, e ao final, após algumas tentativas um deles conseguiu localizar na maquete onde estávamos, mesmo sem a imagem de satélite.
2 – JOGOS T.O. 1 - Batizado Mineiro Quando todos chegaram, realizamos o Batizado Mineiro4 para dar início às atividades do dia.
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A descrição deste jogo encontra-se na página 87 deste trabalho.
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Figura 28: Montagem da maquete. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Figura 29: Raul e os meninos reconhecendo o territĂłrio com maquete em mĂŁos. Fonte: Acervo da autora, 2019.
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2 - O desmaio de Frejus Referência: Augusto Boal (2004) Cada ator é sorteado com um número de 1 a quantos forem os atores. Devem andar perto uns dos outros, e o diretor começará a dizer números num certo intervalo. A cada número, o ator correspondente desmaia e deve ser seguro pelos companheiros.
3 – VER JUNTO: TENTATIVA DE RETOMAR A DISCUSSÃO ANTERIOR Projetor montado, pedimos que alguém que estava presente no encontro anterior contasse para os que não estavam presentes quais atividades fizemos. Em seguida, passamos os vídeos das performances do teatro-imagem realizadas no encontro anterior. Quando terminou, tentamos discutir com todos presentes quais questões haviam aparecido e fazer uma sistematização das mesmas no papel kraft. A ideia seria marcar as principais questões que achamos que podemos trabalhar no presente, tendo como objetivo as questões que apareceram como desejos para o futuro durante a oficina de teatro - tudo isso, vale ressaltar, na tentativa de identificar interesses em comum que pudessem guiar as atividades seguintes. No entanto, a barreira da fala se mostrou novamente presente e foi um pouco difícil puxar uma conversa sobre o que apareceu no vídeo. Além disso, a presença de pessoas “novas” (que não haviam participado da outra oficina), gerou certa dispersão entre as crianças, que não se concentravam na discussão. Os mais velhos continuaram calados, alguns saíram da sala, e percebi que realmente não estava dando certo conduzir a conversa naqueles moldes. Novamente não conseguimos fechar naquele momento o que faríamos ao final do semestre, e resolvemos seguir com 116
a atividade de mapeamento e deixar para tomar essa decisão depois.
4 – MAPEAMENTO COLETIVO Materiais utilizados: papéis, canetinhas coloridas e alfinetes variados; duas ampulhetas para marcar o tempo.
A atividade de mapeamento começou com a colagem do adesivo na maquete. Com a imagem de satélite, uns ajudaram aos outros a identificar onde moravam. A escala da maquete dificultou um pouco essa localização - não a fizemos maior porque gastaria mais material e sairia bem mais caro, mas mesmo assim foi possível identificar as casas a partir da marcação da estrada principal e do rio. Me lembro de uma jovem que ficou super feliz quando encontrou sua casa, gritando “Meu Deus, eu tô no mapa! Graças a Deus eu TÔ no mapa!”. Depois de localizadas as casas de cada um, partimos para um mapeamento dos aspectos e lugares de referência coletivos: Dividimos os participantes em dois grupos baseado na proximidade de suas casas. Pedimos que cada grupo pensasse em dois pontos de referência que fossem comuns a eles (e próximos ao lugar onde moravam), e que os escrevessem em pequenos papeis, já preparados junto aos alfinetes. Com a ampulheta, iniciamos uma etapa do jogo onde cada grupo devia descobrir e marcar no mapa onde os pontos selecionados pelo grupo adversário se localizavam. O jogo consistia em localizar os pontos no mapa antes que o tempo acabasse. Só o fato de haver uma ampulheta marcando o tempo já conferia uma dinâmica ao jogo, ainda que não houvesse um vencedor ou perdedor, todos se engajaram totalmente na missão de localizar aqueles pontos na maquete antes do tempo acabar. 117
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Figura 30: Mapeamento das casas, rio e outros ponto de referĂŞncia. Fonte: Acervo da autora, 2019.
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Os jovens pontuaram as cachoeiras onde costumam ir nadar, a sede da antiga fazenda e o galpão, confirmando o papel destes espaços como pontos de referência coletivos para os moradores do assentamento. Depois, passamos para a segunda etapa do mapeamento que consistia em anotar numa folha de papel tudo o que cada grupo sabia que os familiares produziam. Também através da utilização da ampulheta, os grupos se engajaram totalmente em listar a maior quantidade possível de coisas. Novamente, não havia perdedor ou vencedor, mas a marcação do tempo ajudava a manter os jovens focados em concluir a missão que haviam recebido. Além do empenho em listar o maior número possível de coisas, nos surpreendeu a variedade da produção, e o fato de que eles não ignoraram nem separaram culturas de lavoura, frutíferas, hortaliças e flores, tampouco dividiram a produção entre para venda/para consumo. Por último, para além da produção e do cultivo da terra, pedimos que cada grupo listasse também outras atividades e ofícios realizados pelos familiares. Nesse momento impressionou a diversidade de ofícios e saberes que apareceram, desde a produção de doces, óleo de mamona, farinha de mandioca, até a venda de produtos de beleza, bolo de pote, enfim. Essa atividade representou o início da aproximação dos jovens à sistematização do que é produzido no assentamento, como uma forma de evidenciar a diversidade produtiva do Ho Chi Minh e despertar questionamentos como “quem produz coisas parecidas?”, “quem produz coisas muito diferentes?”, enfim, promover uma aproximação deles aos trabalhos realizados pelos familiares. As informações coletadas no mapeamento coletivo 120
serão transferidas para um quadro, a ser fixado ao lado da maquete no galpão. A ideia é que ele possa ser alimentado ao longo do tempo pelos moradores que forem visitar o espaço.
5 - REFLEXÕES A oficina foi satisfatória, a maquete e o mapeamento coletivo funcionaram muito bem como estratégias para engajamento das crianças e dos jovens a algumas questões relativas ao território. No entanto, gostaria de ressaltar os custos - a maquete ficou em cerca de 180 reais, fora os materiais utilizados para o mapeamento. Isso é determinante quando penso, por exemplo, que a oficina anterior (fotografia e teatro) não implica em quase nenhum custo. São questões a se pesar dependendo dos objetivos e da estrutura as quais cada pesquisa dispõe para acontecer. Um incômodo que se iniciou na oficina anterior e continuou nesta foi o fato de eu não conseguir, junto aos jovens, definir quais seriam as atividades seguintes. Sempre que acontecia o momento “vamos sentar para conversar sobre o que vamos fazer na sequência”, todo mundo corria da discussão e de alguma forma se mantinha a postura de esperar que eu voltasse no mês seguinte com alguma outra proposta de oficina. Em outras palavras, eles se engajavam e topavam participar do que eu propunha, mas não havia uma atitude ativa por parte deles sobre o que viria na sequência, de forma que a responsabilidade de decidir sobre as atividades seguintes sempre recaía sobre nós (universidade).
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Figura 31: Anotações dos jovens sobre os saberes, ofícios e produções no Ho Chi Minh. Fonte: Acervo da autora, 2019.
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ENCONTRO 03
FESTA DAS CRIANÇAS Data: Sábado, 12-10-2019. Duração da atividade: Presentes: Crianças e jovens do Ho Chi Minh e redondezas Objetivo: Sistematizar os resultados da oficina anterior e iniciar a produção de uma linha do tempo coletiva. 126
No encontro anterior, Zete (liderança do Assentamento João Pedro Teixeira e pastora da Igreja) me pediu ajuda para arrecadar brinquedos para a realização da festa das crianças do Ho Chi Minh que aconteceria no dia 12 do mês seguinte na igreja. Como no mês de outubro eu só tinha disponibilidade para ir neste mesmo fim de semana, tivemos que unir as agendas e a ideia era realizar as atividades propostas para os jovens na igreja mesmo (ao invés de fazermos no galpão, como de costume), em algum momento da festa. A primeira ideia era sistematizar parte das informações coletadas através do mapeamento coletivo realizado no encontro anterior. Para isso, preparamos símbolos que representassem as produções mapeadas pelos jovens e crianças na tentativa de fazer uma sistematização física destas informações - uma espécie de quadro, que contivesse informações sobre o que é produzido (para venda), e quem o produz (nome dos assentados). A outra atividade consistia na confecção de uma linha do tempo (também física), que pudesse organizar os processos que ocorreram e ocorrem no Ho Chi Minh, com a intenção de ampliar a visão dos jovens sobre as distintas temporalidades de tais processos, além de aproximá-los aos acontecimentos antigos. Preparamos ambas as interfaces, no entanto não foi possível realizar as atividades. Haviam muitas crianças, do assentamento e de outros lugares, e quando chegamos recebemos a missão de separar e organizar os brinquedos para a doação, tarefa que levou muito tempo. Além disso, a festa contava com cama elástica, palhaços, pescaria e outras brincadeiras, então seria difícil - e até mesmo indesejável interromper a diversão dos meninos para a realização do que havíamos planejado. De qualquer forma, a campanha de arrecadação de brinquedos 127
foi um sucesso e conseguimos doações suficientes para dar pelo menos um brinquedo para cada criança presente. Além disso, o encontro nos proporcionou uma maior intimidade com os jovens e as crianças, uma vez que nos colocou juntos em uma atividade a qual eu não tinha nenhuma “posição de decisão” sobre o que estava ocorrendo, e percebi uma relação de maior amizade e abertura deles para conosco. Também foi importante por promover nossa aproximação a algumas pessoas do Assentamento as quais não havíamos conversado tanto, ampliando nossa capacidade de articulação interna. Nesse dia, dormimos na casa da Dona Lourdes - diferente de todas as outras vezes, que ficamos na casa do Luizão -, o que também foi positivo no sentido de ampliar nossa percepção sobre os processos a partir de muitas conversas com Dona Lourdes e Seu Eliseu.
Figura 32: Festa das crianças na Igreja. Foto: Iara Pezzuti, 2019.
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Figura 33: Material preparado para a sistematização coletiva das produções no assentamento. Inicialmente, a ideia era a produção de um quadro que contivesse as imagens e os nomes de quem os produz.
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Elaboração: Raul Lemos, 2019.
ENCONTRO 04
MINI CURSO DE CINEMA¹ Data: Sexta, sábado e domingo (15, 16 e 17-11-2019). Duração da atividade: 3 dias. Presentes: Entre 10 e15 crianças e adolescentes Objetivo: Evidenciar relações de territorialidade entre os jovens a partir da utilização do filme como dispositivo de mobilização territorial. ¹ Este curso foi pensado e construído coletivamente por Iara Pezzuti, Felipe de Brot, Raul Lemos e Aline Franceschini, com recursos da ASF Brasil. 130
DIA 01 – VER JUNTO + EXERCÍCIOS NO GALPÃO E ENTORNO Momento 1: Apresentação da proposta do curso Para iniciar, era importante retomar as discussões anteriores e conversar sobre o porquê de realizarmos essa oficina. Fiz, portanto, um esforço em relembrar do primeiro encontro, onde foi apontada a questão da desunião existente entre os mais velhos, e de se pensar no filme como uma estratégia para “unir” as pessoas do assentamento. Naquele momento, já no primeiro encontro, foi conversado sobre a possibilidade de fazermos um filme, ideia dos próprios jovens e algo que eu particularmente também tinha vontade de trabalhar. Enfatizamos a ideia da construção do roteiro do filme de forma coletiva, sendo que começaríamos com algumas atividades para conhecer a câmera e buscar ideias para montarmos e executarmos o roteiro coletivamente ao longo dos dois dias seguintes. Para não nos alongar muito na conversa – coisa que os meninos, como já vimos, não tem muita paciência para fazer -, apresentamos o cronograma do mini-curso que pensamos e a proposta de realizarmos coletivamente uma exibição em dezembro, que seria organizada por eles próprios. O roteiro simplificado do mini-curso foi: Dia 1: Como apresentar esse lugar para alguém que não o conhece? Dia 2: Divisão em grupos e filmagens na casa de outras pessoas
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Dia 3: surpresa! Chovia sem parar neste início, então optamos por fazer o momento de “Ver Junto” antes de qualquer outra coisa, assim podíamos conversar e gastar mais tempo no galpão enquanto a chuva ia embora e outras pessoas chegavam. Momento 2: Ver junto A ideia desse momento é exibir alguns trechos de filmes para alimentar a imaginação e o entendimento do filme como uma forma de apresentar um lugar. Podem ser escolhidos grupos de filmes que tratem de temas semelhantes para serem exibidos em bloco, ou assistir cada filme, comentar, e assistir o seguinte. Para a escolha dos filmes, é interessante pensar trechos que tragam questões diferentes a serem discutidas: como a câmera filmou? Quais são os ângulos possíveis? Qual a intenção da diretora? Quais as possíveis compreensões do espectador? Como os atores atuaram (eram personagens? Eram eles mesmos?)? Como os lugares filmados interferiram nas sensações do espectador sobre tais lugares? Como a história/roteiro foram montados? Qual a sensação ao final do filme? A ideia é ampliar o imaginário acerca das estratégias e possibilidades existentes na montagem e execução de uma cena. Os trechos de filmes exibidos foram: El vueco del cangrejo (2010) – Direção: Oscar Ruíz Navia. Colômbia. Rang-e khoda (EN: The color of Paradise) (1999) – Direção: Majid Majidi. Irã. Felicidade (2017) – Autoria: Ana Lúcia Azevedo, André Di 132
Franco, Felipe Carnevalli, Gustavo Jardim, Isabela Izidoro, Péricles Brandão Pinto, Pollyana Oliveira. Brasil. La Tierra y la Sombra (2015) – Direção: César Acevedo. Colômbia. Utilizamos a estratégia de exibir e comentar filme por filme. As discussões foram ótimas! Os filmes suscitaram discussões sobre o posicionamento da câmera, sobre as narrativas, sobre detalhes e recursos técnicos, entre outros. Tentávamos sempre perguntar primeiro o que eles acharam, para depois fazer algumas perguntas e provocações específicas. Eu particularmente tinha um pouco de medo que os filmes fossem muito deslocados do que eles estão acostumados a assistir e que, por isso, talvez não despertassem o interesse
Figura 34: Ver junto. Fonte: Acervo da autora, 2019.
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dos meninos. Mas a conversa após a exibição desconstruiu totalmente isso! Eles prestaram bastante atenção em todos os filmes, e praticamente todo mundo se envolveu em discutir sobre as histórias e tentar responder às questões que colocávamos. Momento 3: Almoço Momento 4: Como apresentar esse lugar para alguém que não o conhece? A ideia inicial era, nessa parte, fazer a divisão em duplas/trios para a realização das filmagens na parte da tarde. No entanto, tínhamos apenas 3 câmeras e os meninos queriam continuar todos junto. Ficamos um tempo para decidir, mas acabamos mantendo apenas um grupo. Nesse momento, apresentamos o tema norteador das filmagens na parte da tarde: Como apresentar esse lugar (o Ho Chi Minh) para alguém que não o conhece? A ideia inicial era marcar na maquete tais lugares, no entanto a própria maquete era uma abstração e as ideias surgiram mais facilmente ao longo das gravações do que neste momento inicial. Juntos os meninos decidiram que queriam começar a gravar nas ruínas do antigo alambique da fazenda, desativado quando o latifúndio foi à falência, antes mesmo da criação do Assentamento. A partir das discussões construídas no momento Ver Junto, decidimos quem exerceria cada papel nas filmagens: quem seriam as câmeras (utilizamos duas por cena), som, diretor(a) (duas), atrizes e atores. Fizemos um crachá para cada uma dessas funções - exceto para os atores que não deveriam utilizar crachás nas filmagens. Esse recurso dos crachás se mostrou muito importante, pois definia o papel de cada um e de certa 134
forma gerava maior comprometimento em realizar sua função durante a cena. Também anunciamos que as funções poderiam trocar ao longo das cenas, de forma que todos poderiam experimentar um pouco da função que quisessem. Juntos, eles pensaram em uma cena inicial, na qual a diretora (naquele momento, a Joice) possuía a função de guiar e orientar os atores sobre como deveriam atuar. Vale ressaltar que, apesar dessa função se dirigir mais à diretora, eles pensaram juntos praticamente todas as cenas. A maioria dos diálogos também foram improvisados pelos atores no momento da gravação. A ideia inicial deste dia era muito mais exercitar a utilização dos equipamentos e das estratégias de filmagem do que definir o roteiro em si. No entanto, cena a cena e naturalmente os meninos iam se engajando na história que criavam, de forma que o roteiro já começou a ser construído no primeiro dia. Na história inventada por eles, alguns jovens e crianças do Ho Chi Minh encontravam-se perdidos no assentamento, à procura de algo que eles ainda não sabiam o que era. Essa acabou sendo a narrativa do início ao final do filme, que foi chamado de A Procura por eles, já no primeiro dia. Alguns se mostraram preocupados sobre como uma cena se ligaria à outra. Tentamos tranquilizá-los dizendo que naquele momento podiam se preocupar mais com a execução de cada cena, e que pouco a pouco iríamos pensando como construir a sequência. Podemos dizer que a história e o roteiro foram acontecendo à medida em que as ideias de cada cena foram surgindo. Procuramos, neste primeiro dia, intervir o mínimo possível nas cenas pensadas por eles. Nossa função principal era orientá-los minimamente quanto às questões técnicas (possibilidades para a câmera filmar, posicionamento dos gravadores, etc), e deixá-los livres para que pudessem construir sua própria narrativa. Vale ressaltar a dificuldade na realização das primeiras cenas, e o 135
fato de que na terceira ou quarta cena gravada tudo já fluía com muito mais facilidade. À cada cena que “dava certo”, o momento do “Corta!” era sempre uma comemoração coletiva. Além disso, alguns meninos que à princípio disseram não querer aparecer, na segunda cena já estavam atuando e inventando diálogos sem que precisássemos guiá-los. Em dois momentos pessoas pararam na estrada para perguntar o que estávamos fazendo, e os próprios meninos explicaram que estavam gravando um filme sobre o Ho Chi Minh. Em um deles, um senhor em um fusca azul acabou sendo incorporado à história e atuando junto aos jovens. Ao final da tarde, nos reunimos para conversar sobre as cenas realizadas e organizar as ideias para as gravações do dia seguinte. Começamos a assistir as gravações feitas junto com os meninos, mas tivemos de interromper pois armava uma tempestade e já começava a escurecer. No dia seguinte, sugerimos que visitássemos algumas pessoas e outros lugares mais distantes do galpão no assentamento. Decidimos começar na parte da tarde na casa das Dona Das Dores, mãe da Joice, pois segundo eles ela possuía fotos de como era a sede da fazenda antigamente, além de existir um ponto bastante alto no lote onde seria possível uma visão mais ampla do Ho Chi Minh. Em seguida, iríamos na casa da Dona Lourdes e depois na sede da fazenda. Todas essas decisões foram tomadas por eles, de forma que apenas mediamos as questões logísticas: como iríamos para lá, quem iria no carro, como faríamos com o lanche etc.
DIA 02 - FILMANDO E EXPLORANDO NOVOS LUGARES No segundo dia, nos encontramos com alguns deles no galpão 136
e fomos direto para a casa da Joice, onde começariam as filmagens. O processo foi mais difícil pela chegada de mais cinco jovens para participar. Encontramos alguns deles na estrada no dia anterior, chamamos e eles animaram, o que foi bem legal! No entanto tivemos dificuldade em conduzir porque o grupo ficou muito grande. A ideia inicial era dividir em dois grupos, mas os meninos eram tão unidos que não quiseram se separar. Percebemos a importância da divisão das funções que utilizamos no primeiro dia (quem seria câmera, som etc), no entanto sobraram muitos atores e atrizes, e isso dificultava o momento de concentração antes da cena iniciar. Hoje penso que o ideal é realmente dividir em grupos, ainda que eles não queiram naquele momento, insistir um pouco mais para isso, pois poderia facilitar a condução das gravações e auxiliar a dividir melhor o papel de cada um na história. Além disso, tínhamos uma expectativa de conseguir filmar os mais velhos e visitar várias pessoas, mas o processo de ir de um lugar (ou uma casa) à outra era muito demorado. Também tivemos que lidar com mudanças de planos, como a Dona Lourdes, por exemplo, que teve um compromisso e não pôde participar da filmagem que planejamos naquele dia. Para conseguir filmar as pessoas mais velhas, creio que o ideal seria fazer uma reunião com todos eles antes do início da oficina para apresentar a ideia do filme e eles estarem mais “preparados” para nos receber. A Dona das Dores, por exemplo, estava trabalhando quando chegamos e pediu para não ser gravada, enquanto acho que se tivéssemos conversado antes de chegar lá com todo mundo talvez isso fosse diferente. Nesse dia, ficou evidente uma dúvida nossa sobre o quanto deveríamos intervir na construção do roteiro. A princípio, tentamos deixá-los o mais livre possível, mas a Joice (que no primeiro dia exercia a função de diretora) não pôde participar, e aos poucos fomos percebendo que talvez fosse necessário assumir um pouco a função de pensar o roteiro, pois os meninos 137
estavam muito dispersos e percebemos uma dificuldade enorme em ligar uma cena à outra. Aos poucos, fomos assumindo essa função, mas sempre deixávamos eles livres para atuarem como quisessem nas cenas, para construir os diálogos e para decidir onde e como gravar. A montagem processual do roteiro funcionava mais ou menos assim: gravávamos uma cena e, ao final, conversávamos sobre como a história poderia continuar a partir daquele acontecimento. Algumas vezes, quando percebíamos que faltava uma ligação entre uma cena e outra, gravávamos a cena que faltava já conversando sobre a possibilidade de montar e alterar a ordem da história posteriormente à gravação das cenas. Os meninos compreenderam bem esse processo, pois algumas vezes eles mesmo sugeriram cenas e inversões na ordem das mesmas. Finalizamos as filmagens na cachoeira da sede, um dos lugares que eles mais queriam filmar. O final do dia foi bastante caótico pois caiu uma tempestade enquanto voltávamos da sede, e cada um foi arrumando seu jeito de ir embora, portanto não conseguimos fazer uma conversa com todo mundo ao fim do dia. Combinamos de encontrar no galpão no dia seguinte, pela manhã, para iniciarmos lá o último dia de gravações.
DIA 03 - GRAVAÇÕES FINAIS No dia 03 estávamos convencidos que deveríamos organizar melhor o roteiro para conseguirmos fechar o filme. Antes de encontrar os meninos, assistimos as cenas realizadas até então e pensamos o que faltava para fechar a história (claro que seria melhor fazer isso junto a eles, mas tínhamos pouco tempo e infelizmente não seria possível construir o processo inteiro coletivamente naquele momento). Encontramos no galpão pela manhã e já começamos as filmagens. A ideia era ir almoçar na Dona Lourdes, que ficou 138
responsável por fazer o almoço para nós, mas era preciso pensar em como (no filme) a história se conduziria para a casa dela. Foi interessante porque a história criada, apesar de ficção, tinha a ver com situações reais: como ir almoçar, como chegar nos lugares - os meninos pegaram carona na carroceria da caminhonete como costumam fazer no dia a dia, como incorporar as pessoas mais velhas que iam aparecendo durante as filmagens, entre outros desafios. Tínhamos a ideia de, no terceiro dia, fazer uma espécie de caça ao tesouro, de forma a montar uma brincadeira onde eles seriam levados para vários lugares do assentamento e, em cada lugar, teriam uma missão (por exemplo, improvisar uma cena, ajudar em alguma tarefa etc). Acabamos fazendo essa brincadeira só parcialmente, como uma forma de encerrar o filme. Preparamos algumas pistas e as escondemos próximas ao rio onde eles costumam nadar. Ao final, sentimos uma desconexão grande dessa ideia da caça ao tesouro com o restante da história. Apesar de ter sido super divertido e os meninos terem amado, do ponto de vista da história ficou um pouco difícil incorporá-la ao roteiro. Por outro lado, pensamos que poderia ser legal a cena final do filme ser eles cavando e encontrando um tesouro, mas o filme não revelar o que esse tesouro era de fato. Como durante o filme inteiro eles estavam perdidos e procurando algo que não sabiam o que era, refletimos que talvez isso pudesse abrir discussões interessantes sobre a história do filme: o que eles estavam procurando afinal? O que eles haviam encontrado? Gravamos a cena final e fomos todos juntos nadar no rio!
REFLEXÕES Saímos com uma sensação muito boa após o final da oficina. É claro que muita coisa poderia ter sido diferente se tivéssemos 139
mais tempo para pensar, para refazer algumas cenas e, sobretudo, para rever e discutir com eles o roteiro com mais profundidade. No entanto, para muitos ali aquele havia sido o primeiro contato com uma câmera, com gravadores, tripés, claquete e tudo mais. Dado o tempo que tivemos, achamos o processo bastante satisfatório pois todo mundo se engajou e participou do início ao fim. Alguns que, durante os encontros anteriores, eram muito calados e quando tentávamos puxar discussões não falavam nada, durante o filme e as gravações deram ideias, sugeriram diálogos e cenas, além de atuarem eles mesmos nas cenas - isso, para mim, foi o mais surpreendente! O rito cinematográfico (luz, câmera, ação) se mostrou muito potente para criar o engajamento de todos na execução das cenas. Os momentos de “corta!”, como já disse, eram momentos de comemoração e alegria coletiva. Além disso, a ideia de plaquinhas com as funções de cada um se mostrou um recurso simples mas bastante efetivo para gerar um comprometimento com o que estava sendo feito. Outro ponto de destaque para nós foi o mundo de possibilidades surgido a partir da ideia de criar uma ficção coletivamente. Dar possibilidade a eles de inventar uma história onde eles mesmos apareciam e construíam foi também dar a possibilidade de inventar novos caminhos, de mostrar partes do território sob uma outra visão. Aliás, a possibilidade de registrar o território, de abrir para eles a chance de escolher o que achavam relevante para mostrar, de convocar e permitir exercitar o olhar e inventar novos olhares sobre o lugar onde vivem, se mostrou uma ferramenta incrível de engajamento com o território. Seria muito interessante se pudessmos fazer a montagem do filme junto a eles, ensinando àqueles que tivessem mais interesse na parte da montagem como usar o programa de edição, possibilidades de cortes e edição das cenas etc. Entretanto, o curto tempo existente para o fechamento do trabalho impediu que essa parte ocorresse no assentamento. 140
Por fim, combinamos de editar e montar o filme e retornar ao assentamento para a exibição no dia 7 de dezembro, às 18hrs. Cada um ficou responsável por uma função: fazer a divulgação e pregar cartazes no ônibus, ajudar a arrumar o galpão no dia, finalizar a maquete e organizar um lanche. A ideia é que o dia da exibição seja também um dia para eles mostrarem aos mais velhos o que fizeram durante o semestre, para convidá-los a completarem a linha do tempo e o quadro de mapeamento das produções (produzidos para o encontro do dia das crianças), além de apresentarem o filme e mediarem a conversa ao final.
Figura 34: Gravador de som improvisado no rodo, invenção coletiva. Fonte: Acervo da autora, 2019.
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Figuras pรกgs. 142, 143, 144 e 145: Mini curso de cinema Fonte: Acervo da autora, 2019.
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6. REFLEXÕES FINAIS 146
Este trabalho, como o próprio título apresenta, se desenhou como um esforço de se pensar e refletir sobre as possibilidades de nossa atuação enquanto arquitetos e urbanistas para além do espaço consolidado da cidade. Encontrar esse lugar de trabalho (e de pesquisa!) não se constituiu, entretanto, como uma tarefa fácil. Pensar a atuação em um assentamento rural envolveu um esforço contínuo por extrapolar a discussão da habitação rural, no campo da arquitetura, e a discussão do planejamento metropolitano, no campo do urbanismo - muitas vezes afastada dos contextos os quais ela busca representar. Expandir, portanto, nossa possibilidade de trabalho nesses contextos envolveu também expandir os desafios, as dúvidas, as incertezas. Em que, exatamente, eu poderia contribuir? Inicialmente, busquei a resposta a partir da realização de uma pesquisa teórica, de entrevistas e de outras fontes de informação como estratégia para compreender melhor o processo de consolidação do assentamento, suas fragilidades e potencialidades. Pensei poder colaborar no registro desta história, abrindo possibilidades para repensar as políticas públicas para o campo e a forma como os processos de assentamento dos sem terra costumam ocorrer. No entanto, a baixa perspectiva de acesso às políticas públicas destinadas à Reforma Agrária e a já concretizada consolidação do assentamento me motivaram a mudar o rumo da pesquisa e a buscar novas perspectivas para trabalhos futuros, a serem construídos junto às famílias. Creio que essa mudança de 147
postura foi motivada pela própria conduta adotada pelo Movimento Sem Terra frente à situação política em que vivemos nesse país. Sem o apoio do Estado, torna-se ainda mais necessário lutar pela autonomia e autossuficiência dos assentamentos e acampamentos. A partir dessa situação, decidi trabalhar com os jovens e as crianças por perceber uma ausência de atividades para eles no Ho Chi Minh, e também a partir dos inúmeros relatos e falas dos mais velhos que sempre pontuavam o distanciamento dos mais novos das questões relacionadas ao território, o desinteresse pela atuação do MST e pela formação política etc. Adotei o formato de encontros mensais como forma de comunicação com os jovens e as crianças, a fim de buscar interesses coletivos que pudessem guiar a atuação da assessoria técnica no assentamento em trabalhos futuros, a partir dos processos em curso. Durante esse período de experimentação crítica no campo, uma série de dúvidas e questionamentos surgiram. Tentarei, na sequência, sintetizar e trazer para discussão algumas dessas questões: > Assessoria para quê? Expandir o olhar para o habitar representou uma chave para pensar na prática de assessoria técnica e investigar diferentes possibilidades de atuação no assentamento. Entretanto, assessoria técnica para quê? Nesse sentido, trabalhar a partir de demandas existentes pode evidenciar e tornar mais claro o trabalho da assessoria. O trabalho inicial que realizamos levantamento dos documentos e elaboração dos projetos para o Minha Casa Minha Vida Rural - é um bom exemplo. Fomos ao assentamento a partir de uma demanda específica, real e já evidenciada pelas famílias. Essa situação desemboca, em geral, em um engajamento imediato das pessoas, pois parte de um interesse e de uma disposição já existente entre elas para 148
a realização daquele trabalho. Por outro lado, agir sob uma demanda pré-figurada corre o risco de estimular uma postura passiva dos assentados para a resolução de suas questões, e, consequentemente, perpetuar a prática assistencialista da assessoria técnica no meio rural. O desafio, nesse caso, é como contornar esse risco e estimular a autonomia das comunidades assessoradas para a resolução de suas demandas. Por outro lado, a partir do momento em que não existem demandas urgentes - nesse caso, a partir do momento em que o acesso ao programa de moradia se mostrou tão improvável ao ponto de não fazer sentido continuar insistindo nele nesta pesquisa, a assessoria técnica passa a circular à procura de outras questões ou interesses coletivos aos quais o trabalho de assessoria pode se somar. E essa busca leva tempo! Nesse sentido, como promover a mobilização para a realização de atividades que não partem de uma demanda urgente da comunidade? Antes de pensar em estimular a mobilização, mostrou-se necessário entender qual o engajamento daqueles jovens com o território, para então buscar compreender em quais processos poderíamos estimular tal mobilização. > Incentivar a discussão acerca do território não é o mesmo que construir uma mobilização! A partir da definição de desenvolvimento territorial apontada por Saquet, que envolve a efetivação de políticas públicas e da mobilização social, iniciei os trabalhos do segundo semestre almejando contribuir para o fortalecimento da mobilização no Ho Chi Minh. Entretanto, tal tarefa se mostrou impossível pelo curto prazo de duração, e o trabalho se assumiu muito mais como uma forma de promover a discussão acerca do território do que proporcionar e consolidar um processo de mobilização em si. 149
Demorei a compreender isso e me frustrei por não conseguir romper com a dependência na nossa figura, da Universidade, para a realização das atividades que tentávamos construir. A cada encontro realizado em que eu não conseguia decidir com eles o que seria feito na sequência, sentia que estava novamente com as rédeas do jogo em minhas mãos, sem conseguir estimular a autonomia deles para darem sequência às questões que surgiam. Compreendi, enfim, que realmente era pouco tempo para construir essa postura de mobilização e auto-organização por parte deles, e que na verdade eu me encontrava em outra etapa deste trabalho, muito anterior (mas não menos importante para uma futura mobilização): auxiliá-los a evidenciar interesses coletivos e promover a discussão acerca das diversas questões relacionadas ao território do Ho Chi Minh, para que eles mesmos possam, com o tempo, construir a mobilização em torno do que julgarem importante. Nesse sentido, eu poderia dizer que todos os encontros foram muito satisfatórios e contribuíram para compreender melhor a relação dos jovens com o Assentamento. Diferentemente do que imaginamos, percebemos uma conexão forte deles com o território, com a produção dos pais, com as cachoeiras, o rio e pontos de referência naturais, as histórias antigas... Além disso, a desmobilização e desunião existentes entre os mais velhos não pareceu ser transmitida aos mais novos, de forma que eles se mostraram unidos e interessados em participar de tudo o que propusemos nesse curto período de experimentações, com uma condição: que não ficássemos só no blablabla. > A barreira da fala No primeiro encontro realizado no semestre, ficou claro que a questão da desunião e da desmobilização existente entre os mais velhos era algo relevante para os jovens e para as crianças. 150
Entretanto, decidir coletivamente quais seriam as atividades seguintes a partir dessa questão não se mostrou tarefa fácil. Em geral, o momento final das atividades era sempre uma dispersão completa, e a fala se mostrou uma barreira contínua para os jovens expressarem o que sentiam – da mesma forma como os adultos não queriam participar das reuniões por estarem cansados de muito blablabla e poucos resultados. Durante as atividades dinâmicas, por outro lado, todos se mostraram abertos a colaborar e a participar. No filme isso ficou incrivelmente evidente. Alguns que, durante as reuniões e conversas que tentamos puxar, não falavam nada e não participavam, durante o filme se engajaram totalmente nas funções que desempenharam. Isso mostra uma necessidade urgente de repensarmos a forma como os processos de reuniões e decisões coletivas geralmente acontecem. A meu ver, mais um desafio para a assessoria técnica: como colaborar para a transformação de conversas, reuniões e decisões coletivas em processos prazerosos! > Imersões ou mini-imersões? Do ponto de vista dos desafios e dificuldades para a realização deste trabalho, a metodologia das imersões – permanecer por um período prolongado no assentamento, como por exemplo, uma semana – se mostrou como uma ferramenta mais viável financeiramente, dada a distância do assentamento à Belo Horizonte, os gastos com transporte, o tempo gasto previamente para o planejamento das atividades, enfim. Tal estratégia permitiu a execução dos trabalhos do MCMV-R, mas não se encaixou, por exemplo, para a realização da proposta desse semestre, onde não havia um objetivo pré-definido a ser alcançado. A realização de encontros coletivos a fim de buscar interesses em comum e consolidar uma mobilização 151
em torno de algo carecia muito mais de uma periodicidade – quanto menor o intervalo entre os encontros, melhor! – do que de intensidade, com várias atividades durante dias seguidos. Essa última estratégia funciona melhor, me parece, quando há um objetivo claro a ser concretizado ao final - um mutirão, a produção de algum trabalho (um filme?), a construção coletiva de algo etc. Dessa forma, a única saída possível foi a realização das mini-imersões mensais, ou seja, idas uma vez ao mês para o assentamento com estadia de 2 a 3 dias. Essa forma de trabalhar impôs várias questões e dificuldades à pesquisa, especialmente do ponto de vista financeiro. Os custos com transporte, a realização de lanches para viabilizar os encontros, os gastos com a estadia e com materiais utilizados foram arcados por mim (e, uma parte, pelas pessoas que me acompanharam nos encontros), sem auxílio financeiro da Universidade. Ainda assim, a estadia por alguns dias se mostrou muito mais potente do que as chamadas visitas de campo, que não proporcionariam nos envolvermos e conhecermos tantos aspectos da vida no assentamento. A decisão por uma forma de trabalhar ou outra – imersões ou mini-imersões – vai depender da urgência das atividades propostas e da sua relevância para os moradores, que ditará a possibilidade ou não de estadias mais prolongadas para a realização do que for proposto. De qualquer forma, o apoio financeiro da Universidade para a realização das pesquisas de extensão se mostra fundamental se quisermos pensar em ampliar nossa atuação enquanto arquitetos-urbanistas para além da cidade, especialmente em contextos de fragilidade social onde muitas vezes não é possível contar com a auto-organização da comunidade para arcar com a realização dos encontros e atividades propostos. 152
Por fim, realizar esse trabalho abriu vastos horizontes para se pensar em outras relações possíveis entre campo e cidade no Brasil, bem como expandiu radicalmente minha imaginação acerca das possibilidades da prática de arquitetura para além da cidade. O curto tempo de experimentação não permitiu aprofundar muito nas questões despertadas, mas abriu portas para trabalhos futuros, seja a respeito da continuação do mapeamento das produções, do registro da história do assentamento, da produção de outros vídeos sobre outros temas, entre muitas outras possibilidades. Além disso, conviver um ano e meio no Ho Chi Minh, dormir e acordar com os moradores, me mostrou uma oportunidade de criar espaços para a construção de uma relação menos distanciada entre quem é da Universidade e quem não é. É evidente que estes distintos lugares de fala não podem ser negados, tampouco feitos invisíveis, porque existem e são reais. Mas isso não exime nosso esforço em tentar transformá-los para constituição de outra relação entre pesquisadores, alunos, profissionais e técnicos às comunidades por nós assessoradas, com menos relações de dominação e mais reciprocidade. Permitir, como diria bell hooks, trabalhar pela liberdade e imaginar esquemas para cruzar fronteiras.
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7. AGRADECIMENTOS Esse trabalho é fruto de muitas mãos! Obrigada a todas as famílias do Assentamento Ho Chi Minh, em especial Luizão pelas recepções calorosas, Fabim pela confiança e parceria, Dona Lourdes pela ajuda na produção das oficinas, entre tantas outras pessoas fundamentais nesse processo. Obrigada Leta e Tiago pelas orientações e pela confiança depositada em mim! Raulzito, pela amizade e parceria; Ana e Junia por me ajudarem a ver caminhos possíveis; Celina pelos conselhos e apoio; minha família e amigos, que me ajudaram de formas distintas a concluir essa jornada: Dré, Larissa, Maricleide, Fiu, Aline, Izi, Lucca, Letícia, Gabi, Lari, Gigia, Rita, Vitor, Du, Alice, Ju, Rod, Marília, amigas e amigos da ASF, e tantos outros que participaram, direta ou indiretamente, deste processo. Sem vocês não seria possível! 155
8. REFERÊNCIAS 156
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