Revista Coniunctio

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ANO 1 | Nº. 1| 2012 | ISSN 2317-0182

Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa O amor é uma essência ternária Sonia Regina Lyra

Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança

Santo Agostinho e a Lua Nova Sonia Regina Lyra comenta artigo de Pedro Sinde

Albertina Laufer

Sonhos: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia Franciele Engelmann

A função compensatória dos sonhos Ano I | número 1 | 2012 Francisco Purcotes Júnior

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Edição Atual 52 páginas Curitiba | Ano 1 | Nº. 1| 2012 | ISSN 2317-0182 Copyright © 2012 by autores Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. E-mail: coniunctio@ichthysinstituto.com.br Editores: Sonia Lyra Jubal Sérgio Dohms Comissão editorial Sonia Regina Lyra Jairo Ferrandin Juarez Francisco da Silva Adriano Holanda Conselho editorial Dra. Sonia Regina Lyra Dr. Jairo Ferrandin Dr. Enio Paulo Giacchini Dr. Luiz Felipe Pondé Dr. Gilvan Luiz Fogel Dr. Nilo Agostini Diagramação: Dohms Comunicação Revisão: Enio Paulo Giachini Capa: Imagem da NASA Dados internacionais de catalogação na fonte Bibliotecária responsável: Angela M. S. K. Cherobim CRB 9ª R/605 ______________________________________________ CONIUNCTIO Revista de Psicologia e Religião v.1, n.1, Curitiba: Ichthys Instituto, 2012 Semestral 1. Psicologia - Periódicos 2. Religião – Periódicos 3. Filosofia – Periódicos 4. Arte – Periódicos 5. Teologia – Periódicos. _______________________________________________ Ano I | número 1 | 2012

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SUMÁRIO |4 Editorial |5 Sonia Regina Lyra comenta artigo de Pedro Sinde

Santo Agostinho e a Lua Nova |10 Sonia Regina Lyra Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa O amor é uma essência ternária |21 Albertina Laufer Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança |36 Franciele Engelmann Sonhos: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia |43 Francisco Purcotes Júnior A função compensatória dos sonhos |52 Chamada para publicação e normas para colaboração

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EDITORIAL CONIUNCTIO: PSICOLOGIA E RELIGIÃO

Coniunctio – Revista de Psicologia e Religião é um periódico científico, eletrônico, semestral, que está sendo criado neste ano de 2012, tendo por objetivo publicar pesquisas, artigos, resenhas, críticas e entrevistas que contenham temas relacionados à Psicologia (Psicologia geral, Psicologia analítica e especialmente Psicologia da religião) e à Religião, em diálogo com áreas afins: filosofia, arte, mitologia, teologia, sociologia, etc. De qualquer forma, o que se quer com isso é fomentar a área de pesquisa em Psicologia da Religião por ser esta a “filha mais nova” da psicologia, no Brasil na contemporaneidade. Coniunctio é uma publicação criada e mantida pelo ICHTHYS INSTITUTO DE PSICOLOGIA E RELIGIÃO. Neste ano de 2012 também foram criadas a Associação Cultural Ichthys, que congrega vozes que se erguem, além da cultura dominante, pela cultura do autoconhecimento, e a Biblioteca Ichthys, que já de início publicou os livros Jung leitor de Nietzsche: acerca da “morte de Deus”, já disponível, e Nicolau de Cusa: visão de Deus e teoria do conhecimento, com lançamento agora em setembro – ambos de autoria de Sonia Lyra, PhD., analista junguiana, membro da International Association for Analytical Psychology e doutora em Ciências de Religião. Aproveitamos essa oportunidade para convidar pesquisadores(as) e professores(as) a contribuírem com a Coniunctio. A publicação ou não do material enviado será definida pela Comissão de Redação a partir dos critérios propostos pelo Conselho Editorial, integrado por professores/as e especialistas de várias Universidades e Centros de Estudos. As propostas para publicação devem ser originais, não tendo sido publicadas em qualquer outro veículo do país. Publicam-se artigos em quatro línguas: português, espanhol, italiano e francês. Todos os números são divulgados por meios digitais, estando disponíveis online pela Internet. Os editores Ano I | número 1 | 2012

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Santo Agostinho e a Lua Nova Para esta primeira edição da Revista de Psicologia e Religião trazemos o belíssimo artigo de Pedro Sinde, de Portugal, o qual foi escolhido por vir ao encontro da temática principal de nossa revista: O sol e a lua. O texto será comentado trazendo recortes do original, bem como, algumas alterações no vocabulário do autor, que condizem mais com o português do Brasil. Sonia Regina Lyra

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6| Santo Agostinho e a lua nova | Pedro Sinde por Sonia Lyra | 06 - 09

Santo Agostinho e a Lua Nova* Pedro Sinde (De Magistro, XII, 39 - Porto, Portugal) por Sonia Lyra** Porque o coração deste povo tornou-se duro, e duros também os seus ouvidos; fecharam os olhos, não fossem ver com os olhos, ouvir com os ouvidos, compreender com o coração, e converterem-se para Eu os curar (Mt 13, 10-16)

* http://www.hottopos. com.br/notand5/sinde.htm

** Sonia Regina Lyra Doutora em Ciências da Religião sonia@ichthysinstituto.com.br 1| Servimo-nos da edição SANTO AGOSTINHO, O Mestre, introdução e comentários de Maria Leonor Xavier, trad. de António Soares Pinheiro. Porto: Porto Editora, 1995 (Colecção Filosofia. Textos, 8); as citações serão feitas também segundo a divisão do texto original. 2| De Magistro, XII 39; ed. cit., p. 93, linhas 1829, itálicos nossos. 3| De Magistro, XI 38; ed. cit., pp. 92, 93, linhas 35-8.

Segundo Pedro Sinde, Santo Agostinho,

pode trazer alguma luz à compreensão do por-

ra, uma indicação bem preciosa para o conheci-

Ora, acerca de todas as coisas que intelecciona-

em sua obra O Mestre1, dá, a determinada altumento humano. Tudo se passa no capítulo XII

da referida obra, quando se fala das duas formas

de conhecimento: a “sensorial” e a “inteligível”. Diz Santo Agostinho:

que do exemplo da Lua Nova:

mos, não consultamos alguém que fala e produz um som fora de nós, mas a verdade que preside interiormente à nossa mente, sendo talvez incitados pelas palavras a consultá-la. E aquele que é

Todas as coisas que percebemos, ou as percebemos pelos sentidos do corpo ou pela mente. Denominamos as primeiras sensoriais; as segundas, inteligíveis; ou, para falar à maneira dos nossos autores, denominamos carnais as primeiras; espirituais, as segundas. Interrogados sobre as primeiras, damos resposta, se estão diante de nós essas coisas que sensoriamos; por exemplo, quando nos perguntam, estando nós a observar a lua nova [lunam novam], qual é ou onde se encontra. Neste caso, se aquele que pergunta não a vê, acredita nas palavras, e muitas vezes não acredita; aprender, de modo nenhum

consultado, ensina: é Cristo, de quem se disse que habita no “homem interior” [Efésios, 3, 16-17], e é “o poder incomutável de Deus e a sempiterna Sabedoria”. A esta, de fato, toda a alma racional a consulta; ela, porém, manifesta-se-lhe na medida em que cada um é capaz de a receber, em razão da própria vontade, boa ou má. Se a alma alguma vez se engana, não é por defeito da verdade consultada, do mesmo modo que não é por defeito desta luz exterior que os olhos corporais por vezes se enganam. É manifesto que para nos certificarmos acerca das coisas visíveis recorremos a esta luz para ela no-las mostrar,

aprende, a não ser que também ele veja o que se

na medida em que somos capazes de ver3.

lhe diz2.

Tem-se então a analogia seguinte: Sol

Como se sabe, a Lua Nova não é visível.

exterior – Sol interior. Tal como o Sol exterior

no, é o auge da escuridão. Mas, sabe-se também

como de intérpretes, a realidade sensorial, assim

Toda a luz, nesta fase, se apaga do globo noturque é sempre da mais profunda treva que a luz brota para encher a madrugada. Antes de prosseguir, observar-se-á uma analogia que Santo Agostinho faz no final do capítulo XI e que Ano I | número 1 | 2012

se mostra, através dos sentidos que a mente usa, também o Sol interior mostra a verdade. Diz

Santo Agostinho que a esta, de fato, toda a alma racional a consulta. Mas, então, como é que não

somos todos iluminados pelo Sol interior, todos co-

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Santo Agostinho e a lua nova | Pedro Sinde por Sonia Lyra | 06 - 09

nhecedores da sempiterna sabedoria? A resposta de

na – “o homem interior”. Quis Ele que fossem es-

a alma alguma vez se engana, não é por defeito da

sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito

defeito desta luz exterior que os olhos corporais por

“Cristo habita no homem interior” [Efésios, 3, 16].

Santo Agostinho prolonga a analogia dizendo que se

ses os seus templos. Não leste no Apóstolo: “Não

verdade consultada, do mesmo modo que não é por

de Deus habita em vós?” [1 Coríntios, 3, 16] e que

vezes se enganam. A luz da verdade é sempre per-

feita, dependendo da vontade de cada um, boa ou

má, em recebê-la na íntegra. Parece, no entanto, que seria muita ingenuidade de Santo Agostinho acreditar que a verdade se revela apenas pela

vontade boa. Tentar-se-á mostrar que é preciso bem mais do que vontade boa para receber a luz da verdade.

vossos corações, e compungi-vos nos vossos aposentos; oferecei sacrifícios de justiça, e esperai no Senhor”? [Salmo, 4, 5-6]. Onde pensas que é oferecido o sacrifício de justiça, senão no templo da mente e nos aposentos do coração? Ora, onde se deve sacrificar, aí se deve também orar. Por isso, quando oramos, não é preciso a locução, isto é, as palavras sonantes; a não ser ocasionalmente, como fazem os sa-

Para amplificar a analogia “Sol exterior

cerdotes a fim de exprimirem o seu pensamento,

receber a luz interior, tal como a Lua recebe a

estes, graças à rememoração, se elevem para Deus

feita quando se pensa na teoria da iluminação

Repare-se que Santo Agostinho compa-

– Sol interior”, dir-se-ia que o homem pode

luz do Sol. A analogia parece tanto mais per-

não para que os oiça Deus mas os homens, e assim em certa conformidade de sentimentos4.

de Santo Agostinho, onde nunca chega a haver

ra aqui alguns significados como, por exemplo,

apenas por ela iluminado, da mesma forma que a

um quarto fechado não é escuro, uma espécie de

transmutação do homem na verdade, sendo este Lua nunca chega a ser Sol, sendo apenas por ele ciclicamente iluminada. Parece que a teoria da

iluminação de Santo Agostinho segue no mesmo trilho que a Lua, indo da sua fase Nova para

a Cheia. É possível que Santo Agostinho esteja dando apenas uma indicação sutil sobre um de-

terminado estado que o indivíduo deva realizar

em si para poder receber a luz da verdade. Nesse caso o que significará, então, o homem interior

fazer em si a mais densa escuridão, fazer em si a Lua Nova? Diz no capítulo I:

Pelo que me parece, ignoras que por nenhum outro motivo nos foi ordenado que rezássemos em quartos fechados [Mateus, 6, 6] – nome que significa o santuário da mente – senão o de que Deus, para nos conceder o que desejamos, não pretende ser rememorado ou ensinado pela nossa locução. Efectivamente, quem fala mostra exteriormente o 4| De Magistro, I 2; ed. cit., pp. 58-59, linhas 22-2.

Nem advertiste o que disse o profeta: “Falai nos

sinal da sua vontade, por meio dum som articulado. Deus porém deve-se procurar e suplicar no próprio íntimo da alma racional, o qual se denomi-

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quartos fechados e santuário da mente. Por acaso Lua nova, ainda não iluminada pelo Sol? Tudo

se passa no interior ou, nas palavras do próprio

Santo, no homem interior: nos quartos fechados, no íntimo da alma racional, no íntimo da consciência. A feminina, lunar via que Santo Agosti-

nho aponta passa, não pela razão em si mesma, mas antes por uma procura e súplica no próprio

íntimo da alma racional. Não na alma racional, mas no íntimo dela. Dir-se-ia ‘no centro’! São as

próprias expressões usadas por Santo Agostinho

que indicam esse lugar bem oculto no qual tudo se passa. Há três ou quatro pontos que imediatamente ressaltam do excerto citado:

1. Deus é o desvelador da Verdade: na bus-

ca da verdade o que se deve realmente buscar é Deus. Este se identifica com a verdade como o sol com a luz.

2. “Comunica-se” com Deus através da

oração: a forma de encontrar Deus é através da

oração do homem interior. A oração é puro si-

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5| E o que é que significa essa outra alusão aos sacrifícios que se devem oferecer, mas desta feita no coração? Para o conhecimento e a crítica dos textos herméticos, em particular o Asclépius, vejam-se as abundantes citações em De civitate Dei, VIII cap. xxiii-xxiv. 6|A oração silenciosa / Deus transcende tudo de tal modo, que nada se pode dizer. / Portanto é também em silêncio que melhor o adoras. É através do silêncio que ouvimos / A Palavra ressoa em ti mais que na boca do outro; / Se podes calar-te diante dela, no mesmo instante a ouves, Angelus Silesius: A rosa é sem porquê (excertos da segunda edição de 1675 do Cherubinischer Wandersmann), tradução de José Augusto Mourão, Vega, 1991. 7|Dado um conceito, dado um esquema, logo as imagens acorrem impelidas por uma necessidade íntima, a que se pode chamar espírito de associação ou de contiguidade, a tentar subordiná-lo. É então que o espírito tem de manter-se bem firme no conceito, atuando como um poder que, em vez de se deixar dominar, pelo contrário a si submete a energia da imagem, dirigindo-a e modificando-a de harmonia com o fim que se propôs. Ao exercício deste poder que é, aliás, a própria atividade do pensamento, chama Bergson «esforço intelectual. Tal atividade é comparável à espada com que Ulisses afasta os espíritos atraídos pelo sangue do sacrifício” (TELMO, António, Arte Poética. Lisboa: Guimarães Editores, 1993, p. 21). 8|Op. cit. p. 94, linhas 9-12. 9| A este propósito, leiase o tratado de MESTRE ECKHART, Du Détachement, in: Les Traités et le Poème, Albin Michel, 1996 (Spiritualités vivantes).

lêncio, ausência de Verbo, como a Lua Nova é ausência de luz.

3. A oração é a procura do puro silêncio

nos quartos fechados, no santuário da mente no

íntimo da alma racional. Chega-se ao silêncio através da oferta de sacrifícios de justiça.

4. A oração faz-se em quartos fechados, na

mente, local onde se deve oferecer sacrifícios. O sacrifício é a renúncia à sua própria luz, para que

possa brilhar a luz da verdade5. Com isto, vê-se que é Deus quem desvela a verdade e, se assim

é, é na oração – sendo esta a suprema forma de comunicação com Ele – que se deve procurar a Verdade. A oração é puro silêncio6, e o silêncio é

o resultado do sacrifício oferecido. Santo Agostinho parece recomendar, veladamente, que se faça o sacrifício do falso intelecto, aquele cheio

de ocas palavras, para que se possa conquistar o

de pura atenção, capaz de, a todo o momento, se

desidentificar do conteúdo da alma , cujo ataque, o indivíduo que o tente fazer em si constante-

mente vai sofrer. Quem quer que tenha tentado, por uns minutos apenas, fazer silêncio no seu interior verá que, em poucos segundos, já está

encadeado, preso na corrente do pensamento, esquecendo-se rapidamente de prosseguir no silêncio a que se tinha proposto. Exige-se, por-

tanto, uma atenção que não se deixe identificar, caindo na corrente do pensamento, das emoções e da imaginação, ou melhor, da fantasia, e que seja capaz de ver:

O ouvinte, se também ele as [i.e., as «coisas que vemos por meio da mente»] vê por meio dessa visão íntima e pura, conhece pela sua contemplação o que eu digo10.

Só uma faculdade deste tipo pode permitir

verdadeiro Intelecto – não o particular, ligado ao

descobrir o Sol-Cristo, atendo-se, firmemente

nador. Corresponderia, neste caso, ao sacrificium

cendo sacrifícios. Quais sacrifícios? Os do seu

chegar a um conhecimento-visão. Aliás, o pró-

tica. A memória, a que estão inerentes as palavras,

de conhecimento, diz que: “Quando, porém, se

de que as palavras são sinais. Então, a memória,

isto é, por meio do intelecto e da razão, falamos

ga intuitivamente a esse mundo inteligível no

tes nessa luz interior da Verdade, de que é ilu-

do homem, constantemente envia os raios ilu-

interior ” .

são interpostas as espessas nuvens dos pequenos

pequeno eu discursivo, mas o Si, o Cristo ilumi-

ancorada, ao centro e aí constantemente ofere-

intellectus7, uma espécie de opus purgationis, para

falso intelecto, renunciando ao demônio da dialé-

prio Santo Agostinho, ao referir-se a este tipo

revolvendo-as faz vir ao espírito as próprias coisas,

trata de coisas que vemos por meio da mente,

através das palavras que lhe estão inerentes, che-

realmente de coisas que contemplamos presen-

qual está, em ato, a verdade. Cristo, no interior

minado e goza aquele que se denomina homem

minadores da verdade e a todo o momento lhe

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Em relação ao sacrifício, Santo Agostinho

diz claramente que é na mente que deve ser oferecido. Onde se deve sacrificar, aí se deve também orar. E onde se deve orar sem palavras? – nos

aposentos do coração (Falai nos vossos corações). Há

ainda outra referência importante, que pode ajudar a compreender o sacrifício, que diz respeito à

pensamentos. A radical desvalorização das pala-

vras por parte de Santo Agostinho neste diálogo deve-se, com certeza, à necessidade de enfatizar essa outra forma de comunicação, mais pura e

direta, que permite a ligação imediata à fonte da verdade: o silêncio11.

Este é o veículo no qual é transportado o

rememoração. O acesso à verdade interior faz-se

Verbo interior, a luz da verdade. O silêncio é a

escuridão da Lua Nova, requer uma faculdade

é precisa a locução, isto é, as palavras sonantes; a não

por ela, como por uma escada. O silêncio, a tal

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Lua Nova. É dito ainda que quando oramos, não

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10| De Magistro, XII 39; ed. cit., p. 94, linhas 12-14.

ser ocasionalmente, como fazem os sacerdotes a fim

11|Se, por um lado, Santo Agostinho nos diz que as palavras são mero ruído até sabermos o seu significado, por outro lado, fala numa conexão das palavras à memória, “à qual estão ligadas interiormente”.

ouça Deus mas os homens, e assim estes, graças à re-

de exprimirem o seu pensamento, não para que os memoração, se elevem para Deus em certa conformi-

dade de sentimentos. Confirma-se, pelas palavras

de Adeodato, que mesmo quando Cristo ensi-

nou a orar – o Pai Nosso – foi apenas para que, pelas palavras, os homens recordassem a quem e o

que deveriam pedir, ao rezarem no íntimo da consciência. Santo Agostinho parece ir reconhecendo um papel fundamental nas palavras, enquanto

capazes de cristalizar uma determinada energia, servindo-lhe de suporte, e permitindo guardar

sem mácula essas realidades expressas. Não foram

palavras que Ele lhes ensinou, mas, por meio de palavras, realidades expressas. Como poderia al-

guém dizer simultaneamente que as palavras são mero ruído e que, no entanto, permitem servir

de suporte às tais realidades expressas? Parecem

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coexistir duas doutrinas: uma aparente e outra para quem tiver ouvidos.

Neste texto, todo o diálogo se dá num

jogo de pergunta a resposta, em que Adeodato

se vê constantemente forçado a contradizer-se, para em seguida negar o que tinha já dado como

ponto assente. O ambiente que se forma nesta

incessante busca propicia o advento da verdade, pois o estado interrogativo cria no interior do in-

divíduo um pólo de atração / evocação. Por isso se diz, tradicionalmente, que colocar a questão é

saber já a resposta ou, nas palavras de Al-Makkî, que metade do conhecimento é a pergunta, a outra metade é a resposta. A forma como o diálogo de-

corre é já em si representativa do estado de Lua Nova, que o indivíduo terá de fazer em si mesmo – tal como o próprio Adeodato vendo-se constantemente forçado a fazer para poder receber a iluminante luz da verdade-sol.

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Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa O amor é uma essência ternária Sonia Regina Lyra

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Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra |11 - 20

Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa O amor é uma essência ternária* Sonia Regina Lyra** Resumo Esclarecendo uma polêmica entre a interpretação afetiva e a intelectual, da visão contemplativa, aos monges beneditinos de Tegernsee, Nicolau de Cusa (1401-1464) envia àquela comunidade uma reprodução do rosto de Cristo, cujo olhar parecia fixar-se no espectador, qualquer que fosse a sua posição, e acompanhá-lo em todas as suas deslocações, juntamente com a obra De visione Dei. O intuito era de guiá-los nas suas reflexões e com isso levá-los a experimentar a escuridão sagrada e luminosa da teologia mística e da douta ignorância. A obra baseada no quadro motivador da reflexão converte a meditação mística num profundo solilóquio com Deus, gerando uma densidade especulativa e metafísica que parecem contrastar com a dimensão dialógica do escrito; no limiar da luz com as trevas o discurso se inscreve entre espiritualidade, educação e ciências da religião. Mais ainda, na filosofia da religião. Palavras-chave: Nicolau de Cusa, visão de Deus, mística, espiritualidade, ciências da religião, filosofia da religião.

Abstract

* Sonia Regina Lyra Doutora em Ciências da Religião sonia@ichthysinstituto.com.br ** Este artigo foi apresentado inicialmente no I Colóquio Nacional de Ciências Da Religião - Espiritualidade, Educação e Ciências da Religião na pós-modernidade, em Curitiba, no período de 12 e 13 de maio de 2009.

While making clear to Benedictine monks of Tegernsee a controversy between affectional and intellectual interpretation of the contemplative vision, Nicholas of Cusa (1401-1464) sent to that community a reproduction of Christ’s face whose eyes seemed to stare the viewer no matter what his/her position was and to follow him/her in all his//her movements, and he also sent the work De visione Dei. The aim was to guide them on their reflection and, this way, take them to experiment the sacred and luminous darkness of mystic theology and of learned ignorance. The work based on the motivating picture of the reflection converts the mystic meditation in a profound soliloquy with God generating a speculative and metaphysical density that seems to contrast with the dialogical dimension of the writing and in the threshold of light and darkness the discourse inscribes itself between spirituality, education, and sciences of religion, and more, in philosophy of religion. Keywords: Nicholas of Cusa, vision of God, education, spirituality, sciences of religion, philosophy of religion.

Introdução Neste livro Nicolau de Cusa propõe um método em três etapas, com a finalidade de educar os monges e iniciá-los na busca do símbolo e, com isso, no entendimento do uno que, para ele, só pode ser trino. Para tal, é do modo mais simples e comum que lhes dará acesso à teologia mística. Antes, porém, de iniciar, roga a Deus que lhe dê “as palavras mais elevadas e o discurso Ano I | número 1 | 2012

que só a si próprio pode revelar” (CUSA, 1998, p. 133) querendo com isso transmitir de acordo com a capacidade de compreensão de cada um “as coisas admiráveis que se mostram acima de toda visão sensível, racional e intelectual” (Id., p. 133). Desse modo tentará o Cardeal, também a nós, conduzir “até a mais sagrada obscuridade” (Id., p. 133), quando então caberá a cada um tentar por si só “e do modo que Deus lhe conceder

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12| Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra | 11 - 20 aproximar-se cada vez mais do festim da felicidade eterna à qual somos chamados na palavra da vida” (Id., p. 133) pelo evangelho de Jesus Cristo. Primeiramente diz Nicolau de Cusa que para conduzir às coisas divinas é necessário recorrer a comparações. Para tal, usará a imagem que lhe pareceu, entre as obras humanas, a mais conveniente, que é um rosto que “por sutil arte de pintura se comporta como se tudo olhasse em seu redor” (Id., p. 135), figura essa que chamou de ícone de Deus. Sugere aos monges que o coloquem numa parede onde seja possível que todos se mantenham em volta, à mesma distância dele, quando cada um experienciará que “é o único a ser olhado por ele” (Id., p. 136). Perceber-se-á que olhando nas diferentes direções o olhar estará olhando, ao mesmo tempo, todos e cada um. Os monges deverão mudar de lugar para experienciar que, estando o ícone fixo e sem se mover, cada um “admirar-se-á com a mudança do olhar imóvel” (Id., p. 136) e ainda que cada um se mova, percebe que o olhar do ícone move-se com ele sem o abandonar, admirando-se pelo fato de ele “se mover permanecendo imóvel” (Id., p. 136) acontecendo o mesmo com outros monges que se movam em direção contrária. Com base nos relatos dos outros monges, perceber-se-á que “aquele rosto não abandona todos aqueles que se deslocam, ainda que com movimentos contrários” (Id., 137). Percebe-se agora que o rosto imóvel movese simultaneamente tanto para um lugar como para outro e “tanto para um movimento como para todos” (Id., p. 137). Compreender-se-á que aquele olhar não abandona nenhum, tendo “tanto cuidado como se se preocupasse só com aquele que experiência ser visto e com nenhum outro” (Id., p. 137), tendo, portanto, um cuidado diligentíssimo “com a mais pequena criatura, como se se tratasse da maior de todo o universo” (Id., p. 137). É a partir deste fenômeno sensível (apparentia) que Nicolau de Cusa convida à teologia

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mística, “através de uma prática de devoção” (Id., p. 137) sendo que, para que tal efeito ocorra, algumas coisas deverão ser observadas.

A visão de Deus A perfeição do que aparece verifica-se em

relação a Deus perfeitíssimo, isto é, Deus, que é a própria sumidade de toda a perfeição e maior do que se pode pensar, e que “recebeu o nome de

theos exatamente porque tudo vê” (Id., p. 138). Constata-se que o olhar abstraído está contraído

“relativamente ao tempo, às zonas do mundo, aos objetos singulares etc. (Id., p. 139) sob tais con-

dições que não pertence à essência desse olhar,

“olhar mais para um do que para outro objeto” (Id., p. 139). Deus, porém, “na medida em que é o olhar verdadeiro, não contraído” (Id., p. 139), não

é inferior àquilo que o intelecto pode conceber sob o olhar abstrato, mas “improporcionalmente mais perfeito” (Id., p. 139).

É desse modo que o olhar absoluto abraça

todos os modos. Deve-se considerar que o olhar

é diferente em cada um, “consoante a diversidade

da sua contração” (Id., p. 140), diferindo de acordo com os estados de ânimo, as paixões ou as etapas da vida, seja criança, adulto ou velho.

Contudo, “o olhar desvinculado (Absolutus)

de qualquer contração abraça simultaneamente e

de uma só vez todos e cada um dos modos de ver como se fosse a medida mais adequada e o

modelo mais verdadeiro de todos os olhares” (Id., p. 140) de tal modo que permanece totalmente desvinculado de toda a diversidade.

No olhar absoluto estão, “duma forma não

contraída, todos os modos de ver das contrações” (Id., p. 140), isto é, sendo incontraível, a mais

simples das contrações coincide com o absoluto. Assim, a visão absoluta está em cada olhar, porque “é através dela que é toda a visão contraída, e, sem ela, de modo algum pode ser” (Id., p. 140).

Portanto, todas as coisas que se afirmam

de Deus não diferem realmente, ainda que por

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razões diferentes se atribua a Deus nomes dife-

capaz de o receber. É sabido que “a capacidade de

Deus não podem, devido à suprema simplicidade

lhança” (Id., p. 144). No caso da semelhança, no

rentes. Pois, “todas as coisas que se afirmam de

de Deus, diferir realmente” (Id., p. 141), uma vez que Deus é a medida absoluta de todas as razões

formáveis e “complica em si todas as razões” (Id., p. 141). Em Deus “o ato de ver não é diferente do ato de ouvir, gostar, cheirar, tocar, e de com-

preender” (Id., p. 141), dizendo-se por isso que

toda a teologia tem uma “natureza circular” (Id., p. 141), dado que um dos atributos se afirma de outro. Porque ele é a razão absoluta na qual toda a alteridade é unidade e toda diversidade, iden-

tidade. Então “a diversidade das razões, que não

é a própria identidade de acordo com a qual nós concebemos a diversidade, não pode existir em Deus” (Id., p. 141).

A visão de Deus é dita providência, graça

entanto, é pela vontade livre que se pode “ampliar

ou restringir a capacidade de receber a tua graça” (Id., p. 144), voltando, cada um, todo o seu esforço na sua direção, porque todo o seu esforço está

voltado na direção de cada um, com a máxima atenção.

É dado por Deus, a cada um, um ser tal que

se pode tornar cada vez mais capaz de receber a

sua bondade e a sua graça. Quanto à Vida Eterna, sendo ela “o máximo absoluto de todo o desejo racional, o qual não pode ser maior” (Id., p. 145), é

contemplada “no espelho, na imagem, no enigma” (Id., p. 145) porque é através dela que o olhar de Deus se torna num vivificar.

e vida eterna e para entendê-la Nicolau de Cusa

“Não é senão infundir continuamente um dulcís-

ícone de Deus. Perceba-se que “o olhar da ima-

infusão do amor, e inflamando-me alimentar-me,

abandona para onde quer que te dirijas” (Id., p.

beber o orvalho da alegria, e bebendo-o introduzir-

“com todos e com cada um, tal como em todos e

permanecer eternamente” (Id., p. 145).

sugere aos monges que se aproximem agora do

simo amor por ti, inflamar-me de amor por ti, pela

gem te olha igualmente em todo o lado e não te

e alimentando-me acender desejos, e acendendo-os

142); pode-se intuir a sua providência estando ele

me na fonte da vida, e introduzindo-me crescer e

em cada um está presente o ser, sem o qual não

É ai afirma Nicolau de Cusa que “reside a

podem ser” (Id., p. 142).

1| Na obra Un ignorante discurre sobre la mente, encontra-se uma nota de rodapé onde o cusano fala acera de Un ignorante discurre acerca de la sabiduría, I, n.1: “De esta manera, entonces, aquello que te he expuesto de esta forma en este breve lapso, sea suficiente para que sepas que la sabiduría no reside en el arte oratorio o en grandes volúmenes, sino en el alejarse de estas cosas sensibles y en volverse a la forma más simple e infinita” (CUSA, 2005, p. 151).

recepção, que preside a união, não é senão seme-

origem de todas as delícias que puderam ser dese-

Num solilóquio com Deus, o Cardeal roga-

jadas” (Id., p. 145). Em seguida, explica como ver é

(Id., p. 143), que este possa amar mais que a si,

continuidade ao solilóquio, ou o que assim parece,

lhe que não permita, “por qualquer imaginação”

saborear, procurar, ter misericórdia e atuar. Dando

qualquer outro diferente de si – “porque só a mim

o Cardeal completa dizendo que “ninguém pode

o teu olhar não abandona” (Id., p. 143).

Aqui, o ver de Deus é seu amar, porque

“onde estão os olhos está o amor” (Id., p. 143) e

porque “o teu ser, Senhor, não abandona o meu

ser” (Id., p. 143) então “eu sou na medida em que tu és comigo” (Id., p. 143).

Surge então um detalhe que parece de ex-

trema importância e que está nessa semelhança:

“Jamais poderás abandonar-me enquanto

eu for capaz de te receber” (Id., p. 143) diz o Car-

deal. Cabendo, porém, a cada um “fazer quanto

ver-te senão na medida em que concedes que se-

jas visto” (Id., p. 146), e esse ver é apreender “num contato experimental” (Id., p. 146), isto é, sabore-

ar a própria sabedoria1. Aqui, invocar é procurar,

e procurar é já “voltar-se para ti” (Id., p. 148), e ninguém pode voltar-se para Deus se ele já não

estiver presente. O ver de Deus, afirma o Cardeal, é a sua misericórdia, assim como esse mesmo ver

é atuar. “E é assim que tudo atuas” (Id., p. 148),

pois “és aquele que tudo provê, cuida e conserva” (Id., p. 148).

puder” (Id., p. 143), fazer com que possa tornar-se Ano I | número 1 | 2012

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14| Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra | 11 - 20 A visão frontal Contemplando a face do ícone e com ele

dialogando, Nicolau de Cusa propõe que, sen-

do a sua verdadeira face desligada de qualquer contração, por isso, não pertence ao domínio da

quantidade e nem da qualidade, nem do tempo ou do lugar. Percebe-se que aos poucos começa a

introduzir a noção de proporção e medida e provavelmente, com isso, a noção de símbolo.

Tudo isso por perceber que uma face não

pode ser pintada sem cor “e a cor não existe sem

quantidade” (Id., p. 149). Não sendo do domínio da quantidade, a verdadeira face “não pode ser

maior nem menor; nem é, porém, igual a nenhuma, porque não é do domínio da quantidade, mas absoluta e sumamente exaltada” (Id., p. 149).

É desse modo que o Cardeal compreende

que o rosto divino é “anterior a todas as faces formáveis” (Id., p. 150) sendo o modelo do qual

todas as faces são imagens. Toda face, então, que pode olhar para a sua face nada vê senão a si mesma, ainda que a imagem não seja o próprio mo-

delo. O seu olhar é, pois, a sua face sempre voltada simultaneamente para todas as direções.

Essa face é concebida por cada um segun-

do seu próprio julgamento, isto é, “o homem não

pode julgar senão humanamente” (Id., p. 151). Assim como os olhos corpóreos vêem que tudo

é vermelho quando olha através de um vidro vermelho ou verde, através de um vidro verde, assim também os olhos da mente.

Segundo o Cusano, conceber o modelo

único da face divina requer que se transcenda “as

formas de todas as faces formáveis e de todas as figuras” (Id., p. 151). E questiona como seria con-

cebida então essa face, “uma vez transcendidas

todas as semelhanças e figuras de todas as faces, todos os conceitos que podem ser formados sobre a face, toda a cor, ornamento e beleza de todas as faces?” (Id., p. 151).

É por isso, diz Nicolau de Cusa, que “quem

se resolve a ver a tua face, enquanto concebe algo, Ano I | número 1 | 2012

permanece longe da tua face” (Id., p. 151), pois a face divina não aparece a descoberto enquanto “se não penetra, para além de todas as faces, num secreto e oculto silêncio, onde nada resta da ciência ou do conceito de face” (Id., p. 152). Aproximamo-nos então das trevas ou da ignorância, semelhante àquele que quer ver a luz do sol e que precisa transcender a luz visível, sabendo o buscador “que é necessário que aquilo em que mergulha careça de luz visível” (Id., p. 152), pois, estando os olhos nas trevas que são escuridão, “se sabem que estão na escuridão, sabem que se aproximam da face do sol” (Id., p. 152). Tanto mais atingem a luz-escuridão, tanto mais se aproximam da luz invisível. Questiona agora qual o fruto da visão frontal e como se adquire. Nicolau de Cusa mesmo responde que o fruto da visão frontal é ser de si mesmo. Mas o que significa ser de si mesmo e como adquirir esse fruto?

O fruto da visão frontal Primeiro ele dá indícios de como se adquire, usando das comparações que diz serem tão agradáveis e inspiradas por Deus. Sendo Deus a força e o princípio a partir do qual “todas as faces são o que são” (Id., p. 154), voltar-se-á o Cardeal para uma árvore e descreverá como se pode ver nela esse mesmo princípio e essa mesma força. Com os olhos sensíveis vê uma árvore grande, extensa, colorida e carregada de ramos. Com os olhos da mente vê que, na semente essa mesma árvore é não como agora, mas apenas virtualmente. Considere-se então “atentamente a admirável virtude (Virtutem) daquela semente, na qual se encontrava toda aquela árvore, todas as nozes, toda a força da semente das nozes e todas as árvores virtualmente [existentes] nas sementes das nozes” (Id., p. 154). Percebe-se então, como essa força da semente, “embora inexplicável, está, contudo contraída, porque não tem a sua virtude senão nessa espécie de nozes” (Id., p. 155). É por isso que, vendo a árvore na semente, essa visão é a

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Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra |11 - 20

de uma “virtude contraída” (Id., p. 155). Chega-se então à visão que deve transcen-

der toda a virtude seminal susceptível de ser sabida ou concebida e “entrar naquela ignorância na qual não resta absolutamente nada da virtude ou do vigor seminal” (Id., p. 155). Vê-se então na

escuridão a “admirabilíssima virtude inacessível a

qualquer virtude que possa ser pensada” (Id., p. 155).

Complicatio e explicatio se desdobram aqui

na visão do Cusano. Sendo a virtude absoluta

quem dá “o ser a toda virtude seminal” (Id., p. 155), tal virtude é a face ou o modelo de toda face

da árvore que é quando se pode ver a nogueira não na sua virtude seminal contraída, mas “como

ela é na causa fundadora da sua virtude” (Id., p. 155).

É por essa razão que tal árvore pode ser

agora entendida como uma “explicação da virtude

seminal e que a semente é uma certa explicação da virtude omnipotente” (Id., p. 156).

Sintetizando esse desdobramento (explica-

tio), diz o Cusano:

“E vejo que assim como a árvore na semente não é árvore, mas força seminal, e que essa força seminal é aquela a partir da qual se explica a árvore – de tal maneira que nada se pode encontrar na árvore que não proceda da virtude seminal –, assim também a virtude seminal na sua causa, que é a virtude das virtudes, não é virtude seminal, mas virtude absoluta” (Id., p. 156).

Assim, a árvore é em Deus ele mesmo e nele

a virtude e o modelo de si própria. Deus é, pois, a verdade e o modelo, sendo a força da semente, “que está contraída” (Id., p. 156), a força da na-

tureza da espécie, que “está contraída na espécie” (Id., p. 156) e que lhe é inerente como princípio contraído.

Mas, com isso, diz o Cardeal: “Ninguém

pode apoderar-se de ti se tu não te lhe deres” (id., p. 156), o que parece contraditório com a passa-

gem seguinte, que diz: “Colocaste na minha liberAno I | número 1 | 2012

dade a possibilidade de eu ser, se quiser, de mim próprio. Por isso, se eu não for de mim próprio, tu

não serás meu” (Id., p. 157). Essa liberdade necessária, também ela, impõe que Deus não possa ser

meu se eu não for de mim próprio e, no entanto, me dá essa escolha em que espera que eu seja de mim próprio. E conclui o Cusano com a ques-

tão: “De que modo serei de mim próprio, se tu, Senhor, não me ensinares?” (Id., p. 157). E, como

resposta, entende que os sentidos devem obedecer

à razão e esta deve dominar. Por isso, “quando os

sentidos servem à razão, eu sou de mim próprio” (Id., p. 157). Mas quem dirige a razão é Deus, que é o verbo e a “razão das razões” (Id., p. 158).

A visão de Deus é, pois, amar, causar, ler e

conservar em si todas as coisas. Para Nicolau de

Cusa, o ver de Deus é amor tanto quanto é causar. Também entende que enquanto o homem lê uma página, letra por letra e linha por linha, Deus “vê

simultaneamente toda a página e lê sem qualquer

demora temporal” (Id., p. 161). O olhar de Deus, “sendo olhos e espelho vivos, vê em si todas as

coisas. Ele é antes causa de tudo o que é visível” (Id., p. 162). Enquanto em nós os olhos se voltam

para o objeto e com isso vemos sob um ângulo

quantitativo. O olhar de Deus não sendo quan-

titativo, mas infinito, é círculo e esfera infinita, por isso vê tudo em redor e simultaneamente em cima e em baixo. A visão de Deus é igualmente

universal e particular e a via que a ela conduz é a coincidência dos opostos. Aproxima-se a idéia da trindade da unidade.

Símbolo No símbolo, para Nicolau de Cusa,

coincide o universal com o singular. É quando, “considerando a humanidade contraída e, através

dela, a absoluta, isto é, vendo no contraído o absoluto como no efeito a causa e na imagem

o modelo, vens ao meu encontro” (Id., p. 164). Da mesma forma, quando se volta em todas

as espécies “para a forma das formas, em todas

vens ao meu encontro como idéia e modelo” (Id.,

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16| Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra | 11 - 20 p. 164). Percebe-se então que Deus está “em

enquanto o seu discurso é ouvido por cada um.

vez e no que quer que seja” (Id., p. 165), estando

e simultâneo todos os que falam, mas “um depois

todas as coisas, ao mesmo tempo e de uma só completamente presente. E contudo, “não te

moves nem repousas, porque és sobrexaltado e desligado (Absolutus) de tudo o que pode ser concebido ou denominado” (Id., p. 165). Por

exemplo, se eu me movo, Deus move-se comigo, enquanto um outro que fica parado, olhando

o mesmo ícone de Deus, parecerá imóvel com o que está imóvel. Deus, porém, está “acima de toda a imobilidade e movimento na sua infinitude profundamente simples e absoluta” (Id., p. 166).

A experiência agora é de, na escuridão,

“admitir a coincidência dos opostos sobre toda a capacidade racional [...], acima também de toda

ascensão intelectual mais elevada” (Id., p. 166). É aí que Deus está. A via para aceder a Deus é

então aquela “completamente inacessível” (Id., p. 166), só podendo ser visto ali onde se depara com

Mas ele mesmo não pode ouvir de modo distinto

do outro” (Id., p. 168), enquanto que, em Deus, entende que coincide ver e ouvir simultaneamente todos e cada um dos indivíduos.

É agora, nessa porta da coincidência dos

opostos, que chama de “porta do paraíso” (Id., p. 169), que na verdade é o mesmo o ver todas as criaturas que o ser visto por elas, porque as criaturas só são pela visão de Deus. “O ser das criaturas

é simultaneamente o teu ver e o ser visto” (Id., p. 169).

Louva então o Cusano a Deus, pois o seu

“conceber é falar” (Id., p. 170). Mas em seguida

questiona: como é que partindo de um único con-

ceito, de uma única concepção, todas as coisas não são simultaneamente, mas, uma depois da outra?

A resposta que ouve, estando na porta do

a impossibilidade, para lá da coincidência dos

paraíso, é que “a duração infinita, que é a eterni-

encontra-se o símbolo.

p. 170), pois tudo aquilo que para nós é sucessão,

contraditórios. Nessa coincidência dos opostos Deus, porém, é visto para lá da coincidência

dos contraditórios e o seu ver é ser. Neste mo-

mento, Nicolau de Cusa, estando diante do quadro e vendo a imagem da face de Deus com os

olhos sensíveis, tenta intuir com os olhos interiores a verdade que está representada na pintura.

Ocorre-lhe o pensamento de que o olhar ali

pintado fala, porque entende que o falar de Deus não é diferente do seu ver. Diz experienciar então

com clareza que Deus vê ao mesmo tempo todas as coisas e cada uma delas. Analogicamente percebe que, sendo ele mesmo um, fala para toda a igreja congregada e ao mesmo tempo a cada um dos indivíduos que lá estão. “Digo uma só pala-

vra e com essa única palavra falo a cada um dos

indivíduos” (Id., p. 168). Entende que aquilo que para si é a igreja é para Deus todo esse mundo e cada uma das criaturas, tanto as que são, quanto

dade, abraça efetivamente toda a sucessão” (Id., no conceito divino é a eternidade simples. É o

conceito único que complica todas as coisas e cada uma delas.

Assim, entende que a palavra eterna que é

a eternidade simples não pode ser múltipla nem

diferente, nem variável e nem mutável. Nessa

eternidade simples em que Deus concebe, “toda a

sucessão temporal coincide, no mesmo momento, com a eternidade. Por isso, nada há de pretérito ou de futuro onde o futuro e o pretérito coincidem com o presente” (Id., p. 171).

Entende agora o Cardeal que Deus, por ser

omnipotente, está dentro do muro do paraíso, porque o muro é a coincidência dos opostos, ali

onde o antes coincide com o depois e o fim coincide com o princípio, em que “alfa e omega são o mesmo” (Id., p. 171).

Na verdade, insiste o Cusano, “o agora e o

as que podem ser. Do mesmo modo, sendo um

então são depois do teu verbo. E assim aqueles

todos aqueles a quem prega simultaneamente,

circunda o lugar em que habitas na coincidência”

indivíduo e tendo uma única face, é visto por

Ano I | número 1 | 2012

que se aproximam de ti deparam com o muro que

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(Id., p. 171). Deus, no entanto, fala para além do

agora e do então, para além do muro da coincidência dos opostos. Nesse muro o que se vê é o símbolo.

além da qual existes desligado de tudo o que pode dizer-se ou pensar-se” (Id., 174).

Onde se vê o invisível, vê-se o criador in-

criado, isto é, como o ser da criatura é o ver de

Deus, a visão preexiste ao ato, porque a visão de

Em Deus vê-se a sucessão sem sucessão Um exemplo simples é o do relógio, que

complica em si toda a sucessão temporal. Apascentado com o leite das comparações, até que lhe

seja concedido por Deus um alimento mais forte, o Cusano apropria-se do relógio em analogia com

o conceito, para então explicar a sucessão. O faz do seguinte modo:

A eternidade complica e explica a sucessão.

Por exemplo: se o relógio fosse o conceito, “ainda que ouvíssemos o som das seis horas primeiro que o das sete, não se ouve o som das sete senão quando determina o conceito” (Id., p. 172).

Desse modo, as seis horas, no conceito, não

são antes das sete, e nenhuma hora é antes ou

depois da outra, ainda que o relógio nunca bata uma hora que não tenha sido determinada pelo conceito. Passa-se a ver então que o que quer que se experimente na sucessão sai do conceito e, com

isso, a sucessão é a explicação do conceito, “porque o conceito dá o ser a qualquer coisa” (Id., p. 173).

Por isso, se o conceito do relógio é como

que a própria eternidade, então o movimento do relógio é a sucessão. Fica claro que o conceito do

relógio, que é a eternidade, complica e explica igualmente todas as coisas.

Confia o Cardeal que possa encontrar a

Deus para lá do muro da coincidência dos opos-

tos, para lá da coincidência da complicação e da explicação, para além do símbolo.

Parte “das criaturas para o criador, dos efei-

tos para a causa” (Id., p. 174) e sai partindo de Deus, o criador, para a criatura, “da causa para o

Deus é a sua essência. Assim, Deus é visível e simultaneamente invisível. É visível enquanto a

criatura é, pois esta é na mesma medida em que o vê, e é invisível enquanto é. Deus invisível então

é visto em qualquer visível “por todos e em todo olhar” (Id., p. 175). Percebe agora o Cusano a ne-

cessidade de transpor o muro da visão invisível em que Deus se encontra, pois, enquanto concebe

um criador que cria, ainda está para cá do muro do Paraíso e, enquanto concebe um criador criá-

vel, ainda não está dentro do muro, mas apenas no muro.

Começa-se a ver com mais clareza apenas

quando se pode ver que à infinidade absoluta não

convém nem “o nome de criador que cria e nem o de criador criável” (Id., p. 177), porque Deus

“nunca é nada de semelhante ao que pode ser dito ou concebido” (Id., p. 178) mas, infinitamente

mais que criador, ainda que nada possa ser feito sem ele.

Segundo o Cardeal, Deus aparece como in-

finidade absoluta, pois qualquer conceito ou qualquer nome não pode dizer ou nomear Deus. Sabe

que vê, porque nada vê do mundo visível. Desse modo, se alguém descrever ou comparar Deus a algo, querendo oferecer um modo pelo qual Deus

possa ser compreendido, permanecerá longe dele. Por isso, diz Nicolau de Cusa, “enquanto me elevo

o mais alto possível, vejo-te como infinidade, sendo por isso inacessível, incompreensível, inomi-

nável, imultiplicável e invisível” (Id., p. 180). Mas a questão é: como chegar a Deus, como elevar-se

para além do fim? A resposta é que o intelecto se coloque na sombra, que se torne ignorante.

Quando o intelecto sabe que não pode cap-

efeito” (Id., p. 174). O que quer dizer com isso

tar a Deus, quando se sabe ignorante, é quando

te a conjunção são o muro da coincidência para

pois, compreender o incompreensível. Sabe o in-

é que, “com efeito a disjunção e simultaneamen-

Ano I | número 1 | 2012

dele pode se aproximar. “Entender a infinidade é,

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18| Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra | 11 - 20 telecto que te ignora, porque sabe que não podes ser conhecido, salvo se souber o que não é susceptível de se saber e se vir o que não é visível e se tiver acesso ao que não é acessível” (Id., p. 180).

“a razão pela qual o céu não é a terra está em que

Essa afirmação escapa a qualquer razão, porque quando se afirma um fim sem fim, admite-se que “a treva é luz, a ignorância ciência, o impossível necessário” (Id., p. 181). Admite-se ainda que na infinidade “a oposição dos opostos é oposição sem oposição” (Id., p. 182) e, como a infinidade absoluta tudo abraça, nada há fora dela, não podendo ser maior nem menor.

A infinidade é a unidade, e nela a representação é a verdade

A infinidade então está acima de tudo, ainda que não seja o todo, a que se opõe a parte, nem a parte do todo, pois não é grande nem pequena, nem o que quer que seja. A infinidade não é maior nem menor nem igual a nada, sendo, ainda assim, a medida de todas as coisas. Dessa forma, é concebida pelo Cusano a igualdade do ser. “Tal igualdade, porém, é infinidade, e, assim, não é igualdade do modo pelo qual à igualdade se opõe o desigual, mas aqui, a desigualdade é igualdade” (Id., p. 183). Permanecendo absoluto, o infinito não é contraível. Por exemplo, a linha deixa de ser linha se não tiver quantidade nem fim, e, por isso, na infinidade a linha infinita não é linha, mas, infinidade. A infinidade é, pois, infinidade absoluta que não é nem princípio nem fim, sendo Deus; isso porque Deus é infinito, a medida imensurável de tudo, sendo princípio por ser fim e sendo fim por ser principio. Nicolau de Cusa percebe que em Deus todas as coisas não são diferentes de Deus. Não podendo a alteridade ser em si, e não sendo em Deus, o Cusano pergunta: Como então procurar a alteridade que “não é em ti nem fora de ti” (Id., p. 185)? Sem a alteridade, pensa o Cardeal que a diferença entre o céu e a terra não pode ser concebida. A alteridade então, “não podendo ser princípio de ser porque se diz a partir do não ser” (Id., p. 186), não é alguma coisa. Diz o Cardeal agora que Ano I | número 1 | 2012

o céu não é a própria infinidade que abraça todo o ser” (Id., p. 186).

Ainda diante do quadro mencionado, Ni-

colau de Cusa diz ver na face pintada a represen-

tação da infinidade. Não sendo o olhar limitado diante de algum objeto ou lugar, e, por não estar

mais voltado para este que para outro lugar, é infi-

nito. Mas, para quem o olha, parece limitado, pois

quem o olha olha de modo determinado. Enten-

de, então, que a potência absoluta, a infinidade, está para além do muro da coincidência, “em que

o poder ser feito coincide com o poder fazer” (Id., p. 188/189), da mesma forma como a potência coincide com o ato.

Sendo Deus a forma das formas, “espelho

vivo da eternidade” (Id., p. 190), quando alguém

intui a si, ao olhar para esse espelho, só o faz porque Deus mesmo lhe permite tal coisa. Ele vê a sua forma na forma das formas que é o espelho e pensa que o que vê é a representação da sua for-

ma, mas “aquilo que vê no espelho da eternidade

não é a representação, mas a verdade da qual o

próprio sujeito que vê é a representação” (Id., p. 190). Finalmente, entende o Cardeal que a repre-

sentação em Deus é a verdade e o modelo de tudo e de cada coisa que é ou que pode ser.

O Cardeal percebe que a imagem da face

do ícone muda à medida de suas próprias mu-

danças. Com isso, entende que a face de Deus

não abandona a verdade da face do homem, mas, da mesma forma não acompanha a mudança da

imagem alterável. Deus então é a sua imagem ou de um outro qualquer por ser o modelo, e cada face é a imagem que não é a própria verdade ab-

soluta, mas a imagem da verdade absoluta. Ainda que Deus não possa abandonar a face mutável do

homem Nicolau de Cusa, a sua face é imutável. Deus então, simultaneamente, não abandona e não acompanha as criaturas.

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Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra |11 - 20

É por isso que amamos aquilo que participa do nosso ser e o acompanha, abraçando a nossa semelhança, enquanto nos representamos a nós próprios na imagem em que nos amamos a nós próprios. Assim, se Deus não fosse infinito, não seria o fim do desejo, pois sendo a forma desejável e a verdade desejada, como um tesouro inumerável e inesgotável, Deus atrai a si, assim, as criaturas. O Cardeal explica que quanto mais incompreensível, mais é compreendido Deus que é a infinidade. Atingi-lo é atingir o fim do desejo, pois o próprio desejo rejeita tudo que é finito e compreensível, não podendo descansar nas coisas finitas, justamente por ser atraído pelo próprio Deus ao que é infinito. É, pois, o desejo conduzido ao fim sem fim, ao princípio sem princípio que é de onde recebe o próprio desejo. Por isso é que “aquilo que o intelecto entende não o sacia nem é o seu fim” (Id., p. 196). Da mesma forma não pode saciá-lo aquilo que não entende apenas, mas que, “não entendendo entende” (Id., p. 196), como uma fome insaciável não é saciada com pouco pão nem com o pão que não chega até ela, mas somente com o pão que até ela chega e que, embora comendo-o continuamente, jamais pode ser plenamente engolido, de tal modo que essa fome não diminui à medida em que o pão é engolido, “por ser infinita” (Id., p. 196).

Deus não pode ser visto plenamente a não ser como unitrino Não sendo o infinito multiplicável e, podendo ser a sua amabilidade, que é simultaneamente o seu poder ser infinitamente amado, Deus ama infinitamente. Do poder amar e do poder ser infinitamente amado, “surge o nexo infinito do amor entre o amante infinito e o infinito amável” (Id., p. 197). Deus é amor. É amor amante e amor amável, assim como é o nexo entre eles. Essas coisas

que ocorrem como sendo três, o amante, o amável Ano I | número 1 | 2012

e o nexo, são o que o Cardeal chama de “essência

mais simples absoluta” (Id., p. 198), que não são

três mas uma só. Não há aqui, portanto, a distinção numérica de três, porque a essência trina é

sumamente simples. O exemplo a seguir é sumamente esclarecedor:

Se alguém disser um, um, um, diz um três

vezes, não diz três, mas um, e este um três vezes. Não pode, todavia, dizer um três vezes sem três, ainda que não diga três. Na verdade, quando

diz um três vezes, repete o mesmo e não numera. Numerar é alterar o um, mas repetir o um e o

mesmo três vezes é plurificar o número. Daí que

a pluralidade que é vista em Deus é alteridade,

“porque é uma alteridade que é identidade” (Id., p. 199/200).

Admitindo que seja possível que eu veja, diz

o Cardeal, em mim mesmo o amor, porque me vejo como o amante, e, na medida em que amo a

mim próprio me vejo como o amável, então, vejo também que sou o nexo entre ambos. “Eu sou o

amante, eu sou o amável e eu sou o nexo” (Id., p. 201).

Um só é o amor sem o qual não pode haver

nenhum três mas, eu sou um só e não três. Sou

um só do qual brota o amor com que me amo a

mim mesmo. Se o meu amor puder ser entendido como a minha essência, então na minha essência

existe a unidade das três coisas referidas: “a unidade da essência” (Id., p. 201).

Essa trindade que é a unidade da essência

é contraidamente na minha essência aquilo que em Deus é verdadeira e absoluta. Outro exemplo

do próprio Nicolau de Cusa não poderia ser mais claro:

Em virtude do amor amante que estendo a

outra coisa para além de mim, como se o fizesse a algo de amável exterior à minha essência, segue-

se o nexo pelo qual sou ligado a essa coisa tanto quanto isso pode resultar em mim. Essa coisa não está unida a mim por tal nexo porque me não ama. Daí que ainda que eu a ame a tal ponto de

o meu amor amante se estender sobre ela, o meu

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20| Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra | 11 - 20 amor amante não arrasta consigo o meu amor amável. Não me torno, pois, amável para ela. E de mim não cuida, ainda que a ame fortemente, assim como o filho, por vezes, não cuida da mãe que com tanta ternura o ama. E assim experimento que o amor amante não é o amor amável, nem o nexo, mas “vejo que se distingue o amante do amável e do nexo” (Id., p. 201).

cional com o seu amor amante, estas não amam

Essa distinção, no entanto, afirma Nicolau de Cusa, não pertence à essência do amor, “porque não posso amar-me a mim, ou a outra coisa diferente de mim, sem amor” (Id., p. 202). É, pois, o amor de uma essência ternária.

próprio amor amável, diz Nicolau de Cusa que

Sendo assim, se Deus não fosse trino não haveria felicidade, pois, assim como o amável é o objeto do amante, da mesma forma é o inteligível que é o objeto do intelecto. A proposta do Cusano agora é que, sendo as almas racionais, lhes é dada a liberdade de amar ou não a Deus. Ainda que Deus esteja unido pelo nexo a todas as coisas, “nem todo o espírito racional” (Id., p. 205) está unido a ele, pelo fato de não projetar o seu amor na sua amabilidade, mas, “em outra coisa a que está unido e ligado” (Id., p. 205). Embora ele tenha desposado toda alma ra-

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a Deus como esposo, mas mais frequentemente a um outro com o qual estão ligadas.

Porque Deus é entendido como “o intelecto

inteligente, o intelecto inteligível e o nexo entre ambos, pode então o intelecto criado atingir em ti, Deus, seu inteligível, a união contigo e a felicidade” (Id., p. 205). Entendido ainda como o

pode a vontade amante criada obter em Deus, seu amável, a união e a felicidade.

Referências CUSA, Nicolau de. A visão de Deus. Trad. e introdução de João Maria André, Prefácio de Mi-

guel Baptista Pereira. 2ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998.

CUSA, Nicolau de. Um ignorante discurre acer-

ca de La mente (Idiota. De mente). Edición Bilíngüe. Introducción de Jorge M. Machetta y

Claudia D´Amico, Traducción de Jorge M. Machetta e Notas de Círculo de Estudios Cusanos

de Buenos Aires. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2005

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Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança Albertina Laufer

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Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança Albertina Laufer* Resumo Este artigo objetiva aprofundar o sentido das oito bem-aventuranças, conforme o relato do Evangelista Mateus, onde Jesus proclama felizes todos aqueles que optarem por percorrer este caminho em suas vidas. São apresentadas aqui como pontes, que uma vez atravessadas, permitem adentrar na realidade do contentamento, na nova esfera da felicidade, no novo modo de ser, no rio onde se navega por um leito não físico, não material e, portanto, um lugar não geográfico, possuindo, dessa forma, o significado metafórico da terceira margem ou nona bem-aventurança. Palavras-chave: Bem-aventurança, felicidade, contentamento, terceira margem.

Abstract This article aims to deepen the meaning of the eight beatitudes as the story of the Evangelist Matthew, where Jesus proclaims happy all those who choose this path in their lives. Presented here are like bridges that once crossed, let drift into the reality of contentment in the new realm of happiness in the new way of being in the river where we sail on a bed no physical, no material and therefore a place no geographic, having thus the metaphorical meaning of the third margin or the ninth beatitude Keywords: Beatitudes, Happiness, Contentment, Third Margin.

Introdução

* Licenciada em pedagogia com habilitação em administração escolar. Especialista em counseling. Especialista em psicologia analítica e religião oriental e ocidental pelo ICHTYS – Instituto de Psicologia e Religião. Mestranda em teologia - Puc/Pr. E-mail: teatinas@ig.com.br

Percorrendo várias passagens, percebe-se que o Evangelho é um convite, um apelo, para que se possa construir um caminho propício rumo à vivência alternativa do Novo Testamento em relação ao Decálogo. Cada momento, cada passo, cada fragmento da vida de Jesus, cada palavra proferida pela sua boca, leva a buscar a Deus com mais amor, com maior intensidade. É a possibilidade da construção de uma vida de virtudes e de dons. Tal vida é realidade, é construção da vida eterna, do paraíso, presente na alma de todo indivíduo. No intuito de tornar compreensível essa realidade, a Bíblia usa o termo beatitude, o que equivale à felicidade. Comumente se fala que beatos ou bem-aventurados são os que vivem no céu. Mas, para Jesus, não é bem assim. No EvanAno I | número 1 | 2012

gelho de Mateus (Cap. 5), ele proclama serem felizes todos aqueles que optarem por viver as bemaventuranças, uma vez que elas se constituem em um caminho possível de ser percorrido por todos e permitem adentrar na realidade da felicidade, participando dela e vivenciando-a aqui e agora. Bem-aventurança é um termo técnico para indicar também uma forma literária que se encontra não somente no Antigo, mas também no Novo Testamento. É uma declaração de bênção que, proclamada assim por Jesus, adquire a característica ou a forma de um paradoxo: a bemaventurança não é proclamada somente em virtude do que se considera como sendo uma boa sorte: dinheiro, bem-estar, amigos, vida sem dificuldades. Mas é proclamada também em virtude do que comumente se caracteriza como sendo

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uma má sorte: pobreza material, fome, dor, lágrimas, perseguição. O texto é também chamado sermão da montanha ou sermão das bem-aventuranças e, segundo a narrativa, foi pronunciado por Jesus no topo de um monte, em Cafarnaum. Com ele Jesus sintetiza as normas que têm por finalidade reger um caminho possível para a humanidade. Numerosas pessoas o aguardavam para ouvi-lo. Entre elas estavam alguns daqueles que seriam os seus seguidores e que deveriam dar prosseguimento à divulgação da boa nova. Nele estava contida a essência do que a alma necessitava saber a respeito de Deus, da criação e da vida quotidiana, tanto naquela época, como também nas vindouras. Existe também outro sentido que se pode deduzir do texto das bem-aventuranças e que remete ao estar em marcha ou então, estar a caminho, qual rio, cujas correntezas se direcionam para o mar. Dessa forma, descobrir-se a caminho já é felicidade e se opõe à infelicidade de estar parado, estagnado, qual lago circundado por uma margem só. Para Jesus a abertura, o movimento, já é antecipação do céu, da felicidade, da bem-aventurança, experimentada aqui e agora, ao passo que estar no inferno equivale a estar fechado no sofrimento, nos pensamentos, no modo de ser ou até mesmo nas emoções. Por essa razão, cada bem-aventurança é um convite a dar sempre um passo a mais, a retomar a marcha a partir do lugar em que se está e do caminho até então percorrido. Esse passo a mais tem sua importância, pois permite a saída do que se caracteriza como sendo o inferno, ou seja, daquela prisão que paralisa e que impede não somente a abertura, o movimento, mas também as mais variadas formas de crescimento.

1 “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3) Pobre pode também ser considerado todo aquele que busca o espírito, isto é, o que, tendo consciência de sua pobreza espiritual, busca com

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humildade aquilo de que necessita. Ou então: “o ego que tem consciência do seu próprio vazio espiritual (sentido da vida) está numa feliz condição, pois se encontra aberto ao inconsciente e tem e possibilidade de experimentar a psique arquetípica (o reino dos céus)” (EDINGER, 1972, p. 191). A pobreza da qual se trata aqui, portanto, não é um “fenômeno simplesmente material. A simples pobreza, materialmente falando, não redime” (RATZINGER, 2007, p. 81), mesmo que se possa contar de modo muito particular com a graça e a bondade de Deus. “Mas o coração daqueles que nada possuem pode estar endurecido... cheio de cobiça pela posse das coisas, esquecendo-se de Deus” (Id., p. 81). Mas sabe-se também que a pobreza tampouco é uma “simples atitude espiritual” (Id., p. 81). O mundo necessita de pessoas que seguem Jesus, vivendo também na simplicidade, a fim de poderem mostrar com a vida a verdade contida nas bem-aventuranças. Dessa forma, é possível “sacudir a todos para que estejam despertos, para compreenderem a propriedade apenas como serviço” (Id., p. 81), contrapondo assim à cultura do ter uma cultura da liberdade interior, formada por pessoas que se sabem pobres também interiormente, pessoas que amam e que pretendem viver a concordância entre o ser e a palavra de Deus. Por outro lado, para Jesus, pobre não é o que

se deprecia. Não é tampouco aquele que é covarde e nem o que ofusca ou esconde seu talento. Isso seria miséria, e Jesus jamais compactuou com ela. Por pobres em espírito Jesus não entende os homens desprovidos de inteligência, mas sim os humildes, pois ele mesmo disse que o reino dos céus pertence a eles e não aos orgulhosos. Para Jesus, rico é aquele que crê que tudo pode ser comprado, até mesmo em se tratando do amor. “Rico é alguém a quem tudo é devido e o pobre é alguém para quem tudo é doação” (LELOUP, 2007, p. 62). Em várias passagens Jesus enfatiza que são infelizes os que possuem um espírito de riqueza, os que crêem que a saúde,

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24| Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança | Albertina Laufer | 22 - 35 a amizade, a inteligência lhes são devidas e até mesmo o bom tempo lhes é devido. Esses são os eternos exigentes e difíceis na convivência, porque jamais estão contentes. Sempre querem mais, de forma a possuir até a própria verdade e o conhecimento. Crendo-se os melhores e, portanto, justos, tomam-se por modelo dos outros. São os que pretendem ”ter não somente coisas materiais, mas também riquezas intelectuais e espirituais” (Id., p. 63). Na verdade, pretendem não somente ter a verdade em si, mas anseiam ter nas mãos até mesmo o próprio Deus e, por essa razão, dificultam o processo de comunhão consigo, com os outros e com as outras religiões. Ainda não se abriram ao fato de que “Deus não é um bem que se pode possuir, como a verdade não é um ter que se pode possuir” (Id., p. 64).

Visto sob o anterior ponto de vista de elucidação, rico pode ainda ser comparado com aquele indivíduo que ganha um belo presente. Por um instante se alegra com o presente, acaricia-o, mas logo o guarda dentro da mão a fim de retê-lo para si. Agindo assim, permite o fechamento da própria mão para uma única utilidade: a de guardar o presente. Tem consigo um presente valioso, mas pelo fechamento, acaba perdendo a utilidade da mão, isto é, perde as várias possibilidades que poderiam vir através do exercício de abrir as mãos e dispor do presente como dom. Quando o indivíduo adota a atitude de uma vida pobre em espírito, cumpre a ele exercitar-se constantemente a fim de ter mãos que recebem e que também se dão. Na visão de Leloup (2007, p. 64), as mãos estão ligadas ao punho e assim sendo podem acariciar o vento, podendo também acolher o sopro que dele provém. Diz ele que o punho se espalha pelo corpo, permitindo, dessa forma, que ele chegue aos pés, no coração e na cabeça, ou seja, na pessoa inteira. O punho conduz a mão para a doação, para a gratuidade. Assim sendo, para o pobre em espírito, a amizade é um presente, um raio de sol é um presente, a saúde é um presente, a própria riqueza e a própria pobreza constituem-se também em presentes. Nada

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lhe é devido, mas tudo lhe é dado, e isso permite que ele esteja sempre em marcha, sempre pronto a percorrer novos caminhos. Equivale a dizer que é feliz porque sabe descontrair-se, tornando-se capaz de acolher todas as coisas que a vida lhe dá como uma dádiva, ou seja, como um presente valioso, nobre e encantador. Torna-se, dessa forma, também presente para os outros, porque, não estando apegado, não retendo nas mãos o que recebe, permite-se ser um presente delicadamente desembrulhado, doando-se naquilo que possui e naquilo que é.

2 “Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra” (Mt 5,4) Esta bem-aventurança remete à dinâmica da mansidão. Subjetivamente falando, pode estar relacionada “à atitude do ego com relação ao inconsciente” (EDINGER, 1972, p. 191). É o momento em que o ego deixa-se trabalhar, predispõe-se, coloca-se em estado de abertura para que o novo possa lhe presentear com uma herança sempre mais rica. Dessa forma, herdar a terra pode significar adquirir uma “consciência de estar relacionado ao todo ou de ter uma participação pessoal no todo” (Id., p. 191). A própria terra tem atitudes de resistência ao violento e não se doa aos invasores que vêm e vão. “Permanecem sempre os simples e os humildes, que cultivam a terra e que continuam a semear e a colher entre dores e alegrias” (RATZINGER, 2007, p. 86). Historicamente falando, os simples e humildes são mais persistentes em relação aos que praticam a violência. Mas aqui se trata de algo a mais, isto é, do aspecto da universalização, da compreensão de totalidade também em relação à terra. Herdar a terra, tendo em vista a superação de uma visão unicamente nacionalista. É um convite ao alargamento das fronteiras, que vai de mar a mar, com o objetivo de construir a cada dia uma terra renovada. Ser manso não significa ser um covarde servil, mas alguém consciente de suas capacidades e

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de seus limites, crente na bondade de Deus e na benignidade do universo, mesmo quando a alma vive imersa no sofrimento e não vê razão aparente para isso. A mentalidade em que se vive hoje vê na mansidão uma atitude de quem é covarde, vacilante, fraco. Mas mansidão não é fraqueza, e sim uma grande força trabalhada, isto é, tornada gentil. A mansidão é uma atitude interna de quem abraça o processo de ser pobre em espírito. Na mansidão, na doçura, existe sempre um grande segredo. A mansidão é respeito. “É respeitar o que se toca, o que se vê, o que se escuta” (LELOUP, 2007, p. 75). A mansidão compreendida do ponto de vista intelectual é respeitar o pensamento do outro e, embora muitas vezes não concordando, sair enriquecido com ele. Do ponto de vista religioso, é compreendida como atitude de respeito ao credo do outro, mesmo sem compactuar com ele ou compreendê-lo. É acreditar que a vida, assim como as idéias, as concepções, não é algo para ser agarrado como se fosse a verdade máxima ou a única verdade. Nem mesmo a vida é para se compreender, mas para se acariciar, porque ela só pode se doar na carícia, na mansidão, na bondade. Só quem é doce consigo mesmo pode saborear a felicidade que a vida proporciona. “Ser doce consigo mesmo não quer dizer ser complacente” (Id., p. 76). Significa viver em constante contentamento, isto é, aceitar onde e com quem se está, o que se faz e com quem se faz, porque “é a partir de onde estamos que podemos dar o passo a mais” (Id., p. 76). É sempre mais valioso dar passos lentos, corajosos e significativos “em direção a um oásis, que ir correndo para o abismo” (Id., p. 76).

3 “Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados” (Mt 5,5) É bem provável que esta bem-aventurança possa evocar três elementos significativos na vida do indivíduo: a tristeza, o pranto e o luto. Estes são causados em decorrência da perda de algo, como, por exemplo, um objeto ou alguém, pelos quais se atribui ou se projeta um grande valor.

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Para retirar as projeções e assimilar seu conteúdo à nossa própria personalidade, faz-se necessário a perda da projeção como um prelúdio à redescoberta do conteúdo ou do valor dentro de nós mesmos (EDINGER, 1972, p. 191).

Os que choram encontram-se envolvidos, portanto, num contínuo processo de crescimento e receberão a consolação a partir do momento em que “o valor projetado, perdido” (Id., p. 191), voltar a ser recuperado no interior de sua psique. Considerando a tristeza como uma projeção, surge então uma questão que se faz necessário aprofundar. É bom chorar e recuperar como

feliz a própria aflição, a própria tristeza? Na visão de Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI (2007, p. 88), há dois tipos de tristeza: uma tristeza que perdeu a esperança, que já não confia nem na verdade e que por isso desagrega e fragmenta o homem por dentro; mas também há a tristeza que vem do abalo, da comoção provocada pela verdade, que leva o homem à conversão. Esta tristeza tem poder de cura, porque ensina e orienta o indivíduo de que é possível acreditar e voltar a amar novamente. Como exemplo desses dois tipos de tristeza, o Papa evidencia as figuras de Judas e de Pedro. Diz ele que Judas encontra-se na primeira tristeza, porque tocado pelo susto provocado pela própria queda, já não ousa acreditar e, no desespero, se enforca. Na segunda espécie de tristeza encontra-se Pedro, que tocado pelo olhar de Jesus, desata em lágrimas, que são salvadoras e ao mesmo tempo redentoras. Elas são eficazes e fortes a ponto de lavrar e regar em profundidade o terreno ressecado e pedregoso de sua alma. Então, com a alma regada, começa de novo, acredita que é possível e, dessa forma, torna-se novo. Sabe-se que o choro, por si só, não tem nenhum valor, por isso os que choram dessa forma não recebem consolação. O choro com valor é aquele que evoca a consciência diante do erro cometido, evoca o arrependimento, a dor diante da perda. Nesse sentido, o choro traz saúde não somente física, mas também psíquica e espiritu-

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26| Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança | Albertina Laufer | 22 - 35 al. Esta é, portanto, uma beatitude que tem um lado muito prático e que evoca a necessidade de lidar com a perda, com o luto. Por outro lado, percebe-se que, muitas vezes, “as pessoas não são felizes porque não aprenderam a lidar com o luto” (LELOUP, 2007, p. 67). Mas é preciso perceber o que isso significa concretamente. “Costumamos lamentar, sempre que algo importante nos falta, perdeu-se ou nos foi tirado” (ZEILINGER, 2008, p. 49) e isso prejudica, perturba e diminui sensivelmente a vitalidade ou a qualidade de vida. Pode acontecer mediante a morte de uma pessoa querida, a perda de valores humanos, materiais e espirituais, a perda do que se possui pelas catástrofes naturais ou pela sombra humana que se manifesta nas revoltas e também nas guerras. “Quando idéias, ideologias, convicções revelamse como o grande engano da vida, então isso significa aflição profunda e árduo pesar para poder viver de novo” (Id., p. 49). Quando o luto sobrevém, é sempre a vida que está ameaçada. “Consciente ou inconsciente, a aflição acompanha cada experiência de nossas inúmeras limitações e, por conseguinte, é parte integrante de nossa vida humana” (Id., p. 49). Proclamando essa bem-aventurança, Jesus quer dar a entender que é preciso aprender a ficar de luto, isto é, aceitar que o presente é presente e que o passado se torna passado. Não é o luto em si, mas a aceitação dele que se torna condição de felicidade. O grande drama das pessoas é que, na maior parte do tempo, o passado se projeta sobre o presente, impedindo que vivam plenamente, que tenham “vida em abundância” ( Jo 10,10). Assim sendo, é bem-aventurado o que sabe aceitar que aquilo que foi já não pode mais ser. Com isso não se quer dizer que o passado deva ser esquecido, mas sim que é necessário cessar de projetá-lo sobre o presente. A felicidade consiste em aceitar que o presente não seja o passado, que a cada instante existe uma grande novidade que não deixa a pessoa permanecer de forma passiva, como um mero espectador, diante dos fatos da vida.

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Outro grande convite de Jesus nessa bemaventurança é o de colocar-se em marcha, em movimento. Ele não quer ninguém parado, estagnado ou fechado na tristeza, numa atitude de quem vive apenas para massagear o luto. É um convite a dar sempre um passo a mais. Ele mesmo não se conteve somente em chorar a morte de Lázaro. Colocou-se em ação a ponto de reanimálo. Também não se contentou em chorar sobre Jerusalém, em lamentar a infelicidade do mundo. Propôs metas para que a condição do mundo pudesse ser cada vez melhor. É preciso, portanto, viver o luto e com ele colocar-se em marcha para poder fazer a travessia. É uma forma de abrir o coração para apreciar adequadamente o novo lugar diante do luto, percebendo com isso que o lugar do luto anterior foi modificado, transformado. É possível transformar o modo de ser, a casa anteriormente construída em um novo modo, em uma nova morada. Aprofundando um pouco mais essa idéia, percebe-se que “há também o luto por certas imagens de si mesmo” (LELOUP, 2007, p. 71). É a grande dificuldade encontrada por muitos indivíduos para ficar de luto por sua juventude, pela beleza física, pela saúde e até mesmo pela perda da memória. “Ficar de luto pelo seu passado não é denegá-lo” (Id., p. 71), pelo contrário, é ter a certeza de que a vida conduz sempre a algo novo, desconhecido, porém fascinante. Ter a certeza de que aquilo que foi bom em uma época, em uma realidade, em uma determinada cultura, pode não ser igualmente em outra. Por vezes, é preciso também aceitar que aquela imagem de Deus que se conheceu na infância já não é mais suficiente quando a vida se torna adulta. É um imperativo que impulsiona sempre mais à coragem de se enlutar por certas imagens de Deus que acalentaram a vida na infância. Constata-se, na vivência do luto, que algumas vezes se traduz em lágrimas, a grande oportunidade para a liquefação do coração que se encontra rígido, endurecido. É o momento oportuno diante do qual toda dureza se enternece e

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todo fechamento se abre e, assim, “a água viva, a natureza fluídica é reencontrada” (Id., p. 74). É uma realidade fecunda, capaz de fazer nascer, crescer e frutificar a semente também em “terreno pedregoso ou entre os espinhos” (Mt 13,1-9), uma vez que estes também podem ser transformados. Isso é estar em marcha rumo ao caminho da felicidade.

4 “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5,6) “A justiça é aqui apresentada como algo que nutre. Trata-se de um princípio orientador interior, de caráter objetivo, que traz um sentimento de realização do ego que o busca com fome” (EDINGER, 1972, p. 191-192). É a justiça de estar vivendo de acordo com a necessidade interior. Segundo o Papa Bento XVI (2007, p. 92), a justiça consiste em não se vergar diante dos que ditam as opiniões e os hábitos dominantes. Justos são os que oferecem resistência ao sofrimento, os que mantêm o olhar atento em direção àquilo que é maior, de verdadeira justiça, de verdadeiro bem. Esta bem-aventurança volta-se para o cultivo do desejo, “para os homens que não se contentam com o que está disponível e que não sufocam a inquietação do coração” (Id., p. 92), de tal modo que eles se põem a caminho, como os magos do oriente, à procura de Jesus, nutrindo a sua esperança de justiça com a estrela que os guia no caminho da verdade e do amor. São pessoas que não medem esforços para aguçar sempre mais a sensibilidade, que as “capacita para ouvir e para ver os sinais suaves que Deus envia para o mundo” (Id., p. 92), quebrando, dessa forma, a ditadura imposta pelo costume, pelo sempre igual, pelo sempre foi assim. Essa beatitude é um forte estímulo, porque evoca o desejo de um mundo e de uma vida melhores, sempre mais coerentes com a proposta de Cristo. “É uma beatitude de não estar satisfeito com a situação presente” (LELOUP, 2007, p. 76), nem com a própria, nem a do outro, porque o ca-

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minho da felicidade também se constrói a partir do olhar coerente sobre as injustiças. No Evangelho, a justiça adquire a dimensão de santidade e exatidão. É sempre a atitude correta em relação a algo ou a alguém, ou seja, a atitude que tem por fim não diminuir a integridade da pessoa, bem como a sua dignidade de poder crescer como imagem de Deus. É importante alimentar sempre mais esse grande desejo de justiça em todas as relações. Sempre, é claro, optando pela utilização da dinâmica entre a distância justa e a proximidade justa.

5 “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7) Torna-se oportuno aqui fazer um paralelo com um dos princípios da Psicologia Analítica: “o inconsciente assume, com relação ao ego, a mesma atitude que o ego assume em relação ao inconsciente” (EDINGER, 1972, p. 192). Se o ego estiver disposto a se relacionar com a sombra de forma respeitosa e delicada, portanto, essa será de grande utilidade para ele. Se o ego mostrarse misericordioso, ele receberá da mesma forma a misericórdia no seu íntimo. Logo, se o ego for violento, receberá violência, na mesma proporção, e perecerá em decorrência dessa atitude. O Antigo Testamento, quando fala de misericórdia, não usa a palavra coração, mas útero. O ser humano é aquele que possui um coração. Mas somente ter coração não basta. “É preciso também ter uma matriz” (LELOUP, 2007, p. 77), é preciso que este coração seja matricial, isto é, que possua também um ventre, cujas entranhas tornam-se capazes de acolher e manter a vida, oferecendo ao feto, ali abrigado, o alimento de que necessita para poder viver e assim desenvolver-se. Dessa forma, é concebido como feliz e misericordioso o indivíduo que possui espaço interior para acolher e alimentar a vida, as pessoas. Sendo assim, torna-se capaz de perceber que Deus tem materna misericórdia, uma vez que fora gerado

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28| Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança | Albertina Laufer | 22 - 35 em seu divino útero. Ser misericordioso assim

como Deus é misericordioso, portanto, equivale a ter um lugar, um útero no coração, na casa, no

trabalho e no laser, para que as pessoas possam encontrar esse espaço fecundo e gerador de vida.

A Bíblia apresenta a figura de Maria é

exemplo vivo de misericórdia. Ela teve ouvidos

para ouvir a proposta do anjo Gabriel. Teve espa-

ço interior aconchegante para acolher o Filho de Deus em seu útero. Esteve atenta às necessidades

de sua prima Isabel. Ouviu. Silenciou. Duvidou. Respondeu sim e serviu. Saiu de si mesma. Em Caná, enquanto todos se preocupavam em comer e beber, o olhar atento da mulher clemente percebeu que ali havia uma dificuldade. Sua miseri-

córdia a levou a falar com seu filho. Misericórdia é para ela também sinônimo de sensibilidade, de atenção, de zelo. É virtude que a torna atenta e solícita às necessidades dos outros.

Uma das características típicas do indiví-

duo misericordioso é sua capacidade de ouvir. O

mundo de hoje carece de pessoas com tal dispo-

nibilidade. É o que a Bíblia fala a respeito da mãe de Jesus: “Maria, contudo, conservava cuidadosamente todos esses acontecimentos e os meditava

em seu coração” (Lc 2, 19). Ela ensina com isso

que ouvir é importante, mas somente isso ainda não basta. É preciso escutar, ou seja, acolher a palavra que vem de dentro para que ela germine no

coração. Para isso, é necessário que se cultive um

útero saudável a fim de que o Deus gerado no seu interior não morra sem antes ter tido a opor-

tunidade de nascer. Gerar Deus é também um

exemplo de misericórdia. É fazer algo simples de

um jeito novo, com um diferencial, estando com o pensamento e o coração sempre presentes na-

quilo que se faz. Mas é importante ressaltar ainda

que “agir a partir da identificação com aquele que

necessita de ajuda certamente não pode hoje consistir numa generosa doação de esmolas” (ZEI-

LINGER, 2008, p. 58). Misericórdia é algo mais. É crer que a vida é um dom e como tal necessita desenvolver-se totalmente para assim ser imagem e semelhança daquele que é o seu criador. Ano I | número 1 | 2012

6 “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8) “A pureza ou limpeza pode significar um estado do ego, livre da contaminação de conteúdos ou motivações inconscientes” (EDINGER, 1972, p. 192). Aquele, portanto, que é consciente é também puro, porque é consciente não só da sua sombra, mas igualmente da potencialidade nela contida. Esse, sim, abre uma porta para experimentar a sua própria essência, ou seja, o si mesmo. É comum se afirmar que o órgão com o qual

se pode experimentar adequadamente a totalidade do ser, ou seja, ver a Deus, é o coração. “O simples entendimento não basta” (Ratzinger, 2007, p. 93). Para que o homem se torne capaz de conhecer a Deus, e conhecer equivale a experimentá-lo em profundidade, todas as forças de sua existência devem agir conjuntamente: vontade, entendimento, afeto, alma. Por coração, entende-se “precisamente esse jogo de relações das capacidades de percepção do homem, no qual também está em jogo a correta interligação entre corpo e alma, que pertence à totalidade dessa criatura homem” (Id., p. 94). Diz ainda o Papa Bento XVI que a fundamental determinação afetiva do homem depende precisamente também desta unidade entre alma e corpo, e dela depende também que o homem aceite ser ao mesmo tempo corporal e espiritual; que coloque corpo na cultura do espírito, mas que não isole nem o entendimento nem a vontade, mas que se aceite a si mesmo a partir de Deus e assim reconheça e viva a corporeidade de sua existência como riqueza para o espírito. Segundo o Apóstolo Paulo, a pureza de coração se dá no seguir os passos de Cristo, na experiência de ser um com ele. “Já não sou eu quem vive, mas é Cristo quem vive em mim” (Gl 2,20). É esse algo novo, diferenciado, que deve aparecer “como condição para a subida para Deus que acontece precisamente na descida do serviço humilde, a descida ao amor incondicional, que é a essência de Deus e, portanto a verdadeira força purificadora que capacita o homem para conhecer

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a Deus e para vê-lo” (RATZINGER, 2007, p. 95).

mental para a construção da paz. Só o homem

por coração puro compreende-se o coração que

conciliado com o si mesmo pode igualmente se

Só se pode ver a Deus com um coração puro. E ama e que se coloca em atitude de obediência e de

serviço a Cristo, na realidade em que se encontra. O amor é o fogo capaz de purificar e unir o en-

tendimento, a vontade, o sentimento. Só o amor

une o homem consigo mesmo, na medida em que une a partir de Deus e, assim sendo, é possível en-

trar na habitação de Deus para poder vê-lo. Isso significa precisamente participar da bem-aventu-

rança que faz “ver a realidade, as coisas tais como são. O coração puro é o coração lavado de todas

as projeções” (LELOUP, 2007, p. 78) tornando-se capaz de ver a realidade, a “grande realidade em todas as pequenas realidades” (Id., p. 78).

reconciliado com Deus, ou então só um ego rereconciliar consigo e estar de acordo, sendo, por-

tanto, bem-aventurado, ou seja, construtor da paz em seu interior e em toda a vastidão do mundo.

“Que haja paz na terra” (Lc 2,14), é a gran-

de vontade de Deus e tarefa que interessa aos

homens, haja vista ser a paz um componente

que evoca ao campo do relacionamento, da convivência humana. No Antigo Testamento, paz

se chama shalon, declaração e promessa. Não é

unicamente a ausência de guerra, mas acima de tudo “aquela ampla condição da convivência onde todos se sentem bem, no mais profundo sentido da palavra” (ZEILINGER, 2008, p. 62). É uma

circunstância propícia e possibilita a felicidade

7 “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9) “O papel apropriado do ego é mediar en-

tre as partes oponentes do conflito intrapsíquico” (EDINGER, 1972, p. 192). Por isso, para que haja uma solução capaz de levar à totalidade, o ego não pode se identificar com nenhum dos lados do conflito. Caso ele se identifique com um

desses lados, a “dissociação torna-se permanente” (Id., p. 192) Cabe ao ego cumprir então a sua

função conciliatória de ser pacificador, pois, assim sendo, torna-se capaz de agir na construção da to-

talidade “do si mesmo e, portanto, como Filho de Deus” (Id., p. 192).

pessoal e social no âmbito do amor e da justiça. Tem como pano de fundo, no seu sentido religio-

so, o significado da aliança de Deus com seu povo, compreendida como “aliança de paz” (Is 54,10)

aqui e agora, e “que também é parte integrante e

conteúdo da expectativa futura” (ZEILINGER, 2008, p. 62); evoca a irrupção de um tempo qua-

litativamente novo. Não se trata, portanto, apenas

da pacificação entre partidos e grupos litigantes, embora esforços nesse sentido também sejam importantes e até mesmo necessários. “Falar de paz

e fomentar a paz não é ainda fazer a paz” (Id., p. 62), visto que em relação a isto diversas potências

já reivindicaram tal restabelecimento pelas suas ações: paz romana pelo poder militar; paz pela in-

timidação atômica; paz oriunda da separação das

Saber fazer-se filho de Deus, eis o lugar

raças; paz pela expatriação ou genocídio; paz pela

a viver. É uma decisão fundamental que se dá a

cido. Sabe-se que tais ações não podem produzir

ponto de partida de todos os envenenamentos do

Outro aspecto importante a ser considerado

para o espaço vital no qual cada um é chamado

opressão aos que pensam diferente do estabele-

cada dia. Já o caminho que afasta de Deus “é o

uma paz no sentido que Jesus quer.

homem; a sua superação é condição fundamental

na construção da paz é a temática da reconcilia-

para a paz no mundo” (RATZINGER, 2007, p. 88).

Quando o ego se afasta do si mesmo, por-

tanto, causa então a dissociação do indivíduo. A

superação desse afastamento é condição fundaAno I | número 1 | 2012

ção.

“Portanto, se estiveres para trazer a tua oferta ao altar e ali lembrares que o teu irmão tem algo contra ti, deixa a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; e depois virás a

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30| Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança | Albertina Laufer | 22 - 35 apresentar a tua oferta” (Mt 5,23-24). “A reconciliação só pode ser promovida pelo aliado e atacado, não pelo agressor e pelo rancoroso” (ZEILINGER,

coisa. É necessário um trabalho de aplainamento

das arestas. O individuo traz consigo uma força

que pode ser comparada com um pássaro interno, que possui não somente asas, mas também gar-

2008, p. 63).

Vê-se aqui que a construção da paz exige

ras. No seu interior existem ideais de vôos não

próprio direito a fim de possibilitar a paz (Id., p.

preciso costurar, fazer a paz entre o retalho da ra-

5,38-42), quando este relata que em vez da vin-

afeto, entre o que constrói a vida e o que evidencia

interpretação ao extremo feita por Jesus em rela-

sempre mais condições para, finalmente, ficar em

gos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5,44).

alçar vôo e cantar livremente o pássaro interior

da paz remete ao fato de que, algumas vezes re-

própria paz e para a paz de todos.

que se dê o inverso: “é questão de renunciar ao

realizados, retalhos de tecido não costurados. É

63). Percebe-se essa dinâmica no Evangelho (Mt

zão e do coração, entre o que é instinto e o que é

gança lógica, cobra-se a outra face. Finalmente a

os sinais de morte. Fazendo isso, o indivíduo cria

ção ao amor ao próximo: “Amai os vossos inimi-

paz e assim poder pôr-se em marcha, isto é, deixar

Seguindo a ótica de Jesus, portanto, a construção

que a cada dia se liberta, para a construção da sua

quer a renúncia do próprio direito a fim de criar

uma condição prévia para a verdadeira paz. É o que se percebe claramente Nele, quando da sua

morte na cruz. Ali ele selou o fundamento, o alicerce sobre o qual é possível surgir a autêntica paz.

Outra realidade que evidencia que a paz é

dom e também construção que se dá a partir de

dentro é a palavra artesão. Ela não remete a falar, fazer belos discursos a respeito da paz, mas indica

que a promoção da paz implica em construção. Para isso, é preciso abrir espaços na mente e no

coração, ser capaz de aprofundar sempre mais o

poço interior, que por vezes é ainda muito raso e, assim sendo, não consegue conter ali toda a água

necessária para a construção da paz. É preciso alargar sempre mais as margens do coração para

perceber que há lugares ali inconscientes, sim, porém privilegiados, que ainda não foram visitados e, dessa forma, não foram transformados em se-

mente de paz. Se visitados, tornam-se conscien-

tes, fontes de fecundidade, verdadeiros espaços e condição para aí se começar a paz.

Em seu discurso, Jesus deixa claro que a paz

é um trabalho concreto. “Jesus era um artesão, um

carpinteiro” (LELUOP, 2007, p. 79) e como um bom carpinteiro sabia que para ser mestre na arte de fazer móveis era preciso saber aplainar muito bem. Com a construção da paz se dá a mesma Ano I | número 1 | 2012

8 “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus” (Lc, 5,10) Com a temática da perseguição, destaca-se

aqui a importância que tem para o ego a sua ca-

pacidade de “suportar a dor e o sofrimento, sem sucumbir ao amargor e ao ressentimento, para

relacionar-se à lei interna objetiva” (EDINGER, 1972, p. 192). Tal atitude é de grande valia para

o ego, pois agindo assim é recompensado através do contato que estabelece com a psique arquetí-

pica, bem como com suas imagens, que contém

poder de cura e são capazes de transmitir a vida. “Jesus promete alegria, júbilo, grande recompen-

sa” (RATZINGER, 2007, p. 91), àqueles que por causa dele forem insultados e perseguidos e até

mesmo difamados de todos os modos possíveis. Assim sendo, o eu de Jesus e a fidelidade à sua

pessoa tornam-se critérios, não só de justiça, mas também de salvação. Fica evidente aqui a cristo-

logia mencionada quase que de forma oculta nas outras bem-aventuranças. “Jesus atribui ao seu Eu

uma qualidade de critério que nenhum mestre de

Israel nem mestre algum da Igreja podiam pretender para si” (Id., p. 91). Ele mesmo se apre-

senta como ponto de partida para a vida correta. Ele é o começo e o fim, o Alfa e o Ômega, o “ca-

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Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança | Albertina Laufer | 22 - 35

minho, a verdade e a vida” ( Jo 14,6). Ele próprio

Da narrativa de Rosa, colhe-se ainda a idéia

pagou com a vida o alto preço da integridade e

de que os rios são grandes, desconhecidos e pro-

de injustiças e perseguição por andar na contra-

mente a alma do homem. Percebe-se que, para

da fidelidade a Deus; enfrentou as piores formas

mão do mundo. Sofreu a difamação e a calúnia

porque estava ao lado da verdade. Dessa forma, entende-se que todo aquele que optar por seguir o seu modelo de ser singular, único, estará possi-

velmente exposto a toda espécie de difamação e

perseguição. É, de certa forma, o grande aviso de

Jesus: a sua mensagem sempre foi e sempre será

um “empreendimento arriscado” (ZEILINGER, 2008, p. 68).

fundos, ora calmos, ora violentos, como é igual-

ele, há certa correspondência entre rio e alma. Evidência disto é o fato de o homem decidir

abandonar tudo o que havia construído até então: família, trabalho, amigos, projetos. Passa então a viver sozinho, dentro de uma canoa, em um gran-

de rio, para ali viver “solto, solitariamente” (Id., p. 33), cumprindo, dessa forma, outro programa: o de interiorizar-se para conhecer sua alma em profundidade.

No texto de Rosa percebe-se também a

9 “Bem-aventurados os que atravessam pontes para chegar à terceira margem do rio, porque encontrarão contentamento” (LAUFER, A) Por observação e também por experiência,

sabe-se que a normalidade de todo rio consiste

no fato de ele possuir duas margens. Guimarães Rosa (1908-1967), em seu conto intitulado A

terceira margem do rio (ROSA, 1972, p. 32-37), acena para outra realidade quando evidencia um rio com algo a mais. É, segundo ele, um rio di-

ferenciado, que possui duas margens concretas,

imagem do rio como presença da eternidade, o que dá uma sensação de aparente contraste com

a solidão necessária ao homem que o atravessa numa canoa de um assento só. Considera-se que para tal travessia é preciso estar só, sendo necessário também direcionar a opção a fim de dar um grande salto: da terra para a água, da solidez e

da concretude dos dias, rompendo com o já conhecido, já vivido até então, para dar início a uma nova passagem para adentrar num rio que agora é margeado não somente por duas, mas por três margens.

Diz o texto ainda que, para adentrar nesse

terrenas, conhecidas, e uma terceira, considera-

rio, necessita-se algo mais do que o simples im-

“encomendou a canoa especial, de pau vinhado,

instrumentos adequados, no caso, com o remo e

da abstrata, desconhecida. Conta Rosa que o pai

previsto. É preciso antes ter se preparado com os

pequena” (Id., p. 32), porém resistente, com todas

a canoa, com a coragem e também com a atitude

as condições “próprias para durar na água por uns vinte ou trinta anos” (Id., p. 32), ou seja, o tem-

po necessário que se passa no conto. Entrando na

canoa, o pai, que segundo o autor, já era quieto,

decide viver mais quieto ainda, dentro da canoa, estando sempre no rio “largo de não se poder ver

a forma da outra beira” (Id., p. 32). Apesar de o conto dizer que o pai nunca tinha voltado, tam-

bém narra ele, “não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da

canoa, para dela não soltar nunca mais” (Id., p. 33).

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de silêncio. Para navegar, adentrando na terceira margem do rio, é preciso deixar a terra e lançar-

se na escuta, que agora se dirige para a voz e os ruídos de dentro. Este é um trabalho que se faz

sentado na canoa, dentro do rio ladeado por duas margens e perpassadas por uma terceira, descon-

tínua, não paralela, quase que intrusa e não natural. É nesse lugar ocupado por essa margem que

se pode vislumbrar e habitar no silêncio. Nela o

homem deixa a solidez e mergulha na fluidez, ampliando a sua condição cotidiana e instaurando a sua própria rotina, fundada, ancorada no

contínuo movimento da água que o leva curiosa-

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32| Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança | Albertina Laufer | 22 - 35 mente, sem afastá-lo. É na realidade deste rio que

ele se torna o autor, o construtor, transgredindo os

próprios limites, ultrapassando as próprias mar-

gens e fundando aí uma nova forma de vida, um novo habitat interior. Para adentrar na terceira margem é preciso, portanto, navegar colocando-

se a caminho, fazendo a travessia com empenho, prudência e perseverança. A felicidade, a bem-

nem a ele fora transmitida. “Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais” (ROSA, 1972, p. 33).

O fato de o pai nunca ter voltado deixa cla-

aventurança, é realidade que se encontra não no

ro que certas experiências não têm a menor pos-

em busca daquilo que nos rasos da vida não se

das. Não são, de forma alguma, compartilháveis.

eterna profundidade.

explicada, nem mesmo apreendida pela razão. É

comum da superfície, mas no contínuo navegar

sibilidade de serem contadas, narradas, explica-

encontra, mas que se experiencia nas ondas da

Pertencem à dimensão mística, que não pode ser

Percebe-se, no dia-a-dia, que a superfície é

o caminho percorrido pela maioria das pessoas, que ancoram suas embarcações e se cristalizam na margem do cotidiano da vida, na busca con-

tínua por soluções sempre mais rápidas e fáceis.

um estado de bem-aventurança que quebra todas as regras postuladas pela inteligência humana. É

o rompimento da margem anteriormente navegada, do caminho conhecido, até então traçado.

Quando se menciona que são bem-aventu-

Logo, para se navegar e atingir a terceira margem

rados os que atravessam pontes para navegar pela

nele inteira e ininterruptamente, numa atitude

construção de um modo de ser capaz de adentrar

ato de viver também no imprevisto, de conhecer

ca da singularidade da experiência. É aí que se

movimentos de chegada e de partida. Tais movi-

permite sair da segurança do velho lar: costumes,

não basta apenas avistar o rio. É preciso habitar

terceira margem do rio, quer apontar-se para a

de espera, com paciência. Tal atitude auxilia no

metaforicamente e em profundidade na dinâmi-

habitando no desconhecido, com seus contínuos

encontra o espaço da construção, da criação que

mentos revelam a partida e o retorno das águas e

regras, manias, ativismo, do sempre foi assim, do

proporcionam o encontro da profundidade com a superfície, de forma a não mais haver oposição entre elas.

Adentrar na terceira margem remete ainda

à entrada no mundo do inconsciente, do abstrato, do que não se vê e não se toca e por isso ainda

não se conhece, mas que pode ser avistado, to-

cado, vislumbrado e assim sendo, transformado. Nesse processo de busca do desconhecido dentro de si mesmo, o estar só é inevitável e constitui-

se em uma das formas de procurar entender os

mistérios da alma no incompreensível da vida. Pode-se dizer ainda que o autor faz menção à re-

alidade do processo da individuação da experiência,

já estabelecido como correto, do não é possível, para então habitar no espaço flutuante e ininter-

rupto das águas deste novo rio, incorporando-se, tornando-se um com ele. Esse é o espaço da criação e nele é possível viver permeado por mais de duas margens: as duas já dadas, a outra que é

escolhida e está para ser construída. As duas pri-

meiras têm a função de ser limite de contenção

das águas e, ao mesmo tempo, ponto de partida. São indispensáveis, mantêm o percurso do rio no

seu leito, mas estão aí para serem transpostas, a

fim de se poder fluir rumo a uma terceira com maior leveza, profundidade e bem-estar.

São tantos os rios passíveis de travessia.

simbolizada aqui pela canoa ocupada por uma só

Adentrando neles é possível aprofundar o seu

profundamente à esfera individual que nem mes-

que é caracterizado como sentimento de felicida-

pessoa. Nesse contexto, a experiência pertence tão mo o filho pode falar da experiência do pai, pois Ano I | número 1 | 2012

leito navegando pela margem do contentamento, de, estado de espírito duradouro, bem-aventuran-

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Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança | Albertina Laufer | 22 - 35

ça. Pode ser entendido ainda como a capacidade

de conteúdo. Entendido assim, contente é aquele

um estado de espírito que não se explica pelas cir-

usufruir o conteúdo da realidade, daquela realida-

de estar satisfeito ou feliz em qualquer situação. É cunstâncias favoráveis e/ou confortáveis, mas sim

pela capacidade que se tem de exercer domínio sobre elas. Dessa forma, os fatores externos que o abalam transformam-se em número cada vez menor. O contentamento é realidade que não está

fora da pessoa, mas vem de dentro, brota da experiência. Poder-se-ia compará-lo como o grande rio já mencionado, que existe, sim, mas existe no

leito que se preparou para ele. Mas a grande dificuldade em viver o contentamento é que quase

nunca se prepara o leito do rio no lugar onde se está. No mundo dos descontentes o rio que corre

ao lado ou no terreno alheio é sempre mais belo, mais atraente e mais fecundo.

Existe também a expressão típica dos con-

siderados descontentes, pois só serão contentes

“assim que” ( JONHSON; RUHL, 2000, p. 11). Visto dessa forma, o contentamento poderia ser assim que (ser o mesmo que) arranjar um tra-

balho novo, uma casa nova, uma nova forma de se vestir, um novo líder no trabalho, habitar com

novas pessoas, um novo curso para se fazer. Esse estilo de vida assim que coloca o contentamen-

to somente no futuro e perpetua sempre mais o descon-tentamento. Assim sendo, impede a alegria de des¬frutar o momento presente, as pes-

soas que se têm em volta, as circunstâncias reais e

imediatas que se apresentam como possibilidades de crescimento e de realização.

O contentamento tem a função de instaurar

um novo modo de ser, no qual é possível “cada dia

estar satisfeito, de não desejar mais do que você

tem” ( JOHNSON; RUHL, 2000, p. 15). Consiste

em estar apaixonado pelo que se dá no momento

presente, assumindo a realidade assim como ela é, respeitando e acolhendo as coisas como elas são, superando dessa forma o estilo de vida permeado pelo assim que.

A palavra contentamento possui ainda outro

significado, sendo derivada do latim contentu, que quer dizer contido; sugere também a idéia Ano I | número 1 | 2012

que tem conteúdo em si mesmo ou que é capaz de

de na qual está inserido. Para estes, em qualquer

lugar, em qualquer companhia, trabalho ou país, e

em qualquer circunstância existe a possibilidade de contentamento.

O contentamento é realidade possível, sim,

mas somente para aqueles que sabem explorar sua

riqueza interior, os que navegam em águas sempre

mais profundas ou, então, para os que aproveitam

as potencialidades de cada momento ou, então, ambas. Contentamento é aquele estado em que

tudo parece certo: não há necessidade de mudar o que se está fazendo, nem a pessoa com quem se está, nem o lugar onde a gente se encontra. O que muda é a atitude interior em relação ao que se está vivendo ou encontrando.

Sabe-se que “o contentamento nunca é o re-

sultado de fazer ou ter” (Id., p. 25). Almejar nave-

gar o rio, sem nunca ter entrado nele, não produz contentamento ou, pelo menos não por muito

tempo, porque o “contentamento é uma experi-

ência interior” (Id., p. 25). De forma alguma se

constitui em “mercadoria que pode ser comprada” (Id., p. 39) e também não está disponível para ser

“usufruído, divorciado da experiência cotidiana” (Id., p. 67). Não se pode adquiri-lo como se fosse

um mero artigo de consumo, mas pode-se sempre

“acordar para as suas dádivas” (Id., p. 69), uma vez que ele sempre chega às pessoas como uma “graça divina” (id., p. 69).

Embora o contentamento não seja um ato

da vontade, pode-se sempre construir e atravessar pontes que direcionam o percurso até ele, que abrem caminhos para que ele possa se manifestar

e isso pode se dar em cada situação do dia-a-dia. O contentamento é, pois, “a arte de aceitar a reali-

dade” (Id., p. 73). Ele se dá aqui e agora, desde que superada a já citada fórmula do assim que, não só nas situações que trazem alegrias e vitórias, mas também naquelas que são motivo de frustrações e de derrotas. Para que possa adentrar na dádiva do contentamento, portanto, o indivíduo precisa ter

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34| Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança | Albertina Laufer | 22 - 35 claro que este não consiste em “conseguir o que se

sar. Ali, no instante fecundo de cada um deles,

o que se tem” (Id., p. 74). Ele não se encontra nas

se prepara. É o tempo do cultivo, da qualidade e

quer” (Id., p. 74), mas acima de tudo em “querer

“coisas, nos objetos ou nas relações, mas na adesão do coração e da inteligência ao Ser que nos

informa” (LELOUP, 2000, p. 121), e nem sempre

as realidades informadas são as mais agradáveis. Assim sendo, “não proporcionam prazer nem felicidade psíquica e, no entanto, são e têm o direito de ser o que são” (Id., p. 121).

É imprescindível mover-se a fim de lançar-

se no exercício evolutivo do constante aprendizado de “transformar esta vida não em uma prova-

ção, mas em uma ocasião” (Id., p. 123): a grande

ponte para adentrar na terceira margem. Trata-se, portanto, de exercitar-se não somente em base da renúncia, embora às vezes ela seja também

necessária, mas no sentido da possibilidade: de

desprendimento, de crescimento, de ocasião, de evolução. É possível ser contente também a partir

das infelicidades e dos descontentamentos. Nessa linha de pensamento faz sentido parafrasear o

que Jesus diz: “Eu vos dou a minha paz, mas não como o mundo a dá” ( Jo 14,27). Ou seja, cada um encontra na ocasião o seu contentamento, a sua alegria, a sua felicidade, que já não dependem das

circunstâncias externas. Remetem sempre a algo

que permanece e a um modo de ser onde nada nem ninguém retiram o fascínio de poder nave-

gar adentrando por águas sempre mais profundas, percorrendo margens até então desconhecidas. É o grande convite a existir de forma singular, sem contrários, pois tendo sido integrados, tornam-se

ocasião, momento oportuno, tomada de consciência.

É sempre possível viver em outro plano,

adentrando no rio da vida por outra margem, o lugar no qual tudo o que é encontrado se torna

recompensa, impulso para nova busca, alento para

nova coragem. É o lugar do amor, que sobrevive das buscas contínuas, dos intervalos que dese-

nham as pausas nas canções. Na construção das partituras, tais intervalos indicam os momentos

em que a orquestra precisa parar para descanAno I | número 1 | 2012

acontece o movimento em que a continuidade da harmonia de toda melodia. É o lugar no qual

a esperança se torna o invólucro da vida, onde é possível experimentar “a imagem divina como a

qualidade mais íntima da própria alma” ( Jung, Vol. XII, 1991, p. 24). É o lugar sagrado, onde o

desenvolvimento interior acompanha o exterior e

o Cristo das bem-aventuranças atinge as profundezas da alma, transformando-a “naquela totali-

dade que corresponde ao modelo” (Id., p. 20-21). Nesse lugar já não há espaço para a fragmentação, e o indivíduo, tocado em sua natureza mais profunda, permanece singularmente, embora estando com muitos. É o lugar da devolução das

esperanças perdidas, do empréstimo de palavras benditas, do impulso que leva a encontrar o per-

fume da flor rara, inexistente nos jardins comuns, do encontro da imagem que jaz escondida na pedra, do canto do pássaro livre das gaiolas da

vida, do verso redentor oculto na grande poesia. Nesse lugar, se ancoram os destinos dos signifi-

cados das palavras não ditas, porque tamanha é a realidade que representam. Experimentadas, elas

desconstroem as armaduras e reinventam a aurora e o ocaso da vida, transformando-a em estado

de êxtase, em perpetuação da eterna felicidade. É este o lugar no qual já não se pode ser menor do

que o próprio sonho. É o espaço do novo êxodo, da terra prometida, que vai além da simples con-

quista geográfica. É o estado de abertura que leva

ao pleno “desprendimento” (ECKHART, 2006, p. 148), onde se vive “apartado de todas as coisas, livre de todas as ilusões” (MARTI, 2008, p. 146). Constitui-se, portanto, num constante exercício de soltura. Vive-se solto de si mesmo, das coisas

e das pessoas, quando assim a vida concreta o

exigir. É assim o encontro da liberdade desejada, do oásis do silêncio e da solidão. É a metáfora

que engloba a totalidade do grande conjunto de

felicidades, o lugar da proteção, do descanso dos pesos do mundo. É assim a terceira margem, a nona bem-aventurança. Ela evidencia o encontro

desse novo modo de ser no rio onde se navega

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Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança | Albertina Laufer | 22 - 35

por um leito não físico, não material, estando lá sem mesmo ter que ir, mas que sugere, ao mesmo tempo, o espaço dos desejos e das conquistas, da “perfeição, totalidade, desígnio cumprido, começo e fim, e a realização completa do sentido inato da existência” ( JUNG, 2006, p. 192). É a eterna morada onde se assentam as esperanças humanas, cujo curso de águas se intensifica e “se movimenta inexoravelmente para a meta final” (Id., p. 192).

JUNG. Carl Gustav. Psicologia e alquimia. Vol XII. Petrópolis: Vozes, 1991.

JUNG. Carl Gustav. O desenvolvimento da

personalidade. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2006. LELOUP. Jean-Yves. Amar Apesar de Tudo. Campinas. Verus Editora. 2000.

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Sonhos: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia Franciele Engelmann

Ano I | número 1 | 2012

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Sonhos: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia Franciele Engelmann* Resumo Os sonhos acompanham a humanidade desde a antiguidade. Constituídos de natureza premonitória e tidos como manifestação de forças ocultas para os egípcios; utilizados nos rituais de cura pelos gregos, os sonhos revelaram-se ao longo da história como ferramentas úteis na relação com a alma. Para Jung, o ser humano é habitado por um impulso que o impele à totalidade. O objetivo deste artigo é abordar a importância dos sonhos no processo psicoterapêutico de vir a ser inteiro. O método utilizado é a revisão de literatura com base na psicologia analítica. O tornar-se inteiro, a individuação, se origina e culmina no si-mesmo, o arquétipo central, promovedor do desenvolvimento humano. Os sonhos, enquanto compensação de unilateralidade da consciência e como manifestação do si-mesmo, configuram-se como possibilidades de uma conexão com a alma, expressões que podem contribuir para encontrar o sentido da vida e realizar a finalidade à qual se é chamado a ser. Palavras-chave: sonhos, psicoterapia, processo de individuação.

Abstract Dreams come mankind since antiquity. Consisting of premonitory nature and taken as a manifestation of hidden forces to the Egyptians, used in healing rituals by the Greeks, the dreams have proved throughout history useful tools in relation to the soul. For Jung, the human being is inhabited by an impulse that propels the whole. The aim of this paper is to address the importance of dreams in the psychotherapeutic process of becoming whole. The method used is a literature review on the basis of analytical psychology. Becoming a full-individuation originates and culminates in the Self, the central archetype, promoter of human development. Dreams, while compensation of one-sidedness of consciousness as a manifestation of the Self, configured a possible connection to the soul, words that can help find the meaning of life and achieve the purpose for which it is required to be. Keywords: dreams, psychotherapy, process of individuation.

I. Introdução

* Psicóloga graduada pela UFPR – Universidade Federal do Paraná. Especialista em psicologia analítica e religião ocidental e oriental pelo ICHTHYS – Instituto de Psicologia e Religião.

Companheiros da jornada humana, desde a antiguidade, os sonhos configuraram-se, ao longo da história, como espaço significativo para a compreensão e cumprimento do vir a ser humano. Para os antigos egípcios, os sonhos apresentavam um caráter premonitório, que comumente manifestava a intenção dos deuses e o destino da pessoa. Provavelmente, este povo foi, Ano I | número 1 | 2012

conforme Ramos (1994) o primeiro povo a institucionalizar uma forma de interpretação onírica, nos assim chamados, templos de incubação (apud GALLBACH, 2003). Se os egípcios foram os primeiros a utilizar a interpretação dos sonhos, coube aos gregos aprimorar tais técnicas e inserí-las no diagnóstico e tratamento de doenças. Com base na visão mítica, acreditavam que a doença era a conseqüência da violação de um tabu ou de uma ofen-

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38| Sonhos: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia | Franciele Engelmann | 37 - 42 sa aos deuses. A cura, segundo RAMOS (1994),

gem única para um sujeito único” (GALLBA-

somático e o espiritual, buscando-se identificar

interioridade humana, tecida no entrelaçamento

consistia em restabelecer a relação entre o plano

no sintoma, o aspecto com o qual o indivíduo havia se desconectado e deveria voltar a se re-

conectar. As práticas curativas caracterizavamse como verdadeiros rituais, desenvolvidos nos

templos dedicados a Esculápio, o deus da medi-

CH, 2003, p.13). Esta mensagem se encontra na da história pessoal e coletiva.

Nos sonhos, o inconsciente se manifesta

mediante símbolos. Em sua obra O homem e seus símbolos, Jung define símbolo como:

cina. A atenção e o entendimento dos Sonhos,

um termo, um nome ou mesmo uma imagem que

zavam-se nesta época, como atividades, median-

sua conotações especiais além do seu significado

equilíbrio entre psique e corpo (RAMOS, 1994

vaga, desconhecida ou oculta... uma palavra ou

ao lado da música, meditação e dieta caracteri-

nos pode ser familiar na vida diária, embora pos-

te as quais era possível um restabelecimento do

evidente e convencional. Implica alguma coisa

e MEIER, 1999).

imagem é simbólica quando implica alguma coi-

Estudos e curiosidades acerca da vida oní-

rica estenderam-se ao longo da história, permeando culturas e presentificando-se em diferentes âmbitos do conhecimento e no trilhar dos diferentes caminhos de realização da alma.

O que são os sonhos? De onde provêm?

Expressarão eles algum significado, sentido para a vida do sonhador?

sa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem tem um aspecto “inconsciente” mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado. Por existirem inúmeras coisas fora do alcance da compreensão humana, é que frequentemente utilizamos termos simbólicos como representação de conceitos que não podemos definir ou compreender integralmente... Mas este uso consciente que fazemos de símbolos é apenas um aspecto de um fato psico-

II. O sonho como manifestação simbólica do inconsciente O sonho surge espontaneamente durante

o sono como fruto de um “processo involuntário

que ocorre num estado de consciência relaxado

e não focalizado” (GALLBACH, 2003, p. 17). Segundo Jung (1971), suas raízes estão no inconsciente. Conforme Gallbach (2003), o sonho

não apresenta um caráter de inconsciência total, uma vez que ocorre num estado limiar em que há um resíduo de consciência e percepção.

Para Jung (1971), o sonho é expressão

simbólica do inconsciente. Expressão esta que

pode se dar mediante ideias, sensações, emoções, imagens e situações que, ao serem desencadeadas no processo onírico, podem envolver de forma mais intensa, ou não, o sonhador.

O sonho traz um sentido ( JUNG, 1971)

para a vida do sonhador. Articula uma “mensaAno I | número 1 | 2012

lógico de grande importância: o homem também produz símbolos, inconsciente e espontaneamente, na forma de sonhos (1964, p. 20-21).

A manifestação do símbolo no sonho pode se

dar de diferentes formas: apresentar um caráter

claro, estranho, obscuro ao sonhador. Em suas mais variadas expressões, o símbolo articula um

significado, um sentido, os quais por sua vez po-

dem estar ocultos, sob determinadas imagens, pensamentos, emoções, à espera de vir a serem

descobertos, compreendidos e assimilados pelo sonhador.

Ao abordar o conceito de sentido nos

sonhos, Jung situa os mesmos no contexto de

finalidade, destacando que esta designa a “tensão psicológica imanente dirigida a um objetivo futuro” (1971, p. 181). Além de considerar o as-

pecto causal, Jung destaca a importância de se considerar o porquê do sonho. Ao falar sobre as

assimilações que sucessivamente acontecem em

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1| Neste escrito, Jung identifica o processo de individuação com o desenvolvimento da personalidade, donde os termos individuação e personalidade, serem utilizados como sinônimos.

relação ao sonho, ressalta que elas conduzem a

2| No contexto deste trabalho, o si-mesmo (Self) será abordado como centro ordenador da personalidade. Em Memórias, sonhos e reflexões, Jung o define como: “arquétipo central da ordem, da totalidade... é uma realidade ‘sobre-ordenada’ ao eu consciente. Abrange a psique consciente e a inconsciente, constituindo por esse fato uma personalidade mais ampla, que também somos... É também a meta da vida, pois é a expressão mais completa dessas combinações do destino que se chama indivíduo” (1963, p. 358).

todo médico deveria estar consciente do fato de

uma meta; para o além do aqui e agora da vida do sonhador, conduzem “à plena realização do homem inteiro, à individuação” (2008, p. 31). No

tocante à prática psicoterapêutica, assim escreve: que qualquer intervenção psicoterapêutica, e, em especial, a analítica, irrompe dentro de um processo e numa continuidade já orientados para um determinado fim, e vai desvendando, ora aqui, ora acolá, fases isoladas do mesmo, que à primeira vista podem até parecer contraditórias. Cada análise individual mostra apenas uma parte ou um aspecto do processo fundamental (Id., 2008, p. 31).

mesmo tempo germe (designação) e meta (unidade, totalidade) da Individuação.

Os sonhos constituem-se como um dos

espaços para o dar-se conta desta a ação do si-

mesmo na vida. Para Sanford (2007), originamse no centro da personalidade, constituindo-se o

elo de ligação entre a realidade menor do ego e a

maior do si-mesmo. Von Franz, assim se expressa: Os sonhos não nos protegem das vicissitudes, doenças e eventos dolorosos da existência. Mas eles nos fornecem uma linha mestra de como lidar com esses aspectos, como encontrar um sentido em nossa vida, como cumprir nosso próprio destino, como seguir nossa própria estrela, por assim dizer, a fim de realizar o potencial de vida que há em nós (1988, p. 25).

III. Sonhos, individuação e psicoterapia

Para esta realização, é preciso uma busca a

Em seu ensaio1 Da Formação da Personali-

dade, Jung (1998) salienta que, além dos aspectos de necessidade e decisão, há a designação que, perpassando o eu, o convoca a individuar-

fim de se compreender o significado, a mensa-

gem que o Self envia a cada noite, sob a forma de símbolos.

No tocante à prática psicoterapêutica, Jung

se. Esta é definida como: “um fator irracional

(2008, 1964) ressalta que os sonhos são a forma

da massa gregária e de seus caminhos desgas-

a consciência. Seus conteúdos podem exprimir

traçado pelo destino que impele a emancipar-se tados pelo uso” ( JUNG, 1998, p.181). A ideia vinculada no conceito de designação remete ao

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si-mesmo (Self ), que enquanto instância maior, promove a individuação. Aceitar a designação, a ação do si-mesmo na vida, implica em “fidelidade à sua própria lei” (Id. p. 179).

A noção de destino expressa no conceito

específica de o inconsciente se comunicar com fatos passados, desenfreadas fantasias, planos, antecipações, visões telepáticas ( JUNG, 1971); vincular-se a realidades problemáticas ou confli-

tantes do presente, bem como manifestar com-

ponentes da personalidade do sonhador (Id., 2008).

Considerando que os sonhos são mani-

de designação não pode ser tomada como pre-

festações do inconsciente, é importante lembrar

te na vida do indivíduo é uma possibilidade de

cientes que simbolicamente são personificados

determinação: o Self enquanto arquétipo laten-

vir a ser. Possibilidade esta que assume, segundo Fogel, o caráter de destino, numa perspectiva

de circularidade: no sentido de ser um envio de

si para si, uma “possibilidade de possibilidade” (1999, p. 152). A individuação, como designação, requer que a pessoa se empenhe na tarefa de dar-se conta do movimento do próprio Self

em sua vida, pois, na perspectiva de destino, enquanto movimento de circularidade, o Self é ao Ano I | número 1 | 2012

que Jung identificou quatro conteúdos inconsnos sonhos:sombra, anima, animus e self. Em

função da brevidade deste artigo, não se abordará aqui o trabalho com tais elementos; reme-

temos o leitor aos escritos de Marie-Louise Von Franz: O Caminho dos Sonhos (1988) e O Processo de Individuação – contido na obra de Jung: O Homem e seus Símbolos (1964), nos quais a au-

tora discorre ampla e profundamente sobre tais conteúdos.

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40| Sonhos: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia | Franciele Engelmann | 37 - 42 Ao se buscar compreender um sonho, é

to e o do objeto. A interpretação a nível do sujeito

1971). Faz-se necessário, ainda, conhecer as si-

personificações da personalidade do sonhador.

preciso a colaboração do sonhador ( JUNG, tuações concretas nas quais o indivíduo está inserido, pois o sonho, conforme Jung: “não é um acontecimento isolado, inteiramente dissociado

do cotidiano e do caráter do mesmo” (2008, p. 25).

identifica as diferentes imagens do sonho como Nesta perspectiva, a elaboração apresenta um caráter essencialmente subjetivo: “o sonhador

funciona, ao mesmo tempo, como cena, ator,

ponto, contra-regra, autor, público e crítico” (Id., p. 205). Já, em nível de objeto, a interpretação con-

Com base nas experiências dos primitivos,

cebe as diferentes figuras como representações

quenos sonhos. Estes últimos, também denomi-

inserido. Para orientar-se por uma interpretação

diários, derivam da dimensão subjetiva e pessoal,

se levar em conta as especificidades de cada caso,

sonhos, também chamados de significativos/

nante; se uma imagem é reproduzida por causa

relacionam-se a temas arquetípicos, mitológicos,

plo, uma relação de importância vital é o conte-

com base nas experiências que acompanharam

ficado subjetivo – ou quando, por exemplo, uma

Normalmente, ocorrem em momentos cruciais

às etapas do próprio processo psicoterapêutico,

da vida, ficando frequentemente gravados na

uma criança.

Jung (1971) distingue entre grandes sonhos e pe-

do mundo concreto, no qual o sonhador está

nados banais, articulam significados ordinários,

ou outra, Jung (1971) ressalta a necessidade de

vindo a ser esquecidos facilmente. Os grandes

buscando identificar qual é o aspecto predomi-

importantes, brotam do inconsciente coletivo,

de seu significado objetivo – quando, por exem-

cujo significado principal se encontra intrínseco,

údo e a causa do conflito – ou devido ao signi-

a humanidade nas diferentes épocas e culturas.

imagem se relaciona à dinâmica do indivíduo ou

da existência: na infância, puberdade e no meio

como no caso de se sonhar com o nascimento de

memória por toda a vida, vindo a configurar eta-

Para a psicologia analítica, os sonhos

pas do processo da individuação.

são manifestações do Self. Têm a função de

Jung (1971) destaca ainda que há uma

compensar atitudes unilaterais da consciência,

apresenta, normalmente, quatro fases, as quais se

psíquico ou ameaçar necessidades vitais do indi-

predominância de sonhos médios, cuja dinâmica

as quais podem estar em desacordo com o todo

assemelham à estrutura do drama. A exposição

víduo ( JUNG, 1964, 1971, 2004, 2008).

refere-se à situação inicial que esboça a temática ou problemática; contextualiza, no tempo e no

espaço, o cenário no qual os personagens atuam. A segunda fase, a do desenvolvimento da ação,

apresenta o desenrolar da problemática, mani-

festando a complicação e a tensão da situação, sem saber no que dela vai resultar. A culminação ou peripécia evidencia o auge do desenvolvimen-

to dramático em sua dinâmica oposta; nesta, algo decisivo acontece ou a situação se altera inteiramente. A quarta fase, a lise, mostra a si-

tuação final, apresenta a solução e a conclusão esboçada pelo sonho.

No que concerne à interpretação oníri-

ca, Jung (1971) estabelece dois níveis: o do sujeiAno I | número 1 | 2012

Para Jung (2008), a teoria das compen-

sações é a regra básica do comportamento psí-

quico: a insuficiência num aspecto cria excesso

em outro aspecto. Cada sonho é, então, uma ten-

tativa da própria natureza psíquica de centrar o indivíduo. Justifica-se, desta forma, a importância de se considerar o contexto de vida e os as-

pectos da personalidade do sonhador no ato de compreensão de um sonho. A autorregulação do equilíbrio psíquico, realizada mediante a compensação do sonho, vincula-se em uma perspec-

tiva mais profunda e mais ampla à individuação ( JUNG, 2008). Decorre daí a importância que

o autor atribui para a análise e interpretação de um sonho no contexto de uma série de sonhos.

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Em sua obra A prática da psicoterapia, ao

autor, a palavra consciência deriva dos termos la-

o importante papel da consciência na compre-

ber”, vindo a significar “saber com” “outro”, sen-

falar da individuação, Jung (2004) discorre sobre

ensão dos símbolos compensatórios produzidos em sonho pelo inconsciente: “Um sonho não compreendido não passa de um simples episó-

dio, mas a sua compreensão faz dele uma vivência” (Id., p. 117).

do que este outro pode ser uma pessoa, alguma

parte de si ou o próprio Deus. Para Jaffe (2002), a consciência integra cabeça e coração, sendo sua

base formada pelo conhecimento animado pelo coração. Isso converge com o que Jung escreve

Com base no fenômeno da compen-

acerca do processo psicoterapêutico: “O paciente

podem favorecer grandemente o processo de

assim fizermos, estaremos nos dirigindo apenas

gem analítica junguiana, exprime, segundo Gu-

dade. Assim, atingiremos o seu coração. Isso o

alemão a ele correspondente: heilen – cura total.

p. 18). Registrar, pintar, refletir afetivamente so-

totalidade, do si-mesmo. Donde temos um dos

a consciência participar da individuação.

sação, JUNG (1971) reconhece que os sonhos

não deve ser instruído acerca de uma verdade. Se

cura. Convém destacar que cura, numa aborda-

à sua cabeça. Ele tem que evoluir para esta ver-

ggenbühl-Craig (1983), o significado do termo

toca mais fundo e age mais intensamente” (2008,

A cura configura-se, assim, como uma busca da

bre as imagens oníricas são formas concretas de

propósitos da psicoterapia: curar, vir, a ser in-

Considerações finais

teiro, total, consciente da ação do Self na vida

( JUNG, 2004).

Segundo Jaffe (2002), a consciência de-

sempenha um componente essencial no individuar-se: o próprio eu se esforça para integrar

as forças desconhecidas surgidas durante o caminho e contribui para a ativação da cura, para

a totalidade psíquica se instalar. A consciência exerce, pois, uma influência estimuladora sobre o inconsciente, uma vez que se esforça para com-

preender as mensagens que este lhe apresenta. Assim, escreve Sanford: “... O potencial total de

3| Segundo CHEVALIER e GHEERBRANT, tememos é uma palavra grega, que tem a mesma origem do radical indu-europeu tem: cortar, delimitar, dividir, e “significava o local reservado aos deuses,o recinto sagrado que cercava um santuário e que era um lugar intocável”((2008, p. 874).

tinos “con”, que expressa “com”, e “sciere”, “sa-

Diferentes visões e abordagens teóricas

surgiram, no decorrer dos tempos, acerca dos sonhos. Para alguns, são imagens desprovidas de sentido; para outros, resíduos de memória

ativados; para esotéricos e adivinhos, indicam

caminhos e apontam soluções para diferentes

problemas; para místicos e crentes religiosos, exprimem a vontade divina; para a psicologia analítica, configuram-se como possibilidades do vir a ser humano.

Enquanto mensagens do Self, da totalida-

cura contido em nossos sonhos não se atualiza-

de psíquica maior, os sonhos personificam dife-

mento e desenvolvimento da consciência” (2007,

bem como elementos essenciais com os quais

sonhos constitui, segundo o autor, uma possibi-

ticulado no sonho – trama de relações, cenário,

inconsciente, bem como participar do fluxo de

uma composição mais ampla, revela vivências,

rá a não ser que seja acompanhado pelo cresci-

rentes aspectos da vida e da busca do indivíduo,

p. 49). O hábito de registrar e refletir sobre os

este pode ter se desconectado. Todo drama ar-

lidade de a consciência trazer à luz aspectos do

protagonistas, plateia... – fala do indivíduo em

energia que dele emana. O próprio Jung (2008)

afetos e atitudes indispensáveis para a vivência

orientava seus pacientes a efetuarem tais procedimentos.

da individuação.

Se os antigos rituais de cura ofereciam um

Em sua conceituação mais simples, a

espaço simbólico para restaurar ofensas, integrar

cesso permanente e contínuo de tornar-se um

ta-se, atualmente, que a psicoterapia constitui-se

individuação, conforme Jaffe, consiste no proindivíduo consciente (2002, p. 27). Segundo o Ano I | número 1 | 2012

conteúdos e religar o humano ao divino, consta-

como um novo temenos3, onde se pode integrar

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42| Sonhos: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia | Franciele Engelmann | 37 - 42 diferentes aspectos da vida e estabelecer uma re-

lação viva com o Self. Com base na revisão de

literatura desenvolvida neste trabalho, identificou-se que as mensagens simbólicas enviadas

pelo Self à noite, configuram-se como ferramentas significativas na busca de sentido e na desco-

berta dos caminhos que conduzem à realização do vir a ser da totalidade humana.

JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.

JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 1971. Obras Completas: Vol. VIII/2.

JUNG, C. G. O desenvolvimento da persona-

lidade. Petrópolis: Vozes, 1998. Obras Completas: Vol. XVII.

JUNG, C. G. A prática da psicoterapia. Pe-

trópolis: Vozes, 2004. Obras Completas: Vol.

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CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicio-

nário de símbolos. 22ª ed. Rio de Janeiro: José

JUNG, C. G. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. Petrópolis: Vozes, 2008. Obras

Olympio, 2008.

Completas: Vol. XVI/2.

FOGEL, G. Da solidão perfeita. Petrópolis:

MEIER, C. A. Sonho e ritual de cura: incuba-

Vozes, 1999.

ção antiga e psicoterapia moderna. São Paulo:

GALLBACH, M. R. Aprendendo com os so-

Paulus, 1999.

GUGGENBÜHL-CRAIG. O arquétipo do

ensão simbólica da doença. São Paulo: Sum-

guiana - Revista da Sociedade Brasileira de Psi-

SANFORD, J. A. Os sonhos e a cura da alma.

JAFFE. L. W. A alma celebra: preparação para

VON FRANZ. O caminho dos sonhos. São

nhos. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2003.

RAMOS, D. G. Psique e corpo, uma compre-

inválido e os limites da cura, in: Revista Jun-

mus, 1994.

cologia Analítica, n. 1, 1983.

4ª ed. São Paulo: Paulus, 2007.

uma nova religião. São Paulo: Paulus, 2002.

Paulo: Cultrix, 1988.

JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1963.

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A função compensatória dos sonhos Francisco Purcotes Júnior

Ano I | número 1 | 2012

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44| A função compensatória dos sonhos | Francisco Purcotes Júnior | 44- 51

A função compensatória dos sonhos Francisco Purcotes Júnior*

Resumo Este texto tem a finalidade de apresentar, explicar e descrever uma das funções principais dos sonhos, segundo a proposta teórica do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. Esta função é chamada compensatória, ou seja, restabelece o equilíbrio psíquico do sujeito. Pelo fato de cada vez mais as pessoas apresentarem problemas psicológicos, dificuldades e com a necessidade de lidarem com as mudanças da vida, pode-se utilizar os sonhos como um instrumento terapêutico, pois são de grande utilidade no que se refere ao desenvolvimento e autoconhecimento. Para compreender como isso ocorre, o texto propõe uma básica explanação sobre a psique, bem como, da estrutura do aparelho psíquico, por meio de uma revisão na literatura já existente. Palavras-chave: sonhos, função compensatória, psique, Jung.

Abstract This paper aims to present, explain and describe one of the main functions of dreams according to the theoretical proposal of Swiss psychiatrist Carl Gustav Jung. This function is called compensatory, it restores the psychic balance of the subject. Because more and more people experiencing psychological problems, difficulties and need to deal with life’s changes, you can use dreams as a therapeutic tool, because they are very useful when it comes to development and self-knowledge. To understand how this happens, the text offers a basic explanation of the psyche and the structure of the psychic apparatus through a review of existing literature. Keywords: dreams, compensation function, psyche, Jung.

Introdução

* Francisco Purcotes Júnior, psicólogo, especialista em psicologia analítica e religião oriental e ocidental. purcotes@hotmail.com

De acordo com Jung, nascemos inconscientes e com o passar do tempo, por meio das experiências que vamos tendo na infância, nosso ambiente e a educação que recebemos, a consciência vai se criando. Entretanto, esse inconsciente não desaparece, ele se manifesta na vida dos indivíduos de diversas maneiras, uma delas é por meio dos sonhos. Os sonhos são estudados há séculos pelas mais diversas pessoas, cada uma com um objetivo diferente. Com eles, algumas pessoas querem prever o futuro, outras procuram por mensagens secretas, e há outras linhas de pensamento, ainda, Ano I | número 1 | 2012

que buscam fatos do passado que possam estar agindo na vida do indivíduo, enquanto religiosos afirmam que os sonhos são recados de Deus. A psicologia analítica, por meio de toda uma base teórica, oriunda de experiências de consultório do psiquiatra Carl Jung, descreve diversos métodos de trabalho com sonhos e como as imagens trazidas pelos pacientes são importantes para o processo de individuação do ser. Os sonhos, em geral, possuem algumas funções na vida da pessoa, sendo uma delas chamada de compensatória. Compreender como ocorre essa compensação auxilia o paciente a descobrir novos potenciais em sua vida, a enten-

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A função compensatória dos sonhos | Francisco Purcotes Júnior | Franciele Engelmann | 44 - 42

der fatos, pensamentos e sentimentos, e a mudar de atitude em relação à sua vida atual.

A justificativa para se estudar o assunto

provém da constante necessidade do profissional que trabalha com a psique humana, seja ele tera-

peuta, religioso ou conselheiro, de não ignorar o

consciente. Os antigos hindus, egípcios e he-

breus, bem antes de Freud e Jung, já tinham consciência da existência de aspectos desconhe-

cidos e estranhos nas pessoas, que a consciência não era capaz de compreender nem controlar.

Grinberg também ressalta que quando

sonho em seu trabalho, mas agregar o conteúdo

deixamos de dar atenção conscientemente a al-

vista que o sonho e seu material fazem parte do

nem deixam de ter influência sobre nossas vidas,

dos sonhos ao processo terapêutico, tendo em

sujeito e são essenciais para o desenvolvimento de todo o processo que deverá ocorrer durante o tratamento.

guma ideia ou emoção, essas não desaparecem mas surgem no inconsciente por meio de imagens e sonhos.

Chamados de “visitantes da noite” por Jo-

Não com o objetivo de cura, como enten-

hnson e Ruhl (2010), desde a antiguidade, os

autodesenvolvimento ou do que Jung chama, na

gregos antigos acreditavam que os sonhos pode-

dido no modelo médico, mas com o objetivo de

psicologia, de processo de individuação, os so-

nhos são materiais essenciais para o tratamento

psicológico, visto trazerem informações importantíssimas sobre o andamento e o ritmo do desenvolvimento psíquico do sujeito.

Por meio de uma revisão de literatura, o

texto procura abordar o que pensam os autores Junguianos sobre o tema dos sonhos, quais são as suas definições, como utilizar o sonho em uma terapia, e como se dá a compensação efe-

tivada pelos sonhos. Busca-se resposta ainda ao que seria essa função, e como se pode dela lançar

mão para avançar no caminho de tornar-se simesmo.

sonhos são objetos de interesse das pessoas. Os riam nos orientar sobre o futuro ou nos oferecer

informações do outro mundo, de tal modo que nos poderiam ajudar a curar doenças.

Johnson e Ruhl (2010, p. 150) definem

os sonhos como “uma das criações da natureza, uma expressão espontânea, manifestação da força da vida que flui em e através de nós”. Por

diversos motivos, é importante prestar atenção aos sonhos; os complexos causam “nós” em nossas vidas que os sonhos ajudam a desatar. Os

sonhos nos “oferecem uma fonte abundante de criatividade, renovação, força e sabedoria. São um portal direto para que aquilo que está madu-

ro possa se manifestar na consciência” ( JOHNSON; RUHL, 2010, p. 150).

Desenvolvimento Segundo Hall (1983, p. 14), ao falar sobre

a divisão estrutural da psique humana de acor-

do com a psicologia analítica criada por Carl Gustav Jung, a psique pode ser representada da seguinte maneira: a percepção consciente da

pessoa, chamada de consciência pessoal; o inconsciente pessoal, ou seja, o que dela é exclusi-

Segundo Von Franz (2007, p. 14), Jung te-

ria descoberto que enquanto as pessoas dormem, por meio de seus sonhos, despertam para aquilo que são realmente. Desta forma, “a coisa mais

saudável que o ser humano pode fazer é prestar atenção aos seus sonhos”.

Bosnak (2006, p. 50) diz que os sonhos se

vo, mas não é consciente; a psique objetiva, ou o

reúnem ao redor de temas específicos que se ma-

universal na humanidade e o mundo exterior da

vés de um processo contínuo de transformação,

inconsciente coletivo, que contém uma estrutura consciência coletiva, a cultura.

Grinberg (2003, p. 80) afirma que nasceu

junto com a humanidade a experiência do inAno I | número 1 | 2012

nifestam no tempo. “Suas imagens passam atraàs vezes comum a uma série de imagens que se apresentam como sonhos”.

Sobre a linguagem dos sonhos, Whitmont

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46| A função compensatória dos sonhos | Francisco Purcotes Júnior | 44- 51 (1969) explica:

necessariamente em oposição, mas se comple-

O sonho fala na linguagem simbólica arcaica da psique objetiva. Ele fala a sério e exprime, em termos simbólicos, o lado desconhecido da situação de vida da maneira que é apreendida e espelhada pelo inconsciente. Os sonhos, portanto, não são sintomáticos, mas simbólicos. Eles são simbólicos, visto que a psique objetiva não conceitualiza; ela não fala inglês, francês, alemão ou chinês; ela fala imagens, que são formas aborígenes de percepção e expressão (1969, p. 35)

O sonho não funciona como estamos acostumados a ver o mundo enquanto acordados. No sonho não existe tempo nem espaço, passado e presente se misturam, e, junto com esses conteúdos, há resquícios de atividades que ocorreram durante o dia. Há imagens estranhas e contraditórias, uma combinação fantástica de ideias (GRINBERG, 2003, p. 112). Os sonhos podem ser didaticamente divididos em quatro fases: na primeira, aparecem as cenas onde se passa a ação, onde são conhecidos os personagens e as pessoas envolvidas; na segunda fase, desenvolve-se o enredo do sonho, as complicações, a história; a fase três é chamada de clímax, e é onde geralmente acontece algo decisivo ou que muda o enredo; a última fase apresenta o resultado do sonho, a solução, a situação final (GRINBERG, 2003, p. 112). Cavalcanti confirma que “os sonhos [...] comportam-se como compensações da situação da consciência em determinado momento” (apud JUNG, 2007, p. 35). Grinberg reitera que o sonho é um “regulador do equilíbrio psíquico. Pode-se afirmar que seu significado principal é estabelecer uma relação entre a vida consciente e inconsciente” (2003, p. 116). Sobre o termo “compensatório”, utilizado por Jung para explicar a função deste tipo de sonho, ele próprio diz: “Uso de propósito a expressão ‘compensatória’ e não a palavra ‘oposta’, porque consciente e inconsciente não se acham Ano I | número 1 | 2012

mentam mutuamente, para formar uma totalidade: o si-mesmo” (1996, p. 53).

Segundo Grinberg, a palavra compensar

vem do latim compensare, e significa “igualar, balancear e comparar diferentes dados e pontos de

vista, a fim de produzir um ajuste ou retificação” (2003, p. 118).

Por outro lado, de acordo com Whitmont:

“O sonho não censura ou distorce”. E, diferen-

ciando a visão freudiana sobre a abordagem dos sonhos da visão junguiana, continua: “Os apa-

rentes fenômenos de distorção, de condensação

e de substituição realmente ocorrem nos sonhos, mas não servem necessariamente ao propósito

de disfarçar um desejo inaceitável” (1969, p. 34). Whitmont (1969) exprime a ideia de que

o sonho fala em forma simbólica sobre situações

desconhecidas da vida. Completa sinalizando que, diferentemente de Freud, seu professor e

mestre, Jung não vê o conteúdo manifesto no sonho na forma de imagens, como se ali se ocultasse algum conteúdo latente.

Segundo Hall, “na psicologia junguiana, o

sonho é considerado um processo psíquico na-

tural, regulador, análogo aos mecanismos com-

pensatórios do funcionamento corporal” (1983, p. 30).

Santos afirma que os sonhos compensató-

rios são aqueles que corrigem um autoconceito pobre que temos a nosso respeito e se referem ou

a situações que acreditamos não termos tido um bom desempenho ou a pessoas com quem con-

vivemos. Desta forma, estes sonhos poderão dis-

torcer pessoas que admiramos, nos dando uma imagem diminuída desta pessoa (2009, p. 30).

De acordo com Von Franz, “o sonho corri-

ge nossas atitudes” (2007, p. 50).

Grinberg confirma que o “objetivo é a

compensação da unilateralidade, dos erros, des-

vios e atalhos da atitude consciente. O inconsciente encarrega-se de registrar e fazer aflorar o

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que a consciência deixou passar despercebido” (2003, p. 118).

Hall diz que o sonho pode compensar es-

tas distorções temporárias na estrutura do ego,

cem nos sonhos, ou também por situações ignoradas no dia-a-dia, afetos ou críticas que não nos permitimos (1996, p. 53).

Por sua vez, ao ser questionada sobre a fun-

direcionando o sujeito para entender melhor

ção dos sonhos, Santos diz que o sonho mostra à

cita uma pessoa que está furiosa com um amigo,

dade de ver. Infelizmente a linguagem do sonho

suas atitudes e ações. Como exemplo, o autor por reprimir esta fúria, sonha que violentamente se volta contra este amigo. É importante para o

sonhador, identificar qual complexo foi ativado nesta situação (1983, p. 31).

pessoa coisas que ela não está tendo a possibilinão é sempre entendida pelo sonhador, de forma

que muita coisa acaba sendo perdida, o que não gera aprendizado (1976, p. 139).

Von Franz afirma que o sonho nunca diz

Para Hall, essa seria uma primeira forma

o que já sabemos. “Ele indica algo desconheci-

mes Hall continua seu texto dissertando então

as costas. Você pode mostrá-las para o médico,

de compensação inconsciente para o sonho. Ja-

sobre uma segunda forma de compensação, verificada no processo onírico. Diz ele:

Um segundo e mais profundo modo de compensação é aquele em que o sonho, como autorepresentação da psique, pode colocar uma estrutura do ego em funcionamento face a face com a necessidade de uma adaptação mais rigorosa ao processo de individuação. Isso em geral ocorre quando o indivíduo se desvia do caminho pessoalmente correto e verdadeiro. A meta da individuação nunca é simplesmente um ajustamento às condições existentes; por mais adequado que tal ajustamento pareça, uma tarefa adicional está sempre à espera. [...] Um exemplo desse segundo tipo de compensação é o sonho de uma pessoa que estava muito bem adaptada socialmente, nas áreas da vida comunitária, familiar e de trabalho. Ela sonhou que uma voz impressionante dizia: “Não estás levando tua verdadeira vida!” A força dessa declaração, que a despertou em sobressalto, durou por muitos anos e influenciou um movimento na direção de horizontes que não estavam claros na época do sonho

do, um ponto cego. É como tentar olhar para

que examinará como estão, mas não pode vê-las” (2007, p. 51).

Grinberg fala sobre o princípio da equi-

valência na teoria Junguiana, onde sempre que uma quantidade de energia é gerada em um dos

polos da psique, automaticamente surge no ou-

tro polo uma quantidade de energia equivalente, com o objetivo de regular e neutralizar a energia psíquica. Este princípio pode ser utilizado para analisar os polos conscientes e inconscientes da psique. Afirma Grinberg: “Se imaginarmos a psique como um sistema fechado, podemos afirmar que a energia psíquica está em fluxo cons-

tante de um sistema da personalidade para o outro, do consciente para o inconsciente e viceversa” (2003, p. 92).

Deste modo, Grinberg (2003, p. 93), a

respeito da ligação sobre a energia psíquica e os

sonhos, confirma que o inconsciente tem a ca-

pacidade de criar espontaneamente coisas novas, ativar uma certa quantidade de energia e forças sua entrada na consciência. Podemos sonhar

com coisa que consideramos estranhas, e às ve-

(1983, p. 31).

Arespeito da função de compensação, Jung

afirma que os processos inconscientes de com-

zes, com a solução de algum problema.

Grinberg faz uma analogia da psique com

pensação do ego possuem todos os elementos

um velho baú, aonde podemos esconder coisas

soal, estes processos são constituídos por razões

brar. Todavia, faz uma ressalva sobre esses con-

para a autorregulação da psique. No nível pesque a consciência desconhece, mas que apareAno I | número 1 | 2012

que não recordamos ou que não queremos lem-

teúdos. Segundo ele, os conteúdos que foram

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48| A função compensatória dos sonhos | Francisco Purcotes Júnior | 44- 51 reprimidos voltarão inexoravelmente e tentarão voltar à consciência na forma de sintoma ou de sonho. Sobre os sintomas e os sonhos que podem ser manifestos pela pessoa quando reprime algum conteúdo, Grinberg diz: Antes de chegar a desenvolver sintomas, a pessoa costuma ter sonhos ou receber outras “dicas” a respeito do conteúdo reprimido. Na realidade, quando algum conteúdo desaparece da consciência, não quer dizer que ele deixou de existir, mas, sim, que perdeu sua energia consciente. A energia psíquica que desaparece gera um produto inconsciente que apresenta traços em comum com o conteúdo desaparecido. Esse produto inconsciente pode surgir em sonho ou fantasia como imagem simbólica (2003, p. 95).

Para Hall e Nordby “Quando refletimos sobre os nossos sonhos, estamos refletindo sobre a nossa natureza básica” (2005, p. 105). Sobre o equilíbrio que a função compensatória procura trazer, Jung afirma que os sonhos têm como função geral tentar restabelecer nossa balança psicológica, produzindo um material nos sonhos que reconstitui sutilmente o equilíbrio psíquico total (2008, p. 56). Um exemplo interessante sobre a análise de sonhos e a compensação que o inconsciente proporciona para o indivíduo pode ser é visto em Santos (1976), quando a autora relata o sonho de uma paciente que foi educada a ver a raiva como algo negativo, e reprimindo, assim, qualquer tipo de manifestação de raiva durante a vida e tornando-se passiva diante de muitas ocasiões em que precisaria se impor. Uma pessoa adulta, cuja vida se caracterizava por passividade imensa, entrara em sério quadro reacional depressivo. Contou-nos um sonho: Via-se na posição horizontal e sendo puxada, por cada perna e por cada braço, numa direção, por várias pessoas. Sua falta de reação, decorrente de falta de raiva, punha-a como joguete, completamente inerte, frente aos outros, fazendo-a sentir-se puxada vio-

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lentamente para todos os lados, como uma coisa. A partir da compreensão do sonho, passou a ter uma atitude, a saber, passou a ter raiva contra isso ou aquilo e a conseguir se conduzir, em vez de se deixar puxar servilmente (SANTOS, 1976, p. 15).

Outro exemplo clínico de análise de sonho compensatório é visto em Jung: [...] uma jovem que amava apaixonadamente a mãe, sempre sonhava com ela de modo desfavorável. Esta aparecia em seus sonhos como bruxa, como um fantasma ou como uma perseguidora. A mãe a mimara exageradamente e a cegara com sua ternura; a filha não podia, pois, reconhecer conscientemente a influência nociva da mãe sobre ela. Seu inconsciente, no entanto, exerceu uma crítica nitidamente compensadora em relação à mãe (1996, p. 55)

Von Franz (2007) afirma que quando existe uma atitude unilateral da consciência, materialista demais, espiritual ou racional, ou seja, algo dirigido demais por um único impulso, os sonhos irão compensar essa situação, trazendo nas imagens o que está pesando do outro lado. Sobre a mensagem do sonho: “É como se o sonho dissesse: – Você está desequilibrado em relação à sua totalidade. Essa é a sabedoria essencial dos sonhos: preservar um equilíbrio entre todos os nossos opostos psíquicos e estabelecer uma espécie de via intermediária” (VON FRANZ, 2007, p. 230). “Por meio do sonho, o inconsciente estaria alertando: – Olhe melhor! Um lado necessita do outro. O lado bom contém a semente do mal, e o lado ruim contém a semente do bem” (GRINBERG, 2003, p. 118). Em sua vasta obra, onde mais de 80.000 sonhos foram analisados durante sua prática clínica, Jung obteve material suficiente para elaborar sua teoria. Ele reitera que o sonho compensa as deficiências de personalidade, além de prevenir as pessoas dos perigos dos seus rumos atuais, e, caso estes avisos sejam rejeitados e ignorados, podem ocorrer acidentes reais ( JUNG, 2008, p.

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A função compensatória dos sonhos | Francisco Purcotes Júnior | Franciele Engelmann | 44 - 42

56).

pecto inconsciente de ocorrências psíquicas cons-

Segundo Von Franz, “80% do que nos persegue em sonhos é, na verdade, algum aspecto valioso da nossa personalidade que deveria ser integrado” (2007, p. 93). Para Jung, esses avisos ou mensagens do inconsciente são de real importância. Conscientemente, no nosso dia-a-dia, nos expomos a diversos tipos de influência. As pessoas podem nos estimular ou deprimir, eventos de nossa vida pessoal e social desviam nossa atenção. Estes desvios podem nos levar a caminhos diferentes daquele que leva à nossa individuação, podemos ou não perceber os efeitos dessas influências: O fato é que nossa consciência é perturbada e convive, quase sem defesa, com esses incidentes (2008, p. 56). Entretanto, a respeito do trabalho do terapeuta com os sonhos dos pacientes, Jung fala que não é seguro querer interpretar um sonho sem observar os detalhes do contexto, e com todo o cuidado possível. Diz Jung: “Nunca aplique uma teoria, mas pergunte sempre ao paciente como ele se sente em relação às imagens que produz” (1972, p. 145). Jung define os sonhos como “a reação natural do sistema de autorregulação psíquica” (1972, p. 145). Sobre os conteúdos que podem vir à tona nos sonhos, Jung afirma que há alguns acontecimentos que não tomamos consciência, e que ficam abaixo do seu limiar. Estes acontecimentos foram absorvidos de forma subliminar pelo sistema consciente. Como ignoramos esses processos, visto que estes conteúdos poderiam de alguma forma gerar emoção, eles retornam em forma de imagens em um sonho. Geralmente, o aspecto inconsciente de um acontecimento nos é revelado por meio de sonhos, onde se manifesta não como um pensamento racional, mas como uma imagem simbólica. Do ponto de vista histórico, foi o estudo dos sonhos que permitiu, inicialmente, aos psicólogos investigar o as-

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cientes. (2008, p. 22)

Confirma Jung (2008, p. 58) que muitas das crises que passamos em nossas vidas têm uma longa história inconsciente. É deveras É deveras importante para a compreensão da teoria Junguiana sobre os sonhos, deixar claro como funciona a linguagem simbólica e qual a importância dos símbolos para a humanidade. Jung (2008) explica que, pelo fato da compreensão humana ser tão limitada e existirem coisas fora do alcance do campo consciente, precisamos utilizar símbolos, formas de expressão que tornem possível a compreensão das coisas que não conseguimos definir. O símbolo demonstra o estado da psique atual, ele funciona como uma “ponte” entre o consciente e o inconsciente. Em toda a sua obra, Jung explicou a necessidade e a importância do processo de análise dos sonhos, de atenção para e percepção das imagens internas do indivíduo. Atualmente encontramos diversos autores e profissionais que demonstram interesse em trabalhar com análise de sonhos. Santos (2009, p. 30) acrescenta que, a partir do momento em que iniciamos um trabalho com sonhos e começamos a anotá-los, eles vão seguindo uma sequência na organização da vida psíquica. Mesmo para as pessoas que não têm conhecimento sobre os símbolos dos sonhos, é vantajoso que se os anote, pois cada vez mais o inconsciente vai entrando em contato com essas imagens, e os sonhos vão se tornando mais claros. A relação entre o terapeuta e o paciente também é amplamente abordada nas obras de Jung, onde são enfatizados todos os pontos relevantes que um profissional da mente humana precisa adotar e se inteirar para que haja efetividade no processo terapêutico. A terapia não é apenas um processo do paciente, mas uma relação entre duas psiques. Tanto paciente, quanto

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50| A função compensatória dos sonhos | Francisco Purcotes Júnior | 44- 51 terapeuta devem procurar a análise para tratar

aprovar. Anotava as fantasias que frequentemente

portância do autocuidado que deve ter o tera-

resistências. Enquanto não se compreende sua

suas questões pessoais. Jung alerta sobre a im-

me pareciam insensatas e que provocavam minhas

peuta em seu cotidiano clínico:

significação, elas parecem uma mistura infernal de

O terapeuta deve perceber a todo instante o modo pelo qual reage em confronto com o doente. Não se reage só com o consciente; é necessário perguntar sempre: como meu inconsciente vive esta situação? É preciso, pois, tentar compreender os próprios sonhos, prestar uma atenção minuciosa em si mesmo e observar-se tanto quanto ao doente, senão o tratamento poderá fracassar (2006, p.160).

Desta forma, compreende-se como deve

ser mútuo o processo de terapia e a própria aná-

elementos solenes e ridículos. Foi a duras penas que perseverei nessa prova através da qual o destino me desafiara. E só depois dos maiores esforços consegui enfim sair do labirinto (2006, p. 205).

Desta forma, o processo de análise das

próprias fantasias, por mais difícil que seja, deve

ser encarado como natural no desenvolvimen-

to do ser e a compensação do inconsciente por

meio dos sonhos deve ser vista como normal e positiva para a psique.

lise dos sonhos. Ignorar os conteúdos dos sonhos deixa as pessoas a mercê do inconsciente.

O processo de análise Junguiana, que tem

como um dos instrumentos o trabalho com sonhos, deve ser feito da forma mais verdadeira

possível, a fim de que o paciente consiga entrar em contato com as imagens encontradas no sonho. Esse diálogo entre a imagem e o indivíduo

é extremamente necessário para que o paciente possa se desenvolver. Ele entra em contato com

todas as imagens que pertencem a ele mesmo e que de alguma maneira influenciam sua psique.

Por colocar o paciente em contato com

elementos inconscientes, o trabalho com sonhos

pode gerar certa resistência. Na sua autobiografia, Memórias, sonhos e reflexões, Jung expõe como

Conclusão De acordo com o trabalho apresentado e

com a bibliografia consultada, percebe-se que o trabalho com sonhos e a análise dos mesmos são

de suma importância para o desenvolvimento psíquico do sujeito, já que são instrumentos psíquicos de manifestação inconsciente.

O inconsciente pode se “comunicar” com o

ego do indivíduo e apresentar diversas funções. Uma delas é a função compensatória, ou seja, o

inconsciente compensa as atitudes conscientes, de forma a proporcionar a homeostase para o sujeito.

Os exemplos apresentados deixam um

entrou em contato com seu inconsciente, fazen-

alerta para a relevância do problema onírico,

de analisar seus próprios sonhos e de enfrentar

nos sonhos, levar estas imagens para a terapia e

do um relato de como foi para ele a experiência seus medos:

Desde o início, concebera o confronto com o inconsciente como uma experiência científica efetuada sobre mim mesmo e em cujo resultado eu estava vitalmente interessado. Hoje, entretanto, poderia acrescentar: tratava-se também de uma experiência tentada comigo mesmo. Uma das maiores dificuldades que tive de superar foi suportar meus sentimentos negativos. Abandonava-me livremente às emoções que, entretanto, não podia

Ano I | número 1 | 2012

deve-se ficar atento às imagens que aparecem trabalhá-las.

O contato com o inconsciente, como afir-

mou Jung, é muito difícil. É mister que cada pes-

soa envolvida na terapia, seja paciente ou analista, enfrente os conteúdos de sua psique, pois

este enfrentamento trás para o sujeito os pontos

obscuros de sua vida, coisas entendidas como

ruins ou más, o que pode deixá-lo extremamente resistente. Entretanto, o único caminho para

a individuação é o contato com tais conteúdos.

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A função compensatória dos sonhos | Francisco Purcotes Júnior | Franciele Engelmann | 44 - 42

O sonho de função compensatória trás possi-

bilidades de reconhecimento das falhas que se cometem conscientemente, indicando também

Introdução à psicologia junguiana. 8ª. ed. São Paulo: Cultrix, 2005.

caminhos que podem ser seguidos e atitudes que

HALL, James. Jung e a interpretação dos sonhos. São Paulo: Cultrix, 1983.

em potencial. O inconsciente reconhece essa fal-

JOHNSON, Robert A; RUHL, Jerry M. Viver a vida não vivida. Petrópolis: Vozes, 2010.

oníricas.

JUNG, Carl Gustav. Fundamentos de psicologia analítica. Rio de Janeiro: Vozes, 1972.

o sujeito não está desenvolvendo, mas que tem ta e direciona o indivíduo por meio das imagens

Como profissional da mente humana e

reconhecendo toda a subjetividade do ser como parte essencial do processo terapêutico, o tera-

peuta considera o sonho como conteúdo do su-

jeito e as imagens que aparecem não podem ser ignoradas. Essas imagens pertencem ao paciente e dizem algo sobre ele.

JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2008. JUNG, Carl Gustav. Memórias sonhos e reflexões. 13ª. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

Uma análise adequada e que traga o pa-

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. 11ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1996.

rapia, na vida, e em todo o percurso que a pessoa

SANTOS, Cacilda Cuba dos. Individuação junguiana. São Paulo: Sarvier, 1976.

Referências

CAVALCANTI, Tito R. de A. Jung. São Paulo:

SANTOS, Osmar Francisco dos. Revista holística de qualidade de vida. n. 93, p. 30, dez. 2009. Disponível em: http://www.terceiromilenionline.com.br/. Acesso em: 23 de Junho de 2010.

GRINBERG, Luiz Paulo. Jung o homem cria-

VON FRANZ, Marie Louise. O caminho dos sonhos. São Paulo: Cultrix, 2007.

HALL, Calvin Springer; NORDBY, Vernon J.

WHITMONT, Edward C. A busca do símbolo. São Paulo: Cultrix, 1969.

ciente ao caminho correto é fundamental na teainda irá percorrer.

BOSNAK, Robert. Breve curso sobre sonhos. 4ª. ed. São Paulo: Paulus, 2006.

Publifolha, 2007. (Col. Folha explica) tivo. 2ª. ed. São Paulo: FTD, 2003.

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CHAMADA PARA PUBLICAÇÃO E NORMAS PARA COLABORAÇÃO Já estamos recebendo e selecionando para a próxima edição. Pesquisadores(as) e professores(as) podem contribuir com a Coniunctio. A publicação ou não do material enviado será definida pela Comissão Editorial a partir dos critérios propostos pelo Conselho Editorial, integrado por professores(as) e especialistas de várias Universidades e Centros de Estudos. As propostas para publicação devem ser originais, não tendo sido publicadas em qualquer outro veículo do país. Envie seu artigo, de acordo com as Normas Reguladoras - ABNT, para conunctio@ichthysinstituto.com.br. A cada edição, a Comissão Editorial fará contato com os autores dos artigos aprovados.

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