N.º 1
Sábado, 27 de Maio de 2017
Número Especial do 157.º Aniversário de Manuel Teixeira Gomes 500 exemplares
ALMALGARVIA Jornal Republicano Democrático de Portimão
EDITORIAL No ano de 1912, Portimão fervilha de animação nas ruas da baixa. Sociedades recreativas, como o Grémio Familiar, bandas filarmónicas (Filarmónica Artística Portimonense e a Sociedade Recreio Musical), um animatógrafo, representações dramáticas, no nosso Teatro S. Camilo, zarzuelas, concertos, cafés e grande sortido de comércio. Multiplicam-se as escolas particulares de instrução primária onde se ensina Latim, Francês e Música. Fotógrafos e artistas registam e animam o frenesim desta vila que, quiçá, um dia será cidade. O rio Arade liganos ao mundo. Por ele chegam e partem, semanalmente, vapores de mercadorias e passageiros com destino à Andaluzia, a Lisboa, ao Havre, a Londres, a Antuérpia e a Amesterdão. É certo que temos uma ponte rodoviária donde podemos desfrutar do luar de agosto... e por onde circulam as carroças. A nossa elite local, constituída por homens de negócios ligados ao comércio, à navegação e à indústria conserveira, tem sido culturalmente muito interventiva, particularmente no domínio da imprensa. Desde que surgiu O Município, o nosso primeiro jornal, há 39 anos, nasceram 8 novos semanários locais, O Correio do Meio-dia, A Liberdade, O Jornal dos Artistas, O Algarve, A Independência, A Ordem, A Verdade, Alma Algarvia. E de outros, futuros, enquanto durar a república, já se fala em outros títulos, O Arauto, O Portimonense, Algarbh, A Cidade Nova, Jornal de Portimão, o Comércio de Portimão. Não quererá isto dizer que a nossa terra é um aquário de eruditos? Embora cada um destes jornais tenha uma vida efémera, a sua existência não será reveladora da importância de uma elite culta defensora dos interesses do Algarve e empenhada numa ação informativa, educativa e cívica? Manuel Teixeira Gomes é, hoje ,a figura mais ilustre da nossa terra, não só pela sua singularidade literária como pelo protagonismo na vida política da nova República portuguesa. No ano passado foi nomeado pelo Dr. Teófilo Braga, chefe do Governo Provisório, Ministro Plenipotenciário em Londres. Deixou a família e os seus negócios aqui e iniciou uma carreira política que há-de vir a culminar com a mais alta magistratura da Nação, disso estamos certos. Os seus amigos e admiradores no meio jornalístico conhecem-lhe as virtudes e a dedicação à República. O nosso amigo Urbano Rodrigues, futuro diretor do Mundo, disso se encarregará. Disse-nos uma cigana, amiga do Sr. Teixeira Gomes, que Norberto Lopes, no Diário de Lisboa, manterá viva a sua memória. O nosso amigo e correligionário Julião Quintinha, diretor da Alma Algarvia, usará as palavras certas para sublinhar a elevação moral e a estética da sua prosa quando se celebrar o centenário do nascimento do nosso ilustre conterrâneo. Homem culto, cosmopolita e progressista, estará sempre no centro dos debates
Ano I Direcção e Administração João Ventura, Carlos Osório, João Munhá Propriedade do ICIA Distribuição Gratuita Redacção Maria da Graça Ventura, João Ventura, Alberto Carlos Colaboradores: Guilherme de Oliveira Martins, Nuno Júdice, Carlos Albino, Luís Vicente, Paulo Monteiro Paginação: Carlos Osório Composição e Impressão: Gráfica Comercial - Loulé
Homenagem a Teixeira Gomes Os associados dos ICIA tomaram a iniciativa de se reunirem em fraterno convívio num jantar que, esta noite, se efectuou na Taberna de Portimão para prestar homenagem ao nosso muito querido amigo e correligionário Manuel Teixeira Gomes. Os organizadores desta homenagem aproveitaram a curta estada do seu conterrâneo na sua terra natal, onde veio passar o seu aniversário e recuperar forças depois de meses de árduo trabalho em Londres em prol da dignificação da nossa nova pátria republicana perante as autoridades inglesas e o seu exigente público para lhe prestarem preito de admiração. Foi um jantar íntimo e singular - onde se deram factos extraordinários, mas verosímeis -, e que a pedido do homenageado não foi noticiado no nosso jornal, tendo, mesmo assim, comparecido mais de 40 associados e recebidas dezenas de telegramas, alguns dos quais publicados neste jornal. E sabedores que os associados do ICIA lhe iam prestar o seu grande preito de admiração, logo se associaram à homenagem, a ela comparecendo, não apenas homens e mulheres de prestígio nas letras e no jornalismo da região, do país e da política local que já haviam participado na homenagem de 1912, como Julião Quintinha, Marques da Luz (Marcos Algarve), Ernesto Cabrita, Fonseca Dias, como, também, outros que tendo conhecido ou convivido com Manuel Teixeira Gomes em épocas distintas, como Urbano Rodrigues, Viana de Carvalho, Norberto Lopes, Maria Veleda, Irene Lisboa e M. e Mme. Berg, quiseram, também, prestar-lhe preito de admiração. Mais inaudito, ainda, foi a presença de algumas personagens da obra de Manuel Teixeira Gomes, como Maria Freire, João dos Castelos, uma misteriosa princesa russa e uma cigana espanhola. Decorreu imponentíssima a manifestação de simpatia que o ICIA lhe preparou, revestindo o banquete dado em sua honra um brilho raro e eloquentíssimo que impressionou todos que a ele assistiram, tendo sido abrilhantado com o virtuosismo dos jovens executantes Fabiana Vicente (contrabaixo) e Mário Pacheco (guitarra portuguesa). Perto das 19h30, ainda sob o luminoso sol algarvio, começaram a chegar os convivas, cabendo-me a honra de dar as boas vindas a Manuel Teixeira Gomes e aos seus amigos e correligionários que, logo ali, “foram convenientemente alastrados com suculentas rodas de enchidos” de Monchique e refrescados com um aromático vinho rosé do Algarve, enquanto iam escutando numa grafonola a voz do grande barítono portimonense Alfredo Mascarenhas. De entre os presentes, adiantou-se
Reprodução de um retrato inédito do ilustre homenageado feito pelo pintor messinense José Inácio de Mendonça (1915-1985).
uma criatura de lenda, figura de Brunehilde, que todos julgaram evocada dos “Nibelungen” e que, depois, ao jantar, haveria de se revelar a Manuel Teixeira Gomes como a misteriosa mulher, talvez uma princesa russa que um dia ele haveria de conhecer a bordo do paquete russo Tchikachoff, em viagem entre Esmirna e Constantinopla. Também não passou desapercebida uma cigana, airosa, grácil, flexível que, para surpresa geral, e sem mais preâmbulos, tomou a mão de Teixeira Gomes e leu-lhe a sina. O ambiente teatral que se ia vivendo na rua, proporcionou, também, o aparecimento Maria Freire. Após este momento de são convívio, todos passaram “au restaurant”, brilhantemente disposto com um belo serviço de loiça e cristais e quarenta e quatro talheres de prata. Na qualidade de anfitrião, coube-me fazer o elogio das elevadas qualidades do ilustríssimo diplomata, destacando a sua rara capacidade que tão exigente prova de valor tem dado em Londres como ministro plenipotenciário de Portugal, os seus dotes literários que o elevam já à categoria de um dos nossos mais cintilantes e vernáculos prosadores, com direito a “foros de escritor cheio de observação, graça, conceituoso e de fundo”, a sua passagem breve pela polí-
tica que o elevará a presidir aos destinos da República, a sua vocação de viajante e o seu exílio voluntário, solitário numa terra estrangeira, sem nada querer possuir no ocaso da sua vida a não ser um pequeno quarto num hotel em Bougie, Argélia, onde viveria a experiência mais luminosa da sua vida. Levantou-se em seguida a Presidente da Câmara de Portimão, Isilda Varges Gomes, que enalteceu a acção cívica e empresarial de José Libânio Gomes, pai do aniversariante, que promoveu os frutos secos do Algarve nas exposições universais de Antuérpia, Londres e Paris, onde foi medalhado. Lembrou, também, que José Libânio Gomes criou a Sociedade Exportadora de Frutos Secos que foi decisiva para experiência cosmopolita do jovem Teixeira Gomes no norte da Europa. Evocou, finalmente, a acção política do pai de Teixeira Gomes, enquanto vereador e vice-presidente da Câmara de Portimão ainda no tempo da monarquia, continuada pelo seu filho no mais alto cargo da nação e, também, localmente, por seu neto António Pacheco Teixeira Gomes que foi Presidente da edilidade portimonense nos anos 1934 e 1935, sentindose honrada por actualmente desempenhar o cargo que, no passado, teve tão ilustres figuras. Entre os presentes encontravam-se ainda dois ex-administradores do concelho,
ALMALGARVIA políticos do futuro, seja a questão dos refugiados gregos e arménios em Constantinopla, seja os mandatos da Liga das Nações no Médio-Oriente ou o sufragismo. A notícia recente da vinda do nosso ilustre amigo, o Sr. Manuel Teixeira Gomes, a Portimão, motivou-nos a organizar um grandioso jantar em sua honra, num restaurant da vila, já cidade, para o qual convidámos amigos e entidades oficias locais e regionais. À semelhança de um dos jornais locais mais prestigiados, a Alma Algarvia, expressão do elevado nível dos letrados algarvios e de outros intelectuais portugueses, nós também decidimos prestar um tributo ao Sr. Manuel Teixeira Gomes, criando um cenário ficcional que funde o passado e o presente, numa sobreposição deliberadamente anacrónica de figuras e personagens. Como se Clio tivesse adormecido por um instante, enquanto os dedos, por inércia, continuavam a sua tessitura, permitindo que se enleassem dois fios e se empolasse um nó temporal – confundindo-se, então, as datas de 12 de janeiro de 1912 e de 27 de maio de 2017 e o tempo de permeio. Entre as figuras de alto gabarito do passado, recuperámos Julião Quintinha, Marcos Algarve, Ernesto Cabrita, Urbano Rodrigues, Maria Veleda, Norberto Lopes, Viana de Carvalho, Fonseca Dias e Irene Lisboa. Teixeira Gomes navega num tempo fluido, confrontado com as suas memórias e a sua autoficção. Do limbo das suas novelas emergem uma princesa russa, uma cigana e Maria Freire. Do futuro que a sua literatura anuncia sem nomear, chegam Nuno Júdice, Guilherme de Oliveira Martins, Carlos Albino, Luís Vicente e Paulo Filipe Monteiro, evocando a sua sensualidade e a sua experiência londrina. Para que esta sentida homenagem conste nos anais da história, confundindo os historiadores da petite histoire, produzimos uma anacronia final – a edição de um número especial de uma Almalgarvia, como epílogo da celebração do 157.º aniversário de Manuel Teixeira Gomes, que contém todos os detalhes do évenement no restaurant de Portimão. Não se poderá contestar a veracidade dos factos, a não ser que as 44 testemunhas tenham um lapso de memória que omita da sua biografia a participação real no público ato. Talvez o próprio homenageado, num tempo futuro, venha a efabular este facto para maior desconcerto de todos os presentes. Maria da Graça Ventura
Fonseca Dias e Marcos Algarve que foram saudados pela actual Presidente. Alexandra Gonçalves, Directora Regional da Cultura, interveio evocando o papel do homenageado no apoio à Seara Nova, importante editora para cuja sustentabilidade ele contribuiu. Irene Lisboa, pedagoga e escritora, surpreendeu Teixeira Gomes com o exemplar do livro Solidão, editado pela Seara Nova, em 1939, que havia enviado para Bougie. Maria Veleda agradeceu o apoio de Manuel Teixeira Gomes à Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, criada em 1909 pela médica Adelaide Cabete e pela escritora Ana de Castro Osório, organização que ela própria integraria depois e da qual seria dirigente. Urbano Rodrigues enalteceu o elevado sentido ético e moral do homenageado, augurando-lhe um futuro grandioso como alto magistrado da república. Norberto Lopes revelou as entrevistas que lhe fez, evidenciando o seu incómodo enquanto “Senhor da Cana Verde” numa geringonça governativa disfuncional. Viana de Carvalho, secretário do homenageado, levantou-se e relembrou a perturbação do Presidente perante a pressão constante dos militares para dissolver o parlamento e a sua constante preocupação com os trabalhadores e os oprimidos, dizendo em tom jocoso que, às vezes, “fazia lembrar um bolchevique”. Emocionado com tantos encómios, Teixeira Gomes sentiu um ligeiro desfalecimento, sendo de imediato assistido pelo médico Ernesto Cabrita que estava sentado ao seu lado. Marcos Algarve que nos tem deliciado com histórias da nossa terra, prontamente animou os convivas e devolveu a alegria a Teixeira Gomes contando mais uma aventura do Teófilo na Praia da Rocha. Por fim, Teixeira Gomes, visivelmente comovido, agradeceu, primeiro com um longo olhar, que abrangeu todos os presentes, e depois com as seguintes palavras: “É para mim uma honra estar presente perante vós, gente honrada e ilustre desta terra algarvia que trago sempre no meu coração. Ansiava há muito por esta oportunidade de rever o sol radiante do Algarve – privilégio inexistente em Inglaterra – e as “praias de areia finíssima e doirada, fechadas e semeadas de rochedos multicolores” que tantas recordações me trouxeram da minha infância e juventude. Na verdade, não via a hora de regressar à minha terra natal e confraternizar com velhos amigos e conhecidos à volta de uma mesa, disfrutando das delícias gastronómicas da nossa cozinha. É, pois, tempo de festejar depois da vitória diplomática alcançada lá fora. Brindemos, pois então! Estas generosas palavras foram cordialmente acolhidas pelos ouvintes que lhe dispensaram uma calorosa e prolongada ovação. Depois, num jeito simples e amigo, e mais descontraído, pediu que lhe trouxessem um cesto de fruta e disse: “Uma coisa tenho eu feito, agora, impunemente, nestes dias que levo em descanso em Portimão e que me é vedada em Londres: comer fruta verde. E como ela é variada, abundante e saborosa, aqui no Algarve! Nestes últimos dias, tenho-me refastelado a cada almoço, numa pirâmide colossal de cerejas e albricoques, de que eu havia perdido completamente o gosto, já resignado a limitar a apreciação dessas frutas aos quadros de ”natureza morta” que
CARTA DISTANTE DE UM ALGARVIO DIPLOMATA Guilherme de Oliveira Martins (com Manuel Teixeira Gomes) “Eu ia correndo o litoral algarvio, que é um ininterrompido jardim, muito povoado de gente e de arvoredo; as amendoeiras, agora, na realidade do Sol, atraíam de novo as minhas imagens, que nelas pousavam de envolta com as abelhas. Havia-as tão fechadas em flores que perdiam a sua forma de árvores que plagiavam formas fabulosas, ou ajoelhando, como anjos vestidos de arminho, ou tremendo dentro de imensos véus de noivas, ou arremetendo, de pé, à moda dos ursos brancos, ou correndo sobre os esgalhos curvos, - despropositados aranhiços de flores rosadas…”. Ah! Como este meu Algarve me faz falta. Nos dias de nevoeiro londrino não podia deixar de lembrar esses tempos gloriosos, em que o azul-cobalto do mar chamava intensamente. Amendoeiras, alfarrobeiras, figueiras, videiras – tudo nos chamava afetuosamente. E neste momento em que escrevo, fantasma que sou, nesta estranha Europa de liberdade, em que creio, ponho em contacto este sul e este sol da Finisterra algarvia, com as nuvens negras que se acastelam nas ilhas britânicas, que considero como uma terra de racionalidade, mas que nunca me faria esquecer o litoral do meu querido Algarve. E nesta espécie de limbo em que me encontro, com os olhos extasiados pelo belo Mediterrâneo (sim, porque o Algarve é a sentinela do Mar interior com a pele tisnada pelo magnífico sol, astro-rei) que partilho a perplexidade de ver o povo britânico longe dos motivos que me levaram a admirá-lo. É certo que cada povo é livre de seguir o seu próprio caminho e de pensar pela sua própria cabeça, mas permito-me, olhando o futuro, que me habituei a interrogar em permanência, avançar
com uma despretensiosa profecia sobre o divórcio que se prepara com a Europa… Como se consumará (se se consumar) a separação, quando a História aproxima e separa os europeus, numa lógica de complementaridade, força e vontade? Três razões invoco para descrer deste «Brexit». Em primeiro lugar, não podemos esquecer como a velha Albion participou ativamente na vitória dos aliados em 1945 – pode dizer-se que a frente atlântica é a continuidade do Mediterrâneo, uma não existe sem o outro. Em segundo lugar, o pragmatismo britânico funciona como uma espécie de sal da terra para os europeus – e por isso faz tanta falta. E em terceiro, temos a vitalidade interna de um Reino Unido, que agora pode tornar-se polo nefasto do salve-se quem puder. Como teremos paz na Irlanda sem fronteiras abertas? Como respeitaremos o desejo da Escócia de querer ser ela-mesma, apesar de a condenarem a seguir Londres sem sentido critico? Eu sei que a perversidade da velha Albion também é conhecida. Os portugueses, não esquecemos o Ultimatum de 1890, mas como embaixador considerei sempre que a inteligência deveria superar as emoções. Assim procurei agir nas minhas funções em Londres com distância serena – e hoje reafirmo que a Europa ficará mais pobre sem a participação de John Bull, sobretudo quando a sobranceria do dito senhor perdeu razão de ser, já que o império vitoriano se desvaneceu… Mas, neste observatório inefável em que me encontro e vendo as coisas à distância, posso exprimir as minhas mais sérias dúvidas sobre a concretização dessa saída, que será tudo menos airosa…
ALMALGARVIA observo nos museus londrinos. Sei que no Algarve é tempo desta fruta deliciosa, por isso pedi que me trouxessem este cesto de albricoques e cerejas para que não se limitem à condição de espectadores da minha felicidade. Desejo-lhes e a todos e aos vossos, a felicidade e a tranquilidade compatíveis com os duríssimos tempos que vamos atravessando, e em nada correspondem ao que se esperava depois da guerra fria. A fraternidade das gentes e das Nações vem ainda longe, e enquanto se não pegam outra vez, arreganham os dentes com redobrada fereza, embora à surdina…” Durante as muitas horas que durou este pantagruélico jantar, bem regado com Vinhos do Algarve e rematado com café e “uns copinhos da famosa medronheira serrana” de Monchique a que todos prestaram as honras devidas, momentos houve de enternecedora sinceridade e espontaneidade na homenagem prestada a um dos maiores diplomatas e escritores portugueses e, também, a um homem de direito, bom, generoso, idealista dos mais puros e de uma tão impecável e nobre linha vertical que não constitui só orgulho para ele e para seus familiares, mas também para todos os portimonenses, para os seus amigos e para os admiradores. Foi com a alegria do dever cumprido que, como descrito, se prestou homenagem ao talento e ao carácter, dois atributos que exornam a alta personalidade de Manuel Teixeira Gomes, presente no nosso coração em todos os momentos. João Ventura (como Julião Quintinha)
UMA GLÓRIA ALGARVIA Estreou-se a semana passada no Casino da Praia da Rocha o grande artista-cantor algarvio Alfredo Mascarenhas, notável barítono, lírico dos mais distintos que em terras estrangeiras tem honrado o nome português. Alfredo Mascarenhas é natural de Portimão, onde conta grande número de parentes e amigos que com alvoraçado entusiasmo o aplaudiram, prestando a justa e comovente homenagem ao artista patrício, que tão novo se afirma uma das maiores glórias algarvias e o primeiro cantor lírico do país. Finda a tournée pelo Algarve regressará a Milão onde o aguarda um vantajoso contrato.
Cinematógrafo Provisório Promete revestir do maior brilho a festa que amanhã se realiza no cinematógrafo portimonense em favor dos empregados do sr. António do Carmo Provisório. O reportório das fitas é completíssimo, destacando-se entre ele a sensacional fita “O Lapidário” cedida por especial fineza pela empresa. “O Lapidário” é uma notável fita artistica, de uma alta emoção, baseada num soberbo romance de Alexandre Dumas. É uma noite que promete estar animada e a que não devem faltar os amadores de bom gosto, além de que o produto reverte a favor de rapazes que gozam de justa e merecida simpatia.
TELEGRAMAS DO FUTURO A NINFETA Amigo Manuel, Na última missiva que lhe enviei, por intermédio do nosso comum amigo João Ventura, dei-lhe conta do episódio da ninfeta que me saltou ao caminho em Saragoça. A coisa tomou forma que nem lhe conto! A dita não era natural de Espanha, tinha fugido da Grécia antiga, vim depois a saber; e agora tenho em mãos uma demanda sobre a qual estou em dúvida no que respeita à forma de o fazer. Apesar de o meu amigo estar longe de 2017, que me diz se for assim: “Depois, conduziu-me à boca dita primeira de seu corpo – aberta, desnudada, limpa, incrivelmente acre e tão igualmente doce!... aquela donde brotam palavras antigas, indizíveis, que só em sonho (ou “no coração do homem contemporâneo”, como cria o Renan), se alcançam. Foi nela que descobri outra das funções da língua, nas flutuações acesas dela como se não houvesse na terra no mar ou no ar sopro ou vaga ou aroma próprio nos lugares do corpo que percorre; antes um enclave de divindade, onde sua inalcançável demanda é o Céu do mundo nesse instante vivido como Arte. E depois dessa, uma outra - qual eu tinha ouvido dizer que é mistério das mulheres gregas. Nessa outra viajei numa para mim perturbante combustão analítica que me chegou por via das dúvidas de Xantipa, a sábia esposa de Sócrates que, apesar, não sabia como para ele se colocar e indagava a sua mãe como o fazer. E a velha a esclareceu...” Responda-me para a posta restante o que pensa do isto assim dito. Cordialmente, Luís Vicente
O AUTO-REPATRIADO VOLUNTÁRIO DA GERINGONÇA Sombra, 27 de maio de 2061 Caros leitores Da entrevista que, em 1939, fiz a Manuel Teixeira Gomes, como sabem, resultou um livro que publiquei em 1942 - “O Exilado do Bougie”. Eu era um novato. Aí, na Terra, Teixeira Gomes tinha mais 40 anos do que eu. E o Julião Quintinha, apenas 14 anos mais velho, e que continua a ter o pendor para organizar jantares literários e a teimar com o seu jornal Almalgarvia, mesmo aqui na Sombra onde todos temos a mesma idade e estamos on-line, lembrou-se agora de me lançar o desafio de voltar a entrevistar o homem que enquanto esteve no Palácio de Belém como Presidente da República se sentia como ‘o Senhor da Cana Verde’. Aceitei e mantive um longo encontro com Manuel Teixeira Gomes que, para minha surpresa, estava minuciosamente inteirado sobre como Portugal estava em 2017, em 2020, em 2035, por afora. “Sabe? Se no meu tempo de Belém, tivesse havido uma geringonça, eu não teria renunciado e muito menos partido voluntariamente para o exílio. Tinha ficado” - garantiu-me a dado passo. Perguntei-lhe então se não tinha receio da impopularidade e das intrigas próprias do produto interno bruto português. Soltou uma enorme gargalhada e foi dizendo: “Com a geringonça de 2017 tudo é diferente da intrigalhada de 1925. Senão veja - ali a um canto, está o Bernardino Machado amuado e sem pio, sem a noção até de que estamos já em 2061. E olhe ali para o outro canto onde estão os militares. Nenhum deles quer ouvir falar de golpes de Estado, fartos de tais experiências e dos resultados trágicos, como eu sempre avisei antes de me demitir. E quanto à impopularidade, isso também era jogada palaciana de 1925. Olhe! Como
sabe, nunca gostei de estar amarrado ao protocolo, fugia sempre disso. Sim, pode escrever aí que eu, em 2017, movimentar-me-ia como peixe na água, tiraria selfies fosse onde fosse e com quem fosse, iria aos locais dos sem-abrigo, falaria diretamente com quem protesta, jamais passaria um ano sem mergulhar no mar do Algarve pondo de lado aparatos egocêntricos de segurança, e tudo o mais que não fizesse de mim um “Senhor da Cana Verde”, mas o que sempre o tentei ser e não consegui no meu tempo - um Presidente dos Afectos”. Foi longo o diálogo com Manuel Teixeira Gomes. E dizendo-lhe ser minha intenção, agora em 2061, publicar excertos da conversa no jornal Almalgarvia do Julião Quintinha, remetendo a publicação integral da entrevista para livro com o título “O Exilado do Bougie - II volume”, ele deu um estalido com os dedos: “Não! Esse título não! Ponha como título ‘O Auto-repatriado da Geringonça’. Aqui na Sombra, vemos bem ao perto”. E eu, Norberto Lopes assim farei. Flagrante saudação: No final do jantar, Julião Quintinha exclamou em alta voz -“Viva o Agosto Azul!” Carlos Albino (como Norberto Lopes)
ZEUS Caríssimo Teixeira Gomes, O espírito de uma pessoa sobrevive, e o espírito de uma grande pessoa de espírito sobrenada, sobrevoa, sobressalta, não sobreleva, sobretraz, não sobressai, sobreentra nas nossas vidas. Assim é que, passadas mais de sete décadas desde que partiu de Bougie para parte incerta, deixou vivo em muitos portugueses o que decidiu deixar. Não os seus títulos de poder, que sacudiu, mas a sua acesa obra de escritor e os seus gestos de coragem e liberdade, que davam um filme. E deram mesmo, para comoção de muitos, em Portugal e fora dele. Um abraço incerto e sobretudo grato, Paulo Filipe Monteiro
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ALMALGARVIA e vales, incitando os campónios à defesa e às represálias, qual outro Pedro o Eremita preparando nova cruzada contra os infiéis. Um dia, de manhã muito cedo, entrou-me em casa todo açodado, e ainda com a cara lambuzada do sumo das “tetas de Nosso Senhor” (que certamente fora chupar na vinha do vizinho), para me perguntar se os ingleses seriam capazes de bombardear a costa, caso dessem “um bom castigo” na marujama, pois o regedor da Mexilhoeira, que tinha toda a autoridade de homem viajado, por ter andado na pesca do bacalhau, assegurava que, se por acaso matassem um inglês, não ficava pedra sobre pedra em dez léguas em redor. - João - disse-lhe eu -, o que tens tu com tudo isso, tu não és proprietário... - Não sou proprietário!... não sou, mas é
como se fosse. Então não somos todos portugueses?... Eu sempre queria ver o que nos acontecia, se nós fôssemos à Inglaterra, roubar os figos e as uvas que eles lá têm... Ná; já que ninguém faz caso temos que lhes dar o castigo pelas nossas mãos... Eu cá não acredito que eles atirem para terra; isso era uma guerra! Então de que serve a canhoneira que está metida no rio?... e as duas peças da fortaleza de Santa Catarina?... Eu cá não acredito; vossemecê o que diz?... - Não atiram, não; disso podes tu estar certo; mas o que tencionam vocês fazer? - Bom, bom..., o que eu queria era ter a certeza de que eles não atiravam, e vossemecê não é capaz de nos enganar. Amanhã logo lhe digo o que a gente tenciona fazer... (continua no próximo n.º de ALMALGARVIA )
Esquadra inglesa fundeada na Baía de Lagos. Cliché de António Crisógono dos Santos.
Um conto inédito de Manuel Teixeira Gomes O nosso ilustre conterrâneo Manuel Teixeira Gomes ofereceu-nos para publicação um inédito conto com o título “Uma Cena Grega” e que com a maior honra começaremos neste número a publicar em pequenos folhetins. “Íamos em meados de Agosto, e tinha chegado a Lagos uma grande esquadra inglesa -das últimas que ali vieram no tempo da monarquia. Os marujos, como de costume, começaram logo a fazer surtidas em terra, pelos arredores da cidade, atirando-se às figueiras e às vinhas, como se estivessem em país conquistado. Aos clamores dos habitantes e autoridades de Lagos, o comando da esquadra acudiu com algumas medidas de polícia, que atalharam o mal, mas somente nas imediações da cidade, porque os marinheiros, a pretexto de exercícios de remos, passeios e banhos, puseram-se a correr a costa para leste, e tinham encontrado a terra de promissão justamente nas
vizinhanças do meu monte, pelos areais e declives barrentos que vão da Ponta de João de Ourém aos Três Irmãos de Alvor (grupo de leixões que se levantam do mar, agudos, altos e parelhos) onde se criam talvez os figos mais gostosos, e as mais sumarentas e perfumadas uvas do mundo inteiro. A propriedade, ali, está imensamente dividida, e pertence quase toda à gente de Alvor, dos Montes, da Mexilhoeira Grande, que vive distante e a traz mal guardada, de modo que os ingleses entravam nela como em sua casa, e ingaram ao sítio, vindo à colheita todos os dias sem falta. Sem a menor cerimónia, e munidos de cestos, iam eles fazendo a vindima nas vinhas que invadiam... É fácil imaginar o sobressalto, indignação e fúria que o caso provocou nos habitantes daquelas pequenas povoações, que logo representaram, em dolorosos termos, às autoridades de Lagos, mas sem resultado. Nessas diligências ninguém decerto andava mais aceso do que o João dos Castelos. Vestiu-se com o fato do casamento, o que ainda não fizera desde essa data memorável, para acompanhar a representação a Lagos, e noite e dia palmilhava montes
UM POEMA DE NUNO JÚDICE TEIXEIRA GOMES: O FIM DE UM FLIRT Uma tarde, em hampton court, quis provar o sabor do seu beijo. Ela recusava-se: nada mais para além de uma amizade «amorosa»; e ele não protestava. Mas a tarde punha-se mais suave, e a luz que a envolvia dava-lhe uma aura de deusa, como na altura se dizia. E encontrou a solução: «Quero conhecer o sabor da boca de uma deusa.» E ela perguntou-lhe para quê, se ele a podia ter quando quisesse; mas tê-la era logo perdê-la. Ele ficou a pensar, olhando para o céu que se carregava de nuvens; mas quando tomou a decisão de a ter, já ela desaparecera, ao longe, nessa esquina de onde ninguém volta.