ICS Estudos & Relatorios Nº1 2013

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Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa - Laboratório Associado

ICS e ESTUDOS RELATÓRIOS 1 EXERCÍCIOS DE ESCRITA ETNOGRÁFICA LISBOA NUMA TARDE DE JULHO EM 2012 JOÃO DE PINA-CABRAL (coordenação) Universidade de Kent, Inglaterra Instituto de Ciências Sociais, UL, Portugal

SUSANA DURÃO (coordenação) Universidade de Campinas, Brasil Instituto de Ciências Sociais, UL, Portugal

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ICS ESTUDOS e RELATÓRIOS

COMISSÃO EDITORIAL Sofia Aboim (coordenação) Andrés Malamud Dulce Freire João Mourato João Vasconcelos Rui Costa Lopes

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Exercícios de escrita etnográfica Lisboa numa tarde de julho em 2012

Autores

João de Pina-Cabral, Susana Durão, Ambra Formenti, Carla Almeida, Dina Maria Rosário dos Santos, Frank-Ulrich Seiler, Gustavo Monzeli, Irene Rodrigues, Joana Sousa, Joana Vasconcelos, Mara Leite, Márcio Sá, Murilo Rodrigues Guimarães, Raquel Carvalheira, Alexandra Rosa, Sonia Miceli, Susana Boletas, Tiago Marques.


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Introdução A escrita etnográfica é uma das formas de contar o mundo. Se bem que, como parte das ciências sociais, o seu formato seja marcado predominantemente por considerações de natureza metodológica, a escrita etnográfica depende de uma escolha de estilos narrativos, isto é, ela implica um gesto criativo. O 1.º Workshop de Escrita Etnográfica nasceu com o intuito de aprofundar o nosso conhecimento desse processo. Quisemos explorar o lado criativo da escrita etnográfica através da constituição de um espaço colectivo de reflexão e partilha de experiências. O presente Relatório é o resultado material dessa experiência, que se materializou no Curso de Verão que decorreu no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa entre 23 e 27 de Julho de 2012. 1 Num dos módulos do curso, resolvemos criar um modelo de exercício de recolha etnográfica sumária. Este seguiu uma opção central: colocar em foco a observação situacional. Isto é, não nos centrámos nas metodologias de obtenção verbal de informação (histórias de vida, de família, entrevistas dirigidas, etc.), mas sim nos métodos de observação participante não interventiva. Assim, o conceito central seria a ‘situação social’ ou o ‘evento social’. Propunha-se um encontro com o mundo do quotidiano enquanto um campo estruturado por socialidades. O método obrigou-nos, assim, a olhar para o contexto escolhido com acuidade analítica – todos de caderno em punho, produzindo exercícios de objetivação, isto é, fixando na descrição o que é fluído na experiência. Cada pessoa focou um local que lhe fosse interessante, mantendo-se disponível para ser informada pelo local. Preferimos evitar os exercícios de autoanálise. As experiências práticas de observação decorreram em alguns pontos e lugares de uma cidade – Lisboa. Num primeiro momento foram criadas equipas de dois. Escolheram-se os locais a estudar, podendo cada equipa visitar e narrar sequencialmente dois lugares. O exercício de observação passou-se nas poucas horas de uma tarde, a tarde quente de 25 de Julho. Enquanto um membro da equipa observava e relata va, o outro tirava notas do que lhe ia sendo descrito. No dia seguinte, já na sala do curso, no ICS-UL, 1

Agradecemos à Maria Goretti Matias todo o apoio prestado.

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aquele que observava pegava nas notas do parceiro e escrevia um breve texto etnográfico. Os textos foram lidos e comentados em público, durante várias sessões de trabalho. É preciso dizer que esta forma de organização do exercício seguiu a inspiração de modelos de escrita criativa em cursos de poesia. Do nosso curso resultaram vinte relatos, pois a maioria dos vinte e dois participantes aceitou partilhar a sua experiência em cada um dos trechos que integram este relatório. A experimentação é parte integrante do processo de criação. Nesse sentido, a escrita da etnografia não é muito diferente de fazer compota: é preciso achar o ‘ponto’ certo. A ‘evidência’ em etnografia envolve processos que resistem à rigidez metodológica, esquivando-se às fases fixas e perfeitamente segmentadas – da observação à coleta, da escrita descritiva à interpretação, do contraste à classificação e, por fim, à análise – embora as consubstancie. Para esta forma de trabalho/escrita continuará sempre a não existir um manual técnico. Parece mais útil a ideia de explorar, em diversas modalidades, o exercício de escrita criativa. Nesse sentido, o que vão ler é uma dessas possíveis modalidades; são exercícios práticos de observação e descrição de situações em Lisboa, na tarde de 25 de Julho de 2012.

01. Da burocracia ao espaço público Instituto de Registos e Notariado (IRN) Irene Rodrigues (com João de Pina-Cabral) Esta repartição do IRN, na Avenida Fontes Pereira de Melo, fornece vários tipos de serviço: registo de cidadão, feitura do cartão de cidadão e do passaporte, registo e realização de casamentos, divórcios, registo predial, registo automóvel, registo de empresa, habilitação de herdeiros. Estes momentos em que o cidadão surge perante o Estado, de algum modo são coincidentes com momentos de transição ou de crise nas suas vidas: o nascimento, o casamento, o divórcio, a morte, a aquisição de propriedade (habitação e automóvel) e o tornar-se empresário (que pode também marcar uma transição profissional importante). A observação decorreu na sala dos passaportes e dos cartões de cidadão, que fica no Piso -1, onde também se situam as salas de casamentos. 3


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Aquela sala é um lugar onde os cidadãos se tornam cidadãos, o que significa que se apresentam perante o Estado para assegurarem direitos e deveres, sobretudo direitos de propriedade (num primeiro momento) e deveres como contribuintes. Trata-se de um espaço de atendimento ao público com dez guichets, sendo que apenas seis estavam em funcionamento. Como havia poucos utentes, várias funcionárias (havia apenas um funcionário do sexo masculino) estavam desocupadas do atendimento público. Talvez por isso, já quase no final da observação, a nossa presença foi notada e fomos interpelados por uma funcionária sobre se precisávamos de alguma coisa. Também nós estávamos sob observação. Dada a pouca afluência de utentes, a nossa atenção ficou concentrada numa única situação que se destacou das restantes. Os utentes que durante esse período passaram pelo espaço foram várias mulheres isoladas, um casal que usou dois postos de atendimento em separado, uma mãe com uma filha de cerca de oito anos, e uma família com um bebé. Foi sobre esta família de três gerações pais, avós e o bebé que acabei por concentrar a minha observação, que irei usar para pensar o modo como a partir do nascimento uma pessoa surge perante o Estado precisamente para se tornar cidadão, e como o Estado formata, regista e legaliza esse laço cidadão–Estado através de uma série de procedimentos aos quais é preciso atender, mas que surgem como desadequados em relação à situação. Neste caso, um bebé de cerca de um mês é apresentado pelos pais perante o Estado numa repartição pública para se tornar cidadão. O dispositivo de divulgação de informação na sala garante que apenas é preciso escolher o nome, indicar a naturalidade da criança e identificar os pais (o registo é gratuito). No local, o procedimento de materialização da identidade de um cidadão (a recolha dos dados) faz-se através de um aparelho digital que concentra informações como o nome, a filiação e a naturalidade, assim como o registo digital de uma imagem do bebé cidadão para relacionar a informação com a pessoa física. No caso dos bebés não se regista a impressão digital do dedo indicador ou a altura/comprimento – pois estes estão em mudança acelerada nesta fase. O protocolo é que a ligação seja estabelecida por meio de um único marcador biológico: uma fotografia do bebé. Contudo, é necessário que o bebé se adeqúe ao dispositivo e às necessidades de imagem exigidas a um cidadão. O aparelho – que incorpora uma câmara fotográfica – encontra-se num guichet público e as suas dimensões 4


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adequam-se à apresentação em pé de um adulto de estatura média. Perante este mesmo aparelho deve surgir um bebé, posicionado frente à câmara numa posição vertical e ereta; ideia relativamente absurda para um ser humano com um mês de idade, cuja condição biológica não lhe permite individuar-se de outro ser humano nesta mesma posição. Deste modo, a mãe e o pai do bebé cidadão, assim como a funcionária, esforçavam-se para que ele mantivesse em posição vertical frente à câmara do Estado. No processo, o bebé chorava e os pais tentavam acalmá-lo com um biberão de leite, uma chupeta, afeto corporal. Porém, o bebé continuava desconfortável, não sendo talhado de todo para assumir a posição exigida. Finalmente, a funcionária sugeriu afetuosamente à mãe que tentasse colocar-se de modo a que a sua presença aparecesse o menos possível na fotografia. Posteriormente, os serviços tentariam eliminar a parte do seu corpo que residualmente ficasse na imagem através de um programa de tratamento de imagem. O importante era que o bebé ficasse com a face virada para a câmara. É de notar que esta é uma obrigação recente para os bebés nascidos em Portugal e que se prende com o registo fiscal das crianças e a possibilidade do Estado controlar o número de dependentes por família. Este procedimento deriva, portanto, de um desejo de assegurar a “verdade fiscal perante o Estado”, de mostrar a verdade sobre as relações de dependência económica existentes no seio das famílias portuguesas, mas assenta num documento onde bebé cidadão se faz representar (em termos de imagem) perante o Estado numa posição artificialmente ereta e independente (sem apoio), cristalizando a imagem de um “indivíduo independente” sem apoio biológico e social... mesmo se o documento acaba por ter como finalidade imediata provar a existência desse mesmo apoio.

Jardim da Estrela, Lisboa. Fim de tarde com sol e pouco vento João de Pina-Cabral (com Irene Rodrigues)

O parque estava ocupado e foi-se enchendo durante o tempo que lá estivemos. É um espaço quase autoritário, construído para dirigir os movimentos de pessoas que ficam ali por tempos pouco prolongados. Há três tipos de equipamentos construídos: (a) cafés,

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(b) coretos, mesas e relvados abertos, e (c) creches/ parques infantis, para adultos e para crianças. Quem não está no parque – A população presente estava dividida em três tipos etários muito diferenciados: velhos (mais de 60 anos); jovens (em torno dos 17-25); crianças (menos de 7 anos) e respectivos acompanhantes. Conforme o tempo ia passando iam aparecendo mais pais entre os 40 e os 50 com crianças. Não estavam presentes classes médias altas nem gente rica; não estavam presentes pessoas de meia-idade com emprego; não estavam presentes pessoas de classe baixa nem migrantes de países mais pobres (excepto eventualmente como empregados ou turistas). Não vimos pessoas sem tecto, pedintes, utilizadores de droga; não percebemos qualquer marginalidade criminal ou comércio informal. O espaço estava intensamente policiado – os polícias armados circulavam de carro, o que não é o molde normal de presença no parque. O parque tem duas características dominantes: (a) não é um espaço de trabalho – i.e., só lá está quem já ganhou a vida ou não tem vida para ganhar; (b) é um espaço que dialoga com o espaço doméstico – i.e., presume-se que as pessoas que lá vão saem de espaços domésticos e estão constantemente a remeter para eles. Que fazem com quem – O que as pessoas fazem prende-se com as pessoas com quem se agregam: há solitários, acompanhados e grupos. O telemóvel faz parte integrante e universal da forma de estar no parque, para gerir os movimentos dos membros da família e amigos dentro da cidade. Os homens velhos constituem a maioria dos solitários; há menos mulheres de meia-idade solitárias. Todos os outros estão em grupo ou em parelha. Há mais grupos de dois do que de mais de dois. As associações a mais de dois são: (a) os homens velhos (c. 70 anos) que ocupam as mesas de jogo numa zona protegida por telheiro nas margens do parque, escondidas por detrás da creche; (b) os jovens com sinais de quem ainda não está envolvido no mundo do emprego mas que podem ir até os 20 e poucos anos e que se organizam para dançar no coreto, para treinar em aparelhos de mountain climbing ou para fazer piqueniques com violas; (c) algumas crianças que, tentativamente, e sob o olhar atento de mães, avós ou empregadas, jogam a bola juntas. Os velhos em causa, que nós abordámos, eram pessoas que tinham saído de carreiras de serviços, sobretudo do Estado. De facto, os dois com quem falámos eram 6


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reformados da Marinha e do Exército, respectivamente. Tinham vivido em Lisboa a vida inteira, desde os 16 anos num caso e, no outro, desde o serviço militar, e não tinh am já pronúncias nortenhas, apesar de um ter nascido em Barcelos e ter sido criado numa creche no Porto e o outro ter vindo de Trás-os-Montes. Juntam-se num grupo de cerca de dez homens, mas o grupo subdivide-se e é passageiro. Jogam às cartas e estão prontos a integrar qualquer recém-chegado. Na forma como confrontaram a minha abordagem havia um certo “agonismo” relacional muito tipicamente masculino, relacionado com honra e respeito (mas a Irene acha que observa a mesma coisa em grupos de mulheres). Nota: não há grupos de mulheres de média idade ou velhas! Desapareceram as “viúvas” que ocupavam os parques da minha juventude. Abordámos um grupo de jovens que dançavam algo do tipo hip-hop no coreto e que vão lá várias vezes por semana, mas não todos os dias e que adoraram ser filmados por nós. A Irene ficou impressionada pelo facto de alguns destes jovens já terem ultrapassado a idade da escolaridade e da sua presença no parque ser sinal de que (a) vivem com pais e (b) não têm emprego. É possível que a crise económica venha a alterar a população do parque ou que já a tenha alterado. As crianças estão todas emparelhadas com adultos. Nenhuma criança estava tempo algum fora do campo do olhar de um adulto e, mesmo quando brincavam entre elas, faziam-no sempre com o adulto a assistir. Ouviam-se constantemente, nas zonas de lazer infantil do parque, nomes de crianças ou chamamentos a mães, avós ou empregadas. Só cerca de um terço ou menos dos cuidadores eram homens (pais ou avôs), mas estavam lá. Sentem-se os efeitos da nova estrutura etária da população: há casais de mais de 60 anos em que o marido segue vivo; há muitas avós a olhar por crianças; há mesmo namorados com idades médias bem superiores aos 50 (aliás, foi o único caso que vimos de envolvimento erótico declarado). Os namorados do antigamente não existem já ou não namoram em espaços extra-domésticos. Conclusão – O parque é um espaço intermédio entre a vida pessoal e a vida salarial destas baixas classes médias por meio do qual o “lazer” é mobilizado como actividade estruturante da inserção social das pessoas.

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02. Comboios e centros comerciais 'Para baixo... para cima... o importante é a transição.' Ambra Formenti (com Dina Maria Rosário dos Santos) Entrecampos tem uma estação ferroviária suburbana servida pelas companhias Comboios de Portugal (CP) e Fertagus. A primeira serve as linhas de Sintra e Azambuja, ligando o centro de Lisboa com aquelas vilas; a segunda liga o centro de Lisboa com Setúbal e a Margem Sul. Espaços - Entrámos pelo acesso secundário, na rua Infante Dom Pedro. Uma senhora com cruz pendurada ao colo, aparentemente de origem africana, estava a fazer limpeza. Na entrada, dois funcionários da segurança falavam entre si, trocando umas palavras com ela de vez em quando. A arquitectura da estação era de estilo moderno, com matérias metálicos e largas janelas de vidro. Dava uma sensação de abertura e luminosidade. No átrio estava um lindo mural colorido, com animais em cima dum comboio. À frente, os pontos de venda de bilhetes. Para além das bilheteiras mecânicas (pouco utilizadas pelos passageiros), os bancos de venta das duas companhias de transporte distinguiam-se por cores diferentes: o vermelho para a Fertagus, o verde para a Comboios de Portugal. Do outro lado, um carro para crianças, um dispensador de bebidas e snacks, uma máquina de fotos para documentos e uns cacifos para o depósito de bagagens. No átrio havia vários ecrãs, que comunicavam os horários de chegada e partida dos comboios. Mais afastada, uma loja de roupas e sapatos femininos. Atravessámos o piso inferior e alcançámos a entrada principal, na Rua Dr. Eduardo Neves, que, tal como o outro acesso, tinha escadas e rampas para deficientes. O espaço ao redor das duas entradas estava cheio de escritos nas paredes e no chão, eminentemente com carácter político. O segurança veio dar-nos uma olhada... No átrio, estavam vários passageiros em trânsito. Muitos deles, julgando pelo vestuário e pelos traços físicos, sugeriam uma origem estrangeira. Entre eles, uma senhora com roupas de estilo africano e vários que pareciam oriundos de países asiáticos. Duas idosas,

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aparentemente nativas portuguesas, talvez amigas, encontraram-se na entrada e ficaram a falar. Subimos uma das escadas de acesso ao primeiro piso. Aqui vimos um café e outra loja de roupas para mulheres, com uma empregada provavelmente de origem chinesa. Este piso estava bastante vazio. Por uma escada rolante subimos para o segundo piso, o dos comboios, e alcançámos a plataforma da direita. Alguns dos cartazes presentes davam informações sobre as rotas e os horários, outros eram cartazes publicitários. Entre os cartazes publicitários, a maioria promovia escolas de formação privadas (talvez supondo um público jovem). Os restantes cartazes anunciavam produtos alimentares. Havia várias máquinas que vendiam bebidas, aparentemente inutilizadas. Pessoas – Ao chegar aos comboios, o meu olhar foi preso menos pelos elementos espaciais e mais pelas pessoas. O fluxo de homens e mulheres mudava ao ritmo de chegada e partida dos comboios. Porém, tal como nos pisos inferiores, as pessoas pareciam bastante tranquilas. Nesta tarde de verão, ninguém parecia estar atrasado ou ter pressa. As idades eram bastante variadas: havia alguns idosos, vários adultos, muitos jovens, poucas crianças. Não havia preponderância do género masculino ou feminino. Muitos dos jovens tinham auriculares ou mexiam continuamente no telemóvel, falando e mandando mensagens. Várias pessoas estavam a ler jornais (principalmente o Metro), ou livros. O vestuário dos transeuntes era geralmente prático e colorido, exceptuando dois rapazes vestidos de fato e gravata. A maioria dos passageiros parecia ter origem africana, talvez um testemunho da relativa concentração residencial desta população ao longo da linha de Sintra e na Margem Sul. Enquanto estávamos a caminhar na plataforma, ouvi alguém dizer “Obrigadinho!” O senhor que falou, um homem idoso, devia ter pedido alguma informação, mas não percebi com quem estava a falar, pois nem levantou a cabeça. De repente, dei-me conta que ninguém estava a falar com ninguém, para além de uns pares de amigos. Encontros - Na plataforma em frente, estavam sentados três idosos que tinham ar de nativos portugueses, que eu observara enquanto estávamos na entrada. Um deles tinha um boné na cabeça. Estavam sentados num banco a conversar tranquilamente, não pareciam prestar atenção à passagem dos comboios. Intrigadas pelo tipo de relação que 9


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eles mantinham com o espaço e entre si, tão em contraste com o comportamento dos outros passageiros, atravessámos para o outro lado da plataforma de embarque e sentámo-nos no banco onde eles estavam. Tentámos ouvir a sua conversa, mas infelizmente não conseguimos perceber nada. Entretanto um homem adulto, aparentemente alcoolizado, abordou -me, perguntando-me se eu era mãe. Colocou na minha roupa um laço vermelho, símbolo da luta contra a SIDA. Cheirava a álcool e pedia dinheiro para os doentes com SIDA. Eu pedi lhe informações sobre a associação da qual, supostamente, ele fazia parte. O homem apresentou um caderno velho e sujo com o nome da associação. Dei-lhe uma moeda e ele afastou-se. Ao mesmo tempo, os idosos conversavam animadamente sem dar atenção ao nosso diálogo. Como não conseguíamos ouvir as palavras dos idosos, decidi interpelá -los directamente: Ambra - Vocês estão à espera dum comboio? Um deles acenou afirmativamente com a cabeça. Ambra - Para onde vão? Idoso 1 - Para baixo... para cima... o importante é a transição... Expliquei-lhes que éramos estudantes da Universidade de Lisboa e estávamos a fazer um exercício para um curso de verão. Ao ouvir as minhas palavras, o segundo idoso precisou com intenção: Idoso - Nós não somos daqui. Somos do Alentejo. Ambra - Esses comboios são de curta distância? Idoso 3 - Sabemos muito pouco... Sabemos nada... Os idosos fecharam-se em copas. Passei a observar a plataforma em frente. O suposto colector de ajudas para doentes de SIDA continuava o seu trabalho. Escolhia evidentemente mulheres. Várias senhoras recusaram, outras deram dinheiro. Aparentemente, quando ele conseguia colar o laço vermelho nos vestidos era mais fácil que recebesse uma moeda. Evidentemente, esta estratégia tinha uma certa eficácia. De repente chegou um comboio. Quando passou, já não havia ninguém na plataforma e o nosso amigo também devia ter apanhado o seu comboio. Como os idosos alentejanos não pareciam ter vontade de conversar connosco, pusemo-nos em pé e afastámo-nos

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lentamente. Entretanto, um senhor com ar de alcoólico e mala cor de laranja foi sentar-se ao lado deles. Cruzámos a plataforma, uma vez mais, retornando para a anterior. Do outro lado, os nossos três amigos continuavam a conversar sentados, em contraste com o resto dos passageiros. Ao lado deles, o senhor bêbado tinha adormecido. Provavelmente o seu objectivo não era viajar, mas sim descansar. Sem ser observadas, tirámos uma fotografia. Descemos para o átrio. Os homens da segurança tinham permanecido na entrada lateral, onde a senhora da limpeza continuava trabalhando, sempre no mesmo sítio, sempre com muita calma. Que aconteceu na hora e meia em que fomos observando este lugar? Por um lado, o espaço que tínhamos atravessado podia ser descrito através da categoria de ‘não lugar’, ou seja como um espaço de passagem, provisório e efémero, caracterizado pelo trânsito e pela falta de comunicação interpessoal; um espaço onde as relações, as identidades e a história não estavam em jogo. Por outro lado, nos interstícios deste lugar de ninguém, encontrámos pessoas ocupadas a cultivarem relacionamentos e afirmarem orgulhosamente a própria identidade, curiosamente inspiradas pelo trânsito dos outros.

Cosmo polis ismo - das espacialidades urbanas Dina Maria Rosário dos Santos (com Ambra Formenti) Por volta das 17 horas de uma mormacenta tarde de Julho a Avenida de Roma dormita. É uma rua tranquila e mais tranquilo ainda parece ser o seu Centro Comercial: Acqua Roma. A sua suposta calma contradiz a fachada revestida em aço inox. Forte e robusta, serve de preâmbulo a um espaço de compras quase vazio onde o moroso ritmo é quebrado pelo esparso som de crianças brincando, bengalas, andadores e saltos agulha. Ao entrar, as portas isolam o burburinho da rua. Sou saudada por uma larga rampa e uma escadaria. As paredes são cinza e o acesso é negro. Não sei se esta primeira visão convida as pessoas ou se as expulsa da Meca das compras.

Uma idosa,

meticulosamente, limpa o átrio – a mim, parece bastante limpo, mesmo antes da sua chegada. A sua farda verde e os seu ténis com detalhes em laranja contrastam com a sua expressão cansada. Logo entendo para que serve a larga rampa ... Durante os primeiros 2 11


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ou 3 minutos em que estive parada na entrada, a faixa etária dos transeuntes rondava os 70 anos. A estrutura do Centro Comercial está sustentada por colunas forradas com metal cinza. O conjunto forma algo entre o futurístico e o lúgubre. O acesso às lojas é por entre as pilastras e, no centro do edifício, as vigas aparentes dão uma sensação de opressão. O olhar é entrecortado por escadas de metal e paredes. As cores dominantes são o cinza, o negro e o marrom. No final do corredor há um espaço para recreação infantil. A entrada está tomada por um barco colonizador marrom onde brincam três crianças. Atrás dele, uma casinha amarela de plástico, alguns cavalinhos de baloiço, mães, avós, carrinhos e bebés, todos reunidos em volta de um tapete vermelho. Não sei se é intencional ou coincidên cia, mas a loja de preços mínimos fica ao lado das crianças e das mães. É engraçado notar como tudo está no mesmo sítio: a roupa infantil, o lanche, a lavandaria, o conserto para roupas. Talvez uma mãe pós-moderna não precise de sair do piso inferior. O primeiro piso é um pouco mais claro e menos lúgubre. Estão lá as lojas de marca, de roupa feminina e masculina, bebidas, joias... e o passadiço de madeira completamente vazio.

Três senhoras conversam, confortavelmente sentadas em

poltronas, em frente a uma loja de roupa feminina. Parece uma reunião de amigas. (A funcionária da limpeza observa-me enquanto, lentamente, sobe as escadas.) A reunião segue tendo como tema principal o quotidiano dos filhos e netos. A troca de informações sobre magia e receitas para quebrar encantamentos utilizando a igreja e os seus símbolos é, no mínimo, pitoresca. Comentam sobre o 'mau-olhado' e como podem proteger netos e filhos. Uma delas fala de um ritual contra no qual se utilizam as portas e paredes de uma igreja. Uma outra esclarece que existe o mau-olhado do bem e o mau-olhado do mal. A conversa passa para o tema de uma pessoa que só gosta de homens casados. E daí evolui para o uso da borra do café para fazer leituras divinatórias. Discutem sobre formas para ler a sorte no casamento através da borra do café. Surgem controvérsias sobre a possibilidade de usar folhas de chá. Uma delas, enfaticamente, afirma: - “Eu sei porque já fiz isso!” A sua postura assertiva põe fim à discussão. Essas senhoras portuguesas fazem-me lembrar Chico César: 'No meu peito católico tudo é descrença e fé'. Cosmopolitamente, três avós encontram-se num shopping para discutir formas de proteção dos membros de suas respectivas famílias. Tradicionais e contemporâneas, essas mulheres expõem saberes de um sincretismo, supostamente, 12


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lusitano em um espaço coberto de aço inox. Os encantamentos - testemunhos do desejo de controle/poder e da fragilidade humana – persistem, resistem e sobrevivem na inventada laicidade das metrópoles. A magia atravessa as racionalidades urbanas. Enquanto as senhoras trocam saberes uma jovem fala ao telefone. O ambiente está dominado por mulheres, crianças e idosos de ambos os sexos. As vendedoras entram e saem das lojas como se o movimento delas pudesse aumentar a quantidade de clientes. É interessante notar como chama atenção a postura de quem não está no centro comercial para comprar. Talvez porque seja clara a origem estrangeira... ou o olhar que não se dirige aos objetos de compra mas às pessoas... ou salte aos olhos que não vou consumir. Estou consumindo-as... Os dois funcionários que circulam no shopping – o segurança e a senhora da limpeza – continuam observando-me de perto e atentamente. O local mais claro do edifício é a praça de alimentação. E finalmente dou-me conta de que o shopping tem forma de navio. As fotografias de barcos e partes de barcos na parede do último piso não deixam margem para dúvidas. Talvez a metáfora seja a de embarquemos nos mares do consumo. É interessante notar como num Centro Comercial vazio o movimento das escadas produz uma sensação de vida. A praça de alimentação alimenta dezanove pessoas: quatro adolescentes comem e quinze homens e mulheres leem. Será este Centro Comercial frequentado pelos vizinhos? Será que, aos fins de semana, é para ele que se dirigem os jovens da vizinhança? Será que navega, silenciosa e lentamente, para a falência? Num ecrã exibem um jogo de futebol. O ecrã está posicionado em frente a três adolescentes. Ou o jogo é pouco importante, ou a fome é mais importante. O fato é que eles conversam entre si e não olham para a televisão. A tela exibe notícias da Síria. Enquanto um país sangra um único homem assiste... Do terceiro piso vejo que o trio de amigas se dissolve... primeiro uma e depois duas despedem-se e seguem... Aqui e ali passam mulheres com suas sacolas de compras. A hierarquia do shopping organiza-se da seguinte forma: Lazer e serviços no piso inferior; Compras no piso intermédio; Alimentação no piso superior. Aos três níveis pode aceder-se por escadas normais ou rolantes. Do último piso é possível observar todos os outros. Nos três pisos está presente um anúncio de um atelier infantil para os sábados. O mesmo anúncio está na porta de entrada... Será esta a estratégia para garantir clientela e movimento? Se for, é possível imaginar a que público se destina o espaço... 13


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Testemunho da geopolítica urbana.

03. Circulações urbanas: a praça e o metro A praça da tolerância Rosa Alexandra (com Murilo Rodrigues Guimarães) Às 16 horas, o centro da Praça de São Domingos, em Lisboa, está praticamente vazio. O fluxo pouco intenso de pessoas que a atravessam quase não se detém. Os transeuntes usam-na quase só como local de passagem para os seus afazeres. Há habitantes ou trabalhadores locais que atravessam o largo nas suas rotinas diárias mais ou menos apressadas, há também turistas, principalmente casais com crianças pequenas, alguns empurrando carrinhos de bebé, que a atravessam, talvez, entre o fim do almoço numa esplanada nas ruas circundantes a São Domingos e a próxima escala nos seus roteiros, há igualmente devotos que se dirigem para a igreja, o edifico mais impo nente de toda a praça. O calor aperta (a meteorologia dá 28ºC mas parece mais) e no centro da praça não há sombras, nem fontes, nem bebedouros que convidem a uma pausa para dois dedos de conversa. Mesmo os poucos pombos que por aqui planam, depressa esvoaçam para poisos mais amenos. O piso branco da calçada lisboeta e o chão contíguo de blocos de mármore igualmente brancos no adro da igreja aumentam a sensação de aridez. O único elemento contrastante é um camião vermelho da Super Bock onde se lê Avenida da Liberdade a letras garrafais. Passa das 16 horas mas pouco se passa nesta tarde quente no centro da Praça de São Domingos. A acção está nas margens. A Praça de São Domingos, freguesia de Santa Justa, fica paredes-meias com o Rossio e é uma praça pequena de forma quadrada. O lado superior é delimitado pelo Teatro Nacional D. Maria II, enquanto no lado inferior está a igreja de São Domingos, do século XIII, embora com reconstruções posteriores, em particular após o terramoto de 1755 (descubro eu já em casa pela Internet). Foi neste largo que em 1506 centenas de judeus foram massacrados por católicos. Em 2008, António Costa, presidente da câmara, inaugurou aqui dois pequenos memoriais às vítimas, um judaico e outro católico. O monumento judaico, uma estrela de 14


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David, é hoje o centro da praça, enquanto o católico está em frente à igreja. Para fomentar a tolerância e “tornar a capital uma cidade mais atractiva a todos os níveis”, leio eu numa notícia de 22 de Abril de 2008, publicada online no Jornal de Notícias, Costa inaugurou também um mural com “Lisboa, cidade da tolerância” em 34 línguas. Mas quem passa e, mesmo, quem fica é indiferente aos memoriais. O resto do quadrado é delimitado num dos lados pelo Palácio da Independência e o edifício da Ordem dos Advogados. Este edifício fica situado numa zona mais elevada da praça, por onde se tem acesso subindo uma pequena rampa ladeada por um gradeamento que separa esta zona do largo propriamente dito. É por baixo deste gradeamento que se encontra o mural da tolerância. Esta é também a zona mais fresca e convidativa ao descanso de todo o lugar devido às três grandes oliveiras plantadas em frente ao edifício dos advogados que sombreiam todo o passeio. Finalmente, o quarto lado do quadrado fecha-se nas Chapelarias Azevedo Rua Lda., “fundadas em 1886” e “especializadas em chapéus e bonés” (resquícios da Lisboa dos filmes dos anos 40, do “chapéus há muitos, seu palerma!”), na Ginjinha Espinheira, conhecida pela Ginjinha do Rossio, e por uma grande e solitária oliveira, o único elemento vegetal, fonte de frescura e sombra, na parte baixa da praça, acabando este lado no adro da igreja. É aqui, debaixo das oliveiras, na igreja, na Ginjinha, que os frequentadores habituais ou ocasionais da praça param. Indiferentes uns aos outros. Para os turistas, a Ginjinha, da família Espinheira desde que foi fundada em 1840, é a maior atracção da Praça São Domingos. Nesta tarde de verão, casais de turistas muito brancos, frequentemente com crianças em carrinhos, aglomeravam-se à porta do estabelecimento para beber a sua ginjinha, com ou sem ela. Inclinam-se ligeiramente para a frente enquanto beberricam os primeiros goles, por vezes partilham o mesmo copo. Mas para estas pessoas, São Domingos começa e acaba aqui, às portas da Ginjinha Espinheira. Há também os frequentadores da igreja de São Domingos. Mas são poucos os que a meio da tarde se dirigem para lá. Na maior parte são homens idosos, mas muito aprumados, que aparentam ser da classe média-alta e entram na igreja focados no cumprimento da oração diária ou semanal. Entra também uma idosa puxando uma mochila do ginásio Holmes Place. No interior, o verde fosforescente da mochila, colocada no corredor central da igreja, contrasta com os tons cinzentos e vermelhos das colunas e do tecto. O interior tem, ainda assim, pouca gente. A próxima missa é só às 17:30 e as filas 15


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de cadeiras de madeira fazem lembrar uma plateia vazia, como provavelmente acontecerá, a esta hora, no outro lado da praça, nas salas do Teatro D. Maria II. Para outro grupo, no entanto, a Praça São Domingos é local de convívio e de (algum) negócio. É o grupo dos negros africanos que aproveitam a sombra fresca das oliveiras para estar, simplesmente estar, ou conversar. Na oliveira em frente à igreja seis homens e uma mulher sentam-se em cima de cartões de papelão que já foram embalagens: de frigoríficos? Ventoinhas? Ares-condicionados? Nesta praça não há grande tecnologia, o calor suporta-se calmamente, aproveitando a sombra fresca das oliveiras. Quando me aproximo, a mulher do grupo chama-me. Oferece-me um pequeno saco de plástico transparente com feijões? “Amendoins”, diz num sorriso. Não percebo à primeira nem à segunda. Aponto para uma espécie de nozes que tem na mão. É cola, explica -me, é para comer. Desconfio, mas compro uma, 50 cêntimos. Quando chego a casa, procuro na Wikipedia. Para mim, cola para ingerir, só a coca-cola. Mas desta cola também se fazem refrigerantes (vem-me à cabeça a imagem do copo de refrigerantes da McDonald’s estendido pelo mendigo à porta da igreja). Visito depois o grupo de africanos que estão em frente à Ordem dos Advogados. Aqui é a estrutura do canteiro que serve de assento às mulheres de vestidos étnicos, verdes, amarelos, vermelhos, e turbantes coloridos, que vendem amendoins (compro um saquinho por um euro), camarão seco e malaguetas. Os homens estão de pé à roda das árvores a conversar e alguns, mais jovens, espalham-se, à sombra, pelos assentos que o gradeamento permite. São 16 horas e 50 minutos, o meu tempo acabou. Dou uma última olhada à praça. Nada mudou na praça da tolerância multicultural, um centro de passagem, ladeado por grupos culturais fechados a ocuparem as margens.

Ir e Voltar de metro ao Aeroporto Murilo Rodrigues Guimarães (com Alexandra Rosa)

Optei, de entre os cerca de oito viajantes identificados, por seguir um casal que se posicionara ao meu lado, logo que cheguei à plataforma da estação da Alameda. 16


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Tratava-se de um jovem homem, com cerca de trinta anos, caucasiano, louro, a usar uma camisola azul, com estampa tipo cartoon, calça de cor bege e sandálias de fivela. Ela, também jovem, de tez morena, com cabelos negros a descerem-lhe até abaixo dos ombros, calçava umas sandálias de tiras de couro e usava um vestido com ténues desenhos brancos sobre fundos azul e vermelho, que se misturavam como uma colcha de retalhos. O homem levava uma enorme mala preta, com rodinhas, trancada por um cadeado grosso, diferentemente do que normalmente se vê a trancar malas deste tipo, além de uma pequena bolsa a tiracolo, onde possivelmente estariam guardados documentos e dinheiro. Ela, por sua vez, levava apenas uma bolsa de tecido verde. Ele, em pé, cuidava da mala ao lado da mulher que, sentada, mantinha uma expressão de desconfiança. Resolvi aproximar-me deles, para saber de onde eram e aonde iriam. Julguei tratarem-se de portugueses e minha aproximação foi em português. Ele riu, a olhar-me fundo os olhos. Ela cerrou ainda mais as feições e gesticulou de modo a indicar-me que nada tinham a dizer. Ao dar-me conta do meu erro crasso de julgá-los portugueses, tentei uma abordagem em inglês, o que aumentou tanto o riso dele como a desconfiança dela. Ele disse algo numa língua absolutamente estranha para mim, levando-me a perguntar-lhe, Itália?, e ele, ao repetir a mesma frase, sempre a rir, indicava que a nossa comunicação seria absolutamente impossível. Eu levei idiotamente o corpo à frente e atrás, num tosco pedido de desculpas e, depois disso, retornei ao lugar onde estava. Na carruagem, o casal posicionou-se ao meu lado e ele, embora levasse consigo a enorme mala, permanecera de pé, enquanto ela se sentara no único banco vago naqueles arredores. À cabeceira da carruagem, um jovem, com vestes rotas e sandálias, tinha uma mala aos pés. Um outro jovem ao seu lado, com roupas igualmente despojadas e sandálias, seria seu companheiro de viagem? Ao meio do carro, um grupo de três raparigas e um rapaz formavam um grupo e era evidente que também viajavam. No final, vi que estavam todos juntos, cada qual com sua pequena mala. 17


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As evidências foram sempre as mesmas: malas de viagem e roupas de verão bastante usadas. Um objecto, mais uma corporalidade coincidente no que diz respeito às roupas e ao ar cansado, eram, portanto, os elementos que à primeira vista os ligavam a todos. Não pude deixar de construir uma metáfora óbvia entre a mala e a casa, esta carregada às costas, como uma extensão do corpo, de modo a acentuar uma outra característica comum subjacente: o estatuto de passageiro, de quem está a sair ou a retornar ao local de origem e as implicações que esta provisoriedade representa, especialmente as de ordem política e jurídica. Revolvendo-me neste nível de conjecturas, reflecti: como etnógrafo, não me era suposto tecer cenários sobre suas vidas, inferir-lhes nacionalidades, imaginar-lhes passados e futuros. No entanto, eu fizera-o. Eu era um cientista preconceituoso. Sentime sozinho e desprotegido, porém logo me dei conta de que era essa a posição ideal para mim: a solidão empática, disposta à descoberta daquelas vidas, tal qual eles, ao olhar para mim, poderiam querer, por este homem estranho a eles, saber mais sobre a vida em Lisboa. A dimensão do encontro que trespassa a ventura do viajante é a mesma que consubstancia a “viagem” do antropólogo. Éramos, todos ali, etnógrafos. Segui aquele casal até o terminal de embarque 2, o que significava que viajariam numa companhia aérea de baixo custo. Antes, eles foram à casa de banho separadamente e, enquanto ele lá estava, ela bebeu goles de água de uma garrafa de litro e meio. Compunham uma dupla com evidente divisão de tarefas – estariam elas baseadas em concepções peculiares dos papéis masculino e feminino? Estaria ela grávida? Como sabê-lo? Foram-se e o trabalho com eles acabou ali. No percurso de volta, acompanhei um par de jovens brancos. Um deles viajante, o outro era o amigo que o fora buscar ao aeroporto e que lhe ensinava a estar em Lisboa. Foram juntos, conversando, lendo mapas da cidade. Ambos usavam roupas despojadas, sendo que a enorme mochila denunciava a presença de um turista. A bolsa foi colocada no banco à frente de um deles e, mesmo quando, na estação Oriente, o vagão se encheu de passageiros, eles não a retiraram dali. Evidente era a despreocupação de ambos os jovens para com a situação um pouco embaraçosa. A mochila-casa ocupava um lugar na cidade, pensei. 18


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Cheguei à Alameda, desci do vagão, deixei-os seguir, a conversarem animadamente. Enquanto subia as escadas para sair da estação, fui recuperando os pedaços de mim deixados de lado, em nome do trabalho etnográfico. Era eu de volta aos meus preconceitos. Era eu, finalmente, a retirar a máscara pretensiosamente neutra e a tornar-me, novamente, naquele self familiar, igualmente aventureiro, viajante entre as paisagens da minha mente e da minha curiosidade antropológica. O quanto pesavam em mim as notas de campo, enorme espaço passaram a ocupar na minha cidade interna. Eu bem deveria ‘dar uma chegada’ à Espanha ou à Ucrânia. Quem sabe não reencontrasse aquele jovem casal numa praça de Kiev, ou dançasse com o grupo de rapazes e raparigas, numa das ruas de Chueca?

04. A baixa lisboeta As longas sombras duma luz ofuscante Frank-Ulrich Seiler (com Joana Sousa)

É a tarde do dia 25, uma quarta-feira no mês de Julho, anno domini 2012. O céu mostra-se aberto com um azul claro, o sol brilha com todo o seu esplendor, apenas uma ligeira brisa ajuda a suportar o calor e a intensidade dos raios. Encontro -me na margem sul da Baixa de Lisboa, onde a estreiteza do emaranhado de ruas num estado de degradação avançado e a acumulação de prédios antes pomposos, agora apenas sufocantes, dão lugar à abertura da Praça do Comércio com o seu vazio imenso. Esplanadas de cafés perdidas mal conseguem quebrar esse oco, não obstante a presença duma pequena multidão de turistas neste local e o monumento no seu centro. Aqui até o cavaleiro régio de ferro, um tal Dom J., parece ter perdido o norte que se vislumbrava glorioso, se dermos crédito à placa que enaltece os seus feitos, numa linguagem esotérica para os transeuntes. O único combate que ainda trava, embora sem hipótese de sair vitorioso, é com os cliques imparáveis das câmaras 19


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“made in Asia” nas mãos dos atacantes multi-línguas. No entanto, nenhum escudo, nenhuma espada conseguem impedir o avanço desses invasores! À praça é atribuída uma importância nacional: será pela existência do ‘Arco Triunfal’ ou dum aglomerado de prédios amarelos “mi(ni)steriosos” que a esquadra policial na esquina tem sob um olhar atento? Em seu redor estendem-se esses palacetes-ministérios, uma parte dos quais foi esvaziada do seu caráter público através da apropriação por meio dum pequeno depósito privado na conta do poderoso ministério residente, o das Finanças. Segundo rezam as lendas da atualidad e, a ação deste rege-se consoante a vontade de espíritos obscuros, sobretudo exógenos, dum mercado anónimo de vendedores e compradores de valores. A sul, este espaço é delimitado por uma espécie de fronteira, i. e., uma rua marginal na qual se deslocam milhares de carros num vaivém imparável e ruidoso. Os apitos frequentes dão-nos ideia do nervosismo e da pressa sentidos pelos condutores no interior das caixas metálicas redondas. Abandonamo-los ao seu destino de sucata e vagamos com o nosso olhar até à ponta da praça. O meu local de escolha situa-se ao lado do cenário anterior. Sento-me num dos bancos de pedra que integra os muros laterais e protetores do “Cais das Colunas”, que prolonga e finaliza a cidade nesta área. É constituído por um semicírculo com u m chão de pedras de mármore que me conduz aos degraus centrais, descendendo depois para as águas do Tejo. O rio engole a parte inferior de duas colunas que dão o nome ao antigo cais de embarque. Daqui saíram numa empresa de conquista, contando com o financiamento por banqueiros exógenos, os valentes ansiosos por ouro, os condenados em nome dalguma justiça, como também os falidos nobres da terra, endividados até à medula. Ouvem-se quase os choros dos seus filhos e das mulheres entregues a si próprios perante o destino incerto dos seus homens, não obstante toda a ciência de navegação empregue. Aqui chegaram humanos de terras longínquas, de nome “Guiné” ou “Congo”, a quem os valentes tinham arrancado a sua condição de Ser, i. e., tratavam-nos como

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“escravo”, o que significava “coisa”. O seu destino enquanto mercadoria estava à mercê dos mesmos espíritos do mercado, i. e., dos banqueiros. Os lamentos, os choros de homens antes orgulhosos, aqui atormentados e quebrados, de mulheres violadas pelos bravos conquistadores, com bebés a amamentar no seu peito antes da sua separação para sempre, as chicotadas como técnica de educação para o trabalho e como instrumento de subjugação, a sua distribuição pelas casas do comércio de escravos nas imediações da praça – como é que as colunas terão recordado isso tudo? Viram desembarcar aqui o guerreiro Gungunhana, rei duma sociedade africana nas terras de Moçambique, derrotado militarmente, humilhado e transformado em objeto humano dum espetáculo de afirmação do poder colonial. Será que sentem vergonha quando a maré-baixa liberta as inscrições no seu corpo de pedra que glorificam a passagem por este local de dois ditadores, Carmona e Salazar, além dos seus atos colonialistas ainda recentes nas terras dos que se contorceram de dor na sua chegada forçada a este local há alguns séculos? Da sua esfera, i. e., do ponto mais alto, duas gaivotas contemplam o atual movimento, enquanto os seus colegas pombos passeiam sem preocupação à procura de pequenas delícias deixadas pelos visitantes que afluem a este lugar. Aparentemente reina um convívio pacífico entre humanos e pássaros, embora, fora daqui, estes tenham o estatuto de inimigo público pelo fato de se libertarem em cima dos heróis nacionais petrificados. Os humanos, muitos deles loiros, suponho turistas, afluem ao local em pequenos grupos de duas a quatro pessoas, dirigindo o seu primeiro olhar às águas do Tejo como se fossem capturados por um estranho feitiço. Andam vestidos uniformes com calções, t-shirts, com sandálias ou ténis de marca, as máquinas fotográficas ficam penduradas ao pescoço. Uma senhora encosta os restantes membros da família à margem do rio na tentativa de os levar presos numa fotografia. As caras mostram distração, sorrisos são frequentes e um relaxamento evidencia-se. Alguns sentam-se na escadaria, esticando as pernas ou procurando algo longe daqui com um olhar perdido. Duas jovens viram as suas caras ao sol, num ato de adoração de quem pretende trocar a sua palidez por uma tonalidade escura mais bonita. A meu lado, um 21


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homem, com cerca de 30 anos, escreve num pequeno caderno um texto denso, levantando a cabeça apenas esporadicamente: o mundo é mesmo dos etnógrafos! Há um ambiente tranquilo, com conversas num tom discreto, baixo, em línguas sobretudo europeias e com gestos contidos. Após uma curta passagem, esses humanos de classe média seguem o seu caminho para um outro lugar, o guia turístico na mão. No meio deste ‘para trás e para frente’, permanece um grupo de cinco homens africanos. Pela sua aparência escultural atribuo-lhes como origem a Guiné ou o Senegal. Eles estão sentados no muro do outro lado do cais, vestindo camisas leves, calças vincadas com sandálias simples. A sua conversa sucede com emoção o que se manifesta nos gestos que os seus braços e as mãos descrevem, nos movimentos do seu corpo inteiro, como se quisessem sublinhar os argumentos proferidos oralmente. Os seus olhares quase não tocam este lugar – será que as suas preocupações são tantas, ou será para evitar o contato com os espíritos históricos qu e ainda habitam o local? Uma jovem portuguesa, num vestido-calções com desenhos africanos, bamboleia-se na sua conversa com um senhor africano, de calções e sandálias. A sua linguagem corporal contrasta com a do acompanhante que, por sua vez, mostra uma distância através da sua posição reta. Os dois parecem estar com pressa. Um outro homem ainda dirige um olhar classificativo de vendedor às pessoas, escondendo na sua mão um cubo de caldo “Knorr”. Depois afasta-se para um outro local. Nem este senhor, nem os pombos parecem causar um maior interesse aos turistas; aliás, a sua comunicação limita-se ao grupo de companheiros ou destina-se a este rio enigmático. Entretanto, no cais ao lado, os barcos atravessam o Tejo e, no regresso, despejam os passageiros com celeridade como se estivessem sob uma grande pressão. Um cruzeiro gigantesco observa atentamente essa confusão, enquanto espera calmamente o regresso dos seus viajantes que invadiram a cidade à conquista de

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monumentos e saldos. Depois o paquete vai levá-los para outros lugares, sendo invejado pelos turistas do cais velho. E o que será feito dos homens africanos? Tanta tranquilidade e aceleração, tanta natureza e destruição, tantas dores, miséria humana e arrogância colonizadora que constituem este lugar! Quan tas sombras a luz deste local terá criado ao longo dos tempos?

Parados numa passadeira de peões sem semáforo Joana Sousa (com Frank-Ulrich Seiler) Um ponto. Entalado entre o hotel mundial e as obras da EPUL. Ao lado do hotel a bandeira da cidade de Lisboa, ao fundo a bandeira nacional hasteada por cima do castelo. De verde há nove árvores que consigo avistar à esquerda. Não há pombos ou vento. Entre o hotel, as árvores e as obras há estradas que se encontram num ponto e que são atravessadas por duas passadeiras de peões. Não há semáforos. Estamos sentados no fundo do passeio num bloco de cimento deixado pelas obras ou por um resto de muro antigo ou feito à pressa. Notam-se dois tipos de canais distintos, um por onde se movem carros e outro por onde se movem pessoas. Estes dois tipos de organismos, os carros e as pessoas, circulam no seu local apropriado a uma cadência marcada pelo fluxo de uns e outros, numa negociação constante que assenta numa linguagem de corpos. À medida que as pessoas param em pé à beira do passeio insinuam querer atravessar. Alguns carros não param logo. A uma pessoa que espera junta-se outra e outra e outra que forçam, sem força, os carros a parar. É um entendimento nervoso que se estabelece entre gentes e carros – carros que também têm gente – e assim, gente a pé e gente em carros. Ainda assim, os carros que param na passadeira e os peões que atravessam a estrada materializam-se num encontro forçado. O nervosismo é mais evidente nos carros que nas pessoas, apesar de ser a fragilidade física da pessoa que sustem a pujança do carro, é ele que transborda ansiedade. Por algum motivo as pessoas que se movem de carro parecem estar mais apressadas, ou têm mais problemas em controlar esse sentimento, que as pessoas que se movem a pé. 23


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Muitos carros param já em cima da passadeira, começando a arrancar pouco a pouco, forçando o ritmo do transeunte e acelerando logo que o caminho fica livre. Alguns carros não param mesmo. Ocasionalmente há peões que agradecem a condutores. Além da linguagem corporal do peão que atravessa ou do peão que agradece não há mais comunicação. Pode dizer-se que há uma certa ordem estabelecida que substitui a comunicação. Uns aqui e outros ali. Desordens ocasionais de pessoas que atravessam obliquamente a estrada ou de carros que estacionam em cima do passeio não colocam em causa a estrutura do que deve ser. Desafiam-na por momentos para tudo voltar ao que é suposto. A maioria são carros, mas há também motas ocasionais, alguns autocarros e bicicletas – passaram duas apesar de não haver uma via que lhes seja dedicada, neste cenário compartimentado parece não ser suposto existirem. Os carros que passam são velhos, novos, grandes e pequenos, de várias cores. Muitos têm uma pessoa, alguns mais. Igualmente homens e mulheres conduzem. Os que andam a pé são como os carros: há novos e velhos, há grandes e pequenos, há de várias cores. Há homens e mulheres, meninos e meninas. A maioria anda só ou a pares. Mesmo os que andam acompanhados não conversam muito, andam apenas. A maioria move-se sem expressão no rosto, apesar de elementos da roupa e do corpo convidarem a interpretações ambíguas. Detecto extremos. A magreza, a pele oleosa, a roupa suja anunciam uma vida marginal que acontece em pessoas de várias cores, idades e géneros. Os engravatados, ou quase engravatados, de pasta na mão acontecem da mesma forma. Estas inferências de classe, ou no mínimo de ocupação, ocorrem na diversidade e criam uma outra diversidade transversal a “grupos naturais”. Há um tipo evidente de transeunte, que se movimenta de maneira diferente e que não é a maioria. A maioria sabe para onde vai, move-se pelo canal, na sua via, deslocando-se de um sítio para outro sítio, olhando o chão ou o vazio em frente. Aquele outro tipo é fundamentalmente louro e fala inglês. Aparecem essencialmente a pares ou mais. São também de várias idades e ambos géneros. Têm máquinas fotográficas, mapa e mochila; elementos que podem surgir todos numa só pessoa ou combinados entre si. O seu andar é diferente, as cabeças rodam, os corpos rodam, 24


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olhando em volta à procura de para onde ir. Chegando ao cruzamento são obrigado s a tomar decisões relativamente à via de movimento a seguir, ao canal a escolher. Rodam mapas e comentam entre si, olham à volta e olham o mapa, olham à volta e andam. Enquanto a maioria passa apressada junto à estrada sem passeio encostada às obras do lado esquerdo um grupo de turistas para, lê o sinal que proíbe determinantemente a passagem de pessoas naquele lado. O grupo hesita vendo a maioria dos transeuntes a passar mecanicamente ao lado do sinal mas acaba por voltar para trás decidindo não avançar. Eu, que passo ali frequentemente, nunca tinha visto o sinal e iria jurar que o meu olhar nunca tinha tocado aquele sinal – talvez por me ter sempre distraído a fitar o chão ou o vazio em frente? Como será quando lá passar outra vez? Agora que vi este sítio com os olhos dos turistas, ou dos não-turistas que se sentam onde ninguém se senta, irei (re)embeber-me no meu quotidiano antigo, ou haverá um novo quotidiano para mim neste cruzamento depois de o observar? A única pessoa que reparou em nós foi uma velha gorda que carregava o seu peso e o peso de um grande saco de roupa que parecia ir vender. Olhou para mim enquanto o Frank escrevia e sorriu. Foi a única vez que penso ter feito parte do pensamento de alguém desde que me sentei ali. Só comuniquei de facto com a velha que se arrastava e com o sinal que proíbe a passagem. O sentimento de não comunicação impera. Este cruzamento é rico em diversidades, de carros e pessoas, e nulo em relações humanas. O interior dos carros é um mundo inacessível, embalado. As cabeças das pessoas que passam são cápsulas de pensamentos. Os olhos olham mas não olham mesmo. É um local de anonimatos, simples canal cujo fluxo varia com a densidade de pessoas e carros, local em que a física se impõe e torna o movimento mais ou menos viscoso. O barulho é constante, a comunicação mínima, só a suficiente para evitar colapsos. É quente e abafado. É um sítio para se entrar ou sair, não é um sítio para se estar. É um ponto para alguma coisa. É um ponto de movimento. Vou -me embora.

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05. Mulheres e igrejas Praça da Figueira

Gustavo Monzeli (com Raquel Carvalheira)

Dirigimo-nos à Praça da Figueira, às 17h35, a um local específico que a Raquel havia dito ser, possivelmente, um ponto onde algumas mulheres trabalhavam no mercado do sexo pago. Assim que chegámos avistámos três mulheres, uma morena, uma loira e uma anã, que logo foi embora por uma rua perpendicular ao ponto onde elas estavam. A morena vestia uma camiseta rosa, umas bermudas jeans, ténis e um boné branco, era bastante magra e aparentava ter por volta de 40 anos; já a loira era um pouco mais gordinha, aparentava ter a mesma idade e estava vestindo umas calças jeans e camiseta. Demos uma volta na Praça à procura de um lugar estratégico no qual pudéssemos melhor observar as mulheres, que eram o nosso foco neste exercício. Primeiramente pensámos em parar num bar ou café que tivesse mesas na rua, mas o café localizado mais perto estava com todas as mesas ocupadas, e o café seguinte estava muito distante do sítio onde elas estavam. Depois pensámos em ficar numa paragem de autocarro, mas logo percebemos que também estava inteiramente ocupada. Desta forma, acabámos por nos sentar na entrada do metro do Rossio, que, além de ficar relativamente perto do local onde elas estavam, dava a possibilidade de nos sentarmos na sombra. Neste momento ficaram as duas, loira e morena, paradas num ponto a esperar. Assim como elas, estávamos, Raquel e Gustavo, também a esperar. A espera neste momento parecia ser o que de comum havia na cena, a diferença é que julgamos existir, por parte das mulheres, uma intencionalidade que desconhecíamos, ao mesmo tempo em que a nossa espera significava uma expectativa e esperança de que algo acontecesse, de forma a confirmar ou contradizer nossas expectativas. O que aconteceu é que as duas se levantaram e foram embora pelo mesmo caminho que a anã tinha tomado. Percebemos que até então só tínhamos observado as mulheres e o local específico onde elas estavam, que era uma espécie de banco em frente a um café e um mercado. No momento em que elas saíram, pudemos perceber 26


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um pouco melhor o resto da praça, a perda do “objeto de observação” proporcionou uma ampliação do espaço onde estávamos. Quando acreditámos que tínhamos perdido o foco, pensámos que seria preciso encontrar outras possibilidades para a nossa observação. A praça é um local no centro da cidade e com diferentes acessos. Existe uma entrada e saída de metro, pontos de paragem de autocarros, paragens de táxi e também uma paragem do autocarro que leva aos lugares turísticos da cidade. Também por isso esta praça é bastante movimentada no período da tarde. Além dos turistas e das pessoas que por ali passam, existem residências e diferentes lojas de joias, sapatos, roupas, comidas, dentre outras tantas. Havia também a presença da polícia, coisa que o Gustavo até então havia notado pouco em Lisboa (em co mparação com Brasil). Naquele local os polícias estavam mais presentes, alguns passando por pontos da praça, além de carros de polícia e um “camburão 2” que parou bem à nossa frente, o único visto por Gustavo até então. Mas logo as duas mulheres voltaram, assim como voltaram também as nossas suposições. De qualquer forma, os deslocamentos continuaram, menos por parte da morena, que voltou a sentar-se no mesmo banco, onde permaneceu por praticamente todo o tempo. Já a loira movimentava-se constantemente, primeiro em direção ao café em que havia uma mesa cheia de homens e onde conseguiu um cigarro, por ali ficando, conversando e fumando até que o fogo se apagasse. Depois voltou ao banco, e dali foi à esquina, e logo ao banco, e à esquina, e posteriormente à rua onde ela e a morena tinham saído da outra vez, logo depois da anã. Esses deslocamentos pareciamnos um tanto intencionais, não meramente uma caminhada descomprometida de um local ao outro, mas distanciamentos e aproximações lentas e sobretudo intencionais. Enquanto isso a morena permanecia sentada, no mesmo banco, mas com outros cigarros. Logo a loira voltou, com o mesmo andar e o mesmo deslocamento. Até que parou um homem para conversar com a loira, um senhor que aparentava ter entre 60 e 70 anos, carregando uma espécie de bengala. Eles ficaram a conversar por um tempo e logo o senhor foi-se embora para um lado da praça.

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Camburão no Brasil é um carro de polícia grande onde geralmente se colocam as pessoas que são detidas e levadas à delegacia.

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Neste momento apareceram amigos da Raquel, um rapaz e uma rapariga com um bebé de quatro meses que era carregado pelas costas da rapariga. Depois de um tempo de conversa, a Raquel explicou-lhes o que estávamos a fazer ali, e eles, por morarem perto da praça, já sabiam um pouco do movimento da prostituição naquele local, e contaram-nos alguns detalhes sobre os cafés que algumas mulheres frequentavam, além de pensões que elas costumavam usar para levar os clientes para realizar o programa. Enquanto a Raquel conversava com os amigos, Gustavo continuou a observar as mulheres e percebeu que o senhor que tinha ido embora chegou até à esqui na, voltou a olhar para a loira e imediatamente virou à esquina. Nesse momento a loira dirigiu-se ao local onde o senhor foi, seguindo o mesmo caminho. Enquanto isso a morena, que continuava a fumar sentada no mesmo banco, foi abordada por outro senhor que se sentou ao lado dela. Eles conversaram um pouco e logo se levantaram juntos, saíram a caminhar na direção oposta à que a loira e o senhor seguiram. O fim da observação foi por volta de 18h45.

Igreja de São Domingos Raquel Carvalheira (com Gustavo Monzeli) Entrámos na Igreja de São Domingos, no centro de Lisboa, sem um foco de observação definido. Ao longo da cerca de uma hora que aí estivemos, cin co personagens foram constantes e mereceram especial atenção. Dois deles trabalham na igreja, a apressada e aparentemente sisuda senhora das limpezas, que varria e lavava os diversos altares que compõem a igreja, sobretudo com santos e santas, e um rapaz entre os 23 e 25 anos, que vende velas num pequeno espaço à entrada da igreja. As outras três personagens são dois homens e uma mulher de origem africana. É através deles que construímos esta narrativa; falaremos deles, acompanhando os seus movimentos, já que eles estiveram sempre presentes nos nossos. Um dos homens e a mulher aparentavam ter trinta anos; o outro seria um pouco mais velho. Não os

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conhecemos, mas damos-lhes nomes para que sejam mais fáceis de identificar. O homem mais velho será o António, o homem mais novo João e a mulher será a Júlia. A observação e escrita foram discutidas pelos dois, atentos às movimentações das pessoas neste espaço circunscrito, e por isso, este é de alguma forma um texto a duas vozes. Se as personagens que referimos foram recorrentes ao longo do tempo da nossa observação, elas circularam entre outras, anónimas. Uma igreja no centro de Lisboa atrai turistas, sobretudo famílias e casais de várias idades, que andam descontraidamente pelos corredores laterais do templo, observando as imagens dos santos, os locais das velas, olhando sempre para o altar central e para cima, talvez na expectativa de ver um teto tecnicamente trabalhado. Os crentes, por outro lado, são maioritariamente pessoas idosas, homens e mulheres, e concentram-se na parte dianteira ou traseira das longas filas de cadeiras que compõem a nave central. Expressam a sua religiosidade através da oração em genuflexão, da recitação do terço ou ainda do sinal da cruz, e comentámos o ar de sofrimento dos seus rostos e a preocupação expressa nas suas corporalidades. O silêncio contrasta com o exterior é acompanhado de uma suave música sacra. Alguns lugares afiguram-se particularmente importantes na expressão da devoção. Entre as imagens, a Virgem Maria, que se encontra na parte inferior esquerda da igreja, perto da porta, merecia um dos mais extensos suportes de velas, inclusive electrónicas, e a maior concentração de pessoas. Este local parecia ser passagem obrigatória de oração. Outro local, na nave direita da igreja, perto do altar, contém uma Pietà, uma imagem da Virgem das Dores com o seu filho descido da cruz, já morto e no seu colo, e uma tumba de vidro com uma imagem de cristo em tamanho natural com as chagas bem visíveis. As imagens pareceram-nos mórbidas. Como a imagem da Virgem Maria, este altar parece atrair particularmente a devoção dos crentes e tem ao lado um grande suporte para velas. Uma caixa de esmolas encontra se perto, com o descritivo “Almas”, remetendo imediatamente para uma espécie de economia do etéreo. Uma pequena imagem de Cristo com um manto vermelho mereceu a nossa particular atenção. Várias pessoas tocam o pé direito desta imagem, ou ainda a base dourada que o sustenta, e parecem fazer uma prece. Quando nos aproximámos da 29


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imagem vimos que pequenos ex-votos, placas em metal, estão coladas no altar de madeira que sustenta a imagem. Expressam agradecimento pela graça de Jesus. Voltemos agora às nossas personagens. No início do nosso roteiro decidimos falar com o rapaz que vende as velas, para perguntar se existiam missas e a que horas. Foi este o momento em que observámos pela primeira vez a entrada de António, João e Júlia na igreja. Falavam com o rapaz das velas algo que não entendemos e a mulher comprou uma ou outra vela, que colocou no altar da Virgem Maria. Assim que saíram dali, comprámos uma vela e perguntámos sobre as missas. Sentámo-nos ao pé da imagem da Virgem Maria, guardada por outras duas pequenas imagens dos pastorinhos, Francisco e Jacinta Marto, e observámos ex-votos de mármore que expressam algum tipo de agradecimento, colocados na base do altar. Um deles dizia “Eterna gratidão” e tinha umas iniciais. Movemo-nos depois para um conjunto de cadeiras que se encontram entre a nave esquerda e o altar, onde vimos João, o rapaz mais jovem, e Júlia sentados a rezar. O homem mais velho, António, não está com eles. É nesse momento que notamos pela primeira vez que uma mulher toca na base da imagem de Jesus Cristo, o tal coberto por um manto vermelho. E é aí que decidimos observar de perto essa imagem, até então, uma entre tantas e que percebemos que é recorrentemente tocada e não apenas orada de distante como as outras imagens. Um certo roteiro da devoção pareceu-nos claro. A entrada pela igreja, a passagem e realização de uma oração em frente à imagem da Virgem Maria, o seguimento pelo corredor lateral, onde se olha para o Santo António, São Francisco de Assis e Santa Clara de Assis. Depois a transição para a nave esquerda, com a imagem do Sagrado Coração de Jesus. A genuflexão e a realização do sinal da cruz em frente ao altar. O caminho leva à nave direita, com a Pietà e a imagem de Jesus com o manto vermelho. As pessoas seguem depois pelo corredor lateral direito, já prestando pouca atenção à sucessão de imagens de santos, Santa Justa e Santa Rufina, São Domingos e Nossa Senhora do Rosário, e saem pela porta que é também de entrada. O rapaz das velas apressa-se a atravessar uma porta lateral à direita do altar, que deixa aberta, e é aqui que as nossas personagens, António, João e Júlia voltam a chamar-nos a atenção. Sentam-se perto de nós e falam com o rapaz das velas. Aí esperam um pouco. O rapaz das velas entra no altar e parece preparar o espaço para a realização da missa: coloca o cálice e a taça das hóstias no altar, testa o microfone de um púlpito. 30


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António, João e Júlia dirigem-se então para umas cadeiras, perto do lugar que pensámos ser o confessionário e de que tínhamos falado poucos minutos antes. António desaparece. João e Júlia sentam-se. O padre surge então, envergando uma longa túnica branca e uma estola roxa, e dirige-se para o confessionário. Aí ouve primeiro João e depois Júlia. Logo que terminam perdemos de vista as nossas personagens. À saída, perguntamos ao rapaz das velas, que entretanto voltou para a entrada, se existe um panfleto com a história da igreja. Aponta para um placard. Perguntamos se vai haver missa, já que assistimos à preparação do altar. Diz-nos que às 17.30 há a Reconciliação, ou seja, a recitação do terço.

06. Martim Moniz Muralhas móveis? Márcio Sá (com Joana Vasconcelos)

A praça do Martim Moniz, situada a menos de um quilómetro da baixa lisboeta, antes frequentada sobretudo por alguns moradores da Mouraria — membros de comunidades imigrantes diversas (africanos, indianos, chineses, entre outros) — e por elementos de franjas pobres e socialmente estigmatizadas da população p ortuguesa (toxicodependentes, alcoólicos, prostitutas), foi urbanisticamente reabilitada há cerca de mês e meio. O investimento económico e simbólico feito na praça visa, através de um programa municipal que atribuiu a exploração comercial de parte do loca l a uma empresa privada, dinamizar um espaço urbano antes estagnado ou irrelevante para a maioria da população da cidade e dos turistas, transformando, nos planos urbanísticos e no imaginário sociocultural da cidade, a anterior fraqueza daquela praça (como gueto étnico e frequentado por pessoas de franjas desfavorecidas da população portuguesa) numa nova força, de multiculturalidade cosmopolita e fluidez de fruição turística. Esta transformação da fraqueza em força, sob os auspícios do município, está de certo modo visualmente inscrita na própria praça, materializada nas muralhas ali presentes que dividem o espaço em duas grandes áreas. Uma, a área do “mercado da 31


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fusão”, dispõe de esplanadas e quiosques onde se vendem bens alimentares e bebidas de origem “exótica” ou dita alternativa (sushi, comida indiana, chinesa, africana, e refeições à base de produtos de agricultura biológica) a preços bastante superiores aos dos cafés ou restaurantes envolventes nas ruas da Mouraria ou na Av. Almirante Reis, ostentando nomes que vincam a trademark do cosmopolitismo alternativo, como “Casa da Preta” ou “Família Latina”. Esta área de consumo é pontuada, aqui e ali, por bancos estreitos não pertencentes a nenhum quiosque onde o não -consumidor “à paisana” pode ficar e ouvir a volta ao mundo em 80 minutos que o DJ do "mercado da fusão", do alto do seu púlpito tecnológico, partilha com clientes (maioritariamente jovens e europeus, tanto portugueses como turistas) e não clientes, num roteiro que vai de Frank Sinatra a Seu Jorge, passando por rap norte-americano, drum’n’bass, bossa nova, música contemporânea de capitais africanas e fado em toada pop. A outra área, do outro lado da muralha, próxima do Hotel Mundial, não apresenta qualquer proposta comercial e os seus muros, definindo a cintura da praça, podem ser ocupados sem constrangimentos monetários por qualquer pessoa. Ali, uma profusão labiríntica de repuxos de água movimenta a paisagem visual de quem se senta e assiste aos ziguezagues infantis e de turistas acalorados que se refrescam, entre cliques e flashes de máquinas que agora objectivam, com poses e sorrisos para a posteridade, um espaço que antes constituía um soluço urbanístico e cultural no percurso turístico. A transformação da praça implica também uma transmutação de muralhas: da policial ou social, face a quem a frequentava, para salvaguardar quem ali passasse, para a videovigilância destinada a proteger quem ali vem, investe e consome, com câmaras incorporadas nos candeeiros e bem anunciadas em placas. Textualmente registadas, há também pistas sugestivas de uma tensão histórica e social de reivindicação de um espaço. Nas muralhas que dividem a praça, encontra se uma placa inscrita com a explicação do seu nome: Martim Moniz, fidalgo e capitão do exército de Afonso Henriques, cuja acção foi decisiva na batalha de Ourique em 1147 para a transformação de Al-Ushbuna em Lisboa e que, "trespassado pelas lanças mouriscas, morreu por Lisboa cristã". Por outro lado, e no outro extremo da praça, na parede do metro que dá para a esplanada, lê-se, escrito a spray: “ESTA PRAÇA AOS IMIGRANTES”.

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Lidas no momento actual, ambas as inscrições deixam um rasto de ironia em quem as lê e observa a área envolvente. Alguém que morreu por uma Lisboa cristã, recordado oficialmente num local que se converteu historicamente no epicentro da concentração de imigrantes de origens diversas e religiões múltiplas, que ali vivem e permanentemente cruzam a praça entre os dois centros comerciais — o da Mouraria e o do Martim Moniz —, trazendo e levando produtos para venda e falando em múltiplos idiomas; por outro lado, o registo, por parte de um indivíduo ou grupo anónimo, da preocupação suscitada pelos planos do município de uma suspeita operação de higienização da cidade — a de empurrar quem lá mora para outros espaços menos visíveis, por ser este demasiado central e potencialmente turístico para, economicamente, permanecer “praça baldia”, utilizando precisamente a multiculturalidade, a diversidade e a diferença como instrumento de lavagem do espaço, percorrido simbolicamente em toda a sua extensão por repuxos que, agora reactivados, dinamizam fluxos culturais que ali se materializam e propõem. Mas estas ironias — a de evocar Martim Moniz morrendo por uma Lisboa cristã e a de reivindicar a pertença aos imigrantes de uma praça que era o centro de um gueto

étnico,

socioeconómico

e

cultural

antes

estigmatizado

e

agora

promocionalmente multicultural — coloca também a questão da unicidade e linearidade de intenção e resultado, e da precariedade de ambos, bem como da solidez ou esboroamento da distinção entre estratégia e táctica de Michel de Certeau, relativamente às formas como as pessoas se apropriam dos espaços, distintas das projectadas e/ou temidas por diferentes quadrantes sociais, económicos e políticos. Vinga necessariamente o projecto daquele que é tido à partida como mais forte, da instituição ou do poder com controlo espacial? E qual a homogeneidade do forte e do fraco? A pertença da praça aos imigrantes, reivindicada porque "ameaçada", implica atentar em como este novo espaço é também habitado e apropriado pelos moradores de comunidades imigrantes que ali se encontram — mais no espaço de não consumo, a beber iogurtes ou cervejas comprados no supermercado, uns sentados apenas, outros a passear de um lado para o outro, um grupo de mulheres indianas à conversa em círculo no recato da sombra e da ocultação do arvoredo que filtra as olhadelas ocasionais para os seus filhos que correm por entre os repuxos de água. Mas eles ressurgem também como empregados nos quiosques, alguns como donos, outros a 33


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falar com clientes sobre negócios noutros espaços, alguns a interagir com os turistas (jovens de origem africana num flirt com duas norte-americanas), outros a vigiar quem utiliza a casa de banho e a trancá-la depois de o cliente, ou de alguém com ar limpinho que pediu para lá ir, sair. (Eu passei o teste.) Há novos ocupantes da praça que são também elementos de comunidades imigrantes, há continuidade mas também mudança de funções e propósitos de quem já lá ia, há uma habituação gradual ao novo espaço e uma mútua constituição do mesmo por aqueles que agora lá vão e os que já lá estavam. Será que a pertença da praça aos imigrantes, simbolicamente projectada através do multiculturalismo promovido e transaccionado, mas física e economicamente distinta, com outras funções ou ocupando outros espaços, constitui uma margem mais agradável hoje do que o centro da marginalidade que eles antes ocupavam? E mais agradável para quem? Quem são os mouros e quem são os cristãos, hoje? Quais as novas coordenadas das muralhas?

Corredores Orientais na Velha Lisboa Joana Vasconcelos (com Márcio Sá) Entramos no Centro Comercial da Mouraria e lá percorremos seus corredores. Eis um lugar no qual se pode ver mais proximidade com outro continente do que com algumas das ruas da Velha Lisboa que o circundam. Nota-se que estamos em Portugal por algumas bandeiras, pela ordenação dos correios, em propagandas escritas em português e mesmo na possibilidade de encontrar e conversar com guineenses. Além da etnia revelada em seus olhos, cor da pele e postura corporal, pessoas de vínculos afetivos e históricos com outros distantes lugares do globo ocupam e transitam por tais corredores, comunicam-se noutros idiomas. Um indiano apresentou-nos os seus produtos em inglês. No anúncio de “moda italiana”, acima estava o dizer em mandarim. Sentadas em cadeiras de praia, comendo amendoins, assistem uma celebração de casamento indiano, ou então conversam no seu idioma materno ao telefone enquanto alguns passam vestidos com batas brancas ou de colorido forte. Outros, vestidos de jeans e malha, lá estão à espera de um novo cliente. Há pessoas de origem 34


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cigana e africana transitando. Será que levam aquelas roupas com tecidos e cores diferentes naqueles sacos grandes? Serão elas para revenda? Noutro canto, conversam ali mesmo com um conterrâneo que pode estar sentado numa caixa de papelão (repleta de mais mercadorias) ou apoiado num carrinho de carga, daqueles que se utiliza para o transporte de produtos para revenda. São pessoas que parecem viver entre dois “mundos”. Ao mesmo tempo, aqui e lá. Estar à vontade parece ser comum naquele lugar, ele parece ser uma extensão das suas próprias casas (ou seria dos seus lugares de origem?), mas e quando saírem às ruas? Como se sentirão? Há algo mais que também nos parece diferente entre eles, especulamos depender do lugar que ocupam na hierarquia implícita que deve haver no próprio centro comercial. Chineses, indianos e africanos lá estão em posições, negócios ou ocupações que podem diferenciá-los. A postura perante quem circula, o tipo e o lugar do negócios, ou mesmo quem faz a limpeza e a segurança são elementos possivelmente distintivos em tal hierarquização. Oferta-se para a compra um tanto de quase tudo. Esperam vender produtos dos lugares de onde vêm, há caixas com eles por todo lado. São roupas das mais diversas, muitas de colorido forte. Para homens, mulheres e crianças. Biquínis expostos parecem-nos diferentes daqueles que portuguesas “bem nascidas” utilizariam. Mas há também DVDs, produtos eletroeletrónicos, especiarias, e são oferecidos serviços de cabeleireiro, barbearia, contabilidade, viagens, alfaiataria etc. Estes últimos não ocupam propriamente os lugares centrais e parecem ser também (ou mesmo principalmente) ofertados para eles próprios. Fica a sensação de que não só o que vendem, mas também aquilo que vivem, está disposto-e-exposto por aqueles corredores. Foi por entre eles que vimos crianças indianas a descer conversando em português e outras chinesas a subir, em mandarim.

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07. Instituições Hospital Júlio de Matos Sonia Miceli (com Tiago Marques) O hospital é constituído por vários pavilhões situados num recinto, que inclui pequenos jardins e outros edifícios, como o da Informed, ligados ao hospital, mas que parecem não lhe pertencer directamente. Dirigimo-nos para o café e, após ter pedido algo para beber, sentamo-nos na esplanada. Começo a observar as pessoas que acabam de almoçar ou que tomam café com o propósito de distinguir os pacientes dos que não o são – médicos, auxiliares, visitantes e/ou acompanhantes. Em alguns casos é relativamente fácil, devido à postura e ao aspecto da pessoa. Em outros, meno s. Por exemplo, numa mesa ao nosso lado, estão sentadas três pessoas: uma mulher de cerca de 60 anos, outra mais nova e um homem de meia-idade. Ao grupo, junta-se pouco depois um rapaz de cerca de 20 anos. Não parecem trabalhar aqui. Haverá um doente entre eles ou serão apenas visitantes? Tento ouvir a conversa, mas não consigo – não sendo falante nativa, tenho dificuldades em apanhar as conversas dos outros. O Tiago ajuda-me e compreendemos que a doente era a mulher mais nova, que ia fazer um tratamento para toxicodependentes. A conversa vertia sobre o tema da felicidade e a mulher dissera que o objectivo dela era ser feliz. Porém, o homem empenhou -se em tirar-lhe essa ideia da cabeça, dizendo: “Nunca vais ser feliz”. Noutra mesa ao lado da nossa, há dois homens de cerca de 60 anos, que são visivelmente doentes mentais. Um tenta entabular conversa com o outro, mas não dá, pois este parece não ouvir ou não compreender; é, de facto, muito apático, não se mexe, não toma qualquer tipo de iniciativa. O outro, pelo contrário, mostra-se activo e falador. De vez em quando, troca umas palavras com duas mulheres sentadas noutra mesa – parecem se conhecer, devem trabalhar no hospital, provavelmente como auxiliares ou enfermeiras, pois pela postura não parecem médicas –, também para pedir cigarros, o que, como perceberei de seguida, é uma das actividades distintivas dos pacientes do hospital.

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De repente, chega outro indivíduo, cuja forma de andar, roupa e olhar denunciam de imediato a sua condição de doente mental. Anda com uma mão de trás a segurar as calças – está a precisar de um cinto – e nunca a tira. Vem para a esplanada e, sem qualquer hesitação, vai para uma mesa recentemente desocupada, pega num copo que continha um resto de sumo de laranja e bebe-o de um trago. Esta acção, surpreendente para mim, não causa qualquer reacção no outro sujeito – o da mesa do lado –, que tinha estado a observar em silêncio. O homem vira-se então para aquele pedindo um cigarro. Como o outro diz que não tem, vai-se embora – sempre segurando as calças com a mesma mão. A esplanada começa a ficar vazia: passou da hora do almoço e as pessoas já devem ter voltado para as suas actividades. Estamos a ponto de ir embora, quando chega uma senhora com uma miúda de cerca de 8 anos. Suponho que se trate de uma mãe, que acompanhe a filha a algum tratamento. No entanto, o que vejo a seguir deixa-me duvidosa: a mulher aproxima-se dos dois indivíduos que continuam sentados ao meu lado e pede um cigarro. Este gesto é, pelo que pude observar, muitíssimo frequente entre os pacientes do hospital e o facto de ela ter feito isso assim que chegou, dirigindo-se aliás só a pessoas claramente doentes (será que os conhecia?) leva-me a pensar que ela também seja. Entretanto, a miúda mantém-se calada e séria. Quando as duas abandonam a esplanada, a mulher mostra-se incerta sobre a direcção a tomar e parece ser a miúda quem conduz... Deixamos a esplanada e começamos a andar pelo espaço do hospital. Nessas andanças, encontramos o tipo que segura as calças, na mesma postu ra, e o outro, a quem sorrio e que me responde sorrindo e acenando com a mão. Na entrada do pavilhão "Gestão de doentes" há três pessoas sentadas em outros tantos bancos. Um deles pede cigarros aos outros, que o ignoram. Pedir cigarros responde não só ao desejo de fumar, como também à necessidade de os pacientes se entreterem, pois a procura do cigarro e o fumo ajudam-nos a ocupar o tempo, em dia longos e provavelmente pouco variados. É também uma forma de se abordar as pessoas, conhecidas ou não. Junto ao pavilhão, um homem de meia-idade, sentado num banco, olha fixamente para uma planta seca e rega-a abundantemente com a água fresca da sua garrafa. A seguir, bebe e continua a olhar para a planta. Está muito calor. 37


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Num pequeno jardim, uma rapariga arranja as unhas a uma senhora idosa. Noutro, um homem está deitado à sombra de um arbusto. Parece estar a dormir, mas, ao darmos a volta, notamos que tem os olhos abertos e olha para nós. Ter-se-á sentido observado? Decidimos ir embora e começamos a procurar a saída: não é fácil alguém se orientar aqui! Mas quando, por fim, a encontramos, há algo que me chama a atenção: um grupo de pessoas, sete homens e uma mulher, a andar juntos, relativamente devagar. Na tentativa de descobrir para onde vão (passear? para um tratamento?), começo a (per)segui-los. Neste, como nos casos anteriores, interessa-me perceber como vivem a sua quotidianidade os doentes mentais, o que fazem no tempo livre, a sua forma de utilizar o espaço do hospital e o tipo de relações que estabelecem (ou não) entre eles e com as pessoas que trabalham lá. A relativa solidão que observei e a pouca interacção poderão prender-se não só com as suas condições de saúde, como também com os constrangimentos impostos pelo ritmo do hospital: num lugar em que os dormitórios e os refeitórios são comuns e as horas do dia pautadas por tratamentos e outras coisas que desconheço, mas imagino, a liberdade do indivíduo é limitada aos tempos livres e, nesse sentido, vagar pelo jardim poderá ser um dos poucos momentos de libertação – inclusive da companhia constante da população hospitalar. A maioria dos membros do grupo não fala e fica a alguma distância dos outros. Dois ou três falam com a mulher que fica no meio, que aparenta a posição de quem conduz o grupo; deve ser uma auxiliar do hospital, enquanto os outros são claramente pacientes. De repente, um deles pára para espreitar dentro do contentor da reciclagem. Algo deve ter captado o seu interesse e chama a mulher para lhe mostrar. Ela e mais dois ou três também olham e trocam umas palavras. A forma como o homem se dirigiu à mulher e a reacção desta – amável e condescendente – confirma a minha suposição inicial: ela parece ser alguém em quem os outros confiam e a quem se dirigem para obter aprovação ou conselhos. O grupo prossegue o seu passeio, mas nós não podemos ir atrás deles...

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Atitudes corporais e posicionamentos num espaço em recomposição Tiago Pires Marques (com Sónia Miceli) O Largo do Intendente encontra-se dividido em dois espaços sensivelmente da mesma dimensão por uma palco em construção. Chamarei Zona A ao mais próximo do Martim Moniz e Zona B à metade oposta. Tem um corredor de circulação na sua retaguarda, a Rua dos Anjos, e comunica com a Av. Almirante Reis por duas ruas perpendiculares. Forma por isso um recinto relativamente protegido. Chegámos ao Largo do Intendente pela Rua dos Anjos, e sentámo-nos na esplanada de um café no ângulo da Zona B com uma saída para a Av. Almirante Reis. Foi o nosso primeiro ponto de observação. Na entrada da Rua dos Anjos, há duas mulheres. Usam saia e calções muito curtos e camisas justas, estão muito pintadas, mas é sobretudo pela atitude que as identifico como prostitutas. Movem-se com gestualidade expansiva, requebros de ancas, fazem sobressair as suas formas corporais, riem-se e olham à volta. Junto delas há 3 homens, com quem conversam animadamente. Um deles abraça uma das mulheres pelas costas, em atitude de alguma intimidade erótica mas numa postura que não é usual ver num casal num espaço público, mas também não exactamente a de um cliente, ou do chulo. Qual é a sua relação? O que permite esse modo peculiar de proximidade física? A apresentação e atitude corporal destas mulheres contrastam fortemente com a da mulher-polícia parada junto ao café onde estamos. A farda, o boné e os óculos escuros apagam as suas formas, impedem que seja reconhecida e que se saiba para onde está olhar. Apoia as mãos no cinto, por vezes acaricia o coldre. A sua atitude sugere-me masculinidade. Mas tal como as prostitutas, o seu modo de presença é a espera e uma aparente inactividade. As prostitutas marcam o lugar como marginal, mas a presença da polícia, numa atitude que poderia dizer simétrica da das prostitutas, assinala a ordem e o Estado. Há uma indiferença mútua entre ambos. Uma estranha convivência entre marginalidade e autoridade. Da mesa observamos alguma movimentação na Rua dos Anjos. Há uma porta aberta, por onde havíamos passado sem perceber de que tipo de lugar se tratava (um café? Uma garagem? Público ou privado? Mais tarde veremos que é um bar). Em 39


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frente da porta há mesas de plástico onde se senta um grupo de homens, jovens e de meia-idade. Não consomem nem mantêm conversa. Também eles me sugerem atitude de espera e aparente inactividade. Chegam dois polícias, homens, que também manifestam indiferença em relação ao que se passa à entrada da Rua dos Anjos. Observam e conversam sobre uma mota. O café onde estamos liga-se ao processo de reabilitação simbólica do espaço (um certo tipo de emburguesamento que se joga na apropriação de espaços populares ou marginais). A oferta, a decoração, a apresentação e modo de falar das mulheres que fazem o serviço assim o sugerem, tal como a clientela: não é claramente um café de bairro nem se inscreve na lógica que atribuo aos bares e cafés que vimos ao passar na Rua dos Anjos. Na zona A, o nosso ponto de observação é um banco no meio do Largo . Aí observo 4 mulheres sentadas no chão, à porta de edifícios não utilizados. Uma delas está rodeada de sacos de plástico e totalmente coberta com roupas velhas. Identifico esta mulher como sem-abrigo e, num primeiro momento, também as outras três me parecem sem-abrigo, já que estão sentadas de forma idêntica. Duas são de pele escura, a outra é branca. Pouco depois, dou-me conta de que são também prostitutas, excepto talvez a mulher rodeada de sacos de plástico. Contrariamente às mulheres da Zona B, estas estão alheadas umas das outras e as duas mulheres de pele mais escura aparentam mal-estar. Mais tarde, uma delas, talvez sentindo-se observada, levanta-se e sai do nosso campo de visão, indo colocar-se na Rua dos Anjos. Vários homens vindos do lado da Avenida passam muito junto destas quatro mulheres e observam-nas rapidamente sem pararem. Estes homens fazem razias. Sentados num banco a alguma distância do nosso, um grupo de 9 homens de origem africana conversam animadamente, indiferentes às mulheres, como se as vissem todos os dias. A sua atenção é mais cativada por duas crianças que ali brincam. Nesta zona do Largo, vêem-se barracas fechadas para venda de bebidas à noite, nas alturas de actividade no palco. Há alguns gradeamentos. Também deste lado do Largo, os lugares, objectos e atitudes sugerem uma situação de espera. O Largo não vive só à noite, há ainda alguns lugares de comércio de bairro, mas orienta -se para a vida nocturna e para receber quem vem de fora em busca de algo que ali, e só ali, se 40


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oferece. Mostra-o também a situação de abandono em que estão alguns elementos decorativos da praça (uma fonte), contrastando com o investimento nas actividades de diversão. Deslocamo-nos para a saída da zona A pela Rua dos Anjos, mas aí a degradação urbana (estrada não alcatroada, prédios em ruína), a maior densidade de bares sugerindo actividades de tráfico de droga e alguma violência verbal fazem-nos recuar. Em suma: trata-se de um espaço investido por várias lógicas, observáveis desde logo em aspectos urbanísticos, nas escolhas de prioridade de intervenções de reabilitação e pela presença de um novo tipo de comércio. A valorização urbana e simbólica convive com zonas de degradação urbana e marginalidade. A Zona B está mais valorizada que a Zona A. Os modos de sociabilidade, ou de isolamento, das prostitutas observadas, a proximidade entre a polícia na Zona B e as prostitutas, a aparente intimidade amigável entre as mulheres e o grupo masculino, e o meu próprio erro interpretativo tomando as mulheres da zona A como sem-abrigo, sugerem alguma hierarquia entre as prostitutas – talvez determinada pela sua situação no bairro, maior ou menor familiaridade com os moradores, situação legal, recursos financeiros, protecção. O território do Largo surge pois como segmentado e a intervenção em curso criou possivelmente novas condicionantes territoriais com impacto nas actividades que aí já se exerciam. A actividade da prostituição adaptou-se a essa segmentação utilizando as novas coordenadas territoriais para se organizar e manifestar uma lógica que lhe é interna.

08. Andanças Transições Mara Leite (com Susana Boletas) São duas da tarde num dia ensolarado de Julho em Lisboa. Caminhamos até a entrada do metro de Entrecampos e a luz que ofusca os olhos dá lugar a outra luz. O espaço do metro revela uma outra cidade, ainda que as suas personagens sejam as mesmas que andam na superfície. Será? Aqui andamos sorrateiras e a esta altura são 41


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poucos a estar neste espaço amplo, mesmo sendo uma grande estação que interliga também comboios. Para mim isso é uma surpresa absoluta, por estarmos na capital de um país. O subterrâneo parece não conectar as pessoas que, solitárias, seguem em seus mundos: lendo, ouvindo música, com seus celulares ou simplesmente absortas em suas viagens internas. O metro para a estação do Marquês de Pombal aproxima-se e aqueles que estavam sentados levantam-se apressadamente. A condutora tem o olhar fixo à sua frente e pergunto-me como será este trabalho que conecta e transporta sem que o condutor faça contato com os viajantes da sua própria carruagem. As portas automáticas abrem-se... poucos saem e outros poucos entram ordenadamente. Uma bênção de tranquilidade num dia laboral de um verão quente. O metro, dentro ou fora das carruagens, é atravessado pelo consumo com suas máquinas de comida e bebida ou anúncios de promoções irresistíveis em cores e letreiros chamativos. Pouco se ouve das palavras, à exceção de duas mulheres que conversam animadamente sobre suas vidas. Experimento o metro como se estivesse numa canoa. Conheço a existência de ambos mas não os utilizo costumeiramente. Como será que estas pessoas vêem este espaço de convivência habitual? A Susana diz que o utiliza amiúde e que é prático. Então não seria uma canoa para ela, penso... É um transporte seguro, limpo e com horário fixo que permite a população utilizá-lo para planear bem as suas vidas. Talvez essa gente pense que poderia ser mais frequente, mais confortável, mais rápido ou mais barato. Quando usamos diuturnamente algo, a sua utilidade esvai-se com o tempo e buscamos outras necessidades... As estações sucedem-se e cada uma abriga uma obra de arte, ou várias. Como se a linearidade do meio fosse enriquecida por oásis para os sentidos. Todos os sentidos. A memória desta cidade é enaltecida com os azulejos a cobrir as suas paredes, mesmo aqui em baixo. O trânsito modorrento do metro é assaltado por cores e criatividade em diversas proporções. Aqui a palavra e o sentido da escrita, como marca 42


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da nossa existência enquanto humanos, apresenta-se. Andar de metro é mais do que apenas mover-se de um lado a outro sem congestionamentos. Chegamos ao Marquês de Pombal, outra estação que serve de transbordo, um pouco mais movimentada que a anterior mas ainda sossegada para um dia laboral. Entre as linhas do vai e vem uma estátua do Marquês de Pombal espreita as transições das nossas individualidades: ouvindo música com fones de ouvido, lendo um livro, conversando animadamente em grupo ou olhando para dentro; de bermudas, shorts, sandálias, com chapéus ou paletós. Pessoas de todos os lugares, cores, sexo e idades... Na estrutura, fora o Pombal, esta estação é comum. A carruagem chega e a dança de levantar-se, aproximar-se e ordenadamente acomodar-se repete-se em silêncio. Agora vamos sentadas de frente para a marcha, ouvindo poucas conversas aqui e ali. Perto da porta, uma senhora veste uma camiseta rosa com o desenho de uma caveira em renda preta: um paradoxo bem-vindo de virilidade e delicadeza. À saída para o Chiado atravessamos um túnel de azulejos brancos que seriam monótonos se não fosse a iluminação azul em certos pontos. Iluminam, como tochas modernas, este enorme buraco que liga vários mundos. Nas máquinas azuis há gente comprando os seus bilhetes, com as suas maletas, para uma outra viagem. O ponto de venda de bilhetes está fechado e seus funcionários conversam e observam o movimento dos torniquetes. Ir e vir, ali, não depende deles. Para sair deste profundo mundo subterrâneo, três lances de escadas rolantes. Felizmente! No teto, próximo à saída, desenhos de pessoas com asas. Aqui, voamos para um outro mundo: o Largo do Chiado. São quase três da tarde.

O gosto da cerveja: o sentido do consumo Mara Leite (com Susana Boletas)

Susana queria estar na esplanada do Chiado e ainda que cá estivesse quatro vezes, não lembrava deste lugar. Pensava que não cabia uma esplanada por ali pois esplanada 43


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para mim significava terreno largo, amplo e extenso ladeado por avenidas monumentais. Ao sairmos do Metro entendi a esplanada portuguesa... Sentamos na esplanada d'A Brasileira, debaixo de um imenso sombreiro branco. Eram 15 horas e estávamos a poucos passos do Pessoa e do Chiado. Susana roía as unhas vermelhas da mão direita enquanto esperava a sua cerveja em lata pois infelizmente não havia de grifo. O vento que soprava mansamente na esplanada remexia teimoso seus cabelos enquanto seus clássicos óculos de sol refletiam a sua impaciência ao revirar a caneta pousada a sua frente. A esplanada estava rodeada de pessoas de toda sorte de lugares: sentadas em grupos, passeando pela rua num sobe e desce entre os bares, lojas, Metro e fotos na companhia do Pessoa- sossegadamente sentado de perfil para nossa mesa. Esta gente comporta boa parcela de turistas pois ouvimos entre o eléctrico 28, os carros e as obras próximas, uma babel tão próxima quanto incompreensível se não se apura bem o ouvido: um dos sentidos que afloram. Outra gente que passa nesse vai e vem, segue rápido para suas paragens, alheia ao movimento das lojas, bares ou do Pessoa, certamente por serem residentes na sua rotina diária. Ali, absorta, constata o ostracismo daquele poeta português do século XVI que inscreve aquele sítio mas perde em popularidade para o assedio sempre fervoroso e frequente em direção ao outro poeta contemporâneo. O encarregado de mesa de nome Augusto chega com as cervejas e a conta. Duas cervejas custam seis euros e ela diz: É caro! O ambiente transpira descontração e ares de férias com vendedores de rua a explorar sua lábia a este público tão disperso e fugidio. O movimento constante dos pedestres revela a face do consumo nesta zona de luxo de Lisboa. Há o consumo visual de pessoas que passam a fotografar e olhar vitrines mas nem todos sucumbem a entrar e sair cheios de sacolas. Alguns sequer entram ainda que apreciem longamente o apelo colorido das vitrines. Penso no papel da vitrine que contribui para o Chiado tornar-se um produto de consumo. 44


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Na mesa ao lado um senhor segue concentrado no seu tablet, copo com dois dedos de água e xícara vazia manchada de café. É curioso sermos servidas fora do bar e em frente a um Banco mas ainda assim conectadas A Brasileira. Ao redor todos os sons do transporte público: o elétrico, a saída do Metro, carros próprios... Trânsito a nossa volta... curioso ter tanto trânsito ao redor daqueles que sentam... Com certo pesar ela comenta: Todos vão direto pro Pessoa e esquecem o Chiado que está logo ali ao lado... Os próprios turistas fazem o trânsito do capital. Vir, viver, ver o local pessoalmente. Um bem de consumo para ser consumido... Nota-se que alguns clientes são regulares pelo tratamento que recebem do Augusto, ou seja, faz parte da rotina deles. Na mesa ao lado um homem pede esmolas a um grupo de tios loiros, com cara de turistas... Os ritmos de Lisboa se entrecruzam, lento e rápido: os que passam e os que ficam. Somos interpeladas por um senhor que vende postais para incentivar aos jovens seguirem seus estudos. Ela dá-lhe umas moedas e descobre que é um postal do ISCTE e diz: É um postal free mas o serviço, não! Com a atenção voltada para a vizinhança ela constata que o registro fotográfico serve para mostrar a amigos e familiares que estiveram naquele local e quem sabe postar no Facebook para que desconhecidos saibam do mesmo. Neste espaço o visual tem precedência sobre os outros sentidos. É muito barulhento mas as pessoas estão cá, com calma. Assim o visual é mais pregnante que o barulho das pessoas ou o gosto da cerveja. O sentido do consumo. Ela pensa alto: A lógica da esplanada de estar fora, de ver as outras vistas. De estar a consumir. E a gente consome também para satisfazer o gosto, a gula! 45


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Há questões de cosmopolitismo... Mas quem vem de fora não se mistura ainda que estejam juntos... É engraçado falar dessas coisas tendo estado aqui tantas vezes... nunca tinha feito essa reflexão. Paga-se mais na Esplanada que dentro da casa. Quer entrar? Não! Aqui é o lugar de Lisboa desde tempos! Um senhor com a T-shirt de Cristiano Ronaldo me faz pensar em Portugal como um produto do mundo. Uma camioneta FedEx parada no largo... mais um trânsito: de cartas, encomendas... Uma dupla de turistas com Segways pára a ouvir a guia explicar o que significa este sítio. Susana traduz a conversa do inglês que trata do Pessoa e sua importância como poeta, d'A Brasileira como ponto de encontro de artistas e intelectuais mas a guia nem cita o poeta Chiado... Mais barulho vindo de obras próximas... mas ainda assim as esplanadas estão cheias... Um jornalista conhecido entra na Casa Havaneza ao lado d'A Brasileira. Ele não chega a ser uma celebridade. É filho de um escritor famoso mas já o vi em outros cantos de Lisboa. É este, com o capacete... comenta discretamente. … Uma hora depois, um senhor tira a foto do poeta Chiado. Finalmente!

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09. É isto um bairro? Susana Durão (com Carla Almeida)

O lugar da Quinta do Cabrinha é um conjunto de dois blocos de prédios habitacionais, com uma média de 5 pisos, situado junto ao lado norte da barulhenta e movimentada Avenida de Ceuta. Esta é um canal de entrada e saída de pessoas, veículos e bens na cidade de Lisboa. Quem olha para o conjunto habitacional do lado de fora, vê apenas um continuum de prédios num bloco. Do lado de dentro, entramos num pátio para onde todos os pisos e as suas varandas se viram, o que convida, quando não pressiona, à convivência mútua. Quando chegadas a este lugar, por volta das 15h00, julgamos encontrar um bairro residencial sem gente. Mas somos imediatamente surpreendidas pelo movimento intenso de transeuntes: idosas com sacos de compras, crianças de bicicletas, casais de meia-idade e jovens namorados com cortes e cores de cabelo sugestivos, a fazer lembrar os ídolos do futebol. A super-presença do elemento futebolístico no bairro é dada pela vestimenta do senhor Gabriel, o simpático octogenário com quem entabulamos conversa, do lado de fora, antes de penetrar na área residencial. Sentado sobre um lenço branco que tapa um sujo degrau da escadaria que dá acesso ao piso zero dos prédios, o senhor Gabriel assiste à ‘Operação Stop’ da Polícia, do lado oposto das oito faixas de rodagem. É como se fosse um espectáculo de ‘caça à multa’, como diz, numa altura do ano em que os PSPs saem à rua para fiscalizar as condições de circulação automóvel. Bem-posto, Gabriel enverga uma camisa de um intenso vermelho. Na lapela do blazer preto tem uns três pins do Benfica futebol clube. E do lado de dentro do espaço habitacional, um dos principais locais de atração, o clube desportivo do santo António de Lisboa, tem exposto imagens do dito santo e símbolos do Benfica. Somos enredadas nas memórias antigas de Gabriel, bigodinho ao estilo galego, impecavelmente barbeado, ainda a cheirar ao fresco do after-shave. Ouvimo-lo falar dos seus amores, mulheres e filhos; ouvimos-lhe a vida e a morte do filho. Chora-o e 47


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rapidamente se recompõe enquanto vai comentando quem passa: ‘Este [um homem de 50 anos] era um dos meus melhores jogadores quando os treinava na bola, velhos tempos do futebol amador…; Aquela que ali vai põe os cornos ao marido, tem um quiosque em Alcântara, não a viu rir-se para mim?; esta que aqui passou é uma vizinha minha…’ Quando nos despedimos, para o deixar, fica a conversar com uma mulher que parece querer dar início a uma discussão à qual não assistimos. Em pouco mais de meia hora de conversa, Gabriel está longe de imaginar que nos oferece o mote para pensar vários temas associados a esta urbanização, no caso com 14 anos de idade, nascida em 1998 para alojar a população pobre que vivia nas designadas ‘barracas’ do então demolido bairro do Casal Ventoso. 1/ Descreve-nos como viver em lugares e bairros é ao mesmo tempo uma história de vida de casas, famílias e ocupações que se criam e recriam. Os entrecruzamentos deste homem com a cidade são-nos narrados através de casas e elos familiares. Gabriel nasceu e cresceu na Bela Flor, em Campolide, onde trabalhou numa pedreira, desde os 7 anos de idade, para todos os dias poder comer. Quando casou, ainda jovem, viveu na tal casa nos Olivais Sul. Entretanto, diz que fez um filho a uma mulher do Casal Ventoso de Baixo. A pedido da ‘casada’ e da filha de ambos, convenceu a mãe do filho a levá-lo para ser criado na casa dos Olivais Sul, com essa a quem o miúdo passou a chamar mãe. Entretanto, nunca deixou de manter ligações físicas e quotidianas com esta parte da cidade que atravessava também por causa do trabalho, motorista de uma empresa que o levava frequentemente a conhecer as pessoas e as ligações dali. Lá atrás, a sua preocupação era garantir uma estratégia de acesso futuro a um apartamento, quando se começou a falar na demolição do Casal Ventoso. Gabriel conta que residia parte do dia com a mulher na casa dos Olivais Sul. Ali dormia, levantando-se de madrugada para chegar à casa do Vale do Casal onde preparava o café da manhã e lavava a cara numa pia improvisada com água que ia buscar algures no vale. Talvez isso faça com que hoje o que mais valoriza no seu T1, pelo qual paga uma renda de 58 euros (retirados da sua pensão de 450 euros) seja o WC. Nunca antes tivera uma casa de banho. Conseguimos visualizar o apartamento que nos descreve: arrumado, apetrechado de azulejos à entrada e bem limpo no conjunto, essa casa que

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hoje partilha com uma outra mulher. ‘Já não estou na mulher há muitos anos’, diz da primeira. 2/ Gabriel mostra os cartões das associações e entre eles está aquela que o fez, em tempos, aceder aos serviços sociais e de saúde. Trata-se da principal associação do bairro, a IPSS Alkantara. Mais tarde, em conversa breve com a técnica Selma, do Gabinete de Inserção Profissional, e com o Dr. Filipe que, por sorte, nos recebe no Alkantara, que dirige, ficamos a perceber que esta associação foi instalada alguns meses antes do alojamento. Ou seja, este lugar, o conjunto das urbanizações que se interconectam, foram criados para ter uma ‘tecnologia social’ que permita aos habitantes sustentarem-se de algum modo. A intervenção ‘social’ é co-constitutiva do espaço. Gabriel diz que frequentava o posto de saúde do Alkantara até ao dia em que se recusaram tirar duas fotocópias para o bar Águias, o qual dirigia. Sintetiza o conflito com uma exclamação: ‘Eu disse-lhes, os senhores pensam que isto é vosso; mas isto não é vosso; não é de ninguém!’ Este apontamento levanta uma questão importante: Em espaços desta natureza, de quem é o quê, e a que colectivos pertence o pouco que ali está: aos moradores, à Câmara Municipal, à Gebalis (empresa de gestão), ao Governo, às Associações; a quem e a quê? Essa parece ser uma tensão permanente, algo que, afinal, parece também ser co-constitutivo do lugar de realojamento ‘social’. 3/ Gabriel, ali sentado nas escadas públicas, demonstra que essa aparente fixidez dos dias e dos quotidianos, naquele pedaço de betão, é para alguns mas não para todos os que ali vivem (674 pessoas, dispostas em 248 fogos, dizem as estatísticas do lugar). É verdade que tudo no espaço indica que se passa muito tempo no bairro: as cadeiras dispostas em frente ao bar Clube Desportivo do Santo António de Lisboa, um sofá na rua, os matraquilhos, a jogatana das cartas às mesas; o improvisado campo de futebol com jovens e o parque infantil com crianças a brincar; a capela; o p osto da polícia à entrada do lugar; o pobre mas recheado minimercado... Dir-se-ia que a mobilidade se reserva sobretudo a quem tem uma ocupação ou aos jovens que conseguem um carro ou uma motorizada. Mas é também verdade que nos interstícios do que ouvimos e vemos reconhecemos sinais claros de uma intensa circulação de pessoas, de dinheiro, de parentes e conhecidos, entre os residentes desses blocos edificados que constituíram em tempos a população do Casal Ventoso – e que hoje se 49


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distribui pelos bairros da Quinta do Cabrinha, Quinta do Loureiro, Ceuta-Sul, outros blocos e prédios na Maria Pia, a caminho de Campo de Ourique e do Vale Flor (em Campolide). E o que pontua a circulação? O pequeno tráfico de drogas a retalho, os próprios espaços associativos, que têm aqui uma sede para muitos residentes a viver nesses diversos eixos de blocos edificados, não necessariamente próximos ou de fácil acesso público. Ou seja, talvez se possa dizer que existe uma circulação entre os aglomerados edificados, como se fossem um bairro, o bairro que foram, mas que é hoje numa outra geografia. Se urbanisticamente não existe o bairro Casal Ventoso, um fluxo de bairro entre os diferentes aglomerados urbanos parece manter-se, quer para que as pessoas tenham acesso a serviços sociais, quer porque esta população se mantém numa relação que é simultaneamente histórica e actualizada nessas circulações. Ficamos a saber, pelas palavras de Gabriel, que, por exemplo, uma instituição importante no bairro, uma das formas da circulação, é um tipo de jogo, um sistema de lotaria alternativo ao da Santa Casa da Misericórdia, mas com o mesmo tipo de modelo (usando as terminações dessa lotaria). Este loto parece incluir uma larga população, esta população que alimenta assim uma certa circulação de dinheiro e que, por sua vez, pode servir tanto para quebrar umas famílias como para assistir a outras. Talvez isto responda à dúvida que iniciou a nossa conversa com o psicólogo Filipe. Este indagava: ‘Como sobrevive esta gente daqui?’ Estaria o técnico a tentar provocar a nossa curiosidade ou é possível que não soubesse mesmo de algo que nós em poucas horas e com um pouco de imaginação etnográfica vislumbrámos? Termino com um certo paradoxo destes lugares: estes aglomerados de prédios e pessoas parecem ser criados a partir da ideia de uma durabilidade urbana que (re)faça história. Está impresso algum sentido de continuidade temporal, onde se estima que as ‘tecnologias’ da governação favoreçam o existir social em moldes diferentes do bairro anterior. Talvez as nossas breves observações de campo nos permitam afirmar que a ideia de bairro é mantida pelo acesso à residência e a uma mobilidade e circulação por entre os vários aglomerados edificados de pessoas que resultam dessa história e penetram nela. Esse ‘social’ parece não interagir de forma linear com políticas de intervenção, estas baseadas na temporalidade efémera dos projetos, intervenções segmentadas em ‘grupos alvo’ (sobretudo crianças e idosos, os 50


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que mais inspiram a pena e motivam os atores do ‘bem’). Vemos vários projetos anunciados, de portas fechadas, sem recursos financeiros para poder continuar, dizem-nos; verificamos que os que perduram não sabem o que os da porta ao lado estão a projetar. Num lugar tão densamente povoado, espanta a mensagem de um dos cartazes da associação Alkantara, com a imagem de uma idosa: ‘Esteja atento, não deixe o seu vizinho morrer sozinho’. Pairam no ar indícios de que muito não se pode dizer e o que se diz pode suscitar mal-entendidos.

Escola de Verão . Workshop de Escrita Etnográfica . Julho 2012

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Edição . ICS Estudos e Relatórios Coordenação . Sofia Aboim Design . João Pedro Silva

1962

G I S

anos

Apoio técnico . Ricardo Pereira

2012

I C S UL

Pest-OE/SADG/LA0013/2011

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa - Laboratório Associado

www.ics.ul.pt


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