"SANÇÕES SOCIAIS"
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A. R. Radcliffe-Brown
Há, em toda comunidade, certos modos de comportamentos que são usuais e que caracterizam essa comunidade particular. A esses modos de comportamento se pode chamar de costumes. Todos os costumes são apoiados pela autoridade da sociedade, mas alguns deles são sancionados e outros não o são. Sanção é uma reação por parte de uma sociedade ou de número considerável de seus membros a um modo de comportamento que é por isso mesmo aprovado (sanções positivas) ou reprovado (sanções negativas). Podem ainda distinguir-se as sanções segundo sejam difusas ou organizadas; as primeiras são expressões espontâneas de aprovação ou reprovação pelos membros da comunidade agindo como indivíduos, ao passo que as últimas são ações sociais praticadas de acordo com algum procedimento tradicional e reconhecido. É fato significativo que em todas as sociedades humanas as sanções negativas são mais definidas que as positivas. As obrigações sociais podem definir-se como regras de comportamento, cuja inobservância acarreta uma sanção negativa. Distinguem-se estas, assim, dos costumes não obrigatórios, como, por exemplo, os procedimentos técnicos costumeiros. As sanções existentes numa comunidade constituem motivos no indivíduo para a regulação de sua conduta em conformidade com o costume. Elas são efetivas, primeiro, pelo desejo do indivíduo de obter a aprovação e evitar a reprovação de seus semelhantes, de ganhar as recompensas ou evitar os castigos que a sociedade oferece ou aplica, e, segundo, pelo fato de aprender o indivíduo a reagir a modos particulares de comportamento com juízos de aprovação e reprovação do mesmo modo como os seus semelhantes e, portanto, medir seu próprio comportamento, quer por antecipação, quer em retrospecto, por padrões que se conformam mais ou menos estreitamente com os que prevalecem na comunidade a que pertence. O que chamamos consciência é, assim, no sentido mais amplo, o reflexo no indivíduo das sanções da sociedade. 1
"Social Sanction", de A. R. Radcliffe-Brown, Encyclopaedia of the Social Sciences, voI. XIII, pp. 531534. Traduzido por Asdrúbal Mondes Gonçalves e publicado aqui com a permissão, gentilmente concedida, do autor e de The Macmillan Company de Nova York.
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Convém começar a discussão das sanções por uma consideração das sanções negativas difusas, compreendendo as reações ao comportamento particular ou geral de um membro da comunidade, as quais constituem juízos de reprovação. Há, nessas reações, não só diferenças de grau − porque a reprovação se sente e exprime com diferentes graus de intensidade − mas também diferenças de espécie. Essas diferenças são difíceis de definir-se e classificar-se. Na língua inglesa, por exemplo, há grande número de palavras que exprimem a reprovação do comportamento individual: estas vão desde discourteous, unmannerly, unseemly e unworthy, passando por improper, discreditable, dishonorable e disreputable, até outrageous e infamous. Toda sociedade ou cultura, tem seus próprios modos de julgar o comportamento e estes podem ser convenientemente estudados principalmente através do vocabulário. Enquanto não se tiver adiantado mais o estudo comparativo das sociedades de diferentes tipos, porém, nenhuma classificação sistemática das espécies de sanção negativa difusa é possível. Pode definir-se provisoriamente a sanção negativa, moral ou ética, como uma reação de reprovação pela comunidade em relação a uma pessoa cuja conduta se reprova; as obrigações morais podem assim considerar-se como regras de conduta que, se não forem observadas, resultam numa reação dessa espécie. Outra sanção distinta é aquela pela qual o comportamento de um indivíduo é ridicularizado pelos seus semelhantes; é o a que se chamou de sanção satírica. Sendo menos definidas que as sanções negativas; as variedades sanções positivas difusas são por isso ainda mais difíceis de classificar-se. Das sanções difusas já descritas deve distinguir-se a que se pode chamar (mediante ampla extensão do vocábulo) de "sanções religiosas; denominaram-nas também sanções sobrenaturais e sanções místicas, mas ambos esses termos têm implicações não satisfatórias. As sanções religiosas são constituídas numa comunidade pela existência de certas crenças que são elas mesmas obrigatórias; por conseguinte, essas sanções só existem dentro de uma comunidade religiosa. Segundo a forma que tomam, certas ações praticadas por um indivíduo produzemlhe uma modificação na condição religiosa, seja em sentido desejável (do bem), seja em sentido indesejável (do mal). Certos atos são considerados como agradáveis aos deuses ou espíritos ou como que com eles estabelecem relações desejáveis, ao passo que outros lhes desagradam ou destroem de algum modo as relações harmoniosas desejáveis. Concebe-se, nesses casos, a condição religiosa do indivíduo como determinada pela sua relação com os seres espirituais pessoais. 2
A mudança na condição religiosa pode considera-se como o efeito imediato do próprio ato, sem o intermédio dos seus efeitos sobre algum deus ou espírito pessoal, concepção essa comum não só a muitas sociedades mais simples, como também encontrada em forma especial no Budismo e em outras religiões indianas adiantadas. Pode definir-se o pecado como qualquer modo de comportamento que caia sob uma sanção religiosa negativa; não há termo conveniente para o contrário de pecado, isto é, para uma ação que produza o mérito religioso ou uma condição ritual desejável. As sanções religiosas implicam a crença de que se pode remover ou neutralizar a maioria das condições não satisfatórias, rituais ou religiosas (poluição, impureza, pecado) por procedimentos socialmente prescritos ou reconhecidos, como a lustração, o sacrifício, a penitência, a confissão e o arrependimento. Considera-se também que esses ritos expiatórios atuam quer imediatamente, quer mediatamente, pelos seus efeitos sobre os deuses ou espíritos, dependendo de como atua, num sentido ou noutro, o pecado. Ao passo que na moderna civilização ocidental se considera em geral o pecado como sendo necessariamente uma ação ou pensamento voluntário, em muitas sociedades simples uma ação involuntária pode cair dentro da definição dada de pecado. A doença − por exemplo, a lepra entre os hebreus − é muitas vezes considerada como semelhante à poluição ritual ou religiosa e exigindo, portanto, expiação ou purificação ritual. Considera-se normalmente uma condição de impureza ritual ou religiosa como de imediato ou ulterior perigo para o indivíduo; pode-se acreditar que ele cairá doente e morrerá, talvez, a menos que possa purificar-se. Em algumas religiões, toma a sanção religiosa a forma de uma crença em que o indivíduo que peca nesta vida, sofrerá alguma forma de castigo numa outra vida. Em muitos casos, vê-se no indivíduo que é ritualmente impuro uma fonte de perigo, não só para si mesmo, como também para aqueles com quem ele entra em contacto ou para a comunidade inteira. Pode ele, por conseguinte, achar-se mais ou menos excluído por um tempo, ou mesmo permanentemente, da participação na vida social da comunidade. Freqüentemente, se não sempre, por isso, fica o pecador, ou a pessoa impura, na obrigação de empreender o necessário processo de purificação. Assim, as sanções religiosas diferem das outras sanções difusas em razão das crenças e concepções indicadas acima, que não podem ser definidas ou descritas de uma maneira simples. Crenças mais ou menos semelhantes 3
fundamentam práticas e procedimentos mágicos em relação com a sorte, mas, ao passo que as observâncias e as crenças religiosas com elas associadas são obrigatórias dentro de dada comunidade religiosa, as primeiras são comparáveis aos procedimentos técnicos, costumeiras, mas não obrigatórias. As sanções organizadas devem ser consideradas como desenvolvimentos especiais das sanções difusas, muitas vezes sob a influência das crenças pertencentes à religião. As sanções organizadas positivas, ou sanções de prêmio, desenvolvem-se raramente em grande extensão. As honras, condecorações, títulos e outras recompensas ao mérito, inclusive recompensas monetárias tais como as pensões especiais, concedidos a indivíduos pela comunidade como um todo, são característicos das sociedades modernas. Nas sociedades pré-letradas, ao homem que mata um inimigo pode conferir-se o direito de distinguir-se, ostentando alguma condecoração especial, ou de qualquer outra maneira. As sanções negativas organizadas entre as quais são importantes as sanções penais do direito criminal, são reconhecidos e definidos procedimentos dirigidos contra pessoas cujo comportamento é sujeito à reprovação social. Há muitas variedades desses procedimentos, sendo os mais importantes e disseminados os seguintes: sujeição à expressão aberta de reprovação ou derrisão, como, por exemplo, pela exposição pública forçada, pela exposição em cepos; exclusão parcial, permanente ou temporária, de plena participação na vida social e seus privilégios, inclusive a perda permanente ou temporária de direitos civis e religiosos; perda específica de posição social, ou degradação, exatamente o contrário da sanção positiva de promoção; inflição de perda de propriedade pela imposição de multa ou pela apreensão forçada ou destruição; inflição de pena corporal; mutilação ou queimadura em que o pior aspecto da pena é a exposição permanente à reprovação; exclusão permanente, da comunidade, como pelo exílio; prisão e punição pela morte. Essas sanções são legais quando impostas por uma autoridade constituída, política, militar ou eclesiástica. Numa dada sociedade as várias sanções primárias formam um todo mais ou menos sistemático que constitui o mecanismo do controle social. Há relação íntima entre as sanções religiosas e as sanções morais, a qual varia, contudo, nas diferentes sociedades e não pode ser expressa numa breve fórmula. As sanções legais primárias do direito criminal, em todas as sociedades exceto os altamente 4
secularizados estados modernos, mostram estreita conexão com as crenças religiosas. Além dessas sanções sociais primárias e sobre elas assentando, há certas sanções que podem denominar-se secundárias; estas dizem respeito às ações de pessoas ou grupos nos seus efeitos sobre outras pessoas ou grupos. No moderno direito civil, por exemplo, quando o tribunal condena um indivíduo a pagar indenização, a sanção primária que apóia a ordem é o poder do tribunal para fazer a apreensão forçada de uma propriedade, prendê-lo ou de outro modo puni-lo por desrespeito ao tribunal, se ele não obedecer. Assim, consistem as sanções secundárias em procedimentos executados pela comunidade, geralmente através de seus representantes, ou por indivíduos credenciados pela comunidade, quando se infringiram reconhecidos direitos. Elas se baseiam no princípio geral de que a qualquer pessoa que tenha sofrido dano cabe obter satisfação e que essa satisfação deve de certo modo ser proporcionada à extensão do dano sofrido. Há uma classe desses procedimentos que consiste em atos de retaliação, isto é, em atos de vingança socialmente aprovados, controlados e limitados. Assim, numa tribo australiana, quando um homem cometeu uma ofensa contra outro, a este último permite a opinião pública, muitas vezes definidamente expressa pelos mais velhos, arremessar certo número de lanças ou de bumerangues no primeiro, ou em certos casos atingi-lo com a lança na coxa. Depois de se lhe ter dado essa satisfação, não pode ele abrigar maus sentimentos contra o ofensor. Em muitas sociedades pré-letradas, o assassinato de um indivíduo autoriza o grupo a que ele pertence a obter satisfação pela execução do ofensor ou de algum membro do seu grupo. Na vingança regulada, o grupo ofensor deve submeter-se a isso como ato de justiça e não deve tentar ulterior retaliação. Admite-se que os que receberam tal satisfação não têm mais motivos para maus sentimentos. Pode obter-se também satisfação por injúria por meio do duelo, combate reconhecido e controlado entre indivíduos, ou por meio de combates semelhantes entre dois grupos. Nas tribos australianas, o duelo com lanças, bumerangues, clavas e escudos ou facas de pedra, com espectadores prontos para intervir se julgarem que as coisas estão excedendo os limites, é alternativa freqüentem ente adotada para a retaliação unilateral. Nessas mesmas tribos há combates semelhantes regulados entre dois grupos, às vezes em presença de outros grupos que lhes fiscalizam os lances. Difícil se torna muitas vezes traçar uma linha divisória entre esses combates de grupos e a guerra; de fato, podem-se eles possivelmente 5
considerar uma forma especial de guerra característica mais das sociedades primitivas que das sociedades civilizadas. Freqüentemente, pois, pode a guerra ser considerada como sanção social secundária semelhante ao duelo. Um grupo político mantém o reconhecimento de seus direitos pela ameaça de guerra se se infringirem esses direitos. Mesmo nas sociedades mais simples, reconhece-se que, na guerra, certos atos são corretos e outros não, e que uma declaração de guerra pude ser justa em certas circunstâncias e injusta noutras, de modo que a conduta de guerra é até certo ponto controlada por sanções difusas. Aponta-se muitas vezes a indenização como alternativa para a retaliação, como meio de dar e receber satisfação. Indenização é alguma coisa de valor dada por uma pessoa ou grupo a outra pessoa ou grupo, a fim de remover ou neutralizar os efeitos de uma infração de direitos. Pode-se distingui-la de um dom propiciatório pelo fato de ser ela obrigatória (isto é, sujeita a uma sanção negativa, difusa ou organizada) nas circunstâncias particulares. O pagamento feito antecipadamente a uma intrusão em direitos com o consentimento da pessoa ou pessoas que o recebem pode ser considerado como uma indenização. Assim, em muitas sociedades, considera-se o casamento como uma intrusão nos direitos da família e parentes da noiva, de modo que, antes de consentirem estes em separar-se dela, devem receber uma indenização ou a promessa de indenização. Nesses casos, o processo de indenização apresenta certa semelhança com o da compra, que é a transferência de direitos de propriedade, em troca de alguma outra coisa. Em muitas sociedades pré-letradas, os procedimentos de indenização se efetuam sob a sanção difusa da opinião pública, que compele o indivíduo a indenizar aquele cujos direitos infringiu. Em algumas sociedades, assiste a uma pessoa prejudicada o direito reconhecido de indenizar-se pela apreensão forçada da propriedade do ofensor. Quando a sociedade se torna politicamente organizada, os procedimentos de retaliação e indenização escudados por sanções difusas se transformam em sanções legais apoiadas pelo poder das autoridades judiciárias de infligir o castigo. Assim, surge o direito civil, pelo qual a pessoa que sofreu uma infração de direitos pode obter reparação ou restituição da pessoa responsável. Na consideração das funções das sanções sociais, não são os efeitos da sanção sobre a pessoa a quem são aplicadas que importam, mas, antes, os efeitos gerais dentro da comunidade que aplica as sanções. Porque a aplicação de uma sanção é afirmação direta de sentimentos sociais pela comunidade e constitui, assim, um mecanismo importante, quiçá essencial, para manter esses sentimentos. 6
As sanções negativas organizadas em particular, e numa larga medida as sanções secundárias, são expressões de uma condição de disforia social determinada por alguma ação. A função da sanção é restaurar a euforia social, dando definida expressão coletiva aos sentimentos que foram afetados pela ação, como nas sanções primárias e até certo ponto nas sanções secundárias, ou removendo um conflito dentro da própria comunidade. Vê-se, pois, que as sanções têm primordial significação para a Sociologia, no sentido que são reações por parte da comunidade a acontecimentos que afetam a sua integração.
Extraído de: PIERSON, Donald. 1970. Estudos de organização social – Tomo II: leituras de sociologia e antropologia social. São Paulo: Martins. p. 383-390.
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