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2014 FACIPLAC Edição Setembro 2014

REVISTA DO CURSO DE DIREITO DA FACIPLAC Ano 7 – Nº 7


SISTEMAS DE CONTROLE JURISDICIONAL DA ADMINISTRAÇÃO E SUAS IMPLICAÇÕES NUMA PERSPECTIVA LUSO-BRASILEIRA ............................................3 FORMAÇÃO DA CULTURA PARTIDÁRIA BRASILEIRA ............................................. 23 O CONFLITO DE DIREITO FUNDAMENTAL NAS RECENTES MANIFESTAÇÕES POPULARES OCORRIDAS NO BRASIL: DIREITO DE MANIFESTAÇÃO VERSUS DIREITO DE LOCOMOÇÃO ................................................................................................. 34 DA NATUREZA JURIDICA DA SÚMULA VINCULANTE ............................................... 73 DIREITOS FUNDAMENTAIS E INTERESSES DIFUSOS: INVIOLABILIDADE DE COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS E PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA ........ 88 A AUTONOMIA DA VONTADE NOS CONTRATOS INTERNACIONAIS................. 115 A POSSIBILIDADE DE RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA NOS CASOS DE LEIS DECLARADAS INCONSTITUCIONAIS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL . 128 O INSTITUTO DEMOCRÁTICO DO TRIBUNAL DO JÚRI: UMA VISÃO HISTÓRICA NO ÂMBITO DAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS ................................................... 173

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SISTEMAS DE CONTROLE JURISDICIONAL DA ADMINISTRAÇÃO E SUAS IMPLICAÇÕES NUMA PERSPECTIVA LUSO-BRASILEIRA

Timóteo Carneiro Ferreira1

RESUMO O presente trabalho visa apresentar um panorama histórico dos sistemas administrativos atuais, bem como a evolução do sistema administrativo francês e inglês. Serão estabelecidas as principais diferenciações no que tange à organização administrativa, controle jurisdicional da Administração, direito regulador, execução das decisões administrativas, e por fim, quanto às garantias jurídicas dos particulares. Assim, pelas razões apresentadas no correr deste estudo, entendemos que a organização judiciária única brasileira se mostra mais simplificada ao submeter aos tribunais comuns o controle jurisdicional da Administração, e sob uma ótica pragmática, observamos que tal sistema se mostra mais viável pelas proporções continentais de seu território. Contudo, ao analisar o sistema do contencioso administrativo português, embora se tratar de uma estrutura mais complexa, concluímos que a especialização da jurisdição administrativa pode resultar em uma justiça mais coerente e substancial no plano administrativo.

INTRODUÇÃO O presente trabalho visa apresentar um panorama histórico dos sistemas administrativos atuais, bem como a evolução do sistema administrativo francês e inglês. Serão estabelecidas as principais diferenciações no que tange à organização administrativa, controle jurisdicional da Administração, direito regulador, execução das decisões administrativas, e por fim, quanto às garantias jurídicas dos particulares. Em seguida, demonstraremos, numa ótica evolutiva, uma suposta aproximação entre os sistemas de contencioso e de jurisdição única. Nesse diapasão, a proposta da nossa pesquisa é propiciar uma reflexão crítica sobre os sistemas de controle judicial administrativo, confrontando-os numa perspectiva luso-brasileira. Sob a ótica do direito comparado, verificar-se-ão as peculiaridades do controle judicial da Administração Pública de Portugal e do Brasil. Observaremos os institutos do contencioso administrativo português bem como sua organização judiciária administrativa, levando em conta a reforma do diploma contencioso de 2002/2004. No sistema de jurisdição única brasileira,

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Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas do Planalto Central - FACIPLAC, mestre em Direito Público pelaUniversidade Católica Portuguesa, Leibniz Universität Hannover, Université de Rouen e Université de Le Havre, pelo Programa Erasmus Mundus, especialização Lato Sensu em “Direito Público” com ênfase em hermenêutica constitucional, teoria avançada do Direito Penal, fundamentos constitucionais do Direito Administrativo, Direito Econômico e Penal Econômico. Advogado militante e professor do curso de Direito da FACIPLAC nas disciplinas de Direito Administrativo e Direito Civil (Parte Geral e Obrigações).

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demonstraremos sua estrutura judiciária de forma panorâmica e concisa, bem como a sua tramitação no seu aspecto orgânico, vertical e horizontal.

1. SISTEMAS ADMINISTRATIVOS Entende-se por sistema de controle jurisdicional da Administração, o regime adotado pelo Estado para a correção dos atos administrativos ilegais ou ilegítimos praticados pelo Poder Público em qualquer dos seus departamentos de governo. Vigoram, atualmente, dois sistemas bem diferenciados: o do contencioso administrativo, também conhecido como sistema francês, e o sistema judiciário ou de jurisdição única, conhecido por sistema inglês, ou britânico. Conforme entendimento de alguns doutrinadores, não convém classificar um sistema misto, pois embora nenhum país aplique um sistema de controle puro, seja através do controle judiciário, seja através de tribunais administrativos, o que caracteriza o sistema é a predominância da jurisdição comum ou da especial, e não a exclusividade de qualquer delas para a resolução contenciosa das questões correlatas à Administração.

1.1. Sistema do Contencioso Administrativo O sistema do contencioso administrativo foi adotado na França, de onde se propagou para outras nações, principalmente da Europa. Antes da Revolução Francesa, os tribunais comuns insurgiam-se inúmeras vezes contra a autoridade real. Depois da Revolução, continuando nas mãos da antiga nobreza, esses tribunais foram focos de resistência à implantação do novo regime, das novas idéias, da nova ordem econômica e social. O poder político teve, pois, de tomar providências para impedir intromissões do poder judicial no normal funcionamento do poder executivo. Neste contesto, a revolução de 1789, caracterizada pelo liberalismo e independência dos Poderes, pregada por Montesquieu, encontrou ambiente propício para separar a Justiça Comum da Administração, com o que atendeu não só ao desejo de seus doutrinadores como aos anseios do povo já descrente com tal ingerência judiciária nos negócios do Estado. Separaram-se os Poderes, acarretando assim, uma interpretação peculiar de tal princípio, completamente diferente da que prevalecia até então na Inglaterra, e, extremando os rigores dessa separação, a Lei 16, de 1790, dispôs que as funções judiciárias seriam distintas e permaneceriam separadas das funções administrativas, não podendo os juízes, sob pena de prevaricação, perturbar, de qualquer maneira, as atividades dos corpos administrativos. A Constituição de 1791 consignou que os tribunais não poderiam invadir as funções administrativas ou mandar citar, para que perante eles comparecessem, os administradores, por atos funcionais. Em 1799 foram criados os tribunais administrativos – que não eram verdadeiros tribunais, mas órgãos da Administração, em regra independentes e imparciais – incumbidos de fiscalizar a legalidade dos atos da Administração e de julgar o contencioso dos seus contratos e da sua responsabilidade civil.

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Firmou-se, assim, na França o sistema do administrador juiz, vedando-se à Justiça Comum conhecer de atos da Administração, os quais se sujeitam à jurisdição especial do contencioso administrativo, que gravita em torno da autoridade suprema do Conselho de Estado (Conseil d’État), órgão vital do sistema francês. Essa orientação foi conservada na reforma administrativa de 1953, sendo mantida pela vigente Constituição de 1958. A capacidade de intervenção da Administração Pública que se pretendia obter, levou o Conselho de Estado a considerar, ao longo do século XIX, que os órgãos e agentes administrativos não estariam na mesma posição que os particulares, pois ao exercerem funções de interesse público e utilidade geral, deveriam dispor de poderes de autoridade que lhes permitiam impor as suas decisões aos particulares. A tradicional distinção, nos países da família romano-germânica, entre direito público e direito privado permitiu facilmente o nascimento de um novo ramo do direito público, ao tempo definido em função dos poderes exorbitantes (pouvoirs exorbitants) que conferia à Administração Pública. Na configuração orgânica atual do contencioso administrativo francês, o Conselho de Estado, no ápice da pirâmide da jurisdição especial, revê o mérito das decisões, como instância de apelação dos Tribunais Administrativos e dos Conselhos do Contencioso Administrativo das Colônias, e como instância de cassação, controla a legalidade das decisões do Tribunal de Contas, do Conselho Superior da Educação Nacional e da Corte de Disciplina Orçamentária. Embora caiba à jurisdição administrativa o julgamento do contencioso administrativo, certas demandas de interesse da Administração ficam sujeitas à Justiça Comum desde que se enquadre em litígios decorrentes de atividades públicas com caráter privado, litígios que envolvam questões de estado e capacidade das pessoas e de repressão penal e, por fim, em litígios que se refiram à propriedade privada. Como a delimitação da competência das duas Justiças está a cargo da jurisprudência, freqüentes são os conflitos de jurisdição, os quais são solucionados pelo Tribunal de Conflito, integrado por dois ministros de Estado, três conselheiros de Estado, e três membros da Corte de Cassação. As atribuições do Conselho de Estado são de ordem administrativa e contenciosa, servindo ao governo na expedição de avisos e no pronunciamento sobre matéria de sua competência consultiva e atuando como órgão jurisdicional nos litígios em que é interessada a Administração, ou seus agentes.

1.2 Sistema de Jurisdição Única O sistema judiciário ou de jurisdição única, também conhecido por sistema inglês, é aquele em que todos os litígios, sejam de natureza administrativa ou de interesses exclusivamente privados, submetem-se ao controle jurisdicional dos tribunais comuns (courts of Law). Na lógica deste controle, não faria sentido isentar os poderes públicos ao passo que nenhuma autoridade poderia invocar privilégios ou imunidades, existindo uma só medida de direitos para todos, somente uma lei para funcionários e não funcionários, um só sistema para o Estado e para os particulares.

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A evolução desse sistema está intimamente relacionada com as conquistas do povo contra os privilégios e desmandos da Corte inglesa. Primitivamente, todo o poder de administrar e julgar concentrava-se na Coroa. Com o correr dos tempos cingiu-se o poder de legislar (Parlamento) do poder de administrar (Rei). Mas permanecia com a Coroa o poder de julgar. O Rei era a fonte de toda justiça, levando o povo a sentir-se inseguro de seus direitos, dependentes da graça real na apreciação de suas reclamações. Continuaram as reivindicações populares, e em atendimento delas criou-se o Tribunal do Rei (King's Bench), que, por delegação da Coroa, passou a decidir as reclamações contra os funcionários do Reino, mas o fazia com a chancela real. Tal sistema era ainda insatisfatório, porque os julgadores dependiam do Rei, que os podia afastar do cargo e, mesmo, ditar-lhes ou reformar-lhes as decisões. Logo mais, passou o Tribunal do Rei a expedir em nome próprio ordens (writs) aos funcionários contra quem se recorria e mandados de interdições de procedimentos administrativos ilegais ou arbitrários. Dessas decisões tornaram-se usuais o writ of certiorari, para remediar os casos de incompetência e ilegalidade graves, o writ of injunction, remédio preventivo destinado a impedir que a Administração modificasse determinada situação, e o writ of mandamus, destinado a suspender certos procedimentos administrativos arbitrários, sem se falar no writ of habeas corpus, já considerado garantia individual desde a Magna Carta de 1215. Do Tribunal do Rei, que só conhecia e decidia matéria de direito, passou-se para a Câmara Estrela (Star Chamber), com competência em matéria de direito e de fato e jurisdição superior sobre a Justiça de paz dos condados, e de cujas decisões cabia recurso para o Conselho Privado do Rei (King's Council). Restava ainda a última etapa da independência da Justiça Inglesa. Esta adveio em 1701 com o Act of Settlement, que desligou os juízes do Poder real e deu-lhes estabilidade no cargo, conservando-lhes a competência para questões comuns e administrativas. Era a instituição do Poder Judicial independente do Legislativo (Parlamento) e do administrativo (Rei), com jurisdição única e plena para conhecer e julgar todo procedimento da Administração em igualdade com os litígios privados. Esse sistema de jurisdição única trasladou-se para as colônias norte-americanas e nelas se arraigou tão profundamente que, proclamada a Independência (1775) e fundada a Federação (1787), passou a ser cânone constitucional (Constituição dos EUA, art. III, seção 2.ª). Não existe, pois, no sistema anglo-saxônico, que é o da jurisdição única (da Justiça Comum), o contencioso administrativo do regime francês. Toda controvérsia, litígio ou questão entre particular e a Administração resolve-se perante o Poder Judiciário, que é o único competente para proferir decisões com autoridade final e conclusiva.

1.3 Diferença dos sistemas administrativos britânicos e francês Sob uma perspectiva teórica original, não encontramos dificuldades em estabelecer a comparação entre os dois principais sistemas administrativos modernos. De imediato, podemos afirmar que os sistemas de tipo britânico e de tipo francês têm em comum o fato de consagrarem ambos a separação de poderes e o Estado de Direito.

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O problema da distinção entre os sistemas administrativos de tipo britânico e de tipo francês foram tratados principalmente pelos teóricos Albert Venn Dicey, professor britânico em Oxford, e Maurice Hauriou, professor em Toulouse. Ambos doutrinadores opuseram-se a respeito dos méritos e deméritos dos dois sistemas, cada um preferindo claramente – em atitude nacionalista – o sistema vigente, ou supostamente vigente, no seu próprio país. Vejamos, então, nesta perspectiva, alguns traços específicos que distinguem os sistemas de jurisdição única com o do contencioso administrativo:

a) Quanto à organização administrativa, um é um sistema descentralizado, o outro é centralizado; b) Quanto ao controle jurisdicional da Administração, o primeiro entrega-o aos tribunais comuns, o segundo aos tribunais administrativos. Na Inglaterra há, pois, unidade de jurisdição, na França existe dualidade de jurisdições; c) Quanto ao direito regulador da Administração, no sistema de tipo britânico é o direito comum, que basicamente é direito privado, mas no sistema de tipo francês é o direito administrativo que é direito público; d) Quanto à execução das decisões administrativas, o sistema de administração judiciária depende de sentença do tribunal, ao passo que o sistema de administração executiva atribui autoridade própria a essas decisões e dispensa a intervenção prévia de qualquer tribunal; e) Enfim, quanto às garantias jurídicas dos particulares, a Inglaterra confere aos tribunais comuns amplos poderes de injunção face à Administração, que lhes fica subordinada como a generalidade dos cidadãos, enquanto a França só permite aos tribunais administrativos que anulem as decisões ilegais das autoridades ou as condenem ao pagamento de indenizações, ficando a Administração independente do poder judicial.

1.4 Evolução dos sistemas Tal confronto foi estabelecido baseando-se na pureza teórica original de cada um dos modelos no momento histórico em que Dicey e Hauriou os descreveram. Mas tais sistemas não pararam no tempo, e a evolução ocorrida no século XX determinou uma aproximação relativa dos dois sistemas em alguns aspectos, senão vejamos os principais: a) Em termos de organização administrativa, a administração britânica tornou-se mais centralizada do que era no final do século passado, dado o grande crescimento da burocracia central, criando vários serviços locais do Estado, e a transferindo as tarefas e serviços antes executados a nível municipal para órgãos de nível regional. A Administração francesa, por seu 7


lado, foi gradualmente perdendo o caráter de total centralização que atingiu no império napoleônico, aceitando a autonomia dos corpos intermédios, a eleição livre dos órgãos autárquicos, uma certa diminuição dos poderes dos prefeitos e, bem recentemente, uma vasta reforma descentralizadora que transferiu numerosas e importantes funções do Estado para as regiões; b) Relativamente ao controle jurisdicional da Administração, mantêm-se no essencial as diferenças de sistema que já foram analisadas. É certo que na Inglaterra surgiram, às centenas, os chamados administrative tribunals, e que na França aumentaram significativamente as relações entre os particulares e o Estado submetidas à fiscalização dos tribunais judiciais. Mas só na aparência este duplo movimento constitui aproximação dos dois sistemas entre si, porque os administrative tribunals da Inglaterra, não são nada de semelhante aos tribunaux administratifs da França, e a administração inglesa continua basicamente sujeita ao controle dos tribunais comuns. Por seu turno, o aumento da intervenção dos tribunais judiciais nas relações entre a Administração e os particulares na França não significa que o controle da aplicação do Direito Administrativo tenha deixado de pertencer aí aos tribunais administrativos, mas apenas que cresceu muito o número de casos em que a Administração atua hoje em dia sob a égide do direito privado, e não à luz do direito público; c) No tocante ao direito regulador da Administração, deu-se efetivamente certa aproximação entre os dois sistemas, na medida em que a transição do Estado liberal para o Estado social de Direito aumentou consideravelmente o intervencionismo econômico na Inglaterra e fez avolumar a função de prestação de serviços culturais, educativos, sanitários e assistenciais da Administração britânica, dando lugar ao aparecimento de inúmeras leis administrativas. Por outro lado, a Administração francesa teve de passar, em diversos domínios, a atuar sob égide do direito privado, o que sucedeu com as empresas públicas, obrigadas pela natureza da sua atividade econômica a funcionar nos moldes do direito comercial, e com os serviços públicos de caráter social e cultural, em muitos casos estatutariamente vinculados a agir nos termos do direito civil. Mesmo verificando-se uma aproximação desses sistemas, observamos que o princípio fundamental que inspira cada um dos sistemas mencionados é diverso, muitas das soluções que vigoram num e noutro lado são diferentes, a técnica jurídica utilizada por um e por outro não é a mesma. Onde as diferenças se mantêm mais notórias são nos tribunais, cuja fiscalização se submete à Administração Pública – na Inglaterra os tribunais comuns, caracterizando a unidade de jurisdição, na França os tribunais administrativos, consubstanciando a dualidade de jurisdições.

2 O SISTEMA ADMINISTRATIVO BRASILEIRO O Brasil adotou, desde a instauração de sua primeira República (1891), o sistema da jurisdição única, ou seja, o do controle administrativo pela Justiça Comum. As Constituições posteriores (1934, 1937, 1946 e 1969) afastaram sempre a idéia de uma Justiça administrativa coexistente com a Justiça ordinária, trilhando, aliás, uma tendência já manifestada pelos mais avançados estadistas do Império, que se insurgiam contra o incipiente contencioso administrativo da época.

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A orientação brasileira foi baseada no Direito Público Norte-Americano, que forneceu o modelo para a primeira Constituição Republicana Brasileira, adotando todos os postulados do rule of law e do judicial control da Federação Norte Americana. Tal sistema, caracterizado pela diversificação entre a Justiça e a Administração, mostrase inconciliável com o sistema contencioso administrativo, porque todos os interesses, quer do particular, quer do Poder Público, se sujeitam a uma única jurisdição conclusiva, a do Poder Judiciário. Isto não significa, evidentemente, que se negue à Administração o direito de decidir. O que se lhe nega é a possibilidade de exercer funções materialmente judiciais, ou judiciais por natureza, e de emprestar às suas decisões força e definitividade próprias dos julgamentos judiciários. Para a correção judicial dos atos administrativos ou para remover a resistência dos particulares às atividades públicas a Administração e os administrados dispõem dos mesmos meios processuais admitidos pelo Direito Comum, e recorrerão ao mesmo Poder Judiciário uno e único - que decide os litígios de Direito Público e de Direito Privado. Este é o sentido da jurisdição única adotada no Brasil.

2.1 Processo Gracioso e Contencioso Nos países que admitem a dualidade de jurisdição, ou seja, a existência de um contencioso administrativo ao lado da jurisdição comum é possível falar em dois tipos de processo administrativo: o gracioso e o contencioso. No processo gracioso, os próprios órgãos da Administração são encarregados de fazer atuar a vontade concreta da lei, com vistas à consecução dos fins estatais que lhe são confiados e que nem sempre envolvem decisão sobre pretensão do particular. Pra chegar à prática do ato final pretendido pela Administração, pratica-se uma série de atos precedentes necessários para apuração dos fatos, averiguação da norma legal aplicável, apreciação dos aspectos concernentes à oportunidade e conveniência. Essa série de atos constitui o processo, que vai culminar com a edição de um ato administrativo. É nesse sentido que se fala em processo administrativo no direito brasileiro.

2.2 Estrutura do Judiciário Brasileiro O sistema de jurisdição única do direito brasileiro está configurado no inciso XXXV, do artigo 5º, do Título II, capítulo I, da Constituição Federal de 1988 (CF/88), senão vejamos: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. As regras do Poder Judiciário vêm previstas nos arts. 92 a 126 da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Conforme esquematização do próximo item, pode-se afirmar que o Superior Tribunal Federal (STF) e os Tribunais Superiores (Superior Tribunal de Justiça - STJ, Tribunal Superior do Trabalho - TST, Tribunal Superior Eleitoral - TSE e Superior Tribunal Militar STM) são órgãos de convergência, têm sede na Capital Federal (Brasília) e exercem jurisdição sobre todo o território nacional, nos termos do art. 92, § 2º, da CF/88.

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Denominam-se órgãos ou centros de convergência na medida em que cada uma das Justiças especiais da União (Trabalhista, Eleitoral e Militar), tem por cúpula seu próprio Tribunal Superior, que é o responsável pela última decisão nas causas de competência dessa Justiça, ressalvado o controle de constituionalidade que sempre cabe ao STF. Na medida em que não pertencem a qualquer Justiça, podemos classificar o STF e o STJ (Tribunais da União) não só como órgãos de convergência, conforme já visto, mas, também, como órgãos de superposição. Isso porque embora não pertençam a qualquer Justiça, as suas decisões se sobrepõem àquelas da Justiça Federal comum, da Estadual e daquela do Distrito Federal e Territórios, ao passo que as decisões do STF se sobrepõem a todas as Justiças e Tribunais.

Justiças: comum e especial Além dos órgãos de superposição (STF e STJ), temos as diversas Justiças, divididas em comum e especial (ou especializada).

Justiça Comum a) Justiça Federal (Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais – arts. 106 a 110 da CFB, Juizados Especiais Cíveis e Criminais conforme parágrafo único do art. 98 da CFB regulamentada pela lei 10.259/01); b) Justiça do Distrito Federal e Territórios (Tribunais e Juízes do Distrito Federal e Territórios, organizados e mantidos pela União – arts. 21, XIII, e 22, XVII, que também criará os Juizados Especiais e a Justiça de Paz); c) Justiça Estadual comum (ordinária) (art. 125 – juízos de primeiro grau de jurisdição, incluídos os Juizados Especiais – art. 98, I da CFB regulamentado pela lei 9.099/95 – e a Justiça de Paz – art. 98, II CFB; bem como os de segundo grau de jurisdição, compostos pelos Tribunais de Justiça).

Justiça Especial

a) Justiça do Trabalho (composta pelo Tribunal Superior do Trabalho – TST; Tribunais Regionais do Trabalho – TRTs; e pelos Juízes do Trabalho – Varas do Trabalho – arts. 111 a 116 da CFB);

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b) Justiça Eleitoral (composta pelo Tribunal Superior Eleitoral – TSE; Tribunais Regionais Eleitorais – TREs; Juízes Eleitorais e Juntas Eleitorais – arts. 118 a 121); c) Justiça Militar da União (Superior Tribunal Militar – STM e Conselhos de Justiça, Especial e Permanente, nas sedes das Auditorias Militares – arts. 122 a 124); d) Justiça Militar dos Estados, do Distrito Federal e Territórios (Superior Tribunal de Justiça – STJ [vale lembrar que o STJ não é órgão da Justiça Militar estadual, no entanto, poderá julgar, dependendo do assunto, recursos interpostos em face de acórdãos do TJ ou TJM, quando instalado]; Tribunal de Justiça – TJ; ou Tribunal de Justiça Militar – TJM, nos Estados em que o efetivo militar for superior a 20.000 integrantes e, em primeiro grau, pelos juízes de direito togados (juiz-auditor) e pelos Conselhos de Justiça, com sede nas auditorias militares – art. 125, §§ 3º, 4º e 5º da CFB).

Competência penal versus competência civil Dentre todas as Justiças acima apontadas, somente a Justiça do Trabalho não tem qualquer competência penal (julga e concilia apenas dissídios individuais e coletivos oriundos das relações trabalhistas). A Justiça Militar Estadual (podendo ser ampliada para o Distrito Federal e Territórios), através de seus juízes-auditores togados poderá julgar as ações judiciais contra atos disciplinares militares de natureza civil, e não exclusivamente penal, o que ainda ocorre no âmbito da Justiça Militar Federal. As demais, Federal, Eleitoral, Estaduais e do Distrito Federal e Territórios, têm tanto competência penal como civil.

Organograma

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As Turmas Recursais, em número de duas, são compostas por três Juízes de Direito cada uma, além de igual número de suplentes, e têm atribuição para o julgamento dos recursos contra as decisões dos Juízes zes dos Juizados Especiais. As decisões são colegiadas e tomadas por maioria de votos.

Justiça Comum Federal São órgãos da Justiça Federal os Tribunais Regionais Federais e os Juízes Federais. Os Tribunais Regionais Federais compõem-se compõem se de, no mínimo, sete juízes, recrutados, quando possível, na respectiva região e nomeados pelo Presidente da República dentre brasileiros com mais de trinta e menos de sessenta e cinco anos, sendo um quinto dentre advogados com mais de dez anos de efetiva atividade profissional e membros do Ministério Público Federal com mais de dez anos de carreira de forma intercalada. Os Os demais, mediante promoção de juízes federais com mais de cinco anos de exercício, por antigüidade e merecimento, alternadamente. Os Tribunais Regionais Federais podem funcionar descentralizadamente, constituindo Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas toda as fases do processo. Compete aos Tribunais Regionais Federais processar e julgar, originariamente os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral, Eleitoral as revisões criminais e as ações rescisórias de julgados seus ou dos juízes federais da região, região os mandados de segurança e os "habeas-data"" contra ato do próprio Tribunal ou de juiz federal, federal os "habeas-corpus", ", quando a autoridade coatora for juiz federal, os conflitos de competência entre juízes federais vinculados ao Tribunal. Tribunal De igual forma, compete aos Tribunais Regionais Federais julgar, julgar, em grau de recurso, as causas decididas ididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição. 12


Por sua vez, aos juízes federais compete processar e julgar as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho. Compete-lhes também, as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada ou residente no País, as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional. Também compete ao juízo federal os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente. As causas relativas a direitos humanos nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal. Seguindo ainda o rol exaustivo das competências do juízo federal contido na Constituição Federal Brasileira, compete ao juiz federal julgar os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômicofinanceira, bem como os "habeas-corpus", em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição. Também compete julgar os mandados de segurança e os "habeas-data" contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais, os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar, os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o "exequatur", e de sentença estrangeira, após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização e por fim a disputa sobre direitos indígenas. Cada Estado, bem como o Distrito Federal, constituirá uma seção judiciária que terá por sede a respectiva Capital, e varas localizadas segundo o estabelecido em lei. Os Tribunais Regionais Federais, atualmente, estão distribuídos em cinco regiões em todo o território nacional, os quais englobam os vinte e seis estados federados e o Distrito Federal. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região abrange os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins. O TRF da 2ª Região inclui os estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro. Por sua vez, o TRF da 3ª Região, os estados de Mato Grosso do Sul e São Paulo. O TRF da 4ª Região comporta os estados do Pará, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Por fim, a 5ª Região abrange os estados de Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe.

Justiça Comum Estadual

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Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos na Constituição Federal Brasileira, e nomeadamente ao princípio da simetria orgânica dos tribunais e da Federação. A competência dos tribunais de vem definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça. Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual. A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes. O Tribunal de Justiça, assim como os tribunais regionais federais, poderá funcionar descentralizadamente, constituindo Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo. Viabilizando a efetiva prestação da tutela jurisdicional, o Tribunal de Justiça deverá instalar a justiça itinerante, com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários. Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça proporá a criação de varas especializadas, com competência exclusiva para questões agrárias.

3 O SISTEMA ADMINISTRATIVO PORTUGUÊS Portugal introduziu inicialmente o modelo francês de justiça administrativa, em 1832, através da legislação de Mouzinho da Silveira, na qual se proibia os tribunais comuns de julgarem a administração, bem como se instituía os “Conselhos da Prefeitura” e o “Conselho de Estado”, assistindo-se em simultâneo a uma lenta transição do sistema do administrador-juiz para o sistema dos tribunais Administrativos. No âmbito da Constituição de 1933, manteve-se a lógica de justiça delegada, sendo que os Tribunais Administrativos configuravam-se como órgãos da administração, exercendo função jurisdicional. Destarte o processo de constitucionalização aproximou o contencioso dos países europeus, conduzindo à abolição das fronteiras tanto entre os modelos francês e alemão como entre o sistema continental. A reforma do Contencioso Administrativo de 2002/04 aproximou Portugal, por influência do modelo alemão, o direito administrativo com o de tipo britânico, nomeadamente pelo reforço dos poderes de controle dos tribunais administrativos sobre a Administração Pública. 14


O contencioso administrativo português foi objeto de uma importante reforma, introduzida pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, que aprovou o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), e pela Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro, que aprovou o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA, alterado pela Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro). O novo Estatuto e o Código entraram em vigor em 1 de Janeiro de 2004. Sucessivamente prometida e adiada ao longo de quase vinte anos, a reforma do contencioso administrativo era por todos reconhecida como absolutamente indispensável à plena instituição do Estado de Direito democrático em Portugal. Com efeito, o contencioso administrativo português ainda não tinha sido objeto, desde a instituição da democracia, da reforma profunda que se impunha. Tratou-se, pois, de dar resposta a uma necessidade que desde há muito era sentida, nos dois planos em que a questão se colocava.

a) Em primeiro lugar, no plano da organização e funcionamento dos tribunais. Com efeito, o enorme crescimento da litigiosidade em matéria administrativa exigia que se procedesse à reorganização do quadro das competências dos respectivos tribunais, libertando os tribunais superiores das vastas competências de julgamento em primeira instância de que ainda dispunham e criando uma rede de tribunais administrativos de primeira instância que permitisse uma adequada cobertura do território nacional. Por outro lado, a reforma concretizou a tão aguardada transferência dos tribunais tributários para o Ministério da Justiça, incorporando-os na nova rede de tribunais, que passaram a ser tribunais administrativos e fiscais. Em conexão com isto, a reforma introduziu soluções inovadoras nos domínios da organização interna dos tribunais e da disponibilização de novos meios de gestão de processos, com o que se visa obter maiores padrões de racionalidade e, por conseguinte, níveis mais elevados de eficácia e de eficiência no funcionamento deste setor da justiça.

b) Em segundo lugar, no plano da regulação do regime processual. Com efeito, o regime processual do contencioso administrativo português permaneceu, no essencial, a um modelo francês, no recurso contencioso de anulação de atos administrativos. Por outro lado, era marcado pela existência de grandes limitações quanto aos meios de prova admissíveis em juízo e por um formalismo exacerbado, que dificultava o acesso à justiça, dando origem a um elevado número de decisões em que o tribunal não se chegava a pronunciar sobre o mérito das causas. Também neste plano, a reforma mostrava-se indispensável à concretização do direito à tutela judicial efetiva dos cidadãos perante os poderes públicos, princípio este que resulta do modelo jurídico-constitucional vigente em Portugal. É nestes dois planos que se concretizou esta grande reforma, destinada, como se vê, a transformar, em aspectos decisivos, a justiça administrativa portuguesa, aproximando o sistema administrativo português com o britânico.

3.1 Âmbito da jurisdição administrativa Portuguesa 15


O novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, estabeleceu novos critérios de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa que alteraram substancialmente o regime atual. Pretendeu-se, sobretudo, clarificar os critérios de delimitação da jurisdição administrativa, objetivando facilitar o efetivo acesso à tutela jurisdicional dos interessados, evitando conflitos de competência que redundavam numa morosidade acrescida do funcionamento da Justiça. O âmbito da jurisdição administrativa vem definido pelos critérios enunciados no artigo 4.º do ETAF, norma que atribui aos tribunais administrativos competência para: a) Competência para julgar atos pré-contratuais e contratos, praticados ou celebrados ao abrigo de normas de direito público (alíneas “e” e “f” do art. 4.º ETAF); O ETAF concede competência aos tribunais administrativos para julgar contratos celebrados entre pessoas coletivas de direito público, entre estas e pessoas coletivas de direito privado, ou ainda, entre diversas pessoas coletivas de direito privado, quando a natureza do contrato em causa seja administrativa, quando as partes contratuais sujeitem o contrato a um regime de direito público, quando se trate de um contrato de objeto passível de ato administrativo e quando o procedimento pré-contratual que antecede a celebração do contrato seja regulado por normas de direito público. Mantém-se a competência dos tribunais administrativos em função da natureza do contrato, mas acrescenta-se o critério da natureza do procedimento pré-contratual subjacente. A competência dos Tribunais Administrativos é ainda alargada aos processos de impugnação de atos pré-contratuais constantes de procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público. Salvaguardava-se, pois, a possibilidade de cumulação entre o pedido de impugnação de um destes atos com pedidos relativos ao contrato posteriormente celebrado (alínea “c” do n.º 2 do artigo 47.º CPTA).

b) Competência para julgar pedidos de indenização fundados em responsabilidade extracontratual do Estado ou dos seus órgãos, funcionários, agentes ou servidores (alíneas “g”, “h” e “i” do n.º 1 do art. 4.º ETAF). O ETAF acolheu duas inovações importantes nesta matéria. Atribui competência aos tribunais administrativos para julgar pedidos de indenização fundados em atos praticados no exercício das funções jurisdicional e legislativa, embora seja excluída a competência para os processos de impugnação dos atos causadores dos danos (alínea “a” do n.º 2 do art.4.º), fato que só se justifica em virtude da plena autonomia das ações de impugnação face às ações de responsabilidade (n.º 1 do art. 38.º CPTA). Quanto à responsabilidade fundada no exercício da função jurisdicional, optou-se por apenas incluir no âmbito da jurisdição administrativa a que resulte do funcionamento da administração da justiça (alínea “f” do n.º 1 do artigo 4.º ETAF). Assim, a responsabilidade do Estado e as correspondentes ações de regresso fundadas em erro judiciário, apenas se incluem no contencioso administrativo quando respeitem a fatos resultantes das atividades dos tribunais administrativos (alínea “a” do n.º 3 do artigo 4.º ETAF). Já quando se trate de averiguar acerca 16


da responsabilidade do Estado pelo exercício da função jurisdicional motivada por erro judiciário em tribunais de outras ordens, serão competentes, em regra, os tribunais dessas mesmas ordens. Por outro lado, o ETAF atribui competência a esta ordem de tribunais para julgar todos os pedidos indenizatórios fundados em responsabilidade extracontratual das pessoas coletivas públicas, eliminando o atual critério delimitador da natureza pública ou privada do ato de gestão que gera o pedido, causador de grandes incertezas na determinação do tribunal competente. São, igualmente, da competência dos tribunais administrativos as ações de responsabilidade civil extracontratual fundadas em atos praticados por sujeitos privados, sempre que estes sujeitos estejam submetidos ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelo exercício da função administrativa, nos termos da respectiva lei substantiva. Exclui-se do âmbito da jurisdição administrativa a competência para a fixação de indenização na seqüência de expropriação por utilidade pública, que se mantém nos tribunais comuns.

c) Litígios entre pessoas coletivas de direito público e entre órgãos públicos (alínea “l” do n.º 2 do artigo 4.º ETAF) O ETAF prevê de forma clara e expressa a competência dos tribunais administrativos para a resolução de litígios entre pessoas coletivas de direito público e entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes incumbe prosseguir. Trata-se de uma importante inovação, que surge no seguimento de novas linhas de entendimento do relacionamento entre entidades públicas, sendo cada vez mais freqüentes os litígios entre elas pelo fato de nem sempre prosseguirem interesses coincidentes.

d) Execução de sentenças administrativas (alínea “n” do n.º 2 do artigo 4.º ETAF) Os tribunais administrativos passam a deter a competência plena e exclusiva para execução das suas próprias sentenças, pondo assim termo a um sistema dúbio e moroso, no que respeita ao processo executivo de sentenças administrativas. Esta inovação pressupõe a configuração de meios processuais verdadeiramente executivos no novo modelo de contencioso administrativo. O ETAF excluiu do âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de litígios resultantes de contratos de trabalho que não conferiam a qualidade de agente administrativo, mesmo que uma das partes seja uma pessoa coletiva pública (alínea “d” do n.º 3 do artigo 4.º ETAF). Excluiu também a fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (alínea “b” do n.º 3 do artigo 4.º ETAF), e ainda, a fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura ou pelo respectivo Presidente (alínea “c” do n.º 3 do artigo 4.º ETAF).

3.2 Organização da jurisdição administrativa e fiscal e distribuição de competências entre os tribunais administrativos 17


O ETAF prevê a existência de um Supremo Tribunal Administrativo, do Tribunal Central Administrativo e de tribunais administrativos de círculo (artºs. 11.º, 31.º e 39.º ETAF). O ETAF prevê ainda a possibilidade de o Tribunal Central Administrativo ser desdobrado em tribunais administrativos regionais (n.º 1 do art. 9.º ETAF), fato que fundamentou o Governo a criar o Tribunal Central Administrativo do Norte e o Tribunal Central Administrativo do Sul. Refira-se também a possibilidade de os tribunais administrativos de círculo serem agregados aos tribunais tributários, tal como sucedia já quanto aos tribunais administrativos e tributários do Funchal e de Ponta Delgada (n.º 2 do art. 9.º ETAF). O Supremo Tribunal Administrativo assumiu a tarefa de funcionar como regulador do sistema, função adequada a uma instância suprema, competindo-lhe apreciar, em regra, questões de relevante importância jurídica ou social, nomeadamente:

a) Recursos para uniformização de jurisprudência fundados em oposição de acórdãos, cabendo a competência ao pleno da seção (art. 152.º CPTA e 25.º-1-b ETAF); b) Recursos de revista de decisões do Tribunal Central Administrativo proferidas em segunda instância, quando esteja em causa uma matéria que, pela sua relevância jurídica ou social sejam de importância fundamental ou a admissão do recurso seja necessária para melhor aplicação do Direito. A competência para julgar estes recursos cabe à seção de contencioso administrativo (artigo 150.º CPTA e n.º 2 do artigo 24.º ETAF); c) Recurso de revista per saltum de decisões de tribunais administrativos de círculo, quando o valor da causa seja superior a três milhões de euros e apenas sejam suscitadas nas alegações questões de direito, sendo a seção de contencioso administrativo a competente para apreciá-lo (artigo 151.º CPTA e n.º 2 do artigo 24.º ETAF); d) Reenvio prejudicial de casos pendentes nos tribunais administrativos de círculo, quando se coloque perante estes tribunais uma questão de direito nova, que suscite sérias dificuldades e possa vir a colocar-se noutras situações. Compete ao pleno da seção julgar estes casos (artigo 93.º CPTA e n.º 2 do artigo 25.º ETAF); e) Conflitos de jurisdição entre tribunais administrativos e tributários ou seções de contencioso administrativo ou tributário, cabendo ao plenário o respectivo julgamento (artigos 135.º e ss. CPTA e 29.º ETAF), bem como os conflitos de competência entre tribunais administrativos, devendo estes ser apreciados pela seção de contencioso administrativo (artigos 135.º e segs. CPTA e alínea “h” do n.º 1 do artigo 24.º ETAF).

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A seção de contencioso administrativo do Supremo Tribunal Administrativo mantém, a título excepcional, algumas competências de primeira instância, fundamentadas no critério do autor do ato. Trata-se dos processos relativos a ações ou omissões materialmente administrativas do Presidente da República, Assembléia da República e seu Presidente, Conselho de Ministros, Primeiro-Ministro, Presidentes de tribunais supremos, Conselho Superior de Defesa Nacional, Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e seu Presidente, Procurador-Geral da República e Conselho Superior do Ministério Público (n.º 1 do artigo 24.º ETAF). Cabe-lhe ainda o julgamento de todos os pedidos cumulados com o relativo à ação ou omissão do órgão em causa (alínea “e” do n.º 1 do artigo 24.º ETAF). Novidades marcantes do novo regime são a previsão de alçadas para os tribunais administrativos, relevantes para efeitos de admissibilidade de recurso jurisdicional (artigo 6.º ETAF e n.º 1 do artigo 142.º CPTA), bem como, de regras para a determinação do valor das causas (artigos 31.º a 34.º CPTA). Estas regras relevam para efeitos de admissibilidade de recurso, mas também, para efeitos de determinação da forma de processo da ação administrativa comum (processo ordinário, sumário ou sumaríssimo, artigos 31.º, 35.º e 43.º CPTA). São ainda relevantes para, em ação administrativa especial, determinar se o caso é julgado por juiz singular ou em formação de três (art. 31.º CPTA). As novas regras de distribuição de competências entre tribunais administrativos redundaram num alargamento muito significativo das competências e poderes dos tribunais administrativos de círculo, o que, por sua vez, determinou alterações ao nível da formação para julgamento destes mesmos tribunais. Assim, a regra segundo a qual as causas nos tribunais administrativos de círculo são julgadas por juiz singular é alterada, no sentido de se prever o julgamento por uma formação de três juízes, sempre que o processo consista numa ação administrativa especial e a causa tenha valor superior à da alçada do tribunal, (alínea “b” do n.º 2 do artigo 31.º CPTA e n.º 3 do artigo 40.º ETAF). Tratando-se de uma ação administrativa comum, apenas intervém o tribunal coletivo quando a forma de processo seja ordinária e as partes assim o requeiram (artigo 40.º ETAF). Acresce que, nos tribunais administrativos de círculo, o julgamento pode ocorrer com a intervenção de todos os juízes do tribunal quando o respectivo presidente assim o entenda, em face de uma questão de direito nova, que possa ser colocada em futuros litígios (artigo 93.º CPTA). Por fim, ressaltamos que tal reforma resultou no funcionamento de 16 (dezesseis) tribunais administrativos e fiscais de primeira instância no Continente e Ilhas, 02 (dois) tribunais centrais administrativos, o do Norte e o do Sul, e um Supremo Tribunal Administrativo, com sede em Lisboa, resultando uma maior distribuição geográfica dos tribunais, propiciando uma prestação mais eficiente da tutela jurisdicional administrativa. Vejamos o organograma da jurisdição administrativa portuguesa:

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Quanto aos sistemas administrativos de tipo Britânico e Francês, concluímos que houve, no correr da evolução, uma considerável aproximação, principalmente no que tange à organização administrativa, ao direito substantivo da Administração, ao regime da execução das decisões administrativas, e no rol de garantias jurídicas dos particulares. Apesar da aproximação destes sistemas, as diferenças se mantiveram quanto ao tipo de controle jurisdicional da Administração, onde, na Inglaterra há unidade de jurisdição e na França, dualidade de jurisdições. Em termos de sistema Administrativo, nomeadamente no seu controle judicial, Portugal e Brasil se diferem, respectivamente, tal como França e Inglaterra, sob os aspectos estruturais e orgânicos. A razão de ser dos tribunais administrativos portugueses, conforme alguns doutrinadores defendem, atualmente não significa haver um privilégio de um foro privativo da Administração, mas sim, na vantagem de uma especialização material dos seus órgãos jurisdicionais. Por sua vez, o fato de no Brasil se adotar o sistema de jurisdição única no controle judicial da Administração, não significa remetê-la sempre a normas materialmente privadas. Pois, embora regulada por diplomas substancialmente privados, a Administração tem poderes de autoridade para impor aos particulares as soluções de interesse público que forem indispensáveis salvaguardados em normas materialmente administrativas. Pelas razões apresentadas no correr deste estudo, entendemos que a organização judiciária única brasileira se mostra mais simplificada ao submeter aos tribunais comuns o controle jurisdicional da Administração, e sob uma ótica pragmática, observamos que tal sistema se mostra mais viável pelas proporções continentais de seu território. Contudo, ao analisar o sistema do contencioso administrativo português, embora se tratar de uma estrutura mais complexa, concluímos que a especialização da jurisdição administrativa pode resultar em uma justiça mais coerente e substancial no plano administrativo.

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5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo. 3ª Edição. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2006. —. Curso de Direito Administrativo. Vol. II. Coimbra: Almedina, 2007. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 18ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2014. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 40ª Edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2014. PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 27ª Edição. São Paulo: Atlas, 2014.

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FORMAÇÃO DA CULTURA PARTIDÁRIA BRASILEIRA Silvino Morais Barros2

RESUMO

O artigo traçará um perfil social e político do partido político no Brasil. Com base no referencial eqüitativo do campo partidário, se utilizou dos estatutos dos 27 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral para formar uma amostra nomeada para compor o tipo ideal partidário do país. Por arremate, abre-se a discussão sobre a reforma política: qual o modelo político que o parlamento brasileiro justificará e legitimará para as gerações seguintes?

Palavras-chave: parlamento, partidos políticos, democracia, presidencialismo.

INTRODUÇÃO Falar de política não é caretice, pois os jovens do país já deixaram muito de seu suor e sangue nas ruas e praças, a lutar por democracia. O sonho do país do futuro acordou, para fazer do seu cotidiano dias melhores, pois quem soube fez sua própria hora. Porque não se esperará mais pelo que fosse seu é que igualdade, liberdade e representação se tornaram realidade político-partidária aos cidadãos brasileiros. Para se construir o perfil social e econômico dos partidos políticos de um país democrático há que se falar do seu território, do seu povo e seu governo. Na primeira parte, apresenta-se essa nação, que é a alma do estado brasileiro. Em seguida, pela necessidade de se gerar informações sobre o poder, algo inerente ao ser humano, remove-se o véu que não deixou passar aos olhos do povo brasileiro qual fosse o seu lugar nos jogos de poder. Nessa ótica, conclui-se que o cidadão se tornou alheio de seu papel social, qual seja ser o centro em torno do qual giram os demais círculos de institucionalização de poder (sociedade civil organizada, poderes executivo, legislativo e judiciário). 2

Membro da União Brasileira de Escritores. Especialista em Docência do Ensino Superior. Bacharel em Ciências Sociais e Ciências Econômicas. Consultor em Economia Política e Sociologia da Educação.

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Enfim, que uma reforma política deva ser antes uma jubilação pela consulta ao público, do que uma emenda constitucional em fatias.

1 NAÇÃO BRASILEIRA A passagem de colônia a império brasileiro representou um dos fatos sociais mais importantes de nossa história nacional, por meio de revoltas, revoluções e resistências armadas. “Dir-nos-hão : pregais em todo caso o direito da revolução ? Sim e não; distinguimos, como diria o escolástico. Nós, cidadãos de um paiz livre, em tempos normaes, em que a constituição funcciona regularmente, em que todos os poderes, devidamente discriminados, vivem independentemente, seriamos mais do que insensatos, seriamos perversos, se ensinássemos ao povo tão fatal doutrina, se o fizéssemos conhecedor ou lhe conferíssemos esse direito anarchico, cuja existência ellesó deve conhecer no dies ircB, no dia terrivel e fatal do inteiro desengano. Se fossemos deputado, seriamos até suicidas, contradictorios e absurdos se, no parlamento, erguêssemos a voz em prol de tão ominoso principio. Se, como deputado, faríamos parte de uma instituição legal e constitucional, se a constituição éque nos conferiria o direito de fallarmos nessa assembléa dos eleitos da nação, como iríamos sustentar principies que postergão a constituição e aniquilariãoo titulo de nosso poder? Não seria inteiramente desautorar-nos? Com que direito seriamos legislador? Como poderíamos exigir o cumprimento da lei, para cuja adopção tivéssemos concorrido, nós que pregaríamos o desrespeito á lei fundamental, que, no gozo da bemaventurança constitucional, admittiriamos um direito illegal, que é a negação de toda a lei escripta?”3

Isso representou um ritual de passagem muito forte na consciência coletiva independente da vindoura nação republicana. O grito deixou a herança social que permanece até os dias atuais: democracia. Ao contrário das violentas tendências revolucionárias de América do Norte 1787 e Europa 1789, em relativa paz, os princípios democráticos se assentaram nos alicerces do império do Brasil 1824. 3

VEIGA. Evaristo Ferreira da. Revolução de 07 de Abril de 1831, por um fluminense amante da Constituição. J. VILLENEUVE e Cia. RJ, 1862. (digitalized by BRAZIL COLLECTION, UNIVERSITY OF TORONTO LIBRARY - 2009)

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“Passada a fase da independência, quando a facção dos exaltados, expressão dos sentimentos nacionalistas, digladiou-se com a dos caramurus, que representavam os interesses lusitanos ainda fortemente presentes, é somente após a queda do imperador D.Pedro I, afastado pelo Golpe de 7 de Abril de 1831, que os partidos políticos assumem uma função institucional.”

A família, a escola, a igreja, o sindicato, a empresa e o partido político são instituições sociais para as quais os indivíduos emanam seus poderes, do centro para a borda, á sociedade civil organizada e ao estado. Agora, é importante ir mais fundo, para saber que o lar, a educação, a religião, a força de trabalho, o mercado e a política são as instituições totais das quais derivaram aquelas. O estado, por exemplo, exerce seu papel de zelar pela coesão e controle de todo esse rolamento de esferas sociais. Movimento eterno que reproduzirá a cultura de amanhã. Toda instituição social, portanto, é um padrão de controle. “o novo regime implantado a partir da Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, devido a sua imposição militar, contou com escassa presença de republicanos autênticos. A república foi obra de generais não de políticos civis. Mesmo assim, obedecendo ao espírito federativo tão reclamado, surgiram partidos regionais (Partido Republicano Paulista, Partido Republicano Mineiro, e assim por diante) que gradativamente desativaram as tentativas de formação de agremiações nacionais (os Partidos Republicanos Federais/ Liberais e Conservadores, que tinham ambição de agregar forças políticas no país inteiro, não foram adiante).”

Existe certo consenso nas ciências sociais em torno do processo histórico de construção social da realidade política, sua institucionalização de poder e reprodução cultural pela linguagem. Nessa eterna busca por mais conhecimento sobre identidade e alteridade, entre o si-mesmo e o outro, é que a sociologia e a antropologia encontraram suas bases duráveis de argumentação e sustentação teóricas para dizer: nas relações sociais e na cultura se encontram as respostas para as questões complexas, tais quais violências simbólicas e descrições densas. Já que se friccionam dentro da sociedade laica, isonômica e paritária as instituições alimentaram com ideias e pessoal toda essa estrutura representativa econômica, social e política que as instituições sociais de ensino se tornaram. Poderosas na transmissão de usos e costumes, elas são exteriores a nós, objetivas pelo consenso, coercitivas pelo poder, dotadas de autoridade moral pelos seus títulos e, enfim, deixam historicidade para que no milênio seguinte os registros possam ser consultados 25


livremente. Somos uma nação de conhecimento, porque conhecer é poder. “A essência da democracia reside em dois princípios fundamentais: o voto e os Partidos Políticos. Quando nascem a liberdade e a democracia, aparecem os partidos políticos, símbolos da participação do povo na soberania do Estado. Portanto, podemos entender como Partido Político a divisão do povo de uma nação em vários agrupamentos, cada um deles possuindo seu próprio pensamento no que diz respeito à maneira como a Nação poderá ser governada. Os partidos servem para exprimir e para formar a opinião pública. São um foco permanente de difusão do pensamento político, além de estimular os indivíduos a manter, exprimir e defender suas opiniões”4.

É sabido que a linguagem é essa principal instituição humana, porque ela faz a ligação entre o plano do pensamento com o do sentimento e da ação. Nessa construção social da realidade, pela linguagem ampliada (códigos restritos e complexos), foi que o habitus político brasileiro se edificou, pós 1988, em conhecimento democrático durável e transferivel. Nisso, os partidos políticos encontraram solo fértil para se desenvolverem no território do campo político brasileiro, desde a colônia. Essa noção de que o estado é uma abstração pura, tangível apenas no conhecimento, faz a manutenção da idéia de perenidade de serviços e bens públicos como garantias de vida, liberdade e bens para os nossos descendentes. O estado é uma realidade abstrata. Ele já foi monstro bíblico. Por ser revestido com as escamas humanas fez o estado Leviatã que, ajustado ao estilo liberal inglês, chegou de tirano a ente filantropo (o estado de bem estar social) no Brasil. Mas, em todos os casos, uma questão é pertinente: os partidos políticos ajudaram a construir a cultura política brasileira? A resposta positiva é clara, mas, quando e como perpetraram isso?

2 PARTIDOS POLÍTICOS BRASILEIROS A representação público-partidária é essencialmente a forma de se construir o campo político, pois fracionaram as parcelas do pão feito com farinha de milho estatal, para o comerem sozinhos, diante da fome crescente da nação ‘em desenvolvimento’. 4

http://jus.uol.com.br/revista/texto/1503/evolucao-historico-sociologica-dos-partidos-politicos-no-brasil-imperial

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Hoje, o estado tenta representar o poder político do povo, para o povo, por meio de seus representantes. Mas, ele acabou institucionalizado, menos um estado supranacional e mais uma série de normas burocratizantes. Estruturas de cartório que fazem dos ofícios e protocolos as senhas entre a vida e a morte dos ‘comuns’: “O Tribunal Superior Eleitoral editou a Resolução-TSE nº 22.610, de 25.10.2007, alterada pela Resolução-TSE nº 22.733, de 11.03.2008, que disciplina o processo de perda de cargo eletivo e justificação de desfiliação partidária. De acordo com a Resolução, o partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa. Conforme § 1º, do art. 1º, considera-se justa causa a incorporação ou fusão do partido, a criação de novo partido, a mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário e grave discriminação pessoal. Podem formular o pedido de decretação de perda do cargo eletivo o partido interessado, o Ministério Público Eleitoral e aqueles que tiverem interesse jurídico, de acordo com a norma”5.

3 PERFIL SOCIAL E ECONÔMICO DOS PARTIDOS POLÍTICOS BRASILEIROS Partindo do pressuposto de que os partidos políticos alimentam o habitus do campo político, foram construídos quatro tipos ideais para se montar o perfil partido político brasileiro. Tais tipificações foram observadas nos estatutos selecionados na amostra (de 4 partidos e estatutos) selecionada no universo de 27 partidos políticos registrados no TSE. Composição da amostra6: PMDB. PT. DEM. PSB.

A construção do perfil do partido político brasileiro, com base nos estatutos dos partidos. 1.

Filiação: trata-se, aqui, de como ingressar no partido político. a.

5

Ideologia: capitalista (voltados para o desenvolvimento econômico).

http://www.tse.gov.br/internet/partidos/fidelidade.htm

6

Amostragem aleatória simples. Os 27 partidos receberam foram numerados de 1 a 27. Em seguida, foram colocados em uma urna. Enfim, retirados um a um (sem reposição), compuseram a seguinte amostra: 1-PMDB, 4-PT, 5-DEM, 7-PSB.

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2.

b.

Financiamento: público e privado (com prestação de contas).

c.

Núcleos de Base: insipiente (estrutura burocrática).

Organização do partido: na ocasião, pensa-se em como se estrutura o partido. a.

3.

Conselhos em geral (fiscal, administrativo, etc.): estruturados.

Comissão de ética: nesse momento, pensa-se em como os casos desviantes de postura de um membro partidário possa ser julgado pelo consenso de uma assembléia. a.

4.

Processos administrativos: atuante.

Coligação: agora, em como o partido se agrupa com outros partidos. a.

Em função do estatuto: livre (todos podem se associar).

b.

Em função da ideologia partidária: nenhum impedimento (pois não há ideologia diferente entre os partidos).

c.

Em função do poder econômico, da tradição e do status: livre (todos podem se associar).

4 RESULTADOS A amostragem se justificou útil na construção do perfil dos partidos políticos brasileiros. Os estatutos dos partidos observados atendem o disposto em Lei Nº. 9.096, DE 19 DE SETEMBRO DE 1995, DOU de 20.09.1995: “CAPÍTULO

III

Do

Programa

e

do

Estatuto

Art. 14. Observadas as disposições constitucionais e as desta Lei, o partido é livre para fixar, em seu programa, seus objetivos políticos e para estabelecer, em seu estatuto, a sua estrutura interna, organização e funcionamento. Art. 15. O Estatuto do partido deve conter, entre outras, normas sobre: I - nome, denominação abreviada e o estabelecimento da sede na Capital Federal; II III

-

filiação -

e

direitos

desligamento e

de

deveres

seus

membros;

dos

filiados;

IV - modo como se organiza e administra, com a definição de sua estrutura geral e identificação, composição e competências dos órgãos partidários nos níveis municipal, estadual e nacional, duração dos mandatos e processo de

eleição

dos

seus

membros;

V - fidelidade e disciplina partidárias, processo para apuração das infrações 28


e aplicação das penalidades, assegurado amplo direito de defesa; VI - condições e forma de escolha de seus candidatos a cargos e funções eletivas; VII - finanças e contabilidade, estabelecendo, inclusive, normas que os habilitem a apurar as quantias que os seus candidatos possam despender com a própria eleição, que fixem os limites das contribuições dos filiados e definam as diversas fontes de receita do partido, além daquelas previstas nesta

Lei;

VIII - critérios de distribuição dos recursos do Fundo Partidário entre os órgãos de nível municipal, estadual e nacional que compõem o partido; IX - procedimento de reforma do programa e do estatuto”.

5 IDEOLOGIA7 Os partidos políticos brasileiros possuem forte ideologia capitalista: se cobra taxas de todo gênero (da filiação, de ofícios, do desligamento); realiza-se pagamento de ordenado a sua diretoria executiva e demais direções e conselhos (e delegados); recebem doações de entidades com fins lucrativos; recebem recursos públicos na forma do repasse do fundo constitucional partidário. 6 FINANCIAMENTO8 Os quatro partidos políticos selecionados recebem, bem como os demais do universo, repasses do Fundo Partidário, conforme a Lei n° 11.459, de 21 de março de 2007. Os recursos da União são divididos entre os partidos, por duodécimos e multas, a somar Dotação orçamentária/2011 de R$ 265.351.547,00, e multas somando R$ 36.131.748,00. 9 Além dessa rica fonte de financiamento, os partidos políticos podem receber doações de entidades com fins lucrativos, a serem descritas em balancetes próprios para a prestação de contas no TSE.

7

Por ideologia tem-se o instrumento de dominação pela linguagem. O conjunto de ideais formado em dada cultura. As idéias e valores pessoais e de grupo que formam o pensamento coletivo. A forma ampliada de ver o mundo político: em capitalismo, socialismo, comunismo, fundamentalismo, numa economia plana, livre e mista. Em épocas anteriores, a divisão de poderes políticos em esquerda, centro e direita. 8 Por financiamento tem-se a forma econômica de custeio das funções administrativas dos partidos políticos. 9 http://www.tse.gov.br/internet/partidos/fundo_partidario/2011.htm

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7 NÚCLEOS DE BASE10 Com base nos estatutos dos partidos observados, se perguntou sobre os Núcleos de Base: qual o papel dos partidos políticos no processo de formação local da cultura política democrática brasileira? O papel dos partidos políticos no processo de formação da cultura política brasileira é aproximar o cidadão da vida político-partidária, partindo da política local e chegando à esfera da nacionalidade partidária (convenções municipais, estaduais e nacionais). Em PMDB as comissões executivas municipais e zonal apresentam apenas a estrutura formal e, por si, não fazem a ponte com a sociedade local. Tal ponte é feita por outro veiculo, uma fundação (entidade de direito privado sem fins lucrativos), para fazer aproximação do partido com os movimentos sociais (exemplo: em pesquisas e programas de incentivo). Em PT os núcleos de base se mantêm presentes a manter o contato do partido com a sociedade local, por meio da aproximação do partido com os movimentos sociais (exemplo: na formação política e militância). Em DEM os núcleos de base se tornaram esferas de intervenção direta em sociedade, por meio de ações partidárias específicas em movimento sociais (exemplo: em favor da mulher e da juventude). Em PSB os núcleos de base permanecem como formas de intervenções zonais e municipais, por meio da aproximação com movimentos sociais (exemplo: nos sindicatos e movimentos populares). Conselhos em geral (fiscal, administrativo, etc.) Os partidos observados mantêm sua estrutura partidária muito bem delimitada, apresentando cada esfera administrativa em seus estatutos. Comissões de ética Os partidos políticos reservam espaço específico para o conselho de ética, que os processos administrativos de lesão ao aparato legal (estatuto) sejam julgados, de maneira a garantir ampla defesa a seus membros envolvidos em litígio. 10

Por núcleos de base pensa-se nas ações sociais que compreendem as intervenções que os partidos políticos realizam em dada localidade em sociedade. Bem como em como os partidos políticos tendem (abordagem) para a sua fonte de existência, o eleitor (filiado e não membro).

30


Coligações Em função do estatuto, os partidos observados estão abertos a todo tipo de coligações previstas em estatuto. Os estatutos observados apresentam uma única barreira á coligação: partido ativo. Nenhuma limitação a não ser a efetividade do partido impede qualquer tipo de coligação. Em função da ideologia partidária, os partidos não oferecem nenhuma restrição ideológica para a formação de coligações. Por não haver ideologia partidária definida, no campo político brasileiro, os partidos estão livres para transitar entre oposição e governo quando bem entender a ocasião política, prazo e estatuto. Em função do poder econômico, do status e da tradição. Os partidos políticos aglomeram-se em torno do poder econômico, para garantir maior parcela tempo de propaganda eleitoral e aumento do repasse do fundo constitucional. Os partidos se assemelham em grupos de pressão (bancadas), voltados para uma dada condição de status vigente (exemplo: bancada da religião, do esporte, do agro negócio) em detrimento da legislação municipal, estadual e nacional. Os partidos se agrupam em blocos pela sua tradição, ao longo da historia política do Brasil. O estilo histórico do café (SP) com leite (MG) cedeu lugar para a ciranda de ministérios e secretarias que se espalharam por todos os entes da Federação. O troco pela associação partidária em coligações está pautado na hipertrofia do poder executivo sobre os demais poderes. A tradição de se obter alguma vantagem política (em coligações) está mais presente no próprio poder executivo (ministérios e secretarias, cargos em estatais e agências de regulação) e no legislativo (assessores e terceirizações). No judiciário o executivo pressiona a formação de cortes nos tribunais de contas, nas cortes superiores e no supremo. “As dificuldades que o Brasil enfrenta presentemente de solidificação de seus partidos políticos como mediadores entre Estado e sociedade; a nãoconsolidação de uma economia que estabeleça parâmetros mínimos de redistribuição de riqueza; e a onda generalizada de corrupção institucional e o agravamento da situação social no país, propiciam algumas reflexões sobre o impacto desses fatores na estruturação da cultura política do país, bem como uma avaliação do próprio processo de construção democrática. De maneira geral, nos últimos anos, as pesquisas de opinião pública têm revelado um declínio acentuado da confiança que os brasileiros depositam 31


nas instituições políticas e particularmente na classe política. Nota-se claramente,

também,

uma

fragilização

dos

laços

sociais

e

a

institucionalização do individualismo, com o interesse privado ou individual se sobrepondo ao interesse coletivo. Poder-se-ia argumentar que essa situação não constitui uma novidade, pois sempre foi assim, e, ainda mais, a presença desses fatores na sociedade brasileira não poderia ofuscar os avanços obtidos no campo da democratização ao longo das duas últimas décadas.11

8 A REFORMA POLÍTICA NO PARLAMENTO BRASILEIRO Para que os partidos possam receber uma nova roupagem da sociedade, a reforma política deve sair da gaveta e tomar as ruas, em busca de uma cara nacional que fora perdida na adesão dos partidos ao mercado. Temas centrais como a fidelidade partidária, a desvinculação nacional vertical, o pluripartidarismo e o voto secreto são garantias que hão de permanecer depois da reforma política. Por ser uma reforma estruturante para a vida política brasileira, os parlamentares devem atentar-se para o fato de que o modelo atual (direto e proporcional) está falido. O lugar está vago, para o modelo distrital. Se o voto será em listas abertas ou fechadas, puro ou misto, isso deve entrar em pauta no Congresso, pois as vantagens de se escolher uma e outra forma de voto distrital devem ser mostradas aos brasileiros, já que Reino Unido, EUA, Itália, França e Alemanha já adoram o modelo distrital. O caso brasileiro deve pensado de maneira local, estadual e nacionalmente, haja vista que nossa cultura política é forte e está assentada em princípios fundamentais de isonomia e paridade que garantem aos nossos descendentes a proteção da vida, a liberdade ampla e irrestrita de pensamentos e ações, e, a representação políticopartidária.

9. CONCLUSÕES Portanto, o estilo que vem sendo proposto, atualmente, na Câmara pretende fazer muito mais um retalho da Constituição do que uma reforma política. Fala-se em ‘distritão’, uma junção do modelo atual falido com um voto pessoalizado. Longe disso, 11

BAQUERO, MARCELLO. Cultura política participativa e desconsolidação democrática: reflexões sobre o Brasil contemporâneo. São Paulo Perspec. [online]. 2001, vol.15, n.4 [citado 2011-06-04], pp. 98-104 .

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precisamos fortalecer mais os núcleos de base e trazer a vida partidária para dentro dos lares dos mais de 190.000.000 de cidadãos que estarão acompanhando as eleições que ocorrerão, em 2014 e 2016 (já com Ficha Limpa em ação), e, menos a aproximação dos partidos com os interesses econômicos. Enfim, saibamos que não se faz da luta partidária um estilo de vida, muito menos profissão, já que o partido é o lócus em que brota a alma do estado de direito!

REFERÊNCIAS Disponível

em

http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/AS%20PROVAS%20IL%C3%8DCITAS.p df(Acessado em 01/07/2014). Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/1503/evolucao-historico-sociologicados-partidos-politicos-no-brasil-imperial. (Acessado em 01/07/2014)

Disponível em: http://www.tse.gov.br/internet/partidos/fidelidade.htm. (Acessado em 01/07/2014)

Disponível em: http://www.tse.gov.br/internet/partidos/fundo_partidario/2011.htm. (Acessado em 01/07/2014)

BAQUERO, Marcello. Cultura política participativa e desconsolidação democrática: reflexões sobre o Brasil contemporâneo. São Paulo Perspec. [online]. 2001, vol.15, n.4 [citado 2011-06-04], pp. 98-104 .

VEIGA. Evaristo Ferreira da. Revolução de 07 de Abril de 1831, por um fluminense amante da Constituição. J. VILLENEUVE e Cia. RJ, 1862. (digitalized by BRAZIL COLLECTION, UNIVERSITY OF TORONTO LIBRARY - 2009)

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O CONFLITO DE DIREITO FUNDAMENTAL NAS RECENTES MANIFESTAÇÕES POPULARES OCORRIDAS NO BRASIL: DIREITO DE MANIFESTAÇÃO VERSUS DIREITO DE LOCOMOÇÃO

Izabela Guimarães Cunha e Silva12 José do Carmo Cruzeiro13

RESUMO A pesquisa ora apresentada aborda os frequentes casos de colisões de direitos fundamentais ocorridos nas manifestações populares no Brasil em junho de 2013. O estudo constata que os locais utilizados nas manifestações invariavelmente eram estradas e rodovias, o que denota a colisão do direito de reunião ante o direito a liberdade de locomoção, uma vez que milhares de pessoas trafegavam por essas vias interditadas. O presente trabalho tem por objeto demonstrar a ocorrência desses conflitos e por fim, denotar soluções para que o lícito direito a manifestação não enseje colisão ante o direito a liberdade de locomoção das pessoas.

Palavras-Chave: direito de manifestação; direito de locomoção; colisões de direitos fundamentais; estradas e rodovias interditadas.

INTRODUÇÃO

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Doutoranda e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,

Portugal (Revalidação pela UFPR). Especialista em Direito Público e Jurisdição pela Escola da Magistratura do Distrito Federal. Professora de graduação e pós-graduação das disciplinas de 1) Direito Administrativo, 2) Direito Constitucional, 2) Direito Civil (Teoria Geral, Obrigações e Contratos) e 3) Direito Internacional. Atualmente é professora das Faculdades Integradas da União Educacional do Planalto Central - FACIPLAC e do Centro Universitário - UNIEURO. Orientadora e integrante de Bancas de TCC s em várias instituições de ensino. Professora com experiência na preparação de alunos para as provas de 1ª e 2ª fases da OAB. Advogada atuante na área cível e empresarial. 13

Graduando em Direito pelas Faculdades Integradas da União Educacional do Planalto Central

– FACIPLAC. 34


O presente artigo versa sobre o conflito entre o direito constitucional à manifestação e o direito constitucional de locomoção, dois dos principais direitos resguardados em nossa Carta Magna, tendo por pano de fundo as manifestações públicas ocorridas em junho de 2013, que ocorreram majoritariamente em estradas e rodovias de grande fluxo, impedindo, consequentemente, o livre tráfego e, portanto, o livre exercício do direito de locomoção. Assim, relembram-se, neste prólogo, os conceitos basilares da doutrina dos Direitos fundamentais. Os Direitos Fundamentais são aqueles que, por seu contexto histórico e de conquista por parte da sociedade, tem uma valoração inestimável, sendo essencial ao Estado garantir a sua proteção, pois a sua concretização é que sustenta a dignidade humana. No Brasil encontramos na Constituição Federal de 1988, já em seus primeiros artigos, um rol de direitos com essa importância, denotando assim a prioridade e o respeito que a norma basilar brasileira demonstra aos direitos que garantem a dignidade da pessoa humana. Observa-se que o próprio preâmbulo Carta Magna Brasileira de 1988, já menciona a relevância dos direitos fundamentais, quando os constituintes originários definiram que a função da Constituição é: "instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança".

1. CONCEITO E CONTEÚDO DOS DIRETOS FUNDAMENTAIS Existe divergência de doutrinadores em relação à terminologia dos direitos fundamentais com a de direitos humanos, entendendo como sinônimos, porém, há de se destacar, que a doutrina majoritária os diferencia com base no que expressa a própria Constituição, no sentido que direitos fundamentais expressam dispositivos positivados na Constituição Federal, enquanto os direitos humanos estão ligados as normas de tratados internacionais. José Joaquim Gomes Canotilho (1998, p. 259), em sua obra sobre Direito Constitucional elucida a questão da diferenciação entre direitos humanos e direitos fundamentais com maestria: As expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais” são frequentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado 35


poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos; direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intertemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta. Paulo Gustavo Gonet Branco (2012, p. 171), também corrobora com a posição de Canotilho, abordando que o local correto para se positivar norma de direitos fundamentais seja a norma principal de um Estado, qual seja a Constituição, assim diz: O avanço que o direito constitucional apresenta hoje é resultado, em boa medida, da afirmação dos direitos fundamentais como núcleo da proteção da dignidade da pessoa e da visão de que a Constituição é o local adequado para positivar as normas asseguradoras dessas pretensões. Os direitos fundamentais são um grupo de direitos positivados na Constituição Brasileira que garantem a dignidade da pessoa humana. Portanto, essa garantia só existe devido a "limitação do arbítrio estatal e assegurando a igualdade nos pontos de partida dos indivíduos" (Napoleão Casado Filho, 2012, p. 21, itálico do autor) Assim, entende-se que o posicionamento majoritário, que diferencia direitos fundamentais dos de direitos humanos, analisando a diferenciação que a própria CF/88 traz, ligando os direitos elencados no capítulo, dos direitos e garantias fundamentais, como direitos fundamentais, e os direitos humanos, aqueles oriundos de tratados internacionais, ambos com função de proteção da dignidade da pessoa humana.

1.1. Gerações de direitos fundamentais A doutrina muito diverge, quando vai abordar a classificação cronológica dos direitos fundamentais, em relação à terminologia adequada ser, dimensão ou geração de direitos fundamentais. (itálico nosso). Diante da divergência, vale destacar a origem do uso do termo geração. Esse foi usado pela primeira vez em 1979, em uma palestra do Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estrasburgo, França, pelo jurista tcheco, Karel Vasak, de acordo com obra de, Paulo Bonavides (2006, p.563). Napoleão Casado Filho (2012, p.39), aborda ainda que o jurista Karel Vasak, se utilizou da bandeira da França que era internacionalmente conhecida e

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dividida em três cores, para fazer uma analogia com os direitos fundamentais, os dividindo em três gerações. Casado Filho (2012, p.40), em sua obra, Direitos Humanos e Fundamentais, diz: Para o jurista tcheco, a primeira geração de direitos humanos seria a dos direitos civis e políticos, que surgiram nas revoluções burguesas (como a Francesa e a Gloriosa) e teriam seu fundamento na idéia de liberdade (liberté, representada pela cor azul da bandeira francesa), pois são formas de se limitar o arbítrio estatal. Já a segunda geração seria a dos direitos econômicos, sociais e culturais, surgidos no século XIX, como resposta comunista às desigualdades trazidas pela Revolução Industrial. Tais direitos seriam uma forma de assegurar a igualdade dos pontos de partida e têm seu fundamento no valor da igualdade (égalité, representada pelo branco da bandeira francesa). A terceira geração, na lição de Vasak, seria representada pelo direito ao desenvolvimento, pelo direito a um meio ambiente sustentável e pelo direito à paz, valores ligados diretamente à idéia de solidariedade e fraternidade (fraternité, representado pelo vermelho da bandeira francesa). Desde sua primeira aparição, o termo geração, até hoje é utilizado, como vemos na obra de Paulo Gonet e Gilmar Mendes (2012, p.172) quando diz: Essa distinção entre gerações dos direitos fundamentais é estabelecida apenas com o propósito de situar os diferentes momentos em que esses grupos de direitos surgem como reivindicações acolhidas pela ordem jurídica. (itálico nosso). Outro importante doutrinador que também utilizou o termo gerações foi Paulo Bonavides (2006, p.563, itálico nosso), que assevera, "os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestar-se em três gerações sucessivas, que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e quantitativo [...]". Para alguns doutrinadores, o grande questionamento sobre a divisão metodológica dos direitos humanos pela terminologia geração, é o fato de que esse termo traz a idéia de que existe uma evolução, substituição, das gerações mais novas em relação às antigas, porém esse entendimento não seria apropriado, pois, uma nova geração não é uma substituição de uma anterior. Assim, salientar informar a visão de Cançado Trindade (1997, p. 390), que exorta, 37


A fantasia nefasta das chamadas ‘gerações de direitos’, histórica e juridicamente infundada, na medida em que alimentou uma visão fragmentada ou atomizada dos direitos humanos, já se encontra devidamente desmistificada. O fenômeno de hoje testemunhamos não é o de sucessão, mas antes, de uma expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, consoante uma visão necessariamente integrada de todos os direitos humanos. As razões histórico-ideológicas da compartimentalização já há muito desapareceram. Hoje podemos ver com clareza que os avanços nas liberdades públicas em tantos países nos últimos anos devem necessariamente fazer-se acompanhar não de retrocesso – como vem ocorrendo em numerosos países – mas de avanços paralelos no domínio econômico-social. Para evitar conotação errada, muitos doutrinadores estão utilizando a terminologia dimensão julgando ser a mais adequada, já que geração podia gerar imprecisão ao que queria se informar. Dimitri Dimoulis (2007, p. 34-35), traz em sua obra que o doutrinador, Paulo Bonavides posteriormente reconheceria que dimensão, seria mais adequado que o termo geração, Aliás, o próprio Bonavides, no desenrolar de seu texto, acaba reconhecendo a proeminência científica do termo “dimensões” em face do termo “gerações”, “caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição, São Paulo: Editora Malheiros, 2006, p. 571-572). Para a melhor compreensão do estudo dos direitos humanos, a grande maioria dos doutrinadores, através de critérios metodológicos e didáticos os divide em três dimensões. Apesar, de atualmente alguns doutrinadores já citarem em suas obras a existência da sexta dimensão de direitos humanos. Esse entendimento é muito atacado por doutrinadores conservadores como, por exemplo, Sérgio Rezende de Barros (2013), que afirma: Tornou-se modismo descobrir mais gerações, tentação em que muitos caíram, havendo quem fale de direitos de quarta, quinta e sexta gerações. Mas não mais há gerações a descobrir e a tentativa apenas serve para tumultuar a tipificação, estorvando a eficácia dos direitos humanos, tumultuando a sua fundamentalidade e a sua operacionalidade. Apesar da crítica de alguns doutrinadores, o presente estudo abordará até a quinta dimensão de direitos humanos, haja vista, a quantidade cada vez mais crescente de doutrinadores brasileiros que reconhecerem e abordarem a quinta dimensão de direitos humanos. 38


A primeira dimensão de direitos fundamentais surgiu no contexto final do século XVIII e trata da proteção aos direitos civis, políticos e das liberdades públicas. Surgiu para limitar a atuação do Estado na liberdade individual. Daniel Sarmento (2006, p. 12-13), diz: Dentro deste paradigma, os direitos fundamentais acabaram concebidos como limites para a atuação dos governantes, em prol da liberdade dos governados. Eles demarcavam um campo no qual era vedada a interferência estatal, estabelecendo, dessa forma, uma rígida fronteira entre o espaço da sociedade civil e do Estado, entre a esfera privada e a pública, entre o ‘jardim e a praça’. Nesta dicotomia público/privado, a supremacia recaía sobre o segundo elemento do par, o que decorria da afirmação da superioridade do indivíduo sobre o grupo e sobre o Estado. Conforme afirmou Canotilho, no liberalismo clássico, o ‘homem civil’ precederia o ‘homem político’ e o ‘burguês’ estaria antes do ‘cidadão’. [...] No âmbito do Direito Público, vigoravam os direitos fundamentais, erigindo rígidos limites à atuação estatal, com o fito de proteção do indivíduo, enquanto no plano do Direito Privado, que disciplinava relações entre sujeitos formalmente iguais, o princípio fundamental era o da autonomia da vontade. Outra característica da primeira geração de direitos fundamentais é de ser reconhecida como liberdade negativa clássica, já que primava pela não intervenção do Estado na liberdade do indivíduo. Sábias as palavras de Bonavides (2010, p. 563-564), ao dizer: Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade tem por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdade ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado. A segunda dimensão de direitos fundamentais resguarda proteção no aspecto social e coletivo da sociedade, também conhecida como liberdade positiva. Contribuiu para o seu surgimento as necessidades decorrentes da Revolução Industrial, no século XIX, momento em que ocorria a queda do Estado Liberal e surgia o Estado de Bem-Estar Social. O Estado de Bem-Estar social dava atenção especial à saúde, ao trabalho, a educação e aos aspectos econômicos e culturais dentre outros necessários no contexto da época. Exímia conceituação de Araujo (2005, p.116), sobre a segunda dimensão de direitos fundamentais, que diz: [...] os direitos fundamentais de segunda geração são aqueles que exigem uma atividade prestacional do Estado, no sentido de buscar a superação das carências individuais e sociais. Por isso, em contraposição 39


aos direitos fundamentais de primeira geração – chamados de direitos negativos –, os direitos fundamentais de segunda geração costumam ser denominados direitos positivos, pois, como se disse, reclamam não a abstenção, mas a presença do Estado em ações voltadas à minorização dos problemas sociais. Em seu estudo sobre a segunda dimensão de direitos fundamentais, George Marmelstein (2008, p. 50) discorre: Nessa acepção, os direitos fundamentais de segunda geração funcionam como uma alavanca ou uma catapulta capaz de proporcionar o desenvolvimento do ser humano, fornecendo-lhe as condições básicas para gozar, de forma efetiva, a tão necessária liberdade. A terceira dimensão de direitos fundamentais teve início no final do século XX e não trata do indivíduo, mas da humanidade. Segundo, Norberto Bobbio (2004, p. 29-30), foi com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, que surgiu a terceira dimensão de direitos fundamentais, afirma que: Com a Declaração de 1948, tem início uma terceira e última fase, na qual a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que pões em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado. Complementa, Sergio Resende de Barros (2013, p. 6), que a terceira dimensão busca a proteção de direitos, tais quais, à comunicação, ao meio ambiente, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, à paz dentre outros. Atualmente, com as constantes mudanças da sociedade contemporânea e suas consequentes novas demandas, alguns doutrinadores já falam de direitos fundamentais de quarta e quinta dimensões. O direito fundamental de quarta dimensão trataria de temáticas como direito a democracia, globalização, a vida, mudança genética, dentre muitos outros. Segundo, Paulo Bonavides (2006, p. 571): São direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta para o futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência.

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Já o direito fundamental de quinta dimensão, aborda o direito a paz, Paulo Bonavides (2008, p. 583), afirma: [...] a dignidade jurídica da paz deriva do conhecimento universal que se lhe deve enquanto pressuposto qualitativo da convivência humana, elemento de conservação da espécie, reino de segurança dos direitos. Dessa forma as gerações de direitos fundamentais vão surgindo conforme as necessidades no contexto histórico, como bem salientam Gilmar Mendes e Paulo Gonet (2012, p.173): [...] alguns chamados novos direitos sejam apenas os antigos adaptados às novas exigências do momento. Assim, por exemplo, a garantia contra certas manipulações genéticas muitas vezes traz à baila o clássico direito à vida, confrontado, porém, com os avanços da ciência e da técnica. Portanto, é pelo estudo das antigas e mais importantes sociedades que se compreende que os direitos protetivos da dignidade da pessoa humana não surgiram ao acaso, foram conquistados com muita luta e ao longo de muito tempo. Para enfim, esses direitos protetivos da condição humana, fossem qualificados como direitos fundamentais do homem.

1.2 Diferenciações entre direitos e garantias fundamentais Necessário abordar a diferença entre garantias fundamentais e direitos fundamentais. As garantias fundamentais são dispositivos que tem como função assegurar que as normas constitucionais sejam cumpridas. E no caso de lesão no exercício dos direitos fundamentais são as garantias fundamentais que lhe asseguram reparação. Enquanto as garantias fundamentais são mecanismos assecuratórios de efetivação dos direitos fundamentais, nem todas constantes na Constituição Federal de 1988 (CF/88), os direitos fundamentais, constam na norma constitucional, tendo característica declaratória. As mais impotentes garantias fundamentais elencadas na CF/88 são: o habeas corpus, cuja função é a proteção a quem sofre ou esteja ameaçado de sofrer coação ou violência em sua liberdade de locomoção de acordo com a CF/88 art. 5º inc. LXVIII, o habeas data, que é a garantia descrita na CF/88 em seu art. 5º inc. LXXII alínea "a", que garante o direito a conhecer ou retificar informações por quem é titular do direito, em instituição pública ou de caráter público, e por fim, o mandado de 41


segurança cuja função quando não abraçada por habeas corpus ou habeas data é proteger direito líquido e certo por abuso de poder de autoridade pública ou pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público, conforme art. 5º inc. LXIX da CF/88. Entretanto, no campo prático vale destacar o que entende Gilmar Mendes e Paulo Gonet (2012, p.189), quando afirmam que a distinção entre direito e garantias fundamentais não é o essencial, já que a Carta Magna Brasileira dá tratamento igual tanto a direito quanto a garantia fundamental. Enfim, importante é denotar que para a Constituição Brasileira, tanto os direitos fundamentais, quanto as garantias fundamentais, possuem elevada importância jurídica, cada qual com sua função própria e cuja proteção é dever maior do Estado.

2 TEORIAS SOBRE A COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS O estudo das colisões de direitos fundamentais dá se em duas perspectivas, uma parcela de doutrinadores entende que existem as colisões aparentes e as colisões reais, já a outra parcela da doutrina, não aceita a figura das colisões aparentes.

2.1

Diferenças entre princípios e regras Para o estudo das colisões dos direitos fundamentais, necessário se faz

distinguir os princípios, das regras constitucionais. Anteriormente no ordenamento jurídico, se entendia os princípios como normas com função meramente ética, com viés norteador sobre determinado contexto jurídico, porém, esse entendimento mudou. Atualmente, se reconhece não apenas a eficácia jurídica direta dos princípios, como também sua aplicabilidade imediata, como afirma o doutrinador Barroso (2003, p. 337), afirmando que os princípios possuem,

"o status de norma

jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata". Os princípios são considerados norma de grande importância hierárquica como aborda Vale (2009, p. 129): O forte conteúdo axiológico das normas de direitos fundamentais e sua elevada posição hierárquica no ordenamento jurídico fazem com que, na maioria das vezes, elas sejam interpretadas como princípios.

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Na obra, Estrutura das Normas de Direitos Fundamentais de Vale (2009, p. 129, itálico original): o autor explica que para ordenamento jurídico brasileiro "muitas vezes os direitos fundamentais são tidos como princípios". Já as regras têm natureza rígida e inflexível, como retrata Barroso (2003, p. 337): Normalmente, as regras contêm relato mais objetivo, com incidência restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já os princípios têm maior teor de abstração e incidem sobre uma pluralidade de situações. Inexiste hierarquia entre ambas as categorias, à vista do princípio da unidade da Constituição. Importante característica dos princípios, diferentemente das regras, são o caráter normativo aberto, o que denota sua função atualizadora das normas constitucionais. Gilmar Mendes (2012, p.217), afirma: "Ultimamente, a doutrina tem sido convidada a classificar as normas jurídicas em dois grandes grupos (o dos princípios e o das regras)". Assim como, Barroso (2003, p. 337), que diz:

"dogmática moderna

avaliza o entendimento de que as normas em geral, e as normas constitucionais em particular, enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras" Entende, Gilmar Mendes (2012, p.217-218) que as regras são normas duras, inflexíveis, assim disse: As regras correspondem às normas que, diante da ocorrência do seu suposto de fato, exigem, proíbem ou permitem algo em termos categóricos. Não é viável estabelecer um modo gradual de cumprimento do que a regra estabelece. Havendo conflito de uma regra com outra, que disponha em contrário, o problema se resolverá em termos de validade. As duas normas não podem conviver simultaneamente no ordenamento jurídico. Assim, mesmo os princípios possuindo estrutura diferente das regras, para a Carta Magna Brasileira não existe diferença hierárquica entre as mesmas, como posto por Barroso (2003, p. 338): "Já os princípios têm maior teor de abstração e incidem sobre uma pluralidade de situações. Inexiste hierarquia entre ambas as categorias, à vista do princípio da unidade da Constituição". Boa parte dos doutrinadores que abordam o tema colisão de direitos fundamentais cita em suas obras a visão do filósofo do direito, Ronald Dworkin (2002, p.39), que faz uma excelente abordagem das diferenças entre os princípios e as regras: O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida 43


possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Com o entendimento das diferenças entre princípios e regras, que em síntese é: que as regras são as normas rígidas que devem ser cumpridas estritamente como a letra da lei designa, já os princípios são normas flexíveis que podem ser exercidas de formas variadas, que depende para seu exercício tanto de medidas jurídicas quanto fáticas. Portanto, é por intermédio da compreensão de que princípios e regras são distintos e que exercem papéis diferentes, embora possuam hierarquia jurídica semelhante, que se pode analisar com clareza o fenômeno da colisão de direitos fundamentais.

2.2

A colisão de direitos fundamentais O grande fator para a existência dos conflitos de normas fundamentais,

também chamado de colisões de direitos fundamentais, é pela explicação do jurista alemão Karl Larenz (1997, p. 575), que ensina: Os direitos, cujos limites não estão fixados de uma vez por todas, mas que em certa medida são abertos, móveis, e, mais precisamente, esses princípios podem, justamente por esse motivo, entrar facilmente em colisão entre si, porque sua amplitude não está de antemão fixada. Ocorre a colisão de direitos fundamentais quando princípios resguardados na Constituição Federal de 1988 se chocam. Stinmetz (2001, p. 142-143), aborda que direitos colidentes podem gerar variadas consequências: A colisão de direitos fundamentais e bens constitucionalmente protegidos, na qual a realização ou otimização de um implica a afetação, a restrição ou até mesmo a não-realização do outro. A grande complexidade em se tratar conflitos de normas fundamentais, é o fato de que essas normas são protegidas expressamente na Constituição, característica 44


que torna a apreciação pelo Poder Judiciário bem mais difícil, haja vista, que o objetivo do constituinte originário era justamente dar a relevância necessária aos direitos fundamentais ao homem, demonstrando que o ferimento a esses preceitos são de difícil reparação e consequentemente exigindo a devida cautela no julgamento dessas demandas. Stimestz (2001, p. 69), em sua obra, Colisão de direitos fundamentais e o princípio da proporcionalidade, já vislumbrava a complexidade do tema colisões de direitos fundamentais, como se pode observar: As colisões de direitos fundamentais são exemplos típicos de casos difíceis e duvidosos. Assim se caracterizam porque o que colidem são direitos fundamentais expressos por normas constitucionais, com idêntica hierarquia e força vinculativa, o que torna imperativa uma decisão, legislativa ou judicial, que satisfaça os postulados da unidade da Constituição, da máxima efetividade dos direitos fundamentais e da concordância prática. A solução da colisão é necessária além da utilização dos princípios ou postulados específicos da interpretação constitucional, exige sobre tudo a aplicação do princípio da proporcionalidade e a argumentação jus fundamental. Conflitos de direitos fundamentais são fenômenos recorrentes na atualidade, uma vez, que grande parte da sociedade reconhece quando o exercício do direito fundamental de outrem afeta um direito seu. E, julgando pelo número de direitos fundamentais salvaguardados na Constituição Brasileira de 1988, fica esclarecido o porquê, de cada vez mais esse tema surgir no Judiciário. Assim, o conflito de princípios fundamentais tem graves consequências quando se observa a importância das normas identificadas como fundamentais, uma vez que existindo esses conflitos, somente um direito poderá ter seu exercício plenamente realizado, enquanto, o direito adverso será obrigatoriamente afetado no seu exercício, podendo ainda, ser restringido ou prejudicado com o seu impedimento total. Questões relacionadas às colisões de direitos fundamentais tem sido objeto de pesquisa da doutrina como comenta, Branco (2012, p.217): As colisões de direitos fundamentais, bem assim os conflitos desses direitos com outros valores constitucionais, vêm despertando a atenção da mais moderna doutrina. O assunto se entrelaça com a busca da compreensão do conteúdo e dos lindes dos diferentes direitos fundamentais. A colisão de direitos fundamentais pode se dar de duas formas: pelo encontro de direitos fundamentais, que conforme leciona Canotilho (2002, p. 287), seria quando o comportamento de um indivíduo fosse protegido por vários direitos, garantias 45


e liberdades, ou quando determinado bem jurídico proporcionasse que uma pessoa acumule vários direitos na mesma ação. No estudo das colisões de direitos fundamentais, se observa o empenho dos doutrinadores na tarefa de caracterizar as colisões, a ponto de que se possa dar uma classificação didática de acordo com as peculiaridades da colisão estudada. Para Canotilho (2002, p. 287), a colisão de direitos fundamentais pode se dar de duas formas: a) cruzamento de direitos fundamentais, que acontece quando o mesmo comportamento de um titular é incluído no âmbito de proteção de vários direitos, liberdades e garantias e; b) acumulação de direitos, hipótese que um determinado bem jurídico, leva à acumulação, na mesma pessoa, de vários direitos fundamentais Outra forma de se definir os direitos fundamentais, quanto ao aspecto das colisões, é identificá-las em sentido amplo ou estrito, a qual foi esclarecida por Robert Alexy (1997, p. 607): Colisão de direitos fundamentais em sentido estrito ocorre, quando o exercício ou a realização do direito fundamental de um titular de direitos fundamentais tem conseqüências negativas sobre direitos fundamentais de outros titulares de direitos fundamentais; e colisão de direitos fundamentais em sentido amplo ocorrem, quando há uma colisão de direitos individuais fundamentais e bens coletivos protegidos pela Constituição. O exposto por Alexy (1997, p. 607), na forma de se caracterizar a colisão em sentido estrito, que seria em síntese, o gozo do direito de um ser motivo para o prejuízo dos direitos de outrem, e que as colisões em sentido amplo, seria os prejuízos refletidos nos direitos fundamentais elencados na Constituição, é uma metodologia válida à medida que funciona como mecanismo de fácil identificação, de qual tipo de colisão se está adiante no caso concreto.

2.3

Teorias para solução dos conflitos entre direitos fundamentais O fato de não existir, no ordenamento jurídico, norma que trate

especificadamente dos conflitos de direitos fundamentais, tornam questões sobre essa temática de difícil solução para o Poder Judiciário. Barroso (2012, p.397), entende que: "a solução para a disputa não é encontrada pré-pronta no sistema jurídico: ela precisa ser desenvolvida justificadamente pelo intérprete."

46


Desse fato, faz-se necessário a busca por soluções que possam contemplar a lacuna normativa que existe sobre as colisões de direitos fundamentais. A doutrina observa que em casos de colisões de direito fundamentais, o método da ponderação resguarda características para equacionar a melhor solução ante conflito existente, como aduz, Canotilho (2002, p. 1109): O método da ponderação de interesses é conhecido há muito tempo pela ciência jurídica. Nos últimos tempos, porém, a sua relevância tem sido, sobretudo, reconhecida no direito constitucional. Outro método eficaz, que assim como a ponderação é utilizado na resolução direitos fundamentais colidentes, é o princípio da proporcionalidade que também é largamente difundido por doutrinadores como mecanismo ideal para resolução conflitos fundamentais. Assim dispôs, Guerra Filho (2006, p. 103), "A essência e a destinação do princípio da proporcionalidade é a preservação dos direitos fundamentais". Portanto, necessário se faz, abordar as características dos dois métodos utilizados pelo Poder Judiciário para dirimir conflitos de direitos fundamentais, quais sejam: a ponderação de interesses e o princípio da proporcionalidade.

2.3.1 A técnica da ponderação de interesses Quando o Poder Judiciário se depara com colisões entre direitos fundamentais, sabe-se que os métodos usuais, não se aplicam aos conflitos de princípios fundamentais, pois nesses casos, não se pode interpretar a lide, com base em critérios comumente utilizados no Judiciário, tais como, especialidade da norma, hierarquia ou caráter cronológico, como afirma Marmelstein (2008, p.386): A ponderação é uma técnica de decisão empregada para solucionar conflitos normativos que envolvam valores ou opções políticas, em relação aos quais as técnicas tradicionais de hermenêutica não se mostram suficientes. É justamente o que ocorre com a colisão de normas constitucionais, pois, nesse caso, não se pode adotar nem o critério hierárquico, nem o cronológico, nem a especialidade para resolver uma antinomia de valores. Casado Filho (2012, p. 95), aborda a importância em se descobrir se de fato existe colisão real de direitos fundamentais, quando disserta: Por vezes, esse conflito é apenas uma colisão aparente, quando, na verdade, acredita-se de forma equivocada que existe algum direito fundamental sendo desrespeitado. Em outras, os âmbitos de proteção de dois ou mais direitos fundamentais interpenetram-se, causando uma colisão autêntica. Tais casos geram perplexidade ao intérprete, pois não são apenas 47


leis que estão em conflitos, mas sim os princípios que amparam tais leis.(itálico original). Assim, a ponderação de interesse é o estudo do caso concreto em que se observa a presença de dois ou mais direitos fundamentais colidentes e, se esses são legítimos princípios resguardados pela Constituição Federal de 1988(CF/88). Porém, verifica-se que no caso específico ambos não podem ser exercidos em simultâneo, assim, o juiz ao ser provocado, deve analisar os fatos e as consequências que cada ato possa gerar, desse feito, afaste um direito que julgue mais relevante, em detrimento a outro. Importante salientar que na utilização da ponderação de interesses, faz-se necessária a utilização de critérios para que esse mecanismo tenha eficácia, dado seu caráter aberto. Assim, utilizando-se de procedimentos claros e específicos, o método da ponderação de interesses demonstra ser eficaz na resolução de conflitos de direitos fundamentais. Daniel Sarmento (2003, p. 99), em sua obra, A ponderação de interesses na Constituição Federal, tráz uma abordagem ampla de como deve ocorrer os procedimentos, a metodologia, para a eficaz utilização da ponderação de interesses, ao afirmar: [...] metodologia é essencial para a legitimação da ponderação de interesses nos quadrantes de um Estado de Direito que tenha, entre as suas preocupações essenciais, a proteção da segurança jurídica e a garantia da transparência dos atos estatais. Ilustrando a sequência desses critérios, Sarmento (2003, p. 101) aduz que, "a primeira missão do intérprete, quando se deparar com uma possível colisão entre interesses constitucionais, é tentar traçar os limites imanentes dos princípios que os consagram, para verificar se, de fato, ocorre o embate". Portanto, feita essa análise, sugerida por Sarmento, e evidenciado o embate de princípios fundamentais, deve-se utilizar de métodos para aplicação da ponderação. A utilização de métodos se consagra na obra de Casado Filho (2012, p. 95), que define os procedimentos para a execução da ponderação: primeiro, reconhecer quais os direitos fundamentais conflitantes, segundo, analisar-se-á as características das normas envolvidas e a repercussão sobre as normas conflitantes e terceiro, se analisará as consequências que cada uma das normas conflitantes geraria, atribuindo "pesos" e diante disso, o intérprete da lei, privilegiará o exercício de uma das normas. 48


Porém, válido ressaltar que existem doutrinadores que entendem que deva existir uma preocupação especial em quem interpreta a lei, para que se busque prioritariamente não extinguir um princípio fundamental em relação a outro, e sim, que a ponderação trate por afastar a norma conflitante e identificada como menos importante, más, não a extirpe por completo, conforme ensina Morais (2003, p. 61): [...] quando houver conflito entre dois ou mais direitos e garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar ou combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios) sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua. (itálico nosso). Porém, há casos de colisão de direitos fundamentais onde existe espaço para o afastamento da norma colidente menos importante, sendo de fato necessária, a extirpação completa, esse entendimento é defendido por Marmelstein (2008, p. 394): É nessas situações em que a harmonização se mostra inviável que o sopesamento/ ponderação é, portanto, uma atividade intelectual que, diante de valores colidentes, escolherá qual deve prevalecer e qual deve ceder. [...] Quando duas normas constitucionais colidem fatalmente o juiz decidirá qual a que “vale menos” para ser sacrificada naquele caso concreto. (itálicos nossos). Entretanto, apesar de o método da ponderação de interesses ser amplamente difundido por vários doutrinadores aqui citados, existem aqueles que não entendem o mecanismo da ponderação de interesses como meio eficaz para o intérprete do direito equacionar o conflito entre direitos fundamentais. Esse é o entendimento de Gonçalves Fernandes (2011, p. 260), pois para o ele o uso da ponderação leva a crer que os direitos fundamentais fossem valores, como exorta: Ora, assumir a figura da "ponderação" como solução para a aplicação de direitos fundamentais pode levar (em nossa opinião) a consequências desastrosas para o direito. Uma vez que ela leva a uma leitura axiológica do direito - isto é, trata normas de direitos fundamentais como se fossem valores -, tal tese acaba por desenvolver um hierarquização dos direitos fundamentais, o que só é possível, única e exclusivamente, a partir de uma perspectiva individual. Portanto, mesmo tendo opiniões divergentes, embora minoritárias, quanto ao uso da ponderação, se denota que na prática, ela de fato é um eficaz método de

49


resolução de conflitos de normas fundamentais, amplamente utilizadas pelos intérpretes do direito.

2.3.2 Princípio de proporcionalidade Grande parte da doutrina entende que o uso do princípio da proporcionalidade é fundamental para a justa resolução das colisões de direitos fundamentais. Isso, porque o princípio da proporcionalidade segundo Rolim (2002): Deve atuar como instrumento de realização das normas e princípios positivados no texto da Lei Fundamental, sob pena de subverter sua importante missão na tutela dos direitos fundamentais contra a ação limitativa que o Estado impõe a esses direitos. Ao ser provocado o intérprete do direito, verificando o real conflito de direitos fundamentais, deve utilizar-se do principio da proporcionalidade para proteger a norma fundamental que cause menor lesão ao direito preterido, já que no conflito de direitos fundamentais,dada a importância de ambos direitos envolvidos, o que se busca é a alternativa menos gravosa. Esse foi o entendimento de Rolim (2002), que discorre: O princípio da proporcionalidade indica qual o direito que, na situação concreta, está ameaçado de sofrer a lesão mais grave caso venha a ceder ao exercício do outro, e, por isso, merece prevalecer, excluindo a realização deste (colisão excludente). (grifo original). O princípio da proporcionalidade, para grande parte da doutrina é subdividido em três subprincípios, Binenbojm (2006, p. 107), os dispõe assim: o primeiro subprincípio seria relativo a adequação das normas colidentes, o segundo seria a aferição da necessidade de se exercer cada uma das normas envoltas nas colisões, e o terceiro

subprincípio,

derivado

do

princípio

da

proporcionalidade,

seria

a

proporcionalidade em sentido estrito. Barroso (2006, p. 29), também cita os subprincípios e os exemplifica como se pode observar: A doutrina – tanto lusitana quanto brasileira – que se abebera no conhecimento jurídico produzido na Alemanha reproduz e endossa essa tríplice caracterização do princípio da proporcionalidade, como é mais comumente referido pelos autores alemães. Assim é que dele se extraem os requisitos (a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; (b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento dos fins 50


visados; e (c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos. (itálicos originais). A frequência em que as colisões de direitos fundamentais chegam ao Superior Tribunal de Justiça - STJ e até mesmo Superior Tribunal Federal -STF e são solucionadas por meio do princípio da proporcionalidade, demonstra a relevância desse princípio no ordenamento jurídico brasileiro. Gilmar Mendes (2012, p.282), constata isso em sua recente obra ao afirmar, Ressalte-se que o princípio da proporcionalidade vem sendo utilizado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal como instrumento para solução de colisão entre direitos fundamentais. Em uma das decisões sobre a obrigatoriedade de submissão ao exame de DNA, em ação de paternidade, anotou o Ministro Sepúlveda Pertence: [...] O que, entretanto, não parece resistir, que mais não seja, ao confronto do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade - de fundamental importância para o deslinde constitucional da colisão de direitos fundamentais [...]. (itálico nosso). Finaliza, Gilmar Mendes (2012, p.282), "É cada vez mais frequente a utilização do aludido princípio na jurisprudência do STF, como se podem verificar os inúmeros precedentes." Essa constatação demonstra o quão relevante é para o sistema jurídico, utilizar do princípio da proporcionalidade para equacionar lides de normas fundamentais colidentes. Outro, importante doutrinador constitucionalista, que denota a importância do princípio da proporcionalidade é Paulo Bonavides (1997, p.396), ao afirmar que a lesão a esse princípio em sua visão é a mais grave das inconstitucionalidades, explica, ainda: "porque sem princípio não há ordem constitucional e sem ordem constitucional não há garantia para as liberdades cujo exercício somente se faz possível fora do reino do arbítrio e dos poderes absolutos". Enfim, está completamente solidificado no ordenamento jurídico brasileiro o uso dos princípios da proporcionalidade e da ponderação de interesses como eficazes mecanismos de resoluções de conflitos constitucionais, não só consubstanciada pela maior parte da doutrina constitucional brasileira, como também, das decisões jurisprudências dos tribunais brasileiros.

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3 ANÁLISE DO CASO CONCRETO DAS MANIFESTAÇÕES POPULARES OCORRIDAS NO BRASIL NO ANO DE 2013

As manifestações populares que ocorreram no Brasil, no ano de 2013, em grande parte no mês de junho, foram a legítima concretude de um país democrático, onde se viu o direito, salvaguardado na Constituição Federal de 1988, no seu artigo 5º inciso XVI, ser exercido: Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente. A legitimidade, porém, do direito de se manifestar pacificamente não pode frustrar o exercício de outros direitos importantíssimos. Assim como o direito de manifestação, a liberdade de locomoção das pessoas também faz parte do grupo de direitos fundamentais do Estado Democrático Brasileiro. O art. 5º inc. XV da CF/88 diz: É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; Assim, verificar-se-á que, acompanhado dos atos de manifestações por parte de milhares de brasileiros, também existiram interrupções do exercício do direito de locomoção de milhares de pessoas que se encontravam em estradas e rodovias coincidentes aos locais das manifestações. O objeto desse capítulo é retratar a dinâmica do desses direitos fundamentais colidentes no contexto prático, ocorrido no mês de junho de 2013, fundamentando os motivos para ocorrência dos atos e suas consequências, os métodos para solução dos conflitos dos direitos fundamentais, as jurisprudências aplicadas ao caso e por fim buscar definir juridicamente tanto o direito de manifestação/reunião, quanto o direito de locomoção. Portanto, tratará a solução para os conflitos práticos que tanto ocorreram, demonstrando que o exercício do direito de manifestação não implica necessariamente a violação dos direitos fundamentais de outros indivíduos.

3.1

As manifestações populares ocorridas no Brasil em junho de 2013.

52


As manifestações de junho de 2013 podem ser entendidas como uma das mais relevantes manifestações públicas da população no contexto de adesão popular e pelo fato de ter sido pulverizada ao longo de vários estados brasileiros, lembrando a grandeza de manifestações como, "Fora Collor e Diretas Já", de que as manifestações populares são um eficaz mecanismo de contestação política. Grandes manifestações populares no Brasil, com alta participação popular e ao longo de todo o país não são muito recorrentes, fato que faz com que quando ocorram, desperte nas pessoas, vários questionamentos, tais quais, se são um direito válido, porquê de ocorrerem e por que invariavelmente são tão combatidas pelos governos, geralmente com uso de truculência e despreparo de seus agentes públicos. Analisando as recentes manifestações populares, que eclodiram ao longo de todo o País, invariavelmente se entende que o fator germinador desses conflitos fôra o aumento de R$ 0,20 (vinte centavos) nas passagens de ônibus ocorridas em São Paulo. Esse aumento foi justificado pelo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (Partido do Trabalhadores - PT), com base na publicação da revista Carta Capital (nº 753, 2013, p. 35), que informou: "Segundo Haddad, o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo não era revisto há dois anos, e o reajuste corresponde a menos da metade da inflação acumulada no período". Esse aumento passou a passagem de ônibus e metrô, de R$ 3,00 (três reais) para R$ 3,20 (três reais e vinte centavos). Em resposta ao aumento em São Paulo, o Movimento Passe Livre - MPL organizou uma série de manifestações em vias públicas contrárias ao aumento dos transportes públicos, porém, o que se viu foi que o exercício desse direito constitucional pelo grupo MPL foi vítima de um incrível despreparo da polícia, que agia com intolerância em relação aos manifestantes, lhes coagindo e utilizando-se de força desproporcional, por exemplo, bombas de efeito moral e balas de borrachas, e que muitas vezes, vitimavam manifestantes pacíficos e até mesmo integrantes de imprensa que acompanhavam o movimento. Assim, as manifestações em São Paulo, iniciadas pelo MPL, e a divulgações do despreparo da polícia junto aos manifestantes, fizeram que, em muitas cidades brasileiras, onde também ocorreram aumento de passagens de ônibus, por exemplo, Goiânia - GO, Rio de Janeiro - RJ, Porto Alegre - RS, dentre muitas outras, vislumbrassem a oportunidade para também manifestarem em suas cidades. Porém, as manifestações decorrentes das altas das tarifas dos ônibus serviram somente como um incentivo para que a revolta da população aumentasse e as 53


manifestações atraíssem mais pessoas, cada qual, com seu questionamento de cunho pessoal. Esse entendimento é corroborado pela reportagem da revista Veja (26 de junho de 2013, p. 79): "Os protestos deflagrados inicialmente para exigir a redução no preço das passagens de ônibus logo evoluíram para outras causas". Importante o entendimento do cientista político, Ricardo Costa de Oliveira, Doutor pela Unicamp (Universidade Estadual de Campina), que em entrevista para o Diário de Guarapuava (2013), assim dissertou sobre o início da manifestações ocorridas em junho de 2013 no Brasil: Esses protestos foram iniciados por um movimento social, o Movimento Passe Livre, em São Paulo, que teve uma pauta objetiva: a questão da redução das passagens urbanas. Ele conduziu sua pauta, organizou e mobilizou a sociedade, teve uma boa base social, uma boa aceitação, foi violentamente reprimido pela Polícia Militar, cresceu tal qual massa de bolo, e, enquanto isso, sofreu o ingresso massivo de vários outros grupos, de diferentes agendas, com diferentes ideologias. As causas das revoltas que mobilizaram o Brasil são extensas, de posicionamento contra o Projeto Emenda Constitucional nº 3714, aos gastos exorbitantes com a Copa do Mundo no Brasil de 2014, a precariedade da educação, saúde, segurança pública,

a

corrupção

e

sua

respectiva

impunidade,

dentre

muitos

outros

questionamentos. As manifestações se intensificaram na maior parte das capitais brasileiras, como se pode observar em reportagem do jornal, Folha de São Paulo online (22 de junho de 2013), que informa: Ao menos 12 (doze) cidades em 9 (nove) Estados têm protestos confirmados nas redes sociais para acontecer neste fim de semana, incluindo seis capitais. A maioria dos atos é contra a corrupção e a PEC 37, que retira a atribuição da Promotoria de investigar, ainda que a votação da emenda tenha sido adiada. Assim, observa-se que o desejo de manifestar contagiou pessoas ao longo do país e o mais importante é que as manifestações inéditas ocorridas em junho de 2013

14

O projeto de Emenda a Constituição nº 37/2011 (PEC 37), de autoria do deputado

Lourival Mendes (PT do B do Maranhão), buscava limitar o poder de investigação criminal somente a policiais federais e civis, dessa forma, retirando a competência de outros entes como por exemplo o Ministério Público. 54


surtiram efeitos, como se pode observar a revista Veja (3 de junho 2013, pag. 54), que diz: Em poucos dias, os protestos conseguiram a façanha inédita de fazer o Congresso aprovar projetos contra a corrupção, os governos reduzirem tarifas e o Judiciário mandar um político para cadeia. O grito dos manifestantes acordou os três poderes. Importante ponto a ser destacado é o fato que boa parte das manifestações que ocorreram no Brasil, foram destinadas à acontecer em estradas e rodovias, desta forma, interrompendo o fluxo do trânsito desses locais como forma de atrair atenção da sociedade e dos governantes, culminando em prejuízo a vida de milhares de pessoas que por esses locais transitassem. Prova de que o objetivo de chamar a atenção dos governantes pelo impedimento ao exercício do direito a liberdade de locomoção da população gerava resultados, foi o pronunciamento da presidente do Brasil Dilma Rousseff (2013) em que disse: Eu considero que em qualquer manifestação onde haja interrupção de rodovias e que se tenha atos de violências, eles [os responsáveis] têm que ser condenados. O direito de ir e vir é fundamental, é democrático. Ninguém pode manifestar-se interrompendo estradas. Podemos observar que a prática de obstruir estradas e rodovias foram corriqueiras no mês de junho de 2013, período em que ocorreram as grandes manifestações públicas em todo o Brasil, assim vejamos: Cerca de 300 pessoas fazem um movimento pacífico na manhã desta quarta-feira (19) na estrada do M´Boi Mirim, na zona sul de São Paulo. O grupo ocupa totalmente a pista no sentido centro perto do cruzamento com a Avenida Guarapiranga. (Folha de São Paulo, ed. online, 19/06/2013). Manifestantes voltaram a ocupar as pistas central e marginal da rodovia Anchieta, no sentido São Paulo, nesta quarta-feira, 19. O bloqueio agora acontece na altura do km 18, em São Bernardo do Campo. O grupo, que havia liberado a rodovia por volta das 9h, retornou por voltas das 11h15, segundo informações da Ecovias, concessionária que administra as estradas do Sistema Anchieta-Imigrantes. (Estadão.com.br, 19/06/2013). 17 de junho São Paulo: A manifestação entrou para a história da cidade. A Polícia Militar estimou a presença de 65 mil no ato. Porém, o MPL e setores da imprensa calcularam que o público tenha passado dos 100 mil. A marcha, que partiu do Largo da Batata, se dividiu em três grupos: o primeiro seguiu pela Avenida Faria Lima; o segundo ocupou a Avenida Paulista e o último 55


caminhou para Marginal Pinheiros, de onde seguiu para o Palácio dos Bandeirantes [...] 24 de junho Goiânia: Manifestantes ocuparam a rodovia BR-153 e quebraram dois carros da TV Anhanguera, afiliada da Rede Globo na região. (RevistaForum.com.br, 26/09/2013)

Destaca-se que boa parte dos temas manifestados tiveram soluções alcançadas com uma velocidade impressionante: a PEC 37 foi derrubada por esmagadora maioria de votos, 430 a favor e somente 9 votos contra, as passagens de ônibus tiveram seus reajustes cortados, essas conquistas também foram informadas pela revista Veja (3 de junho 2013, pag. 57), que diz: Também por decisão do Legislativo, o crime de corrupção passou a ser considerado hediondo e o dinheiro dos royalties do petróleo será destinado à educação e à saúde. No Executivo, a presidente da República, governadores e prefeitos baixaram tarifas e congelaram os preços dos pedágios. Coube ao Judiciário, com ajuda do deputado federal Natan Donadon, realizar outro sonho antigo dos brasileiros: ver um político condenado por corrupção ir para a cadeia. Portanto, é inegável que a revolta popular estremece governos e que o direito de reunião/manifestação, salvaguardado no art. 5º inc. XVI da CF/88 é um direito plenamente lícito, mais que isso, é assegurado como direito fundamental, dessa forma, deve ser utilizado pela população quando a mesma não encontra representatividade nos agentes políticos que os deveriam representar, ficando demonstrado pelas recentes manifestações ocorridas no Brasil no mês de junho de 2013 que a manifestação é um direito e como tal deve ser exercidos por aqueles que desejam e respeitado pelos demais, principalmente por quem é alvo das manifestações.

3.2

Direitos envolvidos nas recentes manifestações populares no Brasil Da licitude que circunda o direito de manifestação/reunião e sua classificação

como direito fundamental já se sabe, entretanto, as recentes manifestações ocorridas no Brasil trouxeram à tona algumas dificuldades originadas pelo exercício desse direito. Uma dificuldade muito evidente, decorrente do exercício dessas manifestações é a constatação de que boa parte das reuniões ocorreram em vias de trânsito automotivo, quais sejam, rodovias e estradas. Esse conflito de interesse, em que de um lado estão manifestantes e de outro estão pessoas que precisam se locomover deve ser analisado em seu contexto primário, qual seja, de identificar quais são os direitos em jogo e suas consequências jurídicas. 56


3.2.1 Direito de manifestação/reunião As manifestações populares, ocorridas em junho de 2013 no Brasil, denotaram que a maior parte dos atos ocorria em estradas e rodovias, afetando a vida de milhares de pessoas que precisavam utilizar essas vias para se locomoverem, já que o direito a liberdade de locomoção é um direito constitucional fundamental, assim como o direito de reunião/manifestação também seja. A importância que o direito a manifestação possui no Brasil é de estrutura elementar do sistema democrático nacional, podendo ser reduzida somente, quando de encontro a outro direito fundamental, considerada mais "importante". A relevância jurídica desse direito foi trazida pelo Superior Tribunal Federal no voto do Relator da ADI 1969-DF, que explanou: Ora, como se sabe, a liberdade de reunião e de associação para fins lícitos constitui uma das mais importantes conquistas da civilização, enquanto fundamento das modernas democracias políticas, encontrando expressão, no plano jurídico, a partir do século XVIII, no bojo das lutas empreendidas pela humanidade contra o absolutismo monárquico. Recaséns Siches, estudando o tema, ressalta que essas liberdades, de caráter instrumental, possuem um duplo alcance: de um lado, asseguram a expressão de uma das mais importantes liberdades individuais; de outro, garantem espontaneidade à atuação dos distintos grupos sociais. Não é por outra razão que Jean Rivero classifica a liberdade de reunião como uma das mais elementares de todas as liberdades coletivas. (ADI 1969/DF, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, julgada em 28.06.2007). Diante o exposto, não se questiona a especialidade do direito fundamental de manifestação pelo entendimento do Superior Tribunal Federal - STF, quando da decisão que tornou inconstitucional o decreto distrital nº 20.098/99, do governador do Distrito Federal, que vedava a ocorrência de manifestações públicas diante de determinados locais, tais quais, Praça do Buriti, Praça dos Três Poderes e Esplanada dos ministérios, como se pode observar a ementa da ADIN 1969-DF, que traz: EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO 20.098/99, DO DISTRITO FEDERAL. LIBERDADE DE REUNIÃO E DE MANIFESTAÇÃO PÚBLICA. LIMITAÇÕES. OFENSA AO ART. 5º, XVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. I. A liberdade de reunião e de associação para fins lícitos constitui uma das mais importantes conquistas da civilização, enquanto fundamento das modernas democracias políticas. 57


II. A restrição ao direito de reunião estabelecida pelo Decreto distrital 20.098/99, a toda evidência, mostra-se inadequada, desnecessária e desproporcional quando confrontada com a vontade da Constituição (Eille zur Verfassung). III. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do Decreto distrital 20.098/99. O direito de manifestação ou reunião (uma vez que no contexto constitucional e doutrinário são sinônimos) é um relevante direito fundamental, salvo na Constituição Federal do Brasil de 1988 no seu art. 5º inciso XVI, que diz: Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente. Esse direito há tempos vem sido protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro, como afirma o relator da ADI 1969, Ministro Ricardo Lewandowski, em seu voto: No Brasil, a liberdade de reunião sempre foi contemplada pelas Constituições republicanas, entrevista como liberdade pública de caráter fundamental, encontrando lugar no capítulo relativo aos direitos e garantias fundamentais. Um grande questionamento relacionado a esse tema seria a possível imprecisão desse dispositivo ao expressar que é permitido reunir-se pacificamente independente de autorização e no final denotar a exigência de prévio aviso a autoridade competente. Entretanto ressalta-se que são questões completamente distintas. A permissão da realização da reunião/manifestação independente de autorização significa que autoridades públicas não possuem discricionariedade de permitir ou denegar a realização de uma manifestação. Já o prévio aviso à autoridade pública, incide o fato de que, via de regra, manifestações quando não comunicadas geram grandes dificuldades à ordem pública e a rotina das pessoas, por isso, a necessidade do prévio aviso para que possam existir políticas públicas a fim de que a manifestações não causem maiores problemas as demais pessoas. Exímia definição sobre o direito de manifestação/reunião encontra-se na excelente obra de Celso de Mello (1978, p.23), que expôs: a) O direito de reunião constitui faculdade constitucionalmente assegurada a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País; b) os agentes públicos não podem, sob pena de responsabilidade criminal, intervir, restringir, cercear ou 58


dissolver reunião pacífica, sem armas, convocada para fim lícito; c) o Estado deve assegurar aos indivíduos o livre exercício do direito de reunião, protegendo-os inclusive, contra aqueles que são contrários a assembléia; d) o exercício do direito de reunião independe e prescinde de licença de autoridade policial; e) a interferência do Estado nas reuniões legitimamente convocadas é excepcional, restringindo-se, em casos particularíssimos, à prévia comunicação designação, por ela, do local da assembléia; [...] h) o direito de reunião, permitindo o protesto, a crítica e a manifestação de idéias e pensamento, constitui instrumento de liberdade dentro do Estado Moderno. Uma característica que se observa é que muitas das manifestações populares ocorridas no Brasil não levam em conta o disposto na CF/88 no art. 5º inc. XVI, quanto à necessidade do aviso prévio da ocorrência de manifestações públicas, para que exista um preparo por parte do governo a fim de manter a ordem pública. Assim se denota que grande parte das manifestações brasileiras se caracterizaria como ilegais, podemos observar jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação cível n° 129.040.4/8, que assim entende a falta do requisito aviso prévio: PETIÇÃO INICIAL - INDEFERIMENTO - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - INDENIZAÇÃO - PEDIDO FUNDADO EM REUNIÃO REALIZADA SEM PRÉVIO AVISO À AUTORIDADE COMPETENTE - ILICITUDE EM TESE ART. 5o, XVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL INTERESSE PROCESSUAL -RECURSO PROVIDO. O direito à reunião em lugar aberto ao público forma-se se pacífica, sem armas, e se antecedida de comunicação à autoridade competente (art. 5o, XVI, da Constituição Federal). A falta do aviso prévio impede a formação do mencionado direito, e a reunião assim realizada reveste-se de ilicitude. [...] (art. 1o, do Decreto n° 36.767, de19 de março de 1997). (TJSP; Apelação cível n° 129.040.4/8; 7a Câmara de Direito Privado; Des. Rei. Ruiter Oliva; j. em 06/08/2002) ( itálico nosso). Entretanto, nem todos os juristas corroboram com a idéia de que a falta do requisito aviso prévio junto à autoridade competente, por si só, implicaria em ilicitude no direito de manifestação, não podendo funcionar como limite material desse direito, é o que entende o Juiz Federal, George Marmelstein (2013), que diz: As melhores práticas em matéria de liberdade de reunião pacífica recomendam que o dever de aviso prévio seja considerado um mero requisito formal que não afeta a garantia do direito propriamente dito, não podendo funcionar como um limite material capaz de impedir o exercício do direito. Vale dizer: a função do aviso prévio é proporcionar ao estado o 59


fornecimento dos meios necessários para que a manifestação ocorra sem maiores transtornos para os manifestantes e para a população de um modo geral. [...] Dito de modo mais enfático: “uma infração ao dever de anúncio prévio não leva automaticamente à proibição ou dissolução de um evento“, de modo que a autoridade pública somente pode intervir na reunião pacífica quando estiverem presentes outros pressupostos para uma intervenção.(itálico nosso, grifo original). Portanto, evidenciada a licitude do direito de manifestação/reunião, ficou comprovado que existem requisitos para seu exercício esteja em conformidade com a CF/88 e assim traga benefícios de um direito tão valioso, ou seja, fundamental.

3.2.2 Direito de liberdade de locomoção A liberdade de locomoção, assim como o direito de reunião, também é um importantíssimo direito disposto no capítulo dos direitos e garantias fundamentais da CF/88. Esse direito dispõe que: "é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens". Abordagem eficaz sobre a temática foi produzida por Novelino (2008, p. 307), que assim explicou sobre o direito de locomoção: A locomoção é um dos aspectos fundamentais da liberdade física do homem e engloba não apenas o direito de ir e vir, mas também o de permanecer (art. 5º, XV). Além das limitações inerentes a sua própria natureza, este direito pode encontrar restrições concernentes a sua manifestação (como é o caso da utilização de vias e logradouros públicos). A liberdade de locomoção é um direito condicionante da dignidade da pessoa humana, portanto é fundamental que um Estado democrático de direito lhe assegure a todos. A comprovação de que a liberdade de locomoção é um direito vital para condição humana é o fato desse direito possuir uma garantia específica, qual seja o habeas corpus. Sobre a função dessa importante garantia, qual seja de proteger exclusivamente o direito de locomoção do indivíduo, observa-se a fundamentação elaborada por Mendes e Branco (2012, p.523), que afirma:

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O habeas corpus destina-se a proteger o indivíduo contra qualquer medida restritiva do Poder Público à sua liberdade de ir, vir e permanecer. A jurisprudência prevalecente no STF é dominante no sentido de que não terá seguimento habeas corpus que não afete diretamente a liberdade de locomoção do paciente. Em que pese à extensão e a amplitude que essa interpretação tem assumido, não impressiona, contudo, o argumento de que o habeas corpus é o meio adequado para proteger tão somente o direito de ir e vir do cidadão em face de violência, coação ilegal ou abuso de poder. Dessa forma, fica claro o quão importante é o direito a locomoção no ordenamento jurídico brasileiro uma vez tenha sido instituída uma garantia fundamental intitulada, habeas corpus, cujo objeto específico é protegê-la, garantia, esta, presente em todas as Constituições Brasileiras posteriores a Constituição 1934, conforme estudo Mendes e Branco (2012, p.523). Assim transcorrido o embasamento jurídico necessário da comprovação da relevância jurídica do direito de manifestação/reunião, se observará que o direito a liberdade de locomoção goza de igual ou até mesmo maior prestígio. A liberdade de locomoção está no ápice dos direitos da dignidade da pessoa humana, sua importância é tão relevante que tal direito, possui a singularidade de possuir uma garantia própria, com a exclusiva função de proteção, ante a ameaça a liberdade de locomoção do indivíduo, garantia essa denominada de habeas corpus. Assim a grande comprovação desse direito, pode ser demonstrada na própria Constituição Federal que protege o direito de locomoção pela garantia do habeas corpus, como se pode ver no seu art. 5º inciso LXVIII, que diz: "conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder"

3.3 A colisão entre o direito de manifestação e a liberdade de locomoção Denotada a importância jurídica dos dois direitos conflitantes nas recentes manifestações populares brasileiras, se verifica que muitos juristas divergem ante a solução a esses conflitos, como se pode observar. Importante exemplo da prevalência ao direito de liberdade de locomoção ante o direito de manifestação foi vislumbrado no momento em que ocorriam as manifestações públicas em todo Brasil. 61


Jurisprudência com esse entendimento pode-se observar da decisão de juiz de 1º grau do TJRN, do processo nº 08001146-33.2013.4.05.8400, que diz: Apesar de legítima a manifestação pacífica, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, estando esta garantia estampada na Constituição Federal, mais especificamente no art. 5º, XVI, não é razoável o abuso deste Direito em detrimento da ordem pública e da garantia dos demais indivíduos de transitarem nos locais previstos para o acontecimento da reunião. (itálico nosso) Outra decisão no mesmo sentido foi a do Desembargador Federal, Luiz Alberto Gurgel do TRF-5º Região, em que indeferiu o pedido de habeas corpus preventivo, HCC118-RN, em que o grupo postulante denominado: "Revolta no Busão", desejava manifestar em frente à Arena Castelão no Estado do Ceará, em dia de jogo da Copa das Confederações, em que a decisão expôs: Deve preponderar o interesse coletivo na livre circulação de pessoas e bens, notadamente em face [...] manifestantes que teriam por objetivo impedir o acesso de veículos e de pessoas àquele local. Ressalvo, no entanto, que isso não significa autorização para reprimir eventuais manifestações populares, em si próprias, asseguradas constitucionalmente, na medida em que não impliquem obstrução das rodovias federais. [...] Assim, INDEFIRO a liminar requerida. (itálico nosso). Em contrapartida, o mesmo grupo "Revolta do Busão" não logrando êxito no pedido de habeas corpus preventivo ante o TRF-5, ingressou com o pedido de habeas corpus preventivo junto ao Superior Tribunal Federal, a fim de que pudesse ter garantia de manifestar as margens da BR-101. O ministro, Herman Benjamin, deferiu o HC 272607 ao grupo, afirmando: Em análise sumária, entendo preenchidos os requisitos necessários à concessão da liminar, em razão da flagrante ilegalidade da decisão que impede a livre manifestação pacífica em território nacional, direito fundamental inalienável, nos termos do artigo 5°, IV, XV e XVI, da Constituição Federal de 1988 Portanto, como acima abordado, se observa que as jurisprudências sobre a temática das recentes manifestações populares ora elevam a importância do direito de manifestação ante o direto de liberdade locomoção, ora entendem o direito de liberdade locomoção como mais relevante ao direito de manifestação.

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Essa dificuldade ante a colisão desses direitos fundamentais foi abordada por Dantas (2010, p. 28), quando afirmou: [...] há uma falta de regulamentação infraconstitucional que apenas potencializa as dificuldades, posto que a solução das colisões acabe ficando a cargo do Poder Judiciário, em face da ausência de um juízo prévio do legislador acerca das condições de precedência da liberdade de reunião [...]. Conflitos envolvendo o direito de manifestação que são apreciados pelo Judiciário são poucos, por isso, entende-se o porquê de não existir entendimento pacificado sobre as várias temáticas inerentes a esse direito, ainda mais, quando se trata de colisão de direito de manifestação e liberdade de locomoção.

3.4 Equacionamento dos conflitos de direito de manifestação e liberdade de locomoção: em busca de uma solução

Para se encontrar uma solução para a colisão dos diretos fundamentais de reunião e liberdade de locomoção, necessário se faz seguir corretamente o disposto no art. 5º inc. XVI CF/88 no tocante aos requisitos necessários para execução do direito de reunião e a utilização dos princípios da ponderação de interesses e da proporcionalidade aplicadas ao contexto prático das manifestações populares, como será demonstrado a seguir. O direito de manifestação/reunião é um direito proveniente do respeito à dignidade da pessoa humana, foi a conclusão a que chegou Souza (2011, p. 26) quando diz: No Estado de Direito, a participação do cidadão no processo de formação da vontade política apresenta-se como um aspecto fundamental da realização da dignidade humana. A liberdade de reunião e de manifestação também visa combater o isolamento do particular e garantir o desenvolvimento em grupo da sua personalidade (o homem como ser eminentemente social). A integração social e a atividade conjunta com outros seres humanos constituem uma necessidade fundamental da pessoa humana, reconhecida expressamente na Constituição portuguesa. Já, Lewandowski relator da ADI 1969-DF, compactua com o entendimento de que o direito a manifestação seja uma das mais elementares das liberdades coletivas,

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uma vez que na explanação de seu voto, trouxe o entendimento de Siches e Rivero, vejamos: Recaséns Siches, estudando o tema, ressalta que essas liberdades, de caráter instrumental, possuem um duplo alcance: de um lado, asseguram a expressão de uma das mais importantes liberdades individuais; de outro, garantem espontaneidade à atuação dos distintos grupos sociais. Não é por outra razão que Jean Rivero classifica a liberdade de reunião como uma das mais elementares de todas as liberdades coletivas. (ADI 1969/DF, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, julgada em 28.06.2007). Entretanto, comprovada a qualidade do direito a manifestação no que concerne a identificá-lo como um dos mais elementares direitos a liberdade como visto acima. Entende-se a dimensão do conflito quando o direito de manifestação se colide com o direito de liberdade de locomoção, uma vez que o direito de locomoção é identificado como talvez o mais elementar dos direitos às liberdades, seja em caráter individual ou coletivo. Nas manifestações populares ocorridas em junho de 2013 o que mais aconteceu foram manifestações públicas invadindo importantes rodovias e estradas de grande fluxo, como forma de dar contundência as reclamações, gerando embaraço às administrações públicas em relação a que atitude tomar e afetando a vida de milhares de pessoas que ficavam reféns das manifestações, tendo seu direito a liberdade de ir e vir reprimido. Uma solução para conflito decorrente dos atos de manifestações em relação à liberdade de locomoção de pessoas que trafegavam por estradas e rodovias ocupadas vem da própria análise do art. 5º inc. XVI da CF, que diz: Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente. O texto constitucional garante a legalidade do direito de reunião, entretanto, é bem claro ao exigir o prévio aviso a autoridade competente, já que o objetivo dessa comunicação não é dificultar o exercício desse direito, pelo contrário, é fazer com que a administração pública possa providenciar medidas para que pessoas que manifestam possam exercer seu direito plenamente e que tome medidas necessárias para os que não manifestam também não sejam afetados com os atos. 64


Esse prévio aviso denotaria ao governo a incumbência no caso de manifestantes que anteriormente avisassem a ocupação de determinada estrada e/ou rodovia, para que a administração pública efetivasse alternativas quais sejam, desvios de rota, aviso para que a população evitasse tal local em determinado horário, dentre outras. Corrobora com esse entendimento a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, como se pode observar de sua ementa: AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Manifestação em via pública de grande movimentação - Direito constitucional de reunião Descumprimento do necessário aviso prévio à autoridade para exercício do direito - Culpa comprovada - Presença da autoridade policial e da companhia de tráfego que não presume a organização adequada da manifestação - Laudo técnico que demonstra os prejuízos decorrentes da conduta do réu Comprovação do dano e do nexo causal - Sentença reformada Apelo provido. (Apelação cível n° 915815490.2005.8.26.0000.). Para Miguel Calmon Dantas (2010, p. 28), as dificuldades enfrentadas pelas pessoas que ficam impedidas de se locomoverem em decorrência das obstruções de manifestantes em estradas e rodovias, como impossibilidade de pessoas chegarem ao trabalho, retornarem para casa, chegarem a tempo ao aeroporto ou se deslocarem até um hospital, são exemplos dos inúmeros motivos mais que suficientes para que a não comunicação prévia a autoridade pública de quando e onde irá ocorrer o evento, sujeite administração pública dissolver a manifestação: Posto isso, tem-se como descabidas manifestações em vias públicas de intensa movimentação e tráfego que importem na interrupção da circulação de veículos e pessoas, especialmente quando não tenham sido previamente comunicadas, podendo ser contidas quanto à utilização das faixas da via pública, para não interditar totalmente o deslocamento, ou dissolvidas, a depender das condições concretas do caso. Dantas (2010, p. 24) afirma que a inviabilização das medidas públicas decorrentes da ausência de aviso prévio da ocorrência da manifestação, como denota o texto constitucional, é motivo para que a administração a dissolva, conforme vejamos: A dissolução só se impõe se a ausência de comunicação inviabilizar as medidas administrativas necessárias e suficientes a viabilizar a própria segurança da reunião e harmonizá-la com as demais liberdades dos que dela não desejem participar.

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Assim, mesmo estando explícito na Constituição Federal, no art. 5ª inc. XVI, a necessidade do aviso prévio para o exercício do direito de reunião/manifestação, o fato dessa parte do dispositivo constitucional não ser cumprida acaba por ser um motivo importante para a ocorrência da colisão de direitos fundamentais de direito de manifestação e de liberdade de locomoção. Outro método eficaz para a solução da colisão referente à liberdade de locomoção ante o direito de reunião é através do princípio da proporcionalidade e da ponderação de interesses. Dessa forma, através dos princípios da proporcionalidade e da ponderação de interesses seria conveniente aos organizadores das manifestações que não ocupassem vias muito movimentadas a fim de não atrapalhar a vida de milhares de pessoas que por essas vias trafegam ou que se mesmo assim decidissem ocupá-las não a interditassem por completo, afirma Dantas (2010, p. 28), a possibilidade de conciliação dos dois direitos: Outrossim, pode até haver a compatibilidade, desde que a restrição à liberdade de locomoção não seja total nas aludidas vias públicas, assegurando-se o fluxo, ainda que mais lento, com a garantia de segurança e de desenvolvimento concreto e efetivo da reunião. Portanto, resta claro o entendimento de que a eliminação do recorrente conflito entre direito de reunião e o direito a liberdade de locomoção poderia ser extirpado com a simples prática da legislação e do uso do bom senso de quem organiza as manifestações e da própria administração pública no modo de tratar o tema. Necessário se faz que os idealizadores das manifestações tenham consciência, de que o direito de reunião é um direito fundamental desde que exercido como descreve a lei e também que tenham preocupação com os direitos fundamentais das pessoas afetadas pelas manifestações, uma vez que não existe direito fundamental absoluto, como diz Mendes (2012, p. 179) "Tornou-se voz corrente na nossa família do Direito admitir que os direitos fundamentais podem ser objeto de limitações, não sendo, pois, absolutos." Enfim, somente através da execução do disposto no art. 5º inc. XVI da CF/88, além do uso do princípio da ponderação e da proporcionalidade por quem organiza as manifestações e, por fim com interesse da administração pública com ações que auxiliem tanto os manifestantes quanto as pessoas que trafegam em rodovias e estradas,

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se alcançaria a eliminação da colisão de direitos fundamentais de liberdade de locomoção e de direito de reunião/manifestação.

CONCLUSÃO

O presente estudo objetivou analisar os conflitos de direitos fundamentais ocorridos nas manifestações públicas no mês de junho de 2013 ao longo de várias cidades brasileiras. O foco do estudo foi as várias colisões de dois direitos fundamentais nas recentes manifestações populares ocorridas no Brasil, quais sejam o direito de reunião/manifestação encontrado na Constituição Federal de 1988 no art. 5º inc. XVI e do direito de liberdade de locomoção também encontrado na CF/88 no art. 5º inc. XV. Um dos fatores para ocorrência das colisões entre os direitos fundamentais acima citados foi o fato de que a grande maioria dos organizadores das manifestações públicas em busca de repercussão via nas estradas e rodovias, principalmente nas de grande fluxo, o local ideal para atrair a atenção da população de das autoridades públicas. Entretanto, além da atenção das pessoas e dos governantes as manifestações concentradas em estradas e rodovias, denotavam um problema de ordem pública relevante, pois impediam que o direito de liberdade locomoção de milhares de pessoas que utilizam as estradas e rodovias para se locomoverem fosse exercido, gerando assim a frequente colisão de direitos fundamentais que tanto ocorreu nas manifestações populares de junho de 2013. Muitas dúvidas surgiram quando se iniciaram as manifestações em relação à licitude do direito de manifestação, principalmente devido à reação repressora que se viu por parte órgãos de segurança publica. Inicialmente esse estudo trouxe a conceituação e o histórico dos direitos fundamentais a fim de demonstrar a relevância que esses direitos possuem para concretude da dignidade da pessoa humana. Abordou-se também as gerações de direitos fundamentais até os dias de hoje, as características desses direitos e a distinção entre direitos e as garantias fundamentais. Posteriormente, o estudo dedicou-se a abordar os métodos para solução de colisão de direitos fundamentais, onde se diferenciou os princípios das regras

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constitucionais. Com o uso de doutrina e jurisprudência se demonstrou quando se dava casos de colisões de direitos fundamentais. Importante parte do estudo foi a explanação dos métodos de resolução de colisão de direitos fundamentais, quais sejam as técnicas mais utilizadas os princípios da proporcionalidade e da ponderação de interesses. Trouxe um estudo do caso concreto demonstrando os motivos para ocorrência das manifestações públicas em junho de 2013 no Brasil, com base em artigos jornalísticos. Demonstrou-se as ocorrências de colisões entre direito de reunião/manifestação e o direito de locomoção, demonstrada por reportagens de revistas e jornais relevantes tais como revista veja e revista carta capital. Por fim, abordou métodos os quais extinguiriam as colisões de direito de manifestação, tais qual o exercício do dispositivo constitucional em sua concretude, ou seja, principalmente a parte do aviso prévio a administração pública a fim de que a mesma tome atitudes a fim de manter a ordem pública e principalmente proteja o direito fundamental a liberdade de locomoção. E também pelo uso do princípio da proporcionalidade e da ponderação de interesses por quem organiza as manifestações públicas a fim de que pratique a manifestação, entretanto a dever de não ferir os direitos fundamentais das outras pessoas. Desta forma, seguidos os métodos acima abordados, este estudo entende ser o suficiente para que se eliminasse o conflito de direitos fundamentais à liberdade de reunião/manifestação e liberdade de locomoção nas manifestações públicas por consequência da interrupção de estradas e rodovias. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón de Valdés. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997. ARAUJO, Luiz Alberto David. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. BONIN, Robson; CABRAL, Otávio. Os sete dias que mudaram Brasil, Veja, edição 2327,ano 46, nº 26, p. 79, 26 jun. de 2013. BARROS, Sérgio Resende de. Três Gerações de Direitos. Disponível em: <http://www.srbarros.com.br/pt/direitos-humanos.cont.>. Acesso em 02 nov. 2013. 68


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DA NATUREZA JURIDICA DA SÚMULA VINCULANTE

Delfino de Oliveira Lopes15

RESUMO O presente artigo pretende estudar a natureza jurídica das Súmulas Vinculantes editadas pelo Supremo Tribunal Federal, com base no art. 103-A, da Constituição Federal de 1988. Tal instituto por vários anos tem sido motivo de discussão, pois há posicionamentos divergentes quanto a sua natureza jurídica. Há uma doutrina majoritária que entende ter natureza jurisdicional, outra minoritária que entende ter natureza legislativa e uma mais recente afirma ter natureza política. Assim, serão mostrados neste trabalho os principais entendimentos da doutrina sobre o assunto, bem como os pontos em que divergem para se chegar a uma conclusão.

Palavras-chave: Súmula Vinculante; Natureza Jurídica; Ato Normativo; Ato Legislativo; Ato Político.

INTRODUÇÃO O trabalho analisa a natureza jurídica das Súmulas Vinculante, pois tal instituto tem reflexos para os jurisdicionados e ainda é tema muito discutido quanto a sua natureza jurídica. Assim será analisada a Natureza Jurídica das Súmulas Vinculantes no ordenamento jurídico brasileiro, bem como suas conseqüências. E para isso será exposto de forma ordenada a pesquisa realizada por meio da doutrina, normas constitucionais e do direito comparado. Serão analisadas as principais divergências doutrinárias quanto à natureza jurídica das Súmulas Vinculantes, onde apresentar-se-á os argumentos daqueles que afirmam ter as Súmulas Vinculantes natureza jurisdicional, aqueles que afirmam ter natureza legislativa e o pensamento de uma pequena parte da doutrina, essa mais recente, que afirmam ter natureza política.

15

Aluno do curso de Direito da Faciplac. 73


Por fim, cabe informar que as Súmulas Vinculantes têm uma grande relevância social, pois suas consequências atingem não só o Poder Judiciário e a Administração Pública, mas também todo o jurisdicionado, motivo pelo qual se torna de suma importância a sua análise jurídico científica. 1 DOS ANTIGOS ASSENTOS Faz-se necessário uma análise sobre as principais características dos antigos assentos portugueses para que, partindo dessas características, possa se fazer um confronto com as atuais Súmulas Vinculantes editadas pelo Supremo Tribunal Federal. Para Mônica Sifuentes (2005, p. 200), os assentos consistiam na solução de um conflito de jurisprudência, que segundo ela era caracterizado pela contradição de dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça ou da Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito, da qual não fosse admissível recurso de revista ou de agravo. Afirma ainda a autora que os assentos deveriam ser votados pelo Pleno do Supremo Tribunal de Justiça, com maioria qualificada dos seus membros, por meio de um enunciado que passava a ter força obrigatória geral. Nesse sentido, a autora afirma que “os assentos não eram os próprios acórdãos do Tribunal Pleno, mas estritamente as proposições normativas de estrutura geral e abstrata que deles se autonomizavam, formal e normativamente”. Sifuentes (2005, p. 201) também que preenchidos tais requisitos, o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça com composição especial, com intervenção de no mínimo 4/5 dos juízes conselheiros, teria que resolver a lide, proferindo a partir de então o assento que traduzisse a interpretação normativa assumida. Assim, os efeitos seriam imediatos naquele processo e sua força obrigatória geral, principalmente para os tribunais. A autora entende que, depois de proferido o assento, o Supremo Tribunal de Justiça não pode modificá-lo e nem revogá-lo; o que poderia ser feito era alteração legislativa posterior, pois não havia nenhuma previsão na lei que autorizasse a sua revisão. Assim, afirma Sifuentes (2005, p. 200) que: pode-se dizer, portanto, que o assento era vinculado, inicialmente, à resolução de um caso concreto. Não se tratava simplesmente da apresentação ao Pleno do Supremo Tribunal de Justiça de uma questão abstrata de direito, mas sim de um conflito de jurisprudência a ter repercussão em um caso a ser ainda solucionado. Mas é certamente curioso o fato de que, estando um dos acórdãos motivadores da contradição definitivamente julgado, a decisão que viesse a ser proferida no conflito de jurisprudência e se convertesse em

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assento de nada valia para a causa já decidida, pela aplicação direta do princípio da sua intangibilidade.

A autora afirma ainda que “o caráter de obrigatoriedade e generalidade conferido aos assentos ultrapassava as raias dos tribunais judiciais, estendendo-se a todas as relações jurídicas”. Assim, segundo ela, os assentos eram transformados, dessa maneira, de jurisprudência consolidada pelo tribunal em preceito normativo, transformando-se em uma fonte do direito. Segundo a autora era costume dividir os assentos em interpretativo e integrativos. Assim, ela os conceitua da seguinte forma: Os interpretativos, nos casos em que o assento fixava uma das várias interpretações possíveis da lei. Os integrativos, nos casos em que preenchia uma lacuna do sistema e criava a norma correspondente, para depois fazer aplicação dela ao caso concreto. Pode-se observar assim, que os assentos tinham como características a generalidade e a abstração vinculando todos os tribunais e podendo chegar aos jurisdicionados com força normativa. Ressalte-se ainda que eles tinham como objetivo a uniformização de jurisprudência resolvendo o caso concreto e vinculando eventuais casos idênticos que viessem a ocorrer no futuro. 2 A SÚMULA VINCULANTE DA EMENDA CONSTITUCIONAL N° 45 Feito breve análise demonstrando as características dos antigos assentos portugueses passa-se agora a estudar a Súmula Vinculante da Emenda Constitucional n° 45 que tem grande similaridade com aqueles assentos, chegando a ser afirmado por Jorge Amaury Maia Nunes como sinônimos (Nunes, p. 128). Com a entrada em vigor da Emenda Constitucional n° 45, em 08 de dezembro de 2004, acrescentou-se à Constituição Federal de 1988, o art. 103-A e seus parágrafos, os quais introduziram a Súmula Vinculante no ordenamento jurídico brasileiro, observese: Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos

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judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

Mônica Sifuentes (2005, p.258) relata que “a multiplicação de causas idênticas, especialmente na Justiça Federal, foi o principal motivo da instituição das súmulas pelo STF, em 1963”. Posteriormente, devido ao crescimento na quantidade de demandas no judiciário, somente a edição de súmulas não era o suficiente para resolver o problema do acúmulo de processos, foi a partir daí que viu se a necessidade de atribuir caráter vinculativo à súmula, ao menos para os tribunais e a Administração Pública, “como medida política judiciária”, a fim de diminuir o número de demandas em curso nos tribunais. Segundo Osmar Mendes Paixão Cortês (2009, p. 200), as Súmulas Vinculantes têm três funções principais: A primeira, da mesma forma que as súmulas em geral, é tornar conhecida a jurisprudência consolidada no âmbito do STF, facilitando a sua observância. A segunda, evitar que sejam tomadas decisões discrepantes da sumulada, por economia, celeridade processual e política judiciária. A terceira, dar segurança jurídica ao sistema e às relações sociais.

Cortês (2009, p. 192) observa que, pela simples leitura do §1º do Art. 103-A da Constituição Federal de 1988, fica clara a natural intenção de evitar o acúmulo de processos. Afirma ainda o autor, que o trâmite de tais processos perante o Supremo Tribunal Federal era desnecessário e que “se uma questão constitucional foi apreciada e já está consolidada no âmbito da Corte, nada justifica que, ainda que monocraticamente, seja reexaminada inúmeras vezes”. Cortês (2009, p. 192) afirma ainda que outro fato, de forma cumulativa, que motiva a edição da Súmula é a grave insegurança jurídica que pode ser ocasionada pela falta de posicionamento por parte do STF sobre uma questão constitucional, pois se a Corte Suprema não se manifestar a respeito desse tipo de matéria, pode-se ter entendimentos divergentes sobre a mesma tese, o que fere a segurança jurídica. Comenta ainda o autor que, conforme exposto no texto constitucional, são necessários, para edição de Súmulas Vinculantes, dois requisitos essenciais quais sejam: 76


reiteradas decisões sobre matéria constitucional, e aprovação por dois terços ou mais dos membros da Corte, que podem agir de oficio ou mediante provocação. Essa provocação deve ser necessariamente proposta por aqueles legitimados para propor a ação declaratória de constitucionalidade e a ação declaratória de inconstitucionalidade (Art. 103 caput da Constituição Federal de 1988). A titulo de informação vale citar as Reclamações nº 3.979 AgR e nº 3.284-1 AgR, nas quais o Supremo Tribunal Federal demonstra entender que as Súmulas Vinculantes têm natureza constitucional o que as diferencia das demais Súmulas, pois no caso daquelas vinculam os demais tribunais e a Administração Direta e Indireta da esfera federal, estadual e municipal. Assim, conforme exposto no art. 103-A da Constituição Federal de 1988, após a publicação na imprensa oficial, a súmula passa a ter efeito vinculante para todos os demais órgãos do Poder Judiciário, bem como para toda a Administração Direta e Indireta da União, Estados e Municípios. 2. 3 NATUREZA JURÍDICA DAS SÚMULAS VINCULANTES Feitos todos os estudos introdutórios sobre os assentos e as Súmulas Vinculantes, passa-se agora a analisar as principais divergências doutrinárias sobre o assunto; pois como poderá ser observado, ainda não há um consenso entre os doutrinadores sobre qual seria a natureza jurídica das Súmulas Vinculantes. É importante citar aqui o pensamento de Jorge Amury Maia Nunes (2010; p. 129) que entende que tirando a “conotação histórica” não há diferença entre os antigos assentos portugueses e as Súmulas Vinculantes editadas pelo Supremo Tribunal Federal, pois segundo o autor tirando a nomenclatura, tais institutos seriam sinônimos. Ainda segundo o autor, os dois institutos têm as mesmas características, veja no inteiro teor de suas palavras: têm-se os assentos ou as súmulas como deliberações obrigatórias, proferidas por tribunais supremos, em decorrência de exame reiterado de casos concretos, em que é eleita uma interpretação (ou conjunto de interpretações) de dado preceito normativo, a ser seguido por órgãos da jurisdição e por quaisquer outros agentes do Estado que tenham dentre seus misteres a aplicação do Direito.

Nunes (2010, p. 129) entende que os estudos realizados até hoje sobre a natureza jurídica das Súmulas Vinculantes se ativeram em conceituar os institutos na órbita dos atos legislativos e jurisdicionais. Contudo uma doutrina nova e minoritária, da qual Nunes faz parte, entende que tal instituto teria natureza de política. 77


Nesse sentido, será feita uma abordagem sobre esses três posicionamentos para que, ao final, possa-se defender o entendimento desse trabalho sobre a natureza das Súmulas Vinculantes. 3.1 Súmula Vinculante como um ato jurisdicional A Súmula Vinculante como um ato jurisdicional é o posicionamento mais defendido por parte dos doutrinadores; pois, como se verá a seguir, eles acreditam que essa seria a natureza jurídica do instituto. Assim, como já dito na introdução deste capítulo, os estudos realizados se ativeram na órbita de conceituar como ato legislativo e jurisdicional; então, neste tópico, será feito um paralelo entre os dois entendimentos, contudo voltado para os que entendem como ato jurisdicional, pois no tópico seguinte será tratado o instituto como ato legislativo. Jorge Miranda (apud NUNES, p. 130) remetendo aos assentos portugueses, entende que a natureza jurídica da Súmula Vinculante é jurisdicional, pois para o autor “após a perda da competência pelo Supremo Tribunal de Justiça para alterar os assentos, por força de alteração legislativa, deu um tratamento definitivo a matéria, afastando-se assim a natureza legislativa dos assentos”. Nesse sentido, Miranda (apud SIFUENTES, p.276) faz duas grandes classificações nos atos jurisdicionais, quais sejam: “1) atos de conteúdo normativo, que no direito português abrangem atualmente apenas as declarações de inconstitucionalidade e de ilegalidade; 2) atos de conteúdo não normativo, que seriam as sentenças, acórdãos e decisões interlocutórias”.

Para Mônica Sifuentes (2005, p. 275), as Súmulas Vinculantes também são um ato jurisdicional, contudo qualifica em “atos normativos da função jurisdicional” ou “ato jurisdicional normativo”. A autora afirma que trata-se de um ato típico da função jurisdicional, mas explica que a classificação do instituto “se situa em uma zona cinzenta da distribuição funcional entre os poderes do Estado, dado o seu caráter de obrigatoriedade e generalidade, que o aproxima do conteúdo material da lei.” Osmar Mendes Paixão Côrtes (2009, p.196) entende que a súmula vinculante não tem natureza jurídica de ato normativo, pois para esse autor a lei é “a expressão ou de uma norma, regra ou um princípio positivado” e que esse não é o caso da Súmula Vinculante. Logo, o autor afirma que “as súmulas são, na verdade, a fixação de determinado sentido interpretativo a dada norma, vinculado à hipótese fática que deu origem a esse sentido interpretativo”. 78


Afirma ainda Côrtes (2009, p. 199) que: Vincula-se não a atividade jurisdicional pela criação de uma norma, mas, a partir do estabelecimento de um sentido interpretativo, vinculam-se as decisões futuras a esse sentido. Apenas isso. Trata-se mais de problema de política judiciária do que do estabelecimento de normatização nova pelo Poder Judiciário.

Com isso o autor afirma que: A atribuição de efeito vinculante da súmula não muda sua natureza de decisão jurisdicional consolidada a partir da repetição sistemática de entendimentos em um mesmo sentido. Cria-se, no máximo, uma norma de decisão, especifica para um caso concreto que, em razão da repetição de hipóteses idênticas, vincula a interpretação de casos futuros. Não se cria proposições hipotéticas, abstrata e geral, que não se confunde com obrigatoriedade de seguir determinado entendimento sobre o assunto.

Vale tomar emprestadas as características dadas por Castanheira Neves (apud Sifuentes, 2005, p. 276) ao expressar seu raciocínio de que os assentos têm aspectos puros de ato jurisdicional, observe-se nas palavras do autor: 1) O órgão emitente é um tribunal. 2) Esse órgão judicial é chamado a tratar do conflito de jurisprudência por meio de uma atividade jurisdicional – ponderação e decisão jurídica de um caso concreto. 3) Esse órgão acaba por ultrapassar o caráter estrito dessa atividade, ao prescrever uma norma jurídica destinada não mais a solução de um caso concreto, mas a uma aplicação geral e futura.

Comentando o entendimento de Castanheira Neves, Sifuentes (2005, p. 276) acrescenta ainda, ao segundo item, para que a caracterização abranja também o controle abstrato de constitucionalidade, que o órgão judicial também seja: chamado a declarar, em sede controle abstrato de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal (art. 102, § 2º, CF/88), a desconformidade parcial ou total das normas jurídicas em relação às normas e princípios constitucionais (Lei nº 9.868/99 e Lei nº 9.882/99).

Para a autora, a diferença de um ato jurisdicional comum de outro seria a normatividade, pois neste último, segundo ela, “extrapolaria os limites da coisa julgada dando generalidade e abstração”. Afirma ainda Sifuentes (2005, p. 277) que além da generalidade e abstração, deve-se acrescentar a obrigatoriedade, que em uma interpretação mais restrita atingiria apenas os atos jurisdicionais de caráter erga omnes, como seria o caso das ações diretas 79


de inconstitucionalidade. Contudo, em um sentido mais abrangente, poder-se-ia também classificar como ato normativo da função jurisdicional as Súmulas Vinculantes, que vincula não só os demais órgãos do poder judiciário, como também a administração direta e indireta da União, Estados e Municípios. Para Miranda (apud SIFUENTES, 2005, p. 278): afecta normas ou actos jurídicos, faz cessar a sua vigência, retira-lhes efectividade, destrói-os; em contrapartida, nenhum outro acto a pode afectar e pode deixar de a respeitar. Mas não assume força material de lei: não esta revestida de capacidade conformadora própria das leis e falta-lhe, por natureza, a livre delimitação dos seus objetos.

Jorge Miranda (apud SIFUENTES, 2005, p. 279) que, como dito anteriormente, entende que os antigos assentos têm natureza jurisdicional, explica que este: Não se tratava de normas legislativas nem de interpretação autêntica em acepção própria; faltava-lhe o irrecusável elemento político que nestas sempre se exibe. Tratava-se, sim, de normas jurisprudenciais, o que explicava a sua necessária acessoriedade perante a lei a que correspondiam, bem como as limitações da sua emanação. Nem se outorgava ao tribunal pleno por fixar doutrina um poder de direcção dos tribunais contrário à sua independência; ele não procedia senão à formulação de uma proposição – não de todas as preposições do juízo jurisprudencial.

Ao tecer comentários sobre as Súmulas Vinculantes no Brasil, Calmon de Passos (1997, p. 633) entende que, qualquer que seja o nome dado ao instituto, “a sua obrigatoriedade decorrerá da própria uniformização jurisprudencial e do papel dos tribunais superiores na busca da unidade do direito”: Súmula, súmula vinculante, jurisprudência predominante, uniformização de jurisprudência ou o que for, obriga. Um pouco à semelhança da função legislativa, põe-se, com ela, uma norma de caráter geral, abstrata, só que de natureza interpretativa. Nem se sobrepõe à lei, nem restringe o poder de interpretar e de definir os fatos atribuídos, aos magistrados inferiores, em cada caso concreto, apenas firma um entendimento da norma, enquanto regra abstrata, que obriga a todos, em favor da segurança jurídica que o ordenamento deve e precisa proporcionar aos que convivem no grupo social, como o fazem as normas de caráter geral positivadas pela função legislativa.

Ante o exposto, conforme defendido por tais doutrinadores, o fato de as Súmulas Vinculantes terem caráter de abstração e generalidade não tirariam delas a natureza de ato jurisdicional, pois defendem que tais atos são emanados por um tribunal no exercício da função jurisdicional.

80


3.2 Súmula Vinculante como um ato legislativo Tem-se pouco a analisar a Súmula Vinculante como um ato legislativo, tendo em vista que é posição de uma doutrina minoritária. Vale ressaltar aqui o entendimento de Helly Lopes Meirelles (1995, p. 561) que entende o ato legislativo típico, que é a Lei como ato: abstrato e geral atuando sobre toda a coletividade em nome da soberania do Estado, que, internamente, se expressa no domínio eminente sobre todas as pessoas e bens existentes no território nacional.

Importante citar a manifestação de Castanheira Neves (Apud, Nunes, 2010, p. 132), reportando-se ao caso específico da decisão do Tribunal Constitucional de Portugal, que decidiu pela inconstitucionalidade dos assentos, afirma que tal instituto possui natureza de lei. Afirma ainda o autor que aquele julgado foi apontado pelo Tribunal como legislativo, motivo pelo qual foi decidido pela inconstitucionalidade, pois feriu o princípio da separação dos poderes. Nunes (2010, p.132) afirma que as Súmulas Vinculantes somente seriam ato legislativo porque o Poder Judiciário, na sua emissão, extrapolaria os limites naturais da sua atividade jurisdicional e passaria a expedir atos com força obrigatória e geral para os demais poderes e para a coletividade. Isso, segundo o autor, caracterizaria o ato de um grau de abstração e generalidade, como um ato legislativo, principalmente porque é editado não no curso de um processo judicial de partes, contencioso. Assim, para essa corrente minoritária, a natureza das Súmulas Vinculantes seria legislativa tendo em vista o seu grau de generalidade de abstração que atinge não só os órgãos do poder judiciário, mas também os demais poderes e a coletividade. 3.3 Súmula como um ato político O entendimento da Súmula Vinculante como um ato político é recente e pouco estudado, fazendo-se assim necessário uma breve análise do conceito, que tem como um dos principais defensores na doutrina brasileira Jorge Amaury Maia Nunes. Nunes (1994) tratando sobre o controle de constitucionalidade in abstracto. Entende o autor que “a atividade exercida pelas cortes constitucionais, no exercício dessa atividade de controle, era marcadamente uma atividade de natureza política diversa da atividade jurisdicional e também da atividade legislativa”. Com isso o autor conclui que os acórdãos proferidos em tais ações não poderiam ser expressados como um ato normativo legislativo e nem como uma ato jurisdicional. 81


Nunes (2010, p. 133) afirma ainda que “a jurisdição incide sobre (a) relação jurídica ou (b) direitos formativos”. Nos dois, o que se busca é a formação de uma decisão que visa entregar o almejado bem da vida. O que, segundo o autor, diferentemente, não acontece com a edição de Súmula Vinculante, pois segundo ele “não se disputa sobre bem da vida, e, ao final do procedimento instituído para a edição de súmula, ninguém tem efetivamente atribuído a si nenhum bem da vida. Ninguém pediu nada e ninguém ganhou nada”. Conclui o autor que não houve nenhuma atividade do Estado de natureza “substitutitva” e “autoritativa” que viesse a dar ao instituto a característica de ato jurisdicional. Para o autor, a única coisa que há em comum entre a edição da Súmula e a atividade jurisdicional é que as duas são exercidas por órgãos do Poder Judiciário, discordando assim com o pensamento de Mônica Sifuentes, já citada no trabalho, que entende ser de natureza jurisdicional. Afirma ainda Nunes (2010, p.133) que o fato de uma corte constitucional pertencer à estrutura do judiciário não é o suficiente para afirmar que todos os seus atos são de natureza jurisdicionais; pois, segundo ele, conforme já expressado, no exame do controle de constitucionalidade tais atos são apenas formalmente jurisdicionais. No mesmo sentido, Canotilho (apud NUNES, 2010, p. 133) comentando sobre o controle de constitucionalidade in abstracto afirma que “o controlo não é propriamente uma fiscalização judicial, mas uma função constitucional autónoma que tendencialmente se pode caracterizar como função de legislação negativa”. E, também, Karl Loewenstein (apud, NUNES, 2010, p. 134) entende que embora a decisão de controle de constitucionalidade seja formalmente jurisdicional ela tem caráter político, pois segundo ele a “substância de conflitos normativos desse jaez é política”. Calamandrei (apud NUNES, 2010, p. 134), doutrinador italiano, entende que: [C]uando el control sobre la constitucionalidad de leyes se desenvuelve , como en el sistema austríaco fundamentalmente adoptado en Italia, en vía principal y general, el órgano que ejercita este control no es un órgano jurisdicional; no tanto porque, como se ha observado, ‘subsistirán siempre en las controvérsias sometidas a su examen estrías políticas’ (...), sino porque ninguno de los sintomas que se indican como típicos de la función jurisdicional, se encontran en este control general de constitucionalidade... El control de la Corte constitucional afecta a la lei em su momento normativo, no en su momento jurisdicional: la misma no es, por conseguiente, en esta

82


atribución suya, un órgano judicial, sino más bien, como piensa Kelsen, um órgano paralegislativo o superlegislativo...16

Entende Nunes (2010, p. 134-135) que não é possível enquadrar a atividade de controle como uma atividade legislativa, pois, segundo o autor, baseando-se no entendimento de Jorge Miranda, também citado neste trabalho: o editor da Súmula Vinculante seria estranho seria estranho órgão legislativo que não só está subordinado a outro órgão, que não só não pode fazer leis quando o entender, como também é órgão que se vinculam ad futurum às suas mesmas decisões e interpretações da lei.

Ante tal afirmação Nunes (2010, p. 135) conclui que “isso se trata sim de um controle político que atua no momento normativo da regra, ainda que se possa tomá-lo por formalmente jurisdicional”. Assim, Nunes (2010, p.135) afirmando que o procedimento previsto em Lei para regulamentar a elaboração da Súmula Vinculante só vem a corroborar no sentido de que se trata de um “processo objetivo, sem partes, unilateral, no qual pode existir, um requerente, mas não um requerido. Afirma ainda que não há contraditório e que o objetivo é “a regularidade da vida constitucional do Estado”. O autor afirma ainda que podem ser admitidos terceiros, mas não na qualidade de partes. Com isso, este doutrinador leciona que: Isso sim, trata-se de um juízo político, autônomo, que tanto é diferente do juízo jurisdicional quanto o é do juízo legislativo. É um juízo paralegislativo, superlegislativo, e que opera justamente na especificação de sentido, de validade e eficácia da norma constitucionalmente compatível e de cancelamento da atividade legislativa constitucionalmente incompatível.

Nunes (2010, p.135), para entender a diferença que há entre a atividade de legislação e a atividade das cortes constitucionais, tanto no controle de constitucionalidade quanto na edição de Súmulas Vinculantes; usa das palavras de Calamandrei (apud NUNES, 2010, p. 135), que expendida em outro contexto explicativo, é de suma importante para fazer essa diferenciação:

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Tradução livre: Quando o controle sobre a constitucionalidade de leis se desenvolve, como no sistema austríaco fundamentalmente adotado na Itália, no aspecto principal e geral, o órgão que exercita este controle não é um órgão jurisdicional; não tanto porque, como se tem observado, ‘subsistirão sempre nas controvérsias submetidas a seu exame linhas políticas’(...), se não porque nenhum dos sintomas que se indicam como típicos da fundação jurisdicional, encontram-se neste controle geral de constitucionalidade... O controle da Corte constitucional afeta à lei em seu momento normativo, não em seu momento jurisdicional: a mesma não é, por conseguinte, nesta sua atribuição, um órgão judicial, se não melhor, como pensa Kelsen, um órgão paralegislativo ou superlativo. 83


Hay, sin embargo, entre la función de la Corte constitucional que anula las leyes viciadas por ilegitimidade constitucional, y la función de los órganos más propriamente legislativos que pueden abrogar cualquier ley independientemente de su inconstitucionalidad, una profunda diferencia: que mientras los órganos legislativos obran libremente, bajo el impulso de la sola oportunidade política, que los induce a abrogar una ley vieja para sustituirla por una ley nueva considerada mejor, la Corte constitucional anula la ley no al objeto de sustituirla por uma considerada politicamente más conveniente, sino tan sólo porque la misma está en contraste con una norma constitucional que deve ser hecha respetar... La Corte constitucional se inspira en el pasado, no, como el Parlamento, en el porvenir; anula las leyes no para dar ingresso a leyes nuevas, sino para hacer respetar la ley vieja (esto es, la norma constitucional)17.

Assim, Nunes (2010, p. 136) afirma que é “mais lógico caracterizar como política essa atividade”, da mesma forma como o fez Gaetano Azzarariti (apud CAVALCANTI, 1966, p 35): A Corte Constitucional pertence a uma função autônoma de controle constitucional que não se pode identificar com nenhuma das funções dos três poderes a fim de conduzi-los à observância das normas constitucionais.

Por fim, Nunes (2010, p.136) afirma que a atividade exercida pelo Supremo Tribunal Federal da qual resulta a edição de Súmulas Vinculantes, que vinculam os demais órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública Direta e Indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, não se limita aos esquemas preconcebidos que reduzem os atos do Estado, como expressão do poder político, a atos legislativo, administrativo ou judiciais. Para o autor a Súmula Vinculante não se amolda nessa classificação, sendo necessário entendê-la “simplesmente como um ato político, fruto do exercício do poder político na sua vertente institucional”. Assim, conforme sobreposto, para essa doutrina as Súmulas Vinculantes têm caráter político; pois, só o fato de ser emitido por um órgão jurisdicional, não lhe dá essa característica. E nem é legislativo, pois ele não tem legitimidade para editar Leis, pois como disse Nunes (2010, p.134) “é um órgão estranho ao legislativo”.

17

Tradução livre: Há, entretanto, entre a função da Corte constitucional que anula as leis viciadas por ilegitimidade constitucional, e a função dos órgãos mais propriamente legislativos que possam revogar qualquer lei independentemente de sua constitucionalidade, uma profunda diferença: enquanto que os órgãos legislativos operam livremente, sob o impulso da única oportunidade política, que os induzem a revogar uma lei velha para substituí-la por uma lei nova considerada melhor, a Corte constitucional anula a lei não apenas por substituí-la por uma lei considerada politicamente mais conveniente, mas apenas porque a mesma está em contraste com uma norma constitucional que deve ser respeitada... a Corte Constitucional se inspira no passado, não, como o Parlamento, no futuro; anula as leis não para dar ingresso a novas leis, mas para fazer respeita a lei velha ( isto é, a norma constitucional). 84


Assim, pode ser observado que uma das consequências da Súmula Vinculante ser considerada ato de natureza político é que, portanto, essa atuação do Supremo Tribunal Federal não fere a separação dos poderes; já que tal tribunal não estaria usurpando a sua função ao editar atos de natureza legislativa. Além disso, importante ainda salientar que, em razão das Súmulas Vinculantes terem natureza de ato político e, levando em consideração que o art. 103-A, da Constituição Federal de 1988, estabelece que seus efeitos incidirão sobre os demais órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública Direta e Indireta, nas esferas federal, estadual e municipal; observa-se que esse ato que passará a reger a vida das pessoas possui característica de ato político, por atuar no momento normativo da regra, como já fora citado neste e chegar ao jurisdicionado com força normativa. Depreende-se assim do texto que parte da doutrina entende ser as Súmulas Vinculantes um ato jurisdicional; pois, para eles, é um ato emanado da função jurisdicional do Supremo Tribunal Federal. Outra diz ser um ato legislativo, pois no momento em que este Tribunal edita uma Súmula Vinculante com caráter geral e abstrato ele está a legislar, extravasando, assim, suas competências. E uma doutrina ainda recente, entende que não seria nem um ato jurisdicional e nem um ato legislativo, mas sim um ato político. Tal doutrina entende que não é o primeiro porque o Tribunal quando decide não está a tomar uma decisão oriunda de uma lide entre duas partes e que os efeitos de tal decisão são como já demonstrado gerais e erga omnis, descaracterizando assim a Súmula Vinculante como um ato Jurisdicional. Para tal doutrina não é um ato legislativo, pois segundo ela o Supremo Tribunal Federal não teria competência para legislar. Assim, ela entendem ser um ato político porque age no momento normativo da regra, e que decisões dessa espécie, típica de tribunal

constitucional,

tem

eminentemente

caráter

político.

85


CONCLUSÃO Desde a época dos antigos assentos portugueses até hoje, a natureza jurídica das Súmulas Vinculante é tema de grande divergência na doutrina, no sentido de se tais institutos teriam natureza jurisdicional ou legislativa. Contudo, surge um novo entendimento, minoritário, que vem afirmando terem as Súmulas Vinculantes natureza política. A partir de tais divergências, o presente trabalho pretendeu estudar qual seria a natureza jurídica das Súmulas Vinculantes. Primeiramente, por todo exposto, pode-se concluir, que os dois institutos acabam-se por se confundir; pois, após análise, viu-se a grande similaridade entre as Súmulas Vinculantes e os antigos assentos. Assim, separando os contextos históricos, a única diferença de uma para a outra é a nomenclatura dada para cada um, pois o objetivo e a forma de elaboração são as mesmas. Pôde-se depreender do estudo que as Súmulas Vinculantes não têm natureza de ato jurisdicional, porque numa jurisdição se almeja o bem da vida no qual o juiz na sentença irá prestar uma atividade jurisdicional. Enquanto na edição das Súmulas Vinculantes isso não acontece, não há duas partes litigando para alcançar um direito, o que há aqui é uma busca do Supremo Tribunal Federal em uniformizar uma jurisprudência onde já há reiteradas decisões naquele sentido. Da análise da Súmula Vinculante como um ato legislativo, pode-se depreender também que não se enquadraria em tal classificação, pois o Supremo Tribunal Federal não tem essa legitimidade para editar Leis, tendo em vista a preservação do princípio da separação dos poderes. Ressalte-se também que na edição de Leis tem-se a liberdade para criar, enquanto na edição das Súmulas Vinculantes, o Tribunal fica preso aos pressupostos de edição desta. E mais, as Súmulas Vinculantes, uma vez editadas, se vinculam ad futurum, ou seja, depois de editadas não pode o tribunal se posicionar de forma diferente, enquanto uma Lei pode ser revogada por outra. O Supremo Tribunal Federal, ao editar Súmulas Vinculantes, está no pleno exercício de seu poder político; tornando-se assim cada vez mais um tribunal político. E mais, a tendência é que o STF se transforme cada vez mais em uma suprema corte, passando a tratar mais de questões políticas. Por fim, pelo presente trabalho, conclui-se que as Súmulas Vinculantes têm natureza política, pois o Supremo Tribunal Federal, ao editá-las, age no momento normativo na regra, atuando assim no exercício do seu poder político. 86


3. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 04 abr. 2014. ______. Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental em reclamação nº 3.979–0/DF. Tribunal Pleno. 2. Súmulas vinculantes. Natureza constitucional específica (art. 103-A, § 3º, da CF) que as distingue das demais súmulas da Corte (art. 8º da EC 45/04). 3. Súmulas 634 e 635 do STF. Natureza simplesmente processual, não constitucional. Ausência de vinculação ou subordinação por parte do Superior Tribunal de Justiça. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. Agravante: Estado da Bahia. Agravado: Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Brasília, 03 mai. 2006. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14732618/agregnareclamacao-rcl-3979-df>. Acesso em: 07 jun. 2014. ______. Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental em reclamação nº 3284-1/SP. Tribunal Pleno. Agravo Regimental contra decisão que negou seguimento a reclamação. Súmula do Supremo Tribunal Federal destituída de efeito vinculante. Inviabilidade da ação. 1. Não cabe reclamação constitucional para questionar violação a súmula do Supremo Tribunal Federal destituída de efeito vinculante. Precedentes. 2. As atuais súmulas singelas do STF somente produzirão efeito vinculante após sua confirmação por dois terços dos ministros da Corte e publicação na imprensa oficial (art. 8º da EC nº 45/04). 3. Agravo desprovido. Agravante: Cooperativa Agro Pecuária Holambra. Agravado: Juiz de Direito da 2ª Vara Judicial da Comarca de Moji Mirim. Relator: Ministro Carlos Britto. Brasília, 27 ago. 2009. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/5347030/agregna-reclamacao-rcl-3284-sp>. Acesso em: 07 jun. 2014. CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. Súmula Vinculante e Segurança Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, NUNES, Jorge Amaury Maia. A ação declaratória de constitucionalidade: eficácia erga omnes e efeito vinculante no direito brasileiro. Belém, 1994, policopiado ______. Segurança Jurídica e Súmula Vinculante. São Paulo: Saraiva, 2010. PASSOS, J. J. Calmon. Súmula Vinculante. Genesis Revista de Direito Processual Civil. Curitiba, n. 6, set/dez. 1997 SIFUENTES, Mônica. Súmula Vinculante. São Paulo: Saraiva, 2005.

87


DIREITOS FUNDAMENTAIS E INTERESSES DIFUSOS: INVIOLABILIDADE DE COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS E PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA

Fernando de Magalhães Furlan18

RESUMO O texto analisa a questão da aceitação de gravação telefônica como prova para a condenação de agentes econômicos e seus prepostos pela prática do ilícito de cartel e outras condutas anticompetitivas, previstas na Lei Antitruste19. O texto indaga se direitos e garantias individuais, como a inviolabilidade das comunicações e a privacidade, têm ou não caráter absoluto. O princípio de convivência das liberdades estaria a legitimar, ainda que excepcionalmente, a adoção de medidas restritivas em relação às prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O princípio da proporcionalidade também deve ser invocado, aplicando-se a técnica da ponderação de bens, sob o manto da concordância prática ou harmonização, cuja finalidade consiste na realização máxima de valores constitucionais imbricados, visando harmonizá-los. Assim, tem-se, de um lado, o direito à intimidade do interlocutor insciente, e o seu corolário da inviolabilidade das comunicações telefônicas, e, do outro, os direitos à livre iniciativa e à livre concorrência daquele que realizou as gravações. A lei não veda a gravação telefônica, somente a interceptação não autorizada. Assim, consoante o princípio da reserva legal, a prova obtida por meio de gravação telefônica pode ser admitida. A jurisprudência do STJ no sentido da licitude das gravações telefônicas é bastante extensa. Contudo, a análise da aceitabilidade das gravações telefônicas se opera incidenter tantum (casuisticamente). Assim, a gravação de conversas telefônicas por um dos interlocutores não parece ferir o art. 5º, XII da Constituição Federal. A discussão sobre a possibilidade de utilização de gravações telefônicas se encontra relacionada, portanto, à questão correspondente à sua divulgação. Neste sentido, configura justa causa na divulgação de 18

Doutor pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), com pós-doutorado pela

Universidade de Macau, China. Foi presidente, conselheiro e procurador-geral do CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica. É membro do Grupo de Especialistas do Mercosul, no âmbito de seu sistema de solução de controvérsias e consultor ad hoc da UNCTAD em projetos de concorrência e comércio. Foi chefe de gabinete do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, diretor do Departamento de Defesa Comercial (DECOM) e membro do Conselho de Administração da FINAME/BNDES. É Professor da Faculdade de Direito da FACIPLAC/UNIPLAC e consultor em Brasília. 19

Lei 12.529/11. 88


gravações telefônicas quando forem elas realizadas no intuito de repelir grave ameaça a direito de quem as comunicou ao Estado. Se a pessoa, na busca de preservar direito próprio, promove gravação de uma conversa, não estará praticando nenhuma ilicitude. A comunicação de delito às autoridades denota exercício regular de direito e a simples solicitação de abertura de inquérito policial é mero ato informativo, destinado à obtenção de dados referentes à suposta conduta delituosa. Dessa forma, a apresentação de gravações telefônicas, quando da solicitação ao Estado de apuração de condutas ilícitas parece não ferir o art. 5º, XII da Constituição Federal. Já com relação à prova emprestada, O STF já decidiu que dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas e em escutas ambientais, judicialmente autorizadas para produção de prova em investigação criminal ou em instrução processual penal, podem ser usados em procedimento administrativo, contra a mesma ou as mesmas pessoas em relação às quais foram colhidos. PALAVRAS-CHAVE: escuta telefônica, garantias fundamentais, inviolabilidade das comunicações, princípio da proporcionalidade.

89


INTRODUÇÃO

A questão relativa à aceitação de gravação telefônica como prova para a condenação de agente econômico pela prática do ilícito de cartel é de relevância crucial para o futuro da atuação estatal na repressão de ilícitos concorrenciais. A Carta da República em seu artigo 5º, inciso XII prevê ser “inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.”

Não é um tema fácil. Sua complexidade se mostra, inicialmente, no simples fato de haver vacatio legis quanto à gravação de conversa telefônica. Não bastasse isso, não se pode afirmar estar consolidada a jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros quanto à questão, tampouco a doutrina. É certo que vivemos em um Estado Democrático de Direito, em que os fins não justificam os meios. Assim, a admissão de provas obtidas com violação às normas legais em vigor simbolizaria estarmos em um Estado opressor, totalitário e policialesco, não num Estado Democrático de Direito. Não é outro, aliás, o comando do artigo 5º, inciso LVI da Carta Política que estipula que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

Contudo, é preciso termos presente que, enquanto a questão envolver tema referente ao princípio da livre concorrência, estaremos cuidando de salvaguardar interesse difuso, do qual é destinatária e beneficiária toda a coletividade20. Assim, os postulados do direito penal e processual penal devem ser absorvidos cum grano salis, especialmente quando se tratar de processo administrativo em matéria de defesa da ordem econômica que possui características mais de um processo objetivo que subjetivo. Ou seja, mutatis mutandis, é ele caracterizado como um processo em que somente existem partes em sentido formal e não existe lide a ser defendida, mas sim o objetivo de defender a livre concorrência e, em última análise, a ordem econômica. Ademais, é um processo destinado a resguardar interesses de pessoas que não estão diretamente envolvidas na relação processual. Garcia de Enterria21, analisando as origens da Justiça administrativa francesa, examinou a concepção do processo objetivo, formulada dentro da teoria administrativista, afirmando ter sido a grande obra histórica do Conseil d’État francês, com a grande concepção do excés de pouvoir.

20

Artigo 170, IV, da Constituição Federal. 90


Esse recurso de excesso de poder ou de anulação, considerado como um recurso objetivo ou da legalidade, sem partes propriamente ditas (o interesse do recorrente de alegar seria um simples requisito de seriedade para por em marcha os poderes de ofício do juiz administrativo, parte da Administração), um verdadeiro “processo ao ato” e não de tutela de direitos, puramente declarativo, cujas consequências somente à Administração tocaria extrair.

Outro traço marcante de um processo objetivo, em especial quanto ao que dispõem as normas pátrias, é a indisponibilidade. Assim, não poderá o interessado que dê início ao processo, dele renunciar. Ou melhor, essa possibilidade de renúncia há, contudo, tal ato seria inócuo e desprovido de qualquer efeito. Isto porque se trata da defesa da ordem econômica enquanto necessidade pública, não permitindo qualquer juízo de disponibilidade. Não obstante, e em consonância com a jurisprudência dos tribunais superiores e com a doutrina, a complexa questão aqui posta deve ser analisada casuisticamente, ou seja, considerando as peculiaridades de cada caso concreto.

1 A QUESTÃO DA PROVA NOS ILÍCITOS ANTITRUSTE É reconhecida a dificuldade para produzir provas em casos de ilícitos antitruste em que, no mais das vezes, se está cuidando de condutas concertadas que denotam coordenação de posições e ações. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, uma das referências internacionais em temas de concorrência e antitruste, publicou em junho de 2007 documento22 em que afirma que: A parte mais importante de um caso de cartel é simplesmente provar que tal acordo existiu. Contudo, obter evidência direta de um acordo de cartel pode ser difícil. Operadores de cartel trabalham em segredo e frequentemente não cooperam com investigadores. Em tais situações,

21

ENTERRIA, Eduardo Garcia de. Hacia una Nueva Justicia Administrativa. 2ª ed. Madrid,

Civitas, 1992, pg. 86. 22

“Processando Cartéis sem Evidência Direta de Acordo” - Prosecuting Cartels without Direct

Evidence of Agreement. Policy Brief. Document nº DAF/COMP/GF(2006)7. Organization for Economic Co-operation and Development – OECD. June 2007. Disponível em: http://www.oecd.org/dataoecd/19/49/37391162.pdf. 91


evidencia circunstancial pode desempenhar um importante papel em provar o acordo.23

Normalmente, em casos desta espécie, a gravação de conversa é o único meio à disposição do Estado para a obtenção de prova direta. Assim, dadas as peculiaridades de condutas desta espécie em que os acertos são feitos em conversas secretas, em reuniões en petit comité e com interlocutores com interesses convergentes, em comunicações telefônicas muitas vezes cifradas, jamais por meio de cartas, memorandos, convocações de reuniões com pauta pré-estabelecida, reuniões com grande número de participantes e/ou com participantes com interesses divergentes ou, ao menos, diversos; não há para o Estado muitas opções para constituir prova com o fim de combater tais ilícitos. Com isto, enfatize-se, não significa dizer que no antitruste poderão ser aceitas provas ilícitas ou ilegítimas, indicando grave retrocesso.

2 A LIVRE CONCORRÊNCIA COMO INTERESSE DIFUSO E PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL Os interesses difusos são considerados direitos de terceira geração, cuja garantia e efetividade pressupõem destinatários disseminados. Neste contexto, os temas sujeitos à jurisdição do Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE envolvem valores que ultrapassam a esfera dos interesses particulares, abrangendo pretensões de caráter transindividual e indivisíveis. Mancuso 24 sustenta que a evolução na concepção do processo não somente denota como prioriza o elemento social na aplicação do direito, presumindo um inevitável

deslocamento

conceitual

quanto

à

percepção

de

sua

finalidade

contemporânea.

23

The most important part of a cartel case is simply proving that such an agreement existed. But

getting direct evidence of a cartel agreement can be difficult. Cartel operators work in secret and often do not co-operate with investigators. In these circumstances, circumstantial evidence can play an important role in proving the agreement. 24

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos – Conceito e legitimação para agir. 5a

ed. Revista dos Tribunais. São Paulo. 2000, pp. 236-251. 92


Não se deve desconsiderar, portanto, que aqui estamos tratando de interesses plurissubjetivos, cujas características peculiares demandam uma análise dos postulados instrumentais à disposição dos operadores do direito. O processo foi concebido para a tutela de situações jurídicas individuais, restando deslocado quando se trate de outorgar tutela a situações metaindividuais. Neste sentido, alguns autores defendem uma “adaptação criativa” do arsenal processual existente às novas exigências surgidas como o acesso à Justiça dos interesses superindividuais. Em se tratando de interesses difusos, que ultrapassam a esfera do indivíduo isoladamente considerado, a interpretação dos direitos e garantias fundamentais deve ser feita com certos temperamentos. Do contrário, por um apego excessivo aos cânones tradicionais, esses interesses, que não podem ter um dono, restarão marginalizados. Ainda, segundo Mancuso

25

, citando Vigoriti e Cappelletti, as garantias

individuais do due process of law (especialmente as referentes à defesa, contraditório e limites subjetivos do julgamento) hão de ser vistas sob a ótica das garantias de índole coletiva, consentâneas com a natureza e finalidade dessas novas exigências sociais. Diante disso, duas alternativas se abrem: ou se fica adstrito à conotação tradicional desses princípios ou se lhes dá uma interpretação aberta, progressista, em ordem a tornar possível a tutela desses interesses. Trata-se, então, de indicar sucedâneos, a par de conferir interpretação elástica, entre outros, aos princípios da ampla defesa e do contraditório, adaptando-os às novas exigências de uma sociedade cada vez mais postulante e reivindicadora da intervenção estatal. Trazendo a questão à hipótese em exame, vale citar o voto do eminente ministro Carlos Velloso no Habeas Corpus nº 75.338-8, que, acompanhando o relator e a maioria do ministros do STF pelo indeferimento do pedido, assim se manifestou, No caso, um dos interlocutores grava conversa havida entre ambos; isso não se inclui na proibição referida no art. 5º, XII. Em voto no, Inquérito 65 - caso ‘Magri’- sustentei que não há ilicitude no fato de um dos interlocutores gravar a conversa havida entre ambos a fim de, por exemplo, realizar prova dessa conversa. Em certos casos, essa gravação pode ferir princípios éticos. Isto não ocorre, entretanto, na gravação da conversa em que um dos interlocutores, por exemplo, chantageia o outro, faz propostas ilícitas ao outro, solicita vantagem ilícita, etc. Penso que é de interesse do interlocutor, que está sendo chantageado, gravar a conversa, a fim de realizar prova, posteriormente. Dir-se-á que a gravação seria ofensiva ao art. 5º, inciso X, da Constituição. 25

Op. Cit., p. 240. 93


Deve ser entendido que o direito à intimidade não é, como há pouco dizíamos, absoluto, devendo ceder diante dos interesses público, social e da justiça. Ora, a justiça não tem apenas um prato, mas dois. Em um deles estão os direitos individuais; mas, no outro, estão os não menos importantes direitos sociais e coletivos. O interesse da justiça assentase, sobretudo, na realização do interesse social, da coletividade. (g.n.) Bem ressaltou o Senhor Ministro-Relator que a Constituição impõe ao Estado, na defesa da sociedade, a realização de princípios que o legislador considera que quem os viola incorre em crime. Ao Estado cabe apurar esses atentados cometidos contra a sociedade.

O julgador fazia menção à relação entre os direitos individuais e os sociais e coletivos. O que dizer então quando estamos tratando de interesses difusos, assim entendidos aqueles que ultrapassam a esfera individual e até mesmo a coletiva? Ao julgar o Mandado de Segurança nº 23.452/RJ26, o Supremo Tribunal Federal orientou que “não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição”. (Grifos nossos). Verbis: O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.

3 A TEORIA DAS RESTRIÇÕES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS A necessidade de limitação do espaço de proteção dos direitos fundamentais já não encontra mais resistências na doutrina, uma vez que incorporada aos ordenamentos jurídicos nacionais. Esta condição decorre do próprio conteúdo aberto e variável das liberdades individuais que, para sua concretude, exige o exercício do direito no plano fático e concreto. Aí então se pode comprovar que em determinadas situações a Constituição protege da mesma forma dois valores ou bens, mas, quando tomados em 26

Julgado pelo Pleno em 16/09/1999 (DJ DATA-12-05-00 PP-00020 EMENT VOL-01990-01

PP-00086). 94


sentido absoluto, conduzem a um dever-ser conflitante. A restrição dos direitos, examinados pela ótica de uma convivência social de cunho contratualista, visa permitir tanto a oportunidade do exercício de direitos fundamentais colidentes, como a preservação de um bem jurídico coletivo ou estatal assegurado pela Constituição27. Para a preservação do sistema constitucional, as restrições têm arrimo nos princípios da unidade da Constituição e da concordância prática. Por outro lado, a chamada teoria interna desconsidera a idéia de cisão entre o direito e suas restrições, concebendo esta relação em consonância com um conteúdo determinado. Com esta premissa, a liberdade jurídica genérica, entendida a partir de princípios jusfudamentais, é que comporta limitações, ou seja, uma determinada posição jurídica prima facie apresenta, em si, restrições imanentes. Admite-se, então, restringir a liberdade abstrata, mas não posições definitivas, considerando o processo de ponderação dos princípios, a fim de impedir situações absolutas incompatíveis com as aspirações comunitárias. Tal preocupação é manifestada por Robert Alexy28, quando afirma que “se se parte do modelo de princípios, então se restringe não só um bem protegido das normas de direito fundamental senão um direito prima facie garantido por normas jusfundamentais. Portanto, no modelo dos princípios, o discurso das restrições dos direitos fundamentais é correto”. Segundo a teoria interna, a restrição ocorre quando um direito fundamental ou uma posição jurídica, à primeira vista, têm vigência comum com uma não-liberdade ou um não-direito definitivo, de igual conteúdo. As chamadas restrições diretamente constitucionais, por exemplo, impõem fronteiras às liberdades individuais formuladas expressa ou tacitamente na própria Constituição, convertendo um direito prima facie em um não-direito definitivo. Destarte, as restrições devem se limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Aplica-se então a máxima da proporcionalidade ou a proibição do excesso. Isso significa que qualquer limitação feita

27

PALMEIRA, Marcos Rogério. Direitos fundamentais: regime jurídico das restrições. Apud

http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/direitos%20fundamentais.pdf (visitado em 29/06/2008). 28

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. Malheiros.

São Paulo. 5ª Ed., 2008. 95


por lei aos direitos fundamentais deve ser adequada (apropriada), necessária (exigível) e proporcional (com justa medida). Assim, a doutrina dos direitos fundamentais aboliu a possibilidade de supremacia absoluta do catálogo de liberdades, por conta da inevitável colisão de interesses particulares (direitos subjetivos), além da necessidade de preservação de valores jurídicos comunitários que em condições muito peculiares se sobrepõem e limitam o livre agir individual. Assim, as restrições aos direitos fundamentais são admitidas desde que encontrem justificativas, explícita ou implicitamente, na Constituição. Devem ainda ser limitadas na justa medida para salvaguardar outros direitos constitucionalmente protegidos. Ao estudar o âmbito de proteção dos direitos fundamentais e as possíveis limitações, Mendes29, citando Pieroth/Schlink, afirma não ser raro que a definição do âmbito de proteção de determinado direito dependa de uma interpretação sistemática e abrangente de outros direitos e disposições constitucionais. Para o jurista, “muitas vezes, a definição do âmbito de proteção somente há de ser obtida em confronto com eventual restrição a esse direito”. Ainda consoante Mendes30, para se definir o âmbito de proteção é preciso proceder à análise da norma constitucional garantidora de direitos com o intuito de: 1. Identificar os bens protegidos e a amplitude de tal proteção; 2. Verificar as possíveis restrições expressamente determinadas no texto constitucional e definir as reservas legais de índole restritiva31.

Assim, o âmbito de proteção de um direito seria o ponto central da dogmática dos direitos fundamentais. Neste contexto, dentre outros temas controversos estaria a da amplitude de proteção à inviolabilidade das comunicações telefônicas. Para autor, “a identificação precisa do âmbito de proteção de determinado direito fundamental exige um renovado e constante esforço hermenêutico..”32

4 A TEORIA DA PROPORCIONALIDADE 29

MENDES, Gilmar Ferreira et al. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais.

Brasília. Brasília Jurídica. 2000, p. 212. 30

MENDES, Gilmar Ferreira et al. Op. Cit., pp. 212-213.

31

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Ed.

Coimbra. Almedina. 2008. 32

MENDES, Gilmar Ferreira et al. Op. Cit., p. 213. 96


Em situações de difícil solução, denominadas de hard cases por Dworkin33, o princípio da proporcionalidade deve ser invocado. Ao aplicar a técnica da ponderação de bens, também considerada a concordância prática ou harmonização, chega-se à harmonização, ou realização máxima de valores constitucionais imbricados. A propósito, quando princípios constitucionais entram em conflito, a moderna doutrina, inspirada no direito alemão, utiliza o princípio da proporcionalidade, de molde a solucionar a controvérsia. Isso porque os princípios, por serem normas fundamentais, não podem ser excluídos do sistema, mas apenas afastados em uma situação concreta. Continuam, portanto, dentro do ordenamento jurídico. A incidência dos princípios não pode ser posta em termos radicais, de validade ou invalidade, devendo-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância.34 Para Alexy35, “quando dois princípios entram em colisão, um deles tem que ceder ante o outro. Porém, isto não significa declarar inválido o princípio deslocado, nem que no princípio deslocado se tenha que introduzir uma cláusula de exceção”. De fato o que ocorre é que, sob certas circunstâncias, um dos princípios precede ao outro. Sob outras circunstâncias, contudo, a questão da precedência poderá ser solucionada de maneira inversa.

A corrente doutrinária que advoga a teoria da proporcionalidade entende que a prova colhida com transgressão aos direitos fundamentais do homem é totalmente inconstitucional e, conseqüentemente, deve ser declarada a sua ineficácia como substrato probatório capaz de abalizar uma decisão judicial. Porém, há uma exceção: quando a vedação é amainada para acolher a prova contaminada, excepcionalmente e em casos extremamente graves, se a sua aquisição puder ser sopesada como a única forma, possível e admissível, para o abrigo de outros valores fundamentais, considerados mais urgentes na concreta avaliação do caso.36 33

DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge. Harvard University Press. 1978.

34

ROCHA, Andréa Presas. A admissão da prova ilícita como único meio de garantia de direitos

fundamentais. Apud http://www.amatra5.org.br/amatra5/noticia_sem_imagem.jsp?id=403 (visitado em 29/06/2008). 35 36

ALEXY, Robert. Op. Cit. BARBOSA, José Olindo Gil. As Provas Ilícitas no Processo Brasileiro.

http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/AS%20PROVAS%20IL%C3%8DCITAS .pdf, acessado em 23/06/2008. 97


Nery Júnior37 entende que não devam ser aceitos os extremos, nem a negativa peremptória de se emprestar validade e eficácia à prova obtida sem o conhecimento do protagonista da gravação sub-reptícia, nem a admissão pura e simples de qualquer gravação fonográfica ou televisiva. Para o autor, “a propositura da doutrina quanto à tese intermediária é a que mais se coaduna com o que se denomina modernamente de princípio da proporcionalidade, devendo prevalecer, destarte, sobre as radicais”. Também Moniz de Aragão

38

recomenda a aplicação da teoria da

proporcionalidade, pois para ele “não faz sentido deixar o ser humano, ou a própria sociedade, inteiramente desprotegidos frente ao ato ilícito, em casos para os quais será impossível obter a prova por meios ortodoxos”. Contudo, adverte o jurista que essa orientação deve se subordinar à ressalva de o método empregado na obtenção da prova ser moralmente legítimo, isto é, justificar-se perante as regras morais aceitas à época e no meio em que os fatos se passaram, pois é irrecusável que o conceito de meios “moralmente” legítimos varia no tempo e no espaço; trata-se de um parâmetro que o intérprete da lei (máxime o julgador), subordinará a padrões jurídicos, filosóficos, políticos, etc. Não se pode olvidar, contudo, a possibilidade de conseqüências negativas da aplicação leviana do princípio da proporcionalidade na sociedade. Assim, a aplicação desse princípio insere, em si, uma gama de subjetivismo, podendo, de acordo com este subjetivismo, trazer perigos para a garantia da lisura plena das provas trazidas ao processo, e a proteção necessária da dignidade e do livre desdobramento da personalidade humana. Por Isso, apesar da utilização do princípio da proporcionalidade como um sistema eficaz e necessário para a obtenção e salvaguarda do equilíbrio entre valores fundamentais em conflito, somente se deve aplicá-lo em situações concretas

37

NERY JÚNIOR, Nelson. Proibição da Prova Ilícita, 4ª edição, São Paulo, 1997.

38

MONIZ DE ARAGÃO, E. D. Prova ilegalmente obtida. Revista da Associação dos

Magistrados do Paraná, v. 31, p. 21-29 Apud FREGADOLLI, Luciana. O direito à intimidade e a prova ilícita. Del Rey, Belo Horizonte, 1998, p. 195.

98


extraordinárias, nas quais é imprescindível a obtenção de meios de prova que possam contrapor, eventualmente, o direito geral de personalidade de outrem.39 Com relação ao subjetivismo do juiz, Barbosa Moreira40 aponta que não se deve perder de vista quão freqüentes são as situações em que a lei confia na valoração (inclusive ética) do juiz para possibilitar a aplicação de normas redigidas com emprego de conceitos jurídicos indeterminados, como o de ‘bons costumes’, ‘mulher honesta’ ou de ‘interesse público’. Para ele, “somente a atenta ponderação comparativa dos interesses em jogo no caso concreto se afigura capaz de permitir que se chegue à solução conforme a Justiça. É exatamente a isso que visa o recurso ao princípio da proporcionalidade”.41 Por fim, importante citar decisum do Superior Tribunal de Justiça42 que acentuou a relatividade dos direitos contemplados no Texto Constitucional, decorrente da própria necessidade de harmonização recíproca, referindo-se ao “substrato ético” que não pode deixar de orientar o intérprete na fixação dos limites razoáveis, cujo excerto da ementa lê: Escuta Telefônica com ordem judicial. O inciso do artigo 5º da Constituição que dispõe que são inadmissíveis as provas obtidas por meio ilícito, não tem conotação absoluta. Há sempre um substrato ético a orientar o exegeta na busca de valores maiores na construção da sociedade. A própria Constituição Federal, que é dirigente e programática, oferece ao juiz pela ‘atualização constitucional’ base para o entendimento de que a cláusula constitucional invocada é relativa.

Assim, tem-se, de um lado, o direito à intimidade do interlocutor insciente, e o seu corolário da inviolabilidade das comunicações telefônicas, e, do outro, os direitos à livre iniciativa e à livre concorrência daquele que realizou as gravações. Deve-se, então, perquirir: 1. A proteção aos direitos à livre iniciativa e à livre concorrência justifica a utilização da gravação telefônica, e, portanto, a quebra do direito à intimidade do interlocutor insciente? 2. Esse era o único meio de que dispunha aquele que realizou as gravações para fins de buscar guarida do Estado visando à proteção dos seus direitos? Era esse meio necessário? 39

SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1993. 40

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Constituição e as provas ilicitamente adquiridas.

Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. Renovar, n. 205, p. 11-22, jul/set/1996. 41

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Op. Cit. p. 16.

42

HC nº 3.982/RJ. 6ª Turma. Julgado em -5/12/95. Revista do STJ, v. 82, p. 322, junho/1996. 99


3. A vantagem da proteção dos direitos daquele que realizou as gravações corresponde à desvantagem pela violação dos direitos do interlocutor insciente? Ou seja, a vantagem foi proporcional à desvantagem?

Ainda que a resposta às três indagações acima seja positiva, não se deve descurar do fato de que sempre se estará cuidando de casos concretos, com suas peculiaridades inerentes e que suscitam situações extraordinárias.

5 DIREITOS FUNDAMENTAIS FORMAIS E MATERIAIS O rol de direitos e garantias previsto no artigo 5º da Carta Política denota, por sua mera previsão no texto constitucional, serem eles, per se, direitos fundamentais formais. Para Hesse43, direitos fundamentais formais são aqueles que o direito vigente qualifica de direitos fundamentais. Tal atributo originário não lhes retira, contudo, a possibilidade de também serem considerados materialmente fundamentais44. Aliás, a Carta da República, enfatize-se, não afasta a possibilidade de que outros direitos e garantias, ainda que não expressamente previstos no texto constitucional, sejam tidos como direitos fundamentais materiais em razão de seu conteúdo substancial normativo45 e ainda pelo disposto no §2º do próprio artigo 5º: “[o]s direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Assim, o § 2º do artigo 5º da Carta Política prevê expressamente a possibilidade de que outros princípios por ela adotados sejam também incluídos no rol dos direitos e garantias fundamentais. Neste contexto, é natural indagar se um determinado valor constitucional qualquer (um princípio, um fundamento, etc.) estaria ou não apto a integrar tal rol. Ou seja, se seria tal valor constitucional um direito constitucional materialmente fundamental? Vale dizer, um valor constitucional que não foi definido pelo Poder Constituinte Originário ou Derivado no texto constitucional como sendo um direito fundamental, apesar de possuir um conteúdo essencialmente fundamental.

43

HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da república Federal da Alemanha.

Tradução de Luíz Afonso Heck. Porto Alegre. Sergio Antonio Fabris Editor. 1998, p. 225. 44

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV. 3º edição. Coimbra. Coimbra

Editora. 2000. 45

CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República

Portuguesa Anotada. 3º ed. Coimbra. Coimbra Editora. 1993, p.137. 100


Consoante Carl Schmitt46, os direitos fundamentais seriam anteriores e superiores ao Estado, verdadeiros âmbitos de liberdade dos quais resultam direitos de defesa. Ao Estado caberia a sua proteção e nela (defesa) encontraria a justificação de sua própria existência.

6 LICITUDE DAS GRAVAÇÕES TELEFÔNICAS Certamente a produção probatória não está elencada num rol taxativo e imperativo, ao qual as partes estejam adstritas. Ao contrário, no sistema processual penal brasileiro, por exemplo, qualquer tipo de prova pode ser admitido, desde que não seja incompatível com a ordem material ou processual. A violação do sigilo telefônico, prevista no artigo 5º, XII, da Constituição Federal e tipificada na lei 9.296/96, diz respeito ao procedimento da interceptação telefônica, no qual a conversa telefônica é escutada ou gravada por um terceiro, sem o conhecimento dos interlocutores. Não prevê a norma incriminadora, o procedimento denominado de gravação telefônica, no qual a gravação é realizada diretamente por um dos interlocutores, ainda que sem o conhecimento do outro. Desta forma, no entendimento da melhor doutrina, tanto o dispositivo constitucional mencionado quanto a lei que o regulamenta se referem, exclusivamente, ao procedimento denominado “interceptação telefônica”, o qual, ressalte-se, se diferencia substancialmente da gravação telefônica. Para Mariano Silva47, não havendo regra específica para a escuta ou gravação “clandestina”, elas não são vedadas. O Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou sobre o tema, assim argumentando o ministro José Arnaldo da Fonseca, relator48, De acordo com a jurisprudência dominante, a gravação realizada por um dos envolvidos nos fatos supostamente criminosos é considerada

46

SCHMITT, Carl. Teoría de la Constituición. Tradução espanhola de Francisco Ayala. Madrid.

Alianza Editorial.1996, p. 169. 47

SILVA, César Dario Mariano. Provas ilícitas: princípio da proporcionalidade, interceptação e

gravação telefônica, busca e apreensão, sigilo e segredo, confissão, Comissão Parlamentar de Inquérito e Sigilo. Rio de Janeiro: Forense, 2005 apud Maurício Viegas (www.sotai.com.br/artigos/licitude.htm), em 12/06/2008. 48

Habeas Corpus nº 33.110. 101


como prova lícita, ainda porque serve de amparo da notícia sobre o crime de quem a promoveu.

Também o ministro Edson Vidigal49, em voto proferido no Superior Tribunal de Justiça, argumenta favoravelmente à licitude da gravação telefônica, A gravação de conversa por um dos interlocutores não é interceptação telefônica, sendo lícita como prova no processo penal. Pelo Princípio da Proporcionalidade, as normas constitucionais se articulam num sistema, cuja harmonia impõe que, em certa medida, tolere-se o detrimento a alguns direitos por ela conferidos, no caso, o direito à intimidade.

Estamos em que hoje a lei não veda, portanto, a gravação telefônica, somente a interceptação não autorizada. Assim, consoante o princípio da reserva legal, a prova obtida por meio de gravação telefônica pode ser admitida. A subprocuradora-geral da República Ela Wiecko V. de Castilho em manifestação ministerial nos autos do Habeas Corpus nº 33.110, do Superior Tribunal de Justiça, bem dissertava sobre as diferenças entre interceptação telefônica, escuta telefônica e gravação clandestina. A representante do Parquet inicialmente esclarece que a interceptação telefônica pressupõe a participação de um terceiro e que tal ingerência externa pode se dar sem o conhecimento dos interlocutores (interceptação telefônica), ou com o consentimento de um deles (escuta telefônica). Explica ainda que, consoante a Lei n. 9.296/96, é possível a utilização de tais provas, se precedidas de autorização judicial. Contudo, tal exigência legal não se aplica à utilização de prova consistente em gravações clandestinas, ou seja, captação de comunicação, telefônica ou ambiental, por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro. Isto por que não há qualquer dispositivo legal ou regulamentar que discipline as gravações clandestinas, ficando, portanto essa forma de captação de comunicação fora do âmbito da Lei n. 9.296/96. Lembra ainda a subprocuradora-geral que a doutrina tem divergido quanto à possibilidade de utilização das gravações clandestinas como meio de prova, inclinando-se uma corrente mais antiga a aceitá-la apenas em favor do acusado, ou seja, quando necessária para provar a inocência desse.

Uma corrente mais recente, porém, na qual se basearam precedentes do STJ e do Supremo Tribunal Federal, tem admitido como lícita a utilização desse meio de prova, preconizando a aplicação do princípio da proporcionalidade. Conclui o parecer do MPF que,

49

RHC 7216/SP (1998/0004035-8 de 25/05/1998). 102


[A]nte a inexistência de expressa disposição legal proibindo o uso dessas chamadas gravações clandestinas como meio de prova, a sua utilização deve pautar-se pelo referido princípio, ou seja, ponderados os direitos em conflito, deve prevalecer aquele mais valioso. Não há dúvida de que a Constituição Federal não trata da privacidade como direito absoluto, sendo certo que há momentos em que esse direito conflita com outros, quer de terceiros, quer do Estado, de modo que se torna impraticável conferir a todos, ao mesmo tempo, proteção irrestrita. Assim, a solução preconizada é o sacrifício daquele considerado menos valioso. Na hipótese, os direitos em conflito são o irrogado direito à privacidade e o interesse que tem a sociedade numa eficaz repressão dos crimes. Ante a identificação desse conflito de interesses, cabe perguntar: é razoável sacrificar o direito à privacidade em favor do referido interesse social? Sim, porque a organização criminosa a que pertencia a Paciente dedicava-se a práticas que "abalam sobremaneira a estrutura do Estado, revelando menoscabo ao Direito, justamente por aqueles que têm o dever legal de por ele zelar”.

Nesse sentido, tendo em conta a importância de uma leitura do inteiro teor das decisões judiciais, evitando entendimento parcial retirado da redação concisa e, portanto, incompleta, das ementas, vejamos o que entenderam os ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus nº 75.338-8 RJ (julgado em 17/02/98) 50. Em seu voto, o ministro Nelson Jobim, relator, assim registrou, O órgão especial, após examinar jurisprudência e doutrina, conclui quanto à imprestabilidade da prova que: “(...) [S]e tivéssemos que estabelecer um cotejo entre a preservação do sigilo de uma conversa telefônica e a moralidade e o prestigio do Judiciário, indubitavelmente estes últimos teriam que prevalecer e qualquer objeção ao valor da fita, como meio de prova, forçosamente, seria desconsiderada, porque, acima de tudo, está o interesse da Justiça em apurar a veracidade da imputação extremamente grave feita a um magistrado.” (fls. 164)

50

“PROVA – Licitude. Gravação de telefonema por interlocutor. É lícita a gravação de conversa

telefônica feita por um dos interlocutores, ou com sua autorização, sem ciência do outro, quando há investida criminosa deste último. É inconsistente e fere o senso comum falar-se em violação do direito à privacidade quando interlocutor grava diálogo com seqüestradores, estelionatários ou qualquer tipo de chantagista. (STF, HC nº 75.338-8/ RJ, Rel. Min. Nelson Jobim – DJU 25.09.1998)". 103


O ministro Carlos Velloso reportou-se a seu voto no caso “Magri”51 fazendo a distinção entre uma gravação efetuada por terceiro, que intercepta uma conversa de duas outras pessoas, da gravação que se faz para documentar uma conversa entre duas pessoas. E concluiu que “pode haver, em tal caso, violação a preceitos éticos. Mas a questão fica no campo ético. Não há proibição legal”. Para Vicente Greco Filho52 “a gravação unilateral feita por um dos interlocutores com o desconhecimento do outro não é interceptação, nem está disciplinada pela lei comentada e, também inexiste tipo penal que a incrimine”. É certo que a ordem jurídica preserva o direito à privacidade e à intimidade. No entanto, também é digno de proteção o interesse do Estado em cumprir os acometimentos que lhe incumbe a Constituição5354. Para Noronha55, “ofendido é o Estado, atingido em sua atividade de realização da justiça. E secundariamente é a pessoa iludida (...) pois é fraudada e atingida em seu patrimônio”.

Ainda no julgamento do HC 75.338-8, o ministro Sepúlveda Pertence apontava que a gravação por um dos interlocutores da conversa mantida com outrem nada tem a ver com o art. 5º, XII, que protege o sigilo de comunicações telefônicas, assim como protege o sigilo de correspondência escrita. Para o eminente jurista, “o problema há de ser enfrentado, fazendo abstração da inovação tecnológica da telecomunicação, de acordo com os mesmos princípios da carta missiva, objeto do art. 33 da Lei 5.988/73 (Lei dos Direitos Autorais), que diz que: ‘as cartas missivas não podem ser publicadas sem permissão do autor, mas podem ser juntadas como documento, em autos oficiais.’” Para ele, o art. 5º, XII, da CF protege os interlocutores da ciência, por terceiro, “a sorrelfa”, mediante a chamada interceptação telefônica, do que entre os dois se conversou, não contendo proibição alguma de que um dos interlocutores faça a prova da conversa de que participou. E arremata:

51 52

RTJ 162/244-5. GRECO FILHO, Vicente. “Interceptação telefônica: considerações sobre a lei 9.296/96, de 24

de julho de 1996”. São Paulo: Saraiva, 1996. 53

BENDA, Ernest, citando R. Kamlah, “Right of Privacy”, in “Dignidad humana y Derechos de

la personalidad”. Manual de Derecho Constitucional, p. 130 Marcial Pons, Madrid, 1996. 54

“Es digno de protección el interés del Estado en cumplir los cometidos que le encomienda la

Constitución” 55

NORONHA, Edgard M. Direito Penal, vol. 4, 24ª ed., 2003, São Paulo, Saraiva, pág. 423, n.

1540. 104


Outras questões podem surgir. Aventei-a, en passant, no HC 69.818, em que um policial, eventualmente amigo de um suspeito, sob promessa de mantê-las em confidência, obtém deste suspeito revelações contra si mesmo e contra terceiros. Aí, sim, se pode, em relação àquele que confiante revela fatos incriminatórios contra si mesmo, a garantia constitucional contra a autoincriminação (art.5º, LXIII). Nada disso está em causa neste caso. Não se argúi relação de intimidade, sequer relação de confiança entre os interlocutores, mas uma mera conversação entre o autor de uma proposta (...) e o destinatário dela. (g.n.) A questão, a meu ver, se resolve assim como se resolveria na gravação ambiental, ou como igualmente se resolveria se feita a proposta por correspondência escrita e sem nenhuma interferência com as proteções constitucionais, seja das comunicações, seja da intimidade.

Igualmente, importante não olvidar, como bem destacou o relator em sua manifestação, que o Pretório Excelso também compartilha do entendimento de que a análise da aceitabilidade das gravações telefônicas se opera incidenter tantum, ou seja, casuisticamente. Aliás, é pródiga a jurisprudência do STJ no sentido da licitude das gravações telefônicas56. Dessa forma, conforme se verifica dos trechos transcritos acima, a gravação de conversas telefônicas por um dos interlocutores não parece ferir o art. 5º, XII da Constituição Federal. A discussão sobre a possibilidade de utilização de gravações telefônicas se encontra relacionada, portanto, à questão correspondente à sua divulgação. É nesse sentido, inclusive, parecer da lavra da Prof.ª Ada Pellegrini Grinover nos autos

do

Processo

Administrativo

08012.006019/2002-11,

do

Conselho

Administrativo de Defesa Econômica – CADE, cujo trecho é transcrito a seguir, É que, com efeito, não se enquadra na garantia do art. 5º, XII, da Constituição Federal, a gravação clandestina de uma conversa feita por um dos interlocutores, quer se trate de comunicação telefônica, quer se trate de comunicação entre presentes. Aqui não se pode falar em interceptação, nem está em jogo o sigilo das comunicações, assegurado pelo referido texto. Assim, a gravação em si, quando realizada por um dos interlocutores que queira documentar a conversa, não configura ilícito, ainda quando o outro interlocutor não tenha conhecimento de sua ocorrência. Mas a divulgação da conversa pode caracterizar outra afronta à intimidade, qual seja a violação do segredo. (g.n.).

56

HC nº 29.174, 36.545, 33.110, 26.631; RHC nº 14.041, 7.216; RESP nº 214.089, 707.307,

entre outros. 105


Assim, Grinover entende que a questão crucial em relação às gravações telefônica reside na possibilidade de sua utilização, uma vez que o simples fato de um interlocutor gravar a conversa é lícito.

7 JUSTA CAUSA De outra parte, configura justa causa na divulgação de gravações telefônicas quando forem elas realizadas no intuito de repelir grave ameaça a direito de quem as comunicou ao Estado, quando da solicitação de investigação de prática de cartel, ilícito tanto administrativo quando criminal. Assim, quando as gravações telefônicas forem realizadas em contexto de agressão aos direitos do interlocutor relacionados à livre concorrência e à livre iniciativa, ou seja, quando o exercício de atividade econômica é profunda e negativamente afetado por conduta do interlocutor insciente, a prova das gravações não somente será licita, como também justificada a sua apresentação às autoridades, publicação ou utilização.

8 RELAÇÃO DE CONFIANÇA ENTRE OS INTERLOCUTORES DA GRAVAÇÃO

Um dos argumentos mais frequentemente utilizados por aqueles que defendem a ilicitude de gravações telefônicas é o da configuração de abuso de relação de confiança na colheita da prova oriunda das gravações telefônicas. Não obstante, consoante a boa doutrina criminal, certas atitudes devem ser esperadas e até presumidas do “homem médio, dotado de prudência e discernimento”. No dia a dia dos negócios é possível vislumbrar a existência de boa-fé presumida, jamais de relação de confiança. Seria por demais singelo assim considerar. Aliás, de um modo geral, confiança pode ser considerada, no âmbito da presente análise, como “a expectativa depositada em um estranho de que este aja de maneira cooperativa, ou, pelo menos, não danosa, em relação ao depositante.”57

57

FERES JÚNIOR, João; e EISENBERG, José. Dormindo com o inimigo: uma crítica ao

conceito de confiança. Disponível em: HTTP://www.scielo.br 106


O termo “estranho”, contudo, pode ser mais bem substituído por “terceiro”, uma vez que esse tipo de expectativa pode ser depositada em qualquer sujeito com quem é exercida uma relação interpessoal. Logo, por se tratar de uma expectativa, nos permite concluir que a mesma não é uniforme em todas as relações interpessoais, sendo que apresenta diferentes graduações conforme os sujeitos dessas relações (família, amigos, conhecidos, desconhecidos, entre outros) e as circunstâncias analisadas (em âmbito comercial, íntimo, impessoal, entre outros). Ora, não haveria que se falar em relação de confiança entre interlocutores, quando a prática ilícita de cartel perpetrada pelo interlocutor insciente, ou seja, aquele que teve a sua conversa registrada pelo outro, sabida e claramente afetava direitos do responsável pela gravação, relacionados à livre iniciativa. Assim, quando as gravações telefônicas são realizadas por interlocutor que enfrenta situação em que agentes econômicos representados pelo co-locutor insciente, em tese, criam dificuldades para o exercício de sua atividade econômica, podem elas, as gravações, ser consideradas lícitas.

9 EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO Consoante dispositivo constitucional (art. 5º, inc. I, da CF), ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Deste mandamento constitucional se exclui a antijuridicidade nas hipóteses em que o sujeito está autorizado a um tal comportamento. Também é necessário que se obedeça às condições objetivas do direito, que é limitado e, portanto, fora dos limites traçados pela lei, haverá abuso de direito, excesso. Em recente artigo, Rocha 58 sustenta que se a pessoa, na busca de preservar direito próprio, promove gravação de uma conversa não estará praticando nenhuma ilicitude. O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, inclusive já decidiu59 que a comunicação de delito às autoridades denota exercício regular de direito. Esse também é 58

ROCHA, Zélio Maia da. Das Provas Ilícitas e o Supremo Tribunal Federal. In Voz do

Advogado, ano 3, nº 5, junho/2008. 59

Acórdão: Apelação Cível n. 2007.004947-4. Publicação: DJSC Eletrônico n. 321, edição de

30.10.2007, p. 193. EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR 107


o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que entende que a simples solicitação de abertura de inquérito policial é mero ato informativo, destinado à obtenção de dados referentes à suposta conduta delituosa60. Dessa forma, a apresentação de gravações telefônicas, quando da solicitação ao Estado de apuração de condutas ilícitas parece não ferir o art. 5º, XII da Constituição Federal. Conforme já verificado, o ministro Sepúlveda Pertence, em voto proferido no julgamento do HC nº 75.338-8, afirmou que referido dispositivo constitucional não impede a gravação telefônica por um dos interlocutores, mas apenas a sua divulgação a outrem. Entretanto, a sua utilização em apuração de conduta delituosa por parte do Estado não configuraria desrespeito a tal dispositivo. Também o próprio Superior Tribunal de Justiça já decidiu 61 que gravações telefônicas realizadas por alguém que se vê vítima de práticas delituosas podem ser utilizadas para a investigação, A uníssona jurisprudência desta Corte, em perfeita consonância com a do Pretório Excelso, firmou o entendimento de que a gravação efetuada por um dos interlocutores que se vê envolvido nos fatos em tese criminosos é prova lícita e pode servir de elemento probatório para a ‘notitia criminis’ e para a persecução criminal.62

E ainda que, De acordo com a jurisprudência dominante, a gravação realizada por um dos envolvidos nos fatos supostamente criminosos é considerada

DANOS MORAIS – COMUNICAÇÃO DE DELITO À AUTORIDADE COMPETENTE – BOA-FÉ DO COMUNICANTE – EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO – RESPONSABILIDADE CIVIL INEXISTENTE – ARTIGO 188, I, DO CÓDIGO CIVIL – DANO MORAL NÃO CONFIGURADO – DEVER DE INDENIZAR AFASTADO – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO. Não enseja pedido de indenização por dano moral a mera comunicação de crime perante autoridade policial, porquanto age o agente tão-somente no exercício regular de um direito. "Inadmitido o pedido indenizatório se a representação não se reveste de dolo, temeridade ou má-fé" (RT 249/133). 60

Nesse sentido, ver: Resp nº 397.998/MG; Resp nº 302.313/ES; Resp nº 254.414/RJ, entre

outros. 61

RHC nº 14.041/PA, Rel. Ministro José Arnaldo da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 20/11/03,

DJ 09/12/03. 62

HC nº 36.545/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, julgado em 02/08/05, DJ 29/08/05. 108


prova lícita, ainda mais porque serve de amparo da notícia sobre crime de quem a promoveu. (g.n.)

Assim, a disponibilização de gravações telefônicas às autoridades para embasar o início de investigações, seja em sede de inquérito civil promovido pelo Ministério Público, seja em sede de procedimento administrativo por ilícito antitruste, sugere configurar hipótese de exercício regular de direito. Quer o próprio direito à comunicação de ilícito, quer direito à livre iniciativa, fundamento da República, consoante o artigo 1º, inciso IV, bem como da ordem econômica, de acordo com o artigo 170, caput, ambos da Carta da República. Além do mais, há o direito ao benefício dos princípios da livre concorrência e da defesa do consumidor (arts. 170, IV e V, CF).

10 PROVA EMPRESTADA

Depois de verificada a licitude das gravações telefônicas, cumpre verificar a possibilidade de sua utilização como prova pelos órgãos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. O CADE já aceitou interceptação telefônica de processo criminal como prova emprestada, por exemplo, no Processo Administrativo do Cartel de Lages 63 , em que houve sustentação da decisão na primeira instância judicial, bem como no Processo Administrativo do Cartel de Florianópolis64 e no Cartel dos Vigilantes65. O fundamento estava em decisão66 do STF, conforme ementa abaixo, PROVA EMPRESTADA. Penal. Interceptação telefônica. Escuta ambiental. Autorização judicial e produção para fim de investigação criminal. Dados obtidos em inquérito policial. Uso em procedimento administrativo disciplinar, contra outros acusados. Admissibilidade. Inteligência do art. 5º, inc. XII, da CF, e do art. 1º da Lei federal nº 9.296/96. Dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas e em escutas ambientais, judicialmente autorizadas para produção de prova em investigação criminal ou em instrução processual penal, podem ser usados em procedimento administrativo disciplinar, contra a mesma ou as mesmas pessoas em relação às quais foram colhidos, ou contra outros servidores cujos supostos ilícitos teriam despontado à colheita dessa prova. 63

Processo Administrativo nº 08012.0004036/2001-18.

64

Processo Administrativo nº 08012.002299/2000-18.

65

Processo Administrativo nº 08012.001826/2003-10

66

Inq-QO-QO 2424/RJ. Rel. Ministro CEZAR PELUSO. STF. Julgamento: 20/06/2007 Órgão

Julgador: Tribunal Pleno. 109


Logo, há precedentes que permitem a utilização de gravações ou interceptações telefônicas como prova emprestada da esfera criminal para a administrativa. 11 A RECENTE ALTERAÇÃO DO ARTIGO 157 DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO

Outra questão controvertida diz respeito à inovação legislativa consubstanciada na Lei nº 11.690, de 09 de junho de 2008 que em seu § 1º prevê serem inadmissíveis provas derivadas daquelas ilícitas. Na verdade, trata-se de solução legislativa à questão da divergência doutrinária e jurisprudencial no Brasil, mas de inspiração na teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree), cunhada pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Aqui, contudo, o Supremo Tribunal Federal também desenvolveu a teoria da prova independente (PAI), consolidada em julgados, dentre os quais, no Habeas Corpus nº 74.599/SP, cujo julgamento ocorreu depois do advento da Lei da Escuta Telefônica (Lei nº 9.296/96) e assim ementado, HABEAS CORPUS. PROVA ILÍCITA. ESCUTA TELEFÔNICA. FRUITS OF THE POISONOUS TREE. NÃO-ACOLHIMENTO. Não cabe anular-se a decisão condenatória com base na alegação de haver a prisão em flagrante resultado de informação obtida por meio de censura telefônica deferida judicialmente. É que a interceptação telefônica - prova tida por ilícita até a edição da Lei nº 9.296, de 24.07.96, e que contaminava as demais provas que dela se originavam - não foi a prova exclusiva que desencadeou o procedimento penal, mas somente veio a corroborar as outras licitamente obtidas pela equipe de investigação policial. Habeas corpus indeferido. (g.n.)

Não obstante a contaminação de provas derivadas não se dê quando a gravação ou interceptação telefônica não foi obtida ilicitamente, afastando a teoria “dos frutos da árvore envenenada”, é preciso examinar se a hipótese diz respeito a provas derivadas ou de prova principal. Neste último caso, não haveria que se cogitar de qualquer possibilidade de contaminação. Este é também o entendimento do Superior Tribunal de Justiça que decidiu, com fulcro em precedentes do próprio STJ e também do STF, que a gravação feita por um dos interlocutores exclui a ilicitude do meio de obtenção de prova, não havendo que se falar em violação constitucional ao direito de privacidade quando a vítima grava diálogo com qualquer tipo de criminoso. Aquela decisão também deixou assente que, 110


A teoria “dos frutos da árvore envenenada” não é incindível in casu, posto que as gravações telefônicas não foram obtidas ilicitamente. Mesmo assim, tais elementos probatórios não constituem o único material probante que embasa a exordial acusatória. Ademais, as provas testemunhais não foram obtidas por derivação da conversa telefônica, não havendo que se falar em “contaminação pelo veneno”67. E ainda que, Em relação à utilização no processo administrativo (...) de gravação de conversa telefônica de terceiros sem autorização ou conhecimento do impetrante, não cabe, aqui, sequer examinar da legalidade ou ilegalidade da prova utilizada. Com efeito, da leitura do acórdão do órgão especial do tribunal local, verifica-se que a aplicação da pena baseou-se em outras provas suficientes para embasá-la68.

Mais sentido faz tal raciocínio quando a hipótese se refere a gravações telefônicas ou clandestinas que não podem ser consideradas como balizadoras de toda a investigação e muito menos para uma decisão, mas apenas um dos indícios Quando analisadas concomitantemente com o restante do conjunto probatório, auxiliam no encadeamento lógico que embasa a decisão, senão para todos os envolvidos, ao menos para parte deles. CONCLUSÕES

Quando valores constitucionais estão em aparente confito, como é o caso das garantias fundamentais da inviolabilidade das comunicações e da privacidade em relação ao princípio da livre concorrência, deve-se recorrer ao princípio da proporcionalidade, aplicando-se a técnica da ponderação de bens e da harmonização, objetivando a realização máxima da vontade do constituinte. Consoante a assente jurisprudência da Corte Suprema, não há no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, podendo ser legítimas medidas excepcionais restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos e limites estabelecidos pela própria Constituição. Nesse contexto, o foco principal desta análise esteve centrado na questão da aceitação de gravação telefônica como prova para a condenação de agentes econômicos e seus prepostos pela prática do ilícito de cartel e outras condutas anticompetitivas, previstas na Lei Antitruste.

Doutrina e jurisprudência dominantes entendem que como as gravações clandestinas, aí incluídas as telefônicas, não são alcançadas pela lei 9.296/96 que 67

HC nº 29.174/RJ, Min. Jorge Scartezzini, 5ª Turma do STJ, DJ 02/08/2004.

68

RMS nº 11.708/PR, Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma do STJ, 11/02/2008. 111


disciplina o procedimento da interceptação telefônica, em que a conversa telefônica é escutada ou gravada por um terceiro, sem o conhecimento de nenhum dos interlocutores, e, portanto, sua colheita livre seria lícita. A discussão sobre as gravações telefônicas se volta, portanto, à questão da sua utilização e divulgação. Neste sentido, concluiu-se que configura justa causa na utilização ou divulgação de gravações telefônicas somente quando forem realizadas no intuito de repelir grave ameaça a direito daquele(s) que as comunicou(aram) ao Estado. Assim, se alguém, objetivando resguardar direito próprio, promove gravação de conversa, estará agindo licitamente. Além disso, a representação de delito às autoridades competentes denota exercício regular de direito e a apresentação de gravações telefônicas para informar procedimento de apuração de condutas ilícitas parece não ferir o art. 5º, XII da Constituição Federal. Enfim sobre o empréstimo de material probatório do âmbito criminal para o administrativo, o Supremo Tribunal já decidiu que dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas e em escutas ambientais, desde que autorizadas por juiz(a) criminal competente, podem ser usados também em procedimento administrativo contra a mesma ou as mesmas pessoas em relação às quais foram colhidos.

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113


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A AUTONOMIA DA VONTADE NOS CONTRATOS INTERNACIONAIS

Ana Carolina Borges de Oliveira69

RESUMO Trata-se de estudo sobre a autonomia da vontade nos contratos internacionais. Assim, pretende-se estudar o conflito existente entre a autonomia da vontade e norma de ordem pública, qual seja, a norma de direito internacional privado. Dessa forma, se dois contratantes escolhem reger sua relação contratual pela lei de determinado país, seria evidente que desejaram aplicar a lei interna escolhida por eles, mas, em razão da norma de Direito Internacional Privado ser uma norma de ordem pública, caso haja conflito entre tais normas, qual deverá prevalecer. A presente pesquisa será exposta a partir da doutrina, das leis e do direito comparado, com o intuito de comparar as diversas fontes pesquisadas para, desta forma, chegar ao objetivo, no qual busca analisar a autonomia da vontade nos contratos internacionais. Assim, a tendência internacional é a de admitir a prevalência da autonomia da vontade nos contratos internacionais, em detrimento da norma de DIP. Essa posição é justificada tendo em vista que o Direito não é apenas instrumento de poder, mas serve também para favorecer o desenvolvimento do Estado. Além disso, verificou-se que essa não é a solução adotada no Brasil, pois, na última redação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, art. 7º, foi suprimida a permissiva que existia na redação anterior, de possibilitar a manifestação da autonomia da vontade nos contratos internacionais.

69

Advogada. Mestranda em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB. Professora da

Curso de Direito da Faciplac, de Direito Constitucional e Direitos Humanos. PósGraduada pelo IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público. 115


Palavras-chaves: Autonomia da vontade; Contratos Internacionais; Norma de ordem pública.

ABSTRACT This study is about the autonomy of will in international contracts. So, we intend to study the existing conflict between the autonomy of will and law of public order, which is the rule of private international law. Thus, if two contractors choose to govern their contractual relationship by law of a particular country, it would be clear that wished to apply domestic law chosen by them, but by virtue of the private international law rule be a rule of public order, in the event of conflict between such standards, which should prevail. . The present research will be exposed from the doctrine, the laws and comparative law, with the aim of comparing the various sources searched for, thus reaching the goal, in which seeks to analyse the autonomy of will in international contracts. Thus, the international trend is to admit the prevalence of autonomy of will in international contracts, to the detriment of rule of private international law. This position is justified considering that the right is not only an instrument of power, but it also serves to encourage the growth of the State. In addition, it was found that this is not the solution adopted in Brazil, because, in the final drafting of the law started with Brazilian laws, art. 7, was suppressed the permissive that existed in previous writing, enabling the manifestation of autonomy of will in Key-words: autonomy of will; international contracts; law of public order. INTRODUÇÃO

O presente estudo se insere no âmbito do Direito internacional privado que trata sobre o reconhecimento da autonomia da vontade70 nos contratos internacionais. Assim, pretende-se 70

Para fins metodológicos, conforme lições de Otávio Luiz Rodrigues, há uma

diferença entre a expressão autonomia da vontade e autonomia privada. Segundo o Autor, “a autonomia da vontade cedia espaço à autonomia privada. Todos esses movimentos deram ensanchas a que se evidenciou uma nova óptica sobre autonomia da vontade, tão peculiar que o repúdio ao termo vontade, determinou sua substituição pelo adjetivo privata.” Entretanto, para o presente trabalho, os dois termos serão utilizados como sinônimos. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos. 2.ed. Atlas: São Paulo, p. 27. 116


estudar o conflito existente entre a autonomia da vontade e norma de ordem pública, qual seja, a norma de direito internacional privado. Dessa forma, se dois contratantes escolhem reger sua relação contratual pela lei de determinado país, seria evidente que desejaram aplicar a lei interna escolhida por eles, não fazendo sentido indagar se a norma de Direito Internacional Privado deste país indica a aplicação de outro sistema jurídico (DOLINGER, 2003, p. 308). Assim, tendo em vista que a norma de Direito Internacional Privado de um país é uma norma de ordem pública, qual a solução para o conflito entre tal norma de ordem pública e a escolha feita pelas partes, representando a autonomia de vontade das partes na celebração do contrato internacional. É, portanto, esse o problema a ser enfrentado: a autonomia da vontade que as partes dispõem para a celebração dos contratos também pode ser estendida para a celebração dos contratos internacionais, uma vez que as normas de tais contratos são normas de ordem pública? Inicialmente, para contextualizar o presente debate, é importante ressaltar que a norma de direito internacional privado é lei estrangeira e que, portanto, a sua inobservância gera a nulidade de sentença proferida. Além disso, por se tratar de norma de ordem pública, a mesma poderá ser invocada em qualquer tempo ou instância, bem como de ofício pelo juiz. Portanto, tal breve contextualização teve o objetivo de enfatizar a relevância e importância da norma de Direito Internacional Privado, com o objetivo de demonstrar o conflito objeto desse estudo. Por outro lado, a possibilidade de escolha pelas partes da norma aplicável ao seu contrato internacional reflete o grau máximo da autonomia da vontade. Isso ocorre porque cabe às partes decidir qual a lei regência em seu contrato internacional, lei esta que também tem força de norma de ordem pública. Resta, demonstrado o conflito existente entre a autonomia da vontade e a norma de direito internacional privado, problema a ser enfrentado nesse trabalho. Nesse sentido, no Capítulo 02 será abordada a norma de ordem pública, ou seja, a norma de Direito Internacional Privado, para analisar se é possível falar em prevalência da autonomia da vontade sobre as normas de Direito Internacional Privado. Após isso, no Capítulo 03, pretende-se averiguar a autonomia da vontade no âmbito do direito interno, especificamente, no direito brasileiro. E, por fim, no Capítulo 04 busca-se comparar se diante de um conflito, entre a autonomia da vontade e a norma de ordem pública do Direito Internacional Privado, qual prevalecerá.

1 A AUTONOMIA DA VONTADE NO DIREITO PRIVADO

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No Direito Civil, a vontade é o critério mais utilizado para classificar os atos e fatos jurídicos. Assim, por exemplo, para diferenciar o ato jurídico stricto sensu do negócio jurídico basta verificar a intensidade da vontade (FLORES, 2005).Dessa forma, o Direito busca investigar se a vontade que produziu aquele ato foi livremente manifestada. Por isso a vontade só interessa para o Direito quando ela é exteriorizada.

O mesmo raciocínio também pode ser aplicado para o Direito Administrativo, ramo do Direito Público. Segundo Eduardo Garcia de Enterría e Tomás-Ramon Fernandez o ato administrativo, como toda declaração de um estado psicológico (GARCIA DE ENTERRÍA, 1990, p. 485) para existir no mundo jurídico, precisa de uma forma para exteriorizar a vontade, no direito civil verifica-se que essa necessidade decorre do princípio de liberdade da forma. Dessa forma, o Direito Privado é regido pela autonomia da vontade, como pode ser constatado no artigo 110 do atual Código Civil brasileiro, pois conforme Marcelo Caetano a vontade é uma faculdade da alma humana: só os indivíduos têm vontade [...]. In verbis: Art. 110. A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento. (BRASIL. 2013)

Verifica-se que a vontade do ato jurídico só é relevante se ela for manifestada, ou seja, se houver dúvida entre a intenção e a declaração de vontade, prevalecerá a declaração de vontade.71 Dessa forma, os defeitos do negócio jurídico irão ocorrer quando a vontade declarada estiver em desacordo com a declaração. Assim, torna-se necessário traçar a distinção entre fato e ato jurídico, para que seja possível determinar qual é o papel da vontade do agente na edição de um ato jurídico. Primeiramente, conforme esclarece Pontes de Miranda, ato ou fato humano é o fato dependente da vontade do homem (MIRANDA, 2000, p. 501), ou seja, os fatos independem da ação humana e os atos resultam da ação humana. Nesse aspecto, Diogo de Figueiredo Moreira Neto explica que ambos, fatos e atos podem, por sua vez, relevar ou não para o Direito (MOREIRA NETO, 1976, p. 99). Dessa forma, os atos jurídicos decorrem de uma manifestação de vontade capaz de gerar efeitos no ordenamento jurídico. Assim, o contrato é um negócio jurídico, resultado do acordo de vontades, capaz de produzir seus efeitos jurídicos (COELHO, 2005, p. 18/19). Portanto,

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sendo uma espécie do ato jurídico, o contrato decorre, primordialmente, da autonomia da vontade que as partes dispõem. Assim, explica Fabio Ulhoa Coelho que o contrato é uma ação humana nitidamente intencional. Na compra e venda, o comprador tem a intenção de titulariza a coisa, e o vendedor de aliená-la de seu patrimônio em torça de certa quantia de dinheiro (COELHO, 2005, p. 18/19). Dessa maneira, observa-se que não há contrato sem a declaração de vontade e esta é resultado, portanto, da autonomia da vontade. No mesmo sentido, Silvio Rodrigues conceitua a autonomia da vontade como a representação de que o direito positivo reconhece aos indivíduos a possibilidade de praticar atos jurídicos, produzindo seus efeitos (RODRIGUES, 2003, p. 170). Assim, a lei reconhece que, uma vez estabelecida uma relação jurídica, por convenção entre particulares, ela terá força coercitiva e obrigatória (RODRIGUES, 2003, p. 170). Por conseguinte, a autonomia da vontade é o princípio maior do contrato, mas que encontra limitações na ordem pública, na moralidade, na proteção da vontade livre e consciente das partes e dos contratantes débeis (COELHO, 2005, p. 18/19). Isso significa que se as partes resolvem celebrar um contrato criminoso ou mesmo imorais, a autonomia da vontade das partes será limitada, em prol da ordem pública. É o que se verifica, por exemplo, nos seguintes dispositivos do Código Civil de 2002:

Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes. Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos. (BRASIL, 2013)

Assim, diante do disposto no Código Civil, a ordem pública é um limite imposto pelo legislador à autonomia da vontade, já que as partes não podem estabelecer preceitos em seus contratos que violam a ordem pública. Por outro lado, como explica Paulo Roque Khouri, o princípio da autonomia da vontade ao longo de sua operacionalização produziu tremendas injustiças sociais, (KHOURI, 2009, p.

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08), como as desigualdades existentes entre a burguesia e os trabalhadores e consumidores, ou seja, entre fornecedores e consumidores durante e após a Revolução Industrial. Assim, para proteger a parte mais fraca da relação – o consumidor – o Estado passou a intervir fortemente nos contratos, não apenas para negar eficácia ao livremente pactuado pelas partes, mas criando normas de ordem pública que evitassem essa imposição permanente da vontade do mais forte (KHOURI, 2009, p. 09). É o denominado dirigismo contratual pela doutrina, que passou a limitar a autonomia da vontade nos contratos pela vontade da lei, como uma resposta da sociedade aos contratos injustos e desequilibrados (KHOURI, 2009, p. 10). Assim, diante do exposto acima, pretende-se estudar se tal limitação à autonomia da vontade por meio das normas de ordem pública também pode ser verificada nos contratos internacionais, regidos por normas também de ordem pública.

2 AS NORMAS DE ORDEM PÚBLICA – AS NORMAS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Após o estudo de que no direito interno as normas de ordem pública limitam a autonomia da vontade, nesse Capítulo pretende-se avaliar se o mesmo ocorre no Direito Internacional privado, ou seja, se as normas de Direito Internacional Privado também limitam a autonomia da vontade das partes na celebração de um contrato internacional. Segundo Nadia de Araujo, o que caracteriza a internacionalidade de um contrato é a presença de um elemento que o ligue a dois ou mais ordenamentos jurídicos (ARAUJO, 2006, p. 346). Assim, diante de tal conceito percebe-se que a diferença entre o contrato interno e o internacional é a presença de dois ou mais ordenamentos jurídicos, ou seja, “basta que uma das partes seja domiciliada em um país estrangeiro ou que um contrato seja celebrado em um país para ser cumprido em outro” (ARAUJO, 2006, p. 346). Por sua vez, as partes, ao celebrarem um contrato internacional, podem escolher as cláusulas que irão reger seu acordo. Tal escolha decorre, portanto, da autonomia da vontade, presente também nos contratos internacionais. Para Marcel Caleb, a autonomia da vontade no direito internacional privado corresponde à faculdade concedida aos indivíduos de exercer sua vontade, tendo em vista a escolha e a determinação de uma lei aplicável a certas relações jurídicas, deriva ela da confiança que a comunidade internacional concede ao individuo no interesse da sociedade (STRENGER, 2003, p. 50). Por outro lado, as normas de Direito Internacional Privado são normas de ordem pública e, conseqüentemente, devem ser observadas independente da manifestação das partes. 120


Nesse sentido, conforme explica Clovis Bevilaqua, leis de ordem pública são aquelas que, em um Estado, estabelecem os princípios, cuja manutenção se considera indispensável à organização da vida social, segundo os preceitos do direito (BEVILAQUA, 2002, p. 74/75). Assim é que as leis de ordem pública impedem que a vontade produza efeitos jurídicos em contrario às suas prescrições. Colocada nos seus naturais limites e agindo de acordo com a lei, a vontade é a fonte geradora das obrigações, conseqüentemente lhe deve ser permitido, nas relações internacionais, escolher a lei a que subordina as obrigações livremente contraídas (BEVILAQUA, 2002, p. 259). No Direito Internacional Privado brasileiro, por sua vez, a ordem pública aparece para excluir a aplicação de leis estrangeiras, bem como de atos e sentenças estrangeiros, sempre que ofendessem a soberania nacional, a ordem pública (DOLINGER, 2003, p. 351). É o que dispõe o art. 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro:

Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes. (BRASIL, 2013)

Ora, verifica-se que tanto no direito civil, como no direito internacional privado, a vontade das partes está limitada pela ordem pública, ou seja, tanto os contratos internos, como os internacionais, as manifestações das partes não podem ferir a ordem pública. Entretanto, como afirma Dolinger, o conceito de ordem pública não se encontra positivado em nenhum diploma, mas se afere pela mentalidade e pela sensibilidade médias de determinada sociedade em determinada época (DOLINGER, 2003, p. 350). Por outro lado, embora de difícil conceituação, as normas de ordem pública indicam que podem ser invocadas a qualquer tempo, instância e de ofício pelo juiz e sua inobservância gera a nulidade da sentença. Dessa forma, tendo em vista que as normas de Direito Internacional Privado são normas de ordem pública, como subsistirá perante a norma disposta em um contrato internacional, resultado da autonomia da vontade das partes? Irineu Strenger, explica que o princípio da autonomia da vontade em direito internacional tem menor amplitude, significando que as partes apenas têm liberdade de exercer sua vontade tendo em vista a escolha da legislação à qual querem submeter sua convenção, sob reserva de respeitarem a ordem pública72. Assim, “consistindo o direito internacional privado numa disciplina jurídica que visa a resolver conflitos de leis, o princípio da autonomia da vontade desempenha um papel generalizador, no sentido de ultrapassar as fronteiras do direito

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privado para selecionar nas ordens jurídicas existentes a lei aplicável a uma determinada relação de direito, apresentando caracteres internacionais” (STRENGER, 2003, p. 851). Esse é, portanto, a tendência da doutrina estrangeira73 e da jurisprudência, no sentido de reconhecer a prevalência da autonomia privada sobre as normas de Direito Internacional Privado. Entretanto, não é o que dispõe o atual Código Civil brasileiro, em sua lei de introdução. Isso, porque a nova redação da Lei de Introdução às Normas de Direito brasileiro – LINDB - exclui a possibilidade de manifestação da vontade nos contratos internacionais, conforme havia previsão na antiga lei de introdução ao Código Civil de 1916. Assim, dispõe a atual redação da Lei de Introdução: Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem. (BRASIL, 2013)

E assim dispunha a antiga redação da lei de introdução: Art. 13. Regulará, salvo estipulação em contrário, quando à substancia e aos efeitos das obrigações, a lei do lugar onde forem contraídas. (BRASIL, 2013)

Diante da supressão da expressão “salvo estipulação em contrário”, conforme explica Nadia de Araújo, ocorreu a proibição da manifestação autonomia da vontade (ARAUJO, 2006, p. 354). E, segundo Bevilaqua, citado por Nadia, na redação da Lei de Introdução ao Código Civil de 1916, discutiu-se muito a questão dos seus limites, perguntava-se até onde ia a liberdade das partes para escolher a lei aplicável às obrigações livremente contraídas (ARAUJO, 2006, p. 355). O autor esclarecia que a vontade das partes quanto à lei aplicável somente podia ser exercida com relação à substância e aos efeitos do ato. Já com relação à capacidade e à execução, poderia haver a incidência de uma lei diferente daquela aplicável ao contrato internacional. Assim, com a na redação da LINDB, por não mencionar a autonomia da vontade, entende-se que tal situação ainda não evoluiu no Brasil, ou ainda que, regrediu, diante da grande utilização do princípio da autonomia da vontade nos países europeus (ARAUJO, 2006, p. 358).

3 A AUTONOMIA DA VONTADE NOS CONTRATOS INTERNACIONAIS

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A partir do estudo feito nos capítulos anteriores, o presente capítulo objetiva estudar o problema entre a autonomia da vontade e as normas de Direito Internacional Privado, ou seja, procura analisar se as partes, ao celebrarem um contrato internacional, podem deliberar livremente sobre a norma aplicável em seu contrato, já que dispõem da autonomia da vontade. Antes disso, é necessário explicitar o conceito de contrato internacional. Nesse sentido, João Grandino Rodas explica que como o traço diferenciador entre um contrato internacional e um outro não internacional é justamente estar o primeiro potencialmente vinculado a mais de um sistema jurídico (Rodas). Logo, pelo conceito do Autor, observa-e que tanto o contrato como o contrato internacional pressupõe um acordo de vontade, resultado da autonomia de vontade das partes; diferenciando-se apenas pelo fato de que o segundo está vinculado a mais de um sistema jurídico. Assim, tendo em vista que a autonomia da vontade também é um princípio dos contratos internacionais, observa-se, por exemplo, que a Convenção da Haia de 07 de junho de 1955 sobre a Lei Aplicável às Vendas de Caráter Internacional de Objetos Móveis Corpóreos dispõe que as partes escolhem a lei interna que irá reger seu contrato de compra e venda. Além disso, outras convenções da Haia também dispõem que as partes podem escolher a lei de um país para reger seu contrato (DOLINGER, 2003, p. 308) Assim, percebe-se que em tais dispositivos, há prevalência da autonomia da vontade sobre as normas de Direito Internacional Privado. Nesse sentido, importante analisar uma decisão do Superior Tribunal de Justiça que, embora não seja o objeto da ação, entendeu pela prevalência da autonomia da vontade sobre a norma de Direito Internacional Privado. No caso, uma empresa petrolífera ajuizou medida cautelar para atribuir efeito suspensivo a um recurso especial em face de outra empresa de petróleo (BRASIL, 2009). A mesma parte Autora ajuizou perante justiça inglesa ações no que buscavam discutir a cláusula de eleição de foro contida no contrato com a parte Ré, que previa “a regência das obrigações pela lei inglesa e a possibilidade de propositura das ações decorrentes da relação jurídica contratada perante a justiça inglesa” (BRASIL, 2009). Assim, o que se discutia perante a justiça inglesa era justamente se havia a prevalência da autonomia de vontade, ou seja, do que foi acordado pelas partes na celebração do contrato. Assim, a Autora, após restar vencida perante a justiça inglesa, resolveu interpor ação perante a justiça brasileira para discutir a questão. Nesse sentido, o juiz de 1º grau brasileiro enfatizou que a justiça brasileira é incompetente para dirimir tal conflito, já que no contrato

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celebrado entre as partes havia a determinação de que o foro escolhido por ambas era o inglês. E assim entendeu: “Acontece que este raciocínio é simplista, pois o exame da questão manda que se vá além, na medida em que há um ‘plus’, consistente na opção livre que as partes fizeram pelo foro inglês e pela escolha da lei inglesa para dirimir seus conflitos. Ora, ainda que concorrentemente, temos que as partes aceitaram firmar contrato, de forma livre e consciente, a sujeição de suas controvérsias à justiça e às leis inglesas.” (BRASIL, 2009).

No mesmo sentido, a Ministra Relatora Nancy Andrighi entendeu que, no caso se aplicam dois princípios, pouco aplicados no Brasil, mas amplamente reconhecidos no direito estrangeiro. São os princípios do forum shopping e do forum non conveniens74. Entretanto, embora a Ministra Relatora admita que os princípios possam ser aplicados no caso, os mesmos não encontram previsão no ordenamento jurídico brasileiro, mas sim a regra do art. 90 do Código de Processo Civil que dispõe que inexiste litispendência entre causas ajuizadas no tribunal estrangeiro e no foro nacional. Ainda assim, a Relatora aplicou ao caso o entendimento de que tal ação ajuizada no Brasil implica na ocorrência de um comportamento processual contraditório da requerente e aceitar isso viola o princípio da boa-fé objetiva. Ora, percebe-se que, embora não expressamente, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que a autonomia da vontade das partes manifestada no contrato internacional não prevalece diante de uma norma de Direito Internacional Privado, mesmo esta sendo norma de ordem pública. Outro julgado do Superior Tribunal de Justiça também segue essa linha de entendimento. É o da Homologação de Sentença Estrangeira n. 646. Entendeu o Ministro Relator que a manifestação livre de vontade das partes prevalece sobre a norma de ordem pública. In verbis:

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Conforme explica Dolinger, “a expressão forum shopping significa a procura de uma

jurisdição em que as partes, ou uma delas, pensa que lhe será feita melhor justiça, ou onde terá mais probabilidade de êxito.” DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado. 5.ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 386 e ss. Enquanto que segundo o princípio forum non conveniens “deixa-se ao arbítrio do juízo acionado a possibilidade de recusar a prestação jurisdicional internacional privada invocada como concorrente e mais adequada para atender aos interesses das partes, ou aos reclamantes da justiça em geral”. JATAHY, Vera Maria Barrera. Do conflito de jurisdições: a competência internacional da justiça brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 36 e ss. 124


Deveras eleito o direito aplicável à espécie em manifestação de vontade livre (GTA) referido pactum, mutadis mutandis, faz as vezes de "compromisso" insuperável pela alegação de aplicação em contrato internacional do Código de Defesa do Consumidor - CDC, lei interna, sob o argumento de que apenação inversa investiria contra a ordem pública. ((BRASIL, 2008)

Novamente, entendeu-se pela validade de norma contratual de eleição de foro e de lei aplicável, em razão do princípio da autonomia da vontade. Além disso, a Lei 9.037/96 expressa que, no caso de arbitragem, admite-se a seleção do direito aplicável pelas partes, conforme seu art. 2º: Art. 2º A arbitragem poderá ser de direito ou de eqüidade, a critério das partes. § 1º Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública. § 2º Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio. (BRASIL, 2013)

Embora a jurisprudência nacional, a estrangeira e alguns dispositivos legais reconheçam a prevalência da autonomia da vontade nos contratos internacionais, após a modificação do art. 9º, da LICC, em 1942, verifica-se que não há mais possibilidade de as partes ajustarem o direito aplicável. Diante, portanto, da modificação na parte final do art. 9º da LICC, observa-se que o juiz brasileiro ignorará a vontade das partes nesse caso. Esse dispositivo diverge, portanto, da tendência estrangeira em admitir a prevalência da autonomia da vontade nos contratos internacionais.

4 CONCLUSÕES

Por fim, conforme se verificou, nos contratos de direito privado, embora regidos pela autonomia da vontade, a tendência é a sua limitação em razão as abusividades surgidas nos contratos entre particulares, pela ordem pública. Por outro lado, não é o que se verificou no Direito Internacional Privado. Seja pela análise de diversas Convenções que privilegiam a autonomia da vontade, seja até no estudo de

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julgados brasileiros sobre a matéria, a autonomia da vontade ainda é determinante na celebração dos contratos internacionais. Assim, a tendência internacional é a de admitir a prevalência da autonomia da vontade nos contratos internacionais, em detrimento da norma de DIP. Essa posição é justificada tendo em vista que o Direito não é apenas instrumento de poder, mas serve também para favorecer o desenvolvimento do Estado. Assim, trazendo tal raciocínio para o presente estudo, verifica-se que é importante dar prevalência para a interpretação que favoreça o desenvolvimento do Estado e, ao admitir a prevalência da autonomia da vontade, estar-se-á protegendo também o Estado. Isso ocorre porque a autonomia da vontade nos contratos internacionais permite maior inserção do Estado no cenário internacional, conseqüentemente, favorecendo o seu desenvolvimento. Por outro lado não é essa a solução encontrada no Brasil. Na última redação da LINDB, art. 7º, do Decreto-Lei 4657, de 1942, foi suprimida a permissiva que existia na redação anterior, de possibilitar a manifestação da autonomia da vontade nos contratos internacionais. Por isso, a doutrina entendeu que o Direito Internacional Privado brasileiro regrediu no que tange à autonomia da vontade nos contratos internacionais. Por esta razão, é possível adotar duas soluções para essa regressão. A primeira seria a de não adotar o foro brasileiro para resolver um possível conflito, elegendo-se o foro estrangeiro. Assim, não haveria o risco de ter a autonomia da vontade suprimida em razão da adoção do foro nacional. A outra solução seria a adoção da cláusula de arbitragem, em que as partes têm liberdade para afastar o controle jurisdicional e adotar a arbitragem.

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A POSSIBILIDADE DE RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA NOS CASOS DE LEIS DECLARADAS INCONSTITUCIONAIS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Harlen Cutrim75

RESUMO A presente pesquisa busca explanar os efeitos, no âmbito jurídico, decorrentes da manutenção e da relativização da coisa julgada ante a verificação de sua incompatibilidade com os parâmetros constitucionais, questionando-se a viabilidade de se relativizar, nestes casos, as decisões judiciais amparadas pela segurança jurídica prevista no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988, sem, contudo, trazer prejuízos à estabilidade do ordenamento processual e constitucional. Palavras-Chave: Coisa julgada; Manutenção da sentença; Segurança jurídica; Relativização;

75

Efeitos.

Graduado em de Direito pelas Faculdades Integradas da União Educacional do Planalto

Central - FACIPLAC – Gama/DF – e-mail: harlen.cutrim@hotmail.com 128


INTRODUÇÃO Trata-se de estudo acerca da possibilidade de relativização da coisa julgada vinculada a leis que, posteriormente, vieram a ser declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. O objeto da matéria, contudo, não recai sobre as formas ordinárias de relativização previstas nos diplomas legais ou contempladas pela jurisprudência atual, mas, principalmente, sobre a relativização da coisa julgada inconstitucional quando da incidência de questão atípica, não prevista, portanto, pelo legislador originário. Buscar-se-á, dessa forma, analisar os casos nos quais essa modulação seria viável. Nessa perspectiva, reputa-se relevante a discussão da matéria objeto de estudo, vez que a intangibilidade da segurança jurídica inconstitucional colide, de modo expresso, com os princípios consagrados pela Magna Carta, na medida em que se desvia da finalidade perseguida pelo exercício jurisdicional. Ainda de outro modo, se a sentença prolatada tem força de lei, e se esta encontra respaldo fora do diploma constitucional, nem mesmo a res judicata seria suficiente para justificar a sua manutenção, sob pena de contaminar o ordenamento jurídico e servir de base a precedentes revestidos de manifesta injustiça. Dessa forma, em virtude da natureza do conteúdo abrangido por este estudo, utilizar-se-ão como instrumentos de pesquisa e fundamentação teórica materiais bibliográficos, jurisprudenciais, bem como casos concretos de relevância jurídica relacionados ao assunto. A rigor, o estudo se concentra nas disposições concernentes às disciplinas de Direito Processual Civil e de Direito Constitucional. Assim, o primeiro capítulo compreenderá o exame acerca da coisa julgada – nesta abrangida a segurança jurídica das decisões – seus conceitos, espécies e natureza, bem como enfatizará os meios de impugnação da res judicata existentes no ordenamento jurídico, quais sejam, a ação rescisória e a querela nullitatis. No segundo capítulo, analisar-se-á a sistemática da declaração de inconstitucionalidade efetuada pelos órgãos jurisdicionais e, de forma exclusiva, pelo Supremo Tribunal Federal, por intermédio das vias incidentais e das vias principais de controle, observando-se, respectivamente, as normativas relacionadas aos sistemas difuso e concentrado, sobretudo no que se refere aos mecanismos utilizados para a 129


expurgação do ordenamento jurídico de leis incompatíveis com a Carta Maior, além dos seus efeitos e especificações. Por fim, o estudo compreenderá a natureza jurídica da sentença inconstitucional, bem como as consequências decorrentes da manutenção da coisa julgada ante a superveniência da declaração de inconstitucionalidade de leis pelo Supremo Tribunal Federal nos casos específicos, analisando-se, ainda, as hipóteses de cabimento da relativização da coisa julgada inconstitucional, tendo em vista a identificação de violação à Constituição Federal e consequente prejuízo ao sentimento de justiça contemplado pelo ordenamento jurídico.

1 COISA JULGADA Previsto na sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, o efeito decorrente da coisa julgada apresenta-se como elemento necessário à efetividade das decisões judiciais, as quais, resguardados os parâmetros legais de âmbito processual, têm por fim colocar termo às ações demandadas em juízo. Com vistas à garantia da maior efetividade da justiça, os comandos processuais facultam, ainda, à parte interessada, o direito de recorrer da decisão à instância superior. Justaposta a essa condição e observado o exaurimento das vias cabíveis de recurso, bem como decorrido o prazo previsto para impugnar referida manifestação, opera-se o respectivo trânsito em julgado da sentença proferida. Nasce daí a segurança jurídica das decisões judiciais, a qual, conforme se verá, mostra-se imprescindível à estabilidade do sistema processual vigente. 1.1 Conceito Dispõe o artigo 6º, § 3º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – LINDB: “Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.”. Consoante definição, o instituto jurídico restringe o reexame de decisões já proferidas no âmbito processual. Nesse sentido, é certo que o fenômeno da coisa julgada encontra-se inserido na ordem vigente em virtude de sua imprescindibilidade à harmonia do sistema processual brasileiro. Isso porque, por meio dele, é possível alcançar a estabilidade do que foi 130


decidido pelo prolator. Dispõe, sob esse parâmetro, o artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. A Magna Carta confere, assim, segurança jurídica às decisões transitadas em julgado. Contudo, do dispositivo retro, embora a Constituição não traga a definição acerca da coisa julgada, atente-se que o seu conceito não se confunde com a justiça propriamente dita. Sobre o assunto, o jurisconsulto Fredie Didier Jr. leciona: A coisa julgada não é instrumento de justiça, frise-se. Não assegura a justiça das decisões. É, isso sim, garantia da segurança, ao impor a definitividade da solução judicial acerca da situação jurídica que lhe foi submetida. (DIDIER JR., 2009, p. 408). Sob essa égide, buscando razoável definição acerca da coisa julgada, poder-seia considerar que, na medida em que se garante o direito de recorrer da decisão controversa, a sentença, em determinado momento processual, adquire caráter imutável e insuscetível de reexame, ora em virtude do esgotamento das vias cabíveis de recurso, ora em decorrência da preclusão temporal. 1.2 Espécies No que tange às espécies da coisa julgada, observa-se que o ordenamento jurídico a subdivide em coisa julgada formal e coisa julgada material. A primeira, contemplada pela doutrina e jurisprudência, se restringe ao processo sobre o qual incidiu a decisão imutável. Vale dizer, a coisa julgada se limita à questão específica levada a juízo. Sob o mesmo parâmetro, instrui com propriedade o autor Alexandre Freitas Câmara: A coisa julgada formal, porém, só é capaz de pôr termo ao módulo processual, impedindo que se reabra a discussão acerca do objeto do processo no mesmo feito. A mera existência da coisa julgada formal é incapaz de impedir que tal discussão ressurja em outro processo. (CÂMARA, 2008, p. 462). De outro modo, a segunda espécie encontra-se prevista expressamente no artigo 467 do Código de Processo Civil, sob a seguinte redação: “Denomina-se coisa 131


julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”. Por coisa julgada material, entende-se que a imutabilidade da decisão se estende a todas as demais ações que eventualmente venham a ser ajuizadas no mesmo sentido. Assim, enseja a extinção do feito sem resolução do mérito, nos termos do artigo 267, V, do Código de Processo Civil, a instauração de novo processo, cujo objeto seja idêntico ao daquele em que recaiu a coisa julgada material (CÂMARA, 2008, p. 462). Didier Jr. (2009, p. 408) retrata que a diferença essencial entre a coisa julgada formal e material reside no fato de que, enquanto aquela se restringe aos limites do processo em que a decisão foi proferida, esta se projeta para além deles. De fato, cotejando-se as duas espécies, tem-se que, independentemente da forma sobre a qual se reveste, a coisa julgada possui natureza de garantia da estabilidade e manutenção das soluções tomadas pelo juízo respectivo e, concomitantemente, revelase como instrumento capaz de impor limite à rediscussão de julgado contra o qual não caiba mais recurso. Cumpre frisar, se assim não fosse, sujeitar-se-iam as ações ajuizadas a intermináveis rediscussões de julgados e, por efeito, violaria o princípio da razoável duração do processo, previsto no artigo 5º, LXXVIII, da vigente Constituição Federal. Trata-se, pois, de elemento imprescindível à ordem jurisdicional, qualquer que seja a forma em que se apresenta, observado o momento oportuno para cada espécie. 1.3 Natureza jurídica A doutrina processualista, com o fim de definir a natureza jurídica da coisa julgada, se depara atualmente com teorias diversas acerca do assunto. Na maior parte das discussões, busca-se, contudo, responder à seguinte indagação: a imutabilidade de uma decisão judicial constitui uma qualidade inata à sentença ou a esta é atribuída após a superveniência da res judicata?

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De fato, certo é que a inalterabilidade da plenitude de uma sentença não decorre de sua condição natural. Isso porque, adotando-se referida teoria, seria inadmissível, por exemplo, a homologação de acordos na esfera judicial após o trânsito em julgado da decisão, vez que os efeitos nela contidos não seriam consolidados ante a avença. Em defesa dessa tese, impende ressaltar o entendimento do autor Enrico Túlio Liebman: Não se identifica ela simplesmente com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário, uma qualidade mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato em sua existência formal, os efeitos quaisquer que sejam do próprio ato. (LIEBMAN, 1984, p. 54.). Por outro lado, a corrente divergente permeia o entendimento de que a sentença não nasce com a imutabilidade presente em seu cerne, mas decorre de uma condição que lhe é atribuída. Assim o faz Thereza Arruda Alvim Wambier (1996, p. 103), ao dissertar sobre o tema: “a coisa julgada material é a qualidade de imutabilidade que se agrega ao comando da decisão judicial (sentença não recorrida ou acórdão não mais sujeito a recurso) para determinada situação.”. Mais viável, contudo, parece ser a definição contida na obra de Alexandre Freitas Câmara, o qual atribui à coisa julgada a qualidade de “nova situação”, tendo em vista que a ocorrência da res judicata proporciona condição outrora não verificada. Assim, leciona o autor: A meu juízo, a coisa julgada se revela como uma situação jurídica. Isto porque, com o trânsito em julgado da sentença, surge uma nova situação, antes inexistente, que consiste na imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo da sentença, e a imutabilidade e a indiscutibilidade é que são, em verdade, a autoridade de coisa julgada. Parece-me, pois, que a coisa julgada é esta nova situação jurídica, antes inexistente, que surge quando a decisão judicial se torna irrecorrível. (CÂMARA, 2009, p. 461, grifos no original). Dessa forma, tem-se que a coisa julgada não nasce com a sentença, mas representa uma situação a ela superveniente. Contudo, comungando do entendimento de Câmara, a partir do momento em que se opera o trânsito em julgado da decisão,

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sobrevém uma nova situação jurídica, a qual não poderá, então, ser modificada. Reveste-se, assim, a natureza jurídica da coisa julgada. 1.4 Limites objetivos e subjetivos da coisa julgada Ao ser alcançada pela autoridade da coisa julgada, conforme demonstrado, a decisão judicial passa a ser insuscetível de nova discussão. Imperioso, pois, determinar a abrangência da res judicata no teor da sentença proferida. Como é cediço, o decisum se divide em três partes: a primeira delas é integrada pelo relatório, cujo teor consiste na descrição sintética dos fatos que compõem a lide. O segundo elemento é compreendido pela motivação, ocasião em que o magistrado apresentará os fundamentos que justificarão a tomada de decisão. Por fim, o julgado se perfaz com o dispositivo da sentença, o qual contém a conclusão dos fatos com a consequente resolução da lide. Recai, todavia, apenas sobre este último a autoridade da coisa julgada, por força do artigo 470 da ordem processual. É o que igualmente, há tempos remotos, já se deduzia, conforme entendimento do jurista Moacyr Amaral Santos (1982, p. 42). Assim, os limites objetivos da coisa julgada estão adstritos tão somente ao comando do julgado proferido pelo magistrado, não alcançando os demais pontos contidos na sentença. Isso porque o vigente Código de Processo Civil é claro ao dispor, em seu artigo 469, I, que não fazem coisa julgada “os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença”. De igual modo, nos seguintes incisos II e III, o diploma processual elenca a verdade dos fatos e a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo, como partes insuscetíveis à res judicata. Por outro lado, a impossibilidade de se rediscutir a decisão por determinadas partes constantes da lide comporta os limites subjetivos da coisa julgada. Trata-se da eficácia inter partes decorrente da sentença proferida, a qual se restringe às partes legitimadas da ação ajuizada e não se estende a terceiros estranhos a ela. Cuida-se da matéria regulada no artigo 472 do Código de Processo, que dispõe: “A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. [...]”.

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Portanto, o interessado que não esteja incluído como parte legítima do processo não pode ser atingido pela coisa julgada, sendo-lhe cabível o ajuizamento de ação questionando direito já discutido em outro processo, contudo, por partes diversas. Alexandre Freitas Câmara, dissertando sobre o assunto, justifica o fenômeno dos limites subjetivos da coisa julgada: É preciso ter claro que a garantia constitucional do contraditório não se destina, apenas, à proteção das partes, mas também à tutela de terceiros, impedindo que estes sejam alcançados pelo resultado de um processo de que não tenham participado sem que se lhes dê a oportunidade para discutir em juízo tal resultado. (CÂMARA, 2008, p. 472). Resta claro, dessa forma, que enquanto os limites objetivos da coisa julgada abrangem a resolução da questão demandada em juízo, os limites subjetivos alcançam as partes legitimadas da ação, na medida em que ambos os fenômenos encontram respaldo jurídico e se vinculam à espécie em trâmite processual. 1.5 Meios de impugnação A decisão proferida em juízo busca equilibrar a pretensa justiça às partes envolvidas e, concomitantemente, aplicar aos casos submetidos ao Judiciário as normativas constantes dos regulamentos legais. Em verdade, o conteúdo da sentença prolatada não adquire eficácia definitiva, de modo que, preenchidos os requisitos previstos no vigente ordenamento, é possível à parte interessada impugnar, por intermédio dos mecanismos processuais previstos na ordem jurídica, a decisão contra a qual se insurge. Nestes quesitos, se enquadram os institutos da ação rescisória e da querela nullitatis, os quais encerram efetivas possibilidades de se modificar o decisum refutado. Configura, ainda, meio de impugnação a ação anulatória prevista no artigo 486 do Código de Processo Civil, a qual não será objeto do presente estudo, uma vez que o seu conteúdo se restringe à anulação de meros atos procedimentais das partes ou de decisões homologatórias que não comportam juízo de mérito. 1.5.1

Ação rescisória

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O artigo 485 do Código de Processo Civil elenca determinado rol de hipóteses em que se mostra cabível o ajuizamento de ação rescisória. Trata-se, pois, de relação taxativa, conforme já reconhecido pela jurisprudência dominante. Há que se levar em conta, contudo, que, não obstante tratar-se de instrumento hábil a impugnar a sentença exorbitante, a natureza jurídica do referido instituto não se confunde com a natureza do recurso. Não se buscará naquela a continuidade do feito. Não se olvida dizer, pois, que a ação rescisória possui a qualidade de ação autônoma de impugnação. Desta forma, relevante transcrever o que diz sobre o assunto o autor Fredie Didier Jr.: A acão rescisória não é recurso, por não atender a regra da taxatividade, ou seja, por não estar prevista em lei como recurso. Ademais, os recursos não formam novo processo, nem inauguram uma nova relacão jurídica processual, ao passo que as ações autônomas de impugnacão assim se caracterizam por gerarem a formação de nova relação jurídica processual, instaurando-se um processo novo. Eis por que a ação rescisória ostenta a natureza jurídica de uma ação autônoma de impugnacão: seu ajuizamento provoca a instauracão de um novo processo, com nova relacão jurídica processual. (DIDIER JR., 2012, p.379, grifos no original). Sob esse entendimento, tem-se que a ação rescisória foge às regras constantes dos artigos 496 e seguintes do Código de Processo Civil, uma vez que não tem por finalidade anular a sentença proferida e, tampouco, dar prosseguimento ao processo finalizado. Isso porque o referido instrumento de impugnação visa a constituir um novo processo tendo por objeto tanto a sentença quanto a demanda original. Vale reiterar, trata-se de feito distinto do processo em que se encontra a sentença impugnada. Assim, o processamento da lide, na via rescisória, divide-se em duas fases distintas, mas que se complementam, quais sejam, o juízo rescindente, no qual se exerce a análise da preliminar, imprescindível em todas as ações rescisórias, e o juízo rescisório, o qual enseja a reapreciação do objeto da demanda constante da ação originária, recaindo-se sobre o mérito da questão. Ressalte-se que o cabimento da ação rescisória encontra respaldo mais restrito do que aquele previsto para os recursos. Em síntese, estão sujeitas à referida ação autônoma, sem prejuízo do disposto no artigo 485 do Código de Processo Civil, as

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sentenças que tenham transitado em julgado, que contenham vício expressamente presente em seu conteúdo ou que a sua prolação tenha sido pautada por juízos de evidente injustiça. A tais condições, acrescente-se o prazo de 2 (dois) anos, previsto para o seu ajuizamento, contado do trânsito em julgado da respectiva sentença, nos termos do artigo 495 do diploma processual. Quanto a essas condições de cabimento, assevera o eminente jurisconsulto Alexandre Freitas Câmara: A “ação rescisória” só é cabível, em nosso sistema, contra sentenças de mérito cobertas pela autoridade de coisa julgada. É o que se extrai do texto do art. 485 do Código de Processo Civil, cuja redação afirma que “a sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando...”. Incabível, pois, a propositura de “ação rescisória” para atacar sentença terminativa, devendo-se considerar que tal demanda é juridicamente impossível. (CÂMARA, 2009, p.10, destaques no original). Com base nessas considerações, evidencia-se que a ação rescisória constitui exceção à coisa julgada, possui crivo ponderadamente superior ao dos recursos, inicia novo processo com fundamento em demanda anterior e promove nova oportunidade de julgamento acerca de objeto já submetido ao exame do Judiciário. Trata-se, pois, de instrumento necessário ao equilíbrio da estrutura jurídica, eis que limita a prevalência da sentença desmedida e, por consequência, cessa os eivados efeitos que dela podem decorrer. 1.5.2

Querela nullitatis O defeito processual existente em sentença transitada em julgado é passível de

comprometer a análise do mérito e viciar todos os demais atos jurídicos existentes desde a concepção da ação demandada até o seu desfecho final. Por essa razão, mormente por não se enquadrar nas hipóteses previstas no artigo 485 do Código de Processo Civil para o ajuizamento da ação rescisória, tem lugar a denominada querela nullitatis – declaração de inexistência. Além de ausente seu cabimento nas hipóteses do dispositivo supra, referido instituto não encontra previsão expressa em nenhuma outra parte do Código de Processo Civil. Há, no entanto, entendimentos controversos acerca de sua previsão legal, a 137


exemplo do que leciona o jurista brasileiro Alexander dos Santos Macedo (2005, p. 70), segundo o qual a querela nullitatis encontra expressamente inserida no diploma processual por intermédio de seu artigo 741, inciso I – embargos do executado. Comunga do mesmo entendimento o autor Elpídio Donizetti (2010, p. 838); contudo, de forma mais abrangente, eis que, segundo o jurista, o Código de Processo Civil entabula três hipóteses nas quais são cabíveis o ajuizamento da querela nullitatis, quais sejam, por meio de impugnação ao cumprimento de sentença, de embargos à execução ou por intermédio de ação autônoma, previstas, respectivamente, no artigo 475-L, I, artigo 741, I, e artigo 4º, I, todos do mesmo ordenamento processual. A corrente divergente posiciona-se no sentido de que não há, no atual sistema processual brasileiro, previsão expressa acerca da querela nullitatis. É o que entende o jurista Fernando da Fonseca Gajardoni, dissertando sobre a incidência do instituto em nosso ordenamento: Hoje não há previsão legal expressa, seja em relação à querela ‘nullitatis’, seja em relação à ‘restitutio in integrum’. Contudo, da análise das hipóteses de cabimento da ação rescisória – art.485 do CPC – ainda é possível identificar quais teriam fisionomia mais parecida com a primeira, e quais com a outra. Indiscutível, por outro lado, que muito se perdeu com a ausência de previsão legal da ação de nulidade, seja em relação à (sic) algumas hipóteses de cabimento não contempladas pelo art. 485 do CPC, seja em razão do prazo decadencial para ajuizamento e necessidade de análise pela superior instância. (GAJARDONI, 2005, p. 14, grifos no original) Com efeito, não se olvida dizer que os dispositivos apontados pela doutrina se compatibilizam com o fenômeno da querela nullitatis. Contudo, a despeito da corrente doutrinária divergente, observa-se que não se trata de previsão legal expressa, mas sim implícita no diploma processual, exteriorizada por intermédio das interpretações jurídicas a ele dadas. Vale dizer, os preceitos contidos nos artigos retro mencionados comportam a aplicabilidade da querela nullitatis em virtude da interpretação extensiva lançada pela doutrina e jurisprudência atuais. Ademais, há que se ressaltar que os comandos contidos nos artigos 475-L, I, 741, I, e 4º, I, do Código de Processo Civil, encerram a aplicabilidade do respectivo

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fenômeno nas hipóteses em que se denotam falhas na citação do réu, ocasionando, por conseguinte, o não aperfeiçoamento da relação processual inicialmente pretendida. Tem-se, pois, que a querela nullitatis atua no campo do vínculo processual imperfeito, quando identificados vícios, de natureza insanável, contidos no ato citatório, ou mesmo a sua ausência. Acresça-se ainda, obrigatoriamente, em razão desses fatos, a ocorrência da revelia. Em razão disso, em que pesem algumas decisões judiciais pautando-se pelo princípio da fungibilidade, a ausência de citação não dá ensejo ao ajuizamento da ação rescisória justamente por não estar elencada entre as situações processuais previstas pelo legislador originário no artigo 485 do vigente Código de Processo Civil. Isso porque, conforme já demonstrado, sem o aperfeiçoamento da citação, a relação jurídica torna-se inexistente, e, portanto, compromete todo o trajeto processual desde a instauração da ação até o respectivo trânsito em julgado da sentença. Justapondo-se a essa condição, a decisão judicial torna-se igualmente inexistente. Assim, não há que se rescindir algo que não existe (DONIZETTI, 2010, p. 837), vez que a sentença prolatada encontra-se eivada dos chamados vícios transrescisórios, sobretudo pela ausência de um dos requisitos exigidos pelo ordenamento processual no plano da existência, qual seja, a presença, no processo, do agente necessário a responder à demanda contra ele ajuizada. Ressalte-se, ainda, que a ação declaratória de inexistência da sentença pode ser arguida a qualquer tempo, não se submetendo ao prazo decadencial de dois anos previsto para a ação rescisória. Portanto, bastaria a demonstração do vício insanável inserto na relação processual. Por esses motivos, evidente que o ordenamento jurídico brasileiro admite a incidência da querela nullitatis, tendo em vista a desconstituição de sentenças nulas ou inexistentes, nos casos não submetidos às hipóteses previstas no artigo 485 do Código de Processo Civil, e, tampouco, ao prazo decadencial previsto no respectivo artigo 495, bem como em razão de o defeito substancial do ato se consolidar no campo da relação processual imperfeita.

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2 AS LEIS DECLARADAS INCONSTITUCIONAIS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Como se sabe, o estabelecimento de leis ou atos normativos no sistema jurídico deve atender aos critérios estabelecidos no âmbito processual e, sobretudo, estar em conformidade com as normas fundamentais preconizadas pela Carta Maior. Contudo, quando o objeto dessas leis ou atos normativos diverge do conteúdo constitucional ou mesmo se omite ante a necessidade de ação do Estado, a controvérsia existente dá ensejo ao denominado controle de constitucionalidade, em atendimento ao princípio da Supremacia da Constituição. Imprescindível, porém, antes de adentrar ao estudo do controle propriamente dito, analisar a estabilidade das normas constitucionais inseridas na Lei Suprema. Isso porque o controle exercido sobre as normas divergentes deverá se utilizar como parâmetro de comparação o texto contido na Magna Carta, cuja rigidez encontra fundamento na prevalência dos princípios constitucionais sobre os demais preceitos existentes na ordem jurídica. Em rigor, é cediço que a Constituição Federal de 1988 contempla, por intermédio dos procedimentos previstos em seu conteúdo para a consolidação de emenda, rigoroso procedimento para alteração das normas constitucionais, revelando-se extremamente rígida no que tange à sua estabilidade. Entende-se, pois, que para a modificação de qualquer texto contido no Diploma Constitucional, deverão ser observados os critérios previstos em seu respectivo artigo 60, o qual exige desígnios mais árduos e dificultosos para que se efetive a pretendida alteração. É o que entende o constitucionalista Pedro Lenza: [...] uma constituição rígida é aquela que possui um processo de alteração mais dificultoso, mais árduo, mais solene do que o processo legislativo de alteração das normas não constitucionais. A CF brasileira é rígida, diante das regras procedimentais solenes de alteração previstas em seu art. 60. (LENZA, 2009, p. 149). Esse resistente procedimento exigido para que se efetue qualquer mudança no texto constitucional justifica-se pela necessidade em se estabelecer, no ordenamento jurídico, a supremacia de determinada lei, a qual deverá nortear todos os demais atos normativos já existentes ou a ela supervenientes. 140


Trata-se, portanto, do escalonamento normativo que, conforme leciona Alexandre de Moraes (2009, p. 699), “é pressuposto necessário para a supremacia constitucional, pois, ocupando a constituição a hierarquia do sistema normativo é nela que o legislador encontrará a forma de elaboração legislativa e o seu conteúdo.”. Sendo assim, em virtude de a Constituição Federal de 1988 se encontrar posicionada no topo da hierarquia das normas jurídicas, nenhum outro ato normativo poderá divergir de sua matéria legal, sob pena de ofender os princípios por ela compreendidos e, portanto, submeter-se ao controle de constitucionalidade adotado pelo sistema jurídico. 2.1

O controle de constitucionalidade no Brasil A submissão de determinada lei aos mecanismos de controle existentes no

ordenamento jurídico pressupõe a existência de eventual falha na conduta por parte do Estado diante do dever de legislar ou suprir a exigência de direitos fundamentais consagrados pela Constituição Federal. Tal conduta pode ser tanto positiva, pautada pela

inconstitucionalidade

por

ação,

quanto

negativa,

que

tem

base

na

inconstitucionalidade por omissão. A primeira espécie ocorre quando sobrevém ao sistema jurídico a edição de normativa contrária aos princípios contemplados pela Magna Carta. Trata-se, pois, de conduta ativa exercida pelo órgão responsável, eis que o Estado emprega a ação de legislar, não observando, contudo, a constitucionalidade do ato por ele editado. Assim, as normas elaboradas devem ser compatíveis com o conteúdo constitucional, sob pena de serem submetidas aos mecanismos de controle jurisdicional. Surge, daí, a denominada “compatibilidade vertical”. Cabível, pois, transcrever o entendimento do constitucionalista José Afonso da Silva sobre o assunto: Ocorre com a produção de atos legislativos ou administrativos que contrariem normas ou princípios da constituição. O fundamento dessa inconstitucionalidade está no fato de que do princípio da supremacia da constituição resulta o da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a constituição. As que não forem compatíveis com ela são inválidas, pois a incompatibilidade vertical resolve-se em favor das normas de grau mais elevado, que funcionam como 141


fundamento de validade das inferiores. (SILVA, 2009, p. 47, grifos no original). Acresça-se, ainda, que a inconstitucionalidade por ação se subdivide em formal e material. Aquela tem lugar quando o vício se perfaz pela inobservância dos procedimentos legalmente exigidos para a edição da norma. A título de exemplo, tem-se a competência de determinada autoridade para legislar sobre lei ou o número de quórum exigido para a sua deliberação. A inconstitucionalidade sob o aspecto material, por sua vez, se manifesta quando a norma precária atinge a Constituição em seu conteúdo. Assim, ainda sob o entendimento de José Afonso da Silva (2009, p. 47), “Essa incompatibilidade não pode perdurar, porque contrasta com o princípio da coerência e harmonia das normas do ordenamento jurídico [...]”. Por outro lado, a inconstitucionalidade por omissão incorre na inércia do Estado em legislar sobre determinado direito contemplado pela Constituição Federal, incidindo, assim, o prejuízo sobre as garantias e princípios que deveriam estar presentes na ordem jurídica vigente. Sobre essa espécie, o jurista português José Gomes Canotilho (1983, p. 55), dissertando sobre a omissão legislativa, entende que “O instituto da inconstitucionalidade por omissão deve manter-se, não para deslegitimar governos ou assembléias inertes, mas para assegurar uma via de publicidade crítica e processual contra a Constituição não cumprida.”. A rigor, é certo que a República Federativa do Brasil, ao fiscalizar a compatibilidade existente entre a normativa em exame e a Constituição Federal, adotou a teoria da nulidade, por influência do sistema norte-americano. Dessa tese proposta inicialmente em 1803 pelo então presidente da Suprema Corte americana John Marshall, em sede de controle difuso, registra-se que a declaração de nulidade destituirá de validade a lei incompatível com a Lei Suprema, regressando ao tempo e desconstituindo os seus efeitos desde a sua geração. Portanto, os efeitos da normativa considerada nula alcançarão todos os demais atos jurídicos já consolidados que estejam revestidos de sua improvável validade. Em contrapartida, posteriormente à tese de Marshall, surgia na Áustria, em 1920, a teoria da anulabilidade, ante a influência do jurista e filósofo austríaco Hans

142


Kelsen, segundo o qual o vício decorrente do ato anulado não ensejaria a regressão dos efeitos da anulação à origem da normativa inconstitucional. Este modelo de fiscalização, adotado pela Corte Constitucional austríaca, não foi acatado, contudo, pelo sistema pátrio de fiscalização das leis, conforme eminente entendimento do jurisconsulto Pedro Lenza: A idéia de a lei ter “nascido morta” (natimorta), já que existente enquanto ato estatal mas em desconformidade (seja em razão de vício formal ou material) em relação à noção de “bloco de constitucionalidade” (ou paradigma de controle), consagra a teoria da nulidade, afastando a incidência da teoria da anulabilidade. (LENZA, 2009, p. 150, grifos no original). De fato, a teoria da nulidade considera que a lei inconstitucional atinge o plano da validade, eis que, nesse caso, o ato já nasce nulo e nunca poderia, portanto, ter produzido qualquer efeito sobre o sistema jurídico. Vale acentuar que, por esse modelo, a nulidade já se encontra ínsita à norma controversa, considerando-se “morta” desde a sua concepção. É justamente por essa razão que o desfazimento da norma inconstitucional retroage à sua origem. Por consequência, a sentença que desconstituirá o ato legislativo ilegal terá natureza declaratória, porquanto a invalidade que por ele é revestida já existia antes mesmo do pronunciamento judicial da questão. Sobre o assunto, já se manifestou o egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina, cujos excertos extraídos da ementa na parte em que guardam pertinência com o presente estudo seguem in verbis: [...] Apesar de existente, a norma inconstitucional será inválida. A discussão a respeito da sua nulidade ou anulabilidade decorre do modelo de preservação da autoridade da constituição: se adotado o difuso, será nula e a decisão com efeitos declaratórios; se adotado o concentrado, será anulável e a decisão com efeitos constitutivos. Como o Brasil adota os dois modos de controle de constitucionalidade, possível a adoção de solução intermediária, nos termos, aliás, do disposto no art. 27, da Lei 9868/99. Não havendo ressalva quanto aos efeitos, é de ser considerada nula a declaração de inconstitucionalidade, situação que acarreta a produção de efeitos retroativos à declaração de invalidade. [...]. (TJ-SC, Relator: Francisco Oliveira Neto, data de Julgamento: 21/06/2011, Terceira Câmara de Direito Público, grifado).

143


Em tese, do entendimento supramencionado, registra-se que, não obstante a teoria da nulidade adotada pelo Brasil, inserida na doutrina pátria pelo jurista Rui Barbosa, existe a possibilidade de incidência da denominada modulação dos efeitos da decisão. Assim, por intermédio do artigo 27 da Lei nº 9.868/1999, o Supremo Tribunal Federal poderá restringir a eficácia da sentença declaratória de nulidade do ato normativo a determinados casos concretos, bem como atribuir-lhe mero efeito ex nunc, passando a decisão a surtir efeito tão somente sobre os atos praticados a partir de sua prolação, e não mais, portanto, retroagindo para alcançar ações anteriores, exceto quando, em uma terceira hipótese igualmente abrangida pela norma, os efeitos do julgado puderem retroceder a momento previamente fixado na decisão do Excelso Tribunal. Para tanto, o referido dispositivo exige o cumprimento dos seguintes requisitos: 1) a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo; 2) estejam presentes, no caso concreto, razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social; 3) a superveniência de decisão por maioria de dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal. Contudo, a excepcionalidade da normativa constante da Lei nº 9.868/1999 não tem o condão de afastar a tese da nulidade, vez que esta é, de fato, a teoria adotada pelo ordenamento jurídico pátrio, a exemplo do que leciona Luís Roberto Barroso, ao dissertar que “Não prevaleceu no Brasil a doutrina que atribuía à lei inconstitucional a condição de norma anulável, dando à decisão na matéria um caráter constitutivo” (Barroso, 2011, p. 232). No que tange aos momentos de controle, a inconstitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei pode ser aferida de maneira prévia ou preventiva pelo Poder Legislativo, por intermédio de parlamentar competente e da Comissão de Constituição e Justiça, pelo Poder Executivo, em virtude do veto presidencial e, por fim, pelo Judiciário, por meio de mandado de segurança impetrado por parlamentar. Quanto ao controle posterior ou repressivo, este se subdivide em político, exercido por Cortes ou Tribunais Constitucionais ou Órgão de Natureza Política; Jurisdicional misto, que compreende o controle difuso e concentrado; e híbrido, que consiste na junção dos controles político e jurisdicional (Lenza, 2009, p. 165). 144


Atemo-nos, contudo, ao controle jurisdicional misto, haja vista ser este o mecanismo adotado pelo sistema jurídico pátrio, conforme procedimentos estabelecidos na Constituição Federal de 1988, cujo teor prevê a incidência de apreciação da inconstitucionalidade normativa tanto de forma difusa quanto concentrada. 2.1.1

Controle difuso Em sede de controle jurisdicional misto, tem-se que os mecanismos de

correção das leis se dividem em dois sistemas: controle difuso e controle concentrado de constitucionalidade. No contexto histórico, o controle difuso é registrado pela primeira vez através do expressivo confronto instaurado no Poder Judiciário entre Madison e Marbury, em 1803, nos Estados Unidos da América. Isso porque, anteriormente, o então presidente do Estado americano, John Adams, nomeou William Marbury para o cargo de Juiz de Paz pouco antes de entregar a presidência dos Estados Unidos a Thomas Jefferson. Contudo, restava a Marbury receber a comissão, cuja assinatura já havia sido efetivada por Adams. Ocorre que Jefferson, após eleito, por discordar da nomeação de Marbury, determinou que Madison, nomeado Secretário de Estado pelo então presidente, não desse continuidade ao respectivo processo de nomeação. Por essa razão, Marbury e Madison deram início a um histórico litígio perante o Poder Judiciário, promovendo, cumulativamente, uma árdua discussão acerca da competência para julgar o caso. Questionava-se, assim, a aplicabilidade da lei vigente à época, que estabelecia a Suprema Corte como competente diante de tal situação, ou da Constituição de 1787, uma vez que esta não havia fixado competência para o julgamento da questão. Coube, então, ao Juiz John Marshall decidir a lide, o qual, analisando o caso concreto, chegou à conclusão de que a Constituição deveria prevalecer sobre a lei, e que qualquer normativa contrária àquela deveria ser nula (Lenza, 2009, p. 178). Nasce, assim, o controle

difuso

de

constitucionalidade

mais

expressivo

da

história

do

constitucionalismo. Com efeito, esse sistema americano de controle adotado por Marshall pautavase (como ainda o é hodiernamente) na teoria da nulidade, segundo a qual é nula toda norma infraconstitucional em contrário à Constituição, e, quando assim declarada, 145


produz efeitos ex tunc, atingindo e invalidando os atos a ela vinculados desde a sua origem, conforme já visto anteriormente. No tocante ao âmbito jurisdicional, convém ressaltar que o controle difuso é exercido por qualquer órgão ou tribunal, e encontra respaldo na via incidental. Importa afirmar que se trata de caso concreto submetido ao jurisdicionado por qualquer indivíduo que satisfaça, na exordial, os requisitos exigidos para o ajuizamento da ação. Contudo, nesse modelo, o objeto principal da lide não deve ser o controle de constitucionalidade da lei propriamente dito, mas sim a pretensão do direito a ela vinculado. Por certo, os instrumentos do controle difuso deverão ser exercidos de forma acessória, justificando-se, portanto, o seu exercício pela via incidental, por meio de defesa ou de exceção. Por essa via de ação, confira-se o entendimento dos juristas Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino: O exercício da via incidental dá-se diante de uma controvérsia concreta, submetida à apreciação do Poder Judiciário, em que uma das partes requer o reconhecimento da inconstitucionalidade de uma lei, com o fim de afastar a sua aplicação ao caso concreto de seu interesse. A apreciação da constitucionalidade não é o objeto principal do pedido, mas um incidente do processo, um pedido acessório. (PAULO; ALEXANDRINO, 2009, p. 707). Por

essa

razão,

os

efeitos

advindos

da

decisão

que

declarar

a

inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo terão, em regra, seus limites restritos às partes constantes da demanda, não alcançando terceiros estranhos à lide, haja vista a eficácia inter partes, que é inerente ao controle difuso de constitucionalidade. De igual modo, terá efeito ex tunc a decisão proferida por esse mecanismo de controle, a qual retroagirá para atingir a lei desde a sua concepção. Por essa ocasião, entende-se, pois, que a ilegalidade da normativa, objeto do controle, atinge o plano de validade das leis, não sendo passível de convalidação, uma vez que passa a se considerar que os efeitos por ela produzidos nunca tiveram respaldo legal válido. Ressalva seja feita quanto ao procedimento estabelecido no artigo 52, X, da Constituição Federal. Em análise, “a suspensão da execução, no todo ou parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal” (Brasil, 1988), conforme preceitua o dispositivo supra, terá eficácia erga omnes e efeito ex nunc. 146


Vale frisar, o resultado produzido pela decisão proferida valerá contra todos e vinculará todos os demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública. A respeito disso, discorrendo sobre os efeitos da decisão nesse modelo de controle, leciona com maestria o constitucionalista José Afonso da Silva: No que tange ao caso concreto, a declaração surte efeitos ex tunc, isto é, fulmina a relação jurídica fundada na lei inconstitucional desde o seu nascimento. No entanto, a lei continua eficaz e aplicável, até que o Senado suspensa sua executoriedade; essa manifestação do Senado, que não revoga nem anula a lei, mas simplesmente lhe retira a eficácia, só tem efeitos, daí por diante, ex nunc. Pois, até então, a lei existiu. Se existiu, foi aplicada, revelou eficácia, produziu validamente seus efeitos. (SILVA, 2009, p.54, grifos no original). Os efeitos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal e submetida ao controle pelo Senado Federal, na sistemática do artigo 52, X, da Constituição Federal, serão estendidos, então, a terceiros, ainda que não figurem como litigantes no caso concreto, e passarão a valer a partir da declaração pela egrégia Casa Legislativa. Acerca da previsão expressa do controle difuso no diploma constitucional, o respectivo artigo 97 regulamenta a sistemática de fiscalização pela qual será submetida a lei questionada incidentalmente diante do caso concreto. Assim, o procedimento previsto nesse modelo de controle exige que a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público somente se dê pelo voto da maioria absoluta dos membros dos tribunais ou dos membros do respectivo órgão especial. Trata-se, assim, da denominada cláusula de reserva de plenário, exigida também no controle concentrado de constitucionalidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal (MORAES, 2009, p. 712), cuja exceção consiste no entendimento jurisprudencial de que não se exigirá a votação respectiva, quando o objeto da inconstitucionalidade do ato normativo já houver sido apreciado e reconhecida a controvérsia existente pelo conselho especial ou tribunal pleno respectivo em caso semelhante. Nesse caso, a matéria será diretamente apreciada pelo relator. Nestes termos, resta evidente que o controle difuso de constitucionalidade caracteriza-se, essencialmente, por compreender procedimento de via ampla, porquanto suscetível de propositura por qualquer interessado de forma incidental, analisa o caso concreto submetido ao Poder Judiciário, na medida em que, observadas as ressalvas 147


legais, atribui efeitos retroativos e vincula tão somente as partes constantes do processo. Cumpre reiterar, ainda, a principal característica desse modelo, qual seja, a sua apreciação por qualquer tribunal ou órgão do Poder Judiciário. Por outro lado, o controle concentrado de constitucionalidade encontra amparo em via estritamente limitada, conforme regulamentação estabelecida na Constituição Federal de 1988. Imprescindível, pois, analisar a sua adoção pelos mecanismos de fiscalização contemplados pelo Brasil. 2.1.2

Controle concentrado Originariamente inserido por Hans Kelsen no teor da Constituição austríaca de

1920, o controle concentrado de constitucionalidade caracteriza-se, essencialmente, pela sua sistemática de submissão exclusiva das leis a um único e determinado órgão jurisdicional, analisando o caso de maneira abstrata. Tal análise de compatibilidade das normativas, preconizada por Helsen, atribuía o controle concentrado respectivo ao Tribunal Constitucional austríaco, influenciando, posteriormente, a Constituição Alemã, e se expandindo, ainda, pela Espanha, Itália e Portugal (MORAES, 2009, p. 730). Sob a mesma influência, no Brasil, a Constituição Federal de 1946 aderiu ao controle de constitucionalidade inspirado por Kelsen e consagrou o Procurador Geral da República como único legitimado para propor a ação direta de inconstitucionalidade – ADI de lei ou ato normativo incompatível com a Magna Carta. O doutrinador Alexandre de Moraes, discorrendo acerca da origem desse modelo no ordenamento pátrio, assim leciona: O controle concentrado ou abstrato de constitucionalidade surgiu no Brasil por meio da Emenda Constitucional nº 16, de 612-1965, que atribuiu ao Supremo Tribunal Federal competência para processar e julgar originalmente a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, apresentada pelo procurador-geral da República, apesar da existência da representação interventiva desde a Constituição de 1934. (MORAES, 2009, p. 730). Em contrapartida, a exclusividade do Procurador Geral da República para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade – ADI, atribuída pela Emenda 148


Constitucional nº 36 na vigência da Carta de 1946, em que pese a sua manutenção na elaboração da Lei Maior de 1967, não perdurou ante a reforma constitucional e ficou afastada com a superveniência da Constituição Federal de 1988. Isso porque, além de manter a modalidade do controle concentrado no ordenamento pátrio, a vigente Lei Suprema estendeu significativamente a competência a demais autoridades para o ajuizamento da ação, conforme se extrai de seu artigo 103. Por consequência, além do Procurador Geral da República, passaram a ser legitimados para a propositura da ação, nos termos elencados no referido dispositivo, o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador de Estado ou do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. Essa extensão de competência trouxe, contudo, para determinadas autoridades elencadas no rol do artigo 103, a exigência de demonstração de vínculo direto entre o conteúdo constante da propositura da ação e a função exercida pela autoridade que a propõe. Trata-se da denominada pertinência temática, a qual classifica os legitimados em neutros ou universais e interessados ou especiais. Nesse sentido, compõem a primeira categoria aquelas autoridades elencadas nos incisos I, II, III, VI, VII, VIII do aludido dispositivo, não se exigindo destas a comprovação da referida pertinência para o ajuizamento da ação. Os legitimados interessados ou especiais, por sua vez, devem demonstrar que guardam relação de interesse com a causa, objeto do controle, para a propositura judicial respectiva. Decerto, não se trata aqui do interesse de agir exigido no controle difuso, mas a este se assemelha, conforme já observado pelo Ministro Gilmar Mendes: [...] A relação de pertinência temática assemelha-se muito estabelecimento de uma condição de ação – análoga, talvez, interesse de agir -, que não decorre dos expressos termos Constituição e parece ser estranha a natureza do processo controle de normas. (MENDES, 2004, p. 159)

ao ao da de

149


No que tange ao objeto de apreciação, diferentemente da via difusa, o mecanismo de controle concentrado não analisa o caso concreto, eis que a questão submetida a esse modelo é discutida de forma abstrata na via principal. Assim, o ajuizamento da ação por esse instrumento de fiscalização tem como único e principal objetivo analisar a compatibilidade ou incompatibilidade de determinada lei em cotejo com a Constituição Federal, bem como apreciar eventual omissão do Estado revestida de inconstitucionalidade. Sobre o assunto, José Afonso da Silva (2009, p. 52) esclarece que, por essa via, não há outro objetivo “[...] senão o de expurgar da ordem jurídica a incompatibilidade vertical.”. Atente-se que não há particular interessado, uma vez que o interesse, nesse caso, é vinculado a proveito amplo, genérico e impessoal com vistas à regularidade das normas constitucionais e à extirpação de lei inconstitucional do sistema normativo. Não se busca, por esse modelo, a solução de questão específica que demande benefícios a um único particular ou limitado número de interessados, como acontece na via difusa. Em razão disso, é justificável a incidência do efeito erga omnes produzido por essa via de controle. Isso porque a eficácia da decisão prolatada em sede do modelo concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal valerá contra todos e possuirá efeito vinculante, estendendo-se sobre todos os demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública. A decisão não alcançará, contudo, o Poder Legislativo, tendo em vista que, de modo contrário, referida vinculação ensejaria a impossibilidade de aperfeiçoamento das normas por parte deste órgão, conforme observado pelo constitucionalista Pedro Lenza: [...] Isso porque o valor segurança jurídica, materializado com a ampliação dos efeitos erga omnes e vinculante, sacrificaria o valor justiça da decisão, já que impediria a constante atualização das constituições e dos textos normativos por obra do Poder Legislativo. (LENZA, 2009, p. 214, grifos no original) Ademais, no que se refere à competência originária para processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual – ADI, bem como a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal – ADC, proposta pelas autoridades legitimadas, conforme demonstrado, o artigo 102, I, “a”, da Constituição Federal, atribui ao Supremo Tribunal Federal a incumbência para o

150


julgamento das respectivas questões submetidas à análise da compatibilidade constitucional. Desse modo, caberá ação direta de inconstitucionalidade – ADI sempre que uma norma constante do ordenamento jurídico esteja em confronto com a Carta Maior. Assim, o objeto da pretensão judicial será justamente a invalidação da lei precária. Nesse sentido, discorrendo sobre a abrangência dessa ação no âmbito do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Mendes assevera: Podem ser impugnados por ação direta de inconstitucionalidade leis ou atos normativos federais ou estaduais. Com isso, utilizouse o constituinte de formulação abrangente de todos os atos normativos primários da União ou Estados (art. 102, 1, a). (MENDES, 2009, p. 1.159, grifos no original). De outro modo, a matéria constante da ação declaratória de constitucionalidade –

ADC

possui

pretensão

oposta

àquela

perquirida

pela

ação

direta

de

inconstitucionalidade – ADI, ao passo em que o objeto almejado naquele instrumento consistirá na manifestação pelo Supremo Tribunal Federal acerca da constitucionalidade de determinada lei ou ato normativo. Evidentemente, a superveniência da Emenda Constitucional n. 45/2004 equiparou os legitimados para propor a referida ação àqueles estabelecidos no artigo 103 da Constituição Federal. Não se pode olvidar que esses mecanismos de fiscalização diretos encontram respaldo, ainda, na Lei nº 9.868/1999 e no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, cujas normativas dispõem, respectivamente, sobre o processo e julgamento das ações, bem como sobre a competência originária estabelecida para a sua apreciação. A propósito, a Lei nº 9.868/1999, por intermédio de seu artigo 3º, exige que a petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade indique o dispositivo da lei ou do ato normativo impugnado, além do pedido com suas especificações. Importa ressaltar que o objeto da declaratória de constitucionalidade se consubstancia na normativa cuja eventual legalidade enseja dúvida pelos órgãos do Poder Público. Contudo, nesse caso, a possível improcedência do pedido pode resultar no efeito contrário pretendido por essa via. É o que entende o autor André Ramos Tavares: 151


Costuma-se indicar que a ADC é a ADI com sinal invertido, ou seja, o pedido é o inverso daquele cabível na tradicional ação de controle abstrato. Deve-se pedir em ADC a declaração de constitucionalidade da lei ou ato normativo federal (não é cabível para lei estadual ou municipal). O resultado, porém, pode ser a declaração de inconstitucionalidade, no caso de julgamento final pela improcedência do pedido formulado. (TAVARES, 2013, p. 331). Por outro lado, constitui ainda modalidade de controle concentrado de constitucionalidade a arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF, prevista no artigo 102, §1º, da Constituição Federal. Essa forma de controle encontra amparo também na Lei nº 9.882/1999. Assim, nos termos de seu artigo 1º, a ação prevista na normativa supracitada terá lugar quando os atos do Poder Público lesionarem ou estiverem na iminência de lesionar preceitos fundamentais, cabendo, ainda, o seu ajuizamento nos casos em que a controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal for relevante, ainda que anteriores à Constituição. Cabe ressaltar, contudo, que a arguição de descumprimento de preceito fundamental tem caráter predominantemente subsidiário. Vale dizer, apenas será cabível a sua propositura quando já houver exaurido todos os demais meios de controles possíveis para a espécie. Sobre o assunto, já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF nº 12-2/DF, de Relatoria do Ministro Ilmar Galvão, cujo entendimento revela-se oportuno transcrever: A arguição de descumprimento de preceito fundamental, prevista no artigo 102, 1º, da Carta da República e regulada pela Lei nº 9.882/99, é ação de natureza constitucional cuja admissão é vinculada à inexistência de qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade do ato de poder atacado. (STF – Pleno – Arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 122/DF – Rel. Min. Ilmar Galvão – Diário da Justiça, Seção 1, 26 mar. 2001. p. 3). Não obstante a omissão do legislador originário em definir o conceito de “preceito fundamental”, tem-se que a arguição de preceito fundamental – ADPF terá por objeto os casos em que houver lesão aos princípios fundamentais (artigo 1º ao 4º, CF/88), aos direitos fundamentais (artigo 5º, CF/88), às cláusulas pétreas (artigo 60, §

152


4º, CF/88) e aos princípios constitucionais sensíveis (artigo 34, II), conforme entendimento do Ilustre Magistrado Ricardo Cunha Chimenti (2003, p. 117). Diferentemente, a ação de inconstitucionalidade por omissão – ADO, respaldada pelo artigo 103, § 2º, da Constituição Federal, visa suprir eventual falta legal por parte do ordenamento jurídico e que, por esse motivo, se reveste de inconstitucionalidade. Conforme já visto em tópico anterior, a matéria a ser examinada, na ação de inconstitucionalidade por omissão – ADO, será a inércia do Estado. Contudo, a omissão aqui tratada deve cingir-se às normas constitucionais de eficácia limitada de princípio institutivo e de caráter impositivo, nos casos em que couber ao legislador a obrigação de editar as normas faltantes (MORAES, 2009, p. 769). Como legitimados, a ação de inconstitucionalidade por omissão – ADO terá as mesmas

autoridades

competentes

para

a

propositura

da

ação

direta

de

constitucionalidade, da ação declaratória de inconstitucionalidade e da arguição de descumprimento de preceito fundamental, a teor do artigo 103 da Magna Carta. Nesse parâmetro, o artigo 103, § 2º, da Constituição Federal, determina ainda que, após a declaração de inconstitucionalidade por omissão, seja dada ciência ao Poder competente para a adoção das medidas necessárias. Tratando-se, contudo, de órgão administrativo, o dispositivo fixa o prazo de trinta dias para adimplir as determinações proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. A Constituição Federal de 1988 prevê, ainda, outro mecanismo de controle denominado ação direta de inconstitucionalidade interventiva – ADI interventiva, estabelecido no respectivo artigo 36, III, cujas hipóteses de incidências e especificações não serão objeto do presente estudo por este se restringir às leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, por meio das ações acima analisadas. Por oportuno, convém acentuar que haja vista o controle concentrado de constitucionalidade ser exercido por um único órgão jurisdicional ou em limitado número de órgãos, todas as ações supramencionadas serão submetidas exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal, cujas declarações nelas proferidas vincularão todos os demais órgãos, observadas as exceções previstas em lei, e produzirão efeito ex nunc, passando a valer a partir de então. Evidencia-se, contudo, que, em que pesem as

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diferenças existentes entre as hipóteses de cabimento, o objeto dessas ações caracterizase por uma finalidade comum, qual seja, a preservação da Supremacia Constitucional.

3 A POSSIBILIDADE DE RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA NOS CASOS DE LEIS DECLARADAS INCONSTITUCIONAIS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Conforme já estudado, o ordenamento jurídico encerra, ora pelos comandos legais expressos, ora por intermédio dos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, hipóteses em que se mostram cabíveis a modificação de decisão definitiva respaldada pela coisa julgada material. Com efeito, contemplam possibilidades de desfazimento da sentença transitada em julgado a ação rescisória, prevista no artigo 485 do Código de Processo Civil, e a denominada querela nullitatis, cuja aplicabilidade decorre de interpretações permeadas pela doutrina e jurisprudência, porquanto não prevista de forma expressa pelos comandos legais. Tais sistemáticas configuram, por si só, a relativização da coisa julgada, haja vista a possibilidade de se fazerem cessar, nos termos da lei, a eficácia do decisum atacado. Contudo, em ambos os casos, o objeto de dissolução dos efeitos oriundos da coisa julgada se consubstancia em vícios expressamente taxativos pelo ordenamento jurídico. De outro modo, tratando-se de leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal posteriormente ao trânsito em julgado de casos concretos, objeto do presente estudo, o erro constante tão somente do mérito da decisão mostra-se insuficiente à desconstituição da coisa julgada material. Nesses casos, os direitos pertinentes às partes interessadas restariam inatingíveis pelos institutos supra, uma vez que não se enquadram nos casos típicos por eles abrangidos. Sendo assim, questiona-se a razoabilidade entre a manutenção da coisa julgada inconstitucional, ainda que com base na segurança jurídica das decisões, prevista no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, e o prejuízo do sentimento de justiça contemplado, sobretudo, pelo ordenamento jurídico. 154


3.1

A natureza jurídica da sentença inconstitucional A extirpação de lei ou ato normativo em confronto com a Constituição Federal

exige que o defeito existente, reconhecido por meio dos mecanismos de controle de constitucionalidade exercidos, represente expressa lesão à supremacia da Lei Maior vigente. Contudo, para que os efeitos decorrentes da declaração de inconstitucionalidade sejam efetivados, há que se levar em consideração a natureza jurídica que reveste a incompatibilidade impugnada, cuja dissonância doutrinária reside em dois importantes aspectos: a sentença inconstitucional é nula ou inexistente. Imputa-se relevante definir a natureza jurídica da inconstitucionalidade da decisão judicial refutada em razão dos efeitos que dela poderão decorrer e dos mecanismos de impugnação que poderão variar a partir de sua definição legal. Evidentemente, a questão demandada tem origem, sobretudo, na incidente possibilidade de se relativizar a sentença inconstitucional ou, até mesmo, no questionamento acerca da existência de uma sentença propriamente inconstitucional. De fato, não há que se reparar o que se revela irreparável, razão pela qual a sentença eivada de vício não deve prosperar no ordenamento jurídico, como o seria, no caso de nulidade relativa. Contudo, oportuno acentuar que, previamente à identificação e declaração da inconstitucionalidade da normativa apreciada, a sentença, ao observar todas as regularidades legais exigidas para a sua eficácia, passou, em algum momento, a existir no plano processual e, portanto, a ter validade no ordenamento jurídico. Por essa vertente, considerar-se-ia a sentença inconstitucional como ato nulo. Declinando-se, assim, à teoria da nulidade do ato inconstitucional, observa-se que o vício constante de determinado regramento legal não é passível de convalidação e considera-se insanável. Em outras palavras, a norma declarada incompatível com a Lei Maior equipara-se ao ato nulo (MENDES, p. 88, 2008). Por outro lado, o entendimento controverso consiste na afirmação de que a lei inconstitucional é, em verdade, ato inexistente. Considera-se, assim, que a normativa nunca produziu efeito algum, porquanto ausentes os requisitos legais que lhe façam subsistir. Eis o entendimento do jurista Francisco Campos: Um ato ou uma lei inconstitucional é ato ou uma lei inexistente; uma lei inconstitucional é lei apenas aparentemente, pois que, de 155


fato ou na realidade, não o é. O ato ou lei inconstitucional nenhum efeito produz, pois que inexiste de direito ou é para o direito como se nunca houvesse existido. (CAMPOS, apud POLETTI, 1985, p. 109-110) Nesse sentido, adotando-se a teoria da inexistência da lei inconstitucional, entender-se-ia que se a normativa é inexistente, igualmente o seria o respectivo trânsito em julgado da decisão que nela se fundou. Com base nessa afirmativa, não haveria que se falar em relativização da coisa julgada inconstitucional justamente por ser inviável relativizar o que não existe (DANTAS, 2002, p. 588). Contudo, não parece ser esse o melhor entendimento. Isso porque, para que a sentença prolatada seja considerada inexistente, exige-se que esta tenha se permeado no campo da mera aparência, violando os aspectos formais exigidos pelo plano da existência para que vigore no ordenamento jurídico (THEODORO JÚNIOR; FARIA, 2008, p. 186). Vale acentuar que a inconstitucionalidade de uma lei não implica a automática inexistência da decisão judicial quando observadas atentamente as normas atinentes à regularidade processual. Comunga do mesmo entendimento o ilustre constitucionalista Luís Roberto Barroso: [...] uma lei que contrarie a Constituição, por vício formal ou material, não é inexistente. Ela ingressou no mundo jurídico e, em muitos casos, terá tido aplicação efetiva, gerando situações que terão de ser recompostas. Norma inconstitucional é norma inválida, por desconformidade com regramento superior, por desatender requisitos impostos pela norma maior. (BARROSO, 2006, p. 35, grifos no original). Em consonância com esse entendimento, acresça-se ainda que, se no controle de constitucionalidade das leis, o ordenamento jurídico universal se divide tão somente entre os sistemas norte-americano e australiano, os quais adotam, respectivamente, a teoria da nulidade e anulabilidade do ato inconstitucional, não há que se falar em inexistência da normativa incompatível com a Constituição. No mesmo sentido, a consagração pelo ordenamento pátrio da teoria da nulidade do ato inconstitucional (vide Capítulo 2) afastou, por si só, a possibilidade de se considerar inexistente a lei violadora. Ademais, é uníssona a jurisprudência brasileira quanto à teoria adotada pelo Brasil que, tendo por base as lições de Alfredo Buzaid, considera nulo o ato inconstitucional: 156


ADMINISTRATIVO - EFETIVAÇÃO EM SERVENTIA EXTRAJUDICIAL - COISA JULGADA - MATÉRIA DECIDIDA EM MANDADO DE SEGURANÇA COM DECISÃO TRÂNSITA EM JULGADO [...] 2. 'Sempre se entendeu entre nós, de conformidade com a lição dos constitucionalistas norte-americanos, que toda lei, adversa à Constituição, é absolutamente nula; não simplesmente anulável. A eiva de inconstitucionalidade a atinge no berço, fere-a ab initio (sic). Ela não chegou a viver. Nasceu morta. Não teve, pois, nenhum único momento de validade' (Alfredo Buzaid). [...]. (TJ-SC - APL: 326992 SC 2005.032699-2, Relator: Newton Trisotto, Data de Julgamento: 29/11/2005, Segunda Câmara de Direito Público). Conjugando-se, pois, das teses doutrinárias e jurisprudenciais acima expendidas, tem-se que as sentenças respaldadas por lei ou ato normativo inconstitucional sujeitam-se ordinariamente ao respectivo trânsito em julgado da decisão, eis que ultrapassam o plano da existência e produzem efeitos reais sobre o sistema jurídico, sujeitando-se, portanto, à possibilidade de se inserir na discussão acerca de sua relativização quando incompatíveis com a Supremacia da Magna Carta. 3.2

A retroatividade dos efeitos produzidos pela superveniente declaração de

inconstitucionalidade de lei ou ato normativo Quando ocorre a declaração de inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo pelo Supremo Tribunal Federal ou qualquer outro órgão jurisdicional, sobrevêm ao ordenamento jurídico duas hipóteses, a depender do modelo de controle adotado: os efeitos da decisão ficarão restritos às partes integrantes da lide ou se estenderão sobre toda a ordem vigente. Em alguns casos, contudo, a questão relativa àquela norma considerada precária já se encontra revestida de decisão definitiva, razão pela qual se discute, nessas espécies, a retroatividade dos efeitos proferidos no controle de constitucionalidade das leis aos casos concretos. O deslinde da questão se mostra relevante e nitidamente complexo, eis que o legislador originário não previu a hipótese de se flexibilizar, fora do prazo de dois anos estabelecido no artigo 495 do Código de Processo Civil, decisões judiciais transitadas em julgado e respaldadas por normativas inconstitucionais ou que dessa forma viessem a ser declaradas. Ressalva seja feita quanto à regra prevista no respectivo artigo 741, parágrafo único, cujo teor admite a interposição de embargos à execução com vistas ao reconhecimento da inexigibilidade de título judicial que tenha por fundamento lei ou ato 157


normativo que forem declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou que tenha por base aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal. Entretanto, nesses casos, figurará no pólo passivo da ação a Fazenda Pública, conforme estabelecido no caput do aludido dispositivo. Portanto, oportuna a discussão acerca da lacuna existente no ordenamento jurídico para os casos não compreendidos por nenhuma das normativas legais previstas, sobretudo no que se refere aos resultados produzidos em virtude das famigeradas ações de controle. Certo é que a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo pela via incidental produz efeitos manifestamente retroativos, haja vista a eficácia ex tunc que lhe é inerente (BARROSO, 2006, p. 38). Trata-se de procedimento ordinário previsto em controle difuso de constitucionalidade. Da mesma forma, ao observar a inconstitucionalidade da sentença transitada em julgado, caberia à parte interessada ajuizar ação rescisória com base no artigo 485, IV, do Código de Processo Civil, o qual prevê a possibilidade de desfazimento da decisão, sem prejuízo das demais hipóteses elencadas pelo dispositivo, nos casos em que houver violação literal à disposição de lei. Ocorre que a discussão doutrinária não recai sobre os efeitos a serem produzidos pela declaração de inconstitucionalidade de uma lei submetida ao controle concentrado, vez que já pacificado o entendimento de que sobre a questão incidirá o efeito ex nunc. Tampouco, o embate encerra a hipótese acerca do ajuizamento de ação rescisória dentro do prazo de dois anos ordinariamente previsto no artigo 495 do Código de Processo Civil para desconstituir sentença inconstitucional com base no artigo 485, IV. Igualmente, a análise da questão não incide sobre os casos sujeitos aos embargos à execução, nos termos do artigo 741, parágrafo único, do mesmo diploma, conforme demonstrado. A controvérsia, pois, reside sobre a retroatividade dos resultados produzidos pela declaração de inconstitucionalidade da normativa sobre a decisão prolatada no caso concreto em sede de controle difuso. Isso porque os efeitos previstos no artigo 52, X, da Constituição Federal alcançarão tão somente os casos que passarem a ser julgados após a suspensão pelo Senado Federal de lei ou ato normativo declarado inconstitucional 158


pelo Supremo Tribunal Federal. Daí, evidentemente, denota-se de forma excepcional, em sede de controle difuso, o efeito ex nunc (SILVA, 2009, p. 54). Semelhantemente, os resultados produzidos com fundamento no artigo 27 da Lei nº. 9.868/1999 não têm o condão de retroagir aos casos revestidos pela res judicata, vez que a eficácia contemplada pelo dispositivo legal se aplica aos casos presentes (ex nunc) ou futuros (pro futuro). Nessa hipótese, a exceção acolhida pelo Supremo Tribunal Federal é no sentido de que, nos autos de medida cautelar, a declaração de inconstitucionalidade poderá surtir efeitos retroativos, nos termos do artigo 11, § 1º, segunda parte, do referido diploma, desde que, obviamente, não prejudique a coisa julgada e mantenha intacta a sentença proferida. Esse é o ensinamento do Ministro Gilmar Mendes: [...] poderá ser declarada a inconstitucionalidade com efeito retroativo, desde que sejam preservadas situações singulares (v.g., razões de segurança jurídica), que, segundo entendimento do Tribunal, devam ser mantidas incólumes. [...] Dessa forma, ao lado da ortodoxa declaração de nulidade, há de se reconhecer a possibilidade de o Supremo Tribunal, em casos excepcionais, mediante decisão da maioria qualificada (dois terços dos votos), estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc ou pro futuro, especialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostre inadequada (v.g., lesão positiva ao princípio da isonomia) ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional. (MENDES, 2008, p. 97, grifo nosso). Em tese, os efeitos advindos da sistemática inserida no artigo 27 da Lei nº 9.868/1999 não alcançam a coisa julgada. A propósito, referida normativa tem sido objeto de ação direta de inconstitucionalidade, nos autos da ADI nº 2.258/DF, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB no âmbito do Supremo Tribunal Federal, sob relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence. Tal pretensão consiste justamente em ver declarada inconstitucional a manipulação, pelo Pretório Excelso, dos efeitos da decisão em ação direta de controle. A rigor, se igualmente incabível a retroatividade com base no artigo 52, X, da Constituição Federal, questiona-se a manutenção da sentença proferida no caso

159


concreto, transitada em julgado e respaldada por lei ou ato normativo posteriormente declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, ainda com base nas lições do jurista Gilmar Mendes (2005, p. 99), observa-se a exegese no sentido de que “os atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem suscetíveis de revisão não são afetados pela declaração de inconstitucionalidade.”. O ilustre Ministro ressalta, contudo, a exceção prevista no artigo 621 do Código de Processo Penal, o qual permite a revisão da sentença a qualquer tempo, se esta for contrária a texto expresso da lei penal. No entanto, imperioso ressaltar que, em dissonância com o entendimento do eminente Ministro, não se atribui à coisa julgada a incumbência de ocultar os vícios de inconstitucionalidade que revestem a sentença proferida ou que venham a lhe atingir em virtude da superveniente declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Isso porque o trânsito em julgado da decisão não modifica o conteúdo por ela abrangido e, tampouco, restaura a incompatibilidade constitucional identificada. Por essa posição, são os manifestos dos constitucionalistas Carlos Valder do Nascimento e Lourival Pereira Júnior: Dada a sentença, se impregnada pelo vício da inconstitucionalidade, há de ser expurgada do universo processual, em razão de sua incompatibilidade coma ordem jurídica. A coisa julgada não tem o condão de remover essa patologia que a contamina, por improvável possa a qualidade modificar essência de matéria que não é própria, para convalidar ato jurisdicional nulo. Se assim é, qualquer iniciativa tendente a desconsiderar esse enunciado parece fadada a não atingir seu desiderato. (NASCIMENTO; PEREIRA JÚNIOR, 2008, p. 53) Ademais, é de ser reconhecida a possibilidade de retroação dos efeitos advindos da declaração de inconstitucionalidade de atos inconstitucionais, ainda que revestidos pela coisa julgada, em paradigma a entendimento firmado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC - APL: 326992 SC 2005.032699-2, Relator: Newton Trisotto, Data de Julgamento: 29/11/2005, Segunda Câmara de Direito Público), que, nos autos de apelação cível, entendeu por bem desconstituir atos praticados com base no artigo 14 do ADCT da Constituição do Estado de Santa Catarina, cuja inconstitucionalidade fora posteriormente declarada pelo Supremo Tribunal Federal. 160


Com base nessas considerações, verifica-se que a lacuna deixada pelo legislador originário impossibilita, diante de casos atípicos, o desfazimento de sentenças maculadas pelos vícios de inconstitucionalidade. Nessa asserção, justamente em virtude da preclusão temporal para a postulação do direito abarcado pela coisa julgada, ou, principalmente, em atenção aos limites dos efeitos ordinariamente produzidos em sede de controle para análise de possível incompatibilidade constitucional, a respectiva decisão a ser proferida pelo Pretório Excelso pode não retroagir para alcançar casos em que se evidenciem, de plano, acometidos de danos ou prejuízos. 3.3

Segurança jurídica versus efetividade da justiça Ao conferir a garantia prevista no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal,

qual seja a segurança jurídica das decisões, o legislador originário presumiu a manutenção da estabilidade dos julgados proferidos pelos juízos competentes com vistas à solução definitiva das questões litigiosas. Contudo, circunstâncias controversas podem sujeitar a imutabilidade dessas decisões à violação de demais princípios estabelecidos pela Carta Maior que, eventualmente, podem ser lastreados de maior estima. Por outro lado, o Código de Processo Civil, em seu artigo 467, atribui à coisa julgada material a propriedade de “imutabilidade” e “indiscutibilidade” da sentença da qual não caiba mais recurso. Sob essa perspectiva, denota-se a possibilidade da incidência de conflitos entre dois preceitos indispensáveis à organização jurisdicional: a segurança jurídica das decisões e a efetividade da justiça. A colisão, nesses casos, se consubstancia nas hipóteses em que se poderia sobrelevar um dos princípios, à míngua da satisfação de outro. Nesse sentido, apenas a título de demonstração, confira-se o seguinte caso concreto em sua substância: A ADI nº 2.316-1, proposta pelo Partido da República – PR, tramita no âmbito do

Supremo

Tribunal

Federal,

tendo

como

pretensão

a

declaração

de

inconstitucionalidade do artigo 5º da Medida Provisória 2.170-36/2001, sob o fundamento de que a normativa estaria violando os aspectos formais exigidos pelo artigo 192 da Constituição Federal. Em síntese, o teor do dispositivo constitucional exige que o sistema financeiro nacional seja regulado por lei complementar. A Medida 161


Provisória, contudo, dispõe sobre a matéria, excedendo a restrição normativa. Estaria aí a inconstitucionalidade suscitada. Não obstante, a questionada providência permite, ainda, a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano, em confronto com a Súmula nº 121 do Supremo Tribunal Federal, que veda expressamente a prática do anatocismo, ainda que expressamente convencionado. Em decisão interlocutória, o eminente Ministro Sydney Sanches, relator da ação, deferiu a liminar requerida nos autos da ADI nº 2.316-1 para suspender a eficácia do artigo 5º, caput e parágrafo único, da Medida Provisória 2.170-36/2001. A jurisprudência atual, contudo, vem admitindo a prática da capitalização de juros pelas instituições financeiras até que sobrevenha decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal nos autos da aludida ação (TJDFT, Acórdão nº 642452, 20120110253486APC, 4ª Turma Cível, Relator: Luciano Moreira Vasconcellos). Dessa forma, não obstante a expressa incompatibilidade constitucional identificada, o respectivo trânsito em julgado das ações ajuizadas em sede de controle difuso, tendo como objeto tanto a devolução das quantias pagas de forma abusiva pelos consumidores em contratos de financiamento quanto a declaração incidental de inconstitucionalidade da medida provisória em exame, impedirá a restituição dos valores indevidamente pagos, se pleiteada fora do prazo de dois anos previsto para a ação rescisória, ainda que a decisão definitiva do Pretório Excelso confirme, posteriormente, a liminar para suspender a eficácia do artigo 5º da Medida Provisória 2.170-36/2001. Ressalte-se, pois, que a ação rescisória decorrente da declaração de inconstitucionalidade de uma lei perante o Supremo Tribunal Federal, superveniente à coisa julgada a ela vinculada e justaposta ao decurso do prazo de 2 (dois) anos para a sua propositura, não se enquadra na técnica prevista no artigo 485, V, do Código de Processo Civil e em nenhuma outra hipótese típica de impugnação. Em contrapartida, Teresa Arruda Alvim considera que, nesse caso, “a lei, expurgada do sistema jurídico, não existe. A rescindibilidade se daria com fulcro nos arts. 485, V, e 458, combinados.” (WAMBIER, 2007, p. 389, grifos no original). Entretanto, em entendimento controverso, resta afastada a hipótese da teoria da inexistência e considera-se a teoria da nulidade do ato inconstitucional (BARROSO, 162


2006, p. 35), conforme demonstrado no item anterior, razão pela qual não há que se falar em ação rescisória. Assim, a título de provável hipótese, poder-se-ia chegar à conclusão de que uma demanda julgada com base em lei que, após o trânsito em julgado da sentença, viesse a ser declarada inconstitucional, estaria a depender de a Suprema Corte fazê-lo antes do decurso do prazo decadencial previsto no artigo 495 do CPC. Ante o caso específico, a manutenção da coisa julgada tornada inconstitucional em virtude de superveniente declaração do Supremo Tribunal Federal, nos autos de ação direta, pode ensejar prejuízo irreparável à parte que, em tese, teria direito à pretensão postulada na lide, seja no pólo ativo ou passivo da demanda. Por oportuno, mais viável seria restringir a relativização da sentença inconstitucional transitada em julgado aos casos de ampla repercussão geral, os quais incutam à sociedade grave dano ao sentimento de justiça e que possam trazer prejuízos irreversíveis aos interessados. Sobre o assunto, já se manifestou com propriedade o jurista Alexandre Freitas Câmara: [...] apenas seria possível a relativização da coisa julgada material quando houvesse fundamento constitucional para tanto. Em outros termos, apenas seria possível desconsiderar-se a coisa julgada quando a mesma tenha incidido sobre uma sentença inconstitucional. Trata-se, em outros termos, de reconhecer o fenômeno que em doutrina tem sido chamado de ‘coisa julgada inconstitucional’, mas que mais bem se chamaria sentença inconstitucional transitada em julgado. A rigor, o que contraria a Constituição não é a coisa julgada, mas o conteúdo da sentença. (CÂMARA, 2008, p. 466, grifo no original). Sob esse entendimento, observa-se que o respeitável jurisconsulto restringe a relativização da coisa julgada à inconstitucionalidade das decisões judiciais, mormente, ao conteúdo contrário à Lei Maior constante do decisum. Não há, de fato, que se contrariar tal entendimento. Isso porque, ao se relativizar a coisa julgada, deve-se fazê-la sem violação ou prejuízo à estrutura jurídica processual e constitucional, sob o risco de sujeitar a garantia da segurança jurídica, prevista no artigo 5º, XXXVI, CF, ao risco da supressão decorrente de reiterados litígios já esgotados pela respectiva instância. A reanálise exaustiva dessas questões em virtude da mera insatisfação da parte perdedora violaria o 163


princípio constitucional da celeridade processual, também contemplado pela Magna Carta, vez que sujeitaria o Judiciário a processos intermináveis e reiteradas impugnações. Por outro lado, não há que se conferir, como em qualquer outro direito assegurado pelas normas legais, caráter absoluto à segurança jurídica das decisões. A rigor, a inflexibilidade da coisa julgada diante de casos de grave injustiça enseja a possibilidade de se superestimar a segurança jurídica em detrimento do sentimento de justiça consagrado pela ordem vigente e, principalmente, pelo valor social. Nesse contexto, imperioso ressaltar entendimento dos processualistas Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria: Negar simplesmente a relativização da intangibilidade da coisa julgada inconstitucional seria negar a própria Supremacia da Constituição e admitir a existência de um poder sem limitação. Seria conferir aos juízes o poder limitado de decidir, ainda que contrariamente à Constituição, visto que o vício da inconstitucionalidade seria sanável com a res judicata e se tornaria soberanamente irremediável após o decurso do prazo da ação rescisória. (THEODORO JÚNIOR; FARIA, 2008, p. 164, grifo no original). Por essa razão, em conformidade com o entendimento dos eminentes juristas, forçoso reconhecer a possibilidade de se relativizar a sentença transitada em julgado ante a superveniente declaração de inconstitucionalidade da lei que a fundamentou. Deve-se, dessa forma, evitar a incoerência entre as normativas contempladas pela Constituição Federal e a prestação jurisdicional no caso concreto, atentando-se, contudo, à observância ao caráter predominantemente restritivo da relativização. Vale reiterar, essa sistemática não deve ser corriqueiramente aplicável a qualquer caso submetido ao Poder Judiciário, sob pena de se causar embaraços à autenticidade e efetividade das decisões. Sobre a excepcionalidade da relativização da intangibilidade da coisa julgada, ainda com base nos entendimentos de Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria, confira-se: [...] Destarte, não se sustenta a admissibilidade da relativização da coisa julgada como uma panacéia capaz de ser adotada em toda e qualquer hipótese e em razão de simples alegação subjetiva de injustiça! Trata-se de premissa que se deseja esclarecer em razão de alguns equívocos e/ou deturpações da

164


tese inicial por nós defendida. (THEODORO JÚNIOR; FARIA, 2008, p. 170). Compartilhando do mesmo entendimento, Cândido Rangel Dinamarco igualmente

restringe

a

relativização

a

casos

excepcionalmente

injustos

e

inconstitucionais considerando-a um trato extraordinário, cuja incidência recairá sobre os casos em que se pretenda: [...] afastar absurdos, injustiças flagrante, fraudes e infrações à Constituição – com a consciência de que providências destinadas a esse objetivo devem ser tão excepcionais quanto é a ocorrência desses graves inconvenientes (DINAMARCO, 2003, p. 265). Portanto, tem-se que tanto a inconstitucionalidade presente no caso concreto quanto a injustiça decorrente da referida manutenção constituem requisitos essenciais para, excepcionalmente, se relativizar a coisa julgada. Observa-se, dessa forma, que a relativização não decorre tão somente da injustiça identificada na questão em dissídio, uma vez que “a insustentabilidade da força da res judicata não seria conseqüência da injustiça da sentença apenas, mas sempre e necessariamente de sua incompatibilidade com a Constituição Federal” (THEODORO JÚNIOR; FARIA, 2008, p. 171, grifo no original). Em rigor, a relativização da coisa julgada busca, portanto, tão somente expurgar do ordenamento jurídico pátrio as sentenças eivadas de inconstitucionalidade, na medida em que se opera uma prestação jurisdicional justa, tendo em vista até mesmo prevenir a abertura de precedentes. A propósito, a manutenção da coisa julgada inconstitucional não se justifica exatamente em virtude de sua colisão com a Lei Maior. Não se pretende, por meio dela, ofuscar o princípio da segurança jurídica das decisões, mas principalmente promover a efetividade da justiça quando da prestação jurisdicional. Desse modo, há tempos outrora, Giuseppe Chiovenda já defendia a relativização da coisa julgada justificando-a da seguinte forma: Que a lei admita a impugnação da coisa julgada, nada tem, em si, de infenso à razão, pois que, efetivamente, a própria autoridade da coisa julgada não é absoluta e necessária, senão estabelecida por propósito de utilidade e oportunidade, e de tal forma que tais propósitos podem, uma que outra vez, aconselhar-se o sacrifício, para evitar o inconveniente e o mal

165


maior, que resultariam da manutenção de uma sentença intoleravelmente injusta. (CHIOVENDA, 1969, p. 274) De modo semelhante, posicionam-se os juristas franceses Alessandro Pizzorusso e Paolo Passaglia que, em ensaios sobre o tema, consideraram a segurança e a certeza jurídicas insuficientes para demover a inconstitucionalidade existente em uma sentença: [...] a sentença violadora da vontade constituinte não se mostra passível de encontrar um mero fundamento constitucional indirecto para daí retirar a sua validade ou, pelo menos, a sua eficácia na ordem jurídica como caso julgado. Na ausência de expressa habilitação constitucional, a segurança e a certeza jurídicas inerentes ao Estado de Direito são insuficientes para fundamentar a validade de um caso julgado inconstitucional. (PIZORUSSO; PASSAGLIA, 2000, p. 225) Nesse sentido, em que pesem os posicionamentos controversos, não parece razoável sujeitar direitos expressamente violados por sentença inconstitucional à inflexibilidade

da

segurança

jurídica.

Ressalva

seja

feita

quanto

à

sua

imprescindibilidade no ordenamento jurídico, conforme já demonstrado, eis que plenamente inescusável a mitigação da coisa julgada pela mera insatisfação da parte perdedora. No entanto, entre a ponderação de todos os princípios constitucionais lastreados pela Constituição Federal de 1988 e diante de expressa injustiça na análise de casos concretos, a dignidade da pessoa humana, a qual norteia todos os fenômenos da ordem jurídica, parece revelar-se como o princípio de estima sobressalente. CONCLUSÃO O presente estudo teve por finalidade analisar a possibilidade de relativização da coisa julgada nos casos de leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, analisando, com base em entendimentos doutrinários, jurisprudenciais, bem como por meio de casos concretos, as hipóteses em que a incidência dessa sistemática seria possível. Em verdade, a segurança jurídica das decisões, prevista no artigo 5º, XXXVI, da atual Constituição Federal, consolida a efetividade da sentença terminativa ou definitiva no âmbito do Poder Judiciário. Deste modo, não se olvida que se mostra plenamente indispensável a existência, no ordenamento jurídico, do princípio consagrado pela Carta Maior, vez que tem como premissa assegurar a estabilidade das 166


decisões proferidas pelos juízos competentes, de modo a evitar sucessivas e intermináveis impugnações no Judiciário. Com efeito, evidenciou-se o seu caráter de imutabilidade de decisões proferidas definitivamente pelos juízos competentes. Além disso, com vistas a demonstrar os meios ordinários e legais de impugnação das decisões respaldadas pela res judicata, foram analisadas a ação rescisória, estabelecida de modo expresso no artigo 485 do Código de Processo Civil, e a denominada querela nullitatis, que tem lugar quando o vício se consubstancia sobre os aspectos processuais da demanda, especialmente no que se refere à ausência de citação. O ordenamento estabelece, ainda, como forma ordinária de impugnação da decisão transitada em julgado, a ação anulatória prevista no artigo 486 do Código de Processo Civil, cuja análise não se mostrou relevante à matéria, haja vista o seu conteúdo se restringir à anulação de meros atos procedimentais das partes ou de decisões homologatórias que não comportam juízo de mérito. Para justificar a relativização da coisa julgada inconstitucional, nas formas extraordinárias de impugnação, objeto do presente estudo, necessário se fez estudar as leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. Desta feita, restou evidente que o controle de constitucionalidade no Brasil é exercido sob o sistema jurisdicional misto, que se subdivide na forma dos controles difuso e concentrado. Estes, por sua vez, comportam, respectivamente, a ação interposta por qualquer legitimado no caso concreto e processada e julgada por qualquer órgão ou tribunal pela via incidental, bem como as ações propostas exclusivamente pelas pessoas elencados no artigo 103 da Constituição Federal, tendo como competência tão somente um único e determinado órgão jurisdicional pela via principal da ação. Restou evidente, ainda, que o Brasil, por influência do sistema norte-americano adotado por Marshall, submete-se à teoria da nulidade, que considera nula toda norma infraconstitucional em contrário à Constituição e produz, em regra, efeitos ex tunc – efeito retroativo. Assim, não subsistiu a teoria da anulabilidade, a qual permitiria a convalidação de atos tidos como inconstitucionais. No que tange à eficácia das decisões proferidas em sede de controle difuso, concluiu-se que estas, em regra, terão efeito inter partes, ressalvadas as exceções previstas em lei. Diferentemente, as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal 167


produzirão efeito predominantemente erga omnes, vinculando o Poder Judiciário e todos os demais órgãos da Administração Pública federal, estadual e municipal. Ademais, compreendeu, ainda, como objeto de estudo a modulação dos efeitos da decisão, prevista no artigo 27 da Lei nº 9.868/99, o qual possibilita ao Supremo Tribunal Federal estabelecer que determinada declaração de inconstitucionalidade nos autos de ação direta só produza efeitos a partir de momento oportuno, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social. Do mesmo modo, buscou-se analisar a possibilidade de relativização da coisa julgada nos casos de leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, questionando-se, sob essa égide, o conflito entre a manutenção da coisa julgada inconstitucional, ainda que com base na segurança jurídica das decisões, prevista no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, e o prejuízo do sentimento de justiça contemplado pelo ordenamento jurídico. Para tanto, com vistas a elidir a teoria da inexistência de sentença inconstitucional e reforçando a adoção, pelo Brasil, da teoria da nulidade, acentuou-se que as decisões respaldadas por lei ou ato normativo em desconformidade com a Constituição Federal existem no plano jurídico e sujeitam-se, ordinariamente, ao respectivo trânsito em julgado da decisão. Portanto, evidente a incidência da nomenclatura e natureza jurídica de “sentença inconstitucional transitada em julgado”. Quanto à retroatividade dos efeitos produzidos pela superveniente declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, demonstrou-se que, dentre os estudos dos possíveis efeitos existentes, o legislador originário não previu, de modo expresso, situações nas quais o posterior reconhecimento de incompatibilidade da normativa com a Magna Carta pudesse retroagir aos casos concretos revestidos pela res judicata, quando precluso o lapso temporal de dois anos previstos para a ação rescisória. Por fim, tendo em vista a relativização da coisa julgada inconstitucional, pretendeu-se demonstrar o embate jurídico entre a segurança jurídica das decisões, prevista no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, e a efetividade jurisdicional da justiça, bem como as hipóteses de cabimento da relativização e respectivo caso concreto. Nessa ocasião, concluiu-se que a flexibilização da intangibilidade da coisa julgada inconstitucional deve se restringir, drasticamente, a casos excepcionais em que 168


estejam presentes, no mínimo, duas hipóteses relevantes: o sentimento de injustiça demonstrado em evidência e a existência de inconstitucionalidade do ato jurisdicional. Dessa forma, a proposta do presente estudo consistiu em demonstrar que o trânsito em julgado de uma decisão não justifica a inconstitucionalidade por ela respaldada, principalmente quando verificada a violação a princípios de maior relevância que não a segurança jurídica. Ressalte-se a desconsideração deste princípio tão somente em casos extremamente excepcionais, porquanto não se deve afastá-lo em hipótese alguma quando não demonstrada relevância suficiente para tanto. Portanto, tratando-se da manutenção da res judicata, se em contrária às normativas constitucionais e, concomitantemente, à regular finalidade da prestação jurisdicional, a relativização, nesses casos, se revela imprescindível ao reconhecimento de que, ante a ponderação dos princípios consagrados pela Magna Carta, a Supremacia da Constituição não deve ser transgredida e, tampouco, deve-se predominar a segurança jurídica das decisões ante a violação do princípio da dignidade da pessoa humana. REFERÊNCIAS ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 17. ed., rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2009. BRASIL. Código de processo civil (1973). Código de processo civil e legislação correlata. – 6. ed. – Brasília : Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2013. ______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2013. ______. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 set. 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. ______. Lei no 9.868, de 10 nov. 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. ______. Medida Provisória nº 2.170-36/2001, de 23 de agosto de 2001. Dispõe sobre a administração dos recursos de caixa do Tesouro Nacional, consolida e atualiza a legislação pertinente ao assunto e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 24/08/2001. 169


______. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Região 1. Apelação Cível nº 20120110253486. Apelantes: Castro Henrique Silva Vieira e outros. Apelados: os mesmos. Relator: Luciano Moreira Vasconcellos. Brasília, 13 de dezembro de 2012. ______. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Região 5. Apelação Cível nº 326992. Apelante: Evanilde Claudino. Apelado: Estado de Santa Catarina. Relator: Newton Trisotto, Santa Catarina, 29 de novembro de 2005. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. ______. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. BUZAID, Alfredo. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no Direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 18 ed. Rio de Janeiro: Lumen, 2008. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1983. CHIMENTI, Ricardo Cunha. Apontamentos de Direito Constitucional. 3 ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2003. DANTAS, Ivo. Revista Fórum Administrativo. [S.l.]: Fórum, 2002. DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paulo Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. 4 ed. [S.l.]: JusPodivm, 2009. DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2003. DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 14 ed. Espírito Santo: Atlas, 2010. GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Sentenças inexistentes e 'querela nullitatis'. Disponível em: <myrtus.uspnet.usp.br/pesqfdrp/portal/.../fernando/pdf/sentencas.pdf >. Acesso em nov 2013. GANEM, Fabricio Faroni; ZETTEL, Bernardo. Querela nullitatis e coisa julgada inconstitucional no Direito brasileiro: Uma proposta de adequação à teoria dos 170


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172


O INSTITUTO DEMOCRÁTICO DO TRIBUNAL DO JÚRI: UMA VISÃO HISTÓRICA NO ÂMBITO DAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

José Carlos Macedo de Pinto Ferreira Júnior76

RESUMO

O presente artigo tem por escopo demonstrar a evolução do Tribunal do Júri no constitucionalismo brasileiro. O foco principal deste trabalho é demonstrar o reconhecimento do Júri e de suas prerrogativas ao longo das cartas políticas e sua importância como corolário da democracia.

Palavras-chave: Constitucionalismo – ordenamento brasileiro – Júri – histórico – prerrogativas - democracia.

RESUMEN

El alcance de este trabajo es demostrar la evolución del Jurado en el constitucionalismo brasileño. El objetivo principal de este trabajo es demostrar el reconocimiento del Jurado y sus prerrogativas en la Constitución y su importancia como consecuencia de la democracia.

Palabras clave: Constitucionalismo – ordenamiento brasileño - Jurado - la historia – las prerrogativas. la democracia.

76

Doutorando em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA). Especialista

em Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Ambiental. Professor na FACIPLAC-DF e no INESC/CNEC-MG. Advogado. Examinador de Concursos Públicos.

173


INTRODUÇÃO O presente artigo tem por escopo abordar a respeito da intuição do Tribunal do Júri no que pertine aos seus aspectos históricos e prerrogativas no âmbito do constitucionalismo brasileiro. O objetivo principal é demonstrar o reconhecimento do Júri nas constituições brasileiras, bem como, demonstrar como se desenvolveram as suas prerrogativas ao longo de seus textos, em especial, na Constituição democrática de 1988 que se encontra em vigência nos dias hodiernos. Por óbvio, não há como discorrer a respeito do tribunal do Júri sem que se faça uma análise axiológica de âmbito social e constitucional do tema, cabe lembrar que se trata de um julgamento popular, eis que exercido por sete jurados representantes da sociedade naqueles ilícitos penais considerados extremamente graves. Isso, sem sombra de dúvidas, é corolário da democracia. Neste trabalho serão também analisadas algumas normas infraconstitucionais, em especial, códigos criminais de âmbito material e processual e leis esparsas, para que haja uma melhor compreensão do desenvolvimento histórico-jurídico do instituto em solo pátrio.

1 DEFINIÇÃO

O júri é órgão especial do Poder Judiciário de primeira instância, pertencente à Justiça comum, formado por um juiz togado, que é seu presidente, e por 25 cidadãos, que tem competência mínima para julgar os crimes dolosos praticados contra a vida. É temporário porque constituído para sessões periódicas e depois dissolvido, dotado de soberania quanto às suas decisões, tomadas de maneira sigilosa e íntima convicção, sem fundamentação, de seus integrantes leigos77. Quanto à importância do Júri para a democracia, trazem- se as lições de Devlin: Cada júri é um pequeno parlamento. Nenhum tirano deixaria uma matéria como a liberdade nas mãos de doze cidadãos comuns. Portanto, o julgamento

77

CAMPOS, Walfredo Cunha. Tribunal do Júri: Teoria e Prática. São Paulo: Atlas,

2010. p.03. 174


pelo júri, mais do que um instrumento de justiça e do que um princípio constitucional, é a luz que mostra a existência real das liberdades.78

Embora este não seja o objeto deste trabalho, cabe trazer à baila que muitas vozes se manifestam contrariamente ao Júri alegando um total despreparo técnico por parte dos jurados, questionam, destarte, suas decisões, data maxima venia, tal argumento é frágil (para não afirmar ridículo), pois erram os jurados, mas também erram os juízes togados, quantas e quantas vezes são noticiadas nos meios de comunicação erros judiciários absurdos provenientes de sentenças extremamente técnicas, bem fundamentadas e brilhantemente redigidas.

2 A ORIGEM DO TRIBUNAL DO JÚRI

Há divergências doutrinárias quanto à origem do Egrégio Tribunal Popular, das quais a tese mais aceita é a de que o júri nasceu na Inglaterra, na Idade Média, depois de o Concílio de Latrão ter abolido as ordálias e os juízos de Deus, por meio da Charta Magna Libertatum de 1215, imposta pelos lordes ingleses ao Rei João Sem-Terra, para limitar o poder dos monarcas, especialmente do Rei João79. O júri inglês possuía características religiosas, não só pelo fato de serem dozes homens – remetendo aos doze apóstolos de Jesus Cristo -, mas também pelos julgadores, integrantes do júri, serem supostamente dotados da verdade absoluta, quase divina. A própria denominação júri, advém do fato de que o julgamento era realizado por pessoas que juravam dizer a verdade, daí, também o nome de jurado80 As ordálias se referiam ao processo de verificação se o condenado tinha culpa ou não, muito utilizado para acusar diversos estudiosos. Consistia em que, na divergência de testemunhos, remetia-se a verdade para o juízo de Deus, ou seja, Deus salvaria o inocente e puniria o culpado. Por exemplo, colocava-se a mão do acusado numa brasa. Se a mão queimasse, ele era culpado, caso contrário era absolvido. 78

DEVLIN, 1956 apud GOMES, Luiz Flávio; SICA, Ana Paula Zomer. O Tribunal do

Júri no direito comparado. LFG. Nov. 2005. Disponível em: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20051121153633299&mode=print. Acesso em: 01 maio 2012. 79

SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e. Tribunal do Júri: o novo rito interpretado. 2 ed.

Curitiba: Juruá, 2010, p. 26. 80

Ibid., p. 25. 175


Já Nucci81 aponta que as primeiras notícias do júri apareceram na Palestina, onde havia o Tribunal dos Vinte e Três nas vilas em que a população fosse superior a 120 famílias. Esses tribunais conheciam processos criminais relativos a crimes puníveis com a pena de morte. Na Grécia, o denominado Tribunal de Heliastas era a jurisdição comum, reunindo-se em praça pública e composto de cidadãos representantes do povo. No entanto, poucos eram os cidadãos que podiam tomar parte na vida política e social (mulheres, menores, escravos e estrangeiros não eram incluídos). Em Roma o júri atuou sob a forma de juízes em comissão, conhecidos por quoestiones, que era constituído por um corpo de jurados, sob a presidência de um pretor, todos os cidadãos romanos cujos nomes constavam de uma lista oficial, designados sem qualquer participação dos interessados82. Depreende-se desta breve análise que o Tribunal do Júri se desenvolveu na Inglaterra. Em verdade, o foco do júri popular é o julgamento realizado por pessoas do povo, da mesma comunidade do acusado, não se podendo negar tal instituto em tempos mais remotos, como na Grécia e Roma.

3

HISTÓRICO DO TRIBUNAL DO JÚRI NO CONSTITUCIONALISMO

BRASILEIRO Segundo Rangel83 o Júri que atualmente é adotado no Brasil é de origem inglesa em decorrência da própria aliança que Portugal sempre teve com a Inglaterra, em especial, depois da guerra travada por Napoleão na Europa, em princípios do século XIX, contra a Coroa inglesa, com consequências para o reino português. Esclarece o autor84 que na Inglaterra, o Júri apareceu através de um conjunto de medidas destinadas a lutar contra os ordálios (no direito germânico antigo, dizia-se do juízo ou do julgamento de Deus. Era qualquer tipo de prova, da mais variada sorte baseada na crença de que Deus não deixaria de socorrer o inocente, o qual sairia 81

NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2008, p. 41. 82

SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e. Tribunal do Júri: o novo rito interpretado. 2 ed.

Curitiba: Juruá, 2010, p. 25-26. 83

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 17º ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2010, p. 585. 84

Ibid, p.585-586. 176


incólume delas) durante o governo do rei Henrique II (1154-1189) em que, em 1166, instituiu o Writ (ordem, mandado, intimação) chamado novel disseisin (novo esbulho possessório) pelo qual encarregava o sheriff de reunir doze homens da vizinhança para dizerem se o detentor de uma terra desapossou, efetivamente, o queixoso, eliminando, assim, um possível duelo judiciário praticado até aí. Em 1820 Portugal passou por uma grande revolução liberal, afetado por uma crise política e econômica em face da ausência do rei e dos órgãos de governo e resultante da liberdade de comércio de que se beneficiava o Brasil. motivos pelos quais inicia-se um processo de retorno do príncipe Dom João VI a Portugal, o que se dá em 1821, ficando no Brasil o seu filho Pedro85. Em 09 de janeiro de 1822, Dom Pedro, depois de ser instado pela Coroa Portuguesa a voltar para Portugal, resolve permanecer no Brasil e em 7 de setembro do mesmo ano declarou a independência do país, tornando-se imperador, aos 24 anos de idade, e recebendo o título de Dom Pedro I. Declarada a independência do Brasil, as leis portuguesas teriam aplicação no território brasileiro por força do Decreto de 20 de outubro de 1823, desde que não conflitassem com a nossa soberania e com o novo regime. Informa Fernandes86 que o júri foi criado no Brasil pela lei de 18 de junho de 1822, possuindo competência para julgar crimes de imprensa. Tratava-se de órgão composto por 24 juízes de fato, selecionados dentre os homens bons, honrados, inteligentes e patriotas. Informa ainda o autor, que o julgamento poderia ser atacado por apelação ao Príncipe. O júri brasileiro nasceu com a Lei de 18 de julho de 1822, antes, portanto, da independência (7 de setembro de 1822) e da primeira constituição brasileira (25 de março de 1824) e, ainda, sob o domínio português, mas sob forte influência inglesa. Assim, a instituição do Júri apareceu no cenário jurídico brasileiro, exatamente, com a primeira Lei de Imprensa em 1822, tal instituição era competente para tratar de crimes contra a liberdade de imprensa e de opinião.

85

CALMON, apud, RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 17º ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 588. 86

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3. ed. São

Paulo: Revista do Tribunais, 2002, p. 169. 177


Foram adotados os artigos 12 e 13 da Lei portuguesa, em relação às penas, criando-se um júri composto de 24 cidadãos, escolhidos entre os homens bons, honrados, inteligentes e patriotas, com o direito de recusa de dezesseis, por parte dos réus. A apelação era dirigida ao Príncipe. Tal diploma vigorou até 22 de novembro de 1823, pois foi alterado pelo decreto da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Império do Brasil”. A segunda Lei de Imprensa do Brasil manteve o júri no seu inciso 21. O primeiro julgamento pelo Tribunal do Júri foi de João Soares Lisboa, redator do Correio do Rio de Janeiro, que havia sido acusado por José Mariano. O jornalista acabou sendo absolvido pelos seus pares. Ensina Rangel87 que a primeira Constituição da história do Brasil nascia de cima para baixo, ou seja, foi imposta pelo Imperador ao povo, que representava uma minoria branca e mestiça que votava e tinha participação na vida política. Os escravos estavam excluídos de seus dispositivos, até porque eram tratados como coisa. Na época o Brasil passava a ter um governo monárquico, hereditário, constitucional e representativo, inspirando-se na linha democrática européia e dando a D. Pedro I o título de Imperador e defensor perpétuo do Brasil, que foi dividido em Províncias adotando como religião oficial a Católica Apostólica e Romana (arts. 1º a 4º da Constituição do Império). A Constituição Política do Império, promulgada em 25 de março de 1824, ao estatuir sobre o Poder Judiciário, dispôs:

Art.151 – O poder Judicial é independente e será composto de juízes e jurados, aos quais terão lugar assim no cível como no crime, nos caos e pelo modo que os Códigos determinarem. Art. 152 – Os jurados pronunciam sobre o fato e os juízes aplicam a lei.88

Corroborando nesse sentido, esclarece Fernandes 89 que na Constituição do Império o júri foi previsto no título VI, com a composição do poder judicial por juízes

87

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 17º ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2010, p. 589. 88

BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil de 25 de março de 1824.

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm. Acesso em: 15 abr. 2012. 178


de direito e por jurados, cabendo a estes últimos pronunciar-se sobre os fatos e aos primeiros aplicar as leis. Verifica-se que a sua competência foi ampliada, no entanto, o Tribunal do Júri nunca funcionou para atender às questões civis, pois essas eram consideradas complexas por natureza e, para sua solução, seria necessário aos jurados o conhecimento da lei e do direito90. Enquanto os jurados apreciavam o fato, cabia ao Estado, através do juiz, aplicar o direito. A Carta de Lei de 20 de setembro de 1830, que três meses depois seria encampada no âmbito do Código Criminal, manteve a instituição do júri para o julgamento dos delitos de imprensa, em seus artigos 14 e 15, sendo os jurados eleitos pelos vereadores e eleitores. Posteriormente, com o Código Criminal em 18 de dezembro, os princípios contidos na Carta de Lei de setembro foram nele incorporados, passando, assim, os delitos de imprensa, para a esfera dos crimes comuns. Contudo, até o ano de 1832, ao ser sancionado o Código de Processo, os crimes feitos por jornalistas, na parte tocante à competência do júri especial, continuaram a ser julgados por este. Depois disso, houve vários decretos e avisos do Poder Executivo, esclarecendo a forma e a competência para o julgamento dos abusos perpetrados no exercício da liberdade de imprensa. Destaca Fernandes91 que no Código de Processo Penal do Império (1832) foi estabelecida a composição dos conselhos de jurados dos dois júris (júri de acusação e de júri de julgação). Para o júri de acusação, era estipulado um total de 23 membros, e para o júri de sentença, doze. A escolha era feita entre leitores de “reconhecido bom senso e probidade”. Após a decisão do 1º Conselho, podiam os réus ser acusados perante o 2º Conselho.

89

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3. ed. São

Paulo: Revista do Tribunais, 2002, p. 169. 90

BEZERRA FILHO, Aluízio. Tribunal do Júri: Homicídios. Curitiba: Juruá, 2001, p.

30. 91

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3. ed. São

Paulo: Revista do Tribunais, 2002, p. 169. 179


Esclarece Rangel

92

que com a exclusão da maioria da população e a

concentração do poder nas mãos do Imperador demonstrava-se o clima, dentro do qual nosso Código de Processo Criminal do Império fora elaborado, em 1832.

Na segunda metade de 1823, a oposição ao imperador tanto na Assembléia Constituinte quanto na imprensa tornou-se cada vez mais forte. Em 12 de novembro de 1823, a Assembléia foi dissolvida à força e, entre outros, José Bonifácio e seus irmãos mais jovens e mais liberais, foram presos e banidos para a França. O próprio Dom Pedro criou imediatamente um Conselho de Estado, que rapidamente redigiu uma constituição. Os Senadores eram escolhidos pelo imperador a partir de listas tríplices de eleitos nas províncias e seus mandatos eram vitalícios. Para participara das eleições primárias, o votante devia ter uma renda liquida anual de 100 mil-réis, proveniente de bens ou de emprego; os eleitores deviam ter uma renda mínima de 200 milréis. O imperador nomeava os juízes do supremo tribunal.

Ensina Mameluque 93 que a partir de 1835 surgiram várias alterações no procedimento do Tribunal do Júri que, em virtude do seu aspecto democrático, passou a sofre restrições por parte da monarquia e de seus setores políticos mais conservadores até ser novamente renovado pela reforma processual de 1871. Explicita Nucci 94 que com o advento da Proclamação da República houve a manutenção do júri no Brasil, sobre a influência da Constituição Americana. Sendo criado ainda, júri federal através do Decreto 848, de 1890. Destarte, com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o Brasil passou a se aproximar mais dos Estados Unidos e a se afastar da Inglaterra, que não via com bons olhos a República. A aproximação do Brasil com os Estados Unidos tinha o objetivo de fazer com que houvesse apoio para que o Brasil se tornasse a primeira potência sul-americana, exigindo, assim, uma Constituição aproximada desses novos ideais políticos, econômicos e sociais. Mameluque 95 esclarece que com a proclamação da República foi mantido o Tribunal do Júri, que foi recepcionado pela Constituição de 1891 e pela Constituição de 1934.

92

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 17º ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2010, p. 589-590. 93

MAMELUQUE, Leopoldo. Manual do Novo Júri. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2008, p. 34. 94

NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2008, p. 43. 180


Na primeira Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, o júri era colocado dentro do título referente aos cidadãos brasileiros e na secção da declaração dos direitos, estabelecendo, no seu art. 72, §31, que era mantida a instituição do júri. Tal assertiva fez com que se sustentasse que a Constituição, quando mantinha o júri, impedia que leis posteriores pudessem alterar sua essência e, caso assim o fizessem, seriam inconstitucionais. Este, contudo, foi, na época, o entendimento do STF. Proclamada a República, o júri foi regulado no Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, organizando a Justiça Federal e criando o júri federal com doze jurados, sorteados dentre trinta e seis cidadãos do corpo de jurados estadual da comarca. Na Constituição brasileira de 1891, a referência do Júri já se não situou no capítulo do Poder Judiciário, mas, sim, no da declaração de Direitos. Portanto, o júri foi mantido através da Emenda Constitucional do Art. 72, §31. Houve muitas controvérsias para caracterizar o júri. Na realidade foi um grande avanço da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de Rui Barbosa), onde, em seu art. 72, expõe a vontade do legislador de manter o Tribunal do Júri, resguardando, todavia, sua soberania. Destarte, começava-se a tratar o Júri como direito e garantias individual, uma característica da cultura liberal. Já a Constituição brasileira de 16 de julho de 1934 alterou, em parte, o antigo texto sobre o júri, pois no seu art. 72, e debaixo da rubrica Do Poder Judiciário, vinha estatuído: “É mantida a instituição de Júri, com a organização e atribuições que der a lei. Menciona Rangel96 que a Constituição de 1934 inspirava-se no modelo alemão de Weimar (cidade onde a Constituição foi elaborada), ou seja, na República que existiu na Alemanha entre o fim da Primeira Guerra Mundial e a ascensão do nazismo. Nesse ambiente político, o júri ingressa na Constituição de 16 de julho de 1934 (art. 72. É mantida a instituição do júri, com a organização e as atribuições que lhe der a

95

MAMELUQUE, Leopoldo. Manual do Novo Júri. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2008, p. 34. 96

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 17º ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2010, p. 600. 181


lei) em pleno governo provisório de Getúlio Vargas, após a chamada Revolução de 1930, em que Whashington Luís, foi basicamente deposto. Interessante notar que, na constituição de 1934, o júri estava dentro do capítulo do Poder Judiciário e não mais na declaração de direitos do cidadão, como na Constituição de 1891. Na verdade, a Constituição de 1934 avançou muito, pois confiou ao critério do legislador ordinário, não só a organização do Júri, mas também a enumeração das suas atribuições. Na Constituição brasileira de 1937 nada fora disposto a respeito do Tribunal do Júri. Em verdade a ditadura empregada por Getúlio Vargas promoveu o mais violento ataque contra o Tribunal do Júri já realizado em solo brasileiro, uma vez que a Constituição brasileira de 1937 possibilitou uma discussão quanto à possível extinção do Júri. Esclarece Torres97 a respeito da omissão sobre Júri na Constituição de 1937 e sua manutenção no ordenamento jurídico:

O democratismo, liminarmente expresso de que o poder político emana do povo e é exercido em nome dele, seria bastante para justificar a manutenção da participação popular no Tribunal do Júri... e continuam em vigor enquanto não revogadas as leis que, explicita ou implicitamente, não contrariarem as novas disposições... com o júri, também não foram abolidos os institutos de mandado de segurança, das juntas comerciais dos Estados, dos conselhos penitenciários, embora não referido.

No ano subsequente, em 1938, o Júri passou a ser regulamentado expressamente através de Decreto-Lei nº167 que foi a primeira lei nacional de Processo penal do Brasil republicano. Nesse sentido explicita Torres98 que o Tribunal do Júri foi instituído em toda federação, isso em razão da nova unidade processual penal estampada na Constituição. Em verdade, o decreto regulamentou a instituição do júri com uma grande novidade: o veredicto dos jurados deixava de ser soberano, admitindo apelação da decisão dos jurados desde que houvesse injustiça da decisão, por sua completa divergência, com as provas existentes nos autos ou produzidas em plenário (art. 92, b) 97

Torres apud LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2006, p.35. 98

Torres apud LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2006, p.35. 182


podendo o Tribunal de Apelação (hoje Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal) aplicar a pena justa ou absolver o réu (art. 96). Segundo Silva99, o Decreto-lei 167, de 1938 é considerado marco importante a respeito da matéria, pois muitas das características do Tribunal do Júri definidas àquela época perduram até hoje, como é o caso da redução do número de jurados. No entanto, faz forte crítica, tratando como “um retrocesso sensível (entendível, considerando ser um governo absolutista)”, face à quebra da soberania dos veredictos. Segundo o autor100, caso o Tribunal de Apelação decidisse que a sentença teria sido equivocada, poderia modificá-la, inclusive absolvendo o acusado, analisando o mérito da decisão e não somente ficar adstrito a anular ou não o julgamento. Não obstante as críticas, foi considerada a primeira lei nacional de processo penal da República brasileira que, nos seus principais artigos, dizia:

Art. 2º O Tribunal do Juri compõe-se de um juiz de direito, que é o seu presidente e de vinte e um jurados, sorteados dentre os alistados, sete dos quais constituirão o conselho de sentença em cada sessão de julgamento. Art. 3º Ao presidente e aos jurados competem, respectivamente, a pronúncia e o julgamento, nos crimes definidos pelos artigos 294 a 296, 298, 298 parágrafo único, 299, 310, 359 e 360 parte primeira da Consolidação das Leis Penais, quando consumados ou tentados. Art. 7º Os jurados devem ser escolhidos dentre os cidadãos que, por suas condições, ofereçam garantias de firmesa, probidade e inteligência no desempenho da função. Art. 10. Anualmente serão alistados pelo juiz presidente do Juri, mediante escolha por conhecimento pessoal ou informação fidedigna, e sob sua responsabilidade, tresentos a quinhentos jurados no Distríto Federal e comárcas de mais de cem mil habitantes, e cento e vinte a tresentos nas comárcas ou nos têrmos de menor população. Art. 75. Fechadas as portas, o conselho, sob a presidência do juiz, assistido do escrivão, que servirá de secretário, do promotor e do advogado, que se conservarão nos seus lugares, sem intervir nas discussões e votações, e de dois oficiais de justiça, passará a votar os quesitos que lhe forem propostos observada completa incomunicabilidade dos jurados. Art. 84. As decisões do Juri serão tomadas por maioria de votos. Art. 92. A apelação somente pode ter por fundamento: a) nulidade posterior à pronúncia; b) injustiça da decisão, por sua completa divergência com as provas existentes nos autos ou produzidas em plenário. Art. 96. Si, apreciando livremente as provas produzidas, quer no sumário de culpa, quer no plenário de julgamento, o Tribunal de Apelação se convencer

99

SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e. Tribunal do Júri: o novo rito interpretado. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2010, p.27. 100 Ibid., p.27.

183


de que a decisão do júri nenhum apôio encontra nos autos, dará provimento à 101 apelação, para aplicar a pena justa, ou absolver o réu, conforme o caso.

Assim, em vigor o Código de Processo Penal, os procedimentos perante o Júri foram amplamente regulados, bem como a organização e composição do tribunal popular. Permaneceu, porém, o Decreto-lei nº167, como sendo legal a base da instituição. Com a democratização perpetuada pela Constituição de 18 de setembro de 1946, restabelecida ficou a soberania dos veredictos do júri, eclipsada pelo decreto-lei n.º 167 de 1938, pois o artigo 141, § 28 da CF de 1946102, dispôs que:

Art. 141 § 28. É mantida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar o número dos seus membros e garantido o sigilo das votações, a plenitude da defesa do réu e a soberania dos veredictos. Será obrigatória da sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Martins, Knippel e Zelante103 afirmam que com o advento da Carta Maior de 1946 o júri foi reinserido no capítulo de direitos e garantias individuais, restando expressamente assegurado os princípios da soberania dos veredictos, do sigilo das votações e plenitude de defesa, todos com status constitucional. Esclarece Lima104 que apesar de várias tentativas, entre 1948 e a Constituição de 1967, por parte do legislativo de, através de projeto lei, tentar enfraquecer ou abolir o

101

BRASIL. Decreto-lei nº 167, de 5 de janeiro de 1938. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1937-1946/Del0167.htm. Acesso em: 15 abri. 2012. 102

BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 18 de setembro de

1946. Disponível em; http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm. Acesso em: 15 abr. 2012. 103

MARTINS, Ana Paula da Fonseca Rodrigues; KNIPPEL, Edson Luz; ZELANTE,

Henrique. Procedimentos Penais: Uma visão de defesa sobre os procedimentos ordinário, sumário e do júri. São Paulo: Atlas, 2010, p.52. 104

LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2006, p.36. 184


júri, este bravamente resistiu, inclusive sendo previsto na Carta Constitucional de 1967 (em plena ditadura militar). Nesse sentido, dispunha o artigo 150, §18105:

Art. 150 – a constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes do pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) §18 – são mantidas a instituição e a soberania do júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Com a Lei de Imprensa nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, que entrou em vigor no dia 14 de março, o júri foi, definitivamente, abolido do ordenamento para os crimes de imprensa. Menciona Lima106 que a mais visada das garantias sofreu um duro golpe no ano de 1969, como se vê:

Porém, a mais visada das garantias do júri, que era a “soberania dos veredictos”, sofreu duro golpe com a emenda constitucional nº1 de 1969, que retirou tal expressão da previsão constitucional do Tribunal do Júri, só salientando que: é mantida a instituição do júri, que terá competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida, e, assim, passou-se a questionar da possibilidade de os Tribunais de Justiça reformarem as decisões proferidas pelos juízes leigos, apesar de a doutrina majoritária manter o entendimento de que permanecia a soberania dos veredictos em vista do Código de Processo Penal, de 1941, que, assim continuava, em vigor.

Cabe esclarecer que com o advento da Constituição de 05 de outubro de 1988, o legislador constituinte originário passou a prever expressamente a soberania dos veredictos como princípio informador do Tribunal do Júri. Segundo Nucci107 em 1988 visualizando-se o retorno da democracia no cenário brasileiro, novamente previu-se o júri no capítulo dos direitos e garantias individuais, trazendo de volta os princípios da Carta de 1946. Na mesma linha Capez108 explica que como direito e garantia fundamental que é não poderá ser suprimido nem sequer por Emenda Constitucional, constituindo 105

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm. Acesso em: 15 abr. 2012. 106

LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2006, p. 36. 107

NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2008, p. 44. 185


verdadeira cláusula pétrea (núcleo constitucional intangível). Tudo por força da limitação material explícita contida no artigo 60, §4º da Constituição Federal109.

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.

Segundo o professor Tourinho Filho110, o traço marcante do Tribunal do Júri no Brasil consiste na divisão dos poderes conferidos, ao juiz togado e aos jurados. Cabe aos jurados exclusivamente julgar a causa e aos juízes togados lavrar a sentença. Cabe esclarece que não é adotado em solo brasileiro o chamado sistema escabinado, sobre uma possível confusão entre este sistema e o Tribunal do Júri no Brasil, esclarece Bonfim111:

Não há confundir, porém o Tribunal do júri com o escabinado, órgão também heterogêneo composto por juízes togados e leigos. A principal diferença assenta nas atribuições funcionais conferidas a seus membros: no escabinado tanto os juízes de direito quanto os juízes leigos julgam o caso e fixam as penas (com algumas variações, é o sistema adotado na França, Suíça, Alemanha, Itália, Portugal e Grécia), não havendo aquela separação horizontal de funções encontradas no júri.

3.1 OS PRINCÍPIOS INFORMADORES DO JÚRI NA CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA DE 1988

Hodiernamente a Constituição de 1988 reconhece a instituição do Júri e seus princípios em seu art.5º, XXXVIII: “é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude da defesa; b) o sigilo das 108

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2011,

p. 632. 109

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 15 abr. 2012. 110

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 11. ed.São

Paulo: Saraiva, 2009, p. 720. 111

BONFIM, Edilson Mougenot.Curso de Processo Penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 496. 186


votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.” Quanto à plenitude de defesa, trata-se da possibilidade de o acusado se opor àquilo que se afirma contra ele. Os juízes de fato não decidem por livre convicção, e, sim, por íntima convicção, sem fundamentar de forma secreta e respondendo somente perante a consciência de cada um. É por causa disso que existe, só no Júri, plenitude de defesa, pois o defensor poderá usar de todos os argumentos lícitos para convencer os jurados. No Tribunal popular, todas as ponderações, indagações e atitudes do advogado estão ligadas umbilicalmente à plenitude defensória exercida no Júri. Segundo Martins, Knippel e Zelante112, precipuamente, vale destacar que não por acaso o legislador se valeu de dois termos distintos, para caracterizar a ampla defesa e a plenitude de defesa, segundo eles é necessário frisar que pleno é mais intenso que amplo, tendo, portanto, pretendido o legislador assegurar um universo maior de recursos defensivos em favor daquele que é processado perante o Tribunal do Júri. Esse princípio requer que o trabalho do defensor esteja acima da média, seja o mais perfeito possível, seja irretocável, cabendo ao promotor e ao juiz, como fiscais do cumprimento da lei, sejam vigilantes quanto ao desempenho do advogado, devendo, caso a defesa seja sofrível, requerer (o promotor) ou determinar (o juiz), a dissolução do Conselho de Sentença, por se considerar o réu indefeso, nos termos do artigo 497, inciso V, do Código de Processo Penal brasileiro113. A razão da plenitude de defesa dá-se porque o jurado não precisa fundamentar suas decisões assim, é legítimo que o réu, por meio da defesa técnica, ou até mesmo de sua auto-defesa possa explorar todos os recursos a seu alcance, respeitando, por óbvio as margens da lei. Quanto ao princípio do sigilo das votações ensina Bonfim 114 que o veredicto deverá resultar das respostas dadas aos quesitos formulados pelo juiz presidente. Na 112

MARTINS, Ana Paula da Fonseca Rodrigues; KNIPPEL, Edson Luz; ZELANTE,

Henrique. Procedimentos Penais: Uma visão de defesa sobre os procedimentos ordinário, sumário e do júri. São Paulo: Atlas, 2010, p. 55. 113

BARROS, Francisco Dirceu. Teoria e Prática do Novo Júri. Rio de Janeiro:

Elsevier, 2009, p.08. 114

BONFIM, Edilson Mougenot.Curso de Processo Penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 496. 187


sala secreta, os jurados irão votar sigilosa e monossilabicamente (sim ou não), um a um, os quesitos que lhes serão formulados pelo Juiz Presidente, em forma de questionário. Preservando-se os segredos dos votos. Assim, os jurados uma vez sorteados devem manter a incomunicabilidade durante o julgamento. Uma vez que lhes compete, dentro das expressas permissões do procedimento especial do júri, a busca de elementos capazes de permiti-lhes o esclarecimento com intuito de adquirir um veredicto justo em sua decisão dos fatos. No caso do Júri, busca-se resguardar a serenidade dos jurados, leigos que são, no momento de proferir o veredicto, em sala especial, longe das vistas do público. Não se trata de ato absolutamente secreto (secreto é o voto), mas apenas de publicidade restrita, envolvendo o juiz togado, o órgão acusatório, o defensor, os funcionários da justiça e, por óbvio, os sete jurados componentes do Conselho de Sentença. O princípio da soberania dos veredictos significa que existe a impossibilidade do Tribunal modificar a decisão proferida pelos dos jurados, para absolver o réu condenado, ou condenar o réu absolvido pelo Tribunal do Júri. Entende-se que este seja o princípio de maior relevância no âmbito do Júri brasileiro, uma vez que, deverá ser respeitada a decisão dos jurados a cerca dos elementos que integram o crime, como por exemplo, materialidade, autoria, majorantes, etc. Em vista disso, a soberania dos veredictos populares, ou seja, a decisão defendida pelos jurados, não poderá ser modificada ou reformada por outro órgão jurisdicional que detenha a competência recursal para conhecer de seus julgamentos. Logo se o réu é absolvido pelo júri, em obediência ao soberano veredicto dos jurados, poderá haver interposição do recurso do apelo por parte do promotor de justiça e com amparo no art. 593, III, “d”, do Código de Processo Penal brasileiro, o qual, se for provido, não consentirá ao Tribunal reformar a decisão para condenar o acusado. Assim, invertendo a situação, também não poderá absolvê-lo. Lembra Capez115 que a soberania dos veredictos é um princípio relativo porque não pode obstar o princípio informador do processo penal, qual seja, a busca da verdade real. A soberania é relativa quando, por exemplo, em sede de revisão criminal, o Tribunal anula o julgamento e decreta a absolvição do réu, neste caso, o entendimento

115

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal.18 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 633.

188


amplamente dominante na doutrina e jurisprudência é no sentido que haverá a prevalência do direito à liberdade, em confronto com a soberania dos veredictos. Portanto, prevalece, na revisão criminal, o juízo residente e rescisório116. Por fim, divergente de sua natureza para julgar os crimes contra a liberdade da imprensa, o júri passou a ter competência para os crimes dolosos contra a vida, como consagra a nossa lei maior. O Código Penal brasileiro estabelece os crimes dolosos contra a vida previstos nos arts. 121 a 127 que são, respectivamente, o homicídio, induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, infanticídio e aborto, tanto em suas formas consumadas quanto tentadas. Tais crimes citados revestem uma tutela do nosso bem jurídico mais relevante: a vida. Importante ressaltar que a Constituição Federal brasileira autoriza a ampliação dessa competência através de uma lei ordinária emanada do Congresso Nacional. Quanto à formação do júri brasileiro, atualmente, é composto por um Juiz de Direito, aliás, é o Presidente, e por vinte e cinco jurados sorteados dentre os alistados, onde somente sete formarão o Conselho de Sentença na sessão de julgamento. Os jurados são alistados pelo Presidente do Júri (magistrado), na qual, inclui as pessoas entre 18 a 60 anos. Ademais, é obrigação dos alistados prestarem serviço, como pena a perda de direitos políticos, caso exista a recusa.

CONCLUSÃO

No ordenamento nacional, o júri surgiu com escopo de uma ideal liberalista e se afirmou em todas as Constituições existentes, por óbvio, em alguns momentos históricos de maior tensão política houve certa mitigação de algumas de suas prerrogativas. Em verdade, ao longo das Constituições pátrias, permaneceu a instituição do Júri sempre cumprindo o seu destino histórico de vinculação aos contextos políticos caracterizados pela tendência liberal, amparadas nas bandeiras da liberdade, igualdade e da democracia. 116

BARROS, Francisco Dirceu. Teoria e Prática do Novo Júri. Rio de Janeiro:

Elsevier, 2009, p.06.

189


Todas as Constituições da República previram expressamente o júri: art. 72, constituição de 16 de julho de 1934; art. 141, §28, constituição de 16 de setembro de 1946; art. 150, §18, na Constituição de 1967, passando a art. 153, §18 da Emenda 1 de 1969. Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 o júri teve restabelecidas suas prerrogativas funcionais, dentre elas: a soberania dos veredictos, a plenitude de defesa e o sigilo das votações. Tais princípios ganharam status constitucional no corpo de uma Constituição eminentemente democrática. Hodiernamente o júri encontra-se reconhecido entre os direitos e garantias fundamentais e possui caráter de cláusula pétrea, ou seja, somente poderá ser suprimido através de uma nova Constituição (jamais por meio de emenda). Ademais, não concordamos com o posicionamento (minoritário) de que o júri apresenta uma afronta a Constituição, ao princípio da publicidade e da motivação das decisões judiciais, pelo contrário, o júri é uma instituição fruto do amadurecimento da própria democracia, uma vez que a vontade popular é exercida diretamente e não mediante representação de quem quer que seja. Vislumbre-se que é este o devido processo legal constitucionalmente previsto no caso da prática de crimes dolosos contra a vida. Destarte, entende-se que é importante a permanência do júri, uma vez que satisfaz os anseios da sociedade no julgamento dos crimes considerados de maior gravidade e ofensa ao bem jurídico “vida”. Por fim, cabe destacar que a Carta Política brasileira de 1988 preserva o júri e seus princípios como cláusulas pétreas, não podendo haver supressão, nem sequer por Emenda Constitucional, assim, faz-se importante que permaneça íntegro e imutável, respeitando-se suas prerrogativas, principalmente a da soberania dos veredictos, que é a prevalência da decisão emanada da vontade popular.

REFERÊNCIAS BARROS, Francisco Dirceu. Teoria e Prática do Novo Júri. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. BEZERRA FILHO, Aluízio. Tribunal do Júri: Homicídios. Curitiba: Juruá, 2001.

190


BONFIM, Edilson Mougenot.Curso de Processo Penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil de 25 de março de 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm. Acesso em: 15 abr. 2012.

BRASIL. Decreto-lei nº 167, de 5 de janeiro de 1938. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1937-1946/Del0167.htm. Acesso em: 15 abr. 2012.

BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 18 de setembro de 1946.

Disponível

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm.

em: Acesso

em: 15 abr. 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm.

em: Acesso

em: 15 abr. 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 15 abr. 2012. CAMPOS, Walfredo Cunha, Tribunal do Júri: Teoria e Prática. São Paulo: Atlas, 2010. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal.18. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista do Tribunais, 2002. GOMES, Luiz Flávio; SICA, Ana Paula Zomer. O Tribunal do Júri no direito comparado. LFG. Nov. 2005. Disponível em:

191


http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20051121153633299&mod e=print. Acesso em: 01 maio 2012. LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. MAMELUQUE, Leopoldo. Manual do Novo Júri. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

MARTINS, Ana Paula da Fonseca Rodrigues; KNIPPEL, Edson Luz; ZELANTE, Henrique.

Procedimentos

Penais:

Uma

visão

de

defesa

sobre

os

procedimentos ordinário, sumário e do júri. São Paulo: Atlas, 2010.

NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 17º ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e. Tribunal do Júri: o novo rito interpretado. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2010. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 11º ed.São Paulo: Saraiva, 2009.

192


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