Filhos do Crack

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uma reportagem de igor gouveia

filhos do crack


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a segunda geracao de vitimas do crack em alagoas

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de Jacó, que iremos chamar de Maria do Socorro (também fictício), dona de um olhar distante e desfigurado pelas marcas da violência doméstica, tem 24 anos. Ela não sabe ao certo há quanto tempo está esperando pela chegada de Jacó, mas passa seus dias, entre uma pedra e outra, a observar sua barriga crescer. Moradora de rua, Maria do Socorro tem

como seus fiéis companheiros o crack, o álcool e a prostituição. A forte dependência, além de tê-la afastado de sua família, agora, tira o sono. No entanto, apesar da falta de assistência e cuidados necessários, Jacó se movimenta na barriga de Maria, dando-lhe diariamente sinais de vida. A realidade de Jacó e Maria do Socorro não é algo isolado apenas em Maceió. De acordo com

dados do Ministério da Justiça, cerca de 23% das mulheres brasileiras viciadas em crack possuem acima de três filhos e vivem em condições abaixo da linha da pobreza. Apesar de as estatísticas apontarem que os homens são maioria entre os usuários da droga, as mulheres estão cada vez mais se destacando nas pesquisas. Essa realidade é o cenário que está formando a chamada

“segunda geração de vítimas do crack”. Para o pesquisador e sociólogo Marcos da Silveira, as mulheres, após várias conquistas de direitos sociais, acabaram se igualando aos homens. “Os direitos das mulheres cresceram e elas ficaram em pé de igualdade com o sexo oposto. Porém, é preciso entender que isso também acarretou na modificação de estilos de vida.

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abrigo de Jacó (nome fictício) parece seguro. Acolhedor. Possui um vazio particular e um silêncio destinados somente aqueles que estão protegidos no interior da barriga de suas mães. Assim como milhões de outros bebês brasileiros, Jacó já faz parte de uma triste e fatídica estatística: a do abandono e descuido antes mesmo de seu nascimento. A mãe

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cerca de 23 porcento das mulheres brasileiras viciadas -em crack possuem acima de tres filhos e vivem em condicoes abaixo da linha da pobreza Ministério da Justiça

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Agora, elas também possuem mais problemas de saúde, por exemplo. Doenças cardiovasculares, pressão alta, que eram prevalentes nos homens, passaram a acompanha-las. A dependência química também”, explica. No Brasil, poucas pesquisas de grande porte são realizadas acerca do assunto. Uma delas, realizada pela Universidade Federal de São Paulo no último ano, revela que, apesar de os homens ainda ocuparem as primeiras posições no uso do crack, entre as mulheres usuárias, a de-

pendência química chega aos 54%, enquanto o sexo masculino fica com 46%. Já no caso das usuárias grávidas, o número é ainda mais assustador: chega aos 60%. Para a psicologa e terapeuta familiar Viviane Almeida, a razão pela qual as usuárias levam a conceber um filho na miséria em que se encontram é bem clara. “O crack é uma das drogas psicoativas mais perigosas que existe. Além dela ser de uso compulsivo, ela destrói o caráter do usuário e o leva a fazer qualquer coisa

para saciar seu vício. Infelizmente, no caso das mulheres, a prostituição acaba sendo uma das saídas”, explica. Alguns estudos já haviam mostrado que os hormônios femininos (principalmente o estrogênio) podem ser os principais causadores dessa vulnerabilidade para o vício. “ O estrogênio potencializa os efeitos do crack e, por isso, o torna tão prazeroso. Esse processo de prazer acaba aumentando o seu poder de dependência”, explica a psicologa. Dados do município revelam que

em Maceió, a cada mês, pelo menos duas gestantes dependentes da droga são internadas para terem seus bebês. No modelo de sociedade em que vivemos, ser considerado um “Filho do Crack” não é a maneira mais fácil de sobreviver aos percalços da atualidade. Mesmo com o aumento das pesquisas, ainda é cedo para apontar com exatidão quais são os efeitos que os fetos sofrem com a exposição ao crack. No entanto, calcula-se que os primeiros sinais da epidemia começaram na

última década. Para os médicos que convivem diariamente com o problema, geralmente, as crianças nascem desnutridas, com alta irritação, tremores e, em muitos casos, apresentam retardo mental. Outra preocupação é em relação aos riscos da abstinência da droga já que o convívio com ela acontece desde muito cedo. O crack não é mais um problema individual. Agora, trata-se de um problema social ainda sem cura, que acaba vitimando os mais fracos da relação: os bebês.

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epidemia alagoana

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e muito complicado ver e nao poder fazer nada, ja que nem o governo parece se preocupar. ja vi familias sendo destruidas por essa droga

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ngana-se quem pensa que o crack é assunto novo em Alagoas. Há anos, o estado convive com a problemática que essa droga impõe. No entanto, pode-se dizer que a novidade do problema é o seu reconhecimento uma vez que, a cada dia que passa, o crack está mais presente nas famílias alagoanas. Atualmente, estima-se que cerca de 400 mil pessoas sejam dependentes

da droga no país. De acordo com um levantamento realizado pela Fiocruz, aproximadamente 370 mil brasileiros de todas as idades usam o crack e seus similares, como a merla e o óxi. Esse dado, apesar de nacional, pode ser entendido e aplicado em Alagoas. Como em outros estados do país, é comum encontrar nas ruas de Maceió, por exemplo, usuários da pedra. No

Cícero Martins, autônomo

bairro do Benedito Bentes, complexo residencial que fica na região periférica da cidade, a droga já faz parte da rotina dos moradores e, por isso, tornou-se comum, como revela Cícero Martins, 43, morador do local. “Já vi várias vezes usuários aqui no bairro. É muito complicado ver e não poder fazer nada já que nem o governo parece se preocupar. Já vi famílias sendo destruídas por

essa danada [pedra de crack]”. Após um levantamento que confirmou o nordeste brasileiro como a região em que mais se concentra usuários, a situação ficou ainda mais alarmante. Para o sociólogo Esmeraldo Bezerra Nunes, ex-professor da Universidade Federal de Alagoas, a questão do problema está na forma como o governo trata o assunto. “Infelizmente,

vemos que o crack ainda é tratado com muita discriminação por parte dos poderosos. Na verdade, em muitos casos, são eles mesmos que financiam o mercado e, por isso, fica complicado resolver o problema. Imagina só mexer no bolso de quem comanda a farra? É extremamente difícil. Outra questão é relacionada ao imaginário das pessoas. Muita gente acha que o usuário do crack está ali 7


por desejo próprio, mas sabemos que é mentira. Afinal, se falta assistência do governo (emprego, educação de qualidade, acesso a informação), o indivíduo, que muitas vezes é uma mulher, se vê acuado e acaba se entregando ao vício”, explica. O crack, por ser barato, acaba entrando em todas as classes sociais e em todos os sexos. Entretanto, são nas mulheres, geralmente as que residem em locais menos favorecidos, em que ele se instala. “Antes, apenas nas cidades grandes e com os homens era que encontrávamos o crack. Falava-se do assunto

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como um fenômeno de cidade grande e particular do sexo masculino. Agora, ele chega com força em tudo que é lugar e pessoa. Não há definição”, diz Paulo Moraes, ex-usuário e coordenador do abrigo para dependentes químicos Casa Vivência, localizado em Maceió. Embora os números sobre consumo não sejam precisos, os dados sobre apreensão da droga permitem concluir que cada vez mais gente é afetada pela pedra. Segundo dados da Polícia Federal, em 2013, foram apreendidos mais de 500 quilos da droga no estado. De

acordo com Jobson Cabral, delegado especializado no combate a drogas, o consumo do crack aumentou em mais de 70% no estado. “Infelizmente, não há trabalhos intensivos na repreensão contra traficantes em Alagoas. O poder público não se preocupou com isso e, assim, o consumo da droga cresceu rapidamente. Não tenho dados oficiais, mas garanto que, nos últimos anos, o consumo cresceu em mais de 70%”, afirma o delegado. Em Alagoas, a maioria das cidades não possuem profissionais capacitados e treinados para lidar com a situa-

ção. A rede pública em geral não funciona e apresenta muitos problemas em relação ao crack. Apesar de ações do governo como o “Crack, é possível vencer”, programa do Governo Federal e executado em Maceió pela Secretaria Municipal de Segurança Comunitária e Cidadania, não existe uma integração necessária e eficaz entre profissionais, população e o próprio governo que colabore para a resolução da questão. No entanto, para a secretária Mônica Suruagy, uma das responsáveis pelo Comitê Gestor Municipal do Plano, aos


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poucos os resultados vão aparecendo. De acordo com ela, reuniões estão acontecendo com o objetivo de conhecer o andamento das atividades para delinear um calendário de reuniões com as demais secretarias envolvidas no programa. “A nossa previsão é que em breve nós já estaremos com o comitê devidamente reintegrado e com as ações operacionalizadas, pois cada secretaria integrada ao programa, já vem desenvolvendo ações individualmente”, disse. Segundo a psicóloga Elisabeth Marques, especialista em drogas

psicoativas, é essa combinação de carências e medidas ineficazes que potencializam os danos do crack, principalmente nas usuárias. “Se formos comparar o efeito do crack, veremos que ele é sem dúvida o mais nefasto, porque produz rapidamente a dependência. E o problema se agrava quando não há locais e profissionais que possam ajudar no tratamento. Aqui, é muito complicado achar um tratamento de qualidade e de graça. Muitas vezes, as crianças acompanham o vício desde cedo e se acostumam com aquilo. Veja só como a questão é com-

plexa: Como uma mãe, por exemplo, vai ensinar ao filho que usar crack é errado se ela, constantemente, está com ele em mãos?”, questiona. Para o secretário de Segurança Comunitária e Cidadania da cidade de Maceió, Edmilson Cavalcante, o crack deve ser combatido e visto de forma mais clara e objetiva possível. “Temos que resolver isso. O crack não é o único problema. Em Maceió, além do alto consumo, há o tráfico. É por isso que estamos criando projetos e colocando-os em prática para que possamos prevenir a sociedade em relação ao

uso da droga”, afirma. Ainda não é possível afirmar quais são os rumos que a questão terá em Alagoas. Apesar dos programas começarem a dar um sinal de luz, é perceptível que ainda há muito que fazer. Não é de conhecimento da população, pelo menos até o momento, a existência um plano do governo local que assegure o tratamento do usuário e o insira novamente na sociedade. A perspectiva é que haja investimento do poder público nas secretarias municipais e estadual para que, em conjunto, soluções sejam encontradas.

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O o outro lado da moeda

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uso de drogas nos centros urbanos revelam dados preocupantes. De acordo com pesquisas nacionais, a maioria das mulheres usuárias de crack fazem constante da droga enquanto estão grávidas. Aliado ao descuido, a dependência química torna-se um perigo em potencial ao bebê. Além disso, a promiscuidade sexual, usada para obter dinheiro ou droga, coloca em pauta mais outra questão: as doenças sexualmente transmissíveis. Uma das poucas pesquisas de relevância sobre o assunto, encomendada pelo governo federal, apontou que 10% das mulheres que usavam crack no país estavam grávidas no momento em que foram entrevistadas. Dessas, todas elas afirmaram que engravidaram após

o inicio do consumo. Para sociólogos e psicólogos, os dados relevam uma realidade muito cruel uma vez que esse uso constante da droga na gestação aumenta significativamente os riscos para o desenvolvimento neurológico, social e intelectual das crianças nascidas do crack. “Fumei crack durante os quatro primeiros meses da minha gravidez”, conta Patrícia, de 27 anos e na terceira gravidez, moradora do bairro Vergel do Lago que está em tratamento. A unidade, de internação breve, na qual Patrícia se internou, fica localizada no interior do estado, e permite às gestantes passar toda a gravidez em tratamento. Ela foi enviada para lá da capital, depois de sua família conseguir juntar dinheiro e enviá-la ao local. “O crack destruiu

minha vida. Comecei em pouco tempo e rapidamente já me vi sem rumo.” De acordo com a Organização Mundial de Saúde, quando a pessoa usa a droga por impulso e de forma repetitiva, pode-se considerar que ela é dependente. O órgão explica que há dois tipos de dependência: a física e a psíquica. Na primeira, o corpo apresenta sinais e sintomas quando o consumo da droga é interrompido. Acontece a abstinência. Já a segunda, é causada justamente por esse efeito. Sua dependência afeta o psicológico do usuário e ele acaba se sentindo extremamente desconfortável quando não está sob efeito dela. O médico e professor da Faculdade de Medicina da Ufal, Luís Falcão afirma que é muito comum que as mu-


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lheres usuárias da droga possuam mais riscos de contrair doenças do que a população em geral. “Notamos que elas tendem a não se proteger já que, para sustentar o vício, fazem tudo o que for necessário para que não falte o crack. É um comportamento estranho, mas é fácil de explicar uma vez que o estado psíquico é alterado e se prostituir, por exemplo, acaba sendo normal”, relata. O risco de doenças transmissíveis é potencializado pelo local e modo usado pelos usuários para ter acesso à droga. As crianças participam disso e acabam se contaminando muitas vezes de forma inocente, pois, em muitos casos, as mães usuárias fazem o uso de latas amassadas e objetos cortantes sem cuidados necessários. A psicóloga e espe-

cialista em psicopedagogia Maria Paula Frazão, afirma que as crianças que vivem e nascem no crack acabam desenvolvendo uma visão do mundo muito cruel e seca. Para ela, a falta de cuidado e das necessidades básicas como escola, comida e roupa limpa, acaba levando essas crianças para o mundo do roubo e do incorreto. “As crianças que não possuem um convívio sadio têm mais chances de entrarem no mundo da criminalidade. Além disso, ainda não sabemos quais são os riscos reais que o crack causa em longo prazo. Mas é preciso entender que qualquer individuo que não vive cercado de laços bem construídos, tendem a se desviar do caminho considerado certo na sociedade em que estamos inseridos”, conta. 11


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A VIDA DE CRIANCAS ALAGOANAS QUe NASCEM CER


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RCADAS PELO VICIO, A PROSTITUICAO E O ABANDONO


“Maria nao pode ser mais uma como eu�

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uana, 26 anos, vive nas ruas de Maceió e se alimenta do que lhe dão. Na barriga daquela que é considerada mais uma excluída da sociedade está Maria. Ainda dentro de sua mãe, a menina já sofre das mazelas sociais que não conhece. Abrigada sob um equipamento urbano, no bairro do Vergel do Lago, periferia da capital alagoana, Luana e Maria vivem com outras pessoas que, entre o crack, a pobreza e o preconceito, tentam sobreviver.

Maria não sabe quem será seu pai. Fruto de um programa, a menina já está em mais uma triste estatística: a de ser filha do crack. Esse é o quinto filho de Luana e nenhum deles vive com ela. A droga não deixa. “Sei que têm dois com minha mãe, mas não sei do resto. Devem tá na rua, né? Espero que estejam bem”, lamenta enquanto alisa a barriga. Também nascida na rua, Luana diz que não lembra o significado das palavras amor, carinho

e atenção. Mesmo grávida, usa crack. E diz que ele, apesar de não ser a melhor coisa do mundo, ajuda a esquecer dos problemas. “Quando uso crack, sinto uma falta de ar danada, mas esqueço de tudo. E a Maria mexe mais. Acho que deve tá reclamando. Todos fizeram isso”, comenta. No dia em que conversou com a reportagem, Luana diz que arrumou a casa de uma senhora e ganhou vinte cinco reais pela faxina. Quando não consegue o dinheiro dessa forma,

faz programa para alimentar o vício. Usuária desde os 13 anos, Luana diz que não quer que Maria siga seus passos. “Quero que minha filha seja médica ou uma mulher da lei. Ela não pode ser mais uma como eu”, desabafa. Para ela, a culpa de sua situação não é só dela. “Tu acha que eu gosto de ser assim? De viver assim? Ninguém gosta. Mas é difícil. Já tentei pedir ajuda pra largar o crack, mas aprendi que na vida é cada um por si”, lamenta. 15


“Posso ser sincera? So estou aqui por causa do Joao”

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oão Paulo, 5 anos, não gosta de ficar parado. Criado na zona periférica de Maceió, o menino gosta de correr do lado de fora de casa onde vive, no Tabuleiro dos Martins, conversar, pular e gritar. Na verdade,

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João gosta mesmo é de fazer tudo ao mesmo tempo. Criado pela avó paterna, Valéria (nome fictício), 55 anos, ele está longe dos pais que, por causa do crack, estão fugidos e marcados para morrer. Dono de um

sorriso encantador, João parece ser mais um garoto que só tem como preocupação não quebrar os brinquedos que ganhou de aniversário. Porém, a realidade do garoto é muito mais cruel. Sua mãe, nascida no agreste


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do estado, até hoje não conseguiu se livrar do crack. A dependência, que a acompanha desde os 17 anos, alimentou o menino durante toda a sua gestação. “Desde pequeno Joãozinho sofre com o crack. Nasceu com sífilis e tão magrinho que o médico disse que deveríamos ser fortes e esperar o pior. 1 quilo e 4 gramas. Mesmo nessa correria toda, ele é um menino muito carente, nervoso. Tenho quase certeza que é por causa do crack. Tentei conversar com a mãe dele, mas não teve jeito. Por duas vezes quase fui agredida por ela e pelo meu próprio filho. O

crack destruiu a minha família”, lamenta Valéria. O filho de Valéria tem 26 anos e é usuário de drogas desde a adolescência. Ela não sabe ao certo como ele foi parar nesse mundo, mas acredita que a culpa é da influência dos amigos da escola. “Meu filho está marcado para morrer. Tem coisa pior do que isso para uma mãe? Eu já não sei o que fazer. Se pudesse voltar no tempo, teria acompanhado de perto as amizades dele. Não era o que planejava para o meu menininho”, conta. De acordo com Valéria, o filho e a

nora se conheceram nas noites da cidade. “Ela apareceu aqui com ele e foi ficando. Ela é uma pessoa boa, sabe? Não a culpo por isso tudo. Só tenho receio por causa dos meus netos. O João vai ganhar um irmão. Queria que fosse menina, mas ela não quer fazer o pré-natal, ai ninguém sabe. Tenho medo do que pode acontecer”. A vida da família de Valéria é o retrato das famílias brasileiras afetadas pelo crack. Segundo pesquisas realizadas pelo Ministério da Justiça, geralmente, o convívio no lar de usuários de drogas é bastante con-

turbado. De acordo com o levantamento, as crianças que possuem pais drogados têm mais de 70% de chances de acabarem se drogando também. Para a psicóloga e terapeuta Viviane Almeida o crack não afeta apenas o físico da criança, mas também toda a sua interação social. “As crianças que convivem com o crack são agitadas. Muitas vezes, elas não conseguem parar quietas e isso atrapalha o seu envolvimento e relacionamento com os que estão ao seu redor”, explica. Não se sabe ainda se o João Paulo de hoje é o resultado de

meses com contato com o crack durante a sua gestação, ainda é prematuro dizer. O fato é que a avó Valéria tem medo do futuro. “Posso ser sincera? Só estou aqui por causa de João. Já pensei em me matar. Já perdi meu marido por causa de roubo e meu filho está nessa situação por causa de droga. Não iria aguentar perder o meu Joãozinho também. A mãe dele usou muita droga enquanto estava grávida. Vai que ele queira usar o crack mais tarde? Eu realmente não quero isso pra ele. Me conforto em Deus e espero que ele cuide de nós”, confessa.

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na Laura, 6 anos, não frequenta a escola. Filha de Maria do Carmo, 24 anos, a menina vive nas ruas e tira, entre um pedido de esmola e outro, as suas próprias lições. Dona de um sorriso marcado pela falta de cuidado, Aninha, como gosta de ser chamada, é agitada e mostra em seus traços que o crack não foi gentil com ela. A história de Ana Laura começou quando sua mãe decidiu, aos 17 anos, experimentar a pedra que, supostamente, 18

a ajudaria esquecer-se dos problemas de casa. “Tudo começou por causa das brigas na minha casa. Eu queria sair para namorar e minha mãe não deixava. Aí brigávamos muito. Um dia, ela disse que não aguentava mais e me botou para fora. Acabei indo parar nas ruas e fiz das drogas a minha família”, relata a moradora de rua. Maria do Carmo conta que não fez pré-natal de nenhum dos quatro filhos e que o crack sempre foi presente na vida de todos. “Eu

sempre usei na frente deles. Não tenho vergonha. Mas é doído saber quer meus filhos ficam vendo isso. Tenho medo que eles fiquem viciados também”, desabafa. Além de Aninha, a mulher tem mais três filhos e todos eles vivem nas ruas do Vergel do Lago, bairro periférico de Maceió, capital alagoana. Para ela, a agitação da filha mais velha é resultado do uso da droga na gravidez. “Ela sempre foi assim. Nunca fica quieta num canto e vive correndo por aí. Não levei no

médico ainda, mas acho que foi por causa do crack. Pelo menos, foi o que uma vizinha me disse. Espero que ela não fique assim pra sempre. Quero que Aninha seja feliz”. A menina diz que não lembra muito do pai, mas afirma que ele está no céu. “Mainha me falou que ele tá no céu com Deus”. O pai da garota, que também era usuário da droga, morreu assassinado em 2012 e a viúva não sabe ao certo explicar o motivo. “Eu não sei como aconteceu, mas parece que foi briga

com os caras. Só recebi a notícia uns dias depois”, conta Maria. Sobre o futuro, Maria do Carmo se mostra positiva. “Eu acredito em Deus e sei que vou me curar. Ninguém passa nessa vida sem um motivo. Tenho muita fé e sei que ainda vou ser feliz com meus filhos. Não quero que eles passem por isso. Pretendo colocar os meninos na escola e arrumar um trabalho. Já estou limpa tem uma semana. É difícil, mas com Deus tudo é possível”, fala sorrindo.


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“quero que aninha seja feliz”

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abrigo de Jacó (nome fictício) parece seguro. Acolhedor. Possui um vazio particular e um silêncio destinados somente aqueles que estão protegidos no interior da barriga de suas mães. Assim como milhões de outros bebês brasileiros, Jacó já faz parte de uma triste e fatídica estatística: a do abandono e descuido antes mesmo de seu nascimento. A mãe de Jacó, que iremos chamar de Maria do Socorro (também fictício), dona de um olhar distante e desfigurado pelas marcas da violência doméstica, tem 24 anos. Ela não sabe ao certo há quanto tempo está esperando pela chegada de Jacó, mas passa seus dias, entre uma pedra e outra, a observar sua barriga crescer.

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Moradora de rua, Maria do Socorro tem como seus fiéis companheiros o crack, o álcool e a prostituição. A forte dependência, além de tê-la afastado de sua família, agora, tira o sono. No entanto, apesar da falta de assistência e cuidados necessários, Jacó se movimenta na barriga de Maria, dando-lhe diariamente sinais de vida. Usuária de crack há quase cinco anos, Maria não se lembra com exatidão como resolveu começar a usar a pedra, mas conta que no começo foi o álcool. As marcas de seu rosto mostram que a realidade da moradora de rua nunca foi fácil. “Conhece aquela história do beber para esquecer dos problemas? Então, comigo foi assim. Aí depois vai aparecendo outras

coisas e nunca parece que tá bom. Até que encontrei o crack. Pior coisa que já fiz”. Mãe de quatro meninos, a jovem diz que sofreu muito na mão de seu ex esposo e que, por isso, nunca pôde ser uma mãe melhor. “Casei com 15 anos e ele me batia toda vez que chegava em casa. Muitas vezes ele chegava bêbado. O cheiro era horrível. Eu não consegui cuidar dos meninos. Ou me defendia ou cuidava deles”, relata. Maria conta com tristeza que deu os quatros filhos para a mãe e para a irmã cuidarem quando decidiu ir para rua. “Não sei dele [o marido]. Os meninos estão bem. Dei dois pra minha mãe e dois pra minha irmã. Outro dia, vi um deles e ele estava indo para escola. Cho-

rei muito”, conta. Mesmo sendo fruto de um programa, Jacó, talvez, poderá conhecer seu pai. A mãe não sabe ao certo se eles irão construir uma nova família, pois, o pai da criança já tem outros filhos e, parece, é casado. Categórica, Maria diz que com ele foi diferente e que só recebeu dinheiro por causa do vício. Questionada sobre o futuro, ela relata que seu sonho é largar o crack para poder cuidar dos filhos do jeito certo. “Jacó vai ser saudável. E vai ter pai. Estou indo para casa da minha mãe. Já conversei com ela. Vou me segurar e procurar ajuda. Acho que eu e Jacó já sofremos demais”, conta. “Todo mundo pode ter um sonho, por que nós não?”


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“Todo mundo pode ter um sonho, por que nos nao?� 21


TODAS AS IMAGENS UTILIZADAS NESTA REPORTAGEM FORAM CEDIDAS POR SEUS RESPECTIVOS AUTORES


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