Plongeé: Dança e Site Specific

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PLONGÉE DANÇA E SITE-SPECIFIC

ORGANIZADORAS

ILANA ELKIS | JOANA FERRAZ


ISSO É UM SITE SPECIFIC


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A Publicação ILANA ELKIS E JOANA FERRAZ

Plongée é uma dança site-specific de Ilana Elkis e Joana Ferraz, que foi contemplada, em 2011, pelo edital Novos Coreógrafos: Novas Criações: Site Specific do Centro Cultural São Paulo - CCSP. A Praça da Biblioteca e entorno do CCSP foi o local onde esse trabalho foi criado e performado. Em 2015, as artistas foram contempladas com o Prêmio Funarte Klauss Vianna 2014, para circular com Plongée por Bibliotecas públicas do Brasil, nas cidades de São João del Rei (MG), Manaus (AM), Teresina (PI), e Olinda/Recife (PE), durante o ano de 2016, realizando oficinas e apresentações. Ao propor a circulação da obra Plongée por bibliotecas públicas brasileiras, o projeto pretendeu fomentar a discussão acerca da produção de dança contemporânea site-specific – o que precisamente vem a ser isso, quais são os limites, as diferenças entre o que se pensa sobre site-specific nas artes visuais e o que se tem pensado em dança, o hibridismo dessa linguagem, suas possibilidades, o que faz uma dança ser site-specific ou não, até que ponto estas definições são importantes e como as instituições têm se relacionado com este gênero artístico. Em São Paulo (SP) o projeto foi residente no Centro de Referência da Dança, onde realizou dois encontros abertos ao público para conversar sobre dança e site-specific. Estes encontros foram chamados de Ocasião 1 e Ocasião 2. Essa publicação é um desejo de tornar essa experiência de compartilhamento e reflexão menos efêmera, é uma tentativa de criar uma memória concreta acerca de o que foi e como foi realizada essa circulação. Aqui não existe uma ambição de chegar a conclusões sobre a categoria dança site specific. É um levantar de questionamentos e modos de pensar a prática em lugares específicos. Continuando a troca com as cidades por onde o projeto passou, a publicação será enviada para os locais onde foram ministradas as oficinas e às bibliotecas onde foram realizadas as apresentações.



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Perguntas específicas para lugares específicos ILANA ELKIS

Realizar o projeto Plongée: Dança nas Bibliotecas do Brasil foi uma imensa oportunidade para conhecer melhor esse grande lugar brasileiro que apresenta infinitas possibilidades de fazer e pensar arte. Ao circular com Plongée, e realizar as ocasiões 1 e 2, emergiram muitas reflexões sobre os modos de criar trabalhos de dança em espaços não convencionais e específicos. Com isso, muitas perguntas foram lançadas, suspensas no ar. A grande maioria ainda não foram respondidas, mas definitivamente inauguram novas maneiras de olhar para a experiência de criar e circular com um trabalho site specific na contemporaneidade.


Historicamente, a arte sai das galerias, museus e teatros como um ato político de se aproximar da vida, do cotidiano e da experimentação. O corpo, nesse contexto, sai de um espaço convencional para negar o objeto de representação, a ilustração e a espetacularização. A obra The Man Walking Down the Building (1970) de Trisha Brown é um exemplo marcante de um trabalho que se propõe a dialogar com o espaço e com seu tempo, para criar suas poéticas. Poéticas nas quais a forma está intrinsecamente vinculada ao seu conteúdo, e vice-versa, trazendo à tona discursos artísticos e políticos que, na época, estavam em voga: a não espetacularização (nessa obra, Trisha traz à tona um corpo que se propõe a realizar o simples ato de andar); uma nova perspectiva sobre o cotidiano e a cidade, (surpreendendo transeuntes com a imagem de um bailarino andando de cima para baixo em um prédio, desafiando a gravidade); e, ainda, em um prédio no Brooklyn, bairro de Nova Iorque que então sofria com a especulação imobiliária e um processo de gentrificação significativo. Uma referência importante das artes plásticas são os cortes em casas e edifícios abandonados, como Splitting (1974) de Gordon Matta-Clark, que foram obras que dialogavam com as mesmas inquietações descritas acima, preenchendo suas formas com seus contextos, e, mais uma vez, reforçando questionamentos importantes que afloraram naquele espaço e tempo. Durante as oficinas deste projeto de circulação, as obras citadas acima eram as minhas favoritas para exemplificar um trabalho Site Specific para os participantes. Uma estratégia para explicar esse modo de trabalhar, sem necessariamente categorizá-lo, mas, ao mesmo tempo, tendo o cuidado de diferenciá-lo de intervenções urbanas, performances e até mesmo adaptações de trabalhos cênicos de um ambiente para o outro. Obras “guias” que me ajudaram a lançar um olhar para minha prática em Plongée, assim como sua circulação por outras bibliotecas, revelando aos poucos as relações conteúdoforma que ainda não me eram tão evidentes.


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A iniciativa de criar Plongée veio através da inscrição no edital Novos Coreógrafos: Novas Criações: Site Specific 2011, do Centro Cultural São Paulo. Eu e Joana Ferraz escolhemos a Biblioteca por conta de um encantamento por sua arquitetura vazada, com diferentes níveis e mirantes que criam nichos arquitetônicos, tornando esse espaço singular. O segundo motivo para realizar esse projeto, foi pelo desafio de criar algo que fosse contra a corrente de “dar conta” do espaço, de preenchê-lo totalmente e, assim, optamos por ele nos “engolir”, revelando então um outro corpo específico que estabelecia outras relações com aquela Biblioteca. Essa intuição e desejo vieram a partir de experiências anteriores que ambas havíamos tido quando participamos de outras criações naquela mesma biblioteca, em edições anteriores deste mesmo edital. A experiência de trabalhar nesta biblioteca, dia a dia, durante três meses, foi o que construiu a relação forma-conteúdo para o trabalho Plongée. Primeiramente, contemplamos o lugar – observamos as pessoas: quem frequentava e como frequentava aquele lugar, como, por exemplo, o fluxo e a qualidade de ocupação desses frequentadores em relação à arquitetura; estabelecemos recortes espaciais – pontos de vista distintos, incluindo o Plano Plongée, com os quais as imagens do trabalho poderiam ser recortadas, e trazer novas perspectivas sobre aquela realidade. O corpo, assim, foi em direção ao seu próprio desejo de borrar suas fronteiras com o espaço, colocando-se em trânsito e em fluxo, para criar relações, experiências, percepções e presenças únicas e específicas, que dizem respeito a relações específicas que esse corpo estabelece com aquele espaço e tempo, criando um contexto. Elencamos algumas dessas relações para criar os contextos de Plongée e, desse modo, viabilizar a sua circulação em outras bibliotecas. Daí vem à tona a pergunta: “ele deixa de ser um site specific ao sair de seu sítio de origem?”


Para alguns artistas mais ortodoxos, talvez sim, mas, a partir dessa experiência, percebi que mesmo o trabalho mudando algumas de suas características de biblioteca para biblioteca, Plongée manteve suas relações poéticas intrínsecas sempre presentes, fazendo emergir a cada apresentação um corpo específico e trânsitos específicos entre corpo e espaço, relações específicas com seu entorno – a biblioteca e o seu contexto. Sim, Plongée é um trabalho de dança para um lugar específico. Categorizar o que é ou não site specific é uma tarefa árida que muitas vezes nos distancia de nossas experiências artísticas, adentra um mundo fronteiriço, exato e mensurável, que se afasta significativamente do fazer artístico. Ao mesmo tempo, olhar para o termo site specific como um campo artístico distinto, no qual se fomenta uma reflexão sobre os modos de fazer dança em espaços específicos, é formular perguntas e entender escolhas artísticas distintas de que essa prática se ocupa, e entender esses processos criativos em diferentes níveis de consciência. Assim, essa publicação não se caracteriza por conclusões sólidas, verdades, mas antes por um relato de percepções a partir de uma experiência, e, com essa aqui (nesse papel), lança-se uma provocação específica, composta por questionamentos, com potencial para atravessar processos criativos em dança site specific que possam levá-los para outros níveis de consciência em suas práticas. Então nada mais específico que finalizar este texto com algumas outras perguntas específicas: Por que criamos, hoje, obras em espaços não convencionais? O que nos move a fazer isso? Estamos conscientes da nossa prática, vinculando forma e conteúdo? Criamos fora da caixa preta porque nos interessamos genuinamente em pesquisar em outros contextos, buscando novos atritos e diálogos para novas


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potências poéticas? Ou porque simplesmente é a forma que encontramos de nos adaptar e sobreviver como artistas, em condições precárias, em que cada vez mais a dança é colocada em espaços “alternativos” ou áreas de convivência, em razão das dificuldade de produção em viabilizar pautas para se apresentar nos teatros? E, por último, como o surgimento de editais em São Paulo como Novos Coreógrafos : Novas Criações: Site Specific, norteia essas produções?



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Site-specific reading JOANA FERRAZ

Escrevo estas palavras agora, são 1 e 34 da manhã. Mas não, agora é sempre outra hora. A cada vez outra hora. Agora que você lê o texto, 1 e 34 da manhã invade o horário da sua leitura, com uma imagem de noite talvez, ou de relógio, ou de cansaço, e se perdem – talvez – num possível meio-dia muito mais forte e ruidoso. Agora que são 1 e 38 e a chuva acabou, esse agora não existe mais. Agora que você lê esse texto. São outras coisas, chuva, acabou, uma e trinta e oito: essas coisas são outras coisas.


Desde que começou a ler esse texto, uma voz ressoa cada palavra lida na sua cabeça. Uma voz que surgiu da sua leitura. E muito provavelmente essa voz não irá mudar até o fim do texto. Ela vai te acompanhar. Se você me conhece, talvez esteja lendo com a minha voz, mas eu não escrevo com essa voz. Escrevo com uma outra voz, que apareceu para mim com esse texto. Uma voz que ressoa na minha cabeça. Essa voz tem um ritmo e um tom e isso interfere em como escrevo. Interfere na minha pontuação e mudança de parágrafo e escolha das palavras. Quero escrever com outra voz. Agora são 1 e 48 e chove muito. Muito. De um jeito que desassossega o espírito. Nunca antes escrevi espírito em um texto. Outro dia, sentei com alguém que disse que estava cansado desses textos que falam do próprio texto. Desculpa pessoa. Te canso mesmo à distância e sem você saber. Mas esse texto é sobre essa voz na sua cabeça, e essa ideia eu roubei de um trabalho de outro artista. De um grupo que chama Rimini Protokoll. Ponto. Esse texto é sobre essa voz. Ela ainda está aí a voz do texto, na sua cabeça. É inevitável. Tente se desfazer dela. Tente ler as palavras em silêncio. Não escreverei mais sobre isso para você esquecer que a voz está aí.

-


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Se penso em escrever algo sobre dança e site-specific é inevitável não pensar em como escrever, nas especificidades do ato de escrever, das palavras, da leitura. As especificidades da leitura. Aqui, uma nota pra mim mesma, um lembrete: amanhã preciso pegar em casa O livro por vir do Blanchot. Pensei em escrever um trecho nesse texto falando sobre a experiência de ter circulado e o que fui pensando nesse percurso, diário de bordo. Mas tem essa citação nesse livro, na verdade uma sessão inteira, em que Blanchot fala sobre esse tipo de narrativa pessoal e seria bom citá-lo antes de me atrever a escrever um texto assim. Aliás, isso já deveria ser feito de saída. Diários são um perigo. É o que me vem da lembrança desse trecho do livro. As especificidades da leitura. A voz na sua cabeça. Bastou uma palavra lida. A voz na minha cabeça, bastou uma palavra formada. e a tentativa de def orm

ááááááááááá

na sua cabeça e na minha. No seu corpo.

noite

noite

-

laaaaaaaa


Faz duas noites que estamos aqui parados nessa frase, no seu corpo, nessa frase, precisamos pôr essa voz pra correr, dentro, correr sem pausa e sem fôlego, uma paixão um foguete um dado uma palavra que comece com “la” e seja comprida uma clavícula lam pa ri na pensamento a primeira vez que li O Barco Bêbado de Rimbaud não consegui, tive que ler depois outra vez, bêbada, em francês, sem saber francês muito bem, e com pouco vocabulário, e em voz alta, voz alta mas baixinho. A voz na minha cabeça lendo Rimbaud em português não era nada, não movia nada, era uma voz perdida. E tudo aquilo que existe ali naquela poesia – a cada palavra lida – só me aconteceu com uma voz falada, numa língua estrangeira e com sotaque. Diários são um perigo. Escuta vou te deixar agora um silêncio de palavra escrita, você tenta perceber por quanto tempo as últimas palavras lidas ressoam nesse silêncio, desconstruídas ou não, escuta


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depois de um tempo a voz se despe das palavras e fica sem forma nenhuma ali, um vĂŠu sonoro

eco



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Ocasião 1 JOANA FERRAZ

São Paulo, hoje, noite de 2016. Estou te escrevendo essa carta, mesmo que ela não chegue e que nela eu faça muitos erros, em inglês e depois vou traduzir. Você é meu interlocutor. Eu preciso de você para poder falar sobre as coisas. Eu preciso falar delas sentindo que elas vão em direção a alguém. Eu preciso falar sobre este encontro que organizei com uma amiga, nós estávamos trabalhando juntas em um projeto, acho que já te falei sobre este projeto. Então, este encontro. Nós o chamamos de Ocasião 1: Por Entre Lugares Gerais e Lugares Específicos. O nome foi uma sugestão da Clarissa, eu gostei muito. No momento em que ela sugeriu, acho que eu estava num barco, lendo isso numa mensagem minúscula de celular.


Clarissa foi nossa convidada pra pensar junto esse encontro. A proposta do encontro era falar sobre site-specific e dança, e a idéia era lidar com o próprio encontro como uma situação site-specific. Não sei se chegamos lá. Mas aceitamos o desafio e saímos nessa expedição. Juntamos diversas referências de site-specific que nós imprimimos num lugar que faz Xerox, ali no centro de São Paulo, perto do CRD: uma entrevista com o Jérôme Bel. o azul de Yves Klein. a coca-cola molotov do Cildo Meireles. … … … outras coisas. a foto de um globo de vidro, desses em que neva dentro, da Clarissa. Chamamos para esse encontro convidados secretos, mandamos e-mail para pessoas que achamos que seria legal ter com a gente nessa ocasião, pessoas que nós gostaríamos de escutar. Os convidados secretos não podiam se revelar como convidados durante o encontro, eles estariam lá como todos os demais, mas responsáveis em manter a conversa acontecendo, embaralhando as cartas, levantando questões. Uma tentativa de descentralizar a conversa da figura de um especialista ou algo assim. Enfim, sem saber quem é convidado ou não, todos tomam o fazer a conversa para si. Essa ideia eu trouxe das experiências que tive com o Ghawazee Coletivo de Ação, em encontros que chamamos de Chá com Pólvora.


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Nessa Ocasião, a maioria das pessoas que vieram eram convidadas secretas. A conversa foi boa, começou em volta de uma mesa, com as referências impressas ali, passando, e nós não tínhamos ideia de como tornar essa situação uma itinerância. Porque nós dissemos, no nosso convite, que seria uma itinerância pela cidade, durante a qual nós conversaríamos sobre site-specifc e dança. Eu podia sentir a expectativa para essa caminhada. Finalmente, estávamos fora da sala. Uma pequena multidão (como ser muitos em poucos?) conversando simultaneamente e, claro, se espalhando em subgrupos menores. A tarefa era decidir o percurso juntos, mas nós também tínhamos alguns objetivos, lugares pré-escolhidos por onde passar. Então, como balancear objetivos e acaso? Nós falamos sobre o trabalho de Jérôme Bel com a Ópera de Paris. Nós falamos sobre a diferença em ver reproduções de algumas pinturas impressas em um livro ou a a tela com a pintura na nossa frente. Sobre o fato de que poderíamos apontar a discussão em uma direção em que poderíamos dizer que tudo é site-specific. Queríamos outra direção. Conversamos mais e eu flutuei entre dois ou mais subgrupos, linhas de conversa eram perdidas por causa de nossas escolhas. Nós entramos em uma igreja. Ela era um dos nosso objetivos. Quando escolhemos os lugares por onde gostaríamos de passar no nosso encontro itinerante, foi pensando em quanto estes lugares poderiam afetar nossa fala, o quanto isso iria impactar a conversação.


A igreja foi uma escolha precisa, ser silenciado por ela naquele momento. Um templo guarda em si outro tempo. Conversas são feitas de tempo. Estava chovendo muito, e passamos o resto da conversa embaixo de uma grande marquise, na frente de um prédio público. Eu tinha aquele sentimento de quando oferecemos uma festa e percebemos que alguns dos convidados não estão confortáveis. Devo dizer que este encontro não foi confortável, foi desajeitado, tropeçando um pouco nele mesmo, como uma girafa aprendendo a andar ao acabar de nascer. E por essa razão eu achei maravilhoso. Conversar sobre site-specific ao mesmo tempo construindo a situação para tanto. No presente. Lidando com a cidade, com o clima, os desejos, as pausas, a falta de comunicação, o desentendimento, movimento por toda parte. Desafiando a caminhada, a conversa, jogando. Trabalhando a conversa site-especificamente. Nós falamos sobre site-specific como método e não como uma categoria. Não sei se chegamos lá. Mas eu faria outra vez. Eu iria outra vez. (Ocasião 1: Por Entre Lugares Gerais e Lugares Específicos, foi a primeira atividade realizada pelo projeto, antes de se iniciar a circulação do trabalho. Em parceria com Clarissa Sacchelli, as artistas conduziram uma conversa-itinerante pelo centro de São Paulo, saindo do Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo (CRD) e terminando na frente da Biblioteca Mário de Andrade.)


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Site specific para plongée CLARISSA SACCHELLI

o que pertence ao aqui 2016 Brasil, limbo histórico, crise política, crise social e econômica, ainda mais temer em 2017 inconformismo não con-formismo necessidade de escuta necessidade de ação um papel ativo papel como suporte mas não só aqui folha cheiro de papel tinta alfabeto latino português e inglês e no subterrâneo muito mais o que pertence ao aqui

o que pertence ao aqui


o que pertence ao aqui impresso uma publicação aqui um projeto proposto por duas artistas independentes financiado por um edital público nacional: Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna / 2014 um edital de 2014 lançado no último mês de 2014 com divulgação do resultado final dos selecionados aguardada para início de 2015 resultado publicado entretanto em agosto de 2015 e a verba para execução dos projetos selecionados liberada apenas em dezembro de 2015 2016 este Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna um dos raros financiamentos públicos de abrangência nacional para criação e circulação de dança não lançou a edição de 2016 deste edital que até então era anual há sempre algo que não se vê há sempre algo para se ver e ouvir aqui não é apenas um lugar físico site não é apenas um lugar físico um espaço pensado como relação de espaços espaço como rede de relações um espaço não apenas como localização

o que pertence ao aqui


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o que pertence ao aqui espaço como extensão site-specific não como pertencimento a um lugar específico o lugar específico é apenas um ponto da trajetória essa página específica não é apenas suporte que essa publicação não seja apenas suporte urgência de criação dum campo de fricção aqui nesse projeto dança contemporânea site-specific circulando por bibliotecas do Brasil um site-specific em circulação um paradoxo talvez o que afinal é específico então site-specific como maneira de pensar o específico performa nesse espaço espaço ao lado de espaços realidade, Brasil, crise, política pública para cultura, edital público nacional um projeto proposto por artistas de São Paulo dança contemporânea site-specific em circulação por bibliotecas circulando pelo norte, nordeste e sudeste uma publicação com ainda mais

o que pertence ao aqui


o que pertence ao aqui o site-specific como prática ação após escuta dum contexto específico que essa publicação circule perguntas endereçadas a múltiplos mundos site-specific não como uma categoria uma bibliografia específica Jorge Menna Barreto com Lugares Moles Fabio Morais com SITE SPECIFIC, UM ROMANCE Miwon Kwon com One Place after Another Robert Smithson com seu Non-sites Ana Maria Tavares com seu Site-specific deslocado Michel Foucault com Of Other Spaces Hal Foster com O artista enquanto etnógrafo e há mais o artista como leitor site-specific como uma prática o artista a escutar o espaço uma autoria codividida com o site e o leitor o leitor também como autor afinal o papel não como suporte papel ativo público não como público alvo público como espectador-leitor

o que pertence ao aqui


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o que pertence ao aqui um espaço para leitura há sempre algo para ler ver ouvir num desejo não de propor soluções a necessidade é de criação um campo de discussão dúvida pergunta inquietação uma vista de cima plongée é mergulho que esse espaço específico seja um convite para mergulhar

por Clarissa Sacchelli a partir deste site-specific

o que pertence ao aqui



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Ocasião 2 ILANA ELKIS

A Ocasião 2: em lugares específicos foi uma conversa que deu continuidade à reflexão em torno da ideia dança site-specific, que se iniciou na Ocasião 1: por entre lugares gerais e específicos. A Ocasião 2 foi aberta ao público e aconteceu no dia 7 de outubro de 2016, das 10 às 14 horas, no Centro de Referência da Dança, em São Paulo. Carmen Morais foi a artista convidada a lançar assuntos sobre a prática de criar trabalhos em dança site-specific, levantando questões acerca da experiência de realizá-los, implicando potências e problemáticas inerentes a essa prática, e, ainda, contextualizando-a no âmbito das produções de dança site-specific em São Paulo. Também foram convidados artistas com os quais as propositoras tinham interesse em trocar informações sobre as práticas de criação em dança site-specific. A ideia era, mais uma vez, compor uma conversa horizontal, em que as reflexões de cada artista contribuíssem com igual peso entre si no fazer dessa conversa.


Falar sobre a experiência de criar e performar Plongée no CCSP, em 2011, assim como da sua circulação, foi um dispositivo sugerido por Carmen Morais para alinhavar este encontro conversa, que partiu de algumas perguntas, que gerou outras, e assim sucessivamente, produzindo um inventário de fluxos de pensamentos e questionamentos No lugar, No aonde, estar lá Por que esse desse nesse não outro ? qual é e o que é nesse e não naquele ? nesse enquanto esse é


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Trabalhar com dança site specific, em São Paulo, hoje, é uma escolha artística consciente ou um recurso para sobreviver no mercado da dança, ou os dois? Por que trabalhamos, hoje, em lugares não convencionais, praças, espaços de convivências, residências, foyer etc…? Trabalhar com dança site-specific, em São Paulo, hoje, é uma escolha artística consciente ou uma demanda mercadológica, ou os dois? Estamos operando na forma site specific? Qual é essa forma? Por que estamos cada vez mais trabalhando fora da caixa preta? Banalizamos o termo site-specific, sua forma está dissociado de seu conteúdo? Quem e quando trabalhou dança site-specific? No mundo, no Brasil - São Paulo, Teresina, Manaus, Minas, Pernambuco? É possível circular um trabalho Site-Specific? A partir do momento em que ele circula, ele não é mais específico? Uns são mais ortodoxos que outros? Suas especificidades estão ligadas ao seu contexto ou ao lugar ou a uma situação? Nosso contexto biblioteca – livro, mesa, estante, pessoas lendo, vista de cima, funcionários, frequentadores, silêncio, páginas virando, vista de cima, pessoas falando baixo, introspecção, sonolência, vira página, fala baixinho, sono, vista de cima? Biblioteca com muitos frequentadores, bibliotecas com poucos frequentadores, biblioteca com os mesmos frequentadores, biblioteca sem fluxo de frequentadores? Bibliotecas sem vista de cima, com vista de baixo e por baixo? Como trabalhamos nos mesmos contextos, mas em situações diferentes? Cada vez é uma outra versão do mesmo? Plongée 1, Plongée 2, Plongée 3, Plongée 4..., e assim vai? Apresentamos em outros lugares que não sejam bibliotecas mas tenha uma vista de cima? Como fazemos uma ocupação em detrimento de outras? Preciso manter o trabalho vivo, apresentando, circulando? Como faço isso? Isso é adaptar? Quais são as características desse trabalho que o fazem específico? Quais são as características que o fazem ser site-specific e ainda Dança Site-Specific? Qual é o diálogo que a dança cria com esse modo de fazer que se diferencia das artes plásticas? Qual é o trânsito que se estabelece entre corpo e espaço nessa prática? Como estimulamos nossa percepção, e sentidos para trabalhar nesses sites? É perda de tempo categorizar uma expressão artística? Ou é simplesmente uma tentativa para levar nossas experiências artísticas para um campo da consciência? Happenings, performance, site non specific, intervenções urbanas, flash mob, site-specific, Arte Contextual etc… Não importam os nomes? Importam escolhas? Importam escolhas conscientes? Importa especificidade? Importa particularidade? Banalizamos os termos para operar na forma? Usamos os termos para localizar nossa prática? Banalizamos o termo site-specific, sua forma está dissociado de seu conteúdo? Quem e quando trabalhou dança site-specific? No mundo, no brasil – São Paulo, Teresina, Manaus, Minas, Pernambuco? É possível circular um trabalho Site-Specific? A partir do momento em que ele circula não é mais específico? Uns mais ortodoxos que outros? Suas especificidades estão ligadas ao seu contexto ou ao lugar ou a uma situação? Nosso contexto biblioteca – livro, mesa, estante, pessoas lendo, vista de cima, funcionários, frequentadores, silêncio, páginas virando, vista de cima, pessoas falando baixo, introspecção, sonolência, vira página, fala baixinho, sono, vista de cima? Não importam os nomes?



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Ponto de vista sobre experiência dança site specific JULIANA GENNARI

Pensar a criação na dança em site-specific é um convite para ser e estar, de corpo inteiro, no espaço compartilhado com os transeuntes, público e obra. Um diálogo sensível entre o interior (experiência sensória) e o exterior (entorno), a fim de ressaltar a escuta e percepção de cada agente presente. Ao decifrar os acontecimentos cotidianos e particularidades do espaço, para o agenciamento espacial da obra, entende-se as questões pertinentes à semântica do trabalho como base para a estrutura final da performance. O alargamento e porosidade dos diversos corpos envolvidos dá volume à criação deste espaço de percepção do lugar que habitam. A satisfação como criadora-performer se realiza ao perceber a afetação e o recondicionamento do olhar de todos perante o espaço e si mesmo.



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SÃO JOÃO DEL REI, MINAS GERAIS biblioteca baptista caetano fundada em a primeira

municipal d’almeida 1827, foi biblioteca

pública a ser inaugurada na Província de Minas Gerais. 3 APRESENTAÇÕES DE PLONGÉE E 3 DIAS DE OFICINA DE DANÇA E SITE-SPECIFIC



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MANAUS, biblioteca

AMAZONAS pública

de

manaus

fundada em 1870, hoje em dia possui de

um 45.000

acervo volumes.

3 APRESENTAÇÕES DE PLONGÉE E 3 DIAS DE DANÇA E

OFICINA DE SITE-SPECIFIC

integrando a do festival

programação Mova-se



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TERESINA,

PIAUÍ

biblioteca comunitária jornalista carlos castello branco biblioteca federal

da universidade do piauí.

3 APRESENTAÇÕES DE PLONGÉE E 3 DIAS DE OFICINA DE DANÇA E SITE-SPECIFIC em da

parceria cidade

com de

o balé teresina



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OLINDA,

PERNAMBUCO

biblioteca

municipal

de

olinda

uma das mais antigas construções da cidade, foi

criada

3

APRESENTAÇÕES

E 2 DANÇA

DIAS

integrando festival

E

DE

em

1830.

DE

PLONGÉE

OFICINA DE SITE-SPECIFIC

a programação do Cena Cumplicidades

oficina em parceria com os grupos Magiluth e Coletivo Tenda Vermelha



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Infiltração debaixo do viaduto do chá ISABEL MONTEIRO

Pingo. Pingo. Começo a escrever o texto antes de chegar aqui, sinto um cheiro nauseabundo, maconha, mijo, meus pés desviam da merda e de repente esse mármore perene, passo a porta, detrás da janela, agora nas minhas costas, deve ser um bom esconderijo para um baseado. Estou debaixo da ponte, goteira. Goteira. Abro a porta e é de suor esse cheiro denso que me arrebata de imediato, sinto que invado um ensaio alheio, com certeza de um grupo, o cheiro é úmido, ainda estão aqui. Abro e fecho a porta com força para fazer vento.


Imagino vinte e oito bailarinas e um bailarino de dezesseis anos nos seus grandpliés, aquele primeiro do dia que estala o joelho das duas meninas das pontas da barra que se riem abafadas porque o som foi em uníssono. Goteira. Cabem duas bailarina em cada divisão da barra, o garoto grande não cabe, fica na ponta espremido. Hoje instalaram o ventilador e, na sala de espetáculo, cinco técnicos trazem o ar condicionado split, vai conter a marofa. O Thêatro de 1903 tem ligação com este porão por um corredor subterrâneo onde ficavam as baixas escalas da orquestra, os bailarinos e todo o pessoal da faxina. O túnel foi bloqueado por volta de 1968, depois que Klauss V. fez as bailarinas queimarem suas sapatilhas de ponta e tentar fuga para este submundo. Tem barras por todos os lados nesse lugar, até na antessala do banheiro tem barra, minha mão traz o calo daquele momento diário de esganiçar o ferro para alcançar o equilíbrio no retiré, para não mandar a professora tomar no cu – imagino o menino da ponta da barra pensando. Hoje, meu coração só acelerou quando pensei em sentar nesse linóleo preto e digitar palavras. Olhei pela janela e as nuvens carregadas me tiraram a coragem de levar o computador nas costas, e ainda a culpa de chegar com um Apple debaixo do viaduto. Aí, decerto, eu alongo, respiro, saudação ao sol, de repente durmo um pouquinho. E a fome me lembrou da maçã e do João Cabral, e o texto eu ia perdendo, mordendo a maçã, não tem problema se melar a folha: formiga não faz ninho em caderno, depois eu digito tudo isso e olho. Goteira escrever à mão é uma tarefa mais assimétrica do que digitar. Será que as crianças não têm mais esses músculos hoje em dia, os meus estão atrofiados. Respira fundo e aguenta, mais dez segundos, vai tirando aos poucos a mão


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direita da barra, mas não pensa em nada, só no umbigo, umbigo, umbigo, umbigo, acorde final, plié. Goteira. “Confirmar o Círculo com os pés” – escreveu Gonçalo. desenhar um círculo no chão fazer um círculo com os braços, bem redondo, mãos na direção do umbigo. Depois enrolar a coluna, alongar atrás das pernas, dobrar os joelhos e fazer bolinha, um tatu bola no chão, bem redondo, goteira. Eu faria grandpliés em oito tempos, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 goteira. E se desenho um quadrado com quatro pingos e quero transformá-lo em um círculo, coloco mais oito pingos: eis um círculo bem redondo. . . . .

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[ligue os pontos] então são oito pessoas, oito pingos de cabeça, para formar um círculo bem redondo. O balé é geometria, meu caro, e você é só um pingo. Sobe aqui na frisa para você ver, quer aparecer? Vai fazer cinema!


Eu sou um pingo, meu caro. E a revolução quer invadir este espaço, chão de mármore, piso de madeira. Que essa gente é foda, mudou o governo, acabou a ciclovia e essa revolução acaba num instante e a galera sem teto que ocupou aqui foi expulsa e eu nem sei se rolou quebra pau e eu tenho uns trinta metros quadrados de linóleo, um ventilador e estou com a bunda afundada no chão a escrever – no lugar de dar piruetas pelo espaço e aumentar o caldo desse suor, isso é dinheiro público e eu sou só um pingo. Que vergonha, meu Deus. Goteira e ai que alívio que o Gonçalo fala que escrever é corporal e orgânico e alguém falou que a arte é importante, porque o Gonçalo mesmo escreve por necessidade fisiológica – foi ele quem disse goteira. Pingo. Tenho pensado sempre que um salto a mais pode significar um salto a menos. Poupar o corpo ficar atento para não quebrar, torcer, romper. Como é mesmo aquela historia de que dança é vida, e ouvir os médicos, o corpo não é feito para isso e me dar conta de que o corpo foi moldado para o meu ofício e eu sei ver de longe o corpo da psicanalista minha mãe, em toda esquina que houver uma com mais de quarenta anos. E tantas são as faltas no corpo. buracos e concavidades. E será que a dança está sempre à procura do círculo; Um desejo constante pelo redondo – seja na forma do corpo, Seja no corpo no espaço


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Será?

A bandeira do Japão.

o joelho a palma da mão a sola dos pés A bandeira do Japão. o joelho a palma da mão a sola dos pés |

as chagas de cristo.

o pé se encaixa no ísquio o cotovelo na sola do pé | | | | | | Para acabar com a dualidade frente trás,

homem ereto, eu

quero ser bola, como a caligrafia aprender a fazer os círculos das letras como os meus seios goteira.



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Dança e Adaptabilidade FELIPE CIRILO

Este texto é uma reflexão sobre danças criadas para um lugar específico e que se adaptam a outro lugar mantendo seus processos e pesquisas. Sobre como se dá a leitura de uma criação em dança que se opõe a lógicas cristalizadas de realização. Uma reflexão que surgiu em uma das falas de Joana Ferraz e Ilana Elkis sobre o projeto Plongée, durante a conversa realizada em 7 de outubro de 2016, no Centro de Referência da Dança de São Paulo - CRD: quais os princípios e lógicas dessa dança? Para tanto, aqui se articulam algumas referências sobre processos de corpo, buscando clareza crítica aos nossos entendimentos de adaptabilidade em dança. De início, vamos ao caminho feito por Michel de Certeau com relação à métis. Segundo de Certeau, a métis é capaz de intervir em relações de forças, intervenção essa que é “em primeiro lugar a mediação de um saber, mas um saber que tem por forma a duração de sua aquisição e a


coleção interminável dos seus conhecimentos particulares”¹. Este saber caracterizaria a “experiência do ancião” e se compõe de muitos momentos e de muitas coisas heterogêneas, “não tem enunciado geral e abstrato, nem lugar próprio. É uma memória, cujos conhecimentos não se podem separar dos tempos de sua aquisição e vão desfiando suas singularidades”². A métis, em Certeau, ajuda-nos a construir o entendimento da imaterialidade de uma dança: o saber mediado por ela, a espécie de memória, cujos conhecimentos são intrínsecos ao tempo e às singularidades que a compõem. Ou seja, o nosso entendimento de que aquilo que ela faz e o lugar compõem reciprocamente o que ela é, sua totalidade. Assim se faz o convite à leitura de uma criação em dança para além do palpável, de suas bases de espaço, arquitetura, sem no entanto descartá-las. Os esforços de uma dança em relação a uma determinada arquitetura compõem intersecções com seus princípios e lógicas: métis, saber-memória. Quanto menos esforço no espaço, mais saber-memória no tempo. Assim, em menor tempo, são produzidas mais transformações no espaço. Essa é a representação esquemática que de Certeau chama de “volta”3, crescimentos e decréscimos que se articulam em proporções inversas. Quais as potências de saber-memória dessa dança? Quais saberes ela convida? Segundo o autor, se os esforços no espaço são reduzidos, surge o momento em que essas reflexões são levantadas, assim o espaço é alterado, os corpos que ali estão passam a compartilhar da ação, da dança em si. Constitui-se o lugar, vivo em relações de força, para além do material, do espaço, alterando-o. Um exemplo de alteração do espaço por meio de um reduzido esforço e consequente emergir de saber-memória foi o solo Depois da Parede (2014):

¹ Certeau, M. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. 22.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 146. ² Ibidem. ³ Ver Certeau, op. cit., p. 147.


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“uma das cenas em que me coloquei sobre um parapeito apoiado [em pausa] a uma das paredes do teatro, remeteu aos frequentadores do lugar a um garoto que havia cometido suicídio dias antes, no mesmo local, pulando do parapeito”4. Quando aceita determinadas lógicas cristalizadas de realização, uma dança se afasta do corpo, da própria adaptabilidade que é o corpo. Esta adaptabilidade está entre crises e equilíbrio, incessantes movimentos chamados de autorregulação organísmica. E o norte desses movimentos é a homeostase. Sim, falaremos agora da lógica que o mercado impõe à dança e sobre a biológica homeostase que compõe o corpo.

Depois da Parede. Direção: Nata Neumann. Festival Diagonales/ Argentina, 2014.

Uma criação que é intrínseca a um lugar, servindo de maneira única e exclusiva a ele, cujo tempo de permanência está pautado em parâmetros intitucionais dependentes de uma determinada estrutura física, limita-se à lógica de

4

Cirilo, F. Potencialidades do site specific em uma reflexão sobre a dança em paisagens urbanas. ArteRevista, São Paulo, n. 6, 2015, p. 79.


exclusividade do mercado, torna-se produto e propriedade institucional, diferente dos parâmetros apreendidos na própria relação dança/lugar, suas provocações e movimentos. Aos poucos, muitas delas [danças] foram se replicando e se assemelhando, como se estivessem saindo das velhas linhas de montagem fordista. A inquietação que deveria movê-las incessantemente acabou sendo reduzida a uma lista de clichês [...]. Uma disciplinarização, na forma de um checking-list de mesmices, acabou por despotencializar o que tinha vindo ao mundo para nos ajudar a lidar com ele.5

Katz se refere aos clichês que constituíram o entendimento de coreografia nos anos 1990. Nesse sentido, a dependência e exclusividade impostas à dança em relação ao lugar onde acontecem são o risco de um clichê que despotencializa a imaterialidade da dança, negando sua adaptabilidade, suas inquietações relacionais. Neste contexto, cabe-nos questionar com Miwon Kwon “qual status de valores estéticos tradicionais, tais como originalidade, autenticidade e exclusividade na arte site-specific, que sempre começa com as precondições particulares, locais e irrepetíveis do site, seja lá de que forma isso seja definido?”6. Quanto mais a materialidade é exclusiva e isolada, menores as potências simbólicas, políticas, experienciais e de adaptabilidade que são a inquietação artística potente no levantar de questões para além dos artistas e para além de um público exclusivo. Inquietação que tem nas suas imaterialidades a potência do encontro com imaterialidades diversas, que, mesmo heterogêneas, se conectam por uma métis, saber-memória. Essa potência de encontro que não atende à disciplina da exclusividade a uma estrutura física, ajuda-nos a lidar com o mundo, estando em contato com ele.

5

KATZ, H. Dança, Coreografia, Imunização em Pontes Móveis. Modos de pensar a arte em suas relações com a contemporaneidade. São Paulo: Cooperativa Paulista de Dança, 20133, p. 43. 6 Kwon, M. One Place After Another. Notes on site-specificity. October, v. 80, 1997, p. 96.


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Lidar com o mundo em seus muitos momentos e com suas muitas coisas heterogêneas é intrínseco ao corpo, de modo que a reflexão é simples: o corpo se adapta, a dança se adapta. “[...] na Teoria Corpomídia, nada nem ninguém escapam às transformações permanentes que ocorrem nos corpos e ambientes”7, sendo que “O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em negociação com as que já estão”8, como afirmam Katz e Greiner, no artigo “Por uma teoria do corpomídia”. Neste movimento, o corpo permanece corpo, a dança permanece dança. A dança em composição com sítios diferentes do seu original passa por disposições a receber e repelir, condizer e combater, no intuito de suprir necessidades de um equilíbrio. Necessidades a serem atendidas não necessariamente serão sempre as de o organismo ir buscar alguma coisa, por exemplo, alimento ou proteção, ela também ocorre quando “algo está demais”, por exemplo, o organismo se vê na contingência de se livrar de excessos, se livrar de amarras, buscar liberdade.9

A homeostase é o estado de equilíbrio em que as necessidades do organismo estão satisfeitas, mas o corpo sofre interferências do ambiente incessantemente, portanto os movimentos de autorregulação não cessam de adquirir o que falta e expelir o que sobra, assim o corpo, em relação e disposto ao ambiente, adaptase e sobrevive. Segundo Lilienthal, essa autorregulação se dá no corpo como totalidade, não apenas anatomicamente, mas também nas relações que estabelece com as normas sociais, conceitos morais e características culturais, pois uma pessoa 7

Sampaio, M. E. A. Um processo de criação cênica e a Teoria Corpomídia. São Paulo: Anda, 2011. Katz, H. e Greiner, C. Por uma teoria do corpomídia ou a questão epistemológica do corpo. AVAE, Archivo Virtual de Artes Escénicas, 2005, p. 7. Disponível em: <http://artesescenicas.uclm.es/archivos_ subidos/textos/236/Christine%20Greiner%20y%20Helena%20Katz.%20Por%20uma%20teoria%20do%20 corpomidia.pdf>. Acesso em: 15 out. 2016. 9 Lilienthal, L. A. Autorregulação Organísmica e Homeostase. Disponível em: <www.gestaltsp.com. br>uploads>. Acesso em: 15 out. 2016. 8


com o dedo indicador ferido por uma faca pode dizer: “cortei meu dedo”, como se o dedo nada tivesse a ver com o organismo ou “me cortei no dedo indicador”, entendendo o ferimento no corpo, que é organismo na sua totalidade e o dedo como a localização do ferimento. Outro exemplo é “a fala de um médico sobre seu paciente: ‘fulano está bem, os exames estão todos ótimos, ele somente está deprimido’ como se a depressão não fizesse parte do organismo e não o afetasse como um todo”10. O corpo se adapta, a dança se adapta. Se a integridade do corpo, organismo em sua totalidade, se dá para além de sua estrutura física – em normas sociais, simbólicas, características culturais e de experiências políticas –, a integridade da dança não é diferente. A arquitetura, o sítio, seu espaço físico compõem a dança sempre em intersecção com seus princípios: métis, saber-memória. Entendermos que a adaptabilidade inerente ao corpo não significa uma obrigação em deslocar criações em dança para diferentes lugares – em oposição a lógicas de exclusividade do mercado institucional –, porém, quando acontecem esses deslocamentos, a adaptabilidade orgânica nas relações entre corpo e ambiente legítima e explicita a potência em repelir, contrapor ou condizer aos lugares onde acontecem, de maneira atenta, sensível e integrada aos processos artísticos. Atentos e sensíveis à nossa época e aos embates que o organismo sofre em sua totalidade (que fique claro, nos referimos ao organismo dança), ele poderá se manter se tivermos clareza das suas prioridades. Se estas prioridades têm, isoladamente, a estrutura física como parâmetro, suas chances de existir diminuem. Assim, a dança em relação com um lugar específico não é confundida com dança de lugar exclusivo. O exclusivo (é necessária a redundância) exclui, 10

Ibidem, p.5.


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segrega e limita. Optar pela prática artística fora do palco italiano e suas imposições físicas e monetárias é um ato de borrar fronteiras, entendimentos. Um convite à relação, entre sutilezas e embates, visível e invisível, um convite às transformações. Esta reflexão em si é um ato de repelir excessos de dependência entre dança e sítio, assim como os movimentos de autorregulação organísmica, no entendimento de que a dependência e exclusividade reproduzem formas institucionais reguladas pelo mercado, cristalizadas e aparentemente intocáveis, inadaptáveis. Limitar uma dança à sua relação com um lugar exclusivo é um ato não relacional, pois vai contra a natureza do corpo, da dança, do movimento. Uma natureza de sutilezas, tempos e transformações que estão para além da dureza material. Que possamos rever nossos entendimentos sobre propriedade e liberdade de uma dança, assim como do corpo, na clareza de irmos contra a reprodução de heranças e entendimentos do corpo como instrumento e objeto de posse patriarcal e escravocrata, que não possui tempo, experiência, saber, memória e liberdade.



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A dança site-specific JONATHAS SANTOS

Dentre várias técnicas e estéticas de dança, observamos um leque de comunicação que se transforma com o passar do tempo, proporcionando um novo olhar e a uma linguagem mais atual. Observa-se ainda que, site-specific dialoga com um determinado ambiente escolhido pelo artista. Há quem saiba o que é site-specific, ou já ouviu falar dessa técnica que tem como objetivo criar obras de artes de acordo com o ambiente, em um espaço determinado, é arte planejada que visa dialogar com os que circulam pelo ambiente escolhido, e se esta arte (falo de todo tipo de arte), for deslocada do lugar não terá o mesmo significado. A dança como forma de arte tem a sua comunicação não verbal. E como complemento, se introduz um novo dialeto (se assim posso chamar), site-


specific, que usa um determinado lugar para montar sua obra coreográfica, como por exemplo a dança Plongée que é um projeto de Ilana Elkis e Joana Ferraz- criado em 2011, que usa a biblioteca como um lugar específico para sua atuação com a técnica da dança contemporânea, e que teve seu trabalho circulado pelo brasil com apresentação de oficinas. Por um evento realizado pelo casarão de ideias chamado VII Mova-se, festival de dança, tive o privilégio de participar desta oficina onde pude aprender esse novo olhar que é dança site-specific, e sua forma de criação. Vale ressaltar, que o ambiente se transforma e transmite a sensação e a forma de vê como o trabalho será criado, é o modo de como lugar específico nos dá a essência (lugar não é só uma arquitetura; o lugar pode estar em qualquer lugar). Através de exercícios de relaxamento e alongamento realizado nas aulas, tivemos o trabalho de sentir as sensações do ambiente, do que ele nos transmitia e o dever de ouvir o que o corpo pedia para fazer. Era um ouvir sem escutar, uma receita criada e usada para todos os nossos sentidos e forma de expressão corporal, juntamente com a temperatura que no caso, eram as sensações do ambiente para entender como a dança site-specific é criada. Assim como as letras formam poesias, do mesmo modo é o corpo com o ambiente, que nos dá as instruções de como irá ser executado esse corpo que está presente como objeto do lugar. Depois da teoria, partimos para a Biblioteca Pública do Estado do Amazonas para a realização de um trabalho mais prático, a observação, um complemento para entender o processo de criação site-specific na dança. Nas minhas observações percebi o comportamento de como as pessoas se relacionavam com aquele ambiente, sendo eles: falas sussurradas; a forma de sentar; a busca de livros nas prateleiras; a reação do chão ao andar; diferentes sensações a cada sala; som e a forma de como eles liam os livros, todas essas observações nos dão a direção de como o corpo interage com o ambiente e como iremos


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transmitir através da dança o dia a dia do lugar sendo que, ele mesmo nos dar a música para ser coreografada e os passos em si. Outra experiência de observação foi no Largo São Sebastião, em que as sensações e o modo de como o corpo fala eram bastante diferentes do que na biblioteca, como: tempo; a pressa das pessoas; turistas tirando fotos; amigos e famílias; cheiros; sons, todas essas duas experiências de “campo” pude perceber que a cada ambiente terei uma forma de me expressar, sentir e fazer a dança site-specific, pois os corpos se comunicam de forma diferentes e a cada estado presente a dança será uma assinatura do deste lugar, não podendo ser feita em teatros, salões, bares e etc..., que não seja o lugar escolhido para a criação da dança.



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Marcha para a desordem RENATO JACQUES DE BRITO

Núcleo Mirada. Projeto Rede Cala. Praça Júlio Prestes. Chão vermelho. Cinco mulheres estão prestes a marchar ao som da cidade. Ritmo. Trem. Pernas. Progresso. Coisas móveis. Outras não tão. Coisas. Vivas outras nem tanto. Árvores. Estátuas. Estaturas. Postes de iluminação. Cachorros. Pombos. Meu escritório é na praça. A guarda civil atrás de mim. Elas calçam botas de operário chão de fábrica. Vermelho gago. Agora. É ensaio, mas já está valendo. Ensaio. O que não é? Processo. Um saco plástico voa ao vento. Um homem passa a olhar para mim. Olha para mim. O que sentirá?


Isso é o quê? É um curso? Algo que a gente pode utilizar? Utilizar? Ele diz que é um curioso, um ambicioso. O quê? Outro saco voa ao vento. Coisas ao vento. Voam. As leves, as pesadas não. Policiais. Nas duas laterais da praça. O que é isso aí, meu irmão? Você faz documento? Faço. Uma frase é tudo que alguém precisa para começar. Policiais passam. Me olham. Todos olham para cá. Um sujeito sentado à máquina no meio da praça. Chama atenção. Atenção aos movimentos do tai chi. Elas vão flutuar. Daqui a pouco. Levantar voo e flutuar enquanto a estátua insiste em ficar lá. Marcha. Quartel degenerado. Passa por mim um sujeito que já vi, com quem já troquei palavras. Ele olha. Tempo de reconhecer. Um sorriso. Lá uma. Obra de ferro. Concretista. Sangue concreto. Mais um sorriso. De classe. What’s going on here? Às vezes um cheiro de cocô humano. Na semana passada um homem me disse que eu só estava sentado aqui porque era gringo. Isto daqui está um lixo, ele disse. Agora um outro me diz, com uma cara zombeteira, isso é coisa do passado. Tem. Inicio a marcha. Em minha direção. Passam por mim. O fluxo de pessoas aumenta. Um homem passa alisando o bigode com uma gilete inócua. Ele alisa o bigode e cheira a gilete, alisa o bigode e cheira a gilete. Um pombo. Um casal quer tirar uma foto minha. Eles se dizem felizes por estarmos aqui, a preservar a cultura. É isso aí, guerreiro. As pessoas me saúdam. E aí, escrivão? Uma policial de batom bem vermelho. Óculos escuros. Um avião particular cruza o céu. Elas vão começar a marcha. Pequeno. Marcando. Escreve meu nome aí. Uma mulher me imita numa máquina invisível. Tem início a marcha. Hei! Um homem de olhar profundo se aproxima. Há muito tempo eu não vejo uma destas. Hei! Vai e volta. Em evidência o caminhar de todos. O caminhar. Hei! Um homem feminil fuma ao passo que nos olha, depois atira longe o cigarro.


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Uma mulher se alinha com elas. Hei! O fluxo de pessoas a passar aumenta. Muitas. Muitos. A caminho do trabalho. Hei! À frente. Em cima. À frente. Perto. É teatro, isso? Mais ou menos. Um homem passa a cantar. Elas estacam. O vento vibra as membranas de algodão e fustiga as letras recém-impressas na folha de papel. O som da máquina. O som da bengala de um homem que parece não entender nada. Ele olha. Difuso. Para os policiais. Que passam a três. Hei! Homens de uniforme. Hei! O fluxo das pessoas impõe uma dinâmica. Cheio. Vazio. Denso. Espaçado. O som dos automóveis, o som do rádio dos policiais. O mato a meia altura da praça. O fluxo se intensifica. O trem acaba de descarregar pessoas. Tempos em tempo. Hei! Desconjunta e volta. Desconjunta, gira. Hei! E volta. Um homem baixo, atarracado, passa bem perto de mim. Elas se vão a marchar. Ao longe, grafites alegres nas paredes. Um ônibus com os dizeres Missão Belém. Pela praça toda a gente a marchar. E a estátua lá, parada, num gesto eterno. Pedra. Tempo que sobe com o subir das pernas. Uma rabiola de papagaio sacode ao vento pregada num poste de iluminação. Sacos plásticos passam por nós a carregar pessoas com coisas dentro. E me olham. Pessoas de todos os tipos, algumas mais imediatas, outras menos. Uma sombra ondulante lembra uma chama em negativo. O mato a crescer agora. Na praça. É teatro. Mais ou menos. Muitas coisas passam por nós dentro de sacos plásticos. Elas estão de mãos dadas? A boa distância? Pedra. Tempo. O corpo sentado a escrever que os ísquios lhe doem e o tronco encurta. Rola? Eu acho que rola. Um sorriso banguela. Plim! O som do fim da linha. Plim! Simpáticas agentes de saúde passam acompanhadas de figuras frágeis. Parecem doentes. Uma magreza horrível. Um homem assobia. Prostitutas de rua? Do chão da rua. Cumprindo seu duro dever e protegendo o seu amor. E nossas vidas. Cantarolo a letra da canção. Os policiais. Essa máquina aí


é mais velha que a minha avó. Pessoas me cumprimentam como se me conhecessem. Um homem despachado passa a cantar. Ó, aí sim, hein. Melhor lugar de escrever. Mais e mais coisas. Passam, semiescondidas no interior de sacos plásticos. Puxa, isso é do meu tempo. Isso sim é ser um bom datilógrafo. O mundo moderno de hoje em dia não me encanta. A carta é tão mais sincera. Pelo celular não é tão sincero. Eu nunca mais vi uma destas. Um pombo passa bem perto. Um Aladim passa por nós em um tapete voador. Sério. Real. Surreal. Ao passo que elas se perguntam se podem dilatar o tempo, um carro da guarda civil passa vagarosamente. Hei! Marcha. Homens sorriem. Hei! Depois nós é que somos os nóia. Meu amigo, estamos em 2016. Datilografia? O projeto é precário? É isso? Hei! Um helicóptero sobrevoa. Marcha. Duas mulheres sentadas ali ao lado parecem comentar o que estão a ver. O que estamos a ver? Desconjunta, gira, volta, para, alinha. Hei! Marcha. As botas batem pretas em uníssono no chão. Tosse. Bocejo. Suspensão. Um silêncio entre aspas. Tudo suspenso. Tomo um baita susto quando a Karime grita. Hei! Sol. Sombra. Ou quase. Liana é a primeira a adentrar o sol. Hei! Desconjunta, gira e reorganiza. Hei! Elas vêm sisudas na direção do texto. Concentração para lançar a perna que voa e adianta o corpo junto. Um homem passa, a cabeça para um lado e para o outro, em desaprovação. Algumas pessoas se aproximam, como se viessem me dizer algo, mas nada dizem. Hei! Vêm elas. Em direção ao texto. Alguém canta Raul Seixas ao longe. Tente outra vez. Multidão de sacos plásticos. Passa pela máquina de datilografar. Duas mulheres. Uma sorri a outra não. Aquelas duas seguem sentadas lá. Hei! Outras duas seguram a mão de uma garotinha. Desconjunta, gira, reorganiza. Hei! Duas garotinhas passam de mãos dadas. Estão espantadas com o que veem. O quê? Escreve meu livro. Bom dia. É teatro? Tem vaga? Passa um cego atrás de mim. As pessoas pedem explicação. Explicação? Um homem começa a marchar e girar com elas. Outro homem se recolhe a um canto para cuspir na parede. Elas agora estão paradas. Miram o longe. O nada. Suspensão. Descanso. Tensão. Helicóptero. Hei! As


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botas batem pretas no chão. Hei! Meus ísquios doem. Banco duro. Sentado. Sombra para o sol. Para a sombra. Os policiais olham. Confusos. Alguém lá longe grita. Hei! O que é isso? Sorria, você está sendo descrito. Hei! Vocês têm um objetivo? Vocês são uma ONG? Pergunto a uma assistente social o que ela faz aqui. Ela e a colega trabalham com usuários de craque. Redução de danos. Passa o Aladim outra vez sobre o tapete voador com controle remoto. É só um delay do vento. Um pombo em sobrevoo. Cinza azul em degradê. É o metatarso que vai primeiro ao chão, não o calcanhar. Mas sem fazer ponta. Solta mesmo em cima da perna. Liana me pergunta se eu quero uma bota também. Bota e boné. Revolução. Trabalha bem, hein, negão. Você é louco. Um ônibus, Rápido Perus, passa por nós. Garotos põem as cabeças para fora da janela e dizem coisas que eu não entendo. A estátua insiste em seu ego. Gesto. Pedra. As pessoas me cumprimentam. Tem algo neste datilografar ao ar livre. Respeito? Nostalgia? Algo no olhar das pessoas. Fazer filho para encher cadeia? Melhor fumar maconha, cheirar cocaína, fumar craque, do que puxar uma arma. Ele não se parece com o que diz. E demonstra um prazer especial em realizar os gestos de quem maneja uma pistola. O prazer de fingir. Melhor do que atirar? Você é jornalista? Não, sou usuário. Lá vem o homem bomba. As pessoas começam a se repetir. Um mesmo homem que foi agora vem. Agora volta. Quatro policiais passam bem perto de mim, um deles me cumprimenta, sutil, mas firmemente, tipo policial. Hei! O sol já está pela metade do espaço. Você é antigo, hein, companheiro. Essa máquina funciona? Um homem antigo. Sentado frente a um objeto antigo. A escrever coisas antigas a respeito de coisas leves que voam com o vento. Agora. Gestos antigos para corpos breves. Os ritmos. Das pessoas. Compõem. O ritmo delas. Um homem bem sujo para ao meu lado. Observa. Este objeto. Pernões acompanhados de carões vêm em direção a nós, eu máquina, texto e homem sujo. Marcham agora com toda a força. O efeito é outro. O espaço


adensa. Ao mesmo tempo em que esvazia de gente. Cheio vazio de olhar. Hei! Você escreve o que vem à sua cabeça? Com força as pessoas olham de outro jeito. Você preenche papel? Sim, literalmente. Algumas pessoas passam em estado, cheiro e consistência deploráveis. Pessoas em decomposição. Alguém lá longe filma o que estamos a fazer. Três jovens com carrinhos cheios de mercadoria observam. O que veem? Dois se vão, um fica. Dois esperam, um vai. Vem, Sofia, sai daí! A menina se mete no meio da marcha. Que física é esta? Quântica. Um senhor curioso. Diz coisas de modo veloz, como se dissesse duas, três palavras ao mesmo tempo, sobrepostas. Me chama de professor. E se mexe. E faz gestos. E poses. E então faz uma abertura. Ele quer saber se eu o acho parado ou em movimento. Adriane. Ela já tinha vindo falar comigo, veio novamente. Eu não sei quem vocês são, eu não sei o que vocês fazem, mas tem uma luz.

***

Começo antes do começo. Elas se aquecem. A máquina de escrever dançarinas a marchar na praça já chama atenção. Do arco da velha, uma mulher diz. Hoje o carro da guarda civil está longe, lá. Eu sempre quis ter uma máquina de escrever, alguém diz. Hoje o céu é outro, mas a estátua segue lá, firme em pedrada pose. Crianças brincam longe, se equilibram sobre os aros de prender bicicleta. Três policiais passam. De lá para cá, tudo lá. Uma mulher de óculos escuros a nos olhar. A olhá-las. Ela nos observa, se senta, à luz, de fim, de dia. Hoje, tudo o que elas fazem adere ao espetáculo medonho de ontem na câmara dos deputados. Dois policiais ao fundo. O que pensarão? O que verão? Um garotinho passa por nós, correndo, feliz. A mulher se vai, se foi. O


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mato da praça segue alto, descuidado ao som da sirene de um carro de polícia. Um cara me cumprimenta, já me acostumei. Um Dia. Emblemático. Olha a coreografia da hora aí, alguém diz. Viverá aqui? Na rua? Os assistentes sociais a circular. A máquina a céu aberto a impressão que causa. Uma cordialidade. Um homem grande, forte, vestido de preto, ao celular, passa por mim, e naturalmente me cumprimenta. Outro alguém me sorri. Um grupelho de crianças passa por mim, uma garotinha me dá tchau. Será que já viram uma destas antes? Da hora essa máquina de escrever, alguém diz. Elas se preparam para começar. Alguém as fotografa. Um encapuzado passa ao longe. Prédios duros. Árvores moles. Cabeças errantes. Contornam o céu. Gente que marcha, por natureza segunda. Um cão. Vaga. Mais cedo um pombo bebia água. É uma cadela, na verdade. E seu olfato está interessado no conteúdo de uma mala a atravessar um homem pela praça. Uma criança num carrinho de bebê. Há menos sacolas plásticas no fim da tarde. Você é escritor? Me pergunta uma assistente social. Elas ainda não começaram. Já faz um tempo que estou aqui sentado a escrever este lugar. O que vai acontecer aqui? Um homem me pede dinheiro para completar a passagem. Elas se abraçam, num círculo ritual. Os objetos que voam ao vento. Os que não voam. Calças jeans. Botas pretas. Silêncio. Karime desce a escada suavemente. Hei! Começou. Hei! Do fundo da garganta. As pessoas param a olhar. Pernas se lançam a noventa graus. Gira, desconjunta, gira, reorganiza. Elas olham na minha cara e gritam. Hei! Alguém a imitar o movimento delas. Aos berros de uma maritaca se sobrepõem à sirene de um caminhão do corpo de bombeiros. O papel se agita com o vento. Quer voar. A máquina é que não deixa. Gira, desconjunta, gira, reorganiza. Liana leva uma câmera atada à cintura. Olho na barriga. Hei! Os pés vão lá no alto. A respiração ofegante da Maryah, que estacou ao meu lado. Dois cigarros acesos em paralelo no espaço da minha visão. Outros três policiais. O que pensarão? O que verão nestas


cinco mulheres a marchar o bater forte do pé no chão? Bacias. Quadris. Elas afligem o espaço, alteram o que vem a ser o caminhar das pessoas. Impressão de que todos marcham agora. Hoje as pessoas parecem mais impressionadas com o que veem, afinal hoje elas fazem mais forte do que nunca. Passa um grupo de homens vestidos como maritacas. Verdes uniformes, detalhes em amarelo. Nossa, alguém diz. Este é o primeiro sintoma, outro diz. Sintoma? Ao largo, o som de uma música gospel que se solta da carroça de uma catadora de papel. Jesus. Mais uma pessoa a imitar a marcha delas. Hei! Em minha direção. Novo som de sirene. Em algum lugar algo pega fogo. Um sujeito de bicicleta cruza veloz o espaço, num salto. Elas agora emparelhadas. Estacadas. Como a estátua que insiste em ficar lá. Um garoto passa a chutar o ar. A marcha é retomada. Hei! Do fundo da goela. Hei! Definitivamente, o fim da tarde não é o horário das sacolas plásticas. Pela manhã eis que vão. De noite eis que não voltam. Outra sirene. Sim, algo pega fogo lá fora. Os insurgentes atearam fogo à prefeitura. Ao congresso. É inflamável o banco central? Felipe, lá bem longe, nos vê. Também gosto destas coisas vistas de longe. A iluminação pública a dar sinal de vida. Vai acendendo aos poucos. Azul. Verde. Amarelo. Luz do céu. Luz dos postes. As luzes de um hotel, dos faróis, dos semáforos, as luzes de freio. Elas ainda não sabem que a gravidade desta marcha está a entusiasmar telepaticamente acontecimentos outros. Elas não sabem que estão a conjurar forças invisíveis. Um senhor avista a marcha e faz a saudação nazista. Um casal se senta para vê-las. Um homem passa com uma cara curiosa. Depois também uma mulher. A força gravitacional da máquina de escrever altera as rotas das pessoas. E enquanto isso, algo acontece e elas não sabem. Aqueles mesmos três rapazes da semana passada. Mais uma vez param os três, com seus carrinhos cheios de mercadoria, a olhar para nós. Hei! Neste momento, os bombeiros tentam apagar o fogo. Uma mulher está fascinada pela marcha. Olha, sorri, quer. Uma fronteira invisível a impede. Ela caminha de um lado para o outro. Olha, sorri, e não sorri. Agora está a contar quantas são. Serão cinco? Alguém berra ao fundo, parece se comunicar. Uma carreta cheia de


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lixo. Hei! Hei! Alguém passa a olhar a máquina. Outra sirene. Anoitece. Devem ser umas seis e vinte da noite. Uma mulher corre para pegar o trem. Um saco plástico, finalmente, um sobrevivente, adentra a cena, para ao lado de uma pena de pombo, pausa, e segue seu caminho. Objetos que voam com o vento. Lágrimas voam com o vento? Gira, desconjunta, reorganiza. O fim se aproxima. Elas se alinham, em paralelo. Arfantes. Descansam. Cansadas. De costas, Maryah desaba sob o brilho das luzes artificiais. O vermelho das sirenes a refletir nas superfícies. O lusco fusco, a pouca luz de todas as luzes. Outra sirene. O que acontecerá lá fora? O que fizemos sem saber que o fazíamos? À noite a estátua é só um pedregulho. É forte, esse final, final, esse final. Elas sobem os degraus, um a um. Um olhar de bigode. O suor nas costas delas. Maryah desaba outra vez. Meus ísquios reclamam. Elas caminham, adentrando lentamente o outro lado, escuro, da praça. Aos poucos elas vão aderindo à escuridão. Caminhando até sumir no espaço. A única que ainda vejo é Liana, que tira as botas e as oferece às pessoas que passam. Toma estas botas com a qual acabo de marchar. Pela desordem que se dá em algum outro lugar. Tenho certeza. Eu te ofereço estas botas. Toma, moço, toma estas botas com as quais acabo de marchar pela desordem. Oferta sem procura. Arte? Está acabando, vai acabar. O que fará esta mulher que nos oferece suas botas? Chris reaparece e passa por ela. Diz algo que não ouço. Ninguém quer as botas. As pessoas passam reto. Uma mulher quase as aceita, mas não. Liana ali, parada, no mesmo lugar. Toma, moça, toma esta desordem. Um filme. Moça, toma. Uma mulher então aceita as botas e a desordem as leva consigo. Acabou. Liana se senta no chão, desbotada. Parece acabada. Acabou.



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Glossário específico de Site Specific DIOGO GRANATO

Site Specific – você desenvolveu um trabalho para que ele aconteça naquele sítio específico. Site Non-Specific – você desenvolveu um trabalho para que ele possa acontecer em qualquer sítio. Specific Non-Specific Site – você desenvolveu um trabalho para que ele possa acontecer em qualquer sítio de um tipo específico. Non-Specific Site Specific – você desenvolveu um trabalho que pode acontecer em qualquer sítio, mas uma vez que acontece em um, ele terá características específicas. Specific Non-Specific Site Specific – você desenvolveu um trabalho que especificamente tem que acontecer em qualquer sítio, mas, uma vez que acontece naquele sítio, ele terá características específicas. Site Specific Non-Specifically – você desenvolveu um trabalho para que ele aconteça naquele sítio específico, mas não especificamente para aquele sítio. Specifically Specific Site Specific – você desenvolveu um trabalho especificamente específico para que ele aconteça naquele sítio específico. Non-Specifically Specific Site Specific – você desenvolveu um trabalho não especificamente específico para que ele aconteça naquele sítio específico. Non-Specifically Specific Site Non-Specific – você desenvolveu um trabalho não especificamente específico para que ele possa acontecer em qualquer sítio. ...ad infinitum


A publicação ILANA ELKIS E JOANA FERRAZ

....................................................................................3

Perguntas específicas para lugares específicos ILANA ELKIS ........................................................................................................5 Site-specific reading JOANA FERRAZ ...................................................................................................11 Ocasião 1 JOANA FERRAZ

...................................................................................................17

Site-specific para plongée CLARISSA SACCHELLI ............................................................................................23 Ocasião 2 ILANA ELKIS .......................................................................................................29 Ponto de vista sobre experiência dança site-specific JULIANA GENNARI ..............................................................................................33 Fotos Circulação .........................................................................................34 Infiltração debaixo do viaduto do chá ISABEL MONTEIRO ...............................................................................................49 Dança e adaptabilidade FELIPE CIRILO ...................................................................................................55 A dança site-specific .............................................................................................63

JONATHAS SANTOS

Marcha para desordem RENATO JACQUES DE BRITO ....................................................................................67 Glossário específico de site specific ...............................................................................................77

DIOGO GRANATO

Apoio


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PROJETO PLONGÉE - DANÇA NAS BIBLIOTECAS DO BRASIL Organização: Ilana Elkis e Joana Ferraz Artistas convidados do encontro/ conversa: Clarissa Sacchelli e Carmen Morais Preparação corporal: Juliana Moraes Produção geral: Viviane Bezerra Produção local: Carlos Canaan (São João Del Rei) | Instituto Punaré (Teresina) Design Gráfico: Ricardo Vincenzo Parceiros: Casarão de Ideias, Casa de Cultura de Teresina, Ballet da Cidade de Teresina, Espaço Texas, Grupo Magiluth, Coletivo Tenda Vermelha, Biblioteca Municipal Baptista Caetano d’Almeida, Biblioteca Pública do Amazonas, Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco, Biblioteca Pública de Olinda PLONGÉE Concepção e performance: Ilana Elkis e Joana Ferraz Trilha Sonora ao Vivo: Ricardo Vincenzo Luz (Centro Cultural São Paulo): Lia Soares Agradecimentos: Junior Júnior, Arnaldo Siqueira, João Fernandes, Artur Cláudio da Costa Moreira, David Carvalho https://www.facebook.com/plongeecirculacao/

LIVRO Organização: Ilana Elkis e Joana Ferraz Autores: Clarissa Sacchelli, Diogo Granato, Felipe Cirilo, Ilana Elis, Isabel Monteiro, Joana Ferraz, Jonathas Santos, Juliana Gennari, Renato Jacques de Brito Projeto Gráfico: Ricardo Vincenzo Revisão: Ana Godoy Tipologia: Futura Book Papel: Offset 75 g/m² Impressão: Gráfica Cinelândia Tiragem: 100 1ª Edição São Paulo, 2017

Realização

Este projeto foi contemplado com o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2014



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