Diário de Olivier: Um relato de uma amizade

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DIÁRIO DE OLIVIER: UM RELATO DE UMA

AMIZADE

Movimento

Pintura de Jean Hélion, “L'Homme au Front Rouge” (1946)

“Paris, por causa de sua centralidade, deu aos artistas a força de serem intuitivos, céticos, ferozmente individualistas. Paris era um lugar, mas também uma ideia, libertadora em sua grandeza. E assim foi em Paris que a maioria das revoluções essenciais da arte do século XX teve seu início. ”

Jed Perl

Janeiro, 1928

Talvez você já me conheça, ou talvez não... De qualquer forma, me chamo Oliver e sou um jornalista, tentando sobreviver numa França que já não é mais a mesma depois da Grande Guerra. Entenda que, como jornalista, a chuva de notícias que chegava, fazia com que corríamos para informar o resto do país, na procura de manter a esperança de dias melhores sobre a nuvem da eminente vitória, foi realmente contagiante. Porém, como homem, vi e vivi tragédias inimagináveis, que nem mesmo Deus poderia prever o quanto o ser humano pode ser tão terrível na busca de objetivos tão rasos.

Prefiro nem relembrar!

Por mais que se já tenha passado dez anos, existe ainda cidades que estão tentando se recuperar dos estragos que restou. Por isso, por mais que eu prefira ficar em casa, na minha própria companhia, sinto uma ânsia em mim de viajar pelo país ajudando as pessoas de algum jeito e, até mesmo, relatar tudo para que ninguém jamais esqueça do que aconteceu.

Então, meu caro amigo diário, você será meu único acompanhante nesta aventura sem data para acabar. Vou arrumar a mala e partir já! Até logo!

Março, 1928

Olá meu caro amigo diário, por favor não se sinta abandonado. Nesses últimos dois meses, viajei por algumas cidades que é nítida a transformação que sofreram com as mudanças de alguns costumes, principalmente

também que agora é comum homens e mulheres trabalhando juntos nas fábricas com suas grandes produções em massa de diversos produtos. A vida calma virou passado, é fato. As pessoas só pensam em trabalhar, trabalhar e trabalhar, é um pesadelo e tanto para a maioria ficar parado sem emprego ou sem produzir qualquer coisa que seja, mas ainda assim, a diversão é um privilégio para poucos. Eu me sinto tão vivo em poder observar, viver e aprender mais sobre esse novo tempo! A esperança agora é realidade, onde cada um pode buscar a maneira como queira viver. Posso dizer então, que não pertenço mais a uma cidade só, a França inteira agora é a minha casa de diferentes formas. Creio que já deve de ter percebido que sou mesmo um observador nato e tímido de natureza, nunca fui de ter amigos, mas isso em nenhum momento, me incomodou de alguma forma.Talvez, seja por isso que escolhi o jornalismo para seguir, o que foi, de certa maneira, reconfortante poder ficar por trás das palavras. Mas agora, graças a isso estou tento a oportunidade de também ter contato, fazer amizades com diversos tipos de pessoas, inclusive as mais influentes do país.

Numa dessas longas viagens de trem, conheci o arquiteto Le Corbusier. Logo no primeiro momento, já pude perceber que ele é um homem de muitas opiniões, ideias estranhas e, com toda certeza, bastante curioso. Ele ficou me contando um pouco sobre suas viagens, onde, quando jovem, preferiu abandonar os estudos formais e ir aprender “na prática”, analisando e desenhando a arquitetura de vários séculos pela Europa, chegando à conclusão do que é realmente essencial e atemporal. Penso que, talvez, isso daria um ótimo livro...

É interessante como ele enxerga o mundo, como se a arquitetura fosse uma extensão do seu corpo. Ao mesmo tempo, por alguma razão que não compreendo, por mais que tente me explicar, ele rejeita todos os antigos estilos arquitetônicos como se a humanidade tivesse desperdiçado esforços e materiais. Defendendo sua ideologia, repetia “devemos esquecer o passado e seguir em frente, produzindo um presente progressista e um futuro modernista”.

Lembro-me de minha infância, onde, na cidade que fui criado, a maioria das obras eram ecléticas, além de já antigas e outras mais que não sei quais estilos pertenciam. Então, as pessoas de lá, não se preocupavam em seguir um único estilo, um conceito; aproveitavam o que já estava construído ou construíam somente o que lhes era conveniente. Acredito que, por consequência, eu nunca prestei a devida atenção nas edificações, apenas no cotidiano e nas pessoas. Aquele senhor realmente me deu o que pensar.

Junho, 1928

Le Corbusier está se tornando cada vez mais meu amigo. Trocamos algumas cartas, nas quais, me contou um pouco sobre algumas de suas obras já feitas. A que eu mais gostei foi a Villa Roche, construída em 1925 para o

bancário suíço Raoul La Roche residir e expor sua coleção de obras de artes, em Paris. Pelo o que ele me explicou, para proporcionar um passeio único pela casa, utilizou-se de planos e recortes, tento uma fachada assimétrica. Conseguiu isso através da junção de dois volumes, sendo um deles curvo e sobre pilotis, em formato em L perpendicular ao plano e janelas em fita.

Até mesmo o uso das cores cinza escuro, azul e vermelho pálidos no interior foi proposital para contrastar com o branco do exterior, gerando uma estética policromática enfatizando ainda mais a assimetria harmoniosa da obra. Nas palavras dele: “Pitoresca, cheia de movimento, mas que requer uma clássica hierarquia para discipliná-la.”

No fim, se reparamos bem, são esses detalhes que formam as complexas obras dos arquitetos, que, normalmente, eu não perceberia, por mais bonito que o conjunto me parecesse. Imagina eu estudando as teorias da arquitetura? Parece até piada, mas não posso dizer que é uma má ideia. Porém, o que me encanta mais é a empolgação do Le Corbusier, tanto na sua voz quanto nas suas palavras escritas nas suas cartas, sobre o que já fez e irá fazer. Ele é realmente um homem admirável.

Agosto, 1928

Olá meu caro amigo diário, hoje estou bastante empolgado! Le Corbusier me convidou para ir visitar a construção do seu mais novo projeto e eu usarei isto como desculpa para finalmente viajar para Paris. Ele vem a meses abrindo os meus olhos para um mundo que eu não via, mesmo participando dele sem intenção. Me disse que, essa Era que estamos vivendo, está sendo chamada de Modernismo, que consiste, basicamente, num movimento artístico e cultural criando-se ideias e métodos novos para variados ramos, numa maneira também de negar o passado e exaltar o futuro, o que, consequentemente, está se refletindo diretamente na sociedade. O que antes não fazia sentido para mim, agora faz. Ou seja, o meu gosto e constante desejo em registrar o cotidiano de maneira mais coloquial nos jornais em que já trabalhei, é simplesmente este movimento acontecendo, fluindo igualmente através de mim, num ciclo contínuo de influenciar e ser influenciado e,

esta constatação, me deixou com vontade de escrever cada vez mais! Deve-se ser assim também com ele e sua arquitetura, certamente. Bom, serei breve pois o meu trem partirá logo e quero aproveitar cada segundo do que resta desse mês e do verão com a esperança dos próximos jantares serem fartos e acompanhados de bons vinhos. Vivendo e sendo Paris como dever ser!

Setembro, 1928

Em Poissy, nos arredores de Paris, Le Corbusier constrói mais um de seus projetos: uma casa para uma família pequena e abastada poder também desfrutar dos prazeres do campo, ou pelo menos foi essa a justificativa. Não entendo qual a necessidades que essas pessoas sentem em querer ter várias

casas, sendo que uma já é suficiente.

De qualquer maneira, Le Corbusier me contou que aproveitou este projeto para aplicar na prática toda a sua teoria de que, na arquitetura modernista, existe 5 pontos essenciais: fachada livre, janelas em fita, pilotis, terraço jardim e planta livre; como prova de que está certo para outros arquitetos.

Quando cheguei lá, o dia estava realmente lindo com o sol triunfante no céu e, apesar de todo aquele barulho típico de obra, nada conseguiria acabar com a beleza de lá.

Fiquei-me questionando se, por acaso, algum daqueles incansáveis trabalhadores já teria parado para contemplar a natureza ou, até mesmo, no encanto que a complexidade de seu ofício tem, como eu estava fazendo naquele momento. Meu amigo veio me cumprimentar tão alegremente que preferir

guardar este pensamento para mim mesmo, ou melhor, dividir apenas com este meu diário.

Embora fosse contagiante as inúmeras possibilidades que emanava daquela nova obra e mesmo sabendo que ele já não era mais um arquiteto qualquer, uma parte de mim ainda estava com pé atrás se realmente todas as ideias representadas naquelas várias folhas dariam certo. Entendo que, no papel, o traço é livre e infinito, mas na realidade é bastante limitado.

Obviamente, ele discordou e me chamou de tolo, explicando que a possibilidade de dar errado simplesmente não existe, pois a utilização em conjunto do concreto armado, aço e vidro estava gerando que tudo, ou quase tudo, fosse possível ser criando, construído. Ele ainda enfatizou: “Por isso meu jovem, não devemos esconder os verdadeiros materiais

utilizados atrás de adornos desnecessários, principalmente nas fachadas, como faziam antigamente.”

Le Corbusier continuou a falar que, na arquitetura atual, emprega-se o favorecimento da simplicidade, mas sem ser simplório, isto é, o uso de formas simples, geométricas e livres, criando projetos mais orgânicos, curvilíneos e que geram uma maior integração entre o interior e exterior das obras. Com isso, o design dos objetos deve ser baseado puramente em seu propósito, ou seja, a forma deve sempre seguir a função.

Depois disso, de fato, ficou difícil não concordar.

Pedi então, para me contar mais sobre o seu novo projeto, eu estava interessado de verdade. Com um sorriso no rosto, me respondeu dizendo que é a releitura racional da casa de campo francesa, pois, enfatizou ele, “a casa é

uma máquina de morar”, ou seja, deve ser eficiente! O campo livre, permite que a obra em si seja o seu próprio contexto e refletirá as novas técnicas construtivas, a arquitetura modular, a estética minimalista e o seu atual interesse, questionável diga-se de passagem, pela tecnologia e design dos navios a vapor, o que influenciou diretamente no planejamento espacial dessa futura residência.

Dando mais detalhes, ele completou: “Os pilotis sustentaram os conveses, as janelas de fita que correram ao longo do casco e as rampas proporcionaram um momento de saída de convés em convés. Nisso, ao acessar, parecerá que está flutuando acima do fundo pitoresco da floresta, suportado por finos pilotis que pareceram sumir na linha das

árvores, pois o nível inferior será pintado de verde para aludir um volume flutuante. Isso contrastará com o branco no restante da obra.”

Ouvi suas palavras completamente encantado, ainda mais se imaginar que tudo isso ficará em torno de um pátio que levará a um terraço jardim, separando as áreas públicas e privadas distintamente, com o uso de planos abertos no restante da casa.

Perguntei se a obra já tem nome e ele respondeu dizendo que

dúvida se chamará de “Les Heures clairs” (Horas de Luz) ou de “Villa Savoye”, de qualquer jeito, acredito que um ou outro combinará perfeitamente.

Aquela foi mesmo uma bela visita, tanto a Paris quanto como poder presenciar a construção de um lar do zero; sendo enriquecedora e tranquila como as férias deveriam sempre ser. De fato, levarei Le Corbusier como meu amigo para o resto da vida.

Novembro, 1928

Olá meu caro amigo diário, hoje venho me despedir de você.

É inegável que ter passado boa parte do ano viajando, inconscientemente fugindo da solidão que a vida me impôs, adquirindo novas experiencias insubstituíveis, me tornaram um homem melhor.

Pude conhecer e ajudar as pessoas, vivenciar cidades que nunca tinha cogitado a ideia de visitá-las algum dia e, até mesmo, me tornei d e indiscutivelmente maneira. Agora m sua totalidade.

Portanto, a pouco tempo, recebi uma proposta de emprego em um dos jornais mais importantes do país, na cidade de Bordéus, uma região conhecida pelas suas vinícolas e museus de arte. Estou muito empolgado em poder me fixar, ter tido essa chance. Realmente é uma mudança de vida tão repentina e, por que não, tão aventureira também. Estou com a mente e coração aberto para o que o destino me reserva, me deseje sorte!

Voltarei a te escrever.

Até a próxima!

Oliver

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