A intervenção humanitária da NATO sobre o Kosovo

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A intervenção “humanitária” da NATO no Kosovo em 1999

David Silva Irene Leite Dezembro de 2008


Nato´s "humanitarian": Media treatment of NATO's intervention in Kosovo D.Pinheiro Silva, I.Leite Communication Sciences, Faculty of Letras, University of Porto, Portugal Abstract

This study analyzed the press coverage of the first month of the NATO intervention in Kosovo by the "Público" and the "Jornal de Notícias". It aimed at determining if the two referential dailies were neutral in their reporting or if they sided with NATO's humanitarian allegation for the intervention. Following a quantitative and qualitative analysis of the news content, the results show that both diaries resorted to a plural reporting of the Kosovo war by granting attention to the voices against NATO's intervention as well as conveying the ‘dark side’ of organisations. Key words: Kosovo, demonization, Milosevic, Solana, home nation, name-calling, Jornal de notícias, Público, “name-calling” Resumo O artigo analisa a cobertura jornalística sobre a Intervenção humanitária da NATO no Kosovo em 1999 nos jornais Público e Diário de Notícias, durante o primeiro mês dos bombardeamentos nesta região dos Balcãs. Procura verificar se os media portugueses em análise foram neutrais ao noticiar este acontecimento, ou se, por outro lado foram coniventes com o humanitarismo da NATO. Através de uma análise quantitativa e qualitativa constatou-se que os media em análise foram plurais ao noticiar os bombardeamentos humanitários da NATO sobre o Kosovo, dando voz às duas partes do conflito (NATO, Jugoslávia).

Palavras-chave: Kosovo, diabolização, Milosevic, Solana, nação-mãe, Jornal de

Notícias, Público,”name-calling”

Introdução O barril de pólvora: os Balcãs No quadro da definição de fronteiras da Europa da primeira pós-guerra formouse no sul da Península Balcânica uma unidade política constituída pelos povos “eslavos do sul”: a Jugoslávia. Constituía um mosaico de povos, que tendo uma origem comum

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(são eslavos) apresentavam línguas, culturas, religiões diferentes e viveram processos históricos diferentes. Em 1946 (fim da segunda guerra mundial) Josip Tito, carismático líder da resistência balcânica ao domínio nazi, ao assumir estas diferenças, reorganizou o país transformando-o num estado federal, composto por seis repúblicas (Servia, Croácia, Eslovénia, Bosnia-Herzegovina, Montenegro, Macedónia) e duas regiões autónomas: Kosovo (maioria albanesa) e Vojvodina (maioria húngara) integradas na mais extensa e populosa das repúblicas da Jugoslávia: a Sérvia. Ainda assim, nestas repúblicas foram-se afirmando movimentos independentistas que originaram tensões que, em qualquer momento, poderiam explodir em violentas confrontações. Neste contexto, em 1981 eclodiram motins populares, pois a maioria albanesa (mais de 80%) reclamou a transformação da província em república federada. Em 1989, verificam-se novos motins no território contra a presença de forças policiais sérvias, uma vez que a Sérvia retirara o estatuto de autonomia a esta província, ficando-lhe a região totalmente submissa. Com a ascensão ao poder de Milosevic, em 1990, renasce o nacionalismo. Belgrado procura alterar o equilíbrio étnico ao instalar na região refugiados sérvios da Bósnia e da Croácia. Paralelamente, estabelece-se uma resistência armada (UÇK Exército de Libertação do Kosovo) e, em 1992, Ibrahim Rugova é eleito presidente da autoproclamada República do Kosovo. Em 1999, devido ao avanço da "limpeza étnica", a NATO intervém no local por forma a forçar Milosevic a abandonar o território ao povo kosovar de etnia albanesa. Verificou-se um êxodo maciço desta população kosovar para a Albânia que, dos campos de refugiados, partiram para outros países do Tratado Atlântico, com destaque para a Alemanha e EUA. Não obstante, após 78 dias de ataques aéreos por parte do exército da NATO, os sérvios acabaram por assinar um acordo, ficando estabelecida a presença de uma força internacional no território de modo a fazer prevalecer a paz. A intervenção da NATO é a priori tida como humanitária. De facto, a NATO foi criada em 1949, no contexto da Guerra-fria, com o objectivo de constituir uma frente oposta ao bloco comunista, que, poucos anos depois lhe haveria de contrapor o Pacto de Varsóvia.

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Contudo, semanas antes do quinquagésimo 1 aniversário da organização do tratado atlântico do norte, a NATO esteve envolvida na sua primeira operação ofensiva em toda a sua história. Numa época em que se levantavam questões sobre a relevância de uma aliança militar, quando o Pacto de Varsóvia havia sido dissolvido com três exmembros a entrar na NATO (Polónia, República Checa e Hungria) era necessário, portanto, que esta organização ganhasse algum sentido de existência. Deste modo, nas guerras civis na Jugoslávia, a NATO encontrou um novo campo de acção. No livro Failed States, Chomsky põe dúvidas quanto a esta intervenção “ilegal mas legítima” : “ilegal porque foi uma decisão tomada sem o consenso do Conselho de Segurança da ONU mas legítima porque todas as vias diplomáticas tinham sido esgotadas e não havia outra forma de parar com as mortes e atrocidades no Kosovo.” Quando a NATO decidiu bombardear [a Jugoslávia] havia duas opções diplomáticas na mesa: uma proposta da NATO e outra Sérvia (…) depois de 78 dias de bombardeamentos, chegou-se a um compromisso entre os dois (violado primeiramente pela NATO), o que significa que afinal de contas, opções diplomáticas eram possíveis”. Isto segundo a International Independent Comission of Inquiry of the Kosovo war. Chomsky põe em causa a questão das vias diplomáticas esgotadas, alertando ainda para a doutrina Clinton que defende o “uso unilateral de poder militar” por parte dos E.U.A para assegurar “acesso a mercados chave, fontes de energia, e recursos estratégicos”, uma ideia que de acordo com outros estudos, pode elucidar o público quanto a motivos não-humanitários para a intervenção no Kosovo. Num estudo publicado pelo jornalista Andy Wasley, o Secretário da Defesa dos Estados Unidos William Cohen, um ano antes do conflito, tornou claros os interesses económicos da NATO na região dos Balcãs: “Instituições internacionais financeiras e credores [estão a tentar] submeter as economias dos Balcãs a privatização massiva e ao desmantelamento do sector público. Enquanto a atenção é focada nos movimentos das tropas e a cessar fogos, os Balcãs estão ocupados a serem transformados num céu seguro para livre troca”. Este autor defende que motivos político-económicos estiveram na base desta intervenção, e fundamenta a sua teoria nas palavras de Micheal Chossudovsky, Professor de Enonomia na Universidade de Ottawa “Instituições internacionais financeiras e credores [estão a tentar] submeter as economias dos Balcãs a privatização massiva e ao desmantelamento do sector público. Enquanto a atenção é focada nos movimentos das tropas e a cessar fogos, os Balcãs estão ocupados a serem 1

THUSSU, Kishan Dayan, Legitimizing “Humanitarian Intervention”:CNN, NATO and the Kosovo Crisis , p4

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transformados num céu seguro para livre troca”. Transparece assim um Ocidentalismo imposto aliado a um Capitalismo agressivo em detrimento de qualquer outra ideologia ou forma organizacional social e económica. No entanto, como é que os media em países democráticos reportam um conflito onde estados líderes democráticos reclamam o direito moral para violar convenções internacionais e para criar paz através de bombas? 2 Esta é de facto uma questão pertinente e que vai de encontro ao nosso estudo. A forma de reportar um acontecimento apresenta grandes efeitos sobre a opinião pública. O presente estudo terá como sustentáculo o artigo científico “From the Persian Gulf to Kosovo – War Journalism and propaganda”, de Stig A.Nohrstedt, Sophia Kaitatzi – Whitlock, Rune Ottsen e Kristina Riegert. Isto significa: vamos ter em conta temas que estes autores abordaram no seu estudo, nomeadamente posição da nação mãe (no nosso caso, Portugal), as personagens centrais (no nosso caso, Solana vs Milosevic), a escolha de jornais de referência, a abordagem ao termo propaganda, juntamente com o aproveitamento da questão central deste estudo. No entanto, ao contrário do que estes autores efectuaram, vamo-nos apenas incidir sobre notícias e reportagens, deixando de parte editoriais ou comentários. Procuraremos verificar a actividade jornalística e os supostos princípios de equidade, cruzamento de informação (o princípio do contraditório), subjacentes a esta profissão de elevada responsabilidade social. Por outro lado, vamos ter em conta os temas abordados pelos media em análise durante este período de tempo. Consideramos que esta é a grande contribuição do nosso trabalho relativamente a esta investigação base e à communication research em geral.

As hipóteses de investigação Ao iniciar esta investigação, antes de proceder à sua evidência empírica, de referir que partimos com algumas ideias previamente formuladas que pretendemos corroborar ou ripostar com base em estudos anteriores. Assim, consideramos que estes dois media portugueses em análise, reportaram que a iniciativa da NATO foi humanitária, e que o lado jugoslavo foi completamente negligenciado. A NATO dominou os media com as suas declarações, que tinham como principal objectivo captar mais aceitação aos seus bombardeamentos “humanitários”. 2

5

NOHRSTEDT, Stig A. et alli, “From the Persian Gulf to Kosovo-War Journalism and Popaganda”, p.384


Consideramos, portanto, que não houve equilíbrio ao reportar as duas partes em confronto, não só a nível quantitativo como qualitativo. Deste modo, ponderamos que o lado jugoslavo foi bastante camuflado, não sendo dada quase voz a esta parte do conflito. Deste modo, pretende-se no âmbito desta investigação, responder a uma questão central: Uma guerra justa em face de uma emergência humanitária causada pelo governo jugoslavo que empreendeu uma campanha de genocídio contra a população de etnia albanesa da região? Não obstante, consideramos que centrar a nossa investigação nesta questão, tornaria o trabalho redutor, uma vez que a análise seria bastante mais geral, não focando de forma tão pormenorizada o papel que a Jugoslávia e a NATO tiveram nos diários portugueses Público e Jornal de Notícias. A questão da equidade não seria respondida, pelo menos não tão directamente se tivesse como base apenas esta questão. Deste modo, vemo-nos na situação de colocar três sub-hipóteses: Como eram tratadas as notícias sobre a acção do governo jugoslavo? Se houve por parte das entidades envolvidas (NATO, Jugoslávia) igual oportunidade de projecção de imagem para a opinião pública? A posição do governo em vigor (PS) viciou as notícias? Dentro da análise qualitativa vai ser analisado em particular o corpo das notícias, com destaque para as declarações das fontes, de forma a conseguir, se possível, a resposta (directa ou indirecta) às hipóteses colocadas acima. No que concerne à análise de manchetes, vamos apenas nos incidir sobre as do dia 24 de Março e 1 de Abril no Jornal de Noticias e no Público, uma vez que o nosso estudo vai-se centrar mais nas notícias e reportagens. No entanto, estes dois dias foram escolhidos para verificar a mudança (ou estagnação) dos temas adoptados numa semana pelos dois media em análise. Concederemos particular atenção ao tipo de fontes utilizadas, uma vez que, posteriormente serão alvo de uma análise quantitativa. No âmbito deste estudo, estabelecemos duas divisões para classificar o tipo de fontes a analisar: as fontes oficiais e as fontes alternativas. As fontes oficiais neste estudo referem-se a entidades directamente ligadas ao governo de um qualquer país ou organização, a priori tidas como alguém dotado de grande credibilidade nas declarações concedidas. Para além disso, consideramos igualmente fontes oficiais aquelas que apesar de não referirem directamente o nome da 6


pessoa ou organização, identificam a sua origem, ou seja fontes oficiais anónimas. Neste âmbito, vamos ter em conta as classificações de Melvin Mencher: On background; On deep background. No primeiro caso, a fonte não é identificada, embora sejam dadas indicações sobre a sua identidade, referindo-se, por exemplo, a sua qualidade ou o ambiente em que actua, como no caso "um diplomata". No segundo caso_ On deep background – a fonte não é identificada nem são dadas quaisquer indicações sobre a sua identidade, como no caso "fonte bem informada". As fonte alternativas referem-se a todo o outro tipo de fontes consideradas não oficiais. Referem-se normalmente a civis, neste caso particular da guerra do Kosovo, temos o exemplo mais evidente dos refugiados Kosovares. No entanto, do lado da NATO também é perfeitamente possível a existência de fontes alternativas, nomeadamente a reacção de civis a estes bombardeamentos, ex-militares portugueses, ex-membros do governo, familiares dos militares que na altura se encontravam no Kosovo. No âmbito da análise quantitativa, procuraremos segmentar em cada notícia o tipo de fontes utilizadas do lado da NATO e Jugoslávia: oficiais, alternativas, anónimas-oficiais, anónimas-alternativas. Para efeitos de sistematização dos dados recolhidos, apenas se procedeu à contabilização simples das notícias, das fontes citadas (sem consideração pelo número de vezes que cada fonte foi citada) e dos períodos de citação e aos cálculos das respectivas percentagens, em função da categorização previamente estabelecida. No que respeita à contabilização dos períodos de citação, foram contabilizadas quer as citações directas quer as parafraseadas. De referir que na classificação das fontes oficiais do lado da NATO, tivemos em conta as declarações das entidades dos vários países que constituíam a NATO em 1999, onde Portugal também constava. Portanto, sempre que algum representante de um país da NATO se reportava a esta guerra no Kosovo, tivemos em conta. A NATO não se resume aos EUA, mas sim a um conglomerado de países. Não obstante, no que concerne à contabilização dos porta-vozes do lado da NATO só escolhemos o oficial, Jamie Shea por considerarmos que seria o mais representativo desta organização. Esta opção não inviabiliza as nossas conclusões, uma vez que os porta-vozes representantes dos vários países da NATO foram contabilizados na categoria fontes oficiais-NATO. Do lado da Jugoslávia, não procedemos a esta segmentação, uma vez que não existe, obviamente um porta-voz deste país em singular. 7


Deste modo, todos os porta-vozes que constaram do lado jugoslavo, contabilizamos para a nossa análise. Procedemos igualmente a uma contagem do número de vezes que constou Solana (a nosso ver, o elemento mais representativo da NATO) e Milosevic (o líder jugoslavo) por consideramos as personagens centrais deste conflito, embora já incluídos na categoria fontes oficiais. Como fontes jugoslavas tivemos em conta a Sérvia (onde se situa o Kosovo) e o Montenegro, que constituíam a Jugoslávia na altura. Optamos por não focar outro tipo de fontes utilizadas nas notícias, uma vez que este não era o objectivo deste estudo. A questão reside em saber se houve equidade entre fontes jugoslavas e NATO e, portanto, todo o outro tipo de fontes, provocaria ruido e até uma certa devirtualização do nosso objecto de estudo. Como base teórica/teorias da comunicação do nosso estudo, escolhemos o modelo de propaganda de Chomsky e Herman. Consideramos que é bastante adequado, uma vez que abrange dois conceitos basilares no nosso estudo: ocidentalismo e comunismo que se encontram em confronto. Ora, no caso do Kosovo, também está presente esse jogo de ideologias. Do lado da NATO impera o ocidentalismo, e do lado jugoslavo, o Comunismo de Milosevic. Consideramos, portanto, que vamos encontrar nas notícias dados que nos permitem ir de encontro ao quinto filtro do modelo da propaganda referente ao anticomunismo. De facto, esta ideologia ajuda a mobilizar a população contra um inimigo. Para além disso, uma vez que consideramos a priori que haverá um maior recurso a fontes oficiais (e pró-NATO) decidimos incluir no nosso estudo as considerações de Leon Sigal e Molotoch e Lester. Leon Sigal estudou os jornais New York Times e Washington Post em cinco intervalos de tempo: 1949,1954,1959,1964,e 1969.No âmbito deste estudo, o autor constatou a existência de três canais informativos: rotina, informacional e iniciativa. Os canais de rotina referem-se a acontecimentos oficiais, julgamentos, debates parlamentares, campanhas eleitorais, “press-releases” e relatórios. Os canais informais referem-se, por sua vez, a encontros reservados e restritos; fugas de informação, entre outros. Por fim, os canais de iniciativa referem-se a entrevistas conduzidas por iniciativa do jornalista; acontecimentos espontâneos com um testemunho jornalístico em primeira-mão; pesquisa independente, envolvendo citações de livros e dados estatísticos.

8


A este propósito, Molotch e Lester

3

apresentam o conceito de “promotores de

notícias”para caracterizar as fontes que tentam promover determinadas ocorrências à categoria de notícias ou que tentam impedir que outras ocorrências se transformem igualmente em notícias. Gomis 4 também refere que em grande medida há fontes interessadas em levar determinadas informações e ideias ao conhecimento público.

A amostra O Jornal de Notícias e o Público. O Jornal de Notícias é um diário considerado de referência, mas com um largo espectro de leitores, o que nos impele a considerá-lo um jornal popular. Foi fundado a 2 de Junho de 1888, no Porto, e tornou-se num dos jornais de maior expansão em Portugal, especialmente a seguir à Revolução do 25 de Abril de 1974. O Público é um diário de referência, conhecido por um jornalismo de referência, que abrange uma classe mais selectiva e exigente. Fez sucesso principalmente na classe política, entre os homens de negócios e nos meios intelectuais, passando a ser quase desde o lançamento um jornal de referência em Portugal. Consideramos pertinentes estes dois tipos de jornais, uma vez que abrangem juntamente uma grande fatia de audiência, inferindo-se, portanto, a determinante influência na formação da opinião pública portuguesa na altura. Esta opção, em alguns aspectos, vai de encontro ao estudo “From the Persian Gulf to Kosovo – War Journalism and propaganda”; Stig A.Nohrstedt, Sophia Kaitatzi – Whitlock, Rune Ottsen e Kristina Riegert. A amostra incidia-se sobre quatro diários Ta Nea (Grécia), Aftenposten (Noruega), Dagens Nyeter (Suécia) e The daily Telegraph (Ingalaterra), também considerados de referência.

A metodologia A periodicidade de análise destes jornais abrange o primeiro mês dos bombardeamentos, analisados sob a metodologia “Constructive week” de Gans (tabela 1)

3

Citado por SOUSA, Jorge Pedro, A utilização de fontes anónimas no noticiário político dos diários portugueses de referência: um estudo exploratório, p. 2 4 Citado por SOUSA, Jorge Pedro, A utilizaç ão de fontes anónimas no noticiário político dos diários portugueses de referência: um estudo exploratório, p.2

9


Tabela 1 Jornal

Período

Data

Jornal de Notícias

24 a 31 de Março

24/03/99

1 a 9 de Abril

1/04/99

9 a 15 de Abril

9/04/99

16 a 23 de Abril

17/04/99

24 a 30 de Abril

25/04/99

24 a 31 de Março

24/03/99

1 a 9 de Abril

1/04/99

9 a 15 de Abril

9/04/99

16 a 23 de Abril

17/04/99

24 a 30 de Abril

25/04/99

Público

Consiste em escolher uma publicação num determinado dia de uma semana, sendo que na semana seguinte vamos escolher a mesma publicação com um dia a mais de diferença e assim sucessivamente durante o período de análise pretendido (no nosso caso foi um mês). Consideramos uma boa metodologia, uma vez que o seu carácter sintético permite-nos constatar a evolução do discurso dos mass media de uma forma mais rápida e directa, evidenciando-se mais facilmente (caso surjam) os contrastes. De facto, numa semana podem mudar muitos acontecimentos, mas também a forma como estes são noticiados.

As unidades de análise Vamos proceder a uma análise do conteúdo, (como já foi referido anteriormente) convergindo uma análise qualitativa com uma análise quantitativa das notícias e reportagens. A análise quantitativa incide sobre a contagem do tipo de fontes, tendo em conta a categorização efectuada anteriormente. A análise qualitativa analisa as notícias e as reportagens na totalidade com destaque para as fontes. A análise vai incidir, desta forma, sobre o conteúdo presente nas notícias em análise. De facto, propomo-nos a verificar o que as fontes de cada notícia referiram, isto é, quais os diferentes pontos de vista que os media conseguiram focar e divulgar aos leitores.

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Os resultados Análise quantitativa Número

Público

Jornal de notícias

Noticias

29

26

Reportagens

4

2

Total

33

28

61

Tabela2: Número total de notícias e reportagens analisadas

FONTES NOTICIOSAS

PÚBLICO

Amostra 5

JORNAL DE NOTÍCIAS %

% 44

%

Fontes oficiais NATO

45

Porta-vozes NATO

4

6

10

Solana

4

5

9

Fontes oficiais Jugoslávia

7

16

23

51%

89 52%

8%

51%

19%

13%

Milosevic

1

2

3

Porta-vozes Jugoslávia

1

3

4

Fontes alternativas NATO

0

1

1

0%

Fontes alternativas Jugoslávia

10

1% 14

11%

Media ocidentais

22

3

5

25

6

89

11

84

6% 173

100%

Tabela3: Análise Quantitativa Jornal de Notícias e Público (24/03/99 a 25/04/99)

O termo amostra refere-se na tabela à soma das fontes entre Jornal de Notícias e Público

11

14%

7%

100%

5

14%

4%

6% TOTAL

24 17%

25%

Media jugoslavos

1%

100%


60% 50% 40%

Público

30%

JN Amostra

20% 10% 0% Fontes oficiais NATO

Fontes oficiais Jugoslávia

Fontes alternativas NATO

Fontes alternativas Jugoslávia

Media ocidentais

Media jugoslavos

Gráfico1: Análise Quantitativa Jornal de Notícias e Público (24/03/99 a 25/04/99)

Tendo em conta os dados da tabela 3, evidencia-se a nível das fontes oficiais uma predominância da NATO em relação à Jugoslávia nos dois media em análise. De facto, se atendermos ao número total de fontes utilizadas no Público, as fontes oficiais da NATO representam aproximadamente 51% do total. Houve igualmente uma maior corrida aos media ocidentais (25%) em comparação com os media jugoslavos, pois apenas cinco foram utilizados (aproximadamente 6% do total). Todavia, no Jornal de Notícias verificou-se precisamente o contrário. Os media jugoslavos (7%) ultrapassaram os ocidentais (4%). Houve igualmente uma maior utilização das fontes oficiais da NATO (52%) em comparação com as oficiais Jugoslavas (19%). Apesar de o Público ter incluído nas notícias fontes oficiais jugoslavas (aproximadamente 8% do total de fontes utilizadas), estas não chegam a representar nem metade em relação com as que foram utilizadas no caso da NATO, mesmo contabilizando os valores com as fontes alternativas (só daria 18%). O Público estabeleceu uma boa cobertura de fontes alternativas, mostrando aos leitores as reacções da população local aos bombardeamentos. Por outro lado, no JN houve dois casos de fontes alternativas onde não sabemos até que ponto apresentaram importância para serem reportados. Por exemplo, ao invés de se ter recorrido às declarações de o Kosovar de Gouveia ou de Olga Petrovic, ambos referidos no JN a 9 de Abril, podia-se ter recorrido a fontes oficiais (ou a fontes alternativas mais informativas do que estava realmente a acontecer no terreno), de 12


forma a obter as reacções das entidades jugoslavas acerca dos bombardeamentos da OTAN. No entanto, nestes dois casos, esta não foi a realidade. De referir, contudo, a excepção do Jornal de Noticias no dia 1 de Abril que numa das suas notícias apontou a oposição de Mário Soares (fonte alternativa do lado da NATO que representou um irrisório 1% do total das fontes utilizadas), um exmembro do governo, a esta guerra na Jugoslávia. Atente-se no título: Mário Soares culpa europeus pela guerra na Jugoslávia. Do lado jugoslavo houve um equilibrado aproveitamento de fontes alternativas (16%), em comparação com as oficiais jugoslavas (19%). Por outro lado, através da soma dos dados recolhidos do Público com os do JN, podemos observar que houve uma predilecção pelas fontes oficiais da NATO (51%) em detrimento das fontes oficiais da Jugoslávia (13%). Curiosamente sucede o oposto relativamente às fontes alternativas, sendo que 14% destas pertencem ao lado da Jugoslávia e apenas 1% pertence ao lado da NATO 6 . No que toca aos media como fontes, nota-se também um desequilíbrio, uma vez que 14% são ocidentais e apenas 6% são jugoslavos. De facto, evidencia-se no âmbito desta análise, uma confiança dos media nas informações fornecidas pelo governo, empresários e “peritos” aprovados por fontes primárias e agentes do poder, como aponta o terceiro filtro apontado no modelo de propaganda de Chomsky e Herman. Dentro dessas fontes oficiais, normalmente do governo que identificamos, de destacar o recurso ao porta-voz da NATO Javier solana em comparação com os da Jugoslávia. Existe, novamente maior recurso ao porta-voz ocidental em comparação com os jugoslavos. Evidencia-se no caso da NATO uma intensa “corrida” às fontes oficiais. De facto, de acordo com o professor Robert McChesney, professor de comunicação na Universidade de Illinois, em Urbana – Champaign, o “jornalismo profissional”depende intensamente das fontes oficiais. Os jornalistas têm que falar com o porta-voz do Primeiro-Ministro, o secretário de imprensa da casa Branca, a associação empresarial, o 6

Este valor é referente à única fonte alternativa do lado Nato encontrada na nossa amostra durante o período de análise, sendo que consideramos este tipo de fontes por exemplo ex-oficiais ou ex-participantes da organização que nos possam dar informação não enviesada pelo facto de já não pertencerem à estrutura. (nosso caso concreto trata-se de Mário Soares, ex- Primeiro Ministro de Portugal)

13


general do exército. O que dizem essas pessoas é o que faz as notícias. As suas perspectivas são automaticamente legítimas” 7 . Sigal 8 faz ainda notar que as fontes de informação dominantes (governo, etc) detêm um peso significativo nas notícias e um acesso rotineiro aos media (canais de rotina). Pelo contrário, os “desconhecidos” têm de se fazer notar, frequentemente através de actos espectaculares, para serem notícia. No âmbito da nossa amostra, porém, constatamos que no caso da Jugoslávia recorreu-se a canais de iniciativa. O Jornal de Notícias chegou inclusive a fazer uma reportagem:”Em Belgrado, há quem não receie as bombas”, onde se mencionava o caso de uma mulher, Olga Petrovic que assistiu aos bombardeamentos a Belgrado durante a segunda guerra mundial. Não sabemos, contudo, até que ponto (em alguns casos) essas fontes alternativas tiveram interesse jornalístico, como já problematizamos anteriormente. Ainda assim, evidencia-se um aproveitamento dominante por parte dos media de fontes oficiais. Segundo Molotch e Lester 9 , as fontes aproveitam-se das rotinas jornalísticas para as actividades de promoção de notícias. Para eles, as fontes poderosas beneficiam ainda da capacidade de alterar as rotinas a seu favor, tendo um acesso regular aos meios de comunicação. Por este motivo, os news media agem no sentido da manutenção de uma espécie de hegemonia ideológica no meio social. No entanto, os autores reconhecem aos jornalistas uma dose elevada de autonomia no jogo negocial que estabelecem com as fontes em torno da definição do que é notícia e dos respectivos enquadramentos. Em suma, existe um desnivelamento óbvio entre fontes-NATO, fontes jugoslavas em ambos os jornais em análise. Constata-se o Ocidentalismo, a nível quantitativo.

As fontes anónimas

7

EDWARDS, David ,el modelo de propaganda :una perspectiva p.3 Citado por SOUSA, Jorge Pedro, A utilização de fontes anónimas no noticiário político dos diários portugueses de referência: um estudo exploratório, p.3 9 Citado por SOUSA, Jorge Pedro, A utilização de fontes anónimas no noticiário político dos diários portugueses de referência: um estudo exploratório, p.3 8

14


FONTES

PÚBLICO

JORNAL DE NOTÍCIAS

fontes 1

6

Nº de reportagens com fontes 3

0

de

notícias

com

anónimas

anónimas Fontes oficiais –NATO

1

7

Fontes alternativas-NATO

0

0

Fontes oficias-Jugoslávia

2

0

Fontes alternativas-

4

11

Tabela 3: fontes anónimas presentes no Público e Jornal de Notícias

No âmbito da nossa análise constatamos alguns casos do recurso a fontes anónimas. No entanto, tendo em conta a categorização das fontes estabelecida por Melvin Mencher presente no livro News Reporting and Writing, inferimos que apenas se encontram fontes anónimas do tipo on background. Na análise do JN (tabela3) referente às fontes anónimas do lado da NATO (7) verifica-se uma corrida às fontes de origem oficial. O caso da Jugoslávia, todavia, é bastante distinto, existindo o único uso das fontes anónimas alternativas (11). No que concerne ao jornal O Público, o uso de fontes anónimas não foi tão regular, sendo mesmo praticamente escasso. Efectivamente apenas se recorreu a uma (1) fonte anónima e oficial do lado da NATO. Do lado Jugoslavo recorreu-se apenas a quatro (4) fontes anónimas alternativas e duas (2) anónimas oficiais, algo distinto em relação ao JN que só recorreu a fontes anónimas jugoslavas alternativas.

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Análise qualitativa Principais temas presentes JORNAL DE NOTÍCIAS

DATA 24/03/99

PRÓ-NATO •

ANTI-NATO

Guerra aos Sérvios

A OTAN esgotou as diligências para a paz e defende a autonomia do Kosovo 1/04/99

Refugiados acusam

sérvios de os terem

Oposição de Mário Soares aos bombardeamentos

obrigado a abandonar o

Apoio russo aos Balcãs

Kosovo sob a ameaça de

Situação da Sérvia

armas

Cepticismo dos comunistas italianos aos bombardeamentos no Kosovo

Moção contra a OTAN entregue no Porto

Bloco de Esquerda quer fim da aliança

9/04/99

Civis como escudos

humanos? •

Capitais europeias

aliado •

receiam que o encerramento de

refugiados visem dificultar a acção da OTAN

16

Albright pede paciência a quem descrê da OTAN

fronteiras e recambiamento de

Dúvidas italianas sobre ataque

Milosevic adverte Hungria contra ajuda à OTAN

Objectivos da OTAN não foram atingidos


Kosovar de Gouveia acha paz impossível •

17/04/99

Rugova volta a aparecer ao lado dos jugoslavos

Duma

aprova

adesão

da

Jugoslávia à “União” 25/04/99

• Ataque da OTAN é uma excepção, diz António

Oposição de Alexander Haig, general americano

Guterres •

Em vez da invasão, o bloqueio naval

Presidente (Jorge Sampaio) clarifica saídas para a crise do Kosovo

Tabela4: Temas presentes no Jornal de Notícias (24/03/99 a 25/04/99)

PÚBLICO

DATA 24/03/99

PRÓ-NATO •

ANTI-NATO

Milosevic rejeitou o ultimato da NATO e Solana mandou bombardear a Jugoslávia

Milosevic, o jogador de póquer

Bombardear para pôr fim ao conflito

1/04/99

Situação dos refugiados

contra a guerra

altera-se •

17

NATO reforça o “ritmo

Maioria dos portugueses

Vice-presidentes da

e a intensidade” dos

Assembleia da República

ataques

assumem atitude inédita:


Críticas à intervenção aumentam •

Jogadores e políticos contestam a NATO

O poder dos mísseis

Rússia vai enviar navios para o Mediterrâneo

9/04/99

NATO alerta contra escudos humanos

de Pristina •

Apoio crescente ao envio de tropas de combate Kosovo

para

Os escombros fumegantes

Os alvos dos mísseis invisíveis

o

(tendência

Madeleine Albright debaixo de fogo

internacional) •

E se a aliança pedir tropas portuguesas para uma ofensiva terrestre?

Eslovénia propõe conferência europeia sobre os Balcãs

Hitler ressuscita no líder jugoslavo •

17/04/99

NATO anuncia “sucesso” e faz

Duma recomenda união com a Jugoslávia

“mea culpa” 25/04/99

NATO divulga novo

• A

“conceito estratégico”

Belgrado

guerra

avançou

Tabela 5: Temas presentes no Jornal Público (24/03/99 a 25/04/99)

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fora

de


O facto de, em comparação com a Jugoslávia, a NATO ter constado mais vezes (e do ponto de vista oficial) nas notícias, não significa que os dois lados em questão não apresentassem no cômputo geral, tendo em conta o que as fontes referiram, a equidade que deve estar subjacente à actuação de qualquer media. Deste modo, é de particular interesse analisar de um ponto de vista geral, o que as notícias tratavam ao longo do tempo e o que as fontes lá mencionadas referiam. No Jornal de Noticias (tabela 4), uma semana depois dos bombardeamentos, começou-se a dar voz às contestações, com declarações da única fonte alternativa identificada do lado da NATO: Mário Soares. Temos o caso do apoio russo aos Balcãs e de contestações de países membros (a Itália) da NATO contra os bombardeamentos. Um facto a destacar é que a 1 de Abril fontes jugoslavas (refugiados Kosovares) culparam os sérvios dos sofrimentos causados:”Gritaram-nos _Vão-se embora, isto aqui não é lugar para vocês, O Kosovo é o coração da Sérvia “, foi exemplo das declarações de um refugiado;”Tinha amigos e colegas sérvios, mas agora odeio-os”. Do lado ocidental, nesta notícia, de destacar as declarações de Jamie Shea que referiu que “arquivos tais como títulos de propriedade, registos de nascimento e de casamento são destruídos, num cenário “orwelliano” que equivale a roubar o sentido de passado da comunidade Kosovar e a reescrever a sua História.” No dia 17 de Abril só constaram notícias anti-NATO. Destaque, contudo, para a notícia, com o título: Rugova volta a aparecer ao lado dos jugoslavos, onde nove fontes oficiais jugoslavas foram focadas e com alguma oportunidade de defesa, até mesmo para Milosevic, sempre mais rebuscada, contudo, em comparação com Solana, como vamos ter a oportunidade de constatar mais à frente. No dia 25 de Abril as notícias foram novamente pluralistas (pró-NATO e antiNATO) a incidir-se sobre o novo conceito estratégico da OTAN, com fontes oficias próNATO, inclusive com as declarações de grandes representantes do governo na altura: António Guterres (primeiro ministro) e o presidente da república, Jorge Sampaio, sempre a justificar os bombardeamentos da OTAN. Do lado anti- NATO destaca-se a declaração do general americano Alexander Haig que critica a estratégia aliada: “nunca teria recomendado uma intervenção no Kosovo” opinando que a NATO teve uma visão “quadrada” da situação. No que se refere ao Público (tabela 5), tal como no JN no dia 24 de Março as notícias eram totalmente pró-NATO. No dia 1 de Abril estalam as manifestações antiNATO e a divulgação do apoio Russo. Do lado pró-NATO, destaque para as 19


declarações de um diplomata da NATO que a propósito das más condições meteorológicas não pôde continuar com os bombardeamentos e a este propósito referia o seguinte: “as forças sérvias vão aproveitar este mau tempo para continuar as suas acções de repressão no terreno”. Evidencia-se do lado da NATO uma constante autodefesa no que concerne à justificação dos bombardeamentos. No dia 9 de Abril, destaque para a reportagem:”Os escombros fumegantes de Pristina”, onde as fontes jugoslavas exprimem o seu descontentamento em relação aos bombardeamentos da OTAN. Evidencia-se nas reportagens deste media alguma exploração do interesse humano. No dia 25 de Abril, do lado anti-NATO de destacar o artigo:”A guerra avançou para fora de Belgrado”, onde se abarca um lado mais oficial da Jugoslávia em resposta às mais recentes decisões da OTAN. Posto isto, constata-se que o facto de haver a nível quantitativo mais fontes oficiais do lado da NATO, não significa que só tenham constado nos media a sua ideologia “humanitária”. Nos dois jornais em análise evidencia-se uma evolução positiva no que concerne à atitude dos media. De facto, se de início (24 de Março) focavam apenas o lado “humanitário”da NATO”, num espaço de uma semana passaram a incluir vozes contraditórias à versão da aliança atlântica. De facto, se formos a analisar as tabelas 4 e 5, constatamos que os media em análise, ora focam temas anti-NATO como temas próNATO, o que significa que houve esforço em transmitir os dois lados da questão. Do lado das fontes alternativas jugoslavas, algumas declarações são pró-NATO, outras anto-NATO (embora as últimas sejam raras, existem). Do lado da NATO existem muitas (como vimos atrás) que se opunham firmemente aos ataques, e outras que tentavam constantemente “justificar o injustificável”. Os media não adoptaram, portanto, o ponto de vista de um dos protagonistas em particular, conclusão oposta ao que o nosso estudo base apontou numa das suas referências teóricas: “Outro padrão típico de guerra de propaganda é que descreve o conflito actual de uma forma radicalmente polarizada, como uma luta entre os “bons e os maus” e em preto e branco. Um discurso dominado pela propaganda consequentemente permitirá apenas duas posições: a favor ou contra” 10 .

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NOHRSTEDT, Stig A. et alli, “From the Persian Gulf to Kosovo-War Journalism and Popaganda”, p.384

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A intervenção humanitária da NATO e os media Não se pode negar que no primeiro dia dos bombardeamentos da NATO, tanto no Jornal de Notícias como no Público, se evidenciava uma tendência pró-NATO inegável. Basta nos reportarmos às manchetes destes dois diários. No Jornal de Notícias: Guerra aos Sérvios: a OTAN esgotou as diligências com o Kosovo”. No Público: Milosevic rejeitou o ultimato da NATO e Solana mandou bombardear a Jugoslávia. No dia 24 de Março de 1999, Bill Clinton, a propósito de Milosevic, refere que “se não quer fazer a paz, estamos prontos a limitar a sua capacidade de fazer a guerra no Kosovo”. Milosevic era, desta forma, o grande culpado de toda esta situação. Mais grave, contudo, é o lead de uma das notícias do Público no dia 24 de março de 1999: “A administração Clinton e a NATO esperam uma calibragem da violência que às vezes se consegue fazer pela guerra para impedir a derrota de uma força rebelde muito menos poderosa, mas nunca tantos que os rebeldes possam reclamar vitória para eles próprios”. O dia 17 de Outubro no Jornal de Notícias evidenciou o efeito boomerang dos bombardeamentos da NATO sobre o Kosovo:”Claro ficou que, apesar de todo o poderio aéreo da OTAN, têm sido os albaneses as principais vítimas do conflito, exactamente aquilo que a Aliança Atlântica diz querer evitar”. Deste modo, com o passar do tempo, os leitores destes dois jornais tiveram a oportunidade de percepcionar a passagem da NATO de organização defensiva para ofensiva.

A posição da nação-mãe Portugal em 1999 era membro da NATO já desde a sua formação, com o tratado de Washington, daí ter grande probabilidade de apoiar a intervenção da NATO no Kosovo. De facto, tal apoio evidenciou-se do lado do governo vigente da altura: o PS. Não obstante, os media foram pluralistas a nível de focagem de vários partidos políticos e as suas opiniões acerca dos bombardeamentos da NATO sobre o Kosovo. O Jornal de Notícias (tabela 4) focou a atitude de contestação por parte de vários partidos políticos. Logo no dia 1 de Março, destaque para dois dos títulos:” Moção contra a OTAN entregue no Porto”, onde apresentava, por exemplo declarações de uma militante do CDU; “Bloco de Esquerda quer fim da aliança”. 21


O Público (tabela 5), por sua vez, foi mais directo a esta contestação à intervenção humanitária da NATO, não só efectuada pelos partidos políticos como também pelo público em geral. Tal oposição a esta intervenção da NATO sobre o Kosovo foi desde logo revelada na manchete do dia 1 de Abril, precisamente uma semana depois dos bombardeamentos: ”Maioria dos portugueses contra a guerra”, a propósito de um estudo, também recomendado pelo Público. Aqui vê-se um dos canais identificados por Sigal: canal de iniciativa. O lead da primeira página sintetiza os dados do corpo da notícia.” Os resultados são claros e esmagadores: dois terços dos inquiridos numa sondagem telefónica da Universidade Católica para o PÚBLICO, RTP e Antena 1 estão contra a intervenção militar no Kosovo”. No mesmo dia, ainda no Público, de destacar o título de uma notícia: “Críticas à intervenção aumentam”. “A intervenção da NATO na jugoslávia foi ontem contestada em comunicado escrito por três vice-presidentes da Assembleia da República numa atitude inédita na vida parlamentar portuguesa”, constava no corpo desta notícia. De acrescentar ainda o caso do Jornal de Notícias (tabela 4) que num dos temas, a 1 de Abril, focou a contestação do bloco de esquerda relativamente aos bombardeamentos. Na notícia, Francisco Louçã acusou mesmo o Governo Português de “cumplicidade no genocídio “, chegando a afirmar que “se Portugal tivesse objectado à intervenção militar da OTAN, esta não teria tido autoridade para se realizar”.

As personagens centrais No nosso estudo, consideramos como protagonistas Javier Solana do lado da NATO e Milosevic do lado da Jugoslávia. Solana teve muito mais oportunidade de projectar uma boa imagem em comparação com o líder jugoslavo.

A imagem de Milosevic

No cômputo geral, foi negativa a imagem do líder jugoslavo, embora com variantes mais positivas no Jornal de Notícias. No dia 24 de Março no Jornal de Notícias, “o presidente jugoslavo permaneceu surdo a todas as ameaças e bateu-lhe [Holbrooke] com a porta na cara, insistindo em 22


continuar com a ofensiva militar no Kosovo negando-se a olhar para o acordo de paz desenhado em Paris e já rubricado pela etnia albanesa”. No estudo “From the Persian Gulf to Kosovo”, fala-se na diabolização da figura de Milosevic em contraste com a intervenção humanitária da NATO. No caso Português, tendo em conta o período de análise, tal não se verificou tanto. No Público, a 24 de Março há uma pequena referência a Milosevic, que não foi devidamente explorada: “Milosevic queixou-se posteriormente, numa carta aos ministros dos Negócios estrangeiros francês e britânico, de que o documento apresentado na Conferência de Paris dificilmente se poderia designar um acordo, porque só lhe oferecem uma de duas alternativas: a sua assinatura ou bombardeamentos”. Milosevic teve direito a duas (e pequenas) notícias (sem lead) no jornal O Público, a primeira delas com um título bastante sugestivo:”Milosevic, o jogador de póquer”. “Há uma tendência para ver Milosevic como um gigante, porque não conseguiu manter-se tanto tempo no poder, mas ele é na realidade um perdedor em série “que arruinou o seu país (…), consta no corpo desta notícia, referido por Richard Holbrooke, secretário de Estado para Assuntos Europeus. A segunda notícia onde consta o líder jugoslavo, data de 9 de Abril de 1999 e o título não necessita de grandes explicações, uma vez que se resume em duas palavras: diabolização, ou name-calling:

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Hitler ressuscita no líder jugoslavo. Apesar de não

apresentar lead, a diabolização prossegue no corpo da notícia:”Hitler era um chefe de guerra racista e o que hoje se passa é exactamente o mesmo sob outra forma (…) De referir ainda, “começou um genocídio”, referido por Rudolph Sharping, ministro da Defesa alemão. Deste modo, torna-se bastante pertinente corroborar a hipótese lançada previamente, quando colocamos a possibilidade de encontrar na nossa análise o anticomunismo identificado por Herman e Chomsky no seu modelo de propaganda. O livro “Manufacturing Consent”

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foi lançado durante a guerra-fria. Uma versão mais

adequada deste filtro é o costume da identificação por parte do ocidente como “inimigo” ou de um “ditador maligno” [aos seus opositores] -recorde-se dos casos de Saddam Hussein e Milosevic (…) A diabolização dos inimigos é útil, inclusivamente essencial, na justificação das manobras estratégicas geopolíticas e em defesa dos interesses 11

SAVARESE, Rosella,”Infosuasion” in European Newspapers:a case study in the war in Kosovo, p.372 12 EDWARDS, David, El modelo de propaganda: una perspectiva, p3

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corporativos em todo o mundo, enquanto acalmam a crítica interna da conduta. A criação de um “império maligno” de algum tipo, como o alarmismo ocidental do pósguerra sobre a “ameaça soviética” (…) tem sido um recurso habitual para aterrorizar a população para apoiar a produção de armas e a [começo de uma] aventura militar no estrangeiro”.

A imagem de Javier Solana Em comparação com o rival jugoslavo, Solana teve muito mais oportunidade para defender a sua intervenção “humanitária” na Jugoslávia. “Todos os esforços para conseguir uma solução política negociada para a crise do kosovo falharam, já não há alternativa senão recorrer à acção militar. […] Conhecemos os riscos de uma acção, mas estamos de acordo em considerar que não agir tem riscos ainda maiores”, referiu ao Público do dia 24 de Março o secretário-geral da OTAN, Javier Solana. No JN tal se evidenciou igualmente, por exemplo no dia 9 de Abril: “Estamos a estudar uma operação mais próxima do terreno para enfraquecer o aparelho da repressão militar e policial do (presidente) Milosevic. A questão é fazê-lo sem provocar vítimas civis, respeitando estritamente os objectivos militares, dado que não estamos em guerra contra os cidados sérvios”.

Conclusões De acordo com os media em análise, de facto os bombardeamentos da NATO não foram tidos unicamente como humanitários. Tal atitude, contudo, não se manifestou desde o início dos bombardeamentos. De facto, as manchetes dos dois jornais a 24 de Março demonstravam um Milosevic intransigente e uma NATO salvadora do processo de “limpeza étnica”que se processava na altura contra a população albanesa do Kosovo. Todavia, uma semana depois, os temas alteraram-se, e uma outra parte do conflito também começou a ser reportada: a Jugoslávia. Num espaço de quinze dias após os bombardeamentos, os media em análise começam a reportar os focos de contestação que se faziam sentir em Portugal contra a OTAN. Tais conclusões vão contra ao que inicialmente considerávamos.

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Para além disso, o Jornal de Notícias em comparação com o Público, no periodo considerado, efectuou um maior investimento em captar do lado jugoslavo mais fontes oficiais e efectuou uma caracterização de Milosevic mais equilibrada em comparação com o Público. Ainda assim, o líder jugoslavo teve escassas oportunidades de projectar uma imagem positiva aos leitores. Solana teve muito mais hipóteses de se justificar em comparação com Milosevic. No caso do Público, inclusive, procedeu-se a uma diabolização do líder jugoslavo em duas notícias, o que prejudicou a formação da opinião pública. Algumas das fontes alternativas, contudo, a que o JN acedeu, não apresentavam tanto interesse jornalístico, em comparação com o Público por exemplo. Os media não adoptaram na sua cobertura noticiosa a posição do governo. Focaram-no, mas não o adoptaram. Por outro lado, revelaram preocupação em demonstrar a oposição de outros partidos políticos. Concederam pluralidade de temas. A equidade não se processou a nível quantitativo, constatando-se a este nível (meramente numérico) a priori um ocidentalismo. Mas estabelecido um balanço geral, surpreendentemente, ambas as partes envolvidas foram ouvidas. Tal facto é visível através de uma análise qualitativa, tendo como base os temas abordados ao longo do período em análise. Os media em análise convergiram nos dias alvos de análise, atitudes pró e antiNATO remetendo precisamente para o principio do contraditório inerente a qualquer media. Do lado jugoslavo socorreu-se de facto a um maior número de fontes alternativas em comparação com as oficiais. Ainda assim, tentou focar-se as reacções dos jugoslavos (oficiais ou desconhecidos) aos procedimentos humanitários da NATO. Todavia, não podemos deixar de ter em conta que o conflito no Kosovo envolveu, entre outros aspectos, o problema dos refugiados kosovares. O único jornal, porém, que utilizou uma fonte alternativa do lado da NATO foi o Jornal de Notícias. Deste modo, o presente artigo constitui uma nova perspectiva e um contributo relativamente a conclusões de estudos anteriores. Porém, a nova perspectiva conquistada neste estudo, efectuou-se pelo facto do período em análise ter diferido do artigo científico modelo. Ainda assim, destes resultados, podemos filtrar uma nova conclusão: o período de tempo escolhido para análise é fulcral nas conclusões a retirar sobre o noticiamento de algum conflito. Daí estes estudos que abarquem amostras e métodos idênticos, mas 25


com periodicidades distintas, não se deverem situar em compartimentos estanques. Com efeito, só com um material sincrético podemos formar grandes conclusões, difíceis de ripostar por outrem. É um estudo relevante, uma vez que funde os conceitos que vários autores destas matérias aplicam no âmbito dos seus artigos científicos (diabolização, ocidentalismo, modelo de propaganda, fontes, “name –calling”).Para além de comprovar, tendo em conta o período de análise, que os media não se limitaram à versão oficial da intervenção humanitária da NATO, este estudo suscita a ausência na amostra, de motivos alternativos (referidos no esttudo de Andy Wasley) que explicassem melhor esta intervenção, deixando a posição anti-NATO desfalcada em relação à posição próNATO, uma vez que esta última foi fundamentada com o genocídio levado a cabo na altura contra os albaneses do Kosovo.

Nota final O presente estudo enquadra-se num projecto mais ambicioso que pretende alargar o período de análise aos 78 dias de bombardeamentos da NATO sobre o Kosovo, permanecendo com a metodologia de Gans, Constructive week. Por outro lado, neste estudo posterior podemos acrescentar nova questões: Será que as fontes poderosas jugoslavas não conseguiram obter a influência desejada nos media, de forma a a não conseguirem passar a informação dos acordos de Rambouillet, tendo em conta as conclusões de Molotoch e Lester? Porquê este constante recurso a fontes alternativas (em comparação com as oficiais) do lado da Jugoslávia? É a preocupação de transmitir o lado dos refugiados ou é simplesmente preguiça jornalística? De forma a responder a estas questões, teriamos de contactar directamente com jornalistas do Jornal de Notícias e Público da altura.

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