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Instantâneos: fragmentos da memória

A morta

A tia-avó estava na casa-de-jantar. Como eu era muito pequena, não consegui ver o seu rosto, mas cheirei as flores que adocicavam o bafio daquela sala gelada onde ela repousava. Aos quatro anos, nada sabia sobre a morte, a não ser que fazia as mulheres vestirem-se de preto para sempre e usarem um medalhão ao pescoço com a fotografia do marido. Fiquei quieta a olhar as velhas, que sussurravam palavras inaudíveis aos meus ouvidos de criança, as bocas tapadas pelo xaile enrolado no rosto e nos ombros encurvados. Pareciam grandes pássaros negros, onde só se viam a ponta do nariz e os olhos enrugados e pequeninos. A avó ficou na companhia delas e eu regressei a nossa casa. Naquele dia, havia muita gente por lá; os primos do Brasil, de Lisboa, do Porto, adultos, a família que eu só conhecia dos retratos a preto e branco pendurados na parede do corredor. Curiosa, escutava-os, a sua conversa entretecendo-se num rendilhado de sotaques, como a linha de crochet que a avó enroscava no dedo e tecia com a agulha para criar delicadas rendas. Recordo-me de que me escondi debaixo da mesa da velhinha máquina de costura, ajoelhada sobre o grande pedal castanho de metal. Dez metros separavam-me da morta e eu, baloiçando-me ao som das vozes cálidas dos primos, fechara os olhos com muita força. Nesse momento, desejei que a tia-avó pudesse estar ali viva para sentir o calor da família, e não morta na sala gelada ao lado da nossa casa.

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