03Caso Literario - 2 Monologo

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O ÚLTIMO MONÓLOGO DE NIETZSCHE* NIETZSCHE’S LAST MONOLOGUE

Ataulpho da Costa Ribeiro** Em três de janeiro de 1889, em rápido delíquio, Nietzsche perde os seus sentidos, em plena praça pública de Turim. O fato revestiu-se de intensa dramaticidade e ocorreu quando o filósofo se lançou ao pescoço de um cavalo procurando, com suas lágrimas, exclamações e gestos, protegê-lo das sevícias que então lhe eram infligidas por seu proprietário. Ao retornar à sua consciência, à consciência de si mesmo, de si mesmo e dos objetos, em uma percepção semicrepuscular da realidade feita de fragmentos que se esparsam, tributários de uma metamorfose psicótica que, pouco a pouco, vem destruindo-lhe o espírito, o pensador entretém-se consigo mesmo, em uma derradeira e dolorosa vez. Culminando esses tempestuosos dias que precedem sua perda da razão, expressando-se em um introspectivo, pungente e quase inaudível solilóquio, nele rememorando os grandes episódios e vicissitudes de sua vida, em citações suas, grafadas no texto, ele confidencia às suas evocações o seguinte e possível diálogo imaginário: 1889... Três de janeiro... Depois de Cristo... Por que não do ano I, por que não registrar o tempo consoante uma nova cronologia, a iniciar-se em 30 de setembro de 1889, quando termino meu livro O Anticristo, quando enuncio minha contra-avaliação dos valores, a primeira da História, quando aclamo e celebro as exéquias do velho mundo, aquelas de um Deus morto até mesmo no coração dos crentes? Por que não três meses e três dias após o último dia do cristianismo? Por que depois do disangelho, por que depois da má nova, por que antes do evangelho da aquiescência e da vontade? Zaratustra, o mais ativo de todos os niilistas, o mais piedoso dos homens que não acredita em Deus, sucessor de divindades mortas, com suas canções, discursos e exortações, não é a boa nova, a mensagem da consagração, o evangelho da terra, da anuência e da vontade, o antípoda dos antigos valores, a antítese da noluntas, o intercessor da vida, removendo velhas e pesadas mortalhas? Eu só poderia acreditar em um Deus que soubesse dançar. ... Não é digno de ser recordado um dia transcorrido sem dança. Talvez eu seja um novo messias, um apóstolo sem deus, a antítese da vontade niilista, um fragmento da fatalidade... Em todas as minhas obras, desde os meus mais distantes ensaios juvenis, reconheci na morte de Deus o mais importante dos acontecimentos recentes, analisei e proclamei as suas conseqüências mais profundas, imediatas e remotas, descortinando novas expectativas, novos valores, outras perspectivas. Em todas elas, desenvol-

* Capítulo de livro inédito intitulado “A Psicose de Nietzsche”. ** Psiquiatra, ensaísta em temas filosóficos, membro da Academia de Ciências de Minas Gerais.

vendo uma filosofia superior do ateísmo, denunciei os filósofos como semi-sacerdotes, como uma espécie de párocos de aldéia, então afirmando que o teólogo protestante é o avô da filosofia alemã. ... Todos os que nascerem depois de nós pertencerão, em conseqüência desse ato, a uma história maior. Todos nós, deicidas e niilistas, que vivemos em um mundo impensável e difícil, desprovido de valores eternos, jungidos às contingências das coisas, à natureza efêmera dos fenômenos, não temos onde aplacar a sede do espírito. Embora o pensamento seja um deleite para quem possui uma vocação subjetiva voltada à análise e consciência dos grandes temas da existência, ele também enseja, em nível crítico, angústias dolorosas, desesperos noogênicos e profundos, jamais aliviados por uma só certeza confortante. Toda a minha obra canta e celebra o triunfo de Dionisos, a sua epifania, em hinos de louvor, de transcendência e fervor. Todas as coisas foram batizadas na fonte da eternidade; ... é aos pés do acaso que elas preferem dançar. ... O céu se rejubila, aclama e se transforma, todos cantam, o silêncio exclama e fala, todos se transfiguram na exortação e retorno de Dionisos, deus da abundância e da saciedade, ... senhor das antíteses... Em toda a parte “tristaníssimos” e dolorosos acordes. Queres cantar, ó! minha alma! Não cantes, silêncio, não cantes! O meu mundo se consumou. ... Todos os deuses morreram; doravante queremos que viva o acima-do-homem, um tipo maior, simultaneamente poeta, decifrador de enigmas e redentor do acaso. Perguntaram-me alhures, em meu Zaratustra: Quem removerá de teus ombros o peso dessa melancolia? Todos nós fomos chamados à alegria, dizia Hölderlin, o poeta de minha predileção. Sou o primeiro niilista completo da Europa, a primeira e mais radical consciência da total e absoluta caoticidade do mundo adverso em que vivemos; fui dos primeiros pensadores a admitir que não há verdades absolutas; um dos poucos a reconhecer que a vida é uma anomalia no universo, assim como a consciência o é nas estruturas, economia e leis da existência. Em suas perspectivas – eu o sei – o niilismo é ambíguo. No niilismo passivo, a vontade e a inteligência abdicam de seus poderes virtuais; no niilismo ativo, que constitui o eixo de minhas meditações mais profundas, pelo contrário, elas trabalham as niilidades da existência consoante um propósito criador. Vontade de poder e niilismo, niilismo passivo, excluem-se. Disse alhures que o homem prefere um quantum de poder a um plus de felicidade, acrescentando: Lieber können, nicht wissen, “ao saber prefiro o poder”. Deplorando nossas perdas infinitas criei, em meu Ecce Homo, um longo e expressi-

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vo substantivo composto: Das Seinen-Nutzen-nicht-mehr-findenkönnen, “o não mais poder encontrar sua utilidade”. Minha filosofia é uma escola de fidalgos, ... o homem nobre honra o poder. Insurgindo-me contra as idéias tradicionais, aquelas da filosofia clássica, de suas especulações verbalistas, de seus pressupostos abstratos, eu sepultei nossa confiança na moral, na moral da renúncia e da repressão, substituindo as antigas por novas tábuas de valores. Em minha última autobiografia, em seu conciso e desconcertante texto, mostrei-me à História, contrapondo-me ao Crucificado: Ecce homo. ... Ecce homo, wie man wird, was man ist... Conheço o meu destino. ... Só o depois de amanhã me pertence; alguns nascem póstumos. Através de meu filho Zaratustra, menosprezando o logos, a abstração fria e mortífera, proclamei o primado do pathos, a preeminência do ser, restabelecendo o rio e a inocência do devir, outrora amaldiçoados pela idiossincrasia dos filósofos. A natureza dolorosamente efêmera e agonística das coisas, como não reconhecê-la? O homem não é um ser de razão, é um ser de vontade, vivendo em um cruel cenário darwinista. Se a representação detém o devir, os sentidos o constatam. Deixai vir a mim o acaso, disse em meu Zaratustra, evocando e ressaltando o poder potencial do homem. Parmênides e Orfeu, mestres de Platão. Parmênides, o mais glacial e anti-helênico instante do pensamento grego. Platão, o anti-Heráclito... Sabe-se que Heráclito chorava, publicamente, pelo infortúnio de estar vivo. Hybris, essa palavra perigosa, é a pedra de toque de todo discípulo de Heráclito. ... Sócrates e Platão, almas sombrias, tortuosas, protótipos de valores negativos, de parâmetros reativos, modelos de decadência. ... Sócrates era feio. Sócrates e Dionisos, a nova antítese. Em seus desvarios, ao proclamar a hegemonia da razão, o homem perdeu infinitamente, abriu rupturas em sua própria e mais íntima essência. Eu anuncio um novo triunfo do paganismo; Deus morreu, morreu infinitamente, morreu até mesmo e sobretudo no coração daqueles que o veneram, cujo incenso escamoteia uma confiança titubeante. Der neue und alte Glaube, a primeira fé e aquela que se propõe substituíla... Nasci em 15 de outubro de 1844, na pequenina e quase desconhecida aldeia de Röcken, perto de Leipzig. Aos meus quatro anos de idade, em uma perda dolorosa, insubstituível, que torturou-me ao longo de todos os meus dias, meu pai faleceu precocemente, aos seus 36 anos de existência. Pastor afeiçoado à música, dele herdei esse privilégio e esse pendor. Aos meus olhos de criança, doravante perplexa, a vida então desdobrou toda a sua crueldade injustificada, os desacertos que a estruturam, a total ausência de uma finalidade racional nas coisas. Desde a infância, nunca me iludi quanto à Absurdität do mundo, ao primado do absurdo. Nos horizontes de meu espírito, em seus confrontos, recusas e questionamentos, entrementes, descortinaram-se novas estrelas, novos itinerários, todos eles repudiando a pesada herança cultural que me era imposta. Denominei a mim mesmo, posteriormente, der Unzeitgemässe, um pensador inatual, considerando todos os filósofos a má consciência de seu tempo. Desde então abateu-se sobre o meu espírito uma profunda e pungente Verlassenheit, um poderoso e plúmbeo sentimento de derrelição, de desamparo inerme. Alhures eu escrevi: Punge, punge de novo, punge crudelíssimo aguilhão, ... punge, oh Deus desconhecido!

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Aos 24 anos de idade, em 1869, fui nomeado professor de Filologia Clássica na Universidade de Basiléia. Dessa matriz nasceu a minha filosofia. Fui admitido sem concurso prévio, louvando-se no só mérito de meus trabalhos universitários. Os alunos estimavam-me, como amigo e preceptor. Em 2 de janeiro de 1872 publiquei meu primeiro livro, intitulado O Nascimento da Tragédia, esse centauro do espírito. Sobre ele escreveu-me Wagner: Schöneres als Ihr Buch habe ich noch nicht gelesen. Meus discípulos, 22 dias depois, como escrevi a Rohde, logo após, no dia 28, queriam desfilar pelas ruas da cidade, à noite, portando tochas acesas, em homenagem à minha pessoa. Declinei, naturalmente. Nesse mesmo ano de 1869 ocorreu, em Basiléia, a IV Internacional dos Trabalhadores. A rumorosa presença dos anarquistas, desses utopistas messiânicos, não despertou uma só observação de minha parte. Recordava Horácio: Odi profanum vulgus et arceo. ... Et arceo... Eu não me interesso pela questão operária porque o trabalhador é um entreato da história. Para mim, a questão social é uma conseqüência da decadência, não a sua causa. Zaratustra feliz porque terminou a luta de classes, disse alhures... Hegel, por seus escotomas racionalistas, celebrando a História como triunfo da razão, foi incapaz de reconhecer que ela é um rio de sangue, que ela oscila como um pêndulo, entre poderes que oprimem e oprimidos que se revoltam. Publiquei muitos livros, versos e canções, em todos eles repudiando os antigos valores, aqueles que turvam e envenenam as águas da existência – embora seja descendente de várias gerações de eclesiásticos cristãos. As minhas obras, todas elas, são grandes saturnais do espírito. Muitas vezes julgo-me seu único leitor: mihi ipsi scripsi. ... Sou o escritor do caos por excelência. Talvez seja um terrorista da cultura. No caminho de minhas heresias, ao longo de minhas contestações e recusas, colhi uma nova doutrina, alhures anteriormente vislumbrada por reflexões de outros pensadores, capaz de ensejar um novo destino; nessa nova perspectiva, desdobrando o pensamento de Darwin até suas últimas conseqüências, antevi um porvir promissor, aquele de um homem acima de si mesmo, que supera contingências, desacertos, humilhações e determinismos aleatórios, capaz de desfazer, como antiAlexandre, o nó górdio da civilização. Posteriormente, perguntaria a mim mesmo: Onde reedificaremos o Jardim de Epicuro, ... onde construir um claustro laico? Reiteradas vezes reconheci e proclamei que a história é a refutação experimental da pretendida ordem moral do universo. Que são as suas cansativas crônicas senão uma enfadonha e permanente sucessão de desvarios, de crimes e crueldades? Quem, hoje, não tem a boca, o coração e os olhos cheios de asco? Escrevi em meu Zaratustra: A dor de Deus é maior. Estendei vossas mãos à dor de Deus, não à minha dor. Foi Ele quem criou o homem. ... Os espíritos mais preocupados indagam: Como salvar o homem? Mas Zaratustra pergunta – e é o único e o primeiro a fazê-lo: Como superar o homem? ... O que amo no homem é ser ele uma transição e um fim, uma expectativa, a possibilidade de um ser superior. Zaratustra, o livro dos livros, ... o vestíbulo da minha filosofia, ... é um livro à parte. Ele não tem paralelo. Não há psicologia, não há arte de escrever, antes de Zaratustra. Sua leitura apenas cursiva, semântica, é fácil; ela, entretanto, sequer aflora o cerne de sua mensagem. Vive-se antes, vive-se depois de Zaratustra. Em Ecce Homo, nessa última retrospectiva de minha vida, dediquei-lhe


quinze páginas, contra apenas duas à Genealogia da Moral, quatro à Aurora, oito à Humano, demasiado humano, sete à minha primeira contra-avaliação dos valores, que denominei O Nascimento da Tragédia. ... De que serve um livro que não nos transporta além dos outros livros? Nessa obra eu vivo uma experiência interior que não compartilho com ninguém. Outrossim, não concedo a nenhuma pessoa, viva ou morta, o direito de falar em meu nome. Afirmei alhures que um bom livro enriquece aqueles que lhe são hostis... Nesse poema filosófico, reordenando as incessantes e adversas metamorfoses do mundo, suas dissonâncias, desencantos e privações, suas clivagens e perplexidades, o ser e o devir se conciliam, em intermináveis celebrações de louvor, de apoteoses, júbilo, ressonâncias e plenitude, recolhimento, fervor e introspecção. Suas efusões líricas, semi-místicas por suas visões interiores, por seu esplendor e vaticínios, por seus cânticos de expectativa, por seus prenúncios e colóquios, confidências e subjetividade, por suas continuadas ressurreições do ser, transbordam em uma interminável sofreguidão de milagres... De todo escrito só me agrada aquele que o homem escreveu com o seu próprio sangue. Escreva com sangue e aprenderás que o sangue é espírito. ... É preciso ter um caos dentro da alma para engendrar estrelas que dançam. Sua doutrina, que exorta a uma eticidade superior, é o chanceler de uma nova História... Quem poderá ser indiferente à angústia de Zaratustra, ao grito de socorro que chega à sua solidão, exortando à superação do homem? Lê-se em seu texto: Se alguma vez a minha cólera profanou sepulturas, removeu barreiras e precipitou velhas tábuas partidas em escarpadas profundezas; se alguma vez estive sentado, cheio de alegria, no sítio onde jazem deuses antigos, abençoando e amando o mundo, ao lado dos monumentos de seus antigos caluniadores; se alguma vez joguei os dados com os deuses, na divina mesa da terra, ... como não hei de estar anelante da eternidade, anelante do nupcial anel dos anéis, o anel do eterno retorno? Por que o homem, já conhecendo suficientemente a realidade hostil do universo, a natureza apenas imanente de seu ser e do mundo, o seu obscuro lugar na ordem natural das coisas, já dispondo de um grande domínio sobre as leis da matéria, ainda não decidiu por dominar o seu próprio destino? Por que os homens, saturados de técnica, de crimes, de alienação e tédio, se deixam viver em uma civilização enervante e daninha, não se esforçando por predeterminá-la consoante um desígnio inteligente, contrapondo-a à natureza, desprovida de um propósito finalístico que a consagre, inspire e redima? Sobre todas as coisas estende-se o céu do acaso, à espera de um gesto redentor... O homem, será ele um erro de Deus? Quando pela primeira estive com os homens, cometi a loucura do solitário, a grande loucura: fui para a praça pública, atormentando-me com as moscas do mercado, com seus discursos de vingança e reivindicação. Na praça pública, entretanto, ninguém acredita no grande homem. Em uma anotação imediatamente posterior a dezembro de 1887, indaguei: Onde estão os bárbaros do século XX? Obviamente, eles só vão aparecer e se consolidar após enormes crises socialistas. Disse em meu Zaratustra, na parábola intitulada O Mendigo Voluntário, ao dirigir-lhe minhas palavras: Não serás aquele que, envergonhado da riqueza e dos ricos, fugiu para junto dos pobres, a dar-lhes sua abundância e seu coração? Que foi que me impeliu para os mais pobres? Não foi a aversão que sentia pelos

mais ricos dos nossos? Pelos forçados da riqueza, que aproveitam seus lucros em todas as varreduras, com olhos frios e concupiscentes? Por essa chusma, cuja fetidez sobe até o céu? Por essa dourada e falsa populaça, cujos ascendentes eram gente de unhas compridas, aves carnívoras ou trapeiros, com mulheres complacentes, lascivas e esquecediças, pouco diferentes de rameiras? Plebe em cima, plebe em baixo! Que significam, hoje, pobres e ricos? Quando contemplo os numerosos itinerários e desencontros de minha vida, sua vertente introspectiva, seus hiatos e dissonâncias, seu âmago e dédalos, vejo-me inteiramente só, desnudo e inerme, incapaz de reerguer as forças da vida, de refazer seu dinamismo, o elã que a soergue e vivifica, de surpreender e reconquistar seus caminhos cotidianos e simples, aqueles de outrora, repletos de luz, de azul e de sonhos... Em minhas horas mais silenciosas, em minhas confidências mais subjetivas, mudas e solitárias, sinto-me a encarnação viva do niilismo mais sombrio, da mais absoluta derrelição, como se fosse uma representação sem matéria, uma vida desprovida de corpo, destruída por si mesma, por um pensamento que se fez crítico, impiedoso e desumano, espelho de outros espelhos, todos destituídos de imagens representativas da ilusão que torna acreditável a vida... Há sempre um pouco de razão na loucura. ... Serei porventura um adivinho, um sonhador, um ébrio, um interprete de sonhos, um sino da meia-noite, uma gota de orvalho, um perfume de eternidade? Não ouvis? Não percebeis? O meu mundo acaba de se consumar; a meia-noite é também meio-dia, a dor é também uma alegria, a maldição é também uma bênção, a noite é também um sol. Alguma vez dissestes sim a uma alegria? Então dissestes sim a todas as dores! ... Toda alegria quer eternidade, quer profunda eternidade. A enfermidade sempre foi a dolorosa sombra de meus dias, dias de constante, solitário e penoso sofrimento; eu a suportei, ao longo dos anos, como se fosse o último dos estóicos, alhures reconhecendo e proclamando que ninguém carrega na alma um destino semelhante ao meu. Em 1865 conheci a obra de Schopenhauer, sua exaltação da vontade, seu repúdio à representação; consoante suas palavras, a consciência é um acidente da vontade. Nesta data conheci Wagner, privei de sua amizade e confiança, então compartilhando um só e mesmo ideal, visitando-o vinte e três vezes em Tribschen, a Ilha dos Bem-aventurados, em Luzern, onde sempre me era reservado um Denkenzimmer, um “cômodo para pensar”; a última em companhia de Lou Salomé, quando Wagner já residia em Bayreuth. Depois, sobreveio um desentendimento recíproco. Ao enviar-me um exemplar de Parsifal, sua obra apóstata, aos meus olhos, curvando-se à poderosa influência catolisante de sua mulher, Cosima, nela renegando nosso comum ideal de uma regeneração da cultura, subscreveu a dedicatória como membro do Oberkirchenrat, como Alto Conselheiro da Igreja... Essa foi a perfídia, a ofensa mortal que ele me infligiu, alhures ruidosamente mal interpretada. Em nosso derradeiro encontro, no ano de 1876, em Sorrento, ele falou-me de suas profundas emoções religiosas, enaltecendo-as... Como Dionisos me fala de maneira diferente... Só alguns anos depois de nossa fervorosa convivência compreendi que sua música está a quatro passos do hospital. Sua morte, a hora sagrada de sua morte, em Veneza. Meu bizetismo, hostil à sua obra, reverenciava Carmem como a antítese irônica de suas músicas e pensamento; eu a assisti pela primeira vez

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em Gênova, no dia 26 de abril de 1881. No mesmo dia e mês de 1872, antes de deixar Tribschen, com destino a Bayreuth, Cosima pediu-me, à noite, que improvisasse ao piano... Lou Salomé, um segundo e doloroso equívoco: Ao chamar alegria a seus torpes sonhos, envenenaram as palavras, observa Zaratustra. Cosima, Nietzsche e Wagner, Ariadne, Dionisos e Teseu... Quem sabe o que é Ariadne? ... Dionisos e Ariadne, o equilíbrio feliz de todas as coisas. Em um extrato de conversações fragmentárias e imaginárias, entre Dionisos, Teseu e Ariadne, na ilha de Naxos, idealizei um breve diálogo: Teseu tornou-se absurdo, diz Ariadne, Teseu tornou-se virtuoso./Ciúme de Teseu pelo sonho de Ariadne./O herói, que admira a si mesmo, torna-se absurdo./Lamento de Ariadne./Dionisos, sem ciúme, diz a Ariadne: O que amo em ti, como poderia amá-lo Teseu?/Último ato. Bodas de Dionisos e Ariadne./ ... Ariadne, diz-lhe Dionisos: tu és um labirinto. Teseu se perdeu em ti, já não possui o fio que o possa salvar do Minotauro. ... O que amo em ti, como Teseu o poderia privilegiar? Como ele poderia alegrar-se por não ter sido devorado pelo Minotauro? Aquilo que o destrói é pior que um Minotauro. Tu me lisonjeias, responde Ariadne, eu estou cansada da minha compaixão. Todos os heróis devem morrer por mim. Este é o meu extremo amor por Teseu: eu o faço perecer. Uma só e rápida palavra sobre a Alemanha. Sou o depreciador dos alemães por excelência... Eles não têm dedos para nuanças. Aos meus olhos, ser um bom alemão significa desgermanizar-se. Quando o cristianismo agonizava, os alemães o salvaram, instituindo a Reforma, sempre retardando a história. Não obstante, eles são os seus melhores destruidores. ... Nós, os alemães de ontem. ... Já não há filósofos na Alemanha. ... Em seu velho culto pela obscuridade, ... eles sempre lutaram contra a razão. ... Na verdade, o espírito alemão ainda não perdeu sua nostalgia mística. ... O credo quia absurdum ainda está impresso na alma da Alemanha. ... A germanidade, a Deustschheit; ... nenhum povo escreve pior que os alemães. Alemanha, “terra de poetas e pensadores”. Hoje, entretanto, quanta cerveja na inteligência alemã. ... Em Munique vivem os meus antípodas. Para mim, o tempo é circular, ele se curva sobre si mesmo: O universo alimenta-se de suas próprias dejeções. Todo efeito é causa de uma causa, toda causa é efeito de um efeito. Último efeito, causa da primeira causa. Causa, “estado modificativo das coisas”. Periodicidade do ser, continuidade do vir-a-ser. Heráclito o Obscuro, já o dizia: “No perpétuo fluir do universo, nada é e tudo se transforma. A vida cede lugar à morte, o frio torna-se quente.. É a mesma coisa em nós estar vivo ou morto, desperto ou dormindo, pois, em virtude da mutação isto passa a ser aquilo e aquilo volta a ser isto. Os mortos são imortais, porque morrem nos que nascem.” Eu próprio faço parte das causas do eterno retorno das coisas, da ciclogênese cósmica. Um dia eu regressarei com este sol, com esta terra, com esta águia e com esta serpente; não para uma vida nova, para uma vida melhor ou análoga. Tornarei eternamente para esta mesma vida, igual em pontos grande e pequeno, a fim de ensinar, outra vez, a eterna recorrência de todas as coisas, a fim de repetir, mais uma vez, as palavras do grande meio-dia da terra e dos homens, a fim de instruir os homens sobre o acima-do-homem... O ser absoluto é uma ilusão subjetiva, uma abstração equívoca. A única realidade constante é o vir-a-ser, a incessante metamorfose das coisas, o devir implacável, que nada consegue deter.

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Tudo que é está condenado a deixar de ser. No mundo não há repouso ou imobilidade. Às causas sucedem-se os efeitos inevitáveis, atuando como novas causas. Causa aequat effectus. No passado e no presente, como também no porvir, o ser se submete, passivo como cariátide, ao perpétuo retorno periódico do tempo. “Colocais nomes nas coisas como se elas subsistissem. Nunca nós nos banhamos duas vezes nas águas de um mesmo rio”, dizia o lacrimoso Heráclito; nem sequer uma vez, dirá um de seus discípulos, porque as águas que banharão nossos pés não sãos as mesmas que, depois, lavarão nossas cabeças. Em nenhum instante da História a total inconsistência do mundo se despiu com menos pudor e totalmente a um pensador. Ninguém, como ele, sentiu melhor a sombria infecundidade dos esforços humanos, a efêmera transitoriedade dos fenômenos. Quem não gostaria de ser cego para evitar a contemplação do eterno retorno? Não há Deus, não, não há. O testemunho é de todos os dias, a evidência é de todas as horas, a evidência é para todos. O ateísmo nunca foi um acontecimento em minha vida. ... Ele é o meu a priori... Os postulados da teologia são insustentáveis. O sofrimento, em toda parte, protesta contra a realidade, exclama e denuncia. A inteligência, não obstante o seu enorme poder potencial, é apenas um epifenômeno, um episódio marginal às transformações cósmicas, ao nascimento e morte dos astros. Ela também é prisioneira das grandes e ininterruptas metamorfoses da matéria. Não há um desígnio superior no coração das coisas. Hoje, conscientes dos desacertos que nos humilham, que desencantam e ferem, sabemos que jamais repousaremos em uma confiança infinita e generosa, ... que nunca mais haverá razão no decurso das coisas. Condenados ao mais cruel de todos os desamparos, todos somos órfãos indefesos. O velho Jeová prepara-se para morrer... Não ouvis o badalar dos sinos? Ajoelhem-se! Eles carregam os sacramentos a um Deus que agoniza, diz Heine. Na alma do universo não há propósitos inteligentes, finalísticos, teleológicos. L’excuse de Dieu, c’est qu’il n’existe pas, exclamava Stendhal. Meus olhos se turvam; minh’alma hesitante, oprimida e exausta, recua; minhas pernas, frágeis, vacilam, meus lábios se calam, meus pés se arrastam, minhas mãos se fecham, meu coração se aflige. ... É noite, eleva-se a voz das fontes... Minha alma também é uma fonte borbulhante. Sou luz, ah se fosse noite, como sorveria nos seios da luz! Eu, porém, vivo de minha própria luz, absorvo em mim mesmo as chamas que de mim surgem. ... Entre dar e receber há um enorme abismo. ... Para onde foram as lágrimas dos meus olhos? ... Há gelo em torno de mim, gelo que queima as minhas mãos! ... É noite, ai!, por que hei de ser luz, luz e solidão? É noite; eleva-se mais a voz das fontes e minh’alma também é uma fonte, uma fonte que se consome, que contempla e canta... Dos vários textos que esbocei como epílogo do meu Zaratustra, ao qual se segue, imediatamente, meu livro Além do Bem e do Mal, prelúdio a uma filosofia do futuro, livro esse que contém a chave de mim mesmo, destaco alguns fragmentos daquele que considero um dos mais expressivos: Um homem se mata, outro se torna louco. /Um divino orgulho de poeta alenta Zaratustra; tudo deve ser colocado sob a luz. No momento em que anuncia, simultaneamente, o acima-do-homem e o eterno retorno, ele cede à piedade. /Todos o renegam. É necessário – dizem – destruir essa doutrina e assassinar Zaratustra. /No mundo, não há uma só alma que me ame, murmura ele. Como poderei amar a vida?


/Zaratustra morre de tristeza ao descobrir o sofrimento que é a sua obra. /Por amor, causei a dor maior; agora entrego-me à dor que causei. /Partem todos, e Zaratustra, ao ficar só, toca a serpente com a mão; que me aconselha a minha sabedoria? A serpente morde-o, a águia dilacera a serpente, o leão precipita-se sobre a águia. No momento em que Zaratustra vê seus animais lutarem entre si, morre. /Quinto ato: os louvores. /A liga dos fiéis que se sacrificam sobre o túmulo de Zaratustra. Tinham fugido. Agora, herdeiros de sua alma, elevam-se à sua altura. / Cerimônia fúnebre; fomos nós que o matamos. / Os louvores. / O grande meio-dia. / Meio dia e eternidade.

10. Nietzsche, Friedrich, Werke in vier Bänden, Schlechta, Hanser, 1973. 11. Nietzsche, Friedrich. Opere, vol. VIII, tomo III, Adelphi, Milão, 1974. 12. Nietzsche, Friedrich. La mia vita, Adelphi, 1978. 13. Nietzsche devant ses contemporains, Bianquis, Rocher, 1959. 14. Nietzsche nei ricordi e nelle testimonianze dei contemporanei, ClaudioPozzoli, Biblioteca Universale Rizzoli, 1990. 15. Overbeck, Franz. Ricordi di Nietzsche. Il melangolo, 2000. 16. Peters, H. F. Nietzsche et sa soeur Elisabeth, Mercure de

Bibliografia consultada: 1. Andler, Charles. Nietzsche, sa vie et sa pensée, 3 volumes, Gallimard, 1958. 2. Benders, J. Raymond e Oettermann, Stephan. Friedrich Nietzsche Chronik in Bildern und Texten, Hanser, 2000. 3. Chamberlain, Lewsley. Nietzsche em Turim, Difel, 2000. 4. Hollingdale, R. J. Nietzsche, l'uomo e la sua filosofia, Ubaldini, 1965. 5. Janz, Curt Paul. Nietzsche, 4 volumes, Alianza Editorial, 1981. 6. Montinari, Mazzino. Che cosa há veramente detto Nietzsche, Ubalini Editore, 1974. 7. Montinari, Mazzino. Su Nietzsche, Editori Reuniti, 1981. 8. Morel, Georges. Nietzsche, introduction à une première lecture, 3 volumes, Aubier, 1985. 9. Nietzsche, Friedrich, Sämtliche Briefe, Band 8, Walter de Gruyter, 1986.

France, 1978. 17. Podach, E. F. L'effondrement de Nietzsche, Gallimard, 1931. 18. Ross, Werner. Nietzsche, el águila angustiada, Ediciones Paidós, 1994. 19. Schlechta, Karl. Le cas Nietzsche Gallimard, 1960. 20. Schlechta, Karl. Nietzsche-Chronik, Hanser, 1975. 21. Thibon, Gustave. Nietzsche ou le déclin de l'esprit. 22. Valadier, Paul. Nietzsche et la critique du Christianisme, Éditions du Cerf. 23. Vattimo, Gianni. Introdução a Nietzsche, Editorial Presença. 24. Verrechia, Anacleto. La catastrofe di Nietzsche a Torino, Einaudi. 25. Walz, George.. La vie de Frédéric Nietzsche d'après sa correspondance, Rieder, 1932.

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