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Sobre mídia, poder e democracia Após ter anunciado em dezembro de 2006 que não haverá mais espaço para “fascistas” e “golpistas”, o governo venezuelano chefiado pelo ex-coronel Hugo Chávez cassou em 27 de maio a concessão da emissora RCTV – Radio Carácas Televisão. Contrariamente ao que foi divulgado pela mídia brasileira, a não renovação e a cassação de canais de rádio e TV são medidas legais e comuns, também em países democráticos, como Estados Unidos, Canadá, Grã-Bretanha e outros. Mas, a RCTV foi um dos poucos, talvez o principal veículo de formação de opinião pública de nítido caráter oposicionista na sociedade venezuelana. Por isso, a medida foi recebida com protestos e manifestações, sobretudo da classe média e teve também repercussões negativas na mídia internacional. No congresso brasileiro, tanto deputados quanto senadores, assolados por acusações de corrupção, redescobriram sua vocação democrática – sobretudo aqueles que, ao longo das últimas décadas, constituíram a vanguarda e os portavozes políticos do regime militar. E membros da Arena, do PFL e, hoje, “Democratas”, protestaram violentamente contra a ameaça à legalidade e ao regime democrático do ato do governo venezuelano. A reação violenta de Chávez não se fez esperar, conforme relatou a Folha de S.Paulo, em 3/6/2007. ... “O Congresso dos Estados Unidos, uma fração do Congresso da União Européia e até o Congresso do Brasil, os jornais do mundo, as emissoras das grandes cadeias – manipuladas por seus donos, representantes da elite mundial, que pretendem impor aos seus povos sua vontade imperial – arrematou contra a Venezuela”. A manifestação do Congresso brasileiro destoou do silêncio dos outros países latino-americanos e foi taxada por Chávez de “papagaio” do governo norteamericano. Os protestos contra o fim da concessão a RCTV receberam cobertura desproporcional nas mídias brasileira e internacional que reproduziram amplamente imagens das marchas de protestos, envolvendo predominantemente jovens de classe média. Obviamente, nenhum jornal ou TV veiculou as manifestações de apoio à medida, por parte do “andar de baixo” (nas palavras de Elio Gaspari) constituído pela maioria do povo venezuelano, os pobres que representam a base política de Chávez. Os protestos das classes média e abastada que se sentem acuados e ameaçados pela alegada violação da liberdade de expressão da mídia devem ser aferidos à luz do comportamento das mesmas, na hora do golpe antidemocrático para depor Chávez em 2002. A RCTV apoiou abertamente a tentativa abortada de golpe de Estado em 2002. Chávez também se sente ameaçado pela política agressiva do governo dos Estados Unidos que não esconde sua rejeição ao presidente venezuelano,


considerando-o um “fator de desestabilização na América Latina”. Efetivamente, além das estreitas relações com Cuba, Chávez tem apoiado a eleição e posterior endurecimento da política energética na Bolívia de Evo Morales, e parece ter colhido novos triunfos com a eleição de Rafael Correa no Equador e de Ortega, na Nicarágua. Ao mesmo tempo, Chávez pleiteia o ingresso da Venezuela no Mercosul e acena com a construção de um gasoduto de 7000 quilômetros que levaria o combustível para Argentina e Brasil. Procura, assim, construir uma associação alternativa à ALCA, tão almejada pelos Estados Unidos. A ação de Chávez, ao cassar a concessão da RCTV não deve ser explicada apenas pelo desejo de vingança contra aqueles que apoiaram o golpe de 2002. Ela se insere num projeto político mais amplo de introduzir mudanças sociais profundas na sociedade venezuelana e, por extensão, na América Latina, construindo o “Socialismo Bolivariano do Século XX”. Essas mudanças na política social procuram beneficiar as classes sociais mais carentes e que foram marginalizadas nos governo anteriores. Tendo Chávez sido reeleito com mais de 60% dos votos, o ato de fechamento da RCTV não pode ser caracterizado como antidemocrático, embora fira os interesses das classes tradicionais do poder e da mídia a elas associados. Não se pode deixar de mencionar o papel da mídia nas últimas eleições presidenciais no Brasil, em 2006. Durante meses, os principais jornais e canais de TV entoaram em coro as acusações de corrupção e ineficiência do governo Lula, tentando influenciar a opinião política a favor do candidato da oposição. Tal como no Brasil, também na Venezuela os grupos de oposição política discordam das políticas sociais e alocação de recursos pelos respectivos governos. A mídia, nos dois países é conservadora e parcial na seleção de notícias divulgadas para a informação e o consumo populares. Após o golpe abortado em 2002, o governo venezuelano tem avançado constantemente na política de controle dos meios de comunicação, a ponto de hoje, 2007, Chávez controlar seis canais de TV e oito estações de rádio além de mais de 200 estações de rádios e TVs comunitárias, enquanto pressiona outros veículos de informação independentes, sob a acusação de serem manipulados. O receio de possíveis sanções do governo leva a uma espécie de autocensura, em termos de críticas ao governo de Hugo Chávez. A popularidade de Chávez tem crescido, ao procurar apoio popular para suas políticas sociais orientadas para os menos favorecidos. Ao ceder a Cuba petróleo a preços favorecidos, Chávez e Castro consolidaram também sua cooperação nas áreas de educação e saúde. Segundo “The Economist” (14/5/2005), mais de 16000 médicos cubanos proporcionam assistência médica e cirúrgica, antes inacessíveis para as camadas sociais carentes. Cuba presta também assistência e orientação para organizar serviços de saúde familiar e atividades educacionais, esportivas e recreativas. A impopularidade de Chávez junto às elites e a classe média é conseqüência do


conjunto de seus programas sociais, financiados com os lucros da estatal petrolífera PDVSA, enquanto os preços do petróleo continuam em alta no mercado mundial. Para fortalecer sua base política, possivelmente com o objetivo de uma 3ª reeleição, o governo cuida também do apoio das forças armadas, equipando-as com armas modernas e indicando vários generais para governadores das províncias. Enquanto isso, a economia venezuelana cresce a taxa acima de 10% ao ano, o que permite ao governo destinar bilhões de dólares para programas sociais, fomentando a criação de cooperativas agrícolas, oficinas e lojas que atendem a consumidores de baixa renda, melhorando sua segurança alimentar e seu estado de saúde. Comparado aos regimes corruptos ou caudilhescos que predominaram até recentemente na maioria dos países latino-americanos, e à luz do contexto e as relações de forças internacionais, particularmente latino-americanas, Chávez parece capaz de resistir às pressões norte-americanas e, ao mesmo tempo, fortalecer os laços econômicos (energéticos!) e políticos com seus vizinhos.

Israel – 60 anos por Henrique Rattner* A aspiração para o retorno á terra dos antepassados nos tempos modernos data do fim do século XIX quando na Rússia czarista, em conseqüência de inúmeros pogroms, foi criado o movimento dos “Amigos de Sion” (Hovevei Tzion), um pequeno grupo que tentou reacender a chama nacionalista via o retorno à terra prometida conforme escrito na bíblia. Foram poucos milhares de seguidores e o movimento ficou praticamente ignorado pelas massas judaicas. Alguns anos mais tarde, na década dos 80 surgiu outro movimento, os “Biluím” (Casa de Jacó, vamos e iremos) que tentou novamente influenciar a população judaica para emigrar a Israel. Mas, as massas de trabalhadores judeus, organizados no “Bund”, uma organização de ideologia socialista e social-revolucionária, optaram por uma solução política da “questão judaica” através de uma transformação radical das sociedades russa e polonesa, solidários com os socialistas de seus respectivos países. Não se admira o número elevado de líderes revolucionários judeus, entre os social-revolucionários e entre os mencheviques e bolcheviques. Houve, também, tentativas de fuga do serviço militar obrigatório que podia estender-se por mais de vinte anos. Assim, entre os anos 1904-1910 ocorreu a primeira Aliá e emigração de aproximadamente 10.000 jovens que estabeleceram as primeiras comunidades coletivistas (Kibutzim) e aldeias. Um movimento bem maior, a segunda Aliá ocorreu após a Primeira Guerra Mundial, formando um número maior de Kibutzim e aldeias cooperativistas. Ainda assim, a massa de trabalhadores judeus preferiu permanecer e lutar por uma sociedade mais justa e socialista nos paises da Europa Oriental, mesmo após os pogroms na Rússia Czarista, em


começos do século XX, instigados pelo clero ortodoxo e tolerados pelas autoridades, causando milhares de vítimas, entre crianças, mulheres e idosos. Os fugitivos dos pogroms seguiram para a então Palestina, onde ampliaram a rede de colônias coletivistas, na Galiléia e no vale de Isreel, em condições extremamente precárias, assolados pela malária e, não raramente, pela fome. Nesse mesmo tempo, ampliou-se e fortaleceu-se o movimento sionista na Europa, inspirado por Teodor Herzl, um jornalista oriundo do império austro-húngaro, profundamente impressionado pela onda de anti-semitismo desencadeada na França, em conseqüência das acusações lançadas contra um oficial judeu do exército francês, condenado por espionagem e traição ao desterro e prisão na Guiana Francesa. Mais de 10 anos mais tarde, Emile Zola lançou seu famoso grito “J´accuse”, acusando as autoridades e sobretudo o alto comando das forças armadas, de terem falsificado e omitido documentos que provaram a inocência do capitão Dreyfuss. No início da Primeira Guerra Mundial na qual a Turquia se alinhou às potências centrais, a Alemanha e o império austro-húngaro, viviam na Palestina algumas dezenas de milhares de judeus ortodoxos, nas cidades de S´fat e Jerusalém e outros em algumas aldeias agrícolas espalhadas pelo país. Com a derrocada do império turco pelas tropas britânicas e os exércitos beduínos Wahabitas recrutados pelo coronel inglês Lawrence, as imensas áreas do Oriente Médio foram repartidas, pelo acordo Sykes-Picot, entre a França e a Inglaterra, segundo o qual caberiam à primeira os territórios da Síria e do Líbano, ficando os ingleses com a parte do leão – o Egito, a Arábia Saudita, o Iraque e a Palestina. Os ingleses ainda tentaram entronar um dos príncipes da casa Hashemita como rei em Damasco, donde foi expulso pelas tropas francesas. Em compensação, os ingleses lhe cederam o trono do Iraque. A Palestina, outro pomo de discórdia, foi dividida, sendo a parte oriental da cidade de Jerusalém cedida ao Emir Abdalla, um dos filhos do Emir Hussein que tinha liderado as tropas beduínos contra os turcos. A parte ocidental, o futuro território da Palestina, foi reduzido a 27.000 km2, habitados por algumas centenas de milhares de Felahim, agricultores árabes trabalhando em regime de semi-servidão para os “effendis” – os proprietários ausentes, vivendo em Damasco, Bagdá ou Beirut e que acharam um ótimo negócio de vender suas terras ao Fundo Nacional Judeu, sem preocupar-se com o destino de seus habitantes. No começo da década de 20, iniciou-se uma onda de imigração judaica, numericamente mais expressiva. Eram em sua maioria membros da classe média, de movimentos juvenis, com boa formação escolar, decididos de implantar novas colônias agrícolas coletivistas, em pontos estratégicos do país. Os “halutzim” pioneiros, viviam de acordo com os princípios socialistas. As decisões importantes sobre a admissão de novos membros; os investimentos prioritários; as construções de moradias ou de infra-estrutura eram tomadas em assembléias gerais, geralmente realizadas no refeitório comum da coletividade. Criou-se um forte ethos de vida e do trabalho em comum, vedando o trabalho assalariado. A educação das crianças desde a mais tenra idade foi coletiva, do berçário até a fase adulta. Os investimentos em infra-estrutura, compra de tratores para a lavoura, de


caminhões para o escoamento da produção, tudo obedecia aos princípios do Kibutz, considerado o núcleo de uma nova organização social, mais justa e eqüitativa. Os palestinos não ficaram passivos diante a contínua expansão das terras e colônias judaicas. Em 1921, irrompeu uma onda de assaltos noturnos às colônias, geralmente rechaçadas pelos colonos, com o apoio hesitante da polícia inglesa. Outro levante, mais amplo e violento, ocorrem em 1929 quando os guerrilheiros palestinos penetraram em vários assentamentos, matando seus habitantes. Durante os anos que precederam a Segunda Guerra Mundial, a efervescência no meio árabe cresceu, sobretudo com o aumento da imigração de judeus da Europa Central, refugiados da sanha assassina dos nazistas. Em 1936, o parlamento inglês encarregou a Comissão Peel de elaborar um relatório sobre a situação na Palestina e recomendar medidas para reduzir a tensão entre as duas populações. A recomendação mais drástica da Comissão Peel foi a de impedir a entrada no país de novos imigrantes. O estouro da Segunda Guerra Mundial em 1939, mudou radicalmente o cenário no Oriente Médio e, também, na Palestina. As tropas inglesas estacionadas no Egito foram acuadas e rechaçadas pelas tropas alemãs sob o comando do general Erwin Rommel, que chegou até 110 km de Port Said, procurando fechar o canal de Suéz, vital para o transporte de tropas e abastecimentos da Índia, África do Sul e Austrália. Do outro lado do campo da batalha, os exércitos alemães avançaram rapidamente em direção ao Cáucaso, pretendendo fechar a “tenaz” sobre o movimento das tropas inglesas. Outro fato de complicação para os ingleses foi o levante quase simultaneamente de oficiais pró-nazistas no Egito e no Iraque, que declararam abertamente sua adesão e preferência pelo regime nazista. Os dois levantes foram reprimidos e os oficiais, entre os quais os coronéis Gamal Abdel Nasser e Anwar Sadat, futuros presidentes, foram encarcerados. No mesmo tempo, o ímpeto do avanço das tropas alemãs foi quebrado na batalha de El-Almein pelas tropas britânicas sob o comando do general Montgomery. Percebendo que entre todas as populações do Oriente Médio, os únicos que tiveram interesse vital na vitória dos ingleses, esses começaram a treinar jovens judeus para uma tropa de elite (o Palmach), distribuíram armas à população e consentiram na formação de uma brigada de judeus como tropas auxiliares na guerra. Vários oficiais dos mais graduados da brigada, tornaram-se os futuros comandantes das tropas israelenses, na época da guerra da independência. A rendição do marechal von Paulus com seus 500.000 soldados em Stalingrado; os avanços contínuos dos exércitos russos, reconquistando os territórios perdidos no “Blitzkrieg” alemão; o recuo destes, por falta de armas e suprimento no norte da África; a invasão pelos aliados da Grécia e da Itália; o forte movimento de partisãos na Iugoslávia culminou com a invasão no lado atlântico da Normandia, que quebrou as linhas de defesa dos alemães e assinalaram o próximo fim do pesadelo de uma guerra que ceifou a vida de trinta milhões de pessoas, entre militares e civis e destruiu grande parte das cidades, instalações industriais e da infraestrutura.


Terminou a guerra e com ela recrudesceram as atividades de facções armadas extremistas da população judaica, para obrigar os ingleses a abandonarem o país. Diversos atentados foram cometidos, sendo o mais conhecido a explosão do hotel King David em Jerusalém, que abrigava o alto comando do exército inglês. Com isto cresceu a repressão, mesmo a manifestações pacificas pela independência do país que estava praticamente em estado de guerra. Numa madrugada de junho de 1946, as tropas inglesas cercaram o Kibutz Tel Yossef, onde eu passava os fins de semana em companhia de minha mulher Miriam e o filho Iossi. Todos os homens foram feitos prisioneiros, pois por ordem da “Hagana” não deviam identificar-se. Escapei por ter comigo a carteira da marinha mercante e durante duas semanas trabalhei dia e noite para atender às necessidades básicas da população de 600 pessoas, mulheres, crianças e idosos. Os “presos” foram deportados para um campo de concentração, Sarafend, em antigas barracas do exército inglês durante a guerra, e lá permaneceram por meses. O fim da guerra em maio de 1945, com a conquista de Berlim pelos russos,, revelou ao mundo a indescritível barbárie nazista. 6 milhões de judeus mortos nos crematórios e nos campos de concentração, Auschwitz, Birkenau, Dachau e outros, enquanto os sobreviventes estavam em condições físicas e psíquicas terríveis (talvez melhor descrito por Primo Levy, também ex-prisioneiro, no livro “É este um homem”?). Os líderes do mundo convenceram-se do desastre que se abateu sobre o povo judeu e, em novembro de 1947, a Assembléia Geral das Nações Unidas resolveu criar o Estado de Israel e o dos palestinos, na Terra Santa. O mundo árabe recebeu com indignação e revolta a resolução e começou seus preparativos para expulsar os judeus, a partir do momento em que os ingleses iriam abandonar o país, em maio de 1948. Efetivamente, a guerra irrompeu nesta data em condições extremamente críticas para os judeus, numa minoria de 600.000 contra quase um milhão de palestinos. Os ingleses tinham deixado os postos policiais fortificados e com armas abundantes nas mãos dos palestinos. Os judeus não dispunham de armamentos para enfrentar os exércitos do Egito, Jordânia, Síria, Líbano e tropas auxiliares do Iraque, além dos próprios palestinos cujos líderes proclamaram como seu objetivo de “jogar os judeus no mar”. Não é aqui o momento de relatar as batalhas travadas, no norte e no sul do país, sustentadas pelos jovens do “Palmach”. Quando em fins de 1948 foi proclamado um armistício pelas Nações Unidas, os judeus tinham não somente preservado seus territórios, conforme estipulava a partilha, mas tinham também ocupado uma parte da Galiléia, de maioria árabe, as cidades de Jaffo, Acre e outros pontos estratégicos, assinalando uma tremenda derrota dos países árabes. Em maio de 1948 foi celebrado sob intenso jubilo o dia da “Independência” e Israel passou a ter assento na Assembléia das Nações Unidas e de suas organizações. O governo enfrentou uma tarefa hercúlea: prover transporte; acolher e alimentar centenas de milhares de sobreviventes de campos de concentração e, também, os refugiados judeus dos países árabes, desde Marrocos, Tunísia, Líbia, Egito, Iraque, Síria e, mais tarde, da Etiópia. Seria possível acolher essas centenas de milhares de imigrantes, privados de tudo e assegurá-los moradia, trabalho,


educação e saúde para todos? Sob este aspecto, Israel cumpriu suas tarefas de oferecer numa nova pátria aos desterrados e desenraizados. Nos primeiros anos de sua existência o novo estado obteve a simpatia e o apoio – talvez por sentimentos de culpa da maioria do mundo ocidental pelo holocausto e, pela epopéia dos sobreviventes encarcerados na ilha de Chipre, da qual procuraram fugir clandestinamente, com a ajuda de barcos vindos e tripulados por jovens marinheiros israelenses. Apesar da política abertamente pró-árabe do governo inglês, nada conseguiu deter a onda de entusiasmo pelo cumprimento da promessa bíblica – a volta à terra dos antepassados. Contudo, o sonho de dois mil anos tão expressivamente manifesto na “Hatikva” (a esperança) o hino nacional judeu, não se concretizou pelo retorno de todos os judeus, cuja maioria preferiu permanecer nos países da “Diáspora”. Enquanto isso, a política oficial dos sucessivos governos minimizou a resistência dos palestinos, e tentou ignorar o drama das famílias árabes expulsas de suas casas e aldeias, constituindo uma massa de refugiados, para as quais também os países árabes não prestaram ouvidos. Continuavam a acreditar que logo iriam expulsar os judeus e re-ocupar toda a Palestina. Na guerra de 1948 e do armistício seguido, os judeus saíram com a parte maior do território do que lhes foi alocado pela ONU, em conseqüência da derrota infligida aos exércitos árabes. Havia muitos anos, a população judaica tinha se preparado para o confronto através da formação do Palmach – uma tropa de choque constituída basicamente pelos jovens, filhos dos assentamentos coletivistas e treinados pelo capitão Charles Ord Wingate, posteriormente promovido a brigadeiro e morto na guerra da Birmânia, que deu o nome ao instituto de treinamento avançado de oficiais e quadros superiores do serviço de contra espionagem de Israel. Também, em cada núcleo rural - Kibutz e Moshav - funcionava um treinamento permanente para a defesa da população civil pela Hagana (defesa), de cujos quadros foram recrutados os comandantes militares e funcionários graduados do ministério da defesa. A escassez de armamentos foi superada, pelo menos parcialmente, pelo envio de carregamentos a mando da ex-União Soviética, da Tchecoslováquia. Quando em 1948 foi declarado o armistício entre os combatentes dos dois lados, os judeus tinham conquistado terras que pela partição declarada pela ONU deveriam pertencer ao futuro estado da Palestina. A situação de guerra continua até hoje, com a Síria, Iraque e outros países árabes, com exceção da Jordânia e do Egito que assinaram um tratado de paz, após a guerra de 1973, recebendo a devolução de seus territórios do Estado de Israel. O movimento de resistência palestina que vinha de 1919 após a Primeira Guerra Mundial, irrompeu com força em 1929, invadindo várias localidades e assassinaram suas populações. O movimento ressurgia em 1936, com repetidos ataques de guerrilheiros infiltrados do Iraque, atacando os Kibutzim na Galiléia e no Vale de Isreel e voltaram com renovado vigor nos anos de 1950, com a criação de destacamentos de Fedayen – guerrilheiros comandados por Yasser Arafat. Do lado israelense, o movimento nacionalista palestino foi praticamente ignorado, sobretudo após as campanhas militares vitoriosas de 1956, com Israel aliado à França e Inglaterra que queriam


recuperar o controle do Canal de Suez, nacionalizado pelo presidente Gamal Abdel Nasser. Nova derrota acapachante foi infligida nos exércitos do Egito, Jordânia e Síria que planejaram um ataque abortado na famosa “Guerra de 6 Dias”, em junho de 1967, o que levou os exércitos israelenses até o canal de Suez, ocupando a península de Sinai e a conquista no norte do país, das colinas do Golan. No centro do país, os soldados israelenses ocuparam a Cisjordânia e parte de Jerusalém antiga ocupada pelos jordanianos, sob o reino de Hussein, descendente dos Hashemitas. O delírio coletivo pelas vitórias relâmpagas contra os três exércitos inimigos permeou o espírito não somente da população, mas também das altas esferas do governo e das forças armadas e a superioridade militar flagrante afastou a possibilidade de celebração de um acordo de paz com os árabes. Reforçou a tendência de ocupação das áreas palestinas ocupadas que passaram por um processo ininterrupto de assentamentos, os quais aumentariam as dificuldades de um futuro e hipotético processo de paz. Israel prosperava com a imigração de centenas de milhares de refugiados dos países árabes, imigrantes dos países europeus, sobretudo dos oriundos da ex-união soviética após seu desmoronamento em 1989. Junto com os novos imigrantes, chegaram investimentos os quais, em combinação com a criatividade e as inovações tecnológicas israelenses fizeram a economia prosperar, alcançar o elevado nível do PIB e o ingresso na o OCDE – o clube dos países seletos de desenvolvimento econômico e social. Mas, social e culturalmente, a sociedade israelense aburguesou-se; o número de Kibutzim – as colônias agrícolas coletivistas regidas por princípios socialistas e igualitárias, diminuiu a cada ano, abandonando seus membros o estilo de vida na lavoura, em troco pelo suposto conforto e consumo conspícuo das cidades. A imensa maioria dos imigrantes e refugiados, sobretudo os oriundos dos países árabes, estabeleceram-se nas cidades, alterando sua fisionomia e cultura, com a penetração e difusão de padrões orientais levantinos. O serviço militar obrigatório de três anos funcionou durante muito tempo como poderoso fator de integração e socialização. Mas, não impediu a expansão de um estilo de vida individualista e consumista, de pouca preocupação com os destinos da sociedade ampla. Politicamente, essas transformações sociais e culturais inclinaram a sociedade israelense para a “direita”, tendo o partido trabalhista, no governo desde a Independência perdido a maioria no parlamento (Knesset) que passou para o Likud (União) cujos os líderes Menachem Begin e Benjamim Netanyahu assumiram sucessivamente a posição de primeiro ministro. A eles, após a renúncia de Itzhak Shamir, seguiu o general Ariel Sharon, conhecido por suas posições extremistas. Com a doença de Sharon assumiu seu vice Ehud Olmert, no poder até hoje mas politicamente fraco e acusado, reiteradas vezes, por atos de corrupção. Mas, no cenário político atual, não parece haver alternativas. O partido trabalhista perdeu votos, apesar da eleição de Shimon Peres, recentemente para a presidência do estado e que exerce uma função puramente decorativa. A “esquerda” – a trabalhista, o “Meretz” e outros grupos não conseguem construir uma coalizão no parlamento sem o apoio dos grupos de religiosos – ortodoxos (Shaas) e dos radicais da direita – “Israel Beiteinu”. Israel é nossa casa, ambos radicalmente


opostos a concessões políticas e devolução da terra aos palestinos. Entre os anos de 1967 e 1973, o país viveu numa euforia, confiando em sua superioridade militar contra os árabes. Afluíram investimentos externos, criaram-se novas empresas e a sociedade israelense, antes austera, igualitária e baseada em sólidas relações de cooperação transformou-se em mais uma presa do capitalismo global. O relaxamento no treinamento e nos preparativos das forças armadas resultou no maior desastre militar da história do estado de Israel. No dia de Yom Kippur de 1973, o dia mais sagrado da religião judaica, quando toda a população estava nas casas de oração, as forças armadas egípcias lançaram um ataque relâmpago, apoiado por pesado fogo de artilharia. Os soldados israelenses, na frente da batalha, estavam inferiores em número e armamentos e milhares foram vítimas dos ataques egípcios. Demorou a mobilização e o envio de reforços para a frente de batalha no Sinai o que aumentou o número de vítimas. Quando os reforços chegaram, conseguiram rechaçar as tropas e blindados egípcios e, sob a liderança do então general Ariel Sharon, avançaram em profundidade no território do Sinai, cercando mais de 150.000 soldados e cortando as linhas de abastecimento, inclusive de água, dos egípcios. Salvos por um armistício imposto pelos EUA e a ex-União Soviética, foi criado o clima para prolongadas negociações que resultaram na assinatura de um acordo de paz entre os beligerantes, com o reconhecimento de Israel e o estabelecimento de relações diplomáticas e comerciais entre os dois países, em troca da devolução do Sinai por Israel. Acordo semelhante foi celebrado com a Jordânia, apesar dos protestos do mundo árabe. Em Israel, o desastre militar teve graves conseqüências políticas. O comandante em chefe Moshe Dayan, herói da guerra dos seis dias, demitiu-se e, poucos meses depois, também a primeira ministra Golda Meir renunciou ao cargo, que foi assumido por outro militar, o general Itzhak Rabin. A confiança da população em seu governo foi seriamente abalada e deu origem à ascensão do movimento nacionalista de direita, sob a chefia de Benjamin Netanyahu, seguido por Menachem Begin, ex-líder guerrilheiro do Etzel – Irgun Tzevai Leumi que posteriormente transformou-se no partido Likud (União). Paradoxalmente, foi Begin, nacionalista extremista quem assinou o tratado de paz com o primeiro ministro egípcio Anwar Sadat, posteriormente assassinado por militantes da Irmandade Muçulmana. A aparente trégua que se seguiu à paz com o Egito e a Jordânia, não impediu a irrupção de um novo movimento guerrilheiro palestino, sob liderança de Yasser Arafat. Apesar de tentativas de mediação de um acordo por Bill Clinton, as conversas sigilosas em Oslo, na Noruega, em Genebra e outros, os esforços fracassaram pela intransigência dos dois lados em ceder nos problemas essenciais. O movimento insurrecional cresceu após uma visita provocativa de Ariel Sharon, acompanhado por deputados numa sexta feira, dia sagrado dos mulçumanos, no recinto da mesquita de Omar. Desde então e até hoje, os ataques de guerrilheiros, de homens-bomba e de veículos carregados de explosivos não pararam. Mesmo depois da retirada unilateral de Israel da Faixa de Gaza, onde vive 1 ½ milhão de palestinos em condições extremamente precárias, os ataques com foguetes Quassam de pouco alcance continuam a afligir a população israelense


estabelecida perto da fronteira. Nas eleições palestinas em 2006, o Hamas – partido radical que se recusa a reconhecer Israel e assim, sentar-se à mesa de negociação – obteve a maioria de votos, nomeando o primeiro ministro Ismael Haniya – franco opositor do presidente da Autoridade Palestina, Mahmud Abbas. A Cisjordânia, sob o governo nominal do Fatah mais moderado, está literalmente cercada pelas tropas israelenses e por uma muralha de dezenas de quilômetros que deve impedir a penetração de terroristas. Os poucos postos de entrada e saída dificultam a vida dos palestinos, cada vez mais dependentes de auxílio financeiro do exterior. Todas as tentativas de negociação mais recentes, com a intermediação de Condoleezza Rice, Dick Cheney, Romano Prodi, Tony Blair e outros; têm esbarrado em três pontos cruciais cuja superação parece cada vez mais difícil e distante: a questão de Jerusalém Oriental, como capital do futuro estado palestino; a evacuação e devolução das terras ocupadas hoje por 250.000 colonos israelenses; e uma solução satisfatória para os refugiados, ou melhor, seus descentes, até hoje abrigados em condições precárias nos países árabes vizinhos. Enquanto perdura o impasse, o Hamas continua a lançar seus foguetes Quassam, provocando reações da aviação e da artilharia israelense, com dezenas de vítimas. Em julho 2006, o Hesbolla – partido de Deus – abrigado no sul do Líbano, capturou e matou dez soldados judeus, num claro ato de provocação. O conflito militar seguido durou algumas semanas causando pesadas perdas em homens entre os israelenses e o Hesbolla. Novamente, as forças israelenses se mostraram despreparadas para enfrentar guerrilheiros urbanos contra os quais os pesados bombardeios da aviação tiveram pouco efeito, a não ser a destruição de parte da infra-estrutura e das cidades libanesas. O armistício imposto em agosto de 2006, deixou as forças do Hesbolla, apesar de pesadas perdas em homens, intactas e continuando instaladas no sul do Líbano, com o apoio da Síria e do Irã. O que foi proclamada como vitória pelos chefes do Hesbolla, evidenciou, outra vez, o despreparo e a falta de planejamento estratégico nesta nova fase do conflito com os árabes, por parte de Israel cuja invencibilidade militar foi seriamente posta em dúvida. A comissão de inquérito criada pelo parlamento israelense sob a chefia do juiz Winograd recomendou a renúncia do comandante chefe das forças armadas, o brigadeiro-tenente da força aérea Dan Halutz e, também, do ministro de defesa, Amir Peres. Isentou de culpa o primeiro ministro Ehud Olmert, que continua no cargo por causa da instabilidade das relações entre as forças políticas, o que inviabiliza a convocação antecipada de eleições, devido a sua fraqueza política no parlamento. O governo de Olmert, dependente das facções intransigentes e ortodoxas que rejeitam qualquer concessão aos palestinos, não oferece qualquer solução alternativa e, cedendo às pressões dos radicais, autorizou recentemente a construção de novas casas, apesar da promessa feita a Bush, nos territórios em disputa. Pressionado, por um lado, pelas ameaças do Irã que desenvolve ativamente sua indústria nuclear e cujo presidente proclama como meta de seu


governo “apagar Israel do mapa mundi” e, por outro, pelas incertezas sobre o resultado das futuras eleições para presidência nos Estados Unidos, o estado de Israel, politicamente enfraquecido, deve se preparar para enfrentar seus mais sérios desafios desde sua fundação em 1948. Inserido no mundo árabe, com mais de 150 milhões de habitantes pró-palestinos e considerado o “inimigo” por mais de 1 bilhão de islâmicos, a posição estratégica de Israel depende fundamentalmente do apoio norte-americano, cujo maior interesse na região são os imensos depósitos e reservas de petróleo, vitais para a economia dos EUA. Apesar de tantas guerras e seu enorme orçamento militar, a economia israelense tem crescido quase ininterruptamente, ostentando um PIB invejável de aproximadamente US$ 16.000 per cápita. Mas, as ameaças que pairam sobre o jovem estado são mais políticas do que econômicas e militares. Apesar dos regimes autocráticos nos principais países da região – Egito e Arábia Saudita – deixando de lado os países praticamente em guerra civil – o Afeganistão e o Iraque – em todos cresce a insatisfação da população com seus governantes e com ela, aumenta o número dos partidários da Irmandade Muçulmana no Egito, e dos fiéis de Al Quaeda na Arábia Saudita. Engajados em programas sociais para aliviar a situação dos mais indigentes, mantendo escolas, centros de saúde e, obviamente, de doutrinação e treinamento militar, essas organizações têm crescido e espalhado seus homens por todos os lugares. A popularidade crescente dessas organizações que mantém milícias treinadas militarmente, ameaça derrubar os governos árabes mais moderados e conciliatórios com relação à questão palestina. Os seguidores de Hamas e, provavelmente a maioria da população palestina ameaçam derrubar um governo disposto a estabelecer um acordo de paz. Outro problema que paira no horizonte é o crescimento demográfico da população palestina, hoje 1/5 da população do Estado, e que coloca em questão o futuro de Israel, como estado judeu. Como resolver a questão de um “Estado Judeu” em que uma parte crescente de sua população é palestina e, se e quando houver negociação, exigirão um estado binacional ou para “todos” seus cidadãos? Nos últimos anos, ocorreu uma lenta, mas contínua mudança no relacionamento entre Israel e os judeus da diáspora, particularmente, dos EUA, cuja população judaica equivale à de Israel e que possa vir a se tornar um novo centro espiritual e cultural do judaísmo. Internamente, o sistema eleitoral antiquado e inoperante imobiliza a renovação dos quadros políticos, com novo conteúdo ideológico. Já foi mencionado o impasse com os colonos nos territórios palestinos, segundo as clausulas da resolução das Nações Unidas, em 1948. O exemplo da resistência e desocupação da Faixa de Gaza e a comoção que causou no país, não prometem saídas fáceis para o processo de restauração das terras aos palestinos, nas quais estão estabelecidos 250.000 colonos. É importante frisar que a política de ocupação das terras palestinas pelos israelenses foi praticada por todos os governos, desde os primeiros liderados pelos trabalhistas Ben Gurion, Levy Eshkol, Golda Meir, Itzhak Rabin e, com maior vigor, nos governos do Likud por Netanyahu, Begin, Shamir, Sharon e Olmert e constitui um legado histórico capaz de dar origem a conflitos armados internos, fragilizando ainda mais a coesão social e a solidariedade que


caracterizaram Israel nos primeiros anos após a sua fundação quando foram acolhidos milhões de imigrantes e integrados produtivamente à sociedade. O crescimento econômico e a prosperidade em conseqüência da adoção de políticas econômicas neoliberais, além de praticamente liquidar as colônias coletivistas – espinha dorsal do Estado de Israel na Guerra da Independência, contribuiu rapidamente para aumentar as disparidades em renda, consumo e bem estar, em prejuízo dos mais carentes. Assim, apesar dos avanços inquestionáveis de Israel nas áreas das ciências – veja o número de prêmios Nobel em Física, Química, Medicina e Literatura - e em inovações tecnológicas na agricultura e indústria, os desafios que se colocam ao jovem Estado ao completar os primeiros sessenta anos, são formidáveis e constituem sérias barreiras à criatividade e ousadia ao enfrentar seus problemas internos e externos. A tendência de prestar apoio irrestrito e incondicional a Israel afasta ou elimina os judeus da diáspora dos debates travados no país sobre suas políticas. Judeus secularizados e religiosos costumavam ter posições em comum ainda que por razões diferentes, como por exemplo, manter os territórios ocupados, seja por razões de segurança, seja por causa da próxima redenção pelo Messiah. Mas, o desacordo persiste quanto às questões mais básicas: quem é judeu; o papel da religião e o “status” de não judeu na sociedade?. A sociedade israelense não consegue chegar a um acordo sobre sua identidade e, enquanto não forem respondidas essas indagações parece impossível resolver o problema das relações com os palestinos, inclusive aqueles que são cidadãos israelenses. Ajudar a Israel não pode mais significar conceder apoio sem qualquer crítica. As instituições da diáspora não podem omitir-se de críticas a políticos israelenses que pregam o racismo e a intolerância, tal como o recém nomeado ministro Avigdor Lieberman. O debate sobre as políticas israelenses deve ser encorajado, a fim de mobilizar todos aqueles que concordam com a desocupação dos territórios, para que os palestinos possam construir seu próprio estado e, assim, assegurar a paz e retorno de Israel a sua vocação de construir um porto seguro democrático para todos os judeus do mundo.

por HENRIQUE RATTNER Professor na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA/USP); e na pós-graduação no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Fundador do Programa LEAD Brasil e da

Territórios de cidadania: evolução ou revolução? O lançamento do Programa dos Territórios da Cidadania, no dia 25 de fevereiro, e


a criação quase simultânea de 60 territórios distribuídos por todo o país marcaram a vontade do governo federal de dar um forte impulso à estratégia do desenvolvimento territorial. Esta estratégia se iniciou em 2004 com a instalação da Secretaria do Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SDT-MDA) e a implantação do Programa de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (PDSTR). O lançamento do novo programa constitui uma etapa suplementar na intenção de combinar crescimento econômico e reequilíbrio social e territorial, o que aos poucos vem moldando um novo paradigma do desenvolvimento que atrai cada vez mais a curiosidade de outros países. O Programa dos Territórios da Cidadania, tal como foi apresentada no dia do lançamento, se destaca pelo número elevado das entidades administrativas envolvidas. O programa, que pretende atingir aproximadamente mil municípios em 2008, ou seja, uma população de 2 milhões de famílias rurais, mobiliza a competência de 19 ministérios. Para 2009, há a previsão de incrementar o número de territórios para 120, quando todos os territórios do atual PDSTR serão incorporados ao novo programa. Foram definidas 135 ações públicas, nas áreas econômica, social e de infraestrutura. A área econômica acentua o apoio às atividades produtivas agrícolas e pecuárias (assistência técnica, crédito agrícola), à comercialização dos produtos agropecuários (por intermédio do Programa de Aquisição de Alimentos ou mediante ações de apoio ao cooperativismo, às unidades de comercialização e à agroindústria), à produção de biodiesel (assistência técnica, capacitação, pesquisa e desenvolvimento, organização da produção, gestão do selo social) e à regularização fundiária (identificação e delimitação de terras em quilombolas, reassentamento de famílias de áreas indígenas). Na área social, as ações concentram-se nos temas educação (ativação dos programas Proinfo, Brasil Alfabetizado e Saberes da Terra, construção de escolas), saúde (farmácias populares, atendimento reforçado às famílias), cultura (pontos de culturas, Programa Arca das Letras) e documentação das mulheres e dos trabalhadores rurais. No que diz respeito à infra-estrutura a lista também é longa: abastecimento d’água, construção de habitação em assentamentos e de estradas, elaboração de planos de desenvolvimento sustentável em assentamentos, realização de trabalho de topografia, extensão do licenciamento ambiental e, ainda, generalização da eletrificação rural. Do ponto de vista institucional, o programa consagra um fortalecimento significativo do MDA, cujo orçamento aumentou mais de 1 bilhão de reais, encarregado da articulação entre todos os atores institucionais, assim como da coordenação geral do programa. O ministério liderará o Comitê Gestor Nacional composto pelas diferentes entidades governamentais participantes do programa; em nível estadual, as delegacias do MDA terão as responsabilidades de coordenar os Comitês Gestores Estaduais compostos pelos representantes dos órgãos federais e dos colegiados territoriais. O orçamento total previsto alcança R$ 11,3 bilhões. De uma certa maneira, o Programa Territórios da Cidadania se inscreve na continuidade de políticas anteriores, dando seqüência às ações iniciadas durante o segundo mandato de FHC, cristalizadas em grandes programas sociais durante o


primeiro governo de Lula (Fome Zero, Pronaf, Reforma Agrária, etc.), completados, durante esse último período, por programas inovadores (Luz para Todos, Programa Um Milhão de Cisternas). Mas, de uma maneira mais direta, os Territórios da Cidadania se inscrevem como herança direta do PDSTR. De fato, ao retomar os chamados territórios rurais, selecionados a partir de critérios de ruralidade e de densidade demográfica, o programa recupera simultaneamente o mesmo público-alvo composto pelos agricultores e pescadores familiares, assentados da reforma agrária, acampados, quilombolas e comunidades indígenas. Dessa forma, o Programa Territórios da Cidadania se apresenta como o fortalecimento dos territórios de identidade do PDSTR. Mas, também, o programa marca uma ruptura com as mesmas políticas, representada por diversas inflexões importantes. Em primeiro lugar, destaca-se o realismo com que foi encarada a nova estratégia de combate à pobreza rural. Muito se falou sobre a pouca eficiência do PDSTR com respeito a este objetivo, seja pela sua diluição no contexto de um objetivo mais geral de desenvolvimento de territórios de identidade, seja pelos parcos recursos financeiros e humanos disponibilizados. Com este novo programa, o combate à pobreza rural converteu-se no principal objetivo de ação, dando lugar a uma série de opções metodológicas precisas, começando pelo critério de seleção (situações com menor IDH). O incremento significativo de verba e pessoal também contribuiu para essa mudança de postura. Não se trata somente de redistribuir os recursos precedentes, mas de ampliar e concentrar o financiamento para situações geográficas e humanas de maior necessidade, como também de multiplicar e combinar as políticas sociais e as competências técnicas de diferentes ministérios. Uma segunda ruptura com o PDSTR é a mudança do paradigma implícito que sustenta cada programa. O anterior se fundamentava na idéia de território de identidade, que supõe a existência de um corpo de normas (simbólicas ou não) específicas da sociedade local. Sendo assim, o programa objetivava ajudar a coletividade local na definição e implementação de ações coerentes com as normas aí estabelecidas, respondendo a objetivos compartilhados. Nesta lógica, o papel do Estado se limitava (ou devia se limitar) a uma função de arbitragem e de apoio, mediante a alocação de recursos e a prestação de serviços, notadamente na capacitação nas áreas da gestão técnica e administrativa de projetos coletivos. Obviamente, os Territórios de Cidadania possuem outra função. Trata-se, para o Estado, de concentrar seus esforços em áreas marcadas por uma situação de pobreza rural aguda, para induzir um processo de desenvolvimento econômico e social acelerado. Sendo assim, a estratégia corresponde a um processo de territorialização das políticas públicas, que por sua vez remete a dois fenômenos bem diferentes: a desconcentração da ação pública e a descentralização do processo de governança. O primeiro corresponde à preocupação do poder público de adaptar a sua política à realidade local para atender melhor as necessidades dos cidadãos. Em outras palavras, trata-se de estabelecer delegacias territoriais para agilizarem as políticas públicas federais e facilitarem a sua implementação. A coordenação territorial dos


grandes programas federais (Bolsa-Família, Pronaf, Luz para Todos, etc.) responde evidentemente a esta preocupação. A função da descentralização é diferente, uma vez que ela objetiva compartilhar o processo de decisão, notadamente no que diz respeito à elaboração de políticas públicas, entre o poder público central, os estaduais e municipais e os atores territoriais privados e civis. Implementar uma descentralização implica necessariamente interferir na estrutura da repartição do poder, o que evidentemente não é uma operação anódina. A substituição do Pronaf Infraestrutura em 2004, que era administrado pelas prefeituras municipais, pelo PDSTR, administrado pelos fóruns de desenvolvimento territorial, mostrou as tensões criadas pela emergência de uma nova forma de descentralização. Já o Programa Territórios da Cidadania envolve de maneira simultânea os processos de desconcentração e de descentralização da ação pública. O primeiro é materializado pelo poder dado às delegações estaduais do MDA na administração dessas áreas, ao passo que o segundo é evidenciado pela dupla vontade do governo federal de associar os poderes estaduais e municipais ao gerenciamento do programa e delegar parte do poder decisório a entidades da sociedade civil, no quadro do conselho de desenvolvimento territorial. Um outro elemento de ruptura com o quadro anterior, talvez ainda mais significativo que o precedente, é o esforço notável a cargo dos gestores para introduzir um dispositivo de coordenação das políticas públicas rurais no nível local. De certo modo, esta preocupação de integração vai de encontro à estratégia de fragmentação das políticas públicas, inscrita no processo de reforma do Estado, que tomou força a partir do final dos anos 1980, não só no Brasil mas no mundo todo, sob a firme orientação de instituições internacionais, tais como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento ou o Fundo Monetário Internacional. De fato, essas instituições preconizavam que a segmentação das políticas públicas era a única via operacional para atingir objetivos precisos, limitando o papel do Estado e os custos da intervenção pública, naquilo que ficou conhecido como a focalização dos programas governamentais. Vale a pena lembrar que esta orientação rompeu com a prática das políticas integradas, em voga no período de crescimento econômico com base no modelo de substituição de importações e que procuravam atender todos os aspectos ligados a um determinado ramo de atividade. Assim, a reintrodução da preocupação com a coerência entre as diferentes políticas públicas orientadas a uma base territorial não pode ser considerada apenas como um fenômeno secundário. Ao contrário, pode estar anunciada aí uma evolução mais profunda do processo de elaboração das políticas públicas. Finalmente, podemos até pensar que os Territórios da Cidadania poderiam romper com a forma histórica pela qual tem se dado a atuação do Estado no meio rural. Este processo, já experimentado com a implementação do Pronaf e demais programas de redução da pobreza no meio rural, poderia conhecer, através dessa intervenção territorializada, a expressão ampliada, já que é a primeira vez que se ataca com determinação o processo de marginalização da agricultura familiar. É certamente a primeira vez na história rural brasileira que o Estado implementa um


dispositivo tão importante visando à integração dos produtores mais pobres e à redução das diferenças sociais e produtivas no campo. Evidentemente é muito cedo para avaliarmos a profundidade da mudança do processo de desenvolvimento rural induzida pelo novo programa e sabermos se ele acarretará uma verdadeira revolução na maneira como o Estado enxerga a agricultura familiar, ou se trará apenas uma leve evolução destinada a corrigir os problemas sociais e econômicos mais flagrantes. Contudo, no momento de concluir este artigo cabe ressaltar, mais uma vez, a diferença existente entre as lógicas respectivas da territorialização da ação pública e de projetos coletivos territorializados. Consideramos que seria prejudicial para os produtores rurais e as comunidades rurais se o Programa Territórios da Cidadania se limitasse apenas ao primeiro aspecto. ---------Philippe Bonnal é pesquisador do Cirad – Centre de Coopération Internationale de Recherches Agronomiques pour le Développement (França), pesquisador convidado do CPDA/UFRRJ e do OPPA. Está é uma versão ligeiramente modificada do artigo “Território da cidadania, evolução ou revolução das políticas públicas no meio rural”, publicado no Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura, do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ – Universidade Federal Rural de Rio de Janeiro, n. 14, fev. 2008.

Todo homem é filósofo

É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são 'filósofos', definindo os limites e as características desta 'filosofia espontânea', peculiar a 'todo o mundo', isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por 'folclore'. Após demonstrar que todos são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente – já que, até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na 'linguagem', está contida uma determinada concepção do mundo, passa-se ao segundo momento, ao momento da crítica e da consciência, ou seja, ao seguinte problema: é preferível 'pensar' sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, 'participar' de


uma concepção do mundo 'imposta' mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e na 'atividade intelectual' do vigário ou do velho patriarca, cuja 'sabedoria' dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para a ação), ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade? Pela própria concepção do mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um 'conhece-te a ti mesmo' como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise." Por ANTONIO GRAMSCI

Esclarecimento segundo Kant: Em 1784, Immanuel Kant(1724-1804) publicou o seu artigo “O que é Esclarecimento?”. Observando a forma que desenvolve seu argumento, podemos notar que Kant entende o Esclarecimento como uma condição moral e não uma coisa, e seu sentido não pode ser restringido a saber ou conhecimento, pois é a combinação do conhecimento profundo sobre um assunto específico com a autonomia crítica do sujeito do conhecimento. Esquematicamente, Scholar

Autonomia


(Profundo conhecedor de um assunto) + (Falar em seu próprio nome) Segundo Kant, todos (homem ou mulher) podem alcançar esclarecimento sobre qualquer assunto, embora a grande maioria não queira praticar ou desenvolver tal condição moral, seja por comodismo, oportunismo, medo ou preguiça. Logicamente, em seu processo social de formação (Bildung), todo indivíduo vive uma situação de menoridade em algum momento ou fase de sua vida. Neste caso, a menoridade é natural, pois confunde-se com imaturidade, tal como a imaturidade da semente em relação à árvore que ela pode vir a ser, já que nenhuma pessoa nasce pronta. No entanto, Kant questiona aquelas autoridades (principalmente religiosas) que, através do medo ou do constrangimento, mantenham seus sujeitos em menoridade quando já teriam condições intelectuais de não sê-lo; e ironiza aqueles sujeitos que, por comodismo, oportunismo ou preguiça, vivam uma situação de menoridade auto-imposta. Portanto, ser esclarecido não é apenas ter um profundo conhecimento sobre um assunto (condição de Scholar), mas combinar isso com a conquista da autonomia – passo moral fundamental apenas dado por uma minoria. Nesse sentido, todos potencialmente podem esclarecer-se, já que possuem capacidade de pensar, mas nem todos conseguem superar o medo, a preguiça ou o interesse particular para alcançar a condição de esclarecimento. Além disso, deve-se considerar mais um detalhe: o sujeito do conhecimento apenas pode tornar-se Scholar sobre algumas matérias ou conjunto de matérias específicas, pois não é possível ter um conhecimento profundo sobre todas as coisas da vida social, natural ou sobrenatural. Isso significa que só se pode ser esclarecido sobre um assunto ou conjunto de assuntos, sobre os quais se lança críticas que ajudem no seu aperfeiçoamento; porém, em relação a outros assuntos sobre os quais não se possa ser Scholar, vive-se uma condição de menoridade necessária – o que é o mesmo que dizer, por exemplo, que somente um general pode criticar outro general, mas um general não poderia ser criticado por seu tenente, capitão ou coronel, pois isso, segundo a ótica de Kant, abalaria a ordem social e política e poderia levar a sociedade para a barbárie de lideranças religiosas ou políticas oportunistas. Portanto, apenas pode livremente criticar quem seja Scholar em relação a um assunto. No entanto, para criticar, o Scholar deve falar em seu próprio nome, em outras palavras, se ocupa um cargo, não pode criticá-lo enquanto o exerce, pois, além de ser perigoso para a ordem social e política, demonstraria hipocrisia ou falta de moral. Vejamos o exemplo que Kant dá a respeito do pastor: “...O pastor dirá: ‘Nossa igreja ensina isso ou aquilo; estas são as provas que ela usa’. Nesse sentido, ele beneficia a sua congregação tanto quanto possível por apresentar doutrinas nas quais não acredita completamente, mas se compromete em ensiná-las pois não é completamente impossível que elas não possam conter alguma verdade oculta. Em todo caso, ele não encontrou nada nas doutrinas que contradiga o coração da religião. No entanto, se ele acredita que tais


contradições existem, ele não estaria mais habilitado para administrar seu ofício com clareza de consciência. Ele teria que renunciar ao seu cargo...” O mesmo argumento valeria para outros cargos ou atividades. Como Scholar, se um sujeito encontra contradições irremediáveis nos princípios que sustentam um cargo, ofício ou sistema filosófico, terá que sair da condição de menoridade e falar em seu próprio nome, o que significa abandonar a posição anterior. Ora, isso é um teste moral e um modo de evitar que a sociedade se tornasse refém de oportunistas e manipuladores, pois quem lança crítica deve ter o sentimento autêntico de aperfeiçoamento das coisas a ponto de abandonar seus interesses e comodismos particulares e voltar-se para o benefício do próximo, em vez de transformar sua crítica em meio de realização de seus interesses particulares. Este é o sentido do uso público da razão, em contraponto ao seu uso particular e privado. Nesse sentido, o Scholar usa privadamente a sua razão quando – como ator na competência particular de um cargo, posição funcional ou sistema filosófico – fala em nome da instituição em relação à qual tal competência está referida. Portanto, ser esclarecido é, antes de tudo, um compromisso moral com o aperfeiçoamento e bem-estar da sociedade, respeitando as hierarquias sociais existentes. No entanto, por medo, comodismo, oportunismo ou preguiça, poucos Scholars tornam-se efetivamente esclarecidos, embora tenham condições intelectuais para tanto quando estão em uso privado da razão. Neste caso, a menoridade auto-imposta reverbera para um problema moral, que é o oposto do pragmatismo político de Maquiavel(1469-1527). A indagação moral kantiana por excelência é: “Tenho eu um sentimento não meramente centrado em meu interesse mas também um sentimento desinteressado concernente aos outros? Sim”. Ora, isso é um desdobramento para o mundo do princípio luterano de que toda obra deve derivar do amor – a exemplo de Cristo*. Deste modo, as pessoas deixariam de ser meios para se chegar a alguma coisa (fundação do Estado, vantagens materiais, cargos, prazer sensual ou salvação da alma) e tornar-se-iam fins em si mesmas. A partir da segunda metade do século XVIII, novos espaços de sociabilidade e as transformações na vida econômica constituíram novos processos de construção de identidade que libertaram muitos indivíduos letrados dos referenciais políticojurídicos estamentais, definindo-se o valor da pessoa a partir de seu talento manifesto ou presumido (bom nascimento). Porém, em larga medida, “bom nascimento” teve seu sentido antigo atenuado, não significando necessariamente ser nobre de nascimento, mas enobrecido pelo mérito manifesto nas convivências em sociedade. No entanto, a nova liberdade (autoconstituição reflexiva de si mesmo) foi descoberta para ser logo constrangida, pois agora havia um leque preestabelecido de escolhas sociais baseado na progressiva especialização técnica e funcional da sociedade. Em seu livro "Modernidade e Identidade", Anthony Giddens enfoca os vários processos reflexivos de construção de identidade na sociedade moderna (que compreende para ele os sécs. XIX-XX), onde afirma que, até a década de 1950, era possível observar um indivíduo ainda pressionado entre as formas prémodernas (mais fixistas) de identidade e os novos valores, típicos da modernidade,


ligados à velocidade e à liberdade de ação, escolha e autoconstituição. No entanto, Giddens lembra que a liberdade de autoconstituição reflexiva chocava-se com um leque preestabelecido de opções. Ele entende tal fenômeno como associado à especialização tecnológica do trabalho e à multiplicidade de papéis sociais, percebendo que a autonomia na modernidade é em larga medida constrangida pelo próprio processo de modernização da vida social, que torna todos impessoalmente reféns de sistemas-perito, que são os efetivos criadores/programadores das agendas de escolha ou leques de opções das multidões. Nesse sentido, aplicando as inferências de Giddens às idéias de Kant sobre o “uso privado da razão”, observamos um limite funcional à liberdade, pois, em face das especialidades existentes numa sociedade, haverá sempre “cidadãos passivos” em relação a algum assunto. Logo, se uma sociedade em processo de esclarecimento pressupõe um tipo de liberdade ancorada na autonomia moral, tal liberdade é relativizada pelas relações funcionais de interdependência dos indivíduos. Enfim, segundo Kant, Você tem liberdade de criticar as coisas em relação às quais seja Scholar(perito, segundo vocabulário de Giddens), mas somente pode criticar se vive uma condição de autonomia funcional, condição para o uso público moralmente aceitável da razão.

Que é ser crítico?

(breve ensaio sobre a banalização da crítica) por Raymundo de Lima*

"Eu escrevi o que entendo e os críticos escrevem o que eles entenderam. Eu, por princípio nunca faço comentários sobre as críticas”. José Saramago "O crítico não deve fazer ataques pessoais e sucumbir ao vedetismo”.

Daniel Piza

Há consenso entre professores que o ensino escolar deve desenvolver a capacidade crítica nos alunos. A nova A LDB 9394/96 estabelece que a educação média objetiva “...o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico...” (BRASIL. MEC, 1999,p. 20). No período da ditadura militar professores podiam ser presos se ensinassem os alunos a serem cidadãos críticos ao regime político vigente, ao capitalismo selvagem etc. Na década de 1980, “a História era disciplina que se encarregava de fazer com que os alunos e professores exercessem o papel de sujeitos ativos na construção do seu conhecimento. Reconhecer e problematizar as experiências vividas pelos alunos e professores são atos imprescindíveis para a construção conhecimento crítico”, observa Arthur Versiani Machado, do CEFET de Ouro Preto. Existe, porém, o problema sobre a compreensão do que é ser crítico. Noutros termos, há muita arbitrariedade no uso da palavra crítica, desde o julgamento popular de uma “situação crítica” até a conceituação originada na filosofia de:


“espírito crítico”[1], “pensamento crítico”, “senso crítico”, “atitude crítica”, “postura crítica”, “postura crítica de análise”, “análise crítica”, “capacidade crítica”, “apreensão crítica da realidade”, “concepção crítica”, “sujeito crítico”, entre outras. Existe uma associação indevida entre crítica com o ato de apontar defeitos ou de “descer-a-lenha” no outro ou na sua obra. Criticar uma obra de arte, uma teoria, os políticos, o governo, o técnico de futebol, o estilo do professor, os alunos, no fundo, consiste tão somente em apontar defeitos? Ou é imprescindível ao crítico investir numa argumentação consistente e fala respeitosa ou polida? John Passmore (1979) observa que ser crítico não é simplesmente se posicionar contra, por exemplo, disparar contra uma obra ou autor “sua” opinião pessoal (ex.:“não gosto de Picasso”, “ópera é para aristocratas e burgueses”, “música x é chata”), ou usar argumentos estereotipados ou falaciosos sobre um determinado sistema de idéias que ele discorda. Há professores cujo estilo vulgar de ser crítico levam os alunos reproduzirem o seu modo estereotipado de opinar sobre as coisas sem pensar autocriticamente. Segundo o autor acima, esse processo de pseudoensino crítico chama-se doutrinação. Por exemplo, diante de uma pintura abstrata o aluno é levado a responder automaticamente: “Isso é decadente”. Ao assistir um curso cuja linha teórica lhe desconcerta, o aluno doutrinado num sistema totalizante fica com cara de paisagem e, reage com os mecanismos da indiferença, e das respostas estereotipadas para si próprio. Curiosidade: o crítico contumaz assim que chega ao poder (prefeito, diretor de escola, reitor, etc) tende a deixar de ser crítico. Agora ele faz discursos sobre suas realizações; o prefeito aproveita qualquer oportunidade da mídia para divulgar suas obras na cidade, o diretor da escola escreve panfletos para sua comunidade divulgando mudanças radicais na sua gestão na escola, o reitor se empenha em fazer bons discursos para mudanças cosméticas da universidade. Assim, a crítica vale apenas para o outro, jamais deve se voltar para si próprio. O exagero dos discursos das realizações zeradas de autocrítica leva-os a cair na vala do ridículo. Um diretor de escola – conhecido por bater no peito ser comunista – revela seu lado ridículo ao fazer um discurso plagiando o estilo malufista, por exemplo, ao enumerar suas obras e mudanças radicais na escola. Um prefeito do PP ou DEM fica ridículo querendo se passar por “popular” ou “democrata”. Desse modo, a experiência demonstra que o crítico contumaz ao sistema políticoeconômico, uma vez no governo, se burocrática, passa a gozar de benefícios do poder, e também do auto-engano produzidos pela pelo cadáver de sua crítica. Se fosse evocado o fantasma desse cadáver talvez lhe dissesse: o mal são os outros que não abdicaram de seu espírito crítico. Criticar x Achincalhar: as vias do direito Forma comum de perverter o sentido de crítica é o achincalhe. O Dicionário diz que: achincalhar é ridicularizar, humilhar, chacotear, debochar, escarnecer. Há achincalhe quando o alvo do ataque é a pessoa, não suas idéias. O achincalhador lança mão de todos os estratagemas que foram elencados minuciosamente por Schopenhauer em sua Arte de ter razão. Segundo Ricardo Antônio L. Camargo, “também se configura o achincalhe quando se imputa a alguém fato depreciativo e inverídico ou quando se lhe diz algo


gratuitamente ofensivo à dignidade e ao decoro...Quando o fato imputado constitui crime, estamos diante do tipo calúnia. Quando o fato é meramente ofensivo à reputação, estamos diante da difamação. E quando se ofende a dignidade e o decoro de alguém, sem lhe imputar fato, o que se faz é injuriá-lo”. Obs.: Se for configurado crime de calúnia, difamação, ou calúnia, a vítima pode processar o agressor na justiça. Portanto, crítica digna deste nome se expressa por argumentos consistentes, fundamentados, não em ataques pessoais ou achincalhe. Reforçando o já dito, a verdadeira crítica não visa à pessoa, mas o seu enunciado; há o objetivo de contribuir para desvelar o sentido de um discurso ou obra, bem como as artimanhas e a técnica usada pelo autor. O achincalhe “é sempre corrosivo, é sempre destrutivo, é sempre a base de todos os conflitos que extrapolem motivos puramente materiais. Estereótipos, preconceitos e mesmo ódios passam a ser considerados como o metro pelo qual se medirá a bondade ou a maldade das condutas ou mesmo das pessoas”, analisa Camargo. Numa reunião, alguém pode criticar uma nova medida administrativa sustentando certos argumentos, outro, carente de argumentos ou querendo se passar como mais “crítico” ataca o primeiro na sua integridade pessoal ou moral, religiosa, sexual, política, ou visa atingir sua cor de pele. O primeiro caso há crítica verdadeira, porque confronta argumentos com (contra)argumentos. O segundo não passa de falsa crítica, tanto porque falta-lhe argumentos racionais, e, sobretudo, porque “joga pra galera”, faz política baixa ou politicagem com um discurso vazio visando agradar um determinado grupo. Atacar o oponente com golpes baixos (retórica com falácias, gestos teatrais, lágrimas de crocodilo), não visa a verdade, mas sim, tem a intenção de destruir a pessoa ou idéia. É achincalhe quando o suposto crítico “joga pra galera” frases de efeito como: “ele é de direita”, “você é comunista”, “fulano é neoliberal”, ou quando usa deboches que despertam risinhos amarelos no grupo caído na rede dos objetos falseados do achincalhador. Critica e falsa crítica no ambiente de ensino Um palestrante pode tanto criticar a obra como achincalhar sua pessoa, ou usar de deboches e sarcasmos visando destruir sua obra ou sua imagem pessoal perante a audiência. Cabe aos ouvintes ficarem de prontidão genuinamente crítica tanto para resistir ser doutrinado como para denunciar as falácias e promover a dialética do esclarecimento junto ao público participante do evento. No ambiente escolar, um aluno ou pais que desrespeitam e ofendem a professora, ainda que digam estarem apenas criticando o seu trabalho, na verdade estão achincalhando-a. O desrespeito não faz parte da verdadeira atitude crítica. Eles poderiam criticar, sem ofender ou desrespeitar. E a professora tem o direito de se defender, com polidez, e seguindo o regulamento da escola. O estilo crítico-cricri adotado por alguns alunos supostamente politizados, geralmente fazem mal uso da atitude critica, porque deixa transparecer o propósito de “questionar por questionar”. O aluno cri-cri imagina que basta discordar, ou ser do contra, em vez de apresentar os fundamentos de sua suposta crítica.


Alguns professores acham chato esse tipo de aluno crítico-crici, porque atrapalha a aula com falas estereotipadas e recortes de um discurso ideológico geralmente fora do contexto da discussão. Costumam seguir uma idéia-guia ou teoria totalizante que para eles “explica tudo” e sabe como “resolver todos os problemas do mundo”. Provavelmente seu estilo cri-cri foi assimilado de um mestre convicto de ter encontrado “a verdade toda”. De acordo com os quatro discursos propostos por Lacan, estamos tratando, aqui, do “discurso universitário”, que se autoriza a partir de textos e autores venerados para impor seu saber a outro (o alunoestudante), visando produzir nele um contestador com ou sem causa. O aluno cricri incomoda, sem dúvida, mas pior mesmo é o aluno que passou dessa condição para ser um fanático mudo, onde o juízo crítico foi abolido e a passagem ao ato[2] é iminente. (ver nosso artigo “Miséria do discípulo). Sócrates recomendava, nesses momentos de dogmatismo, humor e ironia. Em vez de irritá-lo, contradizendo seus argumentos no mesmo nível, o professor deve escutá-lo com paciência, tolerância, e disposição para o diálogo e questionamentos pontuais que contribuem para abrir o seu pensamento. Crítica na filosofia e na ciência Ainda que o cientista, ao fazer ciência, sabe que não faz “a”ciência, mas tão somente ele faz um enfoque, um ponto de vista, uma interpretação de uma dada realidade construída por ele, a atividade científica mais importante é crítica constante desta produção (DEMO, 1981, p. 25 – negrito meu). Uma crítica apenas sustentada no argumento de autoridade é uma falsa crítica. Pode ser sustentada nos grandes nomes (Marx, Freud, Vigotsky, etc), mas o enunciado pretensamente teórico não passa de uma crendice nessas autoridades tomadas como infalíveis. Especialmente nas Ciências Humanas e Sociais tais “monstros sagrados” do pensamento são abusivamente evocados com uma espécie de cobertor curto para explicar toda ordem de problemas da realidade concreta. Para Demo (op.cit.), eles são substitutos modernos da justificação dogmática, típica da abordagem teológica. Karl Popper considera o pensamento crítico como sendo não apenas um ideal básico da educação, mas a pedra fundamental da atividade intelectual consciente – especialmente da atividade científica. Na filosofia das ciências, Popper considera que “o ato de criticar e a discussão crítica são nossos únicos meios de aproximação da verdade”[3]. Para esse autor, a ciência se diferencia da pseudociência não por fornecer certezas, mas por sua abertura à crítica e a possíveis refutações. Assim, a atividade científica está sustentada na criticidade, mais exatamente no princípio de autocriticidade, que Popper denomina de “falseabilidade”[4]. Como já foi dito, a verdadeira crítica não se preocupa com apontar defeitos no autor, mas se preocupa em apresentar um saber e uma avaliação aberta do próprio crítico sobre uma obra ou opinião. Ou seja, ainda que use um tom avaliativo, a crítica deve evitar tanto a pretensão de uma objetividade sobre uma obra como se deixar levar pelos sentimentos de amor, ódio, inveja em relação ao seu autor. Trata-se de encontrar uma medida se ser critico, “aberto” tanto na análise como na disposição para o debate plural. Enquanto a ideologia é a “lógica do silêncio, da ocultação e do camuflamento”


(CHAUI, 1982), a ciência valoriza a dúvida, suspeita do que é apresentado como verdade absoluta, e, ainda procura fundamentar seu argumento “crítico” em algum pressuposto teórico e/ou práxis do sujeito crítico. Para Eduardo Luft (2002, 2003) “quem critica (...) tem de carregar consigo alguns pressupostos, pois a crítica pela crítica, ancorada em um suposto vazio, é antes um tipo de ceticismo arbitrário, uma forma velada de dogmatismo”. Portanto, a verdadeira crítica não se preocupa em apontar as falhas que parecem naturais somente ao outro, mas sim, ela se ocupa com os pressupostos de sua fundamentação e de sua própria autocrítica. Concluindo. A educação pode tanto ser direcionada para a doutrinação como para a libertação. Só uma educação voltada para a formação do pensamento crítico pode contribuir para a libertação e autonomia do sujeito. Portanto, há que ser verdadeiramente crítico em relação a tudo, e nesse caso o crítico poderia até ser acusado de criticismo, lembrando a linha filosófica de Kant. Desde que a crítica se sustenta em argumentos, tem fundamento, tudo bem. Entretanto, a pessoa crítica contumaz tende a ser desagradável, porque irrita a todos com observações críticas fora de lugar e hora. Ninguém suporta uma pessoa cricrizando tudo e todos, gozando numa posição de ser do contra. Bom senso, ética-moral, elegância no dizer, ter coragem de fazer autocrítica, devem ser imprescindíveis ao crítico genuíno. Recomenda-se que o sujeito crítico também saiba se colocar no lugar do criticado. Infelizmente, no mundo globalizado, parece estar desaparecendo essa qualidade – e arte[5] – de se colocar no lugar do outro, que a psicologia denomina empatia.

Moral e Ética Segundo o dicionário de filosofia, ética é a ciência que tem como objeto os juízos de valor que distinguem entre o bem e o mal. Historicamente, o senso comum trata moral e ética como sinônimos, mas, desde E. Kant, no século do Iluminismo, a ética é considerada superior à moral. A moral é historicamente datada e suas normas e sanções mudam de acordo com as transformações da sociedade, sempre refletindo a visão do mundo e os interesses das elites. Basta recordar as manifestações dos senhores escravocratas, dos primeiros capitães da indústria e dos tecnocratas das grandes empresas, hoje, supostamente racionais e ideologicamente neutros, ao justificarem a pobreza e a desigualdade. Enquanto a moral é particularista, profundamente vinculada e identificada com grupos religiosos, nacionalistas, étnicos, políticos ou classistas, a ética tem conteúdo universal e parte do princípio da igualdade dos seres humanos e de seus direitos inalienáveis à paz, ao bem-estar e à felicidade, individual e coletiva. Suas manifestações concretas são a cooperação e a solidariedade numa organização social pluralista e de democracia participativa.


A ética postula um código de conduta para a comunidade de indivíduos que exige um comportamento baseado em valores consentido e praticado em dimensões universais. O cerne da ética universal transcende a todos os outros sistemas de crenças e valores, como síntese da consciência humana, ciente da preciosidade de todas as formas de vida humana e dos direitos dos indivíduos à liberdade e felicidade. A ética se refere a um devir, uma visão futura da humanidade que tem inspirado inúmeras gerações durante o processo histórico, cujos sujeitos “desejantes” e ativos criaram comunidades de cidadãos ativos, fontes de liberdade que transformaram a História. Essa ética não é ficção ou sonho, mas uma visão do futuro construída por meio de um discurso em que se confrontam os valores por seus impactos reais e prováveis na existência humana. Ela surge como um amálgama e a recriação de aspirações e valores cultuados em todos os tempos, levando a uma síntese imaginária à luz das experiências políticas e práticas acumuladas. Segundo os filósofos da Antiguidade e os profetas bíblicos, a ética seria instituída pelo comportamento virtuoso, em conformidade com a natureza dos atores sociais e dos fins buscados por eles. Postularam que o ser humano seria, por natureza, um ser racional, cuja virtude se manifesta pela razão que comanda as paixões. Essa virtude seria o efeito da potencialidade da natureza humana desde que a razão comande as paixões e oriente a vontade, pois só o ignorante é violento, passional e vicioso. Para reconstruir a “utopia”, o comportamento ético exige a paz e o desarmamento, a contestação da dominação autoritária e a reivindicação do poder para construir uma nova realidade. Nesta, se cuidará da melhoria da qualidade de vida e da ampliação do horizonte social e cultural de todas as pessoas. Um indicador do nível ético da sociedade seria o grau de confiança das pessoas no futuro e nas possibilidades de realizar seu pleno potencial, contribuindo, ao mesmo tempo, para o bem-estar coletivo. Por HENRIQUE RATTNER


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