Arte, Arquitetura e Território: a experiência cultural no espaço urbano

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo

Paula Bruzzi Berquó

ARTE, ARQUITETURA E TERRITÓRIO: a experiência cultural no espaço urbano

Belo Horizonte 2013


Paula Bruzzi Berquó

ARTE, ARQUITETURA E TERRITÓRIO: a experiência cultural no espaço urbano

Monografia apresentada a Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção

do

título

de

Arquitetura.

Orientadora: Natacha Rena

Belo Horizonte 2013

Bacharel

em


Paula Bruzzi Berquó

ARTE, ARQUITETURA E TERRITÓRIO: a experiência cultural no espaço urbano

Monografia apresentada a Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção

do

título

de

Bacharel

Arquitetura.

_____________________________________________________ Orientadora: Natacha Rena – UFMG

_____________________________________________________ Rogério Palhares Zschaber de Araújo – UFMG

____________________________________________________ Roberto Eustaaquio dos Santos - UFMG

____________________________________________________ Daniel Medeiros de Freitas – Membro externo

Belo Horizonte, 04 de julho de 2013

em


[...] cada corpo é uma multidão. Cruzando-se na multidão, cruzando multidão com multidão, os corpos se misturam, se tornam mestiços, se hibridizam, se transformam [...]. As metafísicas da individualidade (e/ou da pessoa) constituem uma mistificação assustadora da multidão dos corpos. Não há possibilidade de um corpo estar só. [...]. Quando se define o homem como indivíduo, quando o consideramos como fonte autônoma de direitos e propriedades, o tornamos só. Mas o próprio não existe, a não ser em relação com o outro. [...]. Do ponto de vista do corpo, pelo contrário, não há outra coisa a não ser relação e processo. O corpo é trabalho vivo, portanto, expressão e cooperação, portanto construção material do mundo e da história. (NEGRI, 2004: 15-26)


RESUMO O presente trabalho de pesquisa pretende investigar a relação entre a arte, a arquitetura, o território, a cultura e o desenvolvimento de formas de apropriação crítica do espaço urbano contemporâneo. Para tanto faz-se, em um primeiro momento, um panorama teórico das práticas artísticas, arquitetônicas, territoriais e das dinâmicas de poder que constituem o cenário sócio-espacial da cidade. Em um segundo momento faz-se uma análise, a partir de uma perspectiva macro, da distribuição espacial dos equipamentos culturais em Belo Horizonte e das lógicas políticas e mercadológicas a ela relacionadas. Nesse ponto faz-se uma análise das leis de incentivo fiscal - principal política de fomento à cultura do país - e do programa Cultura Viva, considerado enquanto paradigma para o desenvolvimento de uma prática cultural plural e rizomática. Em um terceiro momento, passa-se a uma investigação micro, na qual prioriza-se a análise da área do Viaduto Santa Tereza, importante ponto de confluência artística e cultural da cidade. O local passa, atualmente, por um processo de reformulação arquitetônica com nítido enfoque na questão turística. Tal processo, que aponta para um risco iminente de gentrificação e destituição das características vitais da área, foi acompanhado por uma comissão representativa da sociedade civil, cuja ação será analisada no presente trabalho. Finaliza-se com a proposição de um evento a ser realizado no local, no qual serão realizadas atividades artístico-arquitetônicas que pretendem gerar o fortalecimento da coesão horizontal do território a partir do estímulo à apropriação critica e coletiva do mesmo por parte da população. Tal evento pretende funcionar enquanto forma de microrresistência local a ações de planejamento urbano de lógica espetacular e consensual e apontar caminhos no sentido de se construir uma cidade mais democrática, pautada pela diversidade cultural e pela interconexão horizontal de seus pontos. Palavras-chave: Cultura. Arte critica. Arquitetura colaborativa. Território. Rede. Cultura Viva. Leis de Incentivo Fiscal. Microrresistência.


RIASSUNTO Il presente lavoro di ricerca vuole investigare la relazione tra arte, architettura, territorio e cultura e lo sviluppo di forme di appropriazione critica dello spazio urbano contemporaneo. A tal proposito, in un primo momento si delinea un panorama teorico delle pratiche artistiche, architettoniche, territoriali e delle dinamiche di potere che costituiscono lo scenario socio-spaziale della città. In un secondo momento si fa una analisi, a partire da una prospettiva macro, della distribuzione spaziale delle attrezzature culturali a Belo Horizonte e delle logiche politiche e di mercato ad esse collegate. Qui si analizzano le leggi di incentivo fiscale, principale politica di promozione della cultura nel paese e il programma “Cultura Viva”, considerato un paradigma allo sviluppo di una pratica culturale viva e rizomatica. In un terzo momento, si passa a uno studio micro, nel quale si da priorità all’analisi dell’area del Viaduto Santa Tereza, importante punto di confluenza artistica e culturale della città. Il locale, attraversa attualmente un processo di riformulazione architettonica con chiaro fuoco nella questione turistica. Tale processo, che cela un imminente rischio di “gentrificazione” e perdita delle caratteristiche vitali dell’area, è stato accompagnato da una commissione rappresentativa della società civile, la cui azione sarà analizzata nel presente lavoro. Infine si propone un evento da realizzarsi nell’area, nel quale saranno proposte attività artistico-architettoniche con la pretesa di rinforzare la coesione orizzontale del territorio a partire dallo stimolo all’appropriazione critica e collettiva di questo da parte della popolazione. Tale evento vuole svolgere ruolo di micro resistenza locale alle azioni di pianificazione urbano guidate dallo spettacolo e promuovere nuovi cammini alla costruzione di una città più democratica, contraddistinta dalla diversità culturale e dalla interconnessione orizzontale tra i suoi punti. Parole chiave: Cultura. Arte critica. Architettura collaborativa. Territorio. Rete. Cultura Viva. Leggi di incentivo fiscale. Microresistenza.


LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – "Contra-relevo de canto", 1915............................................................. 33 FIGURA 2 – "Partially Buried Woodshed", 1970....................................................... 36 FIGURA 3 – "Secant", 1977 ...................................................................................... 37 FIGURA 4 – "Reality Properties: Fake Estates, Little Alley Block 2497, Lot 42", 1974 ................................................................................................................... 39 FIGURA 5 – "Imponderabilia", 1977.......................................................................... 40 FIGURA 6 – "Invenção da cor, Penetrável Magic Square # 5, De Luxe", 1977........ 41 FIGURA 7 – "Nildo da Mangueira com Parangolé", 1964......................................... 42 FIGURA 8 – Fotografia da performance “aCerca do Espaço”, 2008 ........................ 44 FIGURA 9 – "A cidade é pra brincar", 2013 ............................................................. 44 FIGURA 10 – "Ninhos", 1970 .................................................................................... 50 FIGURA 11 – "Banquete", 2005................................................................................ 53 FIGURA 12 – "Taller de mapeo colectivo en Caracas", 2013................................... 56 FIGURA 13 – Imagem sem nome, 1980 ................................................................... 60 FIGURA 14 – "Arno", 1997........................................................................................ 61 FIGURA 15 –"Interseção Cônica", 1975 ................................................................... 66 FIGURA 16 –"Balloon for Two", 1967 ....................................................................... 68 FIGURA 17 – "Folies Parc de la Villette", 1982......................................................... 70 FIGURA 18 – "Swarm Street", 2012 ......................................................................... 72 FIGURA 19 –"Storefront for Art and Architecture", 1993 .......................................... 73 FIGURA 20 – "Arte-Cidade", 2012 ............................................................................ 74 FIGURA 21 – Escola Nova Esperança ..................................................................... 76 FIGURA 22 – "Construção", 2011............................................................................. 78 FIGURA 23 – "Construção Relacional", 2011 ........................................................... 79 FIGURA 24 – Xtra Standar Public Space, 2013........................................................ 80 FIGURA 25 - Operação Urbana Consorciada da Área de Especial Interesseu Urbanístico da Região Portuária do Rio de Janeiro........................................... 94 FIGURA 26 – Mapa dos municípios brasileiros com Pontos de Cultura em Dezembro de 2007........................................................................................... 108 FIGURA 27 - Concentração territorial dos investimentos em cultura no Brasil....... 119


FIGURA 28 – Mapa dos equipamentos culturais ligados a políticas federais em Belo Horizonte......................................................................................................... 121 FIGURA 29 - Mapa dos equipamentos culturais ligados a políticas estaduais em Belo Horizonte......................................................................................................... 126 FIGURA 30 - Mapa dos equipamentos culturais ligados a políticas estaduais com ampliação na Praça da Liberdade......................................................................... 133 FIGURA 31 - Mapa dos investimentos a equipamentos estaduais com ampliação na Praça da Liberdade................................................................................. 134 FIGURA 1– Mapa dos equipamentos culturais ligados a políticas municipais em Belo Horizonte............................................................................................................... 135 FIGURA 2 - Mapa dos equipamentos culturais privados em Belo Horizonte................ 140 FIGURA 3 - Mapa dos investimentos a equipamentos culturais privados em Belo Horizonte............................................................................................................... 144 FIGURA 4 - Mapa dos equipamentos culturais de Belo Horizonte ............................... 145 FIGURA 5 - Mapa cultural de Belo Horizonte com enfoque na área do viaduto Santa Tereza................................................................................................................. 153 FIGURA 37 - Limites da área de estudo e equipamentos presentes............................ 156 FIGURA 38 - Esquema de projeto apresentado pela Fundação Municipal de Cultura........................................................................................................................... 159 FIGURA 39 - Projeto para o baixio do Viaduto Santa Tereza....................................... 163 FIGURA 40 - Esquema de projeto apresentado pelo escritório André Buarque Arquitetura..................................................................................................................... 166 FIGURA 41 - Esquema de projeto apresentado pelo escritório André Buarque Arquitetura - Área de análise......................................................................................... 168 FIGURA 42 - Mapeamento comerciantes ambulantes.................................................. 173 FIGURA 43 - Mapeamento população de rua............................................................... 174 FIGURA 44 - Mapeamento de movimentos artísticos e culturais ................................. 175 FIGURA 45 - Mapeamento arte de rua ......................................................................... 176


LISTA DE TABELAS TABELA 1 – Adesão à ação Cultura Digital em 2007 ................................................... 114 TABELA 2 – Dificuldades da ação Cultura Digital em 2007.......................................... 114 TABELA 3 – Pessoas que trabalhavam nos Pontos de Cultura em 2007 .................... 115 TABELA 4– Pessoas que participavam das atividades dos Pontos em 2007 .............. 116 TABELA 5 - Tabela orçamentária dos Pontos de Cultura............................................. 118 TABELA 6 – Tabela dos Pontos de Cultura de Belo Horizonte .................................... 124 TABELA 6 – Tabela dos maiores captadores de recursos de cultura em MG – 2007/2008 ..................................................................................................................... 128 TABELA 7 – Investimentos via Lei Rouanet em Belo Horizonte ano 2012* ................. 129 TABELA 8 – Renda Familiar per capita em agosto de 2000......................................... 147 TABELA 9 – Indicadores de Desenvolvimento Humano Regional (1991-2000) ........... 148 TABELA 10 – Densidade Demográfica por Região Administrativa............................... 148


LISTA DE GRÁFICOS GRÁFICO 1 –Anterioridade dos grupos e atividades em relação aos programas e formas de instituição predominantes em 2007........................................................... 109 GRÁFICO 1 – Atividades desenvolvidas nos Pontos de Cultura em 2007 ................... 110 GRAFICO 2 – Escala de atuação dos Pontos de Cultura em 2007.............................. 116 GRAFICO 3 – Investimentos via Lei Rouanet em 2011................................................ 119


SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12

2 ANÁLISE TEÓRICA ............................................................................................... 16 2.1 Cultura................................................................................................................. 16 2.1.1 Cultura e natureza............................................................................................ 16 2.1.2 Cultura e civilização ......................................................................................... 21 2.1.3 As dimensões antropológica e sociológica ...................................................... 24 2.2 Arte...................................................................................................................... 27 2.2.1 Arte e política ................................................................................................... 28 2.2.2 Corpo, arte e cidade......................................................................................... 32 2.2.3 Arte comunitária ............................................................................................... 45 2.2.4. A potência da superfície.................................................................................. 57 2.3 Arquitetura........................................................................................................... 63 2.3.1 Arquitetura para a ação .................................................................................... 64 2.3.2 Arquitetura via colabor-ação ............................................................................ 75 2.4 Território .............................................................................................................. 82 2.5 Poder, cultura e cidade ....................................................................................... 86 2.5.1 Biopoder e cultura ............................................................................................ 87 2.5.2 Indústrias criativas............................................................................................ 89 2.5.3 Gentrificação do espaço e cultura.................................................................... 92 2.5.4 Biopotência e Multidão ..................................................................................... 97

3 ANÁLISE MACRO: BELO HORIZONTE .............................................................. 101 3.1 Políticas Culturais.............................................................................................. 101 3.1.1 As parcerias público-privadas e as leis de incentivo fiscal............................. 102 3.1.2 Ensaios para uma cultura mais democrática: os Pontos de Cultura.............. 107 3.2 Distribuição territorial dos equipamentos culturais em Belo Horizonte ............. 118 3.2.1 Equipamentos ligados a políticas culturais federais....................................... 121 3.2.2 Equipamentos ligados a políticas culturais estaduais .................................... 126 3.2.3 Equipamentos ligados a políticas culturais municipais .................................. 135 3.2.4 Equipamentos privados.................................................................................. 140 3.2.5 Mapa geral ..................................................................................................... 145 3.3 Análise dos dados ............................................................................................. 146

4 ANÁLISE MICRO: BAIXIO DO VIADUTO SANTA TEREZA................................ 151 4.1 A área................................................................................................................ 152 4.2 O Projeto “Corredor Cultural da Praça da Estação” ......................................... 157 4.2.1 Comissão representativa da sociedade civil .................................................. 159 4.2.2 Resultados parciais ........................................................................................ 166 4.3 O corredor cultural já EXISTE! .......................................................................... 172 4.3.1 Comerciantes ................................................................................................. 172 4.3.2 População de rua ........................................................................................... 173 4.3.3 Movimentos artísticos e culturais ................................................................... 174 4.3.4 Arte de rua...................................................................................................... 175 4.4 O evento............................................................................................................ 177


5 CONCLUSÃO....................................................................................................... 180 REFERÊNCIAS....................................................................................................... 183


12 1 INTRODUÇÃO As dinâmicas culturais conformam-se enquanto importantes instrumentos de construção e apropriação do espaço urbano. Tais dinâmicas abarcam, além das práticas artísticas propriamente ditas, todo e qualquer tipo de manifestação que incida sobre a capacidade de expressão e construção de sentido da humanidade. O presente trabalho tem como objetivo a análise das práticas culturais, nas quais se incluem as experiências artísticas, arquitetônicas e territoriais e de suas contribuições para a construção e a apropriação do espaço urbano contemporâneo. Para tanto, o trabalho foi dividido em três partes principais, às quais correspondem os capítulos 2, 3 e 4. No capítulo 2 objetiva-se desenvolver um panorama teóricoconceitual que conforme-se enquanto base para um entendimento aprofundado sdas questões referentes ao cenário urbano atual. Para tanto, procede-se à análise dos conceitos de cultura, arte, arquitetura e território, bem como dos termos biopoder, biopotência e multidão, referentes às dinâmicas de poder e de resistência presentes no atual estágio do capitalismo. A cultura é analisada a partir de seus significados originais, os quais remontam à origem etimológica do termo, de “lavoura” e “cultivo daquilo que cresce naturalmente”. Em seguida tal termo é considerado a partir de sua relação com a idéia de civilização, através de dois desdobramentos principais, ocorridos na Alemanha e na França. Finalmente chega-se à análise de duas das dimensões contemporâneas do termo, a antropológica, referente ao plano cultural que ocorre na esfera

cotidiana

e

a

sociológica,

referente

àquele

ocorrido

na

esfera

institucionalizada. A arte é aqui estudada a partir de sua esfera pública, mais especificamente de seu viés critico, ou seja, são priorizadas ações artísticas que ocorrem no cenário urbano de forma a questioná-lo de alguma maneira. A arte adquire, assim, forte cunho político, representando instrumento de reflexão e resistência. Dentre as várias vertentes da arte pública que se mostram relevantes para a compreensão do espaço urbano destacam-se as experiências artísticas que lidam especificamente com a questão do corpo na cidade. Tais experiências, a partir do estímulo à uma vivência tátil do espaço urbano, representam um contraponto à lógica da cidade-espetáculo, concebida apenas para ser contemplada. Dentre as outras vertentes artísticas analisadas no trabalho incluem-se as que conformam-se enquanto práticas artísticas


13 comunitárias e as que ocupam-se da apropriação das superfícies do espaço público. Tais vertentes serão retomadas no capítulo 4, no qual serão propostas atividades práticas resultantes do estudo das mesmas. As práticas arquitetônicas aqui investigadas, por sua vez, relacionam-se diretamente com a ação do indivíduo no espaço. São analisados, primeiramente, projetos que mostram-se pioneiros no sentido de considerar que a arquitetura deva conformar-se enquanto infra-estrutura de ação para o sujeito, e não como objeto monumental e auto-referencial. Dentre os exemplos apresentados destacam-se o de Gordon Matta-Clark, o do grupo austríaco Haus Ruker Co e mais recentemente o de Rem Koolhaas, Bernard Tschumi e Vito Acconci. Posteriormente passa-se à análise de exemplos nos quais o indivíduo não só é considerado enquanto foco para a ação projetual, mas passa a participar ativamente do processo de concepção e construção dos edifícios. Tal recorte feito à prática da arquitetura refere-se ao fato de considerarmos, para o presente trabalho, que a arquitetura deva ser feita de maneira colaborativa, de forma a incorporar cada vez mais a ação e a participação dos que dela usufruem. Tal análise será utilizada enquanto base para o estudo, feito no capítulo 4, a respeito de um processo incipiente de colaboração projetual realizado no projeto “Corredor Cultural da Praça da Estação”, em Belo Horizonte. No item referente ao território procede-se a uma análise a respeito do processo de transnacionalização territorial ocorrido no mundo globalizado, no qual os Estados-Nação perdem o poder soberano sobre as áreas dentro de suas fronteiras e estas passam a responder a lógicas externas, referentes ao mercado ora globalizado. Analisa-se, em seguida, a teoria de Milton Santos na qual o território é visto ainda na contemporaneidade como forma de resistência das comunidades locais frente às dinâmicas globais. A partir da aplicação de tal teoria na escala urbana tem-se as bases para a discussão territorial que fundamenta a análise, feita no capítulo 4, sobre a área da Praça da Estação e mais especificamente do Viaduto Santa Tereza. Esta área sofre atualmente iminente risco de gentrificação causado pela sobreposição de lógicas externas de planejamento às suas características locais específicas. Finalmente estuda-se os conceitos de biopoder, de biopotência e de multidão. Tais termos são analisados de forma a apontarem caminhos de resistência frente ao capitalismo cognitivo atual, no qual os valores imateriais e a força-criativa da população, ou seja, as questões referentes à cultura, adquirem suma importância. Tal estudo norteará tanto a análise macro feita no capítulo 3,


14 quanto a análise micro realizada no capítulo 4. No capítulo 3 objetiva-se criar um panorama espacial da atividade cultural da cidade de Belo Horizonte, a partir do estudo da localização dos equipamentos culturais nela presentes, com base na consideração das políticas culturais e dos tipos de investimentos que regem o setor. Tal metodologia justifica-se pelo fato de que se pretende analisar, com este panorama, justamente a influência exercida pelos mecanismos mercadológicos e políticos sobre a distribuição dos equipamentos culturais na cidade. Para fundamentar a análise são estudadas duas políticas culturais principais, baseadas em preceitos fundamentalmente diversos. As Leis de Incentivo Fiscal, cujo princípio reside nas parcerias público-privadas características do Estado neoliberal, e os Pontos de Cultura, os quais representam equipamentos financiados diretamente por recursos da União. Os Pontos de Cultura, criados em 2004, são tomados enquanto paradigma para a discussão de um cenário cultural plural e reticular. O capítulo 4 refere-se à análise da área do baixio do Viaduto Santa Tereza, localizada em região contemplada pelo projeto “Corredor Cultural Praça da Estação”. Tal projeto, cujo objetivo seria o de “revitalizar” a área de forma a torná-la um “corredor cultural”, está sendo coordenado pela Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte juntamente a uma Comissão Representativa da Sociedade Civil eleita pela população. Neste capítulo distinguem-se dois objetivos principais, um deles seria o de analisar o processo de participação da comissão representativa na concepção do projeto arquitetônico do corredor cultural e o outro seria o de promover um evento na área do viaduto, de forma a mostrar que tal corredor cultural já existe, e que ao invés da construção de mais equipamentos, um dos caminhos para potencializá-lo seria o de promover uma maior articulação entre os equipamentos e ocupações já existentes. O evento se conformaria a partir da promoção de intervenções artístico-arquitetônicas, que estimulassem formas de apropriação crítica do espaço urbano por parte dos seus usuários e representassem, assim, um movimento de resistência local às regras mercadológicas e segregadoras do planejamento urbano. Salienta-se que o conceito do rizoma, apresentado no livro Mil Platôs de Gilles Deleuze e Felix Guattari, foi utilizado como fundamento para a realização de todo o trabalho. Tal conceito encontra-se presente tanto na escolha metodológica, quanto nas análises conceituais e nas proposições práticas. O termo refere-se a um


15 sistema reticular e desierarquizado, no qual a potência encontra-se nos movimentos horizontais, ou de superfície. O sistema rizomático ocorre no plano imanente, e funciona a partir da conexão e reconexão contínua de pontos, que conformam uma rede em constante movimento. O espaço rizomatico é, assim, um espaço nômade, mutante, no qual nada é, mas tudo está sendo. O contraponto de tal lógica seria o sistema arborescente, caracterizado pela hierarquia e pela verticalidade. Por fim, destaca-se que o presente trabalho constitui uma co-pesquisa, já que foi realizado a partir do desenvolvimento de atividades de pesquisa, de ensino e de extensão. Segundo Bruno Cava: “Teoria e prática se distinguem, mas não se separam. Não há teoria que não esteja nutrida de práticas, nem prática que não seja animada por teorias. É caso de perceber os atravessamentos. (...) A co-pesquisa toma como ponto de partida a relação entre teoria e prática. Seu problema está em exercer uma teoria prática e uma prática teórica, onde produção do conhecimento e ativismo se dobram e redobram.” (CAVA, 2012).

Dentre as atividades desenvolvidas para a realização do trabalho incluem-se, além da revisão literária, a participação nas reuniões da comissão representativa da sociedade civil no projeto para o “Corredor Cultural Estação das Artes” da Fundação Municipal de Cultura e o trabalho de monitoria na disciplina optativa da E. A. UFMG, UNI009 Cartografias Críticas.


16 2 ANÁLISE TEÓRICA Nesta parte do trabalho será feita uma análise teórica dos principais conceitos contemplados

pela

pesquisa.

Tal

estudo

mostra-se

fundamental

para

a

compreensão aprofundada do cenário urbano atual e para a sua posterior transformação. 2.1 Cultura A fim de iniciarmos a análise teórica que norteará a presente pesquisa, faz-se necessária, devido a sua amplitude e notória importância, a introdução do conceito de cultura. Por abarcar de maneira substancial os demais conceitos presentes no trabalho, a saber, as artes e a arquitetura - importantes meios de expressão e materialização simbólica do imaginário social - e o território - lugar no qual estes processos se dão - tal idéia estabelece um papel ao mesmo tempo de base e de síntese, sendo esta a razão pela qual optou-se por explorá-la primeiramente. Os significados da palavra “cultura” são múltiplos e a dificuldade que se tem em sua definição deve-se em parte ao próprio caráter transversal do termo, que perpassa diversas esferas do conhecimento. As variações semânticas que a palavra sofre ao longo da história refletem importantes transformações na relação entre a sociedade e o mundo, sendo o seu estudo importante, justamente, por permitir o entendimento do contínuo fluxo que alimenta esta relação. A fim de estabelecermos as bases teóricas para a análise da questão cultural na cidade - a ser desenvolvida nos capitulo 3 e 4 deste estudo a partir de uma perspectiva macro e micro, respectivamente - procuraremos entender o termo "cultura" de maneira ampla, a partir de algumas das múltiplas conotações que ele apresenta. Para isso faremos, em um primeiro momento, um estudo sobre a relação do termo com a idéia de natureza e em seguida discorreremos sobre sua relação com a noção de civilização. Esclareceremos, por fim, duas de suas versões contemporâneas: a sociológica e a antropológica.

2.1.1 Cultura e Natureza


17 A relação que a cultura estabelece com a natureza remonta à própria origem etimológica da palavra. Um dos significados originais do termo é “lavoura” ou “cultivo agrícola”, o “cultivo do que cresce naturalmente” (EAGLETON, 2003). Assim, antes de caracterizar uma entidade, o termo referia-se a uma atividade, que tinha no cultivo do que era natural, ou espontâneo, o seu foco. A palavra sofre, no entanto, um desdobramento semântico que a faz deixar de representar um processo material para tornar-se uma questão referente ao espírito. Tal transformação refere-se à própria mudança histórica sofrida pela humanidade, que deixa o campo e passa a ter na existência urbana a sua base. A mudança de significado do termo faz com que seja estabelecida uma relação paradoxal: a cultura torna-se, a partir daí, algo característico da população urbana, sendo os habitantes da cidade considerados “cultos” em detrimento daqueles que, de fato, cultivavam o solo. O conceito de cultura abarca, no que se refere à sua relação com a natureza, além

dessa

guinada

histórica

de

grande

relevância,

questões

filosóficas

fundamentais. Segundo Eagleton: Neste único termo, entram indistintamente em foco questões de liberdade e determinismo, o fazer e o sofrer, mudança e identidade, o dado e o criado. Se cultura significa cultivo, um cuidar, que é ativo, daquilo que cresce naturalmente, o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz. É uma noção “realista”, no sentido epistemológico, já que implica a existência de uma natureza ou matéria-prima além de nós. Mas tem também uma dimensão “construtivista”, já que essa matéria- prima precisa ser elaborada numa forma humanamente significativa. Assim, trata-se menos de uma questão de desconstruir a oposição entre cultura e natureza do que reconhecer que o termo “cultura” já é uma tal desconstrução. (EAGLETON, 2003, p. 11).

A palavra cultura, assim, carregaria dentro de seu próprio significado a relação dialética entre as dimensões “realista” e “construtivista”, ou seja, o termo seria condicionado, para a sua existência, concomitantemente pela presença do não-humano e do humano, para usar os termos de Bruno Latour (1994), o primeiro enquanto matéria-prima e o segundo enquanto agente para a sua elaboração. A natureza é, assim, elemento fundamental para a existência da cultura. E mais, se encontra-se justamente na natureza a origem dos meios culturais que utilizamos para transformá-la, a cultura mostra-se enquanto instrumento de renovação da própria fonte que a cria. Tal interação entre ambas ocorre a partir de forças internas da própria natureza, que contém dentro de si os meios para a sua transcendência.


18 Este incessante fluxo, entre natureza e cultura, responsável pela renovação da própria natureza é, segundo Eagleton, o que chamamos de trabalho. (EAGLETON, 2003). Assim, se natureza e cultura interagem de maneira tão profunda, como distinguir o natural do artificial? Seria a cidade, fruto da matéria-prima natural e da transformação humana, menos natural que as sociedades tribais? O geógrafo David Harvey argumenta que não. O autor afirma, em seu livro “O enigma do Capital”, que a cidade de Nova York, emblema da sociedade pós-industrial, não seria, como se possa pensar, "antinatural", não estando a sociedade ocidental menos próxima da natureza do que as sociedades primitivas. Sobre a suposta dicotomia entre natureza e o não-natural Harvey escreve: Pouco resta à superfície do planeta Terra que possa ser concebido como natureza pura e original, sem a mão do homem. Por outro lado, é absolutamente natural as espécies, incluindo a nossa, modificarem o seu ambiente para que possam reproduzir-se. Fazem-no as formigas, as abelhas e, da forma mais espetacular, os castores. Do mesmo modo que um formigueiro é absolutamente natural, também a cidade de Nova Iorque o é, decerto. (HARVEY, 2011, p. 100).

Assim, a diferença entre o que é natural e o que é fruto do trabalho humano parece dissolver-se em algo único e indissociável, sendo o conceito de cultura, justamente, a materialização desta associação. À medida em que recusa simultaneamente o determinismo orgânico e a autonomia do espírito, o termo "cultura" carrega em si a própria negação de que natureza e cultura possam existir de forma separada e independente. Pode-se dizer, dessa forma, que a cultura estabelece uma dupla rejeição: ao naturalismo, já que há algo dentro da própria natureza capaz de excedê-la e anulá-la, e ao idealismo, já que não se pode excluir os fatores biológicos e naturais das origens do agir humano. Considerando que a dicotomia entre cultura e natureza - e a sua própria desconstrução - encontram-se no cerne do significado do próprio conceito de cultura, a sua análise é fundamental para o entendimento do mesmo. Tal relação dicotômica é tratada por Latour (1994), em seu estudo sobre a modernidade e a sua suposta superação. Para o autor, o cerne da questão da diferenciação entre os modernos e os ditos "não-modernos" reside justamente na relação entre natureza e cultura. Segundo ele, a modernidade caracteriza-se pela crença na separação ontológica entre humanos e não-humanos, o que significaria


19 negar a forma híbrida com que cultura e natureza se misturam de forma a gerar questionamentos interdisciplinares. No entanto, apesar de a ideologia do mundo moderno basear-se na separação entre natureza e sociedade, impedindo quaisquer contaminação entre estas "esferas de ação" e liberando uma área das amarras da outra, o que ocorre é a inevitável continuação da proliferação dos híbridos. Segundo o autor, a modernidade é, assim, uma ilusão; e o seu projeto é de que o processo de separação ontológica deva ser desmistificado através do que ele chama de antropologia simétrica. O etnólogo do nosso mundo deve colocar-se no ponto comum, onde se dividem os papéis, as ações, as competências que irão permitir certa entidade como animal ou material, uma outra como sujeito de direito, outra como dotada de consciência, ou maquinal e outra como inconsciente ou incapaz. Ele deve até mesmo comparar as formas sempre diferentes de definir ou não a matéria, o direito, a consciência, a alma dos animais sem partir da metafísica moderna. (LATOUR, 1994, p. 21).

Trata-se, portanto, de desconstruir a idéia que, segundo Latour, foi introduzida pela polêmica travada entre Boyle e Hobbes no século XVI, sobre a separação entre as esferas natural e política. Eles [Boyle e Hobbes] inventaram nosso mundo moderno, um mundo no qual a representação das coisas através do laboratório encontra-se para sempre dissociada da representação dos cidadãos através do contrato social. (...) Os dois ramos do governo elaborados por Boyle e Hobbes só possuem autoridade quando claramente separados.(...) Cabe à ciência a representação dos não-humanos, mas lhe é proibida qualquer possibilidade de apelo à política; cabe à política a representação dos cidadãos, mas lhe é proibida qualquer relação com os não-humanos produzidos e mobilizados pela ciência e tecnologia. (LATOUR, 1994, p. 33-34).

Para Latour a própria diferenciação entre a cultura Ocidental e as "outras", também reside na relação natureza-cultura, sendo a separação ontológica entre humanos e não-humanos responsável pela própria singularidade da primeira. Segundo o autor, a análise social deve ser feita a partir de um ponto médio, que não seja nem a cultura do Ocidente, nem as "outras". Para tal seria necessário estudar as culturas enquanto coletivos, um conjunto no qual os conceitos de natureza e de cultura são diluídos e o que permanece é uma pluralidade de conjuntos homogêneos (natureza-cultura) que podem ser, assim, comparados. Ao fazermos isso perceberemos, segundo Latour, que nem a cultura ocidental repousa somente na separação entre humanos e não-humanos, nem as outras culturas fazem uma total


20 superposição de tais conceitos. Sobre a diferenciação das culturas Latour destaca ainda que o que diferiria a ocidental das demais seria a sua amplitude, sua capacidade de mobilização e de criação de novas necessidades. Todos os coletivos se parecem, a não ser por sua dimensão. (...) As ciências e as técnicas não são notáveis por serem verdadeiras ou eficazes, mas sim porque multiplicam os não-humanos envolvidos na construção dos coletivos e porque tornam mais íntima a comunidade que formamos com estes seres. (LATOUR, 1994, p.106) .

No que se refere à multiplicação dos ditos "não-humanos" o pensamento de Latour aproxima-se das teorias do filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard. Para Baudrillard a era moderna é marcada por uma quantidade e diversidade de objetos nunca antes vista. Esta avalanche de artefatos criados, sem precedentes na história, chamada por ele de "selva dos objetos" (BAUDRILLARD, 2000) constituiria ela própria uma natureza paralela e "auto-referencial". Essa teoria, incorporada no texto de Latour para a definição das singularidades da cultura Ocidental, refere-se, no texto de Baudrillard, a uma questão fundamental para a compreensão da cultura moderna sob a ótica da chamada sociedade do consumo: a produção dos signos. Hygina Bruzzi, arquiteta e filósofa brasileira, escreve sobre o pensamento do autor: O consumo é, [...] segundo Baudrillard, uma prática sistemática de signos que se caracteriza como uma gigantesca empresa de semiologização do simbólico. Essa elisão e substituição reiterada da troca simbólica pela trocasigno não só define o comportamento mágico do homem do consumo, mas caracteriza sua cultura como o apogeu do simulacro. Diante dessa interpretação, as concepções naturalistas e funcionalistas vêm abaixo. Valor de uso, satisfação das necessidades não passam de caução ideológica numa sociedade que produz o indivíduo finalizado através de suas necessidades. (BRUZZI, 2007, p.17).

Observa-se a partir do texto de Bruzzi que os objetos, frutos da própria cultura, constituem eles próprios uma natureza paralela, dando forma a um universo de signos e simulacros que em última instância caracteriza a sociedade do consumo. A existência desta outra natureza, auto-referencial, é mais uma amostra de que os conceitos de cultura e de natureza se diluíram a ponto de tornarem-se hoje, indissociáveis. Concluímos, assim, a partir das considerações dos autores citados, que a relação entre ambos os termos encontra-se no cerne de aspectos sociais fundamentais. Seja nas relações entre o homem e o campo e a sua mudança para o meio urbano, nas questões filosóficas referentes à formação do homem moderno, ou


21 na própria singularidade da cultura ocidental, os conceitos de cultura e natureza se relacionam em um movimento contínuo, cujo entendimento se mostra fundamental para a compreensão da sociedade contemporânea. A pergunta que se põe neste ponto é, seria possível, retomando o conceito inicial de cultura, usá-la de modo a cultivar e potencializar o que é espontâneo e acontece “naturalmente” nas cidades ao invés de utilizá-la justamente para inibi-lo, por meio de mega transformações urbanas ditas “culturais” ? 2.1.2 Cultura e Civilização A cultura estabelece, ao longo do tempo, relações distintas com a idéia de civilização, ora aproximando-se deste conceito - que abarca tanto a noção mais objetiva de colonialismo e invasão, quanto aspectos simbólicos de doutrina, identidade e comportamento social - ora representando o seu contrário. Na presente análise busca-se destacar aspectos que além de referirem-se à conceituação do termo “cultura” dizem respeito também à constituição da idéia que se tem de “civilização” ao longo da história. Parte da razão pela qual o termo “cultura” perpassa diversas esferas do conhecimento deve-se ao desenvolvimento semântico de sua raiz latina, colere, que apresenta significados diversos, dentre os quais cultivar, proteger, adorar e habitar. Segundo Eagleton: Seu significado de habitar evoluiu do latim colonus para o contemporâneo “colonialismo” [...] Mas colere também desemboca, via o latim cultus, no termo religioso “culto”, assim como a própria idéia de cultura vem na Idade Moderna a colocar-se no lugar de um sentido desvanecente de divindade e transcendência. (EAGLETON, 2003, p.10).

Para Eagleton, o termo estabelece, desde suas origens, relações tanto com o caráter sagrado dos cultos religiosos, de reverência e adoração, quanto com a idéia de invasão e ocupação. Segundo o autor, o conceito de cultura localiza-se, hoje, entre estes dois pólos - negativo e positivo - e mostra-se, nesse sentido, essencial tanto para a direita política quanto para a esquerda. Com

relação

ao

Estado,

Eagleton destaca que a cultura pode representar uma importante arma doutrinante ou civilizatória, servindo, segundo ele, para “destilar a nossa humanidade comum a partir de eus políticos sectários, resgatando dos sentidos o espírito, arrebatando do


22 temporal o imutável, e arrancando da diversidade a unidade.” (EAGLETON, 2003, p.18). Este processo refere-se a outro significado original do termo, o cultivo, praticado, no caso de maneira metafórica, pelo Estado à sociedade civil. Ao incutir aos cidadãos “tipos adequados de disposição espiritual”, o Estado se transforma em uma espécie de agente conciliador entre os interesses antagônicos presentes de maneira crônica no cotidiano dos cidadãos, em prol de um projeto de doutrina específico. (LLOYD; THOMAS, 1998). Ainda sob esta perspectiva, no que se refere aos desdobramentos históricos da relação entre cultura e civilização, destaca-se a obra de Denys Cuche, A Noção de Cultura nas Ciências Sociais (2002). Neste trabalho, o autor versa sobre as diferenças conceituais e políticas criadas a partir do século XVIII entre França e Alemanha. Se, a partir deste período, o termo “cultura” consolida-se como relativo predominantemente ao campo intelectual em detrimento à atividade agrícola, o mesmo passa a desempenhar, também, importante papel na formação de códigos sociais determinantes para o desenvolvimento de ambas as nações nos períodos que se seguem. Segundo Cuche “sob as divergências semânticas sobre a justa definição a ser dada à palavra, dissimulam-se desacordos sociais e nacionais” (CUCHE, 2002, p.12). No iluminismo francês o termo culture era usado para designar o estado de espírito cultivado pela instrução, a partir de uma perspectiva universalista na qual a humanidade era tratada como algo total e a cultura como todos os saberes acumulados por ela ao longo da história. Tal perspectiva tinha como fundamento a aproximação entre os significados de “civilização” e “cultura” que, a partir de uma mesma lógica, referiam-se, respectivamente, ao desenvolvimento coletivo e individual. Em consonância com as idéias de progresso, de razão e de evolução em voga na época, tal perspectiva partia do pressuposto de que os povos primitivos deveriam “evoluir culturalmente” a fim de alcançar as “nações civilizadas”, no caso representadas pela francesa. Remonta daí a idéia, que perdura até os dias atuais, de cultura enquanto sinônimo de detenção do saber formal (CANEDO, 2009). Na Alemanha, o termo Kultur teve uma evolução semântica diversa. Se inicialmente o seu uso figurado aproximava-se do sentido francês, este sofre uma inversão significativa, ocorrida a partir do momento em que os ideais da burguesia intelectual alemã entram em conflito com os hábitos dos príncipes aristocratas, por volta do final do século XIX. O termo, antes usado enquanto sinônimo de civilização,


23 por uma aristocracia preocupada em imitar os hábitos da corte francesa, passa então a designar o seu contrário. A aversão dos burgueses à superficialidade dos hábitos cerimoniais dos príncipes alemães materializou-se, desta forma, no próprio significado que “cultura” passa a ter, justamente enquanto resistência a tais práticas baseadas no conceito universalista de civilização e representando, de maneira inversa, o que é autêntico, profundo, e próprio da nação alemã. Para Eagleton: “Enquanto civilização é um termo de caráter sociável, uma questão de espírito cordial e maneiras agradáveis, cultura é algo inteiramente mais solene, espiritual, crítico e de altos princípios, em vez do estar alegremente à vontade com o mundo” (EAGLETON, 2003, p.22). Assim, se por um lado a nova conotação do termo Kultur gera as bases para o nacionalismo alemão - que culminaria, mais adiante, no início da Primeira Guerra Mundial – também “o conflito entre civilização e cultura [...] fazia parte de uma intensa querela entre tradição e modernidade.” (EAGLETON, 2003, p.23). A partir deste debate entre França e Alemanha surgem as duas conotações básicas que o termo “cultura” passa a ter junto às Ciências Sociais: o conceito “universalista”, derivado do significado francês, no qual a cultura abarca todo o conhecimento da humanidade, sendo tratada como uma característica do próprio gênero humano; e o conceito “particularista”, em que o termo passa a designar algo que seja particular de um povo, relativo à sua própria noção identitária: “um conjunto de características artísticas, intelectuais e morais que constituem o patrimônio de uma nação, considerado como adquirido definitivamente e fundador de sua unidade” (CUCHE, 2002, p.28). Sob uma ótica alinhada com as teorias que começam a surgir na pósmodernidade, autores como o filósofo alemão Johann Gottfried Herder propõem a pluralização do termo “cultura”, passando a considerar a existência de culturas diversas dentro até mesmo de uma mesma nação. Segundo Eagleton, a partir do século XX: Embora as palavras ‘civilização’ e ‘cultura’ continuem sendo usadas de modo intercambiável, em especial por antropólogos, cultura é também um nível instintivo muito mais profundo do que a mente e, assim, fechada para a crítica racional. (EAGLETON, 2003, p.25)

Assim, concluímos que o termo “cultura” caminha, da origem de sua


24 conotação no ramo intelectual da “civilização” francesa, para o seu oposto e adquire, na contemporaneidade, um caráter mais relativo, no qual o contexto assume função fundamental. Franz Boas (1858-1942), pesquisador americano considerado fundador da etnografia, conclui em seus estudos que, sendo a cultura a diferença fundamental entre os grupos humanos, o pesquisador, para analisá-la, deva considerar principalmente o contexto cultural e histórico das comunidades. 2.1.3 As dimensões antropológica e sociológica A fim de dar continuidade à nossa análise sobre o conceito de cultura, utilizaremos a categorização feita pelo sociólogo chileno José Joaquín Brunner (1993) e retomada pela pesquisadora Isaura Botelho (2001), baseada na distinção de duas dimensões do termo: a antropológica e a sociológica, relativas, respectivamente, à vida cotidiana do cidadão e aos circuitos organizados. Esta separação mostra-se válida para o estudo da cultura contemporânea na medida em que evita um tratamento homogêneo da questão, tanto no âmbito conceitual quanto das políticas culturais. Sendo cada uma das dimensões pertencentes a esferas sociais distintas e apresentando diferenças estruturais significativas, é importante, segundo Botelho, que cada qual seja considerada e entendida a partir de suas particularidades. Para a autora, só a partir deste entendimento específico seria possível o desenvolvimento de ações efetivas por parte do governo, em forma de políticas culturais, e da própria população. Para Botelho a “vida cultural” da população deve ser entendida “como [todo o] conjunto de práticas e atitudes que têm uma incidência sobre a capacidade do homem de se exprimir, de se situar no mundo, de criar seu entorno e de se comunicar.” (BOTELHO, 2001, p. 73) O universo cultural do indivíduo, assim, não deve ser reduzido ao que este faz em seu tempo livre ou à sua participação em eventos organizados, mas deve comportar também o que ele faz em períodos em que, segundo Botelho “o que domina não parece ser cultural, como o tempo do trabalho, o do transporte, por exemplo.” A dimensão antropológica refere-se, justamente, à esfera da cultura que ocorre nas atividades cotidianas triviais, as quais, em última instância, são responsáveis pela construção da identidade individual e coletiva de uma comunidade. Segundo Botelho:


25 Na dimensão antropológica, a cultura se produz através da interação social dos indivíduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir, constroem seus valores, manejam suas identidades e diferenças e estabelecem suas rotinas. Desta forma, cada indivíduo ergue à sua volta, e em função de determinações de tipo diverso, pequenos mundos de sentido que lhes permitem uma relativa estabilidade. (BOTELHO, 2001, p. 74).

A formação dos “mundos de sentido” descritos por Botelho refere-se à idéia de De Certeau (1990) a respeito das pluralidades contidas na individualidade de cada ser, que o permitem, a partir da socialização, construir o que ele denomina “equilíbrios simbólicos”. As relações estabelecidas em sociedade são, portanto, fundamentais para a consolidação de tais “mundos” ou “equilíbrios”, nos quais se dão a criação dos símbolos que constituem a nossa visão do mundo e nos dota de capacidade para transformá-lo. Como se pode observar, a cultura, em sua dimensão antropológica, adquire um caráter amplo e se dá em um movimento de contínua troca social. Neste processo incluem-se todas as manifestações simbólicas e materiais produzidas pelos indivíduos, os seus modos de pensar e agir e os hábitos que conformam a sua rotina, enfim, o ser humano e a sua vida social de maneira global. Tal definição encontra-se em consonância com as idéias de muitos autores contemporâneos, dentre os quais Marilena Chauí, em sua proposta de “alagar o conceito de cultura para além do campo das belas-artes, tomando-o no sentido antropológico mais amplo de invenção coletiva de símbolos, valores, idéias e comportamentos, de modo a afirmar que todos os indivíduos e grupos são seres culturais e sujeitos culturais.” (CHAUÍ, 1995, p.81). Chauí faz esta definição em contraponto ao que ela denomina “visão liberal” da cultura, que constitui um dos quatro modelos, que segundo ela, compõem a relação entre Estado e Cultura no Brasil. Nesta visão a cultura se aproxima das belas-artes, então diferenciadas das chamadas artes servis, e passa a ser tratada como privilégio das elites. O segundo modelo a que a autora se refere é a visão do Estado autoritário, no qual o Estado se torna censor e produtor oficial da cultura da sociedade civil. A terceira é a chamada “visão populista” e caracteriza-se pela afinidade entre cultura e a chamada arte popular, um termo abstrato que generaliza atividades manuais de artesanato a partir de uma perspectiva folclórica. O quarto modelo é a visão neoliberal, na qual cultura se torna sinônimo de eventos de massa, e têm os agentes privados e as instituições públicas privatizadas como seus


26 principais promotores. Apesar de o contraponto feito pela a autora referir-se principalmente à visão liberal, a dimensão antropológica pode ser entendida enquanto alternativa a todos os demais modelos, na medida em que ela não contempla nem o direcionismo Estatal, nem o protagonismo do empresariado, tampouco a visão folclorizante da arte popular enquanto algo primitivo e exótico. A dimensão antropológica deve ser compreendida, assim, enquanto a cultura que se produz, a partir da ação de todos os seres sociais, no próprio exercício simples e diário de viver o outro e a cidade. Já a dimensão sociológica refere-se a um âmbito menos global da cultura, pois baseia-se em um tipo específico de produção e fruição da mesma nos quais as instituições, ou sistemas organizados, exercem papel fundamental. Segundo Botelho, “a dimensão sociológica não se constitui no plano do cotidiano do indivíduo, mas sim em âmbito especializado: é uma produção elaborada com a intenção explícita de construir determinados sentidos e de alcançar algum tipo de público, através de meios específicos de expressão.” (BOTELHO, 2001, p. 74). Para a sua realização são necessários meios pelos quais os indivíduos possam aperfeiçoar os seus conhecimentos e expressá-los, ou seja, exibi-los ao público. Esta dimensão envolve, portanto, interesses profissionais, institucionais e econômicos que lhe conferem, por si só, bastante visibilidade. Tal visibilidade faz com que esta esfera da cultura mostre-se não só interessante em termos mercadológicos, mas também políticos. Os circuitos organizados, por meio dos quais a dimensão sociológica acontece, envolvem tanto a formação e capacitação profissional no âmbito da cultura, quanto a produção de material artístico, bem como a concepção de espaços e mostras adequadas para apresentá-los e a criação de políticas de estímulo à participação da população nas mesmas, além do próprio sistema de agenciamento de investimentos que os tornam possíveis. Assim, o circuito funciona a partir de uma lógica de produção-circulação-consumo semelhante àquela do mercado, no qual o objetivo principal passa a ser a formação de público consumidor de cultura. A dimensão sociológica consiste, em outras palavras, em toda e qualquer manifestação que para se efetivar necessite de um sistema organizado, ou seja, que não pode se dar simplesmente no universo privado. Esta condição faz com que tais elaborações tornem-se, por dependerem e basearem-se justamente em sistemas especializados - nos quais é mais fácil prever resultados e elaborar diagnósticos, -


27 alvo de interesses financeiros e de mercado.

Tal dimensão encontra-se em

consonância, assim, com o modelo neoliberal acima descrito, no qual a lógica mercadológica passa a abarcar também a cultura. Depreende-se destas considerações que a dimensão sociológica, por seu caráter institucionalizado, representa um foco consolidado tanto de políticas públicas quanto de investimentos privados, em detrimento da dimensão antropológica, que independente dos circuitos organizados e em escalas por vezes muito menores, fica relegada muitas vezes apenas ao plano dos discursos. Não pretende-se, aqui, desconsiderar a importância de nenhuma das duas dimensões analisadas, mas julga-se importante salientar, justamente por seu constante “esquecimento” por parte das políticas públicas, que o caráter antropológico da cultura, por desenvolver-se no cotidiano, encontra-se em profunda ligação com a questão da cidadania, do viver a cidade e do desenvolvimento de posições criticas sobre a condição do cidadão no mundo. Em outros termos, é justamente a partir da dimensão antropológica que, muitas vezes encontram-se as possibilidades de ação e transformação do cenário urbano e do próprio contexto social que nele se desenvolve. Segundo Néstor Garcia Canclini, a cultura seria “parte da socialização das classes e dos grupos na formação das concepções políticas e no estilo que a sociedade adota em diferentes linhas de desenvolvimento”. (CANCLINI, 1987, p. 25, tradução nossa).1 O poder de transformação da cultura nos termos em que Canclini o coloca envolve diretamente a socialização das classes e, portanto, o plano cotidiano - que é, como mencionado, pouco assistido em termos financeiros e políticos no Brasil. O problema que se põe, assim, é o de como criar condições para que também este caráter antropológico da cultura seja potencializado, mantendo-o em sua lógica própria mas dotando-o de condições para que este tenha seu devido espaço e possa assim, servir de base para o desenvolvimento efetivo da arte e da cultura enquanto instrumento de transformação e desenvolvimento social. 2.2 Arte No que se refere às artes, priorizaremos neste estudo a esfera da arte

1

Texto original : "[…] parte de la socialización de las clases y los grupos en la formación de las concepciones políticas y en el estilo que la sociedad adopta en diferentes líneas de desarrollo”


28 pública, mais especificamente da arte critica, ou seja, daremos enfoque às manifestações artísticas que envolvam diretamente o espaço urbano e funcionem enquanto meio de promoção de novas maneiras de habitá-lo e entendê-lo - em seus âmbitos estético, antropológico, espacial e político - a partir da revelação e ressignificação das frestas e elementos sintomáticos nele presentes. Esse recorte mostra-se válido na medida em que, o que nos interessa neste trabalho é, em última instância, analisar o papel da arte enquanto instrumento de transformação social, a partir do seu potencial de redimensionamento crítico da realidade urbana. Acreditase, assim, que os questionamentos incitados por práticas artísticas possam gerar importantes contribuições ao fazer arquitetônico, urbanístico e político, em prol da construção de uma cidade mais habitável e justa. Dentre os meios artísticos usados para tanto, contemplaremos principalmente os que se referem ao estudo do corpo enquanto meio de ação no espaço urbano e os que estimulam a vivência coletiva da cidade. Para introduzi-los, faz-se, primeiramente, uma análise das possíveis interseções entre arte e política. 2.2.1 Arte e política Para o filósofo francês Jacques Rancière, os conceitos de arte e política possuem uma origem comum, tanto um quanto o outro estão fundados sobre o mundo sensível. O autor desenvolve tal teoria com base no que ele denomina “partilha do sensível”, conceito que descreve a formação política a partir do encontro dissonante das diversas percepções individuais. Em suas palavras: “denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas” (RANCIÈRE, 2005, p. 15). Ou seja, tal conceito refere-se ao comum entendido como o conjunto de elementos que são compartilhados em sociedade, tais como linguagens, idéias, símbolos e relações - e às possibilidades de participação a que este se presta. Esta seria, para ele a “estética” presente na base da política. Estética esta que “não deve ser entendida no sentido de uma captura perversa da política por uma vontade da arte, pelo pensamento do povo como obra de arte” (RANCIÈRE, 2005, p. 16) como nos fala Walter Benjamin em sua teoria da “estetização da política”. Segundo ele:


29 [...] pode-se entendê-la num sentido kantiano – eventualmente revisitado por Foucault – como o sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir. É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. (RANCIÈRE, 2005, p. 16).

Segundo o autor, essa estética primeira, além de subjazer à prática política – que baseia-se justamente no conflito e no dissenso, é a base para a compreensão das chamadas “práticas artísticas”, sendo estas, para ele, “’maneiras de fazer’ que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e de formas de visibilidade.” Colocadas assim, torna-se claro o potencial de tais práticas enquanto referência para a construção de significações e como meios de ativação de processos críticos na comunidade. Ainda segundo Rancière: A superfície dos signos pintados, o desdobramento do teatro, o ritmo do coro dançante [seriam] três formas do sensível estruturando a maneira pela qual as artes podem ser percebidas e pensadas como artes e como formas de inscrição do sentido da comunidade. (RANCIÈRE, 2005, p. 18).

Dentre as três formas do sensível que o autor destaca - com base nas idéias platônicas - enquanto formas de relação entre a arte e a construção de sentido na comunidade, destaca-se a superfície de signos pintados referente à potência da bidimensionalidade ou do plano. Esse item será retomado mais adiante, quando analisaremos a superfície enquanto importante suporte para inscrições de significados no corpo urbano. Por ora, depreende-se da teoria de Rancière que o campo estético, por constituir lugar privilegiado por onde prosseguem lutas em outros tempos centradas nas

idéias

de

emancipação,

assume

papel

privilegiado

nas

batalhas

contemporâneas. Segundo ele, a relação entre estética e política coloca-se “no nível do recorte sensível do comum da comunidade, das formas de sua visibilidade e de sua disposição”, sendo este, o ponto a partir do qual pode-se pensar as intervenções políticas dos artistas. Sobre este processo, o autor pontua:


30

As artes nunca emprestam às manobras de dominação ou emancipação mais do que lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que têm em comum com elas: posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível. E a autonomia de que podem gozar ou a subversão que podem se atribuir repousam sobre a mesma base. (RANCIÈRE, 2005, p. 26).

Para ele, o incentivo de múltiplas manifestações artísticas dentro das comunidades seria característica inerente ao regime político democrático. Em consonância com essa idéia, o artista polonês Krzysztof Wodiczko (1999) escreve, “é minha opinião que a arte é um ato alternativo de linguagem e um importante ingrediente para a prática da democracia. A arte ativa e crítica ajuda a democracia a preservar sua vida.” (WODICZKO, 1999, p. 142, tradução nossa).2 Sobre a idéia de arte critica, destaca-se o pensamento de Chantal Mouffe (2007), que a defende enquanto construtora de formas de dissenso. A autora, a partir de seu modelo agonista, defende a idéia de que o espaço público seria fundado essencialmente em antagonismos, e constituiria, por isso, um espaço político. Segundo Paola Berestein Jacques: Na perspectiva de Mouffe não há possibilidade de emergência de qualquer tipo de consenso no espaço público. A importância do seu modelo agonista está precisamente “em impugnar a difundida concepção, em que se baseiam as teorias sobre o espaço público, concebido como o âmbito onde pode surgir o consenso”. Para ela, os espaços públicos são sempre plurais e a confrontação agonista se produz em uma multiplicidade de superfícies discursivas. (JACQUES, 2009).

Mouffe contribuiu, assim, para a discussão do espaço público enquanto palco de necessidades individuais conflitantes, e para o papel da arte crítica enquanto explicitadora das batalhas e tensões nele presentes. O reconhecimento dessas idéias seria, segundo Rosalyn Deutsche (1998), essencial para o surgimento de uma política espacial democrática. As considerações de tais autoras mostram-se extremamente importantes na análise das cidades contemporâneas, - que acabam por apresentar, na maior parte dos casos, uma dinâmica contrária - e do papel da arte critica enquanto instrumento de ressignificação de seus contextos. Nota-se, nos grandes centros urbanos, uma nítida intenção “pacificadora” por parte das esferas de poder. Intenção esta que 2

Texto original : “It is my opinion that art is an alternative act of speech and an important ingredient of the practice of democracy. Active and critical art helps democracy to preserve its life.” (WODICZKO, 1999:142)


31 engloba, segundo Jacques (2011), além da questão securitária, justamente o esvaziamento

dos

conflitos,

citados

por

Mouffe

enquanto

inerentes

ao

funcionamento do espaço público. O movimento que se observa nestes locais é, assim, em direção à construção de um espaço - e de uma população – homogêneos, baseados em uma realidade urbana pautada no consenso. Ou seja, criam-se espaços “públicos” desprovidos de seus elementos básicos: a diferença, e o inevitável estado de tensão inerente à existência da mesma. Sem tais características a cidade torna-se um ambiente apolítico, um corpo vazio, e portanto, sem vida. O que se tem é a própria negação do conceito de pólis, – que baseia-se, justamente, na cidade enquanto local privilegiado da vivência política – e a construção, em seu lugar, de um ambiente cenográfico, falsamente homogêneo e consensual. Este espaço-cenário configura o que poderíamos chamar de “cidadeespetáculo”, em uma concepção na qual a cidade, em busca de um lugar de destaque no contexto geopolítico global - enquanto cidade turística, histórica ou cultural - , implanta processos de pacificação e homogeneização que geram espacialidades extremamente ineficazes em termos de apropriação real. Para Guy Débord o espetáculo seria: [...] simultaneamente o resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um complemento ao mundo real, um adereço decorativo. É o coração da irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. (DÉBORD, 1967, p. 11)

O espaço urbano transforma-se, assim, em uma espécie de simulacro, no qual a construção de uma imagem “ideal” é priorizada em detrimento da consideração das necessidades e especificidades locais. Esta situação acaba por anular as possíveis relações de identificação, vivência e apropriação da cidade por parte da população, desencadeando um processo de alienação entre comunidade e território urbano. Tal alienação poderia ser interpretada tanto enquanto corporal – já que a cidade-imagem prioriza a contemplação ótica em detrimento da apropriação tátil – quanto como social e política – a partir da premissa de que os espaços urbanos, se transformados em cenário, deixam de constituir lugares de encontro e de estímulo à vida coletiva.


32 Pode-se intuir que tanto o processo de pacificação quanto o de espetacularização a ele atrelado, relacionam-se a estratégias de controle do comum, - ou de sua expropriação, para usar as palavras de Bárbara Szaniecki e Gerardo Silva (2010a) - no sentido de moldar hábitos e desejos da população em prol da construção de espaços pasteurizados, que atendam às exigências do mercado. Frente a esse quadro acreditamos fortemente que uma possível forma de resistência resida na potência das manifestações artísticas criticas. A arte crítica seria, assim, segundo Renata Marquez (2000), diversa da arte pública institucionalizada, utilizada simplesmente para a estetização do espaço urbano. Constituiria, ao invés disso, um instrumento cuja ação, estimulada pelos próprios sintomas da cidade, consistisse na revelação e questionamento das suas contradições, de forma a gerar deslocamentos semânticos e outras formas de leitura da realidade. Neste sentido, as manifestações artísticas críticas podem funcionar como experiências sensíveis de reflexão e constituir, assim, formas de microrresistência, que apontem para novos modos de construir e habitar a cidade. 2.2.2 Corpo, arte e cidade Dentre

os

questionamentos

que

permeiam

a

atividade

artística

contemporânea, vemos especial relevância naquelas que lidam com a questão do corpo e, mais especificamente, com a experiência corporal urbana. Isso se deve à hipótese, que pretendemos desenvolver aqui, de que a vivência corporal ou a experiência tátil da cidade, representa, em contraponto à sua contemplação acrítica, uma forma de apropriação mais completa da mesma por parte de seus usuários. Nesse sentido, acredita-se que o corpo represente não só um instrumento ativo de mudança da realidade urbana, como uma espécie de base na qual a cidade se imprime cotidianamente, e com isso resiste ao urbanismo tantas vezes funcionalista, espetacular e hostil das cidades contemporâneas. Pensa-se, assim, que a partir do questionamento a respeito da experiência cotidiana do corpo na cidade, a atividade artística possa gerar importantes contribuições ao modo de se pensar a mesma, no sentido de promover espacialidades mais humanas e habitáveis. A respeito desse tema, destaca-se a teoria da “corpografia” urbana desenvolvida por Jacques como resposta ao processo de espetacularização dos centros urbanos. Segundo a autora:


33

A questão central da corpografia está na experiência corporal das cidades ou na prática urbana ordinária, diretamente relacionada com a questão da ação no cotidiano. Os espaços vividos da cidade – as memórias urbanas ordinárias, as vivências – resistem nesses corpos moldados por sua experiência, ou seja, resistem nas corpografias resultantes de sua experimentação. As relações perceptivas com a cidade, que derivam das experiências corporais dos espaços vividos em suas diferentes temporalidades, formariam, assim, uma microrresistência à visualidade rasa da imagem de marca da cidade-cenográfica. (JACQUES, 2011, p. 168).

A corpografia seria, então, uma espécie de cartografia corporal, a partir da qual o projeto da cidade e de seus edifícios seria constantemente atualizado pela experiência perceptiva de seus usuários, sendo esta atualização de alguma forma impressa no próprio corpo que a gerou. A questão da experiência perceptiva, aqui, se mostra importante na medida em que acredita-se que ela seja condição fundamental para que os habitantes de um espaço estabeleçam uma apropriação efetiva do mesmo, e assim, tenham condições de transformá-lo. No campo da arte, a questão da percepção do espaço adquire força principalmente nas décadas de sessenta e setenta, quando as intenções precedentes de expansão da prática artística - observadas já no início do século XX no construtivismo russo, na Nova Estética Alemã e no De Stijl - culminam em profundas mudanças nas relações perceptivas entre espectador e a obra. Se o construtivismo russo caracteriza-se pela tentativa de aproximação da arte às técnicas de comunicação em massa e apresenta algumas intenções incipientes de práticas espaciaiizantes, como nos contra-relevos de Vladimir Tatlin: Figura 1 – “Contra-relevo de Canto”

Fonte: TATLIN, 1915


34 Nova Estética Alemã observam-se indícios da inclusão de preocupações sociais no âmbito artístico. Walter Benjamin, um de seus expoentes, menciona em “O autor como produtor” o papel do autor enquanto criador de modelos capazes de gerar aparelhos melhorados para a ação de outros produtores (BENJAMIN, 1934). O movimento De Stijl e principalmente a obra de Piet Mondrian, traz à tona de forma pioneira, a intenção de transformação do espaço em obra de arte integral ou, segundo Stéphane Huchet, de “extensão da estética neoplasticista ao conjunto do espaço social de vida” (HUCHET, 2011, p. 73). Tais movimentos geram novas perspectivas para a prática artística, que tem o seu campo de atuação expandido. É, no entanto, no pós-guerra que tais iniciativas de ampliação do alcance perceptivo da obra têm condições de se cristalizar. O mundo enfrentava, na década de sessenta, um intenso e frutífero momento, no qual as novas possibilidades criadas pelos contínuos avanços tecnológicos pareciam inesgotáveis. Com o fim da Segunda Guerra muitos países do Primeiro Mundo adentravam um período de grande expansão econômica, no qual as políticas de conquista espacial, o surgimento da robótica e o crescimento das redes de telecomunicações via satélite constituíam um cenário em constante transformação. As estruturas arraigadas pareciam incapazes de absorver a velocidade e a efemeridade dos acontecimentos, gerando uma crescente esperança de ruptura, que levava as vanguardas artísticas a buscarem soluções futuristas e experimentais. É neste momento que os artistas passam a incorporar, de maneira efetiva, o espaço urbano, o público e o próprio corpo em suas obras. Surgem os happenings, as performances e a própria cidade, como veremos no próximo capítulo, começa a ser repensada de forma a adequar-se e modificar-se de acordo com as flutuantes necessidades de seus habitantes. O minimalismo, criado na década de sessenta nos Estados Unidos, seria, segundo Huchet (2011), uma espécie de síntese das conquistas artísticas precedentes. Tal movimento pode ser considerado, de maneira geral, o precursor da arte critica - e, portanto, de suas características destacadas nesta análise - da experiência do corpo, da participação coletiva e da potência da superfície. Observase, neste movimento, a mudança da escala e do modo de apresentação dos dispositivos

artísticos

-

que

passam

a

constituir

verdadeiras

“superfícies

volumétricas”, muitas vezes percorríveis e penetráveis - e a subordinação da composição às preocupações referentes ao meio no qual a obra se insere e à


35 experiência do corpo no espaço. Ao contrário do que ocorre no Expressionismo, no minimalismo não pretende-se pensar a arte enquanto forma de representação. A concepção das obras baseia-se, assim, no plano imanente, na experiência do “aqui” e “agora”. Segundo Frank Stella, em 1964, em tais obras, "o que você vê é o que você vê".3 (MOMA, 2004). No final dos anos sessenta o processo de saída dos museus ganha força e a arte alcança, nas palavras de Richard Morris, “um campo expandido e complexo” (MARQUEZ, 2000, p. 11). Este processo representa um marco importante, na medida em que transfere os objetos relacionais - e a sua experiência - para o espaço real. Artistas como Christo e Jeanne-Claude, com seus conhecidos embrulhos do espaço natural e Richard Serra com suas significativas esculturas de aço cor-tén - que conformavam espaços percorríveis e criavam, com sua grande escala, inusitadas sensações espaciais, causaram grande impacto inicial no público. Tais artistas dotaram a produção artística de novas possibilidades, ampliando o significado de suas categorias tradicionais. Em seu texto “A escultura no campo ampliado”, Rosalind Krauss discorre acerca dessa expansão do plano de atuação da escultura, categoria a qual, segundo ela, foi

moldada, esticada e torcida “[...] numa demonstração extraordinária de

elasticidade, evidenciando como o significado de um termo cultural pode ser ampliado a ponto de incluir quase tudo.“ (KRAUSS, 1979, p. 129) A autora discorre a respeito de como a escultura passa, no modernismo, por um processo de desterritorialização - ou perda de lugar, tornando-se a sua própria condição negativa. Para ela a definição da escultura modernista passa a se dar, assim, a partir de um conjunto de exclusões conceituais: torna-se, a uma não-paisagem incluída em uma não-cidade. Este quadro, segundo Krauss, gera a necessidade de ampliação do campo escultórico, que na “era pós-moderna” passa a abarcar, além da escultura, entre a não paisagem e a não-arquitetura, outras possibilidades relacionais, a saber, o localconstrução, que situa-se entre a arquitetura e a paisagem; os locais demarcados, entre paisagem e não-paisagem, exemplificadas pelo Partially Buried Woodshed (1981) de Robert Smithson (Figura 02); e as estruturas axiomáticas, entre arquitetura e não-arquitetura, na qual se enquadram-se as obras recentes de Morris. 3

Texto original: "What you see, is what you see" (MOMA, 2004).


36

Figura 2 - "Partially Buried Woodshed", 1970.

Fonte: BECHER; SMITHSON, 2002

As obras desse período - principalmente as que se incluem na categoria sitespecific, destacam-se por levantar importantes questionamentos a respeito do lugar, ou site, em contraponto às obras modernistas, criticadas por Krauss e por artistas como Dan Grahan, por sua fraca preocupação com as características e as identidades locais em prol da construção de um estilo internacional. Sobre o grande passo dado pelo artistas site-specific frente à concepção purista do espaço modernista, a teórica em arte Miwon Kwon escreve: […] o espaço estéril e idealista puro dos modernismos dominantes foi radicalmente deslocado pela materialidade da paisagem natural ou do espaço impuro e ordinário do cotidiano. O espaço de arte não era mais percebido como lacuna, tabula rasa, mas como espaço real. O objeto de arte ou evento nesse contexto era para ser experimentado singularmente no aqui-e-agora pela presença corporal de cada espectador, em imediatidade sensorial da extensão espacial e duração temporal (o que Michael Fried, brincando, caracterizou como teatralidade), mais do que instantaneamente “percebido” em epifania visual por um olho sem corpo. (KWON, 1997, p. 1).

Assim, a preocupação com o lugar encontra-se atrelada a uma nítida intenção de ampliar as possibilidades de interação corpo-objeto, enquanto parte de um escopo mais abrangente de relação entre obra, indivíduo e o contexto no qual se inserem. Exemplo disso é o texto escrito por Morris em 1966 “Notes on sculpture”,


37 onde o autor expõe a sua teoria da “estética relacional”. Segundo ele “a simplicidade da forma não se traduz necessariamente por uma igual simplicidade da experiência. As formas unitárias não reduzem as relações. Elas a ordenam” (HUCHET, 2012, p. 90). Como pode-se observar, a sua análise refere-se às diferentes formas de percepção gestáltica dos objetos unitários, a partir do princípio de que a relação corpo-objeto serviria de base para outras possíveis relações. Deve-se salientar ainda, que grande parte das obras deste período - dentre as quais as de artistas como Robert Smithson, Carl Andre, Richard Long, Serra, Christo e Jeanne-Claude - enquadram-se no conceito de land art, ocorrendo, muitas vezes, em ambientes naturais isolados, e atuando, assim, muito mais no sentido de promover vivências amplificadas da paisagem natural do que propriamente no de problematizar as questões conflitantes do ambiente urbano. Esse fato, no entanto, não diminui a eficácia destes dispositivos enquanto catalizadores de novas sensações corporais no nível da experiência imanente. Dentre os meios usados para tal destaca-se o uso de percursos, que relativizam a experiência da paisagem e estimulam o contato direto com o solo, a partir do ato de caminhar. Como exemplo pode-se citar a obra Secant (Figura 03) de Carl Andre: Figura 3 – “Secant”, 1977

Fonte : ANDRE, 1977

Nesse dispositivo, peças de madeira são dispostas no terreno do Nassau County Museum of Fine Arts criando um caminho a ser percorrido. Na obra, “espaço e lugar perderam sua verticalidade, isto é, a referência à estatura transcendente do homem. O homem pisa, anda, preso e fadado à horizontalidade do mundo.” (HUCHET, 2011, p. 140) . Em paralelo às práticas da land art, alguns artistas dessa época estabelecem


38 no espaço vívido da cidade o foco de suas ações. Dentre eles destaca-se o norteamericano Gordon Matta-Clark, cuja ação se mostra especialmente relevante neste estudo, por suscitar questionamentos críticos a respeito da ocupação e da apropriação do espaço urbano. O interesse do artista pela cidade, pode ser facilmente explicado pelo fato de que o ambiente mutável que ele busca enfrentar, "no qual as relações entre natureza e artífice tornam-se tensas, no qual materializase a dialética de poder, linguagem e convenção e onde a história coletiva é estratificada e conglomerada, só pode ser o ambiente urbano" (MOURE, 2006, p. 10). Assim, no texto que se segue, Matta-Clark opõe-se deliberadamente à prática de “isolamento” dos land artists, em prol de ações que se relacionem diretamente com as condições sociais presentes na cidade, seja por meio de construções físicas ou através do envolvimento direto com a comunidade: Land Art is more recent and my break with it is clear. First, the choice of dealing with either the urban environment in general, and building structures specifically, alters my whole realm of reference and shifts it away from the grand theme of vast natural emptiness which, for Earth artists, was literally like drawing in a blank canvas. But more important, I have chosen not isolation from the social conditions, but to deal directly with social conditions whether by physical implication, as in most of my building works, or through more direct community involvement, which is how I want to see the work develop in the future. (MOURE, 2006, p. 10).

A obra de Matta-Clark, por situar-se entre as esferas da arte e da arquitetura, será analisada também no próximo capítulo, no qual nos ateremos principalmente às suas realizações de cunho mais “arquitetônico”. Por ora, restringiremos nosso estudo à sua prática “artístico-política” na cidade, destacando o seu trabalho Reality Properties: Fake States, e, no próximo item, Food. No primeiro destaca-se o fato de o artista tratar a própria cidade enquanto corpo, vivo e dinâmico, em consonância com a idéia de sintoma analisada acima, a partir da qual o corpo urbano é analisado a partir da idéia do pathos, em suas frestas e interstícios. Reality Properties: Fake States consiste, assim, na compra, por Matta-Clark, de 15 terrenos remanescentes da cidade de Nova York, 14 deles no bairro de Queens e 1 em Staten Island. As partes de terra adquiridas pelo artista, cujo valor variou entre 25 e 75 dólares, consistiam em frestas com formas ou dimensões inapropriadas ao uso formal, situadas entre edifícios e, muitas vezes em locais inacessíveis. Segundo a mulher de Matta-Clark: Uma dessas “propriedades” tinha 25 cm de largura e se estendia por toda a


39 lateral de um corredor de passagem, dispondo-se de modo a obrigar os vizinhos a invadi-la para que pudessem estacionar em suas próprias garagens. Outra, completamente isolada, era um quadrado com cerca de 60 cm de lado localizado na fronteira de quatro edifícios. Outra dessas “propriedades” se localizava na interseção de três edifícios, e era tão inacessível que Gordon jamais conseguiu vê-la. (CRAWFORD, 2010)

O trabalho do artista consistiu em documentar tais “propriedades” através de fotografias, textos e documentos oficiais: Figura 4 - "Reality Properties: Fake Estates, Little Alley Block 2497, Lot 42", 1974

Fonte: MATTA-CLARK, 1974

. Essa seria a sua forma de intervir nas mesmas, e usá-las enquanto fragmentos de uma ação “anarquitetural” no espaço urbano (CABINET MAGAZINE, 2009). Tais frestas delimitavam as linhas de demarcação das diversas propriedades na cidade, funcionando como uma espécie de seu negativo. Segundo Matta-Clark, a característica que mais o emocionava a respeito desses lotes seria justamente a sua inacessibilidade. O seu objetivo era, portanto, desenhar lugares não vistos e portanto não habitados, contrariando a lógica vigente de relação entre propriedade e uso. Essa ação não só traz à tona questionamentos a respeito da questão do mercado de terras, como conforma um retrato da cidade enquanto organismo, cujos sintomas pontuais revelam formas perceptivas criticas, tanto físicas quanto


40 metafóricas, do corpo social frente ao corpo urbano. A fim de dar continuidade ao estudo sobre a relação entre corpo, objeto artístico e cidade, mostra-se oportuna uma breve análise das obras performáticas – de especial relevância para o estudo em questão - que ocorrem nas décadas de sessenta e setenta, nas quais o corpo se torna o próprio objeto, através do qual são estimuladas novas experiências na cidade. Dentre os muitos exemplos de performances que problematizam o lugar (físico e simbólico) do corpo no ambiente urbano, destaca-se a obra Imponderabilia (Figura 05) de Ulay e Marina Abramovic, na qual os artistas se colocam, nus, à porta de entrada da Galeria Communale d’Arte Moderna de Bologna, de forma que os visitantes sejam obrigados a passar entre os seus corpos ao entrar, escolhendo qual dois irá contemplar. Tal obra, além de suscitar reflexões simbólicas a respeito do corpo, explicita de forma escancarada as múltiplas experiências mediadas por este nas relações cotidianas estabelecidas pelo indivíduo com a cidade, a arquitetura e o Outro. Figura 5 – “Imponderabilia”, 1977

Fonte : ABRAMOVIC, 1977

Se até o momento analisamos obras que problematizam as relações objetocidade e corpo-objeto - tais como os dispositivos minimalistas, site-specific e da land art, as relações da cidade enquanto corpo - nos trabalhos de Matta-Clark, e do corpo enquanto objeto - nas performances dos Abramovic, é na obra de Hélio Oiticica que encontramos os exemplos mais emblemáticos de questionamento da relação, talvez


41 a mais relevante até agora, do corpo enquanto motor de ação no ambiente. Em seus Penetráveis (Figura 06), criados a partir de 1960, Oiticica propõe uma série de reflexões a respeito da desconstrução dos conceitos formais da arte, especialmente no que tange o conceito de pintura, que passa a representar, para ele, um modelo teórico a partir do qual se pretende a ressemantização do quadro e a ”sua incorporação no espaço e no tempo” (OITICICA, apud HUCHET, 2012). Além disso, tal obra materializa a sua busca por uma forma de arte não-contemplativa, na qual o artista desempenha um papel de propositor de práticas, sendo o espectador transformado em “participador” - o responsável, com a sua vivência, pela execução das mesmas. Os Penetráveis consistem, assim, em estruturas tridimensionais monocromáticas, passíveis de serem distribuídas espacialmente de forma a gerar uma experiência labiríntica ao participador, que pode penetrá-las e percorrê-las. A ação do corpo dentro destes espaços labirínticos é, assim, essencial para a completude da obra. Figura 6 - "Invenção da cor, Penetrável Magic Square # 5, De Luxe", 1977

Fonte : OITICICA, 1977

Os Parangolés (Figura 07), por sua vez, são capas, bandeiras, telas e estandartes a serem vestidas ou carregadas pelos participantes, conformando uma experiência que pretende unir, segundo Huchet (2011), a dimensão ambiental à performática. Tais capas são feitas de panos coloridos e podem conter palavras, imagens e fotos, a serem reveladas apenas durante a ação do participante, em um processo no qual este se torna uma espécie de motor interno para que a obra se


42 concretize. A palavra Parangolé, a exemplo do conceito de Merz adotado por Schwitters, é usada por ele enquanto “definição de uma situação experiencial específica, fundamental para a compreensão teorética e vivencial de toda a sua obra”. Segundo Oiticica: A descoberta do que chamo “Parangolé” marca o ponto crucial e define uma posição específica no desenvolvimento teórico de toda a minha experiência da estrutura-cor no espaço, principalmente no que se refere a uma nova definição do que seja, nessa mesma experiência “o objeto plástico” ou seja a obra. (OITICICA, 1964, p. 1)

Figura 7 - "Nildo da Mangueira com Parangolé", 1964

Fonte: OITICICA, 1964

Nota-se, assim, uma especial preocupação com a definição e com a própria estruturação do objeto plástico, para a qual a participação ativa do usuário se mostra fundamental. Segundo Oiticica “seria pois o Parangolé um buscar, antes de mais nada estrutural básico na constituição no mundo dos objetos, a procura das raízes da gênese objetiva da obra, a plasmação direta perceptiva da mesma.” (OITICICA, 1964, p. 2). O que interessa para ele é, portanto, em contraponto à tentativa cubista de desconstrução do objeto já tomado como inteiro, a própria busca pela estrutura do mesmo, ou pela sua “fundação objetiva”. Neste processo o corpo do usuário funciona como uma espécie de núcleo estrutural, sendo o objeto moldado, ou fundado, a partir da ação deste no espaço. Dessa forma, a participação do


43 espectador seria “uma ‘participação ambiental’ por excelência.” Segundo ele, “tratase da procura de ‘totalidades ambientais’ que seriam criadas e exploradas em todas as suas ordens, desde o infinitamente pequeno, até o espaço arquitetônico, urbano, etc.” (OITICICA, 1964 p. 3). Tal obra se mostra relevante para a análise da experiência corporal na cidade, por problematizar a questão do corpo enquanto elemento ativo e modulador, atuando no tempo e no espaço - ou em uma “experiência ambiental”, como Oiticica a denomina - que tem na sua gênese a busca pela própria estruturação do objeto, sendo essa busca passível de ser ampliada aos próprios objetos arquitetônicos e à cidade. Assim, concluímos, por ora, a análise do Parangolé, com a ressalva de que a mesma mantém-se restrita e será completada no próximo item, quando abordaremos especificamente o seu caráter “comunitário”. Chega-se, neste ponto, à analise de obras que pretendem questionar especificamente a relação corpo-cidade. Dentre elas destacam-se os trabalhos ocorridos durante o encontro “Corpocidade”, em 2008 na cidade de Salvador. Esse evento teórico-artístico teve como tônica a discussão das articulações possíveis entre o corpo e cidade e da sua contribuição enquanto estratégia de redesenho das condições participativas no processo de formulação da vida pública. Nele pretendeuse discutir, através de instalações artísticas e apresentações teóricas, o “cenário” de estetização acrítica e segregadora que caracteriza o processo de espetacularização urbana acima mencionado. Partindo do pressuposto de que tal espetacularização esteja diretamente relacionada à diminuição da participação cidadã e da experiência corporal enquanto prática cotidiana, buscou-se, a partir do estudo entre corpo ordinário e cidade, encontrar caminhos alternativos de micro-política, ou ação molecular de resistência. (CORPOCIDADE, 2008). Dentre as intervenções urbanas produzidas na ocasião, destaca-se a performance intitulada “aCerca do espaço” (Figura 08) do coletivo belo-horizontino “Zona de Interferência”. Tal trabalho busca essencialmente questionar as barreiras físicas e simbólicas do corpo frente à cidade privatizada. Com os corpos envoltos por cercas - construídas com telas, madeira e metal, os performers caminham por quatro pontos escolhidos da cidade de Salvador, de maneira a problematizar a questão da vigilância e do controle, questionando os seus reflexos no contato do corpo com a cidade e com o Outro.


44 Figura 8 – Fotografia da performance “aCerca do Espaço”

Fonte : RIBEIRO; JACQUES, 2008

Além do evento “Corpocidade” em Salvador, mostra-se relevante citar a ação do coletivo “Basurama” durante a Virada Cultural de 2013, em São Paulo. A ação, que constituiu-se na construção de balanços nos vãos do Viaduto do Chá e do Minhocão (Figura 09), será tomada como referência para atividades propostas no capitulo 4 deste estudo, a serem realizadas no Viaduto Santa Tereza, em Belo Horizonte. O projeto pretendeu dotar os vãos dos viadutos de caráter lúdico, tornando-os convidativos à apropriação. Através do uso dos balanços, construídos a partir de materiais descartados como banners, cordas e pneus, os cidadãos têm a oportunidade de vivenciar, de forma amplificada, o baixio dos viadutos, espaços ou “materiais” também de certa forma “descartados” do uso cotidiano. A partir deles, brincadeira e movimento são usados enquanto meios para a promoção de novas formas de interação corpo-cidade. Figura 9 – "A cidade é pra brincar", 2013

Fonte: BASURAMA, 2013


45 Assim, conclui-se que a partir dos questionamentos gerados pelas práticas citadas, pode-se criar importantes bases para o entendimento da apropriação efetiva do corpo no espaço, a ser incorporado por arquitetos e urbanistas na concepção de uma cidade mais voltada para a presença do humano, em contraponto à estetização espetacular que vem sendo observada. Além disso, acredita-se que tais práticas em escala micro, constituem, por si só, importantes meios de resistência. São ações moleculares, que atuam nas frestas e interstícios do tecido urbano espetacularizado, mas que podem representar importantes pontos de partida para novos entendimentos do espaço enquanto corpo vivo a ser impresso e modificado pela ação humana. As considerações contidas neste subcapítulo serão utilizadas enquanto base para a concepção de atividades corpográficas, tais como a construção e uso de equipamentos lúdicos e a demarcação de fluxos no espaço, a serem realizadas em evento desenvolvido enquanto fechamento do Capítulo 4 deste trabalho, no baixio do Viaduto Santa Tereza em Belo Horizonte. 2.2.3 Arte comunitária Dentre as vertentes artísticas que constituem o que chamamos arte pública, interessa-nos especialmente a chamada arte comunitária, já que esta refere-se diretamente à busca por uma ressignificação da realidade a partir da prática coletiva, fortemente relacionada à questão política. Para a teórica Miwon Kwon, tal esfera da arte conforma-se enquanto desdobramento da própria arte site-specific - que emergiu em meio ao minimalismo, no final da década de sessenta - surgindo, segundo ela, a partir da ampliação da idéia do site, que deixa de referir-se apenas a preocupações de caráter espacial ou locacional, como ocorria na década de sessenta e setenta, e passa a incluir, nas realizações site-oriented da década de noventa, a comunidade e os conflitos sócio-políticos a ela relacionados. Para Kwon, o primeiro momento da formação da arte site-specific corresponde à ruptura com o caráter ideal do espaço modernista e com a idéia de obra autônoma e auto-referencial, dando lugar à priorização da “experiência fenomenológica da experiência corporal vivenciada”. Esse primeiro momento, a que corresponde a análise feita no item precedente deste trabalho, é denominado por ela fenomenológico, e tem como prioridade a relação da obra com o corpo e a idéia de


46 imediatez sensorial no tempo e no espaço. O segundo momento, por sua vez, apresentaria uma ampliação da idéia fenomenológica, já que o site passa a ser visto não mais em termos apenas físicos e espaciais, mas enquanto “estrutura cultural, definida pelas instituições de arte”. Esse momento, por lidar diretamente com questões concernantes ao confinamento dentro do qual o artista opera dentro das instituições artísticas, seria chamado por ela de crítico-institucional. Em suas palavras: Se o Minimalismo devolveu ao espectador um corpo físico, as práticas de teor crítico-institucional insistiram no padrão social de classe, raça, gênero e sexualidade do espectador. Além disso, enquanto o Minimalismo desafiava o hermetismo idealista do objeto de arte autônomo ao atribuir seu significado ao espaço de sua apresentação, a posterior abordagem críticoinstitucional complicou ainda mais esse deslocamento ao enfatizar o hermetismo idealista do espaço de apresentação em si. (KWON, 1997, p. 3).

Tal momento caracteriza-se por uma mudança de postura por parte do artista, que passa a priorizar a experiência ideológica do espectador em detrimento de uma experiência estritamente física e espacial. Apesar de já aí observarmos uma ampliação da noção de site e da abrangência dos questionamentos presentes na obra de arte como um todo, é no terceiro momento que esta ampliação atinge, de maneira mais incisiva, a esfera pública, nosso foco de interesse neste trabalho. Esse terceiro momento, refere-se, segundo Kwon, à busca por um maior engajamento da arte com o mundo externo e com a vida cotidiana. Para a autora: Preocupadas em integrar a arte mais diretamente no âmbito do social, seja para reendereçar (num sentido ativista) problemas sociais urgentes, como a crise ecológica, o problema de moradia, Aids, homofobia, racismo e sexismo, ou mais amplamente para relativizar a arte como apenas uma entre as muitas formas de trabalho cultural, as manifestações de sitespecificity tendem a tratar as preocupações estéticas e históricas (da arte) como questões secundárias. (KWON, 1997, p. 5).

Devido à expansão de sua relação com a cultura e com a realidade social, a arte site-specific ou site-oriented da década de noventa, prioriza locais públicos abertos e não-institucionalizados, e ao fazê-lo aproxima-se da chamada arte pública. Esse vínculo entre arte pública e arte site-oriented acaba por redimensionar o caráter da última, tornando-a sinônimo de community-based art. A arte site-oriented transforma-se assim, em arte comunitária, constituindo um nó de convergência entre práticas culturais ativistas, tradições estéticas da comunidade e políticas de


47 identidade local, em um amplo processo de fortalecimento da prática artística enquanto instrumento social e político. Segundo Kwon: [...] formas atuais de arte site-oriented, que prontamente se apropriam de questões sociais (com freqüência por elas inspiradas) e que rotineiramente incluem a participação colaborativa de grupos de público para a conceitualização e produção do trabalho, são vistas como uma forma de fortalecer a capacidade da arte de penetrar a organização sociopolítica da vida contemporânea com impacto e significado maiores. Nesse sentido, as possibilidades de conceber o site como algo mais do que um lugar – como uma história étnica reprimida, uma causa política, um grupo de excluídos sociais – é um salto conceitual crucial na redefinição do papel “público” da arte e dos artistas. (KWON,1997, p. 8).

A nova arte site-specific comunitária caracteriza-se, assim, por uma idéia de site que não mais refere-se à localidade física ou às “molduras” institucionais, mas define-se a partir do âmbito discursivo. O site seria, neste caso, deslocado do âmbito físico para o informacional, baseando-se na troca intelectual e cultural, no movimento e na construção de significação em rede. Diferentemente do que ocorre nos momentos precedentes, este não é mais tido como pré-condição para a realização da obra, mas é “gerado pelo trabalho (freqüentemente como “conteúdo”), e então comprovado mediante sua convergência com uma formação discursiva existente”. (KWON,1997:6) Ao estruturar-se “inter(textualmente) mais do que espacialmente”, o site adquire, na arte coletiva, um caráter transitório e conseqüentemente trans-territorial, constituindo não um mapa, mas um itinerário, “uma seqüência fragmentária de eventos e ações ao longo de espaços, ou seja, uma narrativa nômade cujo percurso é articulado a partir da passagem do artista.” (KWON,1997, p. 172). O artista adquire, nesse contexto, o papel de catalisador ou mediador de ações articuladas, que visam, principalmente, o engajamento político das comunidades locais. Segundo Malcom Miles: Uma diferença entre a arte pública convencional e as artes comunitárias ou um novo gênero da arte pública, é que o artista comunitário, e freqüentemente um novo gênero do artista público, atua como um catalisador para a criatividade de outras pessoas, a imaginação política sendo talvez tão valorizada como a habilidade para o desenho. Isso é uma reação contra a acomodação da arte no mercado e nas instituições, uma rejeição da estética autônoma do modernismo, e reflete um realismo crítico derivado do Marxismo, do feminismo e da ecologia, o que implica que os artistas atuem para e com outros na responsabilidade pelos seus futuros. (MILES, 1997, p. 8 citado em MARQUEZ, 2000, p. 35)

Feita essa breve introdução conceitual, passaremos à análise de algumas obras paradigmáticas no âmbito das “artes comunitárias”, com enfoque no seu


48 caráter critico e na sua eficácia enquanto instrumento de fomento à coletividade e à apropriação do espaço público. Primeiramente discorreremos sobre as ações de Hélio Oiticica, em seguida estudaremos a obra Food de Gordon Matta-Clark e os “Banquetes” coletivos desenvolvidos em espaços públicos da cidade de Belo Horizonte.

Analisaremos,

enfim,

as

experiências

cartográficas

do

grupo

Iconoclasistas. A obra de Oiticica destaca-se por seu forte caráter experimental e sua nítida intenção em reorientar os rumos da arte contemporânea, a partir da transformação da figura do artista naquela de um verdadeiro propositor de ações. Nesse sentido, o seu principal objetivo seria o de extinguir o esquema artístico da representação estetizante, de forma a superar - junto ao desmantelamento da imagem do artista o modelo de “exposições” e museus, impróprio a absorver a arte que estaria, segundo ele, na ação das pessoas na rua, enfim, na vida cotidiana. Em 1986 o artista escreve: “Adeus, ó esteticismo, loucura das passadas burguesias, dos fregueses sequiosos de espasmos estéticos, do detalhe e da cor de um mestre, do tema e do lema.” (OITICICA, apud FAVARETTO, 1992, p. 185). Tal oposição do artista à estetização da arte, vale ressaltar, reflete a sua própria concepção de arte enquanto conceito amplo, já que expande-se para o terreno sócio-político, abarcando todo e qualquer esquema fixo e padrão socialmente arraigado. Em seu Programa Ambiental, o artista aponta, ao contrário, na direção de uma liberdade total, de criação e de vivência (que em sua obra constituem sinônimos) no âmbito individual e coletivo. Oiticica formula, assim, o que ele chama de anti-arte. Tal idéia, no entanto, não se pretende afirmar enquanto nova estética, mas procura representar justamente o seu contrário, sendo os Parangolés - considerados dentro de um significado expandido - o seu exemplo emblemático. Para o artista: Parangolé é a anti-arte por excelência; inclusive pretendo estender o sentido de “apropriação” às coisas do mundo com que deparo nas ruas, terrenos baldios, campos, o mundo ambiente, enfim – coisas que não seriam transportáveis, mas para as quais eu chamaria o público à participação – seria isso um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte, etc., e ao próprio conceito de “exposição” – ou nós o modificamos ou continuamos na mesma; o Museu é o mundo.” (OITICICA, 1966, p. 2).

A pesquisa dos Parangolés começou em 1964, logo após o artista ter começado a freqüentar a Favela da Mangueira, onde passou a atuar como passista da escola de samba de local. A vivência do artista na comunidade e o seu contato


49 com

o

samba

-

motivados,

segundo

ele,

por

uma

busca

pessoal

de

desintelectualização e pela necessidade de contato com uma forma mais livre de expressão – refletiu-se na própria concepção do Parangolé, que coincide, em muitos pontos, com a própria estrutura da favela. Segundo ele, “na arquitetura da ‘favela’, p. ex., está implícito um caráter do Parangolé, tal a organicidade estrutural entre os elementos que o constituem.” (OITICICA, 1996, p. 68) A idéia do Parangolé, era assim, de uma apropriação ampla, que ultrapassasse os limites do objetos em si (as capas), e abarcasse o próprio território da cidade, priorizando a construção, na comunidade da Mangueira, de moradias populares de caráter provisório (SILVA, 2006). Berenstein, em seu livro “Estética da Ginga” discorre a respeito da experiência de Oiticica e da sua relação com a arquitetura de tais construções. O Crelazer, concebido a partir de 1969, constitui o outro vetor da obra de Oiticica, e caracteriza-se pela busca do artista no desenvolvimento do que seria o “sonho comunitário”. Segundo Celso Favaretto: O Crelazer completa a série de proposições-vivências que, a partir do Parangolé, produzem a abertura crescente do estrutural em direção ao comportamento-estrutura. Determina o sentido da participação, proposto no Suprassensorial, como catalisação das energias não-opressivas e a sua realização no “além-ambiente”, como pura disponibilidade; um lazer-prazerfazer, que assimila a atividade criativa ao devir das vivências. (FAVARETTO, 1992, p. 184).

Esse vetor do pensamento oiticiquiano preconiza a idéia de que atividades não-repressivas, que se incluem na noção de lazer, seriam formas políticas por si só, por representarem a não subestimação da vida cotidiana a instâncias regulatórias, ou ao que ele denomina “dessublimação programada”. Segundo o artista: [o Crelazer] é o lazer criador (não o lazer repressivo, dessublimado, mas o lazer utilizado como ativante não-repressivo [...] Os “estados de repouso” seriam invocados como espaços vivos nessas proposições, ou melhor, seria posta em xeque a “dispersão do repouso”, que seria transformada em “alimento” criativo, numa volta à fantasia profunda, ao sonho, ao sonolazer,ou ao lazer-fazer não interessado. (OITICICA, 1986, p. 120 citado em FAVARETTO, 1992, p.185).

Dentro dessa idéia, surge a concepção do Mundo-abrigo (texto-obra escrito em 1973), e com ela, o projeto Barracão, que parte do reconhecimento do espaço urbano,

principalmente

o

da

favela,

enquanto

experimentalmente

apto

a


50 experiências de grupo, a partir de um caráter inventivo. O Barracão foi pensado, assim, a partir da arquitetura experimental das favelas, que representaria a potência viva de uma cultura em formação, em contraponto à concepção folclorística e populista que dominava, na década de 70, os esquemas culturais, patrióticos e opressores. Tal

idéia

começou

a

concretizar-se

enquanto

protótipo

para

o

desenvolvimento de estruturas-abrigo, que enfatizavam o viver comunitário inventivo. A “célula Barracão 1” foi construída em Sussex, na Inglaterra, junto aos estudantes da universidade, e era constituída por uma série de Ninhos (Figura 10), que funcionariam como abrigos, salas de recreação ou commom room. A idéia de usar o Barracão enquanto princípio estruturador na construção de uma comunidade no Rio de Janeiro não se concretizou, mas nota-se nesta a nítida intenção de expansão da idéia iniciada com o Parangolé, de expansão da “para um contexto arquitetônico vivencial o problema da capa”. Mais tarde, Oiticica transpõe os princípios estruturadores desse projeto para a sua própria casa, a qual pretendia transformar em ambiente de experiência criativa total. Segundo Favaretto: Como o próprio nome indica, o lugar-recinto-casa é imaginado à semelhança da moradia da favela: a continuidade das partes que a constituem, do interior e do exterior, a ausência, assim, de lugares específicos (funcionais), sugerir a Oiticica a imagem de uma estrutura orgânica para vivências descondicionantes. Além disso, a favela foi para Oiticica a experiência do viver comunitário, alternativo e marginal. [...] O Barracão é ”comportamento-estrutura” espaço em que se catalizam as energias não opressivas do Crelazer” (FAVARETTO,1992, p. 195)

Figura 10 – "Ninhos", 1970

Fonte: FAVARETTO, 1992


51 Mostra-se interessante salientar, neste ponto, as controvérsias e convergências de apropriação a posteriori das idéias de Oiticica pelo âmbito institucionalizado. A obra do artista, apesar de construída explicitamente contra o modelo das “exposições”, foi tomada enquanto paradigma da 27a Bienal de Arte de São Paulo: Como viver junto?, em 2006. O evento, organizado sob a curadoria de Lisette Lagnado e Adriano Pedrosa, representaria, no entanto, o reconhecimento por parte dos organizadores de que o modelo a partir do qual tais exposições vinham sendo concebidas encontrava-se em ampla dissonância com o tipo de discussão desenvolvida pela arte contemporânea brasileira. A proposta da bienal baseia-se nas notas dos cursos e seminário “Como viver junto” de Roland Barthes e apresenta uma série de indagações a respeito da vida em comunidade, da “justa distância” e dos possíveis elos que possibilitariam o desenho de uma vida comum, para além da coincidência espacial e temporal dos indivíduos (PEDROSA; LAGNADO, 2008). A tônica residiu, portanto, no próprio questionamento da Bienal, de seu caráter efêmero e de sua relação com a realidade social e política mundial. A abolição das representações nacionais, por exemplo, reflete o caráter transnacional da produção contemporânea globalizada e suscita questionamentos a respeito do território e da pátria e da terra. Já as viagens curatoriais e as residências artísticas promovidas antes da mostra, bem como a vivência in loco de “distintos graus de viver junto” (LAGNADO, 2006, p. 53) por elas proporcionadas, ampliam a discussão da mostra à realidade cotidiana e aos conflitos sócio-culturais, expandindo o espaço restrito da galeria para outros confins e fomentando uma discussão sobre o próprio caráter que a arte adquire, enquanto algo amplo, capaz de abarcar a vida como um todo. Essa idéia abrangente da arte, seria para Oiticica, o ponto de partida através do qual seriamos capazes de derrubar a ordem vigente, e construir algo sólido. O artista conclui o seu texto “Posição e Programa” da seguinte maneira: O princípio decisivo seria o seguinte: a vitalidade, individual e coletiva, será o soerguimento de algo sólido e real, apesar de subdesenvolvimento e caos – desse caos vietnamesco é que nascerá o futuro, não de conformismo e do otarismo. Só derrubando furiosamente podemos erguer algo valido e palpável: a nossa realidade. (OITICICA, 1966, p. 4).

Além do exemplo paradigmático de Oiticica, mostra-se válido retornarmos à obra de Matta-Clark, de quem o artista brasileiro se aproximou na década de setenta, durante a sua estada em Nova York. Em 1971, Matta-Clark participou da


52 fundação do restaurante Food, no Soho. Tal estabelecimento, que transformou-se em espaço emblemático de convergência entre as esferas da arte e dos rituais que envolvem a comida (em consonância com a ampliação do sentido de arte mencionada acima), tornou-se durante a década de 70, uma espécie de campo de batalha política do artista. Segundo ele, Food representava uma tentativa de reinstaurar a arte de “comer com amor”, ao invés do medo. Medo este que teria sido instaurado, segundo ele, pelo Cristianismo e pelos regimes de regulação aos quais a sociedade encontra-se constantemente submetida. (MOURE, 2006) Nesse sentido, Food poderia ser relacionado à tentativa oiticiquiana de estabelecer espaços libertários e não-repressivos, nos quais atividades de não submissão seriam usadas enquanto “alimento” criativo de ação e critica. Food representava, assim, o palco de desenvolvimento dos questionamentos de Matta-Clark a respeito da sociedade de consumo norte-americana. Em um de seus trabalhos o artista critica duramente o ideal do American Way of Life a partir da contraposição de imagens das cozinhas de casas “ideais” norte-americanas, a fotos de experimentos como o “agar dinner”, que fazem alusão aos processos químicos de transformação do resíduo produzido na cidade a partir da chamada “entropia social”. No trabalho do artista, tanto a comida, necessidade humana básica, quanto a sua manipulação e os detritos dela gerados, são utilizados enquanto explicitadores de um lado nada espetacular da vida na cidade, bem como dos processos entrópicos resultantes do quadro de coexistência social nela presente. O tema da comida mostra-se presente também nas experiências dos artistas Breno Silva e Louise Ganz, na cidade de Belo Horizonte. No vídeo intitulado “Banquetes”, os artistas registraram cinco almoços coletivos realizados na cidade (Figura 11). Dos almoços em frente à casa passamos a fazer outros em locais diversos da cidade, com pessoas desconhecidas que fazem as comidas, levam as cadeiras, pratos e talheres. [...] Primeiramente fizemos percursos aleatórios pela cidade em busca de lugares, situações e praticas cotidianas diversas. Eram de interesse espaços como canteiros, rótulas de circulação, finais de rua, áreas sob viadutos, praças e lotes vagos. Também procuramos conhecer pessoas que gostassem de cozinhar e casas onde houvesse a possibilidade de usar a cozinha para confeccionar pratos. [...] Desses diálogos com os lugares e as práticas existentes, nos infiltramos com uma mesa para o acontecimento dos banquetes. (SILVA; GANZ, 2008, p. 7).


53 Figura 11 - "Banquete"

FONTE : SILVA ; GANZ, 2005

Nestes acontecimentos a população adquire papel ativo, tanto na organização e montagem das mesas quanto na preparação dos pratos e no ato de servi-los. O Banquete 1 ocorreu em frente a uma igreja na qual ocorria um casamento. Sobre a mesa foi construída uma espécie de paisagem topográfica de algodões-doce coloridos que, juntamente com as maçãs do amor produzidas por uma moradora, configuraram o cardápio. O Banquete 2 aconteceu em uma pequena praça situada no bairro Concórdia, na região norte da cidade. O local situava-se próximo a um abatedouro, no qual foram abatidas doze galinhas para a produção, conduzida por moradores “cozinheiros”, de frango ao molho pardo. O Banquete 3 ocorreu às margens de uma lagoa urbana, a Lagoa da Pampulha, ambiente propositalmente escolhido por seu caráter “bucólico”. O Banquete 4, por sua vez, foi motivado pela idéia de inserir-se em uma ocupação já existente. As mesas foram instaladas, assim, no Quarteirão do Soul, área no centro da cidade onde o grupo do Movimento Black Soul encontra-se aos sábados para dançar. O Banquete 5 ocorreu na calçada de uma rua residencial da zona sul da cidade e o cardápio incluía pratos “escultóricos”. Nas ações descritas, a mesa, “objeto comum a todos, que existe na maioria dos interiores das casas do ocidente”, é transposta para o lado de fora. Tal deslocamento aponta para novas possibilidades de expansão do doméstico ao coletivo, além de explicitar que outras formas de articulação intra-comunidade são


54 possíveis, bem como o uso do espaço “público” efetivamente enquanto tal. A comida aqui é vista enquanto instrumento de encontro e formação de vivências coletivas, e a calçada, local público por excelência, conforma-se enquanto efetivo lugar de encontro e socialização da população. Passa-se agora à análise dos chamados coletivos artísticos, que conformam uma modalidade de atuação no mínimo emblemática para o estudo da arte comunitária. Os coletivos são formados a partir da união de grupos e artistas, que estabelecem parcerias entre si normalmente no intuito de dotar suas ações de mais força e abrangência. Como o próprio nome indica, a noção de coletividade permeia toda a atividade desses agrupamentos, mostrando-se presente não apenas em sua ação propriamente dita, mas também na sua dinâmica de trabalho e em sua própria estrutura organizacional. A idéia que rege os coletivos parte, assim, de uma perspectiva horizontal, na qual a potência, em consonância com as idéias desenvolvidas por Gilles Deleuze, reside nos movimentos superficiais ou em rede, contrapondo-se à idéia de verticalidade, totalizante e autoritária. O movimento rizomático e a interdisciplinaridade, bem como a fusão e a transterritorialidade são, assim, características inerentes a tais grupos, os quais, contrariamente à lógica mercadológica que prioriza a marca e o autor, desenvolvem os seus trabalhos a partir da diluição da autoria em prol do desenvolvimento de perspectivas ampliadas. Nesse sentido, o grupo torna-se mais do que apenas a união de indivíduos, mas a representação de um interesse comum e, portanto, maior. Segundo Ricardo Rosas, a idéia de “coletivo” não pode ser atribuída apenas à prática artística contemporânea, já que a formação de agrupamentos artísticos teria ocorrido durante todo o século XX, atravessando as obras de artistas e grupos como a Internacional Situacionista, Matta-Clark e o grupo Fluxus de Nova York, para citar alguns exemplos. Apesar disso, é a partir da década de noventa que os coletivos artísticos parecem atravessar a sua mais ampla expansão, impulsionados pelos novos meios de comunicação em rede e por motivações que expressam a crescente proximidade entre as esferas da arte e da política. É, assim, em meio a um contexto marcado pelo desenvolvimento do capitalismo tardio nos países emergentes, que insurgem, em um movimento contrário, os coletivos artísticos enquanto sistemas caracterizados pela idéia de cooperação e reciprocidade. Os agrupamentos criados nessa época apresentavam, normalmente, um caráter híbrido, resultante da união de práticas tanto artísticas quanto arquitetônicas. (ROSAS apud LABRA, 2009).


55 A fim de aprofundar a nossa análise sobre as práticas artísticas coletivas ressaltaremos o trabalho desenvolvido pelo grupo argentino Iconoclasistas. Este coletivo com base em Buenos Aires, atua desde 2006 no fomento à construção de redes solidárias e no desenvolvimento de práticas cartográficas colaborativas, cujo objetivo último seria a resistência e a transformação social. As atividades do grupo englobam oficinas criativas, produção gráfica e pesquisas, desenvolvendo-se a partir de uma rede dinâmica de colaboradores internacionais, que possibilitam a realização dos workshops em vários locais da America do Sul e da Europa. Os workshops são gratuitos e os guias práticos para a execução dos mapeamentos coletivos, bem como o material gráfico utilizado e os produtos obtidos com os mesmos, são disponibilizados no website do grupo, de forma a serem reutilizados, refeitos e reformulados.4 Tal prática expande a lógica comunitária para o amplo universo das redes virtuais, estimulando a socialização e a apropriação de material por meio das licenças Creative Commons, de forma a contornar tanto dificuldade física e geográfica de acesso a tais conteúdos, quanto a lógica da propriedade privada, que os torna ainda mais inacessíveis. As práticas de mapeamento realizadas pelos Iconoclasistas consistem em atividades de reflexão coletiva a respeito do território. Tais mapeamentos, produzidos em oficinas realizadas junto às comunidades locais, têm o princípio de subverter o lugar de enunciação da prática cartográfica formal, questionando os discursos dominantes a partir de relatos de experiências cotidianas. Os principais objetivos dos mapeamentos seriam, assim, ativar processos de territorialização, socializar práticas e pensamentos, estimular o espírito da coletividade e elaborar estratégias de transformação social. Nas oficinas de mapeamento promovidas pelo grupo, um primeiro momento é normalmente dedicado à produção de mapas individuais. Tal prática impulsiona, de maneira lúdica, a narração de experiências e memórias pessoais, trazendo à tona áreas do território e questionamentos por vezes invisíveis aos olhares externos. Uma segunda fase refere-se à superposição dos mapeamentos individuais. As composições gráficas geradas exibem padrões complexos de percepção coletiva e explicita abordagens e pontos de interesse comuns dos participantes. Nas fases que

4

Website do grupo Iconoclasistas: <http://iconoclasistas.net>


56 se seguem os participantes são normalmente divididos em grupos, cada qual tornando-se responsável pela produção de um tipo de mapa. Tomemos como exemplo a oficina realizada entre os dias 23 e 27 de março de 2013, em Caracas, Venezuela (Figura 12). Na ocasião os participantes foram divididos em dois grupos, um deles dedicou-se a um mapeamento da cidade com base em temáticas tidas como prioritárias - tais como desmatamento, violência, abandono, expulsão, etc. – e as suas conexões com problemas específicos do local. Foram, assim, desenhados, dentre outros aspectos localmente relevantes, fluxos de passagem, fronteiras simbólicas, bairros de forte identidade popular e áreas criticas. O outro grupo ficou responsável por mapear, em um papel vegetal colocado sobre o mapa da cidade, as diversas formas de resistências nela presentes: cooperativas, jardins coletivos, arte e cultura alternativas, práticas colaborativas e de reciclagem. No dia seguinte, os grupos tiveram suas ocupações trocadas, o material produzido por um no dia anterior foi passado às mãos do outro, que ficou responsável por completá-lo, e vice-versa. Feito isso, os mapas foram colocados um sobre o outro, e assim analisados e discutidos. Figura 12 - " Taller de mapeo colectivo en Caracas", 2013

Fonte : ICONOCLASISTAS, 2013 .

A técnica se mostra extremamente válida no sentido de promover discussões e questionamentos a respeito do território e das relações de poder nele presentes, e principalmente por constituir-se em instrumento de pensamento coletivo, no qual a cidade, suas fronteiras simbólicas e seus movimentos invisíveis de resistência são


57 considerados de forma espacializada, e critica. Tal método, assim como as demais discussões introduzidas neste item a respeito da atuação coletiva na cidade, constituirão a base para o desenvolvimento de atividades cartográficas, “banquetes”, rodas de história e oficinas, em evento a ser realizado em Belo Horizonte, enquanto conclusão prática deste trabalho. 2.2.4 A potência da superfície Estranho preconceito, contudo, que valoriza cegamente a profundidade em detrimento da superfície e que pretende que superficial signifique não de vasta dimensão, mas de pouca profundidade, enquanto que profundo ao contrário signifique de grande profundidade e não de fraca superfície. E, entretanto, um sentimento como o amor mede-se bem melhor, ao que me parece, se é que pode ser medido, pela importância de sua superfície do que pelo grau de profundidade (TOURNIER apud DELEUZE 1974, p. 12).

No pensamento de Deleuze, a superfície aparece enquanto espaço privilegiado de manifestação das forças e potências horizontais. O superficial é tido pelo filósofo enquanto contrário ao profundo, à verticalidade, ao linear e aos sistemas hierarquizados, assim como o sistema rizomático é definido, em sua obra “Mil Platôs”, como contraponto ao sistema-raiz. Segundo o autor, o rizoma seria uma espécie de ramificação superficial, “que se expandiria em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos”. Já a raiz, representação do profundo, apresentaria necessariamente uma forte unidade principal, essencial para a satisfação da ordem binária característica do sistema. Se no rizoma qualquer ponto pode e deve ser conectado a qualquer outro, sendo a ruptura de suas possíveis conexões a-significantes para o funcionamento do sistema, na raiz o princípio reside na fixação de um ponto principal, a partir do qual opera-se uma ordem hierarquizada, marcada pela dependência. A superfície, enquanto espaço de ramificação do rizoma, apresentaria, assim, um caráter múltiplo e desierarquizado. Seria palco de deslocamentos contínuos, no qual o estado perene de movimento geraria um constante processo de desterritorialização-reterritorialização dos pontos, formando redes dinâmicas. O espaço superficial seria, nesse sentido, um espaço nômade, de eterno devir. A questão da superfície poderia também ser analisada sob a ótica pictórica, por meio da grande relevância que o plano adquire no desenvolvimento da arte moderna. Segundo o crítico norte-americano Clement Greenberg, a arte moderna


58 nasce da superação da tentativa clássica de representar, de maneira ilusionística, espaços tridimensionais sobre um suporte plano. Para ele "as telas de Manet tornaram-se as primeiras pinturas modernistas em virtude da franqueza com a qual elas declaravam as superfícies planas sob as quais eram pintadas" (GREENBERG, 1988, p. 174). Stéphane Huchet (2012) retoma a análise deste processo a partir das idéias de Jean Clay a respeito da ruptura, na pintura moderna, da chamada “enfacialité”, ou seja, do atravessamento ortogonal da pintura pelo olhar. A percepção em-facial referida por Clay, relacionada aos pontos de fuga presentes na representação clássica, seria substituída, na pintura moderna, por uma percepção frontalizada, na qual a imagem torna-se capaz de resistir a qualquer tipo de perfuração transversal. Tal movimento caracteriza o que Huchet denomina expansão da planaridade pictórica, na qual o surgimento de uma resistência da superfície, geraria mudanças de percepção e alteraria o lugar tradicionalmente privilegiado do Sujeito frente à obra. Segundo ele, A invenção pela pintura moderna de uma resistência da superfície, de repente não-atravessável, gera mudanças de percepção e uma crise do Sujeito que, antes, dominava a representação, um Sujeito que o domínio do visível, ao permitir-lhe proceder a recortes, instituía e confirmava como detentor de um poder sobre o real. (HUCHET, 2012, p. 69).

Para Huchet, a reconquista da força da superfície bidimensional representaria, assim,

paralelamente

ao

desenvolvimento

de

dispositivos

propriamente

tridimensionais, um dos pólos das conquistas modernas no âmbito espacial. A fim de ilustrar tal pensamento, o autor recorre à obra Nymphéas (1920-26) de Claude Monet. Segundo ele, tal obra, exposta no Musée de L’Orangerie em Paris, anteciparia a idéia de continuum presente em obras posteriores, tais como as telas produzidas por Jackson Pollock na década de cinqüenta, através das quais, segundo Louis Marin, “o que o olhar descobre é sua própria intimidade desde muito tempo esquecida com o visível” (HUCHET, 2012, p. 50). O caráter envolvente da obra de Pollock e dos grandes formatos americanos no pós-guerra proporcionariam, segundo Huchet, a partir do plano e da cor, uma experiência “oceânica” ou “ambiental” do espaço. Nesse sentido, a expansão da bidimensionalidade poderia representar um tipo de experiência espacial gerada pela convergência entre a arte


59 pictórica e os suportes arquitetônicos, em um movimento no qual o muro e as superfícies parietais adquiririam papel fundamental. Na tentativa de transpormos estas considerações ao ambiente urbano, poderíamos considerar os muros e as superfícies da cidade enquanto campos de inscrição pictórica ou simbólica, suportes parietais para manifestações artísticas em um sentido amplo. Enquanto tal, as superfícies urbanas - limites físicos entre interior e exterior na cidade - poderiam ser apropriadas de forma a dotar a arquitetura e a cidade de novas leituras, constituindo espaços de deslocamentos contínuos, de reterritorialização e reorientação de significações. Walter Benjamin aponta, já na década de vinte do século passado, para um processo de intensa proliferação de escritos nas superfícies das grandes cidades. Tais escritos, no entanto, deviam-se sobretudo à atividade midiática, impulsionada pelo amplo desenvolvimento das indústrias de bens de consumo da época. Em 1928 o autor escreve: ”nuvens de gafanhotos de escritura, que hoje já obscurecem o céu do pretenso espírito para os habitantes das grandes cidades, tornar-seão mais densas a cada ano seguinte.” (BENJAMIN 1997, p. 28 citado em MARQUEZ 2000, p. 103). Segundo Marquez, a apropriação publicitária das superfícies urbanas, cuja intenção principal residiria na doutrinação dos gostos e comportamentos do homem médio, gerariam um estado de passividade forçada, no qual os indivíduos raramente seriam levados à interação com o meio ou à uma análise critica do mesmo. A atividade

publicitária

massiva

e

repetitiva

constituiria,

assim,

espaços

excessivamente neutros, ou o que Marc Augé denomina não-lugares. A partir dessa perspectiva, os anúncios não criariam identidades locais, mas ao contrario, contribuiriam propositalmente para a formação de uma população homogeneizada, destituída de suas especificidades. Seria como se a cidade se encontrasse revestida por uma capa neutralizante e doutrinária, nos quais os pontos de identificação coletiva estivessem em processo contínuo de flutuação. A potência da superfície na cidade é usada, neste caso, em prol da instituição de comportamentos e valores ligados ao consumo. (MARQUEZ, 2000). Tentativas de se opor a este quadro podem ser observadas na obra de vários artistas contemporâneos. Dentre estes, destacaremos as artistas norte-americanas Barbara Kruger e Jenny Holzer, cujas obras, em contraponto à prática corrente dos meios de comunicação, valem-se da superfície urbana enquanto potente meio de


60 crítica e reflexão. O trabalho de Kruger baseia-se na utilização de outdoors e na apropriação da linguagem midiática para a subversão do próprio conteúdo publicitário. A artista inscreve, sobre imagens amplamente difundidas pelos meios de comunicação, frases impactantes que estimulam o pensamento crítico a respeito da individualidade, do controle, do desejo e do feminismo, fazendo duras críticas aos mecanismos de doutrina presentes na sociedade de consumo. Exemplos de sua atuação no espaço urbano podem ser vistos na Documenta VII de 1982, quando a artista espalhou, pela cidade de Kassel, pôsteres nos quais imagens publicitárias eram acompanhadas de frases como “Your moments of joy have the precision of military strategy.” Figura 13 – Imagem sem nome

FONTE : KRUGER, 1980.

Se as obras de Kruger baseiam-se principalmente no poder simbólico das imagens unidas a frases de impacto, o enfoque da obra de Holzer reside essencialmente no texto. Os escritos feitos pela artista, que adquirem dimensões arquitetônicas ao serem projetados sobre diversas superfícies da cidade, geram deslocamentos, mesmo que momentâneos, na significação dos locais nos quais se inserem (Figura 14). Além das superfícies dos edifícios, Holzer apropria-se, com seus textos, também de painéis comumente utilizados para a transmissão de comunicados oficiais, subvertendo a sua função inicial de condicionamento e atribuindo-lhes, ao invés disso, um caráter de lugar. Projetados sobre as superfícies dos prédios ou presentes em painéis luminosos, os escritos de Holzer pretendem, essencialmente, instigar os passantes de forma a retirá-los de sua posição de indiferença cotidiana, gerando inquietações que os convidem a experimentar uma posição critica frente à nova realidade que lhes está sendo apresentada. Segundo Marquez, sua obra “não achata o corpo da cidade, mas seve a ele como uma pele viva, dinâmica” (MARQUEZ, 2000, p. 16) Assim, o trabalho de Holzer aponta para novas possibilidades de apropriação efêmera da superfície urbana, capazes de gerar situações que subvertem o contemplar passivo do passante, estimulando-o a


61 experimentar reflexões críticas sobre a sua condição de habitante do espaço e da realidade da cidade. Figura 14 – "Arno", 1997

Fonte: MARQUEZ, 2000

Paralelamente à incursão de obras artísticas nos planos da cidade, destacase outra modalidade de apropriação do espaço urbano a partir de suas superfícies. Trata-se das inscrições urbanas, que diferenciam-se tanto das imagens publicitárias quanto das apropriações artísticas críticas, pelo fato de serem produzidas através da ação da população comum, em um movimento ativo e espontâneo, de apropriação da cidade e de seus muros. Se a arte crítica de Kruger e de Holzer apresenta importantes avanços no que se refere ao deslocamento do lugar do sujeito de simples observador passivo – “doutrinado” frente à paisagem dominada por imagens publicitárias vazias e neutralizantes - para um sujeito pensante e critico, é no ato de inscrever-se na cidade que este sujeito torna-se verdadeiramente ator do processo de construção de seus significados. Assim, apesar de muitas vezes marginalizadas, as inscrições urbanas representam possibilidades de apropriação efetiva do espaço por parte de grupos que muitas vezes encontram sérias barreiras físicas e simbólicas ao fazê-lo. A partir destas inscrições constrói-se, paulatinamente, uma cidade informal, que ao se superpor à cidade formal, aos seus anúncios, edifícios, muros e limites, reflete a diversidade, pretensamente camuflada pelo espetáculo, que abarca, inexoravelmente, os grandes centros urbanos. Nesse processo, os


62 símbolos inscritos constituem testemunhos de uma história viva e dinâmica, de uma verdade conflitante e heterogênea, que resiste à tentativa latente de transformação da cidade em cenário consensual e acrítico. A respeito dessa questão, destaca-se o estudo feito por Hygina Bruzzi, na década de noventa, a respeito dos graffiti nova-iorquinos e de sua relação com as inscrições produzidas na cidade de Belo Horizonte, principalmente a partir do seu contato com o grupo de grafiteiros “Posse” de Santa Lúcia. Segundo a filósofa, que utiliza as teorias de Jean Baudrillard como base para sua análise, as inscrições referem-se a questões como identidade e reconhecimento, necessárias para uma apropriação efetiva do espaço urbano e o exercício de uma cidadania plena. Os símbolos inscritos representariam, para ela, uma forma de reivindicação ao direito ao simbólico, que apresenta-se na cidade formal enquanto exclusividade da classe letrada. O cerne da questão das inscrições residiria, assim, na busca pelo domínio de uma linguagem comum por parte dos grupos marginalizados, que concedesselhes a possibilidade de influir na vida política da cidade. Em suas palavras: No nosso caso, onde a violência é direta e muda, e a passagem ao ato não é mediada por nenhuma fala ou escrita legitimadora, esse tipo de inscrição, vem, a contrapelo, demandar o mínimo de reconhecimento e de direito à participação na civitas, através da reivindicação, não só do direito à palavra, mas de algo que a precede: o aprendizado da palavra. Pronunciar e pronunciar-se: é a partir daí que tem início a cidadania e a vida política, ou seja, a vida na polis.(BRUZZI, 1997, p. 23).

Concluímos, assim, que se pensadas a partir das inscrições urbanas, as superfícies que conformam a paisagem da cidade podem constituir lugares ativos e dinâmicos, nos quais desenvolve-se um processo vivo de criação e de resistência. Nesse sentido, acredita-se que a apropriação superficial por meio das inscrições contribui para que uma percepção frontalizada da cidade de certa maneira “complete” àquela tridimensional, tornando os volumes e relevos urbanos passíveis de novas leituras e significações. A superfície aparece, assim, enquanto espaço de formação de redes rizomáticas, nas quais as modificações contínuas caracterizam processos ativos de reorientamento da realidade urbana. Acredita-se, dessa forma, que a valorização dos planos urbanos enquanto meio de participação e de comunicação de grupos marginalizados, seja de grande importância para o processo de preservação da diversidade e da vida política nas cidades contemporâneas. Tais idéias serão retomadas na Capítulo 4 deste trabalho, quando as afrontaremos de


63 maneira prática, a partir da proposição de formas de apropriação das superfícies da área do baixio do Viaduto Santa Tereza, em Belo Horizonte. Faremos isto por meio da projeção de filmes e através da promoção de oficinas que estimulem a inscrição mural enquanto forma de identificação e apropriação espacial na cidade. 2.3 Arquitetura A fim de introduzir a idéia de arquitetura a ser utilizada como base para o nosso estudo, analisaremos alguns exemplos emblemáticos de práticas e teorias arquitetônicas que ocorrem desde o pós-guerra até os dias de hoje. Os exemplos escolhidos buscam elucidar o entendimento da arquitetura, ciência pública por excelência, como instrumento de construção de espaços nos quais o foco encontrase no indivíduo enquanto ser social, e na sua experiência coletiva do espaço urbano, em toda a sua diversidade e fragmentação. Contemplaremos, primeiramente, o trabalho de cinco pensadores que, impulsionados pela dinâmica caótica que as cidades passaram a apresentar desde o fim da Segunda Guerra Mundial, pretenderam pensar espaços sensíveis à ação do indivíduo e à mudança constante, em contraponto à arquitetura eterna e estática que vinha sendo realizada até então. Apesar de acreditarmos na relevância das práticas destes arquitetos enquanto introdutoras de um pensamento arquitetônico que considera as contingências da cidade e do seu uso, acreditamos que haja, ainda, um importante passo a ser dado no sentido de dotá-las de um caráter efetivamente participativo. É por esse motivo que passaremos, em seguida, à análise de grupos de arquitetura contemporânea que mais do que apenas contemplar a ação do indivíduo enquanto variável para a concepção do projeto, passam a incorporar tal ação de maneira efetiva, tanto na elaboração quanto na construção dos espaços, dotando a arquitetura de um caráter colaborativo e diluindo a função criativa, antes centrada na figura do arquiteto, à comunidade. As idéias apresentadas neste capítulo serão utilizadas enquanto base para a análise do projeto arquitetônico do “Circuito Cultural da Praça da Estação", realizado a partir da iniciativa da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte, de maneira pretensamente colaborativa. Tal análise será feita no capitulo 4 deste trabalho, que tem como foco o baixio do Viaduto Santa Tereza, área integrante do


64 referido projeto. 2.3.1 Arquitetura para a ação Os centros urbanos enfrentaram, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, um período de crescimento espacial e demográfico acelerados, que geravam, continuamente, novas necessidades e programas. As flutuações dos preços das propriedades influenciavam a vida útil das edificações, tornando o seu uso rapidamente obsoleto, e a busca por menores custos e mais segurança esvaziava as áreas centrais, alargando continuamente o perímetro das cidades. Este ambiente urbano de dinâmica nunca antes vista, em que tudo parecia desmanchar-se com a mesma facilidade e rapidez com que era concebido, tornou-se, por sua volatilidade, um suporte cada vez mais complexo para as estruturas arquitetônicas, tradicionalmente concebidas para representarem a eternidade. Tal contexto urbano caótico impulsionará o início da discussão, hoje ampliada e dotada de novos elementos, sobre o que de fato deveria representar o fazer arquitetônico em um mundo irremediavelmente fadado à instabilidade e dotado de dinâmicas cada vez mais complexas. (SCHULZ-DORNBURG, 2002). Dentre os pensadores que, desde o fim da década de sessenta, enfrentaram a difícil tarefa de encontrar respostas para o universo efêmero e incontrolável das cidades em vias de expansão, encontram-se: Gordon Matta-Clark, com suas incursões físicas nos muros da cidade; o grupo austríaco Haus-Rucker-Co, a partir de suas estruturas efêmeras; o suíço Bernhard Tschumi, com sua teoria dos eventos; Rem Koolhaas, em sua análise da caótica Manhattan e Vito Acconci, com seus projetos cambiantes. Nascido em 1943 na cidade de Nova York, Matta-Clark desenvolveu seus trabalhos no período que vai do fim dos anos sessenta ao fim dos anos setenta, em um contexto histórico marcado por fortes transformações conceituais no que se refere à produção espacial. A sua obra, representativa da crescente aproximação entre as esferas da arte e da arquitetura – e por isso já mencionada anteriormente no capítulo dedicado à arte, enquadra-se no bloco revisionista da época na medida em que, dentre outros aspectos, caracteriza-se pelo estabelecimento de íntima relação com o ambiente e com a ação dos que nele habitam. Matta-Clark busca, assim, em uma Nova York dominada pelo reducionismo minimalista, dar ênfase a


65 formas expressivas e multidimensionais, promovendo incursões na cidade que objetivam,

em

última

instância,

gerar

novas

percepções

espaciais

e

questionamentos por parte dos que a vivenciam. Se no capítulo anterior nossa análise sobre sua obra teve como foco o questionamento da cidade enquanto organismo vivo, no qual as frestas e interstícios são tratados como pontos sintomáticos de reflexão e atuação, neste capítulo nos ateremos à discussão propriamente sobre as estruturas arquitetônicas que compõe o ambiente urbano. Este aspecto do trabalho de Matta-Clark nos interessa especialmente, neste ponto da análise, por questionar especificamente o aspecto “arquitetural” dos muros, janelas e demais estruturas físicas que não só incluem-se na paisagem da cidade como elementos essenciais, mas influem decisivamente sobre a experiência que se têm da mesma. O grupo Anarchitecture, do qual Matta-Clark fazia parte, tinha como objetivo a concepção de espaços e estruturas menos permanentes e mais flexíveis às mudanças constantes da vida urbana. Tal grupo defendia, assim, uma espécie de anti-arquitetura, que adquirisse uma postura ativa frente as transformações culturais e sociais da cidade. Por ser passível de modificações correntes, o grupo acreditava que esse tipo de “arquitetura” seria capaz de adaptar-se ao cenário volúvel dos centros urbanos com mais facilidade, sendo, portanto, mais coerente com o mesmo do que a arquitetura convencional. A idéia preconizada pelo grupo era, assim, de uma produção espacial caracterizada por um processo aberto e contínuo de transformação, na qual a nova medida seria a luz e os limites seriam representados pelas paredes. A idéia de Matta-Clark sobre a arquitetura era, assim, alternativa à simples realização de obras que apresentassem uma solução construtiva para a cidade, de conteinerizização do seu espaço útil. A arquitetura que pretendia executar não era dotada de monumentalidade e sua qualidade residia, ao contrário, justamente no que

ele

denominava

aspecto

non-u-mental.

Contrariamente

às

práticas

arquitet6onicas convencionais, o arquiteto interessava-se principalmente pela ambiguidade gerada pelos espaços negativos, pelos vazios metafóricos e pelos intervalos. Anarchitecture tornou-se, assim, um importante instrumento de questionamento conceitual e político, já que tinha como foco a idéia de ruptura (física e simbólica) dos limites pré-estabelecidos. Em Interseção Cônica (Figura 15), Matta-Clark recortou formas circulares nas


66 paredes externas de uma casa parisiense, gerando espaços negativos de forma a questionar as relações estabelecidas entre o interior da edificação e seu espaço externo. Por “acrescentar” a partir da remoção, tal forma de atuar no espaço invertia a lógica construtiva corrente e era, segundo ele, não uma forma de impor adições sobre a estrutura, mas ao contrário, uma tentativa de fazer com que ela se revelasse. A arquitetura era tratada, assim, como um elemento de função quase infra-estrutural, usada enquanto próprio meio de questionamento de suas práticas tradicionais. Se um dos objetivos primordiais da arquitetura seria a criação e manejo de limites físicos, com o intuito de conformar ambientes fechados ou não, o trabalho de Matta-Clark leva essa discussão ao extremo, tratando os muros e paredes mais do que apenas enquanto barreiras físicas, mas como suporte para que experiências perceptivas e reflexões criticas aconteçam. A arquitetura seria, assim, pensada enquanto suporte - tal como o ambiente urbano - fragmentário, a ser (des)construído com base na vivência espacial e na formação crítica dos que nele atuam, e são, portanto, os verdadeiros responsáveis por dotá-lo de sentido. Figura 15 - "Interseção Cônica", 1975

Fonte : BORTULUCCE, 2011


67 Assim, se em Reality Properties: Fake States, analisada no capítulo precedente, Matta-Clark lida com espaços intersticiais urbanos, em Interseção Cônica seu interesse se volta especificamente para a análise dos espaços negativos a partir do caráter tectônico das estruturas arquitetônicas. Destaca-se no entanto, que tanto em uma obra quanto na outra, a presença sintomática dos vazios é tida como princípio para o questionamento dos modos correntes de construção espacial, tanto na escala urbana, quanto arquitetônica. Assim como Matta-Clark, o grupo austríaco de arquitetura Haus-Rucker-Co, fundado em 1967 por Laurids Ortner, Gunter Kelp (Zamp) e Klaus Pinter, também partia do pressuposto comum de que a arquitetura deveria deixar a sua função passiva e estática para adquirir uma qualidade ativa. Para eles a "arquitetura cotidiana" fabricada em grande parte pelos publicitários e agentes da comunicação havia, há muito, substituído a arquitetura tradicional em sua tarefa de dotar o ambiente urbano de identidade e estética própria. Para o grupo, "a arquitetura acabaria reduzida a uma função de apoio, como em um sistema de plantio em espaldeira, funcionando como uma armação de suporte para a expansão do crescimento dos sinais informativos" (SCHULZ-DORNBURG, 2002, p. 17). A solução para que a arquitetura retomasse a sua identidade e readquirisse uma função condizente com o contexto urbano seria, segundo eles, uma brusca ruptura com os padrões tradicionais, com relação tanto às técnicas construtivas quanto à própria razão de ser do objeto arquitetônico. Para o grupo, a nova arquitetura deveria constituir-se a partir de estruturas efêmeras, provisórias e de baixo custo, de forma que ao mudarem as necessidades sociais, o objeto pudesse ser rapidamente transformado ou substituído. O grupo defendia o Mind-Expanding-Program e trabalhava, principalmente, na produção de soluções urbanas visionárias e de protótipos que materializavam novas idéias de habitação. Na obra Ballon for Two (Figura 16), apresentada em Novembro de 1967, uma estrutura pneumática, cujo espaço interno comportava duas pessoas, foi pendurada em um edifício residencial no Apollogasse 3, em Viena. Em Janeiro de 1968, a obra Connexion-Skin representava um espaço também pneumático que poderia ser usado como acessório para a habitação ou protótipo para uma casa esférica inflável e intimista.


68 Figura 16 - "Balloon for Two", 1967

Fonte : WEIBEL, 2005

Gunter Zamp Kelp, em seu diário de 1983, escreve sobre o fascínio que a West Side Highway de Nova York exerce sobre o grupo, na medida em que tal via arterial, ora abandonada, teve suas funções modificadas e redefinidas pelos próprios habitantes do local, em um movimento no qual a arquitetura exerce papel de apoio para que os usuários, verdadeiros atores do processo, adquiram o papel principal de definição do uso do espaço. A West Side representa, assim, o exemplo espontâneo da teoria do grupo, de que a arquitetura deveria servir como uma espécie de suporte, ativo, para as transformações sociais na cidade. A tentativa de encontrar novas formas de arquitetura capazes de responder à instabilidade crescente das metrópoles influenciou também

Rem Koolhaas,

arquiteto e teórico holandês, que analisa, em seu livro Delirious New York (1978), a condição da cidade contemporânea a partir do exemplo de Nova York. Para Koolhaas o caráter fundamentalmente fluido das metrópoles atuais, encontra-se em profunda contradição com a natureza representacional e estática da arquitetura convencional. Sendo a arquitetura planejada incapaz de prever e controlar as contínuas transformações sociais, as estruturas arquitetônicas acabam por se tornar reféns da continua mutação urbana, perdendo, assim, rapidamente a sua razão de existir. Dada a impossibilidade de previsão e controle da atividade construtiva nas


69 metrópoles, o teórico defende a idéia de que devemos trabalhar para controlar o vazio. O arquiteto propõe, assim, que os processos urbanos sejam canalizados em mega estruturas periféricas de forma a deixar, na cidade, espaços vazios nos quais o imprevisível e o inesperado tenham condições de se manifestar. Bernhard Tschumi, arquiteto e teórico suíço, dá um passo à frente à idéia de que a arquitetura deva servir de suporte para as transformações sociais e culturais ao incorporar, além destas, a materialização do movimento como aspecto inerente ao fazer arquitetônico. Segundo schulz, "não existe arquitetura sem ação, programa e evento. A arquitetura deve lidar com o movimento e a ação no espaço." (SCHULZDORNBURG, 2002, p. 17). Em seu projeto de 1982 para La Vilette, em Paris, o arquiteto desmaterializa a idéia de edifício-objeto, criando uma estrutura fragmentada, que garante um impulso constante ao visitante, confrontando-o continuamente rumo ao movimento e à surpresa. A visita ao parque La Vilette (Figura 17) deve ser feita de maneira sucessiva, já que a conformação espacial das diversas estruturas que o constituem - as folies não permitem que o visitante obtenha, em nenhum momento, a visão do todo. A impossibilidade de visualização da obra de maneira integral subverte a lógica dos edifícios clássicos, nos quais a primeira visão da estrutura é capaz de situá-la em nosso sistema simbólico de referências, o que dispensa, por exemplo, que o visitante percorra toda a obra para compreendê-la. A lógica clássica preconiza, assim, uma percepção simultânea do edifício, na qual a ordem dominante permanece onipresente em todo o processo. Em La Vilette, ao contrário, o visitante sente-se instigado a passar de uma folie a outra, em uma experiência espacial na qual tempo e ritmo adquirem papel fundamental.


70 Figura 17 - " Folies Parc de la Villette", 1982

Fonte :TSCHUMI,1982

Além disso, a própria concepção das folies é feita de forma a gerar possibilidades múltiplas de apropriação. Essas estruturas vermelho-fogo, que funcionam como espécies de pavilhões, possuem formas inusitadas que pretendem, por sua indefinição funcional, “permitir que novas atividades, até o momento inimagináveis, ocorram.” (TSCHUMI, apud SÁ, 2010, p. 156). Assim, os próprios fragmentos que conformam o ambiente descontínuo do parque também apresentam, na sua concepção, a idéia de movimento e de liberdade de apropriação, partindo da premissa de que a arquitetura só se completaria a partir do uso e das significações que apropriações diversas lhe dariam, ao longo do tempo. Apesar de a eficácia desse método poder ser questionável em termos de resultados efetivos, o que nos interessa no momento é que, mesmo se vista como tentativa embrionária, tal projeto apresenta fortes contribuições para a inclusão do movimento e da experiência dos usuários na concepção dos espaços e das relações arquitetônicas.


71 Também a obra de Vito Acconci pode ser vista enquanto exemplo válido da incursão, na arquitetura, de qualidades sensíveis à ação dos seus “habitantes”, permanentes ou momentâneos. Importante representante da body art, da arte ativista e da critica institucional na década de 70, Acconci passa, nos anos 90, a trabalhar especificamente com a arquitetura. Em vídeo gravado em 2013, no qual é questionado sobre o que, para ele, caracterizaria a arte e a arquitetura, Acconci declara: Porque a Arquitetura é usada, eu acho que um dos grandes valores disso é que ela pode possivelmente ser mal usada, e uma vez que ela é mal usada, penso que o usuário vai um passo, um passo adiante, talvez seja um passo equivocado, porém é um passo adiante ou diferente do que o projetista, que o arquiteto deram (ACCONCI, 2013).

Nesse sentido, poderia ser intuído que o seu interesse pela arquitetura advém, sobretudo do fato de que esta seria concebida para ser objetivamente usada, e assim de certa forma modificada, pelos passantes ordinários da cidade. Observa-se, no entanto, uma nítida contribuição de suas experiências artísticas anteriores em seus trabalhos “arquitetônicos” recentes, nos quais a arquitetura se conforma, muitas vezes, enquanto verdadeiro campo performático e critico. Em Swarm Street (Figura 18), por exemplo, com o objetivo de estabelecer espaços ativos, que de certa forma respondam à passagem dos indivíduos, Acconci dilui a superfície em elementos fragmentários, reduzindo-a a um agrupamento de partículas mínimas, cuja conformação se transforma de acordo com o movimento humano. Essa obra, atualmente em processo de execução na cidade de Indianápolis, nos Estados Unidos, foi concebida para o espaço de um túnel e é formada por cerca de mil dispositivos de LED incrustados no pavimento e outros mil instalados em uma estrutura de aço elevada. À medida que os passantes caminham ou andam de bicicleta pelo local, as luzes são ativadas por meio de sensores, gerando espécies de enxames ou “swarm” que acompanham o seu movimento. Os enxames luminosos unem-se quando os passantes encontram-se próximos ou distanciam-se quando estes se separam. Tal projeto pode ser um bom meio de ilustrar a tentativa, por parte de Acconci, de dotar a arquitetura de um caráter mais ativo, sensível às mudanças contínuas às quais os ambientes urbanos estão sujeitos.


72

Figura 18 – "Swarm Street", 2012

FONTE : ACCONCI, 2012.

No seu projeto para a fachada do Storefront for Art and Architecture, em Nova York (Figura 19), Acconci idealiza, em parceria com Steven Holl, uma superfície dinâmica e fragmentada, passível de ser manejada e, assim, capaz responder às necessidades cambiantes da instituição. Storefront for Art and Architecture é uma organização sem fins lucrativos, engajada no avanço de posições inovadoras na arquitetura, na arte e no design. A partir de um programa que engloba conferências, debates, exposições variadas, projeções de filme, dentre outras atividades, a instituição preconiza o diálogo e a multidisciplinaridade, promovendo aberturas nos campos da arte e da arquitetura, em todos os seus sentidos. O prédio, situado em um local de interseção entre a China Town, a Little Italy e o Soho, é bastante estreito, sendo a fachada um de seus elementos mais representativos. O projeto de re-elaboração da mesma, para o qual Acconci e Holl foram comissionados, adquire assim, forte caráter simbólico para a instituição.


73 Figura 19 - "Storefront for Art and Architecture", 1993

Fonte: ACCONCI ; HOLL, 1993

O projeto dos arquitetos consistiu na concepção de uma estrutura recortada, feita de concreto e fibras recicladas. Os recortes fazem com que a fachada adquira uma conformação tipo quebra-cabeça, cujas partes, passíveis de serem manejadas de acordo com as necessidades, encontram-se em constante transformação. Ao serem abertas ou entreabertas, esses recortes geram conformações espaciais ora horizontais, ora diagonais, desconstruindo a idéia vertical e hermética de fachada, a partir da sua dissolução em meio à calçada. Tal projeto tem como premissa o questionamento critico a respeito dos limites urbanos e do caráter por vezes exclusivo, que permeia as galerias de arte fechadas e sem conexão com o urbano. O último exemplo do trabalho de Acconci aqui apresentado é o seu projeto (não realizado) para o evento Arte-Cidade de 2012, de curadoria de Nelson Brissac. Este evento, que ocorre desde 1994 na cidade de São Paulo, busca reunir arquitetos e artistas na tentativa de apontar soluções alternativas para áreas urbanas criticas. Em suas quatro edições, pretendeu-se, com base na ativação de espaços intersticiais e na dinamização e potencialização de práticas heterogêneas, identificar linhas de forças e elaborar respostas frente ao contexto sócio-espacial complexo da megacidade. Especificamente em sua segunda edição, que teve como foco a Zona Leste de São Paulo, Brissac e Acconci idealizaram uma espécie de habitação invertida para os moradores de rua. (Figura 20) Apesar de não construída conforme o projeto, a idéia de Acconci e Brissac mostrava-se interessante, por utilizar a estrutura do Viaduto enquanto parte da obra e por aliar a necessidade de abrigo à vontade de entretenimento. Segundo Acconci: [...] desenhamos uma espécie de casa invertida, em que um lado do teto se estendia até o chão e servia de escada para que as pessoas subissem e entrassem neste prédio de cabeça para baixo, que não precisava de teto porque teria a autopista do viaduto como um. Propusemos diferentes usos


74 para aquilo: poderia haver uma tela de televisão e os pisos diagonais poderia servir como arquibancadas de um anfiteatro, ou poderia haver um playground para crianças (ACCONCI, 2009).

Figura 20 – “Arte-Cidade“

Fonte : ACCONCI ; BRISSAC, 2012

Observa-se que o projeto conformava-se, assim, enquanto espaço híbrido de apropriação, pretendendo constituir espacialidades potentes, capazes de abarcar usos variados. Conclui-se, após a análise desses cinco arquitetos e artistas, um nítido elo de ligação entre as suas teorias. Tanto para Gordon Matta-Clark, e sua idéia de que a arquitetura constitui-se em uma seqüência de ocorrências, quanto para o grupo Haus-Rucker-Co, para o qual esta se realiza através da experiência, para Koolhaas, que trata os "vazios" como inerentes ao fazer arquitetônico, para Tschumi, que considera que este não pode existir sem os eventos e para Acconci, em sua busca por estruturas e superfícies sensíveis à ação, a arquitetura encontra-se profundamente influenciada pela ação do indivíduo, que passa a ser agente principal para a sua concepção. Assim, se Schulz-Dornburg fala na produção de uma arquitetura reativa, acreditamos ao invés disso, que o que se produz a partir dessas teorias é uma arquitetura ativa, que interaja de forma positiva com o meio e, principalmente, com as necessidades locais dos indivíduos.


75 2.3.2 Arquitetura via colabor-ação Passemos agora à análise de iniciativas nas quais, de agente cuja ação é considerada para a concepção dos projetos, o indivíduo – ou no caso, a coletividade, passa a ser integrante do ato de criação e/ou de construção dos mesmos. Como exemplo paradigmático dos grupos de arquitetura que fazem do ato colaborativo a sua prática, analisaremos o coletivo equatoriano Al Borde e o espanhol Todo por la Práxis. Al Borde é um grupo colaborativo e experimental fundado em 2007 na cidade de Quito, no Equador. O trabalho do grupo desenvolve-se com base em situações e materiais pré-existentes e na busca, com base na consideração dos problemas a partir de uma perspectiva integral, por soluções arquitetônicas objetivas, simples e eficientes. O método de trabalho do grupo caracteriza-se, segundo um de seus fundadores, David Barragán, essencialmente pela busca por perguntas corretas para cada problema e situação apresentados. A motivação de seus trabalhos não reside, assim, na procura por estilos específicos ou no seguimento de tendências, mas na busca por soluções capazes de responder de maneira simples às percepções subjetivas dos usuários em cada local e situação. Os projetos são construídos a partir da colaboração da comunidade, utilizando sistemas construtivos geralmente híbridos, que unem técnicas tradicionais e contemporâneas. A colaboração interdisciplinar, a inclusão do trabalho da comunidade e a promoção de oficinas de sistemas construtivos simples e baratos para a população, são assim, alguns dos métodos utilizados pelo grupo. A Escola Nova Esperança (Figura 21), por exemplo, realizada em 2009 na vila de pescadores El Cabuyal com um orçamento de apenas 200 dólares, foi executada a partir de material encontrado no local e mão de obra voluntária. O projeto foi feito como resposta ao pedido de um professor voluntário, de forma a responder a uma carência local por um estabelecimento de ensino. O desenho da escola foi pensado a partir do método educativo a ser desenvolvido ali, que caracteriza-se por ações dinâmicas e pela íntima relação com o ambiente ao redor. O espaço buscou, assim, constituir-se enquanto importante elemento de estímulo à imaginação e à criatividade das crianças. Os métodos construtivos basearam-se em processos tradicionalmente utilizados no local, tais como base de madeira sobre palafitas, paredes de bambu, estrutura de madeira e o teto feito de palha entrelaçada. A


76 escola representa uma tentativa bem sucedida de impulso para a união da comunidade e o aumento da auto-estima coletiva. Figura 21 – “Escola Nova Esperança”, 2009

Fonte : AL BORDE, 2009

O RUS Quito5, projeto realizado em parceria com o coletivo Basurama, durante o Encuentro de Arte Urbano AL ZUR-ICH 2011, adquire especial relevância para este estudo, já que alia práticas artísticas à participação comunitária na construção de um espaço público que fomente o intercâmbio cultural. O Encuentro de Arte Urbano AL ZUR-ICH, promovido pelo coletivo de arte contemporânea Tranvía Cero, é um encontro independente que pretende promover a arte enquanto instrumento de fortalecimento das identidades locais das comunidades suburbanas, ao sul de Quito. O trabalho desenvolvido pelo Al Borde para esta ocasião teve como escopo a construção - ou o condicionamento - de um espaço de caráter público, onde fosse estimulado o encontro entre diferentes agentes, que normalmente não trabalham juntos. O intuito do projeto, de fomentar a cooperação mútua e a formação de redes, advém de uma carência observada na própria cidade de Quito, na qual nota-se uma forte segregação sócio-espacial entre as regiões Norte e Sul, separadas tanto fisicamente, pelo Monte del Panecillo, quanto de maneira simbólica, pelas fortes diferenças sociais existentes. A idéia do grupo era, assim, a de gerar, a 5

O RUS Quito integra o projeto RUS (Resíduos Urbanos Sólidos), concebido pelo coletivo Basurama, que consiste em um trabalho de arte pública na América Latina. Tal projeto trabalha a partir de três linhas: a criação de uma rede de colaboração entre artistas locais, o estudo de fenômenos relacionado com o lixo específicos da América Latina e a intervenção no espaço público. (texto baseado em conteúdo disponível em <http://basurama.org/proyecto/rus-residuos-urbanossolidos>


77 partir da participação ativa da comunidade, um espaço urbano que servisse como uma espécie de marco de cooperação e integração, movido pelo estímulo ao convívio e às trocas mútuas na cidade. O local escolhido para a realização do projeto foi o centro cultural “Pacha Callari”, situado em uma região chamada Ferrovia Alta, ao sul de Quito. O centro cultural consistia em um pequeno espaço construído e auto-gerido pela comunidade local, no qual se realizavam atividades relacionadas à dança folclórica, à música e uma escola de artes. O processo projetual proposto pelo Al Borde iniciou-se com duas jornadas de intenso diálogo com a comunidade, nas quais se discutiu a respeito da identidade e do passado da área e dos sonhos da população para o seu futuro. Foram desenvolvidas dinâmicas coletivas focadas no esclarecimento dos meios com os quais aquela população se relacionava com o território, qual a sua percepção a respeito do centro cultural, e quais as suas necessidades, medos e inseguranças a respeito daquele espaço. Tal processo foi pautado pelo surgimento de várias questões, que pretendiam discutir o que seria, efetivamente, um trabalho em comunidade. Pero, ¿qué es exactamente ” una comunidad”? ¿qué significa trabajar con “la comunidad”? ¿qué papel tiene el arte en este tipo de proyectos procesuales? ¿y la arquitectura?. Muchas preguntas por responder en el proceso y muchas más por generar (BASURAMA, 2011).

Também durante essa fase inicial do projeto, procedeu-se à busca por materiais descartados, a serem usados enquanto matéria-prima para a execução do mesmo. Foram conseguidos, junto a empresas locais, pôsteres publicitários de lona, uma espécie de castelo inflável, e paletes de madeira. Um segundo momento foi dedicado às intervenções físicas propriamente ditas (Figura 22). Por razões de segurança, a comunidade optou por manter o gradeamento que envolve o espaço aberto do centro cultural. Como deveriam permanecer, as grades foram então, usadas enquanto suporte para a realização de bancos e abrigos, montados a partir de madeiras e lonas. A presença de tais dispositivos subvertiam de certa forma o caráter segregatório da grade, dotando-a, contrariamente, de qualidades referentes ao convívio, à permanência e à troca.


78 Figura 22 – “Construção", 2011

Fonte : BASURAMA, 2011

O processo construtivo se deu todo in loco, sendo os dispositivos pensados e desenhados a partir da disponibilidade dos materiais e do estudo de suas possibilidades de uso, à medida em que eram executados. Os métodos utilizados foram bastante simples e engenhosos, tais como a utilização de lonas retorcidas enquanto cordas, a partir das quais os equipamentos foram presos e apoiados no gradeamento existente. Destaca-se a presença ativa da comunidade durante todo o processo, que participou não só do trabalho construtivo propriamente dito, mas também da sua elaboração simultânea. Após a construção desses “suportes físicos”, passou-se ao terceiro passo do projeto, cujo objetivo seria dotar esses dispositivos de caráter relacional. Isso foi feito a partir da experimentação das novas possibilidades surgidas no lugar, em um processo que visava o cruzamento de agentes culturais diversos e a promoção, assim, de uma rede cultural local, capaz de dotar de vida e sentido as intervenções físicas feitas. Dentre as atividades incluídas nessa terceira fase, enquadram-se uma oficina de grafismo, liderada pelo mestre David Hinojosa. Tal atividade promoveu o aprendizado de técnicas de tipografia, posteriormente aplicadas pela população em inscrições feitas na fachada do centro cultural, de maneira a informar os passantes das atividades desenvolvidas no local (Figura 23). Além disso, foram promovidas rodas de história, projeção de filmes, danças folclóricas e um concerto musical


79 móvel pelo bairro. Destaca-se também nessa fase do projeto, a iniciativa, proposta pelo grupo El Bloque, de colocação de duas placas na grade que divide o centro cultural do bairro, ambas apresentando a mesma informação ADVERTÊNCIA, mas a partir de duas abordagens distintas. Em uma delas lia-se “este espaço é seguro porque é o bairro” e na outra “este espaço é seguro, está organizado e sob vigilância”. A dinâmica proposta pelo grupo consistia na escolha pela população, após um período de duas semanas, de qual placa seria a mais adequada a permanecer no local. Tal iniciativa serviu de impulso à discussão sobre a questão da violência nas imediações do centro cultural. Figura 23 – “Construção Relacional " , 2011

Fonte : BASURAMA, 2011

Este projeto representa um exemplo relevante de processos colaborativos que envolvem a arquitetura, principalmente por apresentar preocupações que não se restringem somente à produção de equipamentos físicos, mas incluem, enquanto elemento essencial, a busca pelo estabelecimento de relações entre os mesmos e a vida cotidiana da comunidade. Esta prática nos desperta especial interesse na medida em que acreditamos fortemente na sua importância enquanto fomentadora de redes de ação capazes de gerar novas perspectivas e significados para os


80 objetos físicos, dotando-os assim de verdadeira utilidade para a vida da população local. O coletivo espanhol Todo por la práxis é formado por uma equipe multidisciplinar

que

engloba

arquitetos,

artistas,

designers,

advogados

e

antropólogos. O trabalho do grupo caracteriza-se, principalmente, por objetivar ações de resistência cultural, a partir do desenvolvimento de ferramentas de intervenção no espaço urbano. Apesar do seu caráter múltiplo, a metodologia utilizada pelo grupo poderia ser dividida em cinco blocos principais de ação: acupuntura urbana, vazios urbanos auto-geridos, equipamentos coletivos, artefatos móveis e estratégias de visibilidade. O grupo acredita em uma arquitetura que promova a experiência de locais não-convencionais e que sirva enquanto instrumento para a busca de modelos alternativos de vida na cidade, através da construção do que eles denominam “nova gramática territorial”. A técnica da autoconstrução adquire, nesse processo, papel fundamental, na medida em que envolve a população em todas as fases de projeto, fomentando tanto um processo natural de apropriação dos espaços construídos, quanto de emponderamento dos usuários onde se desenvolvem, posteriormente, sistemas de auto-gestão. Dentre os projetos desenvolvidos pelo grupo destacam-se o Xtra Standar Public Space (Figura 24), no qual o grupo dedicou-se à produção de espaços infraestruturais capazes de dar suporte a diferentes atividades a serem desenvolvidas em um bairro da cidade de Marselha, na França. O projeto, desenvolvido em 2013, partia das necessidades e exigências apresentadas pelas próprias associações locais. Figura 24 - "Xtra Standar Public Space”, 2013

Fonte : TODO POR LA PRAXIS, 2013


81 O Dispositivo de la Cebada consiste, por sua vez, no desenvolvimento de um centro esportivo auto-gerido a partir de estruturas de contêineres, na Plaza de la Cebada em Madri. O projeto, executado em junho de 2011, foi desenvolvido a partir da união de diversos grupos, em um processo conhecido como “união temporal de coletivos” (UTC). e deu origem a um dispositivo físico e corpóreo com usos múltiplos, que objetiva, principalmente, a cooperação social. Sua estrutura foi pensada de forma a permitir que

novos elementos “parasitários” sejam

incorporados, de forma a incrementar o seu uso e responder a novas demandas do local. Dentre as atividades promovidas pelo grupo encontram-se também workshops

sobre técnicas de autoconstrução e atividades de agitação popular

ligadas a questões políticas e urbanas, tais como a gentrificação e a expulsão das populações locais. Se os workshops tratam da questão construtiva enquanto importante

instrumento

de

resistência

das

comunidades

locais

frente

ao

planejamento excludente das cidades, as atividades políticas, por sua vez, desempenham importante papel no desenvolvimento de espírito critico, por parte da população, com relação ao uso e à venda do solo urbano para posteriores construções. O fomento a estes movimentos populares é feito tanto a partir da produção de slogans espalhados em cartazes pela cidade, como no caso do projeto El Barrio es Nostro, em Madri, como através da criação de plataformas colaborativas virtuais. Como exemplo desse segundo caso, têm-se a plataforma Increases, criada pelo grupo em 2012 com o objetivo de unir tentativas de conversão das estruturas urbanas inutilizadas da cidade de Madri, em locais produtivos. Como pôde-se observar nos exemplos analisados os coletivos não atuam de maneira isolada. O grupo Todo por la práxis, por exemplo, faz parte de uma ampla rede denominada arquiteturas coletivas, que configura-se enquanto espaço de encontro e de troca entre grupos e coletivos interessados em formas colaborativas de construção nos centros urbanos. Tal rede proporciona suporte instrumental para novas experiências e conforma-se, a partir do estabelecimento de recursos e conhecimentos comuns, enquanto instrumento de fomento à afirmação de uma prática arquitetônica alternativa à arquitetura convencional. Em consonância com os exemplos e teorias acima apresentados, propõem-se para esta análise, uma arquitetura que, em última instância, seja capaz de potencializar a experiência coletiva e a apropriação efetiva da cidade por parte


82 dos indivíduos que dela usufruem. Assim, o tipo de arquitetura sobre o qual versaremos pressupõe não só efetiva ligação com o contexto urbano fragmentado de nossas cidades e com o cotidiano de seus habitantes mas, principalmente, a participação coletiva na sua construção. Uma arquitetura, assim, que seja capaz de adequar-se ao caos inerente à vida urbana contemporânea, de forma não só a não inibir que manifestações culturais de todos os tipos aconteçam, mas a gerar condições para que elas se dêem em toda a sua diversidade e potência. Uma arquitetura cujo produto seja mais do que simples objeto estático, mas que propulsione a ação, tanto de apropriação do espaço público por parte dos cidadãos, quanto de sua transformação. 2.4 Território Após a introdução dos significados que cultura, arte e arquitetura adquirem neste estudo, faz-se necessária uma elucidação sobre o que se entende pelo quarto parâmetro a ser abordado no mesmo, o território. O esclarecimento do significado desse conceito é fundamental, por possibilitar, em última instância, o entendimento da maneira com que a sociedade relaciona-se com o espaço em que vive e das relações de poder, de dominação e de apropriação advindas de tal experiência. Segundo Milton Santos território é "uma forma impura, um híbrido, uma noção que, por isso mesmo, carece de constante revisão histórica. O que ele tem de permanente é ser nosso quadro de vida. Seu entendimento é, pois, fundamental para afastar o risco de alienação, o risco da perda do sentido da existência individual e coletiva, o risco de renúncia ao futuro" (SANTOS, 2005, p. 255). Etimologicamente, o termo território remete-nos a uma dupla conotação, já que estabelece proximidade tanto com a raiz terra-territorium quanto com terreoterritor (terror), ou seja, refere-se desde a sua origem, ao poder, ao domínio da terra e à inspiração do medo. (HASBAERT, 2004) O uso e o significado do termo, no entanto, sofreu grande evolução no decorrer do século XX, principalmente a partir do final da década de 50, na qual se instala a chamada pós-modernidade ou "modernidade líquida", para usar as palavras de Bauman (BAUMAN, 2001). Tal evolução persiste até a contemporaneidade, na chamada era do controle, na qual as relações espaciais se complexificam de tal forma, que surge a necessidade da criação de novos conceitos, baseados em perspectivas cada vez mais múltiplas.


83 Segundo Jameson, a era pós-moderna seria marcada pela criação de um novo tipo de espaço, incapaz de ser representado e absorvido por uma sociedade cujos hábitos perceptivos foram herdados do chamado alto modernismo. O novo espaço global ou hiperespaço, como ele o denomina, passa a ser, segundo ele, um lugar desconcertante, no qual as mentes humanas perdem a capacidade de mapeamento, frente à enorme rede multinacional de comunicação, ora descentrada. Nessa perspectiva, o território, graças às novas tecnologias do pós-guerra, teria sido diluído em algo inapreensível. O homem se conscientizava - da mesma forma abrupta com que novos objetos passavam a fazer parte do seu cotidiano e tornavam-se, em seguida, obsoletos - da sua tamanha pequenez diante das possibilidades geradas pelas relações espaciais globais. Segundo Jameson, esse espaço, cuja totalidade era impossível, e no qual o homem já não encontrava o seu lugar, caracterizaria o processo de desterritorialização ocorrido a partir da pósmodernidade. Tal processo seria desmistificado por alguns autores contemporâneos, dentre os quais Rogério Haesbaert, em seu estudo sobre o que ele denomina multiterritorialidade. Sua teoria desenvolve-se a partir da análise do caráter imanente da territorialização e/ou multiterritorialização na vida da sociedade, em contraponto à idéia, surgida na era pós-moderna, de diluição do território ou de desterritorialização. Segundo o autor, “mais do que a desterritorialização desenraizadora, manifesta-se um processo de reterritorialização espacialmente descontínuo e extremamente complexo” (HAESBAERT, 1994, p.214). A partir deste processo, o qual analisaremos a seguir, procuraremos entender a dinâmica territorial atual, de forma a tornar-nos aptos a agir no espaço urbano contemporâneo de maneira mais consciente. A multiterritorialização proposta por Haesbaert, baseia-se na existência de múltiplos territórios, os quais se conformam a partir da coexistência atual de dois tipos principais: o território zonal e o território em rede. Se o território zonal, ou território-zona, exerceu importante papel político na era moderna, este se vê hoje, obrigado a conviver ou a se submeter ao domínio de uma organização territorial reticular. Assim, parte-se do pressuposto de que os elementos fundamentais do território hoje seriam a área e principalmente a rede, e que a partir destes e dos múltiplos tipos de controle proporcionados pela sua inter-relação, se dariam os territórios múltiplos. A multiterritorialidade seria, assim, a vivência, atualmente amplificada, da junção desses territórios múltiplos - seja esta multiplicidade dada


84 pela reunião de territórios propriamente ditos ou de territorialidades simbólicas. Tal junção de territórios múltiplos pode ocorrer a partir da sua justaposição articulada, através de "encaixes" entre territórios contíguos, ou, atualmente, devido ao novo aparato tecnológico-informacional, a partir da “conectividade virtual”, ou seja, da conexão de territórios distantes que são ora inter-relacionáveis. A idéia de inter-relação territorial global contemporânea é também mencionada por Milton Santos, através do que ele denomina transnacionalização do território. O autor, em seu texto "O retorno do território", contrapõe o cenário multinacional contemporâneo ao Estado Territorial, noção ora tornada antiga, na qual o território constituía a base do Estado, sendo dominado e moldado por ele. Se o Estado-Nação exerceu importante papel na consolidação da idéia de território, entronizando a noção jurídico-política que lhe era fundamental, hoje este teve suas fronteiras expandidas para muito além dos limites políticos Estatais, e passou a atrelar-se

às

complexas

lógicas

do

mercado

global.

Para

o

autor,

"a

interdependência universal dos lugares é a nova realidade do território" (SANTOS, 2005, p. 255). A metáfora do título do texto, no entanto, refere-se à resistência exercida pelo chamado "território habitado" à este processo de transnacionalização. Segundo o autor: Mas, assim como antes tudo não era, digamos assim, território estatizado”, hoje tudo não é estritamente “transnacionalizado”. Mesmo nos lugares onde os vetores da mundialização são mais operantes e eficazes, o território habitado cria novas sinergias e acaba por impor, ao mundo, uma revanche. (SANTOS, 2005, p. 255)

Santos aponta, assim, para o potencial do uso do próprio território enquanto instrumento de oposição à lógica mercadológica mundial e à conseqüente alienação dos espaços. Tal consideração distingue suas idéias da teoria de desterritorialização de Jameson, na qual o território se extinguiria inevitavelmente em meio à amplitude infinita do novo sistema de comunicação mundial. Ao contrário, Santos acredita não apenas que o território permaneça como elemento fundamental na realidade contemporânea, mas que a sobrevivência das comunidades locais frente ao domínio mundial encontra-se justamente nele. É a partir desta perspectiva, na qual o território adquire importante papel na geração de políticas inovadoras, que desenvolveremos a nossa análise.


85 Segundo Santos, graças ao papel desenvolvido pela tecnologia, e principalmente pela informação - substituta da energia motora enquanto instrumento de união de lugares distantes, o território, hoje, adquire um novo tipo de funcionamento, baseado no que ele chama de verticalidades e horizontalidades. Para o autor, as relações de horizontalidade são aquelas estabelecidas entre lugares contíguos, que apresentam continuidade territorial. Já as verticalidades são caracterizadas pela união de pontos geograficamente distantes do território. A esta consideração, o autor acrescenta, paralelamente, a idéia de espaço banal - conceito criado por François Perroux e trazido ao Brasil por seu discípulo Jacques Boudeville, que caracteriza o espaço de todos, ou todo o espaço - e a noção de rede. A idéia de espaço banal aproxima-se da idéia de horizontalidade acima apresentada, enquanto a noção de rede caracteriza, para o autor, as relações verticais, nas quais apenas alguns pontos do território, ou apenas o território de alguns, estabelecem conexões. Santos destaca, no entanto, que são os mesmos lugares e os mesmos pontos do território, possuindo funcionalidades diversas simultaneamente, que exercem ambos os tipos de relação, horizontal e vertical. Tal simultaneidade de funções é possível graças aos avanços tecnológicos e gera, hoje, três formas do que ele denomina acontecer solidário: o acontecer homólogo, que ocorre a partir de contigüidades funcionais entre porções do território, o acontecer complementar, que se desenvolve a partir das necessidades modernas de produção e troca entre lugares geograficamente próximos e o acontecer hierárquico que ocorre a partir da racionalização das atividades no território, sob um comando preciso. Enquanto no acontecer simultâneo e homólogo as regras são formuladas localmente, em um sistema no qual a informação tende a se generalizar, no acontecer hierárquico tais regras, que normatizam a vida cotidiana, são impostas de fora, através de um sistema de comando baseado na detenção de informações privilegiadas, no qual a relevância passa a residir não na técnica, mas na política. Assim, enquanto no primeiro caso tem-se um sistema centrípeto de forças, no segundo observa-se, ao contrário, um movimento centrífugo, marcado por uma desordem no cotidiano das comunidades locais em prol do seguimento de normas externas a elas e à sua realidade. A oposição entre a verticalidade e a horizontalidade, bem como entre o acontecer homólogo e simultâneo e àquele hierárquico, remete-nos ao que Santos chama de dialética do território, que baseia-se na relação entre a escala técnica e a


86 escala política do mesmo. O controle "local" da escala técnica da produção, segundo Santos, significaria o controle das cidades locais sobre o seu território, a partir do que ele chama de densidade técnica ou funcional do mesmo, enquanto no controle distante, isto é, no controle exercido pelas grandes cidades mundiais e pelo mercado global, a escala política do território adquire maior importância, pois passa a representar localmente os interesses externos às comunidades. Tal dialética se mostra presente também na diferenciação, feita pelo autor, entre o espaço local e o espaço global. O primeiro refere-se ao espaço banal, "ao território de todos, freqüentemente contido nos limites do trabalho de todos", às relações horizontais e ao acontecer homólogo ou simultâneo, enquanto o segundo representa os sistemas de rede, as relações verticais e o acontecer hierárquico, dominado pelo controle do mercado global. O texto de Santos desenvolve-se, assim, de forma a atentar-nos para a urgente necessidade de renforçarmos a coesão horizontal no território, ou seja, de se priorizar o espaço local em detrimento ao espaço global, como meio de resistência a um processo de mundialização no qual os agentes locais perdem força política frente ao mercado mundial que lhes impõe uma lógica própria e autobeneficitária. Depreende-se das teorias apresentadas por Santos e Haesbaert a importância do estudo do território não só enquanto elemento fundamental para a compreensão

da

realidade

contemporânea,

mas

como

instrumento

de

transformação política por parte das comunidades locais. Tais teorias constituirão a base teórica para o desenvolvimento nos capítulos 3 e 4 deste trabalho, já que, se aplicadas à escala urbana, podem constituir valiosos instrumentos de reflexão sobre o papel das comunidades locais a partir de sua relação com o território. O estímulo ao fortalecimento dessa relação, principalmente em meio às comunidades menos favorecidas, poderia ser usado, assim, enquanto meio de aumentar o seu poder político local e de gerar certa resistência à lógica mercadológica reinante do planejamento urbano atual. 2.5 Poder, cultura e cidade Nesse capítulo, analisaremos algumas teorias referentes à questão do poder e dos modos com que este influencia a vida contemporânea, bem como a relação de tais temas com a questão cultural, que adquire grande relevância principalmente a


87 partir da passagem do capitalismo industrial para o chamado capitalismo cognitivo. Espera-se elucidar conceitos referentes aos reflexos da relação entre poder, cultura e mercado na conformação do cenário urbano e na vida da população em geral, além de apontar para possíveis formas de resistência da mesma frente à expropriação a qual está freqüentemente submetida. Acreditamos que tais considerações sejam fundamentais para o entendimento aprofundado do que caracterizaria a experiência cultural nas cidades contemporâneas, bem como para a formulação de questionamentos sobre como esta poderia ser transformada. 2.5.1 Biopoder e cultura Segundo Peter Pál Pelbart (2007), no contexto contemporâneo, a relação entre a vida e o poder poderia ser caracterizada a partir de duas direções distintas. Uma delas, a qual nos ateremos pelo momento, representaria o que ele descreve enquanto uma espécie de domínio do poder sobre a vida, ou biopoder, e a outra seria a biopotência, a ser analisada mais adiante. O conceito de biopoder, mencionado pela primeira vez por Michel Foucault e retomado, a partir de nova ótica, pelo cientista político italiano Antonio Negri, representaria, no pensamento de Pelbart, a captura das esferas da existência humana por parte de um poder que não mais se apresenta enquanto apenas repressivo, mas se desenvolve no campo imanente, adquirindo caráter ativo e produtivo. Nesse sentido, a vida passa a ser controlada de maneira integral, a partir da captura pelo poder, do próprio desejo do que dela se quer e se espera. Há uma diluição dos limites entre o que somos e o que nos é imposto, à medida que o poder atinge níveis subjetivos passando a atuar na própria máquina cognitiva que define o que pensamos e queremos. Segundo o autor: “Nunca o poder chegou tão longe e tão fundo no cerne da subjetividade e da própria vida, como nessa modalidade contemporânea do biopoder.” (PELBART, 2007, p. 58) . Ao cunhar o conceito de biopoder pela primeira vez, Foucault o fez em contraponto a um regime anterior que denominou soberania. Segundo ele, se o poder soberano baseava-se no ato de fazer matar quem o ameaçasse, deixando viver os demais, o biopoder, ao contrario, tinha como prerrogativa o “fazer viver” ou a otimização da vida, já que esta representaria a sua fonte. No entanto, segundo Giorgio Agamben, o biopoder contemporâneo já não se incumbiria nem de fazer


88 morrer, nem de fazer viver, mas de produzir uma espécie de sobrevida, criando não humanos, mas sobreviventes. Lê-se em Pelbart: O biopoder contemporâneo teria essa incumbência, de produzir um espaço de sobrevida biológica, reduzir o homem a essa dimensão residual, não humana, vida vegetativa, que o mulçumano por um lado, no caso dos campos de concentração nazistas, ou os neo-mortos das salas de terapia intensiva, quando se quer prolongar a qualquer custo a vida, mesmo que seja uma vida absolutamente impotente, encarnam. (PELBART, 2007, p. 59).

Esse contexto seria devido ao fato de o biopoder abarcar tudo aquilo que representaria o comum, ou seja, as linguagens, símbolos, imagens, enfim, todos os meios compartilhados pelos indivíduos, através dos quais estes tornam-se capazes de se comunicar e de, assim, produzir algo em sociedade. Segundo Michael Hardt e Antonio Negri: o comum que compartilhamos serve de base para a produção futura, numa relação expansiva em espiral. Isso talvez possa ser mais facilmente entendido em termos da comunicação como produção: só podemos nos comunicar com base em linguagens, símbolos, idéias e relações que compartilhamos e, por sua vez, os resultados de nossa comunicação constituem novas imagens, símbolos, idéias e relações comuns. Hoje essa relação dual entre a produção, a comunicação e o comum é a chave para entender toda atividade social e econômica (HARDT; NEGRI, 2005, p. 256257).

Nessa perspectiva, a expropriação do comum pelo poder incluiria também os possíveis produtos gerados pelo seu compartilhamento social, ou seja, representaria a captura da produção intelectual e criativa da sociedade. O domínio do poder sobre esse comum, representaria, assim, aspecto estratégico no contexto do biopoder, já que equivaleria à captura da máquina reguladora e produtiva da sociedade. Segundo Barbara Szaniecki (2010), esse comum abordado por Hardt e Negri a partir da comunicação, poderia ser também pensado a partir da cultura, já que “linguagens, imagens, símbolos, idéias e relações constituem cultura.” Com efeito, na conjuntura capitalista atual, a cultura passa a representar grande foco de interesse. Se na chamada sociedade disciplinar referida por Foucault, o controle era exercido a partir das chamadas instituições disciplinares tais como a fábrica, o exército, a escola, a prisão, o hospício, etc. - na atual sociedade do controle os mecanismos de disciplina e sujeição passam a utilizar-se da cultura enquanto meio de controle onipresente, não mais dependente do “interior”


89 dos espaços tradicionais de confinamento. A cultura passa a constituir, assim, instrumento através do qual ditam-se comportamentos e modela-se a produção e o consumo. Nesse

sentido,

observa-se

um

deslocamento

de

interesses

que

caracterizariam, segundo alguns autores, a passagem do chamado capitalismo industrial ao capitalismo cognitivo. Segundo Giuseppe Cocco, este processo “mais do que representar o deslocamento da produção material em direção à de serviços e bens intangíveis – embora não os exclua – deve ser encarada como o fato da progressiva hibridização das tradicionais esferas de produção e circulação.” (COCCO, 2009, p. 148). Assim, para ele, falar sobre o capitalismo cognitivo não significaria considerar a anulação do trabalho fabril, mas a dizer que a sua valorização passa a depender cada vez mais de elementos imateriais, ou seja, o sistema passa a apoiar-se em “um dispositivo de exploração que investe a vida do trabalhador em seu conjunto e não mais pela sua ‘partição’ entre tempo de trabalho e tempo livre.” (COCCO, 2009, p. 149). A questão da cultura adquire, assim, papel fundamental, já que mostra-se essencial para a referida investida na vida dos indivíduos em seu conjunto. Essa importância crescente das questões culturais para o desenvolvimento do sistema produtivo, faz com que as mesmas passem a adquirir grande valor no mercado. Enquanto reflexo desse processo pode-se citar, por exemplo, a crescente relevância com que vem sendo tratado o termo “indústria criativa”, a partir da década de noventa. 2.5.2 Indústrias criativas Indústria criativa define-se enquanto um conjunto de atividades econômicas relacionadas à produção de informação e de conhecimento - tais como publicidade, arquitetura, artes e antiquários, artesanato, design, moda, cinema, edição, música, artes performáticas, serviços de informática, radio e televisão. Esse conjunto heterogêneo de atividades estabelece fortes relações econômicas com os setores de turismo, esportes, museus, galerias e patrimônio e adquire, assim, grande relevância no planejamento urbano contemporâneo enquanto suposto motor de desenvolvimento e de inserção das então “cidades criativas” no cenário geopolítico global. Essa idéia exemplifica de maneira bastante clara a nova lógica produtiva contemporânea, na qual a cultura tem seus laços cada vez mais estreitados com o


90 mercado, e constitui-se enquanto ponto central em torno do qual o sistema capitalista (cognitivo) contemporâneo parece girar. Segundo Szaniecki e Silva (2010a), o termo “indústrias criativas” esconderia, por meio de uma pretensa idéia de inovação, o objetivo latente de expansão da linha de montagem industrial para além da fábrica, através de meios novos e mais sofisticados, capazes de abarcar toda a extensão da cidade. Ao analisar o caso da cidade do Rio de Janeiro, e dos novos projetos museais que pretendem situá-la no ramo das “cidades criativas”, Szaniecki declara: Observemos a linha de montagem estendida por toda a cidade criativa. Dos museus apresentados, dois fazem parte de um projeto da prefeitura para “revitalização” da zona portuária, qual seja, o Porto Maravilha. Aqui, “revitalização” significa “re-industrialização criativa”. Isto é por meio de museus, das áreas que foram des-industrializadas nas últimas décadas. A linha de montagem da cidade criativa de hoje coincide perfeitamente com a linha de montagem da cidade industrial de outrora. Nesse sentido, afirmamos que esse projeto segue um modelo desenvolvimentista do qual as “indústrias criativas” seriam as novas locomotivas. (SZANIECKI; SILVA, 2010a).

Essa situação repete-se também na cidade de Belo Horizonte, onde estão atualmente sendo propostos projetos de “revitalização” de áreas centrais, propositalmente tidas pelos governantes enquanto decadentes e perigosas, de forma a promover a sua “re-industrialização” estratégica por meio de equipamentos culturais. Dentre esses projetos, destaca-se o do “Circuito Cultural da Praça da Estação” - a ser analisado no Capitulo 4 desse trabalho - o qual caracteriza-se pela proposta de inclusão de equipamentos na área da Praça da Estação como forma de alavancar o seu “desenvolvimento” enquanto área de concentração de atividades culturais. Para Szaniecki, os museus representariam para o capitalismo cognitivo o que a locomotiva representou para capitalismo industrial, ou seja, constituiriam o seu motor de funcionamento. Assim, tais equipamentos seriam responsáveis por difundir idéias, comportamentos, símbolos e linguagens que fomentariam o sistema, em um movimento que aliaria produção “cultural” e consumo. A conformação das cidades criativas a partir desse novo modelo industrial exemplifica, assim, a crescente incursão da economia no âmbito cultural, quase a ponto de causar a diluição de ambas as esferas em algo único. As origens dessa incursão explícita das lógicas econômicas no universo


91 cultural podem ser mais bem entendidas a partir da análise do caso de Thomas Krens, ex-diretor da Fundação Solomon R. Guggenheim e personagem fundamental para o entendimento dos rumos tomados pelos museus desde o final do século XX. Formado em Administração Empresarial na Universidade de Yale e defensor da idéia de que a cultura, em seu viés artístico, estaria passando pelo mesmo processo pelo qual passaram todos os setores nos quais instalou-se a produção industrial, Krens revolucionou o modus operandi da gestão museal em escala mundial. Ao adotar meios de gestão que em nada diferem-se dos usados em grandes empresas corporativas, tratando o Guggenheim como um verdadeiro museum industry, não só a linguagem, mas os próprios princípios que regem a produção e veiculação da arte passaram a obedecer a regras estritamente comerciais. As exposições e catálogos são tratados como produtos, e como tal requerem estratégias de marketing adequadas, capazes de garantir, se bem conduzidas, uma fatia cada vez maior do mercado. Tal lógica de mercado abarcou também, para o interno das instituições museais, a idéia das franquias conceituais. Por este termo entende-se a exportação não só das marcas das empresas, mas de seus modelos organizacionais e conceitos. Inaugurada no âmbito cultural com o Guggenheim de Bilbao, na Espanha, tal tipo de franquia traz à esfera artístico-cultural a lógica expansiva mercadológica, que responde à premissa de menor distância possível entre produção e consumo. A ampliação da instituição a nível global aumenta a sua eficiência, na medida em que a cada nova unidade surge novo potencial operacional. As atividades centrais, dentre as quais a concepção das exposições e a produção de catálogos fundamentais na geração de receita, bem como a conservação do acervo, são geralmente desenvolvidas na unidade principal, sendo exportadas para as outras unidades, de maneira a potencializar o seu alcance e, conseqüentemente, a sua venda. Nesses casos, a produção e a veiculação do conteúdo museográfico acaba, assim, por descolar-se da realidade imediata da sociedade que a recebe, já que as exposições franqueadas são criadas e desenvolvidas seja para uma população residente em contextos totalmente distintos, seja para um público genérico, o que as priva ainda mais de especificidade e portanto, de eficácia local. O que se tem, assim, é um sistema cultural neutralizado, e muitas vezes espetacular, produzido com vistas à comercialização rápida e certa. Nas indústrias criativas, nas quais esses métodos são acrescidos de uma


92 lógica cuja base é essencialmente “industrial”, destaca-se a freqüente presença de parcerias público-privadas, o que aponta, de maneira explícita, para a inclusão de tais atividades no circuito mercadológico do sistema dominado pelo estado-empresa neoliberal. A critica cunhada por Szaniecki a esse respeito provém do fato de que muitas vezes, no âmbito das “indústrias culturais” financiadas por entes privados, a questão econômica passa a ser primordial, a cidade transformando-se em verdadeiro campo empresarial e tendo as suas questões sociais relegadas para segundo plano. Assim, esse modelo de produção e circulação criativo-cultural “desenvolvimentista”, poderia desencadear pelo menos dois reflexos principais na conformação urbana: por um lado, a concentração de equipamentos em áreas nobres da cidade - direcionados à população apta a consumir os seus produtos, e por outro, um processo de “gentrificação” de áreas populares nos quais estes se inserem. O primeiro ponto será analisado no Capitulo 3 deste trabalho, no qual tomaremos como exemplo a cidade de Belo Horizonte a partir do mapeamento de seus equipamentos culturais. Já o chamado processo de “gentrificação”, será abordado brevemente no item a seguir e retomado no Capitulo 4, dedicada à analise da área da Praça da Estação, que busca resistir ao mesmo. 2.3.4 Gentrificação do espaço e cultura O termo “gentrificação” provém da palavra inglesa gentry, originalmente usada para designar a pequena nobreza ou os proprietários de terra. Cunhado pela primeira vez em 1964 pela socióloga britânica Ruth Glass, o termo refere-se ao fenômeno de deslocamento da população original de uma área urbana em prol da sua posterior ocupação por outro setor populacional, de classe econômica geralmente muito mais alta, cuja visão, apreensão e vivência da cidade mostram-se normalmente diversas daquelas apresentadas pelos habitantes originários. O termo pode também ser entendido como “aburguesamento” ou “enobrecimento” das áreas populares de uma cidade, que têm assim, suas características originais totalmente transformadas.

O desencadeamento de tal processo pode se dar de várias

maneiras. Destaca-se aqui, a que ocorre através do meio criativo-cultural “desenvolvimentista” acima descrito. Nesse processo, muito presente nos países latino-americanos, a questão cultural adquire papel central. Conforme visto anteriormente, no contexto capitalista


93 atual a cultura passa a adquirir grande importância em termos políticos e mercadológicos, relacionando-se intimamente com a construção das cidades espetaculares, cujo objetivo último seria a inserção das mesmas no cenário global. Por representarem verdadeiras âncoras desse processo, projetos ditos “culturais” são cada vez mais valorizados no mercado urbano. Nesses projetos, guiados por medidas pacificadoras de transformação urbana em cenário “higiênico” e consensual, o fomento ao turismo global conforma-se enquanto prioridade, em detrimento do atendimento das reais necessidades das comunidades locais. Isso aponta para mais um movimento de captura cognitiva por parte do sistema neoliberal, no qual a lógica cultural é expropriada e transformada, nesse caso, em recurso para o aumento do valor da terra nas cidades. Assim,

agentes

públicos

e

privados,

aproveitando-se

da

conotação

geralmente positiva que os “projetos culturais” possuem frente à população, bem como dos incentivos fiscais relacionados a tais iniciativas, promovem verdadeiras transformações do cenário urbano justificados com base em um intuito “cultural”. Tais transformações abarcam principalmente áreas centrais das cidades, de posicionamento estratégico e já dotadas de infra-estrutura, de forma a expulsar a população de baixa renda e implantar em seu lugar equipamentos que funcionem como motores da linha de montagem da nova indústria cultural. Analisemos, como exemplo, o processo de “revitalização” do Rio de Janeiro, citado por Szaniecki em referência acima. Esse exemplo servirá como estudo de caso para a análise, feita no capitulo 4 deste trabalho, da área do Viaduto Santa Tereza em Belo Horizonte, que passa por processo semelhante. Nota-se, no caso brasileiro, uma recente intensificação do fenômeno de gentrificação via cultura, estimulada pelo fato de o país ter sido selecionado para sediar, entre 2012 e 2016, pelo menos quatro mega eventos de caráter internacional: o Rio+20 em 2012, a Copa das Confederações em 2013, a Copa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016. A cidade do Rio de Janeiro, sede única de dois desses eventos, ganha destaque especial nesse contexto. De forma a aproveitar tal situação para afirmar-se enquanto uma espécie de porta de entrada do país no contexto cultural globalizado, a cidade promove obras importantes de reestruturação urbana baseados em projetos de museus. Dentre eles destacam-se o Museu da Imagem e do Som, a ser realizado na orla de Copacabana a partir de projeto dos arquitetos nova-iorquinos Elizabeth Diller e Ricardo Scofidio, e dois


94 outros que conformam o Projeto Porto Maravilha, concebido a partir de uma Operação Urbana Consorciada6 cujo objetivo seria a “revitalização” da zona portuária do Rio (Figura 25). Estes seriam o Museu do Amanhã, no Píer Mauá, com projeto do arquiteto espanhol Santiago Calatrava e o Museu de Arte do Rio, na Praça Mauá, cujo projeto resulta da intervenção dos arquitetos cariocas Paulo Jacobsen e Thiago Bernardes em dois prédios já existentes. Figura 25 - Operação Urbana Consorciada da Área de Especial Interesse Urbanístico da Região Portuária do Rio de Janeiro, 2013

Fonte: PORTO MARAVILHA, 2013

A incoerência observada na operação de “revitalização” via cultura, pode ser observada já a partir da análise do próprio termo utilizado, baseado no pressuposto de que não existiria “vida” no local, o que encontra-se em profunda contradição com o contexto real observado na área. Apesar de abandonada pelos investimentos governamentais nos últimos anos - abandono que poderia ser questionado enquanto estratégia proposital de posterior hipervalorização da área - existem na região inúmeros moradores, cuja vida na cidade depende diretamente daquele território dito “decadente”. A partir de um total descaso a essa população - camuflado pelas promessas de desenvolvimento através de intenções pretensamente “sustentáveis” -

6

Para aprofundamento da questão, ver a Lei Municipal nº 101/2009, responsável pela criação e regulamentação da Operação Urbana Consorciada da Área de Especial Interesse Urbanístico da Região Portuária do Rio de Janeiro.


95 a operação, até o momento, provocou a expulsão de muitos dos seus integrantes, dentre os quais os pertencentes à ocupação Zumbi dos Palmares, a maior da cidade, que foi desestruturada. Como tentativa de resistir a essa situação a sociedade civil vem se organizando de forma a criar comitês, grupos e fóruns de discussão cujo objetivo principal seria o de garantir os direitos dos moradores e trabalhadores do local. A expulsão dos moradores ocorre seja por remoção direta ou via especulação imobiliária, esta última sendo reflexo direto do processo valorização do preço da terra, que conforma-se enquanto um dos principais objetivos da operação. Esse processo funciona da seguinte maneira. Com a instalação de equipamentos culturais de forte apelo turístico, a área, situada em ponto estratégico da cidade e já munida de toda a infra-estrutura necessária, adquire novas qualidades atrativas para investimentos privados, seja de cunho habitacional ou comercial, o que gera grande valorização do preço da terra. Essa valorização é assim utilizada para a negociação dos chamados CEPAC’s (Certificados de Potencial Adicional de Construção), cuja venda é feita a partir de um sistema semelhante à bolsa de valores. Esses certificados concederiam benefícios construtivos extras àqueles que o adquirissem, fomentando ainda mais o uso da área enquanto palco de investimento privados e aumentando enormemente os recursos governamentais a serem reinvestidos. O reinvestimento desses recursos, no entanto, normalmente é direcionado às áreas já previamente valorizadas, o que conforma uma ação governamental cíclica, movida pelo lucro e no qual a assistência aos moradores e aos reais produtores culturais locais, é nula ou ínfima. Na operação Porto Maravilha a empresa responsável tanto pela promoção de serviços urbanos de valorização da área quanto pela comercialização de terrenos, certificados de construção e unidades habitacionais a serem nela construídas é a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP), criada pelo consórcio de parceria público-privada responsável pela operação. Assim,

o

processo

cultural

que

teoricamente

deveria

gerar

um

desenvolvimento “sustentável” da área, ou seja, fomentar os movimentos e atividades culturais e artísticas já existentes, dando-lhes condições para desenvolver-se a partir de toda a sua heterogenia e diversidade – conforme visto no capítulo sobre cultura, no qual analisamos a dimensão antropológica da mesma – revela-se, ao contrário, um agente inibidor de tais manifestações e da própria


96 permanência dos atores que as promoviam. Isso se deve à forma com que são conduzidas as negociações, que partem da captura das atividades genuinamente integrantes da cultura local em prol de atividades tidas como mais turísticas e comercialmente rentáveis. Szaniecki e Silva (2010b) analisa as políticas culturais que baseiam-se nesse processo de industrialização cultural da seguinte forma: Assim, se por um lado essas políticas não conseguem deixar de ser setorializadas, pelo outro elas tendem a capturar a atividade cultural geral sem reconhecer a multiplicidade dos atos criativos singulares que a tornam possível – comparável, segundo o conceito de economia pólen de Yann Moulier Boutang (2010), ao trabalho da abelha que poliniza de flor em flor mas que não é reconhecido quando o produto é apropriado como mel e vendido em potes. (SZANIECKI; SILVA, 2010b, p. 12-13).

De forma a exemplificar tal apropriação poderíamos citar a exposição ocorrida no recém inaugurado MAR (Museu de Arte do Rio), denominada “O ABRIGO E O TERRENO: arte e sociedade no Brasil”. A mostra, que pretende dedicar-se à atuação da arte brasileira no campo das relações sociais face às transformações urbanísticas e culturais ocorridas nos espaços da cidade, reflete bem essa inversão de conceitos. Um espaço concebido a partir das próprias práticas de reestruturação e até em certos casos “expulsão” de artistas e práticas culturais locais, recebe em seu interior uma mostra que pretende lidar sobre o reflexo desse processo no cenário artístico. A descrição da mostra, presente na página do MAR na internet merece longa descrição: A exposição reúne artistas e iniciativas de diversas regiões em torno de uma questão que – dadas as reformas urbanísticas que hoje transfiguram o Brasil, principalmente o Rio de Janeiro – se faz especialmente urgente: as concepções de cidade e as forças que se aliam e se conflitam nas transformações urbanísticas, sociais e culturais do espaço público/privado. Entrecruzando distintos horizontes políticos e estéticos – como a ideia de cidade do homem nu de Flávio de Carvalho (1930), a constatação de uma cidade de casas fracas (Clarice Lispector em O Mineirinho, 1962), o projeto de urbanização da favela Brás de Pina (escritório Quadra, década de 1960) ou a atuação de artistas (2003-2007) na Ocupação Prestes Maia, em São Paulo –, a mostra problematiza a propriedade, a posse e o usufruto dos espaços sociais –o terreno – e os modos como produzem política e subjetividade, do direito à habitação ao desejo de abrigo. Concebida como um laboratório de diálogos e antagonismos que percorre o século XX e invade a contemporaneidade, O abrigo e o terreno inclui ainda uma programação de atividades com intervenções, debates, palestras e publicações. (MAR, site internet)

Não pretende-se, aqui, esgotar o discurso a respeito dos equipamentos culturais a partir de um parâmetro dualista no qual tais instituições apareçam de


97 maneira

totalmente

e

irreversivelmente

negativa,

mas

sim

promover

um

questionamento crítico - que não se restrinja apenas aos aspectos turísticos, como normalmente é feito - a respeito da sua real eficácia no contexto social brasileiro. Assim, a questão que pretendemos levantar é, até que ponto a política cultural brasileira poderia se dar de maneira mais conectada com o contexto social das comunidades locais e menos a partir de uma lógica mercadológica externa, que responda a termos estritamente econômicos? Se no caso europeu, a situação de maior igualdade social permite que as iniciativas de grandes equipamentos culturais não

gerem

resultados

tão

catastróficos

de

gentrificação

e

conseqüente

“apagamento” de práticas culturais locais, a forte disparidade econômica brasileira faz com que seja necessário pensarmos em outras e mais eficientes políticas de fomento à cultura, mais adaptadas ao contexto sócio-econômico específico do Brasil. É esse o ponto que discutiremos no capitulo 3 deste trabalho, onde se versará sobre as políticas culturais brasileiras. 2.5.4 Biopotência e Multidão Retomemos aqui, a análise do pensamento de Pelbart, iniciada no primeiro item desse capítulo. Em meio a um contexto no qual tudo parece irreversivelmente tomado pela lógica da captura capitalista, o autor nos apresenta, com base nas idéias dos pensadores da chamada “Autonomia Italiana”, o que ele considera a segunda direção possível da atual relação entre poder e vida. Essa direção, contrária ao biopoder, seria o que ele denomina biopotência. Segundo ele, tal processo poderia ser entendido através do seguinte raciocínio, “ao poder sobre a vida responde a potência da vida.” A biopotência representaria, assim, um contraponto radical a esse poder de captura capitalista, uma verdadeira reviravolta que se insinua no extremo oposto da linha, no qual a vida “revela, no processo mesmo de expropriação, sua potência indomável.” Um dos motivos pelos quais isso se torna possível, segundo Pelbart, é o fato de o sistema capitalista atual depender, para seu desenvolvimento, não mais da força e da disciplina, mas da capacidade criativa de cada um, ou do que ele denomina força-inventiva. Tal força-inventiva, da qual o capitalismo se apropria, não emana, no entanto, do capital, mas prescinde dele. O núcleo central em torno do qual gira todo o sistema representa, assim, justamente o que se tem de


98 humanamente mais próprio, a força do pensamento e da criação. E esta força não só não deriva do capital, como existe antes e independentemente do mesmo. Sendo assim, a resistência encontra-se na própria vida, e ao mesmo tempo no núcleo exato de dominação da mesma. Segundo Pelbart: A vitalidade social, quando iluminada pelos poderes que a pretendem vampirizar, aparece subitamente na sua primazia ontológica. Aquilo que parecia inteiramente submetido ao capital, ou reduzido a mera passividade, isto é, a vida, aparece agora como um reservatório inesgotável de sentido, como um manancial de formas de existência, como um germe de direções que extrapolam, e muito, as estruturas de comando e os cálculos dos poderes constituídos (PELBART, 2007, p. 58).

Assim, surgem novas possibilidades de resistência, que devem ser pensadas, segundo o autor, a partir do reconhecimento de toda essa potência de vida, disseminada por toda parte. Segundo Pelbart cada indivíduo representaria um grau de potência específico, relacionado à sua capacidade de afetar-se e de ser afetado. A constituição de uma grupalidade, ou seja, de um corpo múltiplo, abarcaria portanto todas essas singularidades, a partir de uma “variação contínua entre seus elementos heterogêneos, como afetação recíproca entre potências singulares, numa certa composição de velocidade e lentidão.” (PELBART, 2008, p. 34). Assim, a potência de tal plano de composição, se pensado a partir das idéias de Deleuze, residiria justamente na sua capacidade de reunir com consistência elementos díspares, em um movimento nômade, de variação contínua. As idéias cunhadas por Pelbart aproximam-se, nesse sentido, do que Negri e Hardt denominam Multidão. Segundo os autores, o declínio gradativo da soberania dos Estados-nação identifica-se com o surgimento do império, que poderia ser definido enquanto “um aparelho de descentralização e desterritorialização do geral que incorpora gradualmente o mundo inteiro dentro de suas fronteiras abertas e em expansão” (NEGRI; HARDT, 2001, p. 12). Contrariamente ao imperialismo colonialista, no qual o poder encontrava-se centrado e tinha suas fronteiras limitadas, no império o poder torna-se global, não possuindo mais um centro localizado. O império poderia ser considerado, assim, como o viés político da globalização econômica. Nesse contexto, a resistência ao poder não mais poderia ser feita, como o era nos Estados-nação, a partir de movimentos centrados na nacionalidade, mas deveria partir da inter-relação entre inúmeras experiências locais de resistência a


99 esse poder onipresente. O contraponto ao poder do império seria, assim, o que eles chamam de Multidão. Contrariamente à noção de “povo”, homogênea e transcendente, esse conceito baseia-se na reunião de múltiplas singularidades e caracteriza-se por seu caráter imanente. Se vista na perspectiva do corpo, a multidão não só conforma-se enquanto reunião de corpos mas, segundo Negri, todo corpo seria uma multidão. Nela os corpos se entrecruzam, se mestiçam hibridizamse e transformam-se, “cruzando Multidão com Multidão”. Sobre a transcendência que caracterizaria a individualidade e a imanência representativa da Multidão, Negri diz: A transcendência é a chave para toda metafísica da individualidade, da mesma forma que para toda e qualquer metafísica da soberania. Do ponto de vista do corpo, só há relação e processo. O corpo é trabalho vivo, portanto expressão e cooperação, portanto construção material do mundo e da história. (NEGRI, 2004, p. 21).

Além disso, a Multidão constitui-se em um conceito de classe. Segundo Negri ela “é sempre produtiva e está sempre em movimento”. E, principalmente, Multidão representa uma potência, que se dá a partir da cooperação das singularidades. Tal Multidão pretende não só se expandir, como se corporificar, segundo Negri, no corpo do General Intellect, ou seja, do que seria a dimensão coletiva e social da atividade intelectual enquanto meio de produção. [...] Hoje, na transformação do moderno em pós-moderno, o problema volta a ser o da multidão. Na medida em que classes sociais como tais se desagregam, o fenômeno de autoconcentração organizadora das classes sociais desaparece. [... ] Trata-se de uma multidão que é o resultado de uma massificação intelectual; não pode mais ser chamada de plebe ou povo, porque é uma multidão rica [...]. Na verdade, é preciso dizer que existe uma multidão de instrumentos produtivos que foram interiorizados, encarnados nos sujeitos que constituem a sociedade. [...] E hoje multidão é isso – uma multidão que subtrai ao poder toda transcendência possível e que não pode ser dominada senão de forma parasitária, portanto, feroz. (NEGRI; HARDT, 2001, p. 30-31).

Assim, concluímos com a idéia de que a biopotência, realizada a partir do princípio da Multidão, pode nos dar valiosas pistas a respeito possibilidades de resistência a esse biopoder onipresente e descentrado do mundo globalizado. A constituição de redes rizomáticas entre os movimentos de micro-resistência poderia ser um caminho, já que a partir dos mesmos seria possível atuar tanto na esfera micro, atentando-se para as especificidades locais, quanto atingir, a partir da união


100 entre eles e do compartilhamento das experiências neles geradas, uma dimensão macro.

A partir das questões desenvolvidas nesta que constitui a parte “teórica” desse trabalho, passaremos às partes ditas “práticas”, para as quais tomaremos como base os conceitos e teorias apresentados acima. A partir da consideração da cidade de Belo Horizonte enquanto palco de análise, procederemos, na Parte II, à um estudo macro, o qual tomará por base tanto as questões territoriais analisadas, quanto às relacionadas ao mercado e ao poder do Estado, a fim de gerar um panorama espacial crítico a respeito da experiência cultural na cidade. A Parte III será dedicada ao estudo de uma área específica da cidade, que enfrenta atualmente um processo complexo de reestruturação guiada por iniciativas culturais. Consideraremos em ambas as partes, os conceitos de cultura, arte, arquitetura, território e poder conforme analisados aqui. Assim, a cultura será tida enquanto termo amplo, que abarca a vida urbana em toda a sua diversidade e heterogeneidade, a arte enquanto meio de fomento à desalienação política da população, a partir do estímulo ao espírito de coletividade, à experiência corporal da cidade e à apropriação de suas superfícies. A arquitetura, por sua vez, será considerada enquanto disciplina a ser exercida de maneira comunitária, de forma a envolver a população em todas as suas fases, diluindo a figura do arquiteto enquanto concentrador da atividade criativa e tornando-o uma espécie de mediador de relações. O território será tido enquanto instrumento através do qual se buscará o fortalecimento da coesão horizontal nas comunidades, de forma a gerar proteção e emponderamento da população local frente às decisões que referem-se ao lugar no qual vivem e se expressam. Finalmente, as práticas analisadas a partir do conceito de Multidão serão utilizadas enquanto instrumentos de microrresistência local, a partir dos quais se pretende estimular o fomento de uma rede rizomática, que faça com que as mesmas adquiram maior abrangência e força e consigam, de fato, contribuir para que uma experiência do espaço urbano digna, democrática e humana seja possível.


101 3 ANÁLISE MACRO: BELO HORIZONTE Nesta parte do trabalho faz-se uma análise macro do cenário cultural da cidade de Belo Horizonte, considerando, para tanto, os tipos de políticas culturais que regulamentam o setor. 3.1 Políticas Culturais Na tentativa de gerar um panorama que ilustre a questão cultural na cidade de Belo Horizonte procederemos, primeiramente, à análise das políticas culturais que regulamentam os recursos utilizados para o seu financiamento, e em seguida, a um mapeamento georreferenciado dos equipamentos culturais presentes na cidade. O emprego de tal metodologia justifica-se por acreditarmos que a consideração dos mecanismos mercadológicos e políticos que regem a questão cultural, por meio das políticas públicas, seja fundamental para uma análise crítica da distribuição espacial dos equipamentos culturais na cidade. Como visto Capitulo 2 desse trabalho, a cultura conforma-se enquanto questão chave para o desenvolvimento do sistema capitalista atual, sendo, portanto, muito importante que entendamos como as questões relativas ao poder, ao Estado e ao mercado se articulam nesse âmbito, de forma a desenvolvermos um olhar menos ingênuo frente às questões sociais e políticas relacionadas à experiência cultural que se tem hoje na cidade. Analisaremos, para tanto, dois tipos de política pública, tomados enquanto paradigma para a compreensão dos diversos caminhos possíveis para a questão cultural no Brasil. Primeiramente, estudaremos as leis de incentivo fiscal, uma forma de parceria público-privada na qual parte dos impostos devidos à União é direcionada, pelas empresas ou entes privados, a investimentos na área da cultura. Tal política apresenta-se, hoje, como a principal forma de fomento a atividades culturais no pais. Em seguida, analisaremos o programa Cultura Viva, desenvolvido com base nos chamados Pontos de Cultura, que configuram projetos culturais financiados diretamente pela União. Evidentemente não temos a pretensão, aqui, de esgotar o assunto nem de chegar a perspectivas conclusivas que se restrinjam à consideração de um bom ou mal modelo. O nosso objetivo é apresentar o quadro atual e suscitar reflexões criticas a seu respeito, a partir do questionamento de sua eficácia em termos de promoção cultural de forma democrática e


102 heterogênea, considerando as fortes disparidades econômicas que caracterizam o cenário brasileiro. 3.1.1 As parcerias público-privadas e as leis de incentivo fiscal Atualmente, a política cultural do Brasil baseia-se predominantemente nas parcerias público-privadas que ocorrem através das Leis de Incentivo Fiscal, presentes nas instâncias políticas federal, estadual e municipal. Por representarem, em volume de recursos investidos, o principal instrumento de fomento cultural do país, tais leis caracterizam a atual situação de protagonismo dos agentes privados no cenário da cultura nacional. O Incentivo Fiscal é um recurso que permite a transferência de Recursos Públicos através da iniciativa privada. Em outras palavras, é um instrumento que possibilita que os investimentos em cultura feitos pelas empresas sejam descontados, integral ou parcialmente, de seus tributos devidos. A Lei Federal de Incentivo à Cultura, também conhecida como Lei Rouanet, foi criada em 1991 como meio de instituição de políticas públicas para a cultura nacional. Através desta, estabeleceu-se o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), responsável por canalizar recursos para o desenvolvimento do setor cultural. O PRONAC funciona por meio de dois principais mecanismos de apoio: as Leis de Incentivo Fiscal, através da qual cidadãos (pessoa física) e empresas (pessoa jurídica) podem aplicar parte do Imposto de Renda devido em projetos culturais, e o Fundo Nacional da Cultura (FNC), mecanismo em que recursos da União são diretamente investidos em ações culturais. O FNC seria um instrumento de inclusão, no âmbito dos investimentos governamentais, de programas culturais que não se incluem na gama de interesses das empresas. O mecanismo de renúncia fiscal da Lei Rouanet funciona da seguinte maneira: o proponente – pessoa física com atuação na área cultural ou pessoa jurídica pública ou privada, com ou sem fins lucrativos, de natureza cultural – apresenta, por meio de Edital disponível anualmente, uma proposta cultural ao Ministério da Cultura que responsabiliza-se pela aprovação da mesma e do estabelecimento do volume de recursos a ser captado. Assim, após ter a sua proposta aprovada, o proponente deve captar o valor autorizado junto a empresas tributadas ou pessoas físicas sujeitas ao pagamento do Imposto de Renda. Os recursos utilizados no apoio a um projeto cultural via Lei Rouanet podem ser


103 revertidos de forma total ou parcial na dedução do imposto devido, sendo o desconto máximo permitido para pessoas jurídicas de 4% do total do imposto devido e para pessoas físicas de 6% do mesmo. A porcentagem do investimento a ser descontada depende do caráter da proposta, e do seu enquadramento no Artigo 18, ou no Artigo 26 da lei. Para enquadrar-se no Artigo 18, que permite o desconto de 100% do valor investido no imposto devido, a proposta deve referir-se a uma das seguintes áreas: artes cênicas; livros de valor artístico, literário ou humanístico; música erudita ou instrumental; exposições de artes visuais; doações de acervos para bibliotecas públicas, museus, arquivos públicos e cinematecas - bem como treinamento de pessoal e aquisição de equipamentos

para

a

manutenção

desses

acervos;

produção

de

obras

cinematográficas e videofonográficas de curta e média metragem e preservação e difusão do acervo audiovisual; preservação do patrimônio cultural material e imaterial; e construção e manutenção de salas de cinema e teatro, que poderão funcionar também como centros culturais comunitários, em Municípios com menos de 100.000 (cem mil) habitantes. No caso de a proposta não enquadrar-se neste Artigo, mas sim no Artigo 26, o investidor, se pessoa física, poderá descontar oitenta por cento das doações e sessenta por cento dos patrocínios e, se pessoa jurídica, quarenta por cento das doações e trinta por cento dos patrocínios. A Lei de Incentivo Estadual em Minas Gerais atua, no âmbito da Secretaria Estadual de Cultura, de forma similar à Lei Rouanet, com a diferença de que a isenção é feita sobre o ICMS (imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação). Já a Lei Municipal, em Belo Horizonte, enquadrase no programa da Fundação Municipal de Cultura e refere-se a isenções do ISS (imposto sobre qualquer serviço). Para cada uma das Leis de Incentivo mencionadas existem Editais diversos, com pré-requisitos específicos para a inscrição de projetos culturais. Além das referidas leis de incentivo existem também outros mecanismos pelos quais as parcerias público-privadas no âmbito cultural podem ocorrer. Dentre eles destacam-se as doações, os patrocínios diretos, os termos de parceria e/ou de cooperação e os convênios. Feito este panorama explicativo do funcionamento das Leis de Incentivo, passa-se a uma análise de seus possíveis reflexos na cena cultural brasileira. É inegável o fato de que tais iniciativas geram grande incremento no montante de


104 recursos a serem investidos em cultura anualmente no país, aumentando o volume e as próprias possibilidades de alcance de exposições, concertos e outras atividades culturais, que teoricamente teriam mais dinheiro para se realizarem e percorrerem o pais. O que precisa ser questionado, no entanto, é até que ponto esse aumento de recursos disponíveis para cultura reverte-se diretamente em benefícios sociais, já que partem de empresas privadas que por seu caráter, funcionam a base da busca pelo lucro. Assim, mesmo que tal sistema possa, à primeira vista, parecer inteiramente benéfico, uma análise mais profunda de seus mecanismos torna evidentes muitas de suas contradições. Tais contradições advém, principalmente, do fato de as empresas muitas vezes usarem estes instrumentos em termos publicitários e auto-beneficitários, invertendo a lógica da promoção cultural, que ao invés de ser pensada em termos sociais, passa a ser considerada em termos essencialmente mercadológicos. Sendo assim, os recursos que teoricamente deveriam ser encaminhados ao Estado, que - também supostamente - deveria usálo de maneira a contribuir para a diminuição das diferenças de oportunidade, acabam sendo utilizados em forma de benefício para as próprias empresas, gerando um cenário cultural muitas vezes manipulado em prol do lucro. A busca por retorno financeiro, como se sabe, é premissa fundamental à sobrevivência de qualquer empresa privada, situação cujo questionamento em si não cabe no escopo deste trabalho. O que nos interessa aqui e que julgamos de fato questionável, não seria, assim, essa lógica per se, mas o fato de ela espalhar-se de maneira excessiva no âmbito do fomento à cultura, campo extremamente relevante na questão identitária e de formação critica da população. Analisemos, por exemplo, a forma com que normalmente ocorre a escolha de projetos a serem financiados pelas instituições privadas. Tal decisão responde, de maneira geral, a planos publicitários pensados e articulados por equipe especializada dentro da empresa, em termos estratégicos de aumento de visibilidade da marca e, conseqüentemente de público consumidor de seus produtos. Para citar um exemplo, empresas de telefonia móvel, grandes financiadoras de cultura no pais, possuem a possibilidade de utilizar o mecanismo de renúncia fiscal como forma de atingir novos públicos, de forma a garantir que os recursos devidos ao Estado retornem a ela em forma de propaganda. Ou seja, tal mecanismo torna-se extremamente interessante em termos de lucratividade, gerando um cenário no qual o que passa a ter condições de se desenvolver enquanto projeto cultural deva,


105 preferivelmente, seguir essa lógica. Nesse contexto, são privilegiadas propostas que, assim como as demais práticas da empresa, gerem possibilidades concretas de se traçar metas, fazer diagnósticos e prever resultados. Projetos referentes ao circuito organizado, ou à chamada

dimensão

sociológica

da

cultura,

onde

os

procedimentos

são

institucionalizados, mostram-se, dessa forma, extremamente interessantes enquanto foco de investimentos. A cultura que acontece no plano cotidiano é, assim, não só tratada em segundo plano pelas empresas, mas muitas vezes silenciada em prol de uma cultura organizada, institucionalmente afirmada e estrategicamente lucrativa. Além disso, mesmo dentre as propostas culturais institucionalizadas, normalmente privilegiadas em detrimento de projetos do chamado “campo antropológico”, observa-se uma espécie de hierarquização. Não basta apenas fazer parte do circuito organizado, para conseguirem financiamento tais propostas precisam

enquadrar-se

nos

interesses

mercadológicos

de

seus

possíveis

financiadores, tanto com relação ao conteúdo quanto ao público e à área que pretendem atingir. Observa-se, assim, a disseminação de grande numero de projetos de cunho espetacular e acrítico, e mais recentemente, uma busca por projetos ditos sociais, que seria estimulada também por motivos econômicos de imagem da empresa. A respeito da área de atuação, variável importantíssima na escolha de projetos a serem financiados, duas

condições parecem ser

fundamentais: a proximidade da mesma à sede da empresa e o poderio econômico da sua população. Assim, para captar recursos, os projetos culturais absorvem a lógica mercadológica empresarial de maneira cada vez mais explícita. Isto não ocorre apenas no plano da ação cultural, mas parece afetar também a realidade dos equipamentos físicos destinados à cultura. Os museus e demais equipamentos culturais passam, muitas vezes, a funcionar de acordo com a lógica do mercado, sendo os seus programas e até suas estruturas físicas, concebidas de forma a atender as exigências e expectativas dos possíveis patrocinadores. Segundo Moacyr dos Anjos, [...] essas instituições, em maior ou menor grau, têm se acomodado com a relativa facilidade com que podem programar exposições já organizadas por produtores privados e com patrocínio também já garantido por empresas de captação, eximindo-se da responsabilidade de tornarem-se, elas mesmas, enunciadoras de um discurso crítico em relação à produção artística. (ANJOS, 200-)


106 Este cenário faz com que a experiência cultural dos cidadãos seja conduzida, muitas vezes, a partir de interesses mercadológicos internos das empresas, que, conforme visto no capitulo 2, passam a absorver também o imaginário e a formação critica da população, tratando-os enquanto esfera de consumo. Assim, o que julgamos importante de ser discutido nesse ponto é, mesmo que tais métodos de incentivo fiscal contribuam para o aumento dos recursos financeiros direcionados ao campo cultural, como e para quem tal fomento se mostra verdadeiramente interessante? Ou, até que ponto esse fomento responde ao real contexto cultural do país, cujas atividades se dão muitas vezes em um âmbito que não interessa estrategicamente

às

empresas

investidoras?

E,

principalmente,

quais

as

conseqüências de tal método ser responsável por quase a totalidade de investimentos culturais do Brasil? Dessa forma, acreditamos que o principal problema enfrentado no cenário cultural do Brasil hoje, não refira-se apenas ao caráter das Leis de Incentivo tomado de maneira isolada, mas ao fato de que este mecanismo corresponda a uma parcela desproporcionalmente grande das políticas culturais do país, a ponto de configurar praticamente um monopólio. Observa-se, por exemplo, segundo dados do Ministério da Cultura (2012), que no ano de 2011, 96,5 % do total de recursos investidos em cultura no Brasil partiram da iniciativa privada através das Leis de Incentivo. Este número mostra a enorme influência das decisões internas de grandes empresas no que é produzido em termos de cultura no país, e do papel minoritário do FNC. Assim, o volume de recursos investidos no âmbito formal da cena cultural acaba por ser nitidamente desproporcional àquele investido na esfera cotidiana e “antropológica” da mesma, que daria condições para que iniciativas culturais menores, mais diversificadas e dispersas tivessem iguais possibilidades de se desenvolver. A questão que se põe, então, é a de como criar condições para que também o caráter não institucionalizado da cultura seja potencializado, mantendo-o em sua lógica própria mas dotando-o de condições para que este tenha seu devido espaço e possa, assim, servir de base para o desenvolvimento efetivo da cultura e da arte enquanto instrumentos de transformação e desenvolvimento social. É a partir da busca por essa resposta que nascem os Pontos de Cultura, que analisaremos a seguir.


107 3.1.2 Ensaios para uma cultura mais democrática: os Pontos de Cultura O Ponto de Cultura é a ação prioritária e articuladora do Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva, criado em 2004 pelo Governo Federal e executado pela Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC/MinC). O programa tem como intuito principal criar possibilidades para que grupos culturais minoritários se desenvolvam e também protagonizem a cena cultural nacional. Para tanto, o programa pretende, a partir da ampliação do acesso aos meios de produção, circulação e fruição dos serviços culturais, incorporar linguagens artísticas ao processo da cidadania e, com isso, fomentar uma rede horizontal de transformação social por meio da ação cultural. A grande diferença entre tal política e as parcerias público-privadas que se dão por meio de Leis de Incentivo Fiscal reside no fato de que, enquanto nesta última os recursos a serem investidos em cultura passam pela mão das empresas, nos Pontos de Cultura os investimentos são feitos diretamente do Estado. Enquanto possível conseqüência desse quadro podemos apontar para o fato de que, diferentemente da política de Leis de Incentivo, nos Pontos de Cultura os interesses mercadológicos empresariais não influenciam na escolha dos projetos a serem implementados, visto que o incentivo é feito sem passar pelas mãos dos agentes privados. Tal fato contribuiria, assim, para a consideração de uma perspectiva mais heterogênea e múltipla no cenário cultural brasileiro. Com efeito, Célio Turino, coordenador e idealizador do programa Cultura Viva, apresenta-o enquanto resposta para a urgente necessidade de ações vivas, que contemplem o Brasil a partir de uma perspectiva plural: Precisamos descobrir o Brasil! Precisamos desesconder o Brasil, mostrá-lo para nós mesmos e para o mundo. Precisamos entender o Brasil: em lugar de conceitos rígidos, noções líquidas; em lugar da reta, a curva. Precisamos fundir-nos com o Brasil, tomar um banho em suas águas, que são muitas. Precisamos conhecer mais os fenômenos em ebulição e construir conceitos que se modelem em contato com a realidade viva. (TURINO, 2005, p. 135).

Financiado por recursos do Governo Federal, o Programa Cultura Viva contribuiu, entre os anos de 2004 e 2012, para a criação de 3662 Pontos de Cultura no Brasil, dos quais 3034 encontram-se atualmente conveniados. Este resultado deve-se, em parte, a parcerias que o governo federal mantém com os governos estaduais e municipais, que objetivam uma maior abrangência do programa, além da


108 descentralização de sua gestão. Segundo dados do Ministério da Cultura, as redes estaduais abrangem, atualmente, 25 unidades da federação e o Distrito Federal e as redes municipais estão implementadas, ou em estágio de implementação, em 56 municípios. Em mapa desenvolvido em 2007, três anos após a implementação do programa, pode-se observar a presença de uma tendência, desde a fase inicial, à contemplação do território nacional de forma integral, apesar da ainda forte concentração de investimentos na região Centro-Sul. Figura 1 – Mapa dos municípios brasileiros com Pontos de Cultura em dezembro de 2007

Fonte : INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2011

Os Pontos de Cultura nascem de iniciativas da sociedade civil que, através de seleção por editais públicos, vinculam-se ao Ministério da Cultura e, por meio da verba recebida nesta parceria - R$ 60 mil por ano, divididos em parcelas semestrais e renováveis por três anos - tornam-se responsáveis por articular e impulsionar ações culturais nas comunidades. Conforme pode ser visto no Grafico 1, é significativo o numero de casos nos quais se estimulam atividades já existentes, ou seja, o programa “potencializa as ações, mas a dinâmica dos circuitos comunitários é relativamente independente dele.” (SILVA; ARAUJO, 2010, p. 76).


109 Gráfico 1 – Anterioridade dos grupos e atividades em relação aos programas e formas de instituição predominantes em 2007

Fonte : INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2011

Como pode ser observado, dentre os Pontos de Cultura existentes em 2007 no pais, 55% foram precedidos por associações, 14% por grupos artísticos, 8% por atividades comunitárias e 5% por pessoas. Dentre eles 17% tiveram o início de suas atividades a partir da aderência ao programa. Destaca-se o importante papel das associações nesse cenário, responsáveis por mais da metade dos antecedentes dos pontos. Dentre as atividades desenvolvidas por esses pontos destaca-se, como pode ser observado no Gráfico 2, a música, as chamadas manifestações populares e o audiovisual.


110 Gráfico 2 – Atividades desenvolvidas nos Pontos de Cultura em 2007

Fonte : INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2011

Segundo Frederico Barbosa “Ponto de Cultura não tem um modelo único de instalações físicas, de programação ou de atividades. Um aspecto comum a todos eles é a transversalidade da cultura e a gestão compartilhada entre o poder público e a comunidade“ (BARBOSA, 2011, p. 43). A ausência de padrão a ser seguido pelos Pontos de Cultura possibilita que os mesmos sejam livres para se adequar aos interesses e necessidades próprios de cada comunidade, garantindo assim, a manutenção de sua heterogeneidade. Segundo Turino, os Pontos de Cultura: [...] são organizações culturais da sociedade que ganham força e reconhecimento institucional ao estabelecer uma parceria com o Estado. Aqui há uma sutil distinção: o Ponto de Cultura não pode ser para as pessoas, e sim das pessoas; um organizador da cultura no nível local, atuando como um ponto de recepção e de irradiação de cultura. Como um elo na articulação em rede, o Ponto de Cultura não é um equipamento cultural do governo nem um serviço. Seu foco não está na carência, na ausência de bens e serviços, e sim na potência, na capacidade de agir de pessoas e grupos. Ponto de Cultura é cultura em processo, desenvolvida com autonomia e protagonismo social. (TURINO, 2009, p. 64).

A partir da descrição de Turino depreendem-se dois pontos principais, que regem a proposta do programa como um todo: a noção de rede e a idéia de potência. Tais idéias, consonantes com a noção deleuziana do rizoma, podem ser vistas como contraponto à idéia que subjaz ao mecanismo de Lei de Incentivo fiscal acima descrito. Enquanto os Pontos de Cultura procuram funcionar a partir de um


111 movimento horizontal, contínuo e articulado, as Leis de Incentivo estabelecem, como princípio, uma relação vertical entre investimento e cultura, no qual o mercado dita as regras e as empresas colhem os frutos. Neste processo, as atividades culturais devem, muitas vezes, absorver lógicas que lhes são externas, tendo sua pluralidade - e conseqüentemente a sua potência - enfraquecida em prol da visibilidade e do lucro das grandes empresas. Vale dizer, no entanto, que este movimento vertical e portanto, hierarquizado, também caracterizaria políticas fundadas no direcionismo estatal, no qual o Estado assumiria as rédeas da questão enquanto protagonista e promotor único da cultura. É justamente na horizontalidade do movimento, nos quais os protagonistas se tornam a própria comunidade, e na multiplicidade de suas possibilidades, que os Pontos de Cultura se distanciam das demais políticas atualmente adotadas pelos governos locais. Por isso potenciar o que já existe. Acreditar no povo, firmar pactos e parcerias com o que o Brasil tem de melhor: o brasileiro.Mas isso não significa um simples “deixar fazer”, porque, neste caso, os gostos e imposições da indústria cultural acabariam prevalecendo. Da mesma forma, querer levar “luzes”, selecionar cursos e espetáculos que julgamos mais adequados e sofisticados, também continuaria reproduzindo a mesma relação de dependência e subordinação e apenas trocaríamos o dirigismo de mercado pelo de Estado. Com o Cultura Viva, vamos experimentar uma outra alternativa, o desenvolvimento aproximado entre Pontos de Cultura. (TURINO, 2005, p. 197)

Cada Ponto se conforma, assim, como um elo movente de uma rede que se transforma e é transformada de forma contínua, uma rede múltipla. Lê-se em Gilles Deleuze: É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-l (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma. Um rizoma como haste subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e radículas. (DELEUZE; GUATARI; 1995, p. 4).

O Ponto, na teoria de Deleuze, representaria o elo, mas são as linhas que exercem o papel principal. “Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo.” É através destas linhas que se fazem as conexões (horizontais) e se cria um todo, do qual o uno é subtraído. Um possível paralelo com a política dos Pontos de Cultura poderia partir da conectividade entre os pontos, que


112 geram a diversidade e a alimentam. Sem a conexão o ponto seria apenas um ponto, mas não conformaria uma rede. E a cultura, nada mais é do que uma rede colaborativa e cambiante, uma rede viva. Observa-se que a conexão neste caso é intencional, já que, ao se conformarem enquanto Pontos de Cultura, os projetos culturais passam a fazer parte da chamada “Rede de Pontos de Cultura” e, nessa qualidade, passam a participar dos encontros promovidos para definição da gestão compartilhada do programa, entre poder público e sociedade civil: as Teias encontros presenciais realizados anualmente, a iTeia portal virtual na internet para intercâmbio de idéias e ações, os Fóruns e a Comissão Nacional dos Pontos de Cultura. Na teoria deleuziana, além do princípio da conectividade, destaca-se a idéia de potência, outro princípio que sedimenta a política dos Pontos de Cultura. Quando Turino menciona que o programa baseia-se na potência de ação, e não na carência ou na falta de serviços, nos remete ao que Deleuze fala sobre a relação entre poder e potência: [...] Eu dizia que efetuar algo de sua potência é sempre bom. É o que diz Spinoza. Mas isso traz problemas. É preciso especificar que não existem potências ruins. [...] O ruim é o menor grau de potência. E este grau é o poder. O que é a maldade? É impedir alguém de fazer o que ele pode, é impedir que este alguém efetue a sua potência. Portanto, não há potência ruim, há poderes maus. A confusão entre poder e potência é arrasadora, porque o poder separa sempre as pessoas, que estão a ele submissas, do que elas podem fazer [...] impedem a efetuação da sua potência. (DELEUZE, 1988).

Assim, segundo Deleuze, deve-se priorizar a potência. E esta potência, em consonância com a política dos Pontos de Cultura, reside nos movimentos superficiais, horizontais. Segundo Turino, Nossa idéia é que a troca, a instigação e o questionamento, elementos essenciais para o desenvolvimento da cultura, aconteça num contato horizontal entre os Pontos, sem relação de hierarquia ou superioridade entre culturas. Um Ponto auxiliando outro Ponto. Alguns oferecem uma experiência mais avançada em teatro, outros em dança; ações sócioeducativas aprendem com a vanguarda estética que se encontra com a tradição e ajudam a construir o novo. Uma troca entre iguais que aprendem entre si e se respeitam na diferença. (TURINO, 2005, p. 137).

Assim, se o princípio das políticas público-privadas - por sedimentar-se no lucro das empresas - muitas vezes prioriza eventos de caráter espetacular, observase nos Pontos de Cultura, uma maior liberdade - graças à independência da idéia do


113 lucro - de promoção de instigação e questionamento, considerando, para isso, uma perspectiva polifônica. Perspectiva esta, segundo Bárbara Szaniecki e Gerardo Silva (2010a), capaz de responder tanto a demandas históricas de resistência - como a dos indígenas e quilombolas, quanto a demandas mais atuais, que dizem respeito aos movimentos de software livre e de formas alternativas de produção cooperativa e autônoma. Segundo eles trata-se de uma produção-circulação realizada por população bastante diversificada e conectada, compostas por afrodescendentes, caiçaras, crianças e jovens, LGBT, indígenas, mulheres, portadores de deficiências, populações em risco social, populações rurais e urbanas, idosos. Poderíamos fazer, aqui, um paralelo com o conceito negriano de Multidão, já que, apesar de Turino mencionar o termo “povo” em seus discursos, o programa parece pautar-se justamente sobre uma perspectiva imanente, de reunião de singularidades diversas e potentes. Dentre os programas que atuam em conjunto com os Pontos de Cultura na concretização de respostas para essa rede de demandas diversificadas, destacamse o Cultura Digital, o Escola Viva, o Griô e o Economia Viva. O programa Cultura Digital busca a inclusão digital a partir de um outro modo de se pensar a tecnologia, no qual generosidade intelectual e colaboração assumem papel fundamental, e o software livre representa a opção tanto filosófica quanto tecnológica. O Escola Viva pretende estabelecer parcerias entre os Pontos de Cultura e as escolas, no intuito de aproximar a educação do envolvimento social e urbano, expandindo o processo educativo para além dos muros da escola a partir da lógica de cidade educativa. O Griô objetiva conceder bolsas para que velhos mestres do saber popular possam transmiti-los a jovens aprendizes, em um movimento que envolve memória e tradição, mas também futuro e ruptura (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2008). O programa Cultura Digital apresenta-se enquanto um dos aspectos chaves para o desenvolvimento do Cultura Viva, já que busca instrumentalizar os Pontos para que estes

tenham maior possibilidades de conexão e possam, assim,

conformar uma rede efetivamente integrada. A respeito da adesão ao programa, observa-se na Tabela 1 que, apesar de mais da metade dos pontos existentes em 2007 terem recebido o kit multimídia, apenas 17% desses pontos demonstraram participar da rede. Isso parece se dever às muitas dificuldades encontradas pelos pontos no manejo e desenvolvimento dessas técnicas. Como pode-se constatar a partir da Tabela 2, tais dificuldades relacionam-se principalmente à insuficiência de


114 suporte técnico, à ausência de base técnica e à obrigatoriedade do uso de software livre, sobretudo na região Nordeste. Tabela 1 – Adesão à ação Cultura Digital em 2007

Fonte : INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2011

Tabela 2 – Dificuldades da ação Cultura Digital em 2007

Fonte: INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2011

Faz-se aqui, um parênteses para a análise do Economia Viva. Este programa, que pretende apoiar a articulação sustentável das produções e manifestações artísticas dos pontos rizomáticos, cria, segundo Szaniecki (2010a) um contraponto à chamada Indústria Criativa, descrita no capítulo precedente. Enquanto a Indústria Criativa tende a criar um sistema cultural movido por preceitos industriais de montagem e consumo, fomentando a criação de uma cultura homogênea e


115 massificada, o programa Economia Viva, através dos Pontos de Cultura, busca atuar a partir de práticas e modelos de negócios baseados na economia solidária, ou seja, na autonomia através da articulação em rede, da colaboração, do crescimento sustentável e do comércio justo. A cultura seria, assim, tratada como vetor de geração de renda, como atividade econômica fruto de relações sociais e coletivas, sendo as atividades propostas baseadas não na competitividade, mas na cooperação. A idéia seria a de, a partir de um sistema de subsídios e do acompanhamento técnico necessário, fazer com que os Pontos tivessem condições de comercializar seus próprios serviços e de alcançar a sustentabilidade financeira. Segundo análise feita pelo IPEA, em 2007 (Tabela 3) cada Ponto de Cultura contava, em média, com onze trabalhadores - a maioria integrantes da própria comunidade - dentre os quais sete remunerados, o que corresponderia a cerca de quatro mil pessoas diretamente beneficiadas. Além disso, 83% dos Pontos têm outros parceiros financeiros e 97% se relacionam estavelmente com escolas, empresas, organizações não governamentais (ONGs) e secretarias (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2011), o que mostra o papel do programa no sentido de potencializar os dinamismos culturais locais, promovendo a sua sustentabilidade. Tabela 3 – Pessoas que trabalhavam nos Pontos de Cultura em 2007

Fonte : INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2011

Com relação ao público participante do programa, destaca-se a presença de adolescentes e jovens adultos, crianças e estudantes da rede pública, que representam as três opções mais citadas pelos coordenadores dos Pontos, quando


116 questionados a respeito do público principal dos mesmos, em 2007. A partir da análise da Tabela 4 podemos observar também, que tal público conforma-se em sua maioria por residentes na própria comunidade, o que afirma o caráter pretendido por essa política, de benefício real às populações locais. Tabela 4– Pessoas que participavam das atividades dos Pontos em 2007

Fonte : INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2011

Quanto à escala de abrangência dos Pontos, observa-se no Gráfico 3 que a maioria deles abarca os âmbitos municipal e estadual, apenas 15% restringindo a sua atuação ao âmbito da comunidade. Gráfico 3 – Escala de atuação dos Pontos de Cultura em 2007

Fonte: INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2011


117

Apesar de os dados disponíveis para a análise do desempenho do programa referirem-se ao ano de 2007, acreditamos que a exposição dos mesmos seja de extrema relevância para o entendimento dos alcances iniciais da política dos Pontos de Cultura e de suas limitações. Dentre os êxitos do programa, que anuncia grandes conquistas frente ao tratamento tradicionalmente dado à questão cultural pelo governo nacional, destacase o fato de o mesmo visar a sustentabilidade e a emancipação de grupos culturais minoritários, através da aliança entre cultura, direito à cidade e economia. Para Szaniecki e Silva, através do programa, “eis que a ética, a estética e a economia caminham juntas, e caminham, sobretudo, para além do mercado.” (SZANIECKI; SILVA, 2010a, p. 18). Para além, principalmente, do monopólio das políticas públicoprivadas que caracterizam a chamada Indústria Criativa e que se consolidam a partir das Leis de Incentivo Fiscal. No entanto, em meio aos inegáveis avanços apontados pela análise, emergem, ainda, muitos aspectos a serem melhorados. Dentre eles destaca-se a falta de preparo técnico tanto da máquina burocrática Estatal quanto da população beneficiada pelo programa, que sem suporte, acaba por enfrentar muitas dificuldades em termos da prestação de contas e regulamentação dos investimentos recebidos. Isso se deve, muitas vezes, ao caráter heterogêneo dessas populações dentre as quais enquadram-se comunidades quilombolas, indígenas, rurais, etc. nas quais muitas vezes os hábitos e a própria língua configuram-se enquanto barreira. Faz-se necessária, assim, a capacitação dos gestores dos Pontos de Cultura, atividade que apesar de já ser o escopo dos chamados Pontões, carece de melhorias que poderiam ser conseguidas através de um Estado mais ágil e eficiente. Surge, assim, a necessidade de um processo de capacitação no próprio governo, de forma a dotar o sistema Estatal de instrumentos administrativos e jurídicos mais adequados, capazes de suportar, de maneira efetiva, políticas de formato tão complexo. Apesar disso, acreditamos que a presença de tais problemas não deva ser usada enquanto justificativa para a desaceleração do projeto, como vem sendo observado nos últimos anos. Tal processo, que ocorre principalmente a partir de Agosto de 2009 (Tabela 5), quando terminaram os convênios trienais realizados e os mesmos não foram proporcionalmente substituídos, é potencializado em 2010, a


118 partir da mudança do governo Lula para o governo Dilma. Segundo o Ministério da Cultura, pelo fato de o projeto encontrar-se atualmente em processo de reformulação, não estão disponíveis dados mais atualizados. Tabela 5 - Tabela orçamentária dos Pontos de Cultura

Recursos Orçamentários

Pontos de Cultura Apoiados**

2004

R$ 14.899.029,00

0

0

2005

R$ 67.845.311,00

442

1.458.600

2006

R$ 50.977.644,00

642

2.118.600

2007

R$ 158.585.301,00

742

2.448.600

2008

R$ 141.943.722,00

2.466

8.137.800

2009*

R$ 130.183.000,00

2.372

6.550.000

Ano

Pessoas Capacitadas (com freqüência regular e esporádica)***

* Até Outubro de 2009 ** Com o término de convênios realizados com Pontos de Cultura, o total de Pontos de Cultura Apoiados passou a decrescer a partir de Agosto de 2009. *** Pesquisa avaliativa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) Fonte: MINISTÉRIO DA CULTURA, 2008

Com a desaceleração do programa Pontos de Cultura, o cenário cultural brasileiro permanece dominado pela política das Leis de Incentivo Fiscal, o que acarreta, como vimos acima, muitas vezes o predomínio do caráter econômico em detrimento ao social na promoção cultural do país. Este panorama gera um cenário caracterizado pela forte concentração de investimentos culturais em áreas estrategicamente mais interessantes para as empresas, gerando reflexos na distribuição geográfica dos equipamentos de promoção cultural. É este cenário que analisaremos a seguir, utilizando a cidade de Belo Horizonte como estudo de caso. 3. 2 Distribuição territorial dos equipamentos culturais em Belo Horizonte


119 Uma das principais conseqüências do quase monopólio exercido pelo fomento privado via Leis de Incentivo Fiscal no âmbito das políticas culturais hoje exercidas no Brasil é a distribuição geográfica desigual dos investimentos culturais em território nacional. Em 2011, 70% do total dos investimentos feitos via Lei Rouanet em cultura foram direcionados a São Paulo e Rio de Janeiro, que representam apenas 30% da população nacional, mas correspondem juntos a 44% do PIB do país. A mesma concentração repete-se em Minas Gerais, onde a maior parte de tais investimentos vai para a Região Metropolitana de Belo Horizonte, área que apresenta o maior PIB do estado. (NEXO INVESTIMENTO SOCIAL, 2013).

Gráfico 4 – Investimentos via Lei Rouanet em 2011

Fonte: NEXO INVESTIMENTO SOCIAL, 2012

De forma a analisar esta questão no nível urbano, produzimos um mapa georreferenciado que ilustra a distribuição dos equipamentos culturais da cidade de Belo Horizonte. Figura 2 - Concentração territorial dos investimentos em cultura no Brasil

Fonte: Figura do autor

O mapa, disponível para consulta e aberto à colaboração através do Google


120 Maps, pretende criar um panorama espacial do cenário cultural de Belo Horizonte a partir da localização dos equipamentos culturais nela presentes. Parte-se, para tanto, da hipótese de que as instâncias políticas e os tipos de financiamento utilizados no fomento à cultura na cidade contribuem para este cenário. Assim, devido ao próprio escopo da análise, que pressupõe a obtenção de informações precisas quanto à localização dos investimentos culturais efetuados, prioriza-se neste momento, o mapeamento dos equipamentos físicos. No entanto, tem-se consciência de que a cena cultural da cidade não se resuma apenas à presença dos equipamentos físicos, sendo as ocupações efêmeras e informais de suma importância para a sua concretização. Por esse motivo, o mapa encontra-se aberto para a colaboração virtual, e pretende ser completado de maneira gradual, a partir da inclusão, pela própria população, de movimentos culturais que surgirem na cidade ao longo do tempo. O mapa que aqui se apresenta pretende, assim, servir enquanto futura plataforma de conexão entre espaços e ações, de forma a constituir instrumento de mobilização da rede cultural da cidade. Por ora, os equipamentos mapeados foram divididos a partir de duas categorias principais: tipo de equipamento cultural e tipo de política a qual está ligado. Dentre os tipos de equipamento encontram-se: bibliotecas, arquivos públicos, centros de referência audiovisual, galerias, museus, teatros, espaços culturais, pontos de cultura, centros culturais e centro de formação técnica. Quanto ao tipo de política os equipamentos foram divididos a partir de sua ligação com a política federal, estadual ou municipal, ou de seu caráter privado. No mapa geral incluem-se também as categorias: equipamentos ligados a associações e galerias de venda de arte, que não fazem parte do escopo deste trabalho, mas constam no mapeamento completo online. Para acessar os conteúdos online do mapa no Google Maps utilize o link:7

7

Para acessar o link escaneie a imagem com o celular, ou acesse : https://maps.google.com/maps/ms?msid=216717530585269011535.0004d422aefdb3cea4aeb&msa= 0


121 3.2.1 Equipamentos ligados a políticas culturais federais Figura 28 – Mapa dos equipamentos culturais ligados a políticas federais em Belo Horizonte

Fonte: Google Maps, 2013a


122 Os equipamentos presentes nesse mapa resultam de políticas culturais nacionais, promovidas pelo Ministério da Cultura. Observa-se que tais políticas se dão no território de Belo Horizonte principalmente por meio dos Pontos de Cultura, os quais representam vinte e quatro dos vinte e cinco estabelecimentos mapeados. O único equipamento que não se constitui enquanto Ponto é a FUNARTE (Fundação Nacional de Artes), uma das fundações que compõe a estrutura do o MinC. As principais funções desse órgão englobam o incentivo à produção e à capacitação de artistas, bem como o desenvolvimento da pesquisa e da preservação da memória no âmbito nacional. A sua sede em Belo Horizonte encontra-se no bairro Floresta, na região Leste da cidade, e encontra-se estruturada para receber espetáculos de teatro, dança, circo, música e exposições de artes visuais, além de atividades de formação e reciclagem para profissionais dessas áreas. A respeito dos Pontos de Cultura, deve-se salientar que o mapeamento restringiu-se àqueles cujo espaço de atuação é explicitado nas informações oficiais, não englobando os Pontos que não possuem endereço catalogado por basearem-se em ações efêmeras e distribuídas pela cidade. Devido ao fato de o programa Cultura Viva ser baseado na aprovação de projetos temporários, salienta-se que este mapa é altamente dinâmico, tendo sua conformação alterada de acordo com a renovação ou não dos projetos. Dentre os Pontos de Cultura mapeados, dois conformam-se enquanto Pontões, ou seja, têm as suas ações voltadas para a formação de outros Pontos e para a articulação da rede. São eles: COMUNA S.A e o Centro de Convergência de Novas Mídias da UFMG. Quanto às atividades desenvolvidas nos Pontos mapeados destacam-se as seguintes temáticas: audiovisual, que é citada por nove dentre os vinte e quatro Pontos localizados e o teatro, segunda temática mais presente, sendo englobada por sete dos espaços mapeados. Além destas também constam as artes plásticas, a gestão cultural, a dança, a capoeira, a cenografia, a tecnologia, a música, a “contação de história”, a literatura, a memória, a tradição oral, dentre outros temas mais específicos. A cultura afro-descendente aparece como foco em três Pontos e a cultura popular é mencionada diretamente como objetivo em dois deles. Nota-se, em geral, que os temas abordados pelas iniciativas referem-se, na maioria das vezes, a temáticas relacionadas a grupos minoritários da população ou pouco assistidos pelas demais políticas culturais presentes no país, tais como


123 deficientes físicos, grupos de cultura afrodescendente, crianças carentes, moradores de vilas, dentre outros (Tabela 6). Quanto à distribuição geográfica dos Pontos, observa-se que a maioria encontra-se fora do perímetro da Avenida do Contorno, o que confirma o caráter descentralizador pretendido pelo programa. No entanto, se dentro desse perímetro localizam-se apenas quatro dos vinte e oito Pontos mapeados, a região Centro-Sul ainda assim é responsável por concentrar a maior parte deles: onze dos espaços presentes no mapa localizam-se nessa área. Na região Leste, responsável pelo segundo maior número de Pontos, localizam-se sete dos espaços mapeados, ou seja, 29% do total, contra 46% relativo à região Centro-Sul. A região Oeste aparece em seguida, com apenas dois Pontos. As regiões Noroeste, Norte, Pampulha e Venda Nova também são assistidas, contando cada qual com um Ponto. Assim, apesar de concentrarem-se sobretudo na região Centro-Sul e Leste, os Pontos de Cultura estão presentes em cinco das nove regiões administrativas da cidade. O número ainda reduzido de Pontos encontrados, bem como a falta de informação a seu respeito refletem as limitações ainda apresentadas pelo programa, que até agora demonstra não conseguir responder de maneira ampla aos objetivos a que se propõem, ao menos no território de Belo Horizonte. No entanto, apesar de a situação encontrar-se longe de ser ideal, pode-se perceber um início - que reflete-se claramente nos tipos de atividades abarcadas e nas temáticas nelas abordadas - de uma maior consideração de seguimentos minoritários da população no cenário cultural. Observa-se, por exemplo, que muitos destes espaços ou iniciativas caracterizam-se por um caráter ainda incipiente, sendo os recursos provenientes do Ponto de Cultura a única forma de mantê-los em atividade. Assim, o programa mostra-se importante no sentido de estimulá-los a darem um primeiro passo, de forma a gerar condições para que futuramente caminhem rumo a uma dinâmica de maior sustentabilidade financeira e conformem-se efetivamente, enquanto uma rede ativa. Na Tabela 6 foram reunidos todos os Pontos de Cultura mapeados, a sua localização e as principais temáticas abordadas pelos mesmos.


124 Tabela 6 – Tabela dos Pontos de Cultura de Belo Horizonte Nome do Ponto de Cultura

Localização

Grupo Artístico Cultural Quatro Crescente

Rua Josias Cassimiro, 445, Sagrada Família

Tecnologia e audiovisual

Associação Margem

Teatro

Rua Albita, 194, Cruzeiro

Artes cênicas e circo

Ponto de Cor(tição)

Cultura

Espaço

Rua João Gualberto de Abreu, 170, São João Batista

Diferentes linguagens artísticas e culturais

Ponto de Cultura Dim dim dom, berimbau chamou eu vou

Rua Dr. Brochado, 1.500, Saudade

Capoeira

Ponto de Cultura Parque Escola Cariúnas

Rua Luiz de Mello Mattos, 175, Planalto

Artes Plásticas e cenografia

Ponto de Especiais

Rua Divinópolis, 141 Santa Tereza (móvel)

A,

Comunicação, audiovisual, memória, teatro e música

4000,

Artes visuais, artes cênicas e audiovisual

Terceira

Cultura

Talentos

AMAS - Associação Municipal de Assistência Social

Av. Afonso Cruzeiro

Cine Aberto e Laboratórios de Filmes do Aglomerado da Serra

Rua Pouso Alto, 175, Serra

Tecnologia e audiovisual

Humiumbi - Raízes Africanas

Rua Tereza Mota Valadares, 989, Buritis

Artes Integradas

Ponto de Giramundo

Rua Varginha, 245, Floresta

Artes integradas (elaboração de bonecos)

Ponto de Cultura Querubins Comunidade em Rede Projeto Querubins

Vila Acaba Mundo, Sion

Arte, dança, audiovisual, informática, agricultura

Associação Crepúsculo - Arte, Saúde e Educação sem Barreiras

Rua Tomé de Souza, 83, Funcionários

Dança, artes, teatro, musica, contação de história

Favela é isso aí

Rua Henrique Passini, 194, Serra

Tradição oral, memória

Ponto de Cultura Associação do Grupo do Beco

Av. Arthur Bernardes,3876, Barragem Santa Lúcia

Audiovisual, teatro

Oficinas Pedagógicas de Prosa, Poesia e Teatro

Rua Geórgia, 85 / Bl 84, conj. 301, Estrela Dalva

Literatura e teatro

Flor do Cascalho - Raízes de ancestralidade gerando flores de cidadania

Rua Eduardo Porto, 612 B, Cidade Jardim

Capoeira

Aruanda Projetando Brasileiro

Folclore

Rua Espírito Santo, 757, 2º Andar, Centro

Cultura Popular

Programa de Formação Centro Multiculturalismo Comunitário

Rua Desembargador Bráulio, 938, Alto Vera Cruz

Audiovisual, música e cultura popular

Cultura

do

o

Museu

Pena,

Temáticas principais


125

Associação Imagem Comunitária

Rua Aquiles Floresta

309,

Audiovisual

Associação Filmes de Quintal

Av. Brasil, 75, Santa Efigênia

Audiovisual

Rua Inhanduti, 287, Caiçara

Artes Cênicas

Rua Conselheiro 3800, Horto

Artes Gráficas

Sera Reforma e Implantação Memória Gráfica Escola de Gravura

-

Que? Typografia

Lobo,

Rocha,

Pontão de Cultura COMUNA S.A

Rua Antônio Torres, Sagrada Família

53,

Pontão Centro de Convergência de Novas Midias UFMG

Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha FONTE : Dados da pesquisa

Gestão Cultural

Memória e patrimônio da cultura urbana


126 3.2.2 Equipamentos ligados a polĂ­ticas culturais estaduais Figura 3 - Mapa dos equipamentos culturais estaduais em Belo Horizonte

Fonte: Google Maps, 2013a


127

Neste mapa foram localizados os espaços diretamente relacionados às políticas culturais estaduais, por intermédio da Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais (SEC-MG). No âmbito da SEC-MG destaca-se a presença da Fundação Clóvis Salgado, entidade de direito público que conforma-se, assim como a Fundação TV Minas Cultural e Educativa, a FAOP (Fundação de Arte de Ouro Preto), o IEPHA-MG (Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais) e a Rádio Inconfidência, enquanto órgão de administração indireta da Secretaria. Na cidade de Belo Horizonte a atuação da Fundação Clóvis Salgado (FCS) mostra-se relevante, já que engloba, além da gestão do Circuito Cultural da Praça da Liberdade, a administração de cinco dos vinte e dois equipamentos presentes no mapa: o Palácio das Artes, o Centro de Formação Artística (CEFAR), a Serraria Souza Pinto, o Centro de Arte Contemporânea e Fotografia e o Centro Técnico de Produção (CTP), além de ser mantenedora de três Corpos Artísticos: a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais (OSMG), o Coral Lírico de Minas Gerais (CLMG) e a Cia. de Dança Palácio das Artes (CDPA). A ação deste órgão é feita em parceria com o Instituto Cultural Sérgio Magnani (ICSM), uma associação sem fins lucrativos qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). A atuação do ICSM inclui a gestão de projetos que viabilizam a programação artística dos estabelecimentos geridos pela Fundação Clóvis Salgado, tais como a realização de temporadas de óperas, de atividades de extensão e formação, a realização de exposições e eventos, entre outros. Além disso, o instituto é responsável pela gestão do Plug Minas, Centro de Formação e Experimentação Digital e, desde 2006, do Centro Técnico de Produção, que conforma-se enquanto pólo de criação e produção de cenários, figurinos e adereços para as produções artísticas da FCS. Conforme depreende-se da Tabela 7, entre os anos de 2007 e 2011 este instituto conformou-se enquanto o principal captador de recursos via Lei Rouanet do estado, concentrando nos estabelecimentos acima citados grande volume de recursos. Quanto à distribuição destes equipamentos observa-se que, com exceção do Plug Minas e do Centro Técnico de Produção, todos os outros encontram-se dentro do perímetro da Avenida do Contorno, o que configura um quadro extremamente concentrado.


128

Tabela 6 – Tabela dos maiores captadores de recursos de cultura em MG – 2007/2008

Fonte : NEXO INVESTIMENTO SOCIAL, 2013

Dentre os equipamentos geridos pela Fundação Clóvis Salgado em parceria com o Instituto Sérgio Magnani, destaca-se o Palácio das Artes, situado na Avenida Afonso Pena, na região central de Belo Horizonte e o Plug Minas. Conforme pode-se observar na Tabela 8, a qual ilustra, em ordem crescente, os vinte e cinco maiores investimentos feitos em Belo Horizonte via Lei Rouanet no ano de 2012, o Palácio das Artes adquire papel de destaque. O estabelecimento foi alvo direto de dois dos quinze maiores investimentos (em valor absoluto) feitos na cidade, de R$ 1.193.00,00 e de R$ 500.000, ambos provenientes da Cemig. Dentre as atividades desenvolvidas em seu espaço incluem-se teatros, concertos, mostras de arte e cinema. O equipamento abriga também os corpos artísticos da Fundação Clóvis Salgado - a Cia. de Dança Palácio das Artes, a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e o Coral Lírico de Minas Gerais - além do Centro de Formação Artística (CEFAR), que oferece cursos de música, teatro e dança para mais de 400 alunos. O Plug Minas, por sua vez, localiza-se no bairro do Horto, na região Leste de Belo Horizonte. O projeto, criado em 2009, constitui um dos programas estruturadores da política da SEC-MG e inclui atividades nas áreas de cultura digital, arte, idiomas e empreendedorismo, direcionadas ao público jovem. Dentre os mantenedores do programa tem-se a Usiminas, a PUC Minas, o SEBRAE MG o Instituto Servas, a Oi Futuro, a Fiat, a CEMIG, o SINTRAM, a Shell, a COPASA, o BDMG, a Vale, o Hospital Mater Dei e principalmente o Unibanco, que configura-se enquanto Mantenedor Master.


129

Tabela 7 – Investimentos via Lei Rouanet em Belo Horizonte ano 2012*


130

*Os números considerados correspondem a valores absolutos de investimentos unitários, não sendo considerada portanto, a soma dos recursos provenientes de todos os investimentos feitos nos espaços. Fonte : MINISTÉRIO DA CULTURA, 2013

Outro projeto estruturador das políticas da Secretaria de Estado de Cultura é o Circuito Cultural da Praça da Liberdade (CCPL), no qual observa-se ampla participação da iniciativa privada. Dentre os equipamentos que constituem esse programa têm-se o Arquivo Público Mineiro, a Biblioteca Pública Luiz de Bessa - que engloba em sua estrutura a Galeria de Arte Paulo Guimarães e o Teatro José Aparecido de Oliveira - o Espaço TIM UFMG do Conhecimento, o Museu das Minas e do Metal EBX, o Memorial Minas Gerais Vale, o Palácio da Liberdade, o Museu


131 Mineiro e o Centro de Arte Popular Cemig (CAP). Conforme pode ser observado na Figura 30, todos esses equipamentos, que representam quinze dos vinte e dois presentes no mapa, encontram-se nas proximidades da Praça da Liberdade, localizada na região Centro-Sul da cidade. O Arquivo Público Mineiro atua como superintendência da Secretaria Estadual de Cultura e responsabiliza-se pelos documentos acumulados e produzidos pelo Poder Público e pela iniciativa privada. A Associação Cultural do Arquivo Público Mineiro é uma entidade civil, sem fins lucrativos, criada com o intuito de captar recursos para financiamento dos projetos promovidos pela instituição. Dentre os patrocinadores deste equipamento destaca-se a Usiminas. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2002, p. 67). A Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa possui dentre os seus principais patrocinadores a V&M, a Cemig, a Belgo Mineira, a Usiminas e o ITA Representações de Produtos Farmacêuticos S/A. Dentre as ações patrocinadas, encontram-se o projeto de modernização da Biblioteca, no qual a V&M, a Cemig, a Belgo Mineira e a Usiminas injetaram recursos por meio da Lei de Incentivo Fiscal Estadual; a informatização do Acervo, patrocinada pela ITA Representações de Produtos Farmacêuticos S/A, a Cemig, a V&M e a Usiminas; e a coleção Mineiriana, cujo financiamento provém da Usiminas. (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2013) O Palácio da Liberdade, por sua vez, contou com o patrocínio da Oi Futuro, através do Instituto Cultural Oi Futuro, para financiamento do seu processo de restauração. Já o Museu Mineiro, capta recursos por meio da Associação de Amigos do Museu Mineiro, entidade responsável por promover convênios e parcerias com a iniciativa privada. O Centro de apoio ao visitante também integrará o circuito, instaurando-se no edifício Rainha da Sucata, que passa atualmente por um processo de restauração. Os demais edifícios integrantes do CCPL foram ou estão sendo construídos por meio de patrocínio direto, através de parcerias de implantação. São eles: O Espaço TIM UFMG do Conhecimento, o Museu das Minas e do Metal EBX, o Memorial Minas Gerais Vale e o Centro de Arte Popular Cemig (CAP) que já encontram-se em funcionamento, e a Casa FIAT de Cultura - que engloba o Museu do Automóvel - o Centro Cultural Banco do Brasil e o Inhotim Escola, que estão em fase de construção. Como pode-se observar o nome das empresas parceiras incluise na própria designação da instituição, o que confere grande valor de marketing


132 para tais ações. O Instituto Sérgio Magnani é responsável pela gestão de todo o Circuito. A Estação de Cultura Presidente Itamar Franco, outro projeto estruturador da SEC-MG, encontra-se em fase de construção. O espaço, que está sendo construído no bairro Barro Preto, na região Centro-Sul da cidade, foi projetado para abrigar as sedes da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, da Rádio Inconfidência e da Rede Minas de Televisão. Dentre estas instituições destaca-se a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, responsável por dois dos quinze mais altos investimentos (em valor absoluto) feitos em cultura, via Lei Rouanet, em Belo Horizonte no ano 2012, a saber: o 8º maior investimento em valor absoluto, que corresponde a R$ 590.000,00 e provém do banco Mercantil do Brasil, e o 10º maior, de R$ 500.000, 00 por parte da Supermix Concreto S.A. Além destes, a instituição ainda conta com patrocinadores como a Vale, o Banco Itaú, a Alupar, a Cemig, a Usiminas, a CBMM e a Localiza Rent a Car, sendo o Instituto Unimed e a construtora Mendes Junior também responsáveis por fornecer apoio cultural aos seus projetos. Observa-se, assim, que os equipamentos incluídos nesse mapa, encontramse dentre os principais focos de investimento da iniciativa privada na cidade (Figura 31), tendo sido diretamente beneficiados por quatro dos quinze maiores investimentos em valor absoluto feitos em cultura na cidade em 2012, que correspondem, além dos já citados investimentos no instituto Filarmônica e no Palácio das Artes, ao investimento de R$ 400.000,00 feito no Centro de Arte Popular Cemig (CAP) pela própria Cemig. Salienta-se que tais equipamentos encontram-se extremamente concentrados, situando-se dentro do perímetro da Avenida do Contorno e principalmente nas imediações da Praça da Liberdade. Deve-se mencionar também, que estes dados referem-se ao ano de 2012, no qual muitos dos espaços do Circuito Cultural da Praça da Liberdade já estavam concluídos, e que os mesmos não contemplam a totalidade dos recursos investidos em cada espaço, mas os maiores investimentos em valores absolutos.


133 Figura 4 – Mapa dos equipamentos culturais ligados a políticas estaduais com ampliação da Praça da Liberdade

Fonte: Google Maps, 2013a


134 Figura 5 – Mapa dos investimentos a equipamentos estaduais com ampliação na Praça da Liberdade

Fonte: Adaptado de Google Maps


135 3.2.3 Equipamentos ligados a políticas culturais municipais Figura 6– Mapa dos equipamentos culturais ligados a políticas municipais em Belo Horizonte

Fonte: Google Maps, 2013a


136

Observa-se, a partir do mapa acima, que os equipamentos culturais ligados às

políticas da Fundação Municipal de Cultura encontram-se distribuídos no

território de forma nitidamente mais dispersa do que os estabelecimentos referentes às políticas culturais estaduais. Dentre os espaços mapeados encontram-se o Museu de Arte da Pampulha, o Museu Abílio Barreto, o Espaço Cultural da Casa do Baile, o Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, o Centro de Referencia Audiovisual CRAV, o Centro de Cultura de Belo Horizonte (CCBH) e dois teatros – o Teatro Marília e o Teatro Francisco Nunes. Tais equipamentos situam-se em dois pólos principais, a saber, a área da Lagoa da Pampulha - um dos principais pontos turísticos da cidade - que conta com dois deles, e a região dentro ou imediatamente às margens da Avenida do Contorno, na qual se situam todos os demais. Além destes equipamentos destaca-se a presença de cinco bibliotecas públicas: uma situada no bairro Santo Antônio, na região Centro-Sul, duas localizadas na região Noroeste (Biblioteca Regional São Cristóvão e Biblioteca Regional Bairro Renascença) e as outras duas na região do Barreiro (Biblioteca Regional Bairro das Indústrias e Biblioteca Regional Santa Rita de Cássia). A região Centro-Sul abriga semanalmente também o projeto Ponto de Leitura, que ocorre aos domingos, no Parque Municipal. O que pode ser considerado enquanto principal projeto de descentralização da FMC seriam os chamados Centro Culturais, que somam atualmente dezesseis e encontram-se presentes de maneira relativamente dispersa pelo território urbano. Na região Norte situam-se três, o Centro Cultural Jardim Guanabara, o Centro Cultural São Bernardo e o Centro Cultural Zilah Spósito, no bairro Jaqueline. Na região da Pampulha têm-se dois, o Centro Cultural Lagoa do Nado e o Centro Cultural Pampulha, no bairro Urca. A região Leste compreende dois, O Centro Cultural Vera Cruz e o Centro cultural São Geraldo. A região Oeste apresenta um, o Centro Cultural Salgado Filho. Na região Noroeste encontra-se o Centro Cultural Padre Eustáquio e o Centro Cultural Liberalino Alves de Oliveira, no Barreiro têm-se o Centro Cultural Lindeia/Regina, o Centro Cultural Urucuia e o Centro Cultural Vila Santa Rita e em Venda Nova situa-se o Centro Cultural Venda Nova. Finalmente, a região Centro-Sul conta com o Centro Cultural Vila Marçola e o Centro Cultural Vila Fátima. Observa-se que as regiões que apresentam o maior numero de centros culturais são a Norte e o Barreiro. Tais espaços servem enquanto palco para muitas


137 das atividades relacionadas ao programa Arena Cultura, da Fundação Municipal de Belo Horizonte, que tem como escopo a promoção de oficinas, mostras, cursos, debates e seminários de forma a fazer com que a cena cultural da cidade se dê de forma descentralizada e articulada. Por mais que tais iniciativas possam parecer eficazes no sentido de ampliar o acesso a atividades culturais na cidade, tal cenário está longe de configurar o ideal. Muitos desses centros culturais encontram-se, atualmente, em péssimas condições de conservação. Como

exemplo pode-se citar o Centro Cultural Urucuia, cuja

biblioteca, devido a problemas construtivos, foi interditada logo após a sua inauguração e continua desativada até hoje. O Centro Cultural Vila Fátima e o Centro Cultural Jardim Guanabara também estão dentre os que apresentam piores condições de conservação física. Além dos problemas construtivos, observa-se uma série de outras dificuldades atravessadas pelos centros, no que diz respeito à falta de recursos, à segurança e, principalmente, ao seu sistema administrativo. A responsável pela gestão do Centro Cultural Lindeia, por exemplo, informou que a maior dificuldade encontrada pelo centro é a falta de estrutura para produção e distribuição de material de divulgação adequado, já que, segundo ela, o tipo de material disponível não é coerente com a dinâmica e as necessidades do bairro. Segundo ela, os modos de divulgação mais efetivos seriam carros de som ou placas penduradas pelas ruas. A gestora pontua, também, que apesar de o centro ter passado por um processo de reforma em 2011, as melhoras observadas não foram suficientes para a conformação de um cenário totalmente satisfatório. Segundo ela, a obra teve caráter paliativo, e baseou-se principalmente na pintura das paredes, não resolvendo as trincas e defeitos freqüentemente presentes nas estruturas do edifício.8 Um dos produtores culturais do centro Lagoa do Nado indicou que o maior problema enfrentado na região é a segurança, fator que muitas vezes impede os moradores da área de freqüentarem o espaço. Além disso, o produtor destacou o fato de que a mudança de perfil dos habitantes do bairro também afetou as atividades desenvolvidas no espaço. Se antes a região era conformada principalmente por residências unifamiliares, hoje encontra-se tomada por uma grande quantidade de edifícios de médio e grande porte. O que poderia parecer 8

Informações obtidas em entrevista feita por telefone em 20 maio 2013.


138 benéfico no sentido de aumentar o público do centro cultural, mostrou-se exatamente o contrário. Segundo ele, a dinâmica social do bairro sofreu profundas alterações e se antes havia grande interação entre a população local e o espaço, hoje muitos dos habitantes dos novos prédios nem ao menos têm conhecimento da existência do mesmo. Apesar disso, o produtor disse que o espaço abarca habitantes de outras áreas da cidade, principalmente da região metropolitana, fato que se deve, provavelmente, à carência de outros centros culturais nestes locais.9 Outro problema apontado por funcionários e freqüentadores quanto aos centros remete à burocracia envolvida em sua administração, que compromete, muitas vezes, a eficácia e agilidade das atividades promovidas nos mesmos. Assim, apesar dos esforços dos funcionários, os espaços permanecem com um ritmo relativamente lento de atividades. Vale mencionar que alguns dentre os centros existentes concretizaram-se por meio do Orçamento Participativo, e contavam, geralmente na fase inicial, com apoio administrativo direto dos líderes locais que participaram da luta por sua implementação. O que ocorre é que nem sempre tais agentes permanecem nessas posições. Devido a organizações internas da prefeitura, muitos deles são substituídos por pessoas externas, que muitas vezes desconhecem a realidade e as necessidades locais, bem como os motivos pelos quais o centro foi criado. A administração perde, assim, muitas vezes, força de envolvimento com as redes locais. Isso ocorreu por exemplo, no Centro Cultural São Geraldo, que em 2010 tinha como diretor um morador do bairro, profundamente envolvido com as atividades desenvolvidas no espaço. O morador, que chegou até a levar para o centro cultural a sua mercenária pessoal e disponibilizá-la para o uso dos freqüentadores, foi posteriormente substituído. (Integrante de coletivo artístico em atividade nos centros culturais)10 Apesar disso, muitos dos gerentes dos centros culturais, mesmo que não pertencentes à comunidade, mostram-se extremamente empenhados em trazer melhorias reais para a população. O que ocorre é que mesmo nesses casos, a máquina burocrática muitas vezes atua como barreira para que algum tipo de progresso seja realmente alcançado, baseando-se muitas vezes, em um sistema no qual números e metas importam mais do que a real mudança e ampliação da 9

Informações obtidas em entrevista feita por telefone em 22 maio 2013.

10

Informações obtidas em entrevista feita em 27 maio 2013.


139 perspectiva dos freqüentadores. (Gestora do centro cultural Lindeia)11 Não pretendese, aqui, dizer que tais centros não apresentam nenhuma eficácia, pelo contrário, consideramos que eles representam um primeiro - e muito importante - passo a ser dado no sentido de descentralizar a atividade cultural da cidade. O que pensamos, no entanto, é que a prefeitura ainda tenha muito a caminhar no sentido de dotar os mesmos de articulação e eficácia real. No que tange à existência de financiamentos privados, dentre os estabelecimentos presentes no mapa apenas o Museu de Arte da Pampulha e o Museu Abílio Barreto informaram participar periodicamente dos editais das Leis de Incentivo Fiscal para realização de projetos. Tais estabelecimentos são os únicos no âmbito da política cultural municipal que apresentam aliança com algum tipo de Associação de Amigos, o que lhes permite captar recursos privados através de tais políticas. Os demais estabelecimentos, dentre os quais os Centros Culturais Regionais, utilizam apenas recursos repassados diretamente pela Fundação Municipal, sem o auxílio privado, ou pelo menos sem investimentos diretos aos seus espaços.

11

Informações obtidas em entrevista feita por telefone em 20 maio 2013.


140 3.2.4 Equipamentos privados Figura 7– Mapa dos equipamentos culturais privados em Belo Horizonte

Fonte: Google Maps, 2013a


141

Os equipamentos presentes no mapa acima apresentam caráter heterogêneo. Museus de grande porte se mesclam a pequenos centros culturais, teatros, organizações baseadas em gestão cooperativa, grandes centros culturais e pequenas galerias autônomas coletivas. Tais espaços encontram-se reunidos pelo único fato de serem iniciativas que tornaram-se possíveis, inicialmente, por meio de investimentos próprios. Muitos desses estabelecimentos contam com grandes investimentos provenientes de parcerias público-privadas, outros participam periodicamente de leis de incentivo fiscal, e outros financiam a si mesmos com recursos próprios. Dentre os equipamentos mapeados, destacam-se o Inhotim, o Galpão Cine Horto, o Museu de Artes e Ofícios, o Grupo Corpo e o Cine Brasil (V&M Brasil Centro Cultural) pelo volume de recursos provenientes de patrocínios privados. O Inhotim, localizado na cidade de Brumadinho, na região Metropolitana de Belo Horizonte, conforma-se enquanto uma verdadeira ilha de desenvolvimento em meio à realidade observada em seu entorno. Em 2012, o museu foi alvo de dois dos vinte maiores investimentos em valor absoluto feitos em cultura, em Belo Horizonte, via Lei Rouanet (Ver Tabela 8). O 3º maior investimento em valor absoluto foi feito pelo Banco Itaúcard S.A., equivalendo a uma quantia de R$ 1.500.000,00, e o 14º da Localiza Rent a Car, no valor de R$ 308.652,26. Além desses, o museu possui outros grandes parceiros, tais como a Vale, patrocinadora Master, a Vivo, o Banco Votorantin, o IBM, a Cemig, a Eletrobras Furnas, a Lafarge, bem como centenas de pessoas que integram a rede Amigos do Inhotim. O Galpão Cine Horto, que tem como principais patrocinadores a Usiminas, a Unimed e a Cemig recebeu, desta última, o 18º maior investimento absoluto feito em Belo Horizonte em 2012, no valor de R$ 250.000, 00. A Cemig também foi responsável por outros três dos vinte e cinco mais altos investimentos em valor absoluto feitos na cidade em 2012 (Tabela 7), no valor de R$ 300.000,00 ao Grupo Corpo, R$ 250.000,00 ao Corpo Cidadão, projeto social do grupo e R$ 250.000,00 ao Museu de Artes e Ofícios. O Museu de Artes e Ofícios - localizado na Praça da Estação, região central de Belo Horizonte - foi alvo, também, do 15º maior investimento em valor absoluto do ano, correspondente a R$ 300.000,00, feito pela Construtora Andrade Gutierrez S.A, empresa de propriedade, em parte, da própria fundadora do museu. A instituição conta também com muitos outros patrocinadores,


142 dentre os quais o Hospital Mater Dei, a CBMM, o Banco Itaú, a Cemig e a Oi Telecomunicações, que configura-se enquanto patrocinador Master. Ressalta-se que um braço de investimento do Grupo Andrade Gutierrez S.A. detém uma cota considerável de tal empresa. O V&M Brasil Centro Cultural, na Praça Sete de Setembro, região central de Belo Horizonte, recebeu o 2º maior investimento absoluto, de R$ 2.000.000,00 provenientes da própria V&M do Brasil S.A. Tal investimento destina-se à terceira fase da obra de restauração do edifício (antigo Cine Brasil), onde será implantado o espaço cultural. (Tabela 8) Dentre os outros equipamentos mapeados que contam com investimentos de empresas privadas têm-se o Museu Giramundo, a Fundação de Educação Artística, o Espaço Cultural Ambiente, o SESC Palladium, o Museu dos Brinquedos, o Museu Oi Futuro Klauss Viana de Telecomunicações, o Centro Centroequatro, o Ja.ca Centro de Arte e Tecnologia e o Marginalia+Lab. O Museu Giramundo localiza-se no bairro Floresta, região Leste de Belo Horizonte e tem a Vale e a Petrobrás como principais patrocinadores. Ressalta-se que o museu participa também do programa Cultura Viva - através do Ponto de Cultura Museu Giramundo – e por isso encontra-se também pontuado no mapa dos equipamentos ligados a políticas federais. A Fundação de Educação Artística, na região Centro-Sul, conta com o patrocínio do Banco Rural, da empresa Ápia, da Cemig, da CBMM, Eletrobrás, Unimed, Usiminas, Hospital Mater Dei, Sercell e Viena. (FUNDAÇÃO DE EDUCAÇÃO ARTÍSTICA, 2013) A Fundação é também, parceira do Projeto Oi Kabum, financiado pela Oi Telecomunicações. O Espaço Cultural Ambiente, por sua vez, é Sede da Meia Ponta Companhia de Dança, conformando-se enquanto espaço de encontro e estudo do corpo, do movimento e da ação cultural. O projeto é contemplado pela FUNARTE, no edital Prêmio Procultura de Estímulo ao Circo, Dança e Teatro 2010 e patrocinado pela rede Arco de hotéis através da Lei Municipal de Incentivo à Cultura. (MERCADO MODERNO, 2013). O SESC Palladium, localizado na região central de Belo Horizonte, é um espaço cultural mantido pelos empresários do comércio de bens e serviços, através do Serviço Social do Comércio (SESC), entidade privada que tem como objetivo proporcionar ações voltadas para cultura, esporte e lazer. O Museu dos Brinquedos, por sua vez, situa-se no bairro Funcionários, na região Centro-Sul da cidade, e tem como principais parceiros a Amaru Madeira Preservada de Alta Qualidade, a Decta


143 Gestão Contábil, o Banco Mercantil do Brasil, a Cemig, a Marcelo Guimarães Advogados Associados e a HouseCom. O Museu Oi Futuro Klauss Viana de Telecomunicações, inaugurado em 2007, também situa-se na região Centro-Sul e abriga um teatro, duas galerias para exposições, um Multiespaço, Bilblio_Tec, CineClube e o Museu das Telecomunicações. Tal museu é patrocinado pela Oi através do Instituto Cultural Oi Futuro. (OI FUTURO, 2013) O Centoequatro, localizado na região central de Belo Horizonte, nas proximidades da Praça da Estação, conforma-se enquanto sede do Instituto Antônio Mourão Guimarães – IAMG, do Banco BMG. Tal espaço, que prioriza atividades relacionadas à promoção do desenvolvimento social a partir da arte e da educação, tem como patrocinadores o próprio Instituto Antônio Mourão Guimarães, o Instituto Libertas de Educação e Cultura, que também inclui-se no âmbito do IAMG, a Aliança Francesa e a Embaixada da França no Brasil. (INSTITUTO ANTÔNIO MOURÃO GUIMARÃES, 2013) O Ja.ca Centro de Arte e tecnologia localiza-se em Nova Lima, na região Metropolitana de Belo Horizonte, e constitui-se enquanto espaço de eventos, oficinas e exposições, além de possuir uma biblioteca e midiateca disponíveis à população. O centro, que instaura-se enquanto importante plataforma para o intercâmbio de experiências no campo da arte, tem patrocínio da Scania Brasil. (JAÇA, 2013) O Marginalia+Lab, criado em 2009 a partir da iniciativa do Marginalia Project, coletivo de arte e tecnologia de Belo Horizonte, localiza-se no bairro Santa Efigênia, região Centro-Sul de Belo Horizonte, e tem como objetivo principal o estímulo a práticas de experimentação, intercâmbio e colaboração em arte e tecnologia, a partir de mídias diversas. O projeto é patrocinado pela Vivo, empresa de telecomunicação. A Figura 34 mostra a distribuição espacial de tais patrocínios privados nos equipamentos citados. Os demais espaços presentes no mapa, a saber, o Teatro Espanca!, localizado na rua Aarão Reis, região central da cidade, a Mini Galeria, localizada na região Centro-Sul, a Quina Galeria e o Restaurante Popular, ambos situados no Edifício Maletta, na área central da cidade, a Esquyna, galeria localizada no bairro Sagrada Família, região Leste de Belo Horizonte, e o EXA Espaço Experimental de Arte, na Savassi, região Centro-Sul da cidade, financiam os seus projetos através de recursos próprios e de parcerias com outros centros culturais, muitos deles geridos através de um sistema colaborativo.


144 Quanto à distribuição geográfica, observa-se que a maior parte dos equipamentos mapeados (dezessete) encontram-se concentrados na região CentroSul da cidade, principalmente dentro dos limites da Avenida do Contorno, no qual se encontram quinze. Três dos equipamentos restantes situam-se na região Leste da cidade, e dois na região metropolitana da cidade. As regiões Oeste, Nordeste, Noroeste, Norte, Barreiro, Venda Nova e Pampulha não abrigam nenhum dos equipamentos mapeados. Figura 8– Mapa dos investimentos a equipamentos culturais privados em Belo Horizonte

Fonte: Adaptado de Google Maps


145 3.2.5 Mapa Geral Figura 9– Mapa dos equipamentos culturais de Belo Horizonte

Fonte: Google Maps, 2013a


146 No

mapa

acima

encontram-se,

além

dos

equipamentos

mencionados, aqueles que se relacionam às associações e às galerias de venda de obras de arte. Apesar de não incluírem-se no escopo do presente trabalho, tais equipamentos estão presentes no mapa disponível online, e foram mantidos na imagem a fim de proporcionar uma visão geral mais completa da cena cultural da cidade. 3.3 Análise dos dados Observa-se, a partir da análise dos mapas, a nítida concentração de equipamentos na região Centro-Sul da cidade, principalmente dentro dos limites e nos arredores da Avenida do Contorno. Tal concentração pode ser observada, de forma mais diluída, também na região Leste, sendo as demais regiões nitidamente menos assistidas, compreendendo um número pouco expressivo de equipamentos e pouca diversidade de tipos dos mesmos. Observa-se, também, que a maior parte dos equipamentos presentes nas áreas periféricas incluem-se no âmbito das políticas culturais municipais (Centros de Cultura Regionais e bibliotecas) ou federais (Pontos de Cultura), não recebendo, em sua maioria, investimentos de grandes empresas, que se concentram, principalmente, nos equipamentos privados e nos pertencentes aos projetos estruturadores da Secretaria de Estado da Cultura. Tais equipamentos encontram-se, em sua maioria, na região Centro-Sul, principalmente dentro do perímetro da Avenida do Contorno. Nota-se, na Tabela 9, que a Região Centro-Sul é justamente a que apresentava, em 2000, a maior renda per capita média da cidade, seguida pela região da Pampulha e pela Região Leste, que configurava o terceiro lugar do ranking. Este cenário se reafirma por meio da Tabela 10, na qual pode-se observar que o mais alto Índice de Desenvolvimento Humano da cidade encontrava-se também na Região Centro-Sul. No entanto, da análise da Tabela11 depreende-se que a região Centro-Sul apresenta apenas 11,46% da população da cidade, ocupando, dentre as nove regiões, o quinto lugar no que se refere ao contingente populacional. Pode-se dizer, assim, que o cenário observado no âmbito nacional e estadual repete-se também em nível urbano, já que as áreas mais abastadas e não necessariamente as mais populosas do território, concentram a maior parte dos investimentos privados em cultura. No caso de Belo Horizonte, a concentração de


147 investimentos na região Centro-Sul coincide com a concentração de equipamentos culturais. Assim, a concentração de espaços físicos na área é reforçada pela concentração de recursos privados na mesma, e vice-versa, conformando um movimento cíclico que se mantido, contribui cada vez mais para que o caráter centralizado da cena cultural da cidade. Por isso a importância de se discutir políticas que gerem financiamentos direcionados a áreas diversificadas, de forma a criar centros múltiplos de cultura e gerar equilíbrio de condições para as populações periféricas. Tabela 8 – Renda Familiar per capita em agosto de 2000

Fonte : PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, 2013.


148

Tabela9 – Indicadores de Desenvolvimento Humano Regional (1991-2000)

Fonte : PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, 2013.

Tabela 11 – Características Sócio-econômicas da população

Fonte : PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, 2013.


149 Segundo estudo realizado pela Nexo Investimento Social, dentre as principais motivações apontadas enquanto primordiais para a realização de parcerias público privadas pelas empresas encontra-se o branding, ou seja a visibilidade que a parceria proporcionará para a marca, a abordagem comercial - ou a possibilidade de ações de merchandising oferecida pelo proponente - a legitimação local e a promoção

de

bom

relacionamento

com

os

chamados

stakeholders,

ou

intervenientes, que pode se dar através do oferecimento de cortesias ou outros benefícios. (NEXO INVESTIMENTO SOCIAL, 2012) Analisemos, por exemplo, o caso dos investimentos da Vale no Inhotim. A empresa, que é patrocinadora Master da instituição, beneficia-se, através da parceria, de grande visibilidade - conseguida através da ampla divulgação do museu na mídia - da utilização do espaço do museu para cortesias aos funcionários da empresa e, muito importante, da legitimação local, já que o museu localiza-se nas proximidades da área na qual a empresa realiza atividade de mineração. Deste exemplo depreende-se que o fator “localização da sede do proponente e da empresa investidora” exerce grande influência no estabelecimento de tais parcerias, mesmo quando não se trata de investimentos na região mais rica da cidade. Nesse contexto, além do poderio econômico da população da área, as necessidades específicas da empresa quanto a legitimação local e ao alcance de sua marca também configuram-se enquanto importantes fatores na escolha de seus focos de investimento. Observa-se, assim, que o território representa aspecto fundamental na dinâmica de investimento privado no setor cultural. Além da relevância do parâmetro territorial destaca-se também, no que tange aos focos de investimentos privados em cultura, a presença de muitas situações nas quais os recursos investidos retornam diretamente à própria empresa, como é o caso da V&M, ao injetar recursos na construção de um centro cultural que integrará as atividades do próprio grupo. Há também casos nos quais a mesma família é detentora da propriedade da empresa investidora e do próprio Instituto Cultural ou projeto beneficiado por seus investimentos. Dentre eles pode-se citar o exemplo do Museu de Artes e Ofícios e da Construtora Andrade Gutierrez, bem como o caso do Banco BMG e do Instituto Cultural Antonio Mourão Guimarães, cuja sede é o espaço cultural Centoequatro, foco de investimentos do banco. Não pretende-se aqui, no entanto, tratar tais iniciativas de investimento como totalmente maléficas, já que em meio a este cenário existem exceções de


150 investimentos privados injetados em projetos que trazem melhora efetiva para a população, tais como o Centro de Formação Técnica e o Marginalia+Lab, para citar alguns exemplos. O que se busca discutir aqui, no entanto, mais do que a validade ou não dos projetos patrocinados, são as razões pelas quais as empresas são levadas a investirem nos mesmos. Conforme dissemos anteriormente, por serem fundadas a partir do princípio do lucro, tais empresas devem basear o seu investimento em algo que lhes seja economicamente benéfico. O que se pretendeu, assim, foi elucidar tal fato de forma a gerar questionamentos baseados em perspectivas menos ingênuas e mais críticas a respeito dos trâmites envolvidos na questão cultural quanto ao poder, à política e às suas relações com o território urbano. Como conclusão de tal análise poder-se-ia mencionar o fato de que, apesar de apresentar-se falho em muitos aspectos, os Pontos de Cultura, se desenvolvidos e reformulados no sentido de conformarem-se enquanto meio dinâmico e efetivo de descentralização da atividade cultural, poderiam apresentar algum potencial de transformação. Por independerem do lucro, consideramos que tais iniciativas mostram-se aptas a implantar, em meio a um tempo no qual a cultura transforma-se em importante arma de controle, uma perspectiva mais igualitária, na qual os fatores sociais sobreponham-se aos econômicos. Não pretende-se, aqui, defender o fim das políticas privadas, mas buscar meios de se estabelecer uma relação mais equilibrada entre estas e outros tipos de programas de cunho verdadeiramente inclusivo e social. Procura-se, assim, gerar bases para a discussão a respeito de como as instâncias federal, estadual e municipal (tendo esta papel fundamental) devem atuar na formulação de políticas que engendrem uma relação harmônica entre cultura, população e território, na qual caiba a diferença e a singularidade e através da qual as atividades culturais possam verdadeiramente ser utilizadas enquanto instrumento potente de formação crítica e transformação social da população.


151

4 ANÁLISE MICRO: BAIXIO DO VIADUTO SANTA TEREZA Faremos, ora, uma abordagem da cidade de Belo Horizonte a partir de uma perspectiva micro. Para isso, daremos enfoque à área localizada abaixo do Viaduto Santa Tereza, nas imediações da Praça da Estação, na região central da cidade. Tal área apresenta-se enquanto ponto extremamente relevante para a articulação da rede cultural que acontece em Belo Horizonte, na medida em que reúne, além dos mais de vinte equipamentos culturais situados em suas proximidades, diversas manifestações e ocupações urbanas de caráter heterogêneo. O espaço é fortemente marcado pela presença do Viaduto Santa Tereza, sob o qual experiências efêmeras somam-se a estruturas culturais fixas e a eventos semanais com públicos e atividades diversificadas. Por seu caráter democrático e polifônico, a área mostra-se extremamente representativa da rede cultural da cidade, conformando-se enquanto verdadeiro ponto de encontro de idéias, interesses e perspectivas diversas, expressas através das manifestações culturais. O local, no entanto, está sendo alvo de um projeto de “revitalização” urbana, concebido por iniciativa da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte e possibilitado por recursos provenientes do Programa de Aceleração do Crescimento do governo federal. Tal ação gera um risco iminente de gentrificação da área e da destituição de suas características culturais fundamentais. Com o intuito de controlar ou até impedir a ocorrência desses processos foi criada, por exigência da população, uma Comissão Representativa da Sociedade Civil, que inclui representantes de todas as esferas culturais diretamente afetadas pelo projeto. Tal Comissão teria a função de contribuir com o escritório de arquitetura contratado, no sentido de garantir que as necessidades reais da população sejam satisfeitas. A área mostra-se, assim, duplamente interessante para o estudo em questão, já que além de constituir amostra representativa da multiplicidade cultural da cidade, conforma-se enquanto palco atual de um processo participativo de concepção do espaço urbano com foco na cultura. Pode-se dizer, dessa forma, que o estudo da área representa uma síntese prática do trabalho em questão, já que envolve discussões sobre o território, as várias faces da questão cultural, os sistemas de poder na concepção da cidade, a utilização da arte como meio de apropriação espacial, além de incluir processos incipientes de arquitetura participativa.


152 4.1 A área O Viaduto Santa Tereza situa-se na região Centro-Sul da cidade e funciona como elo de ligação entre o bairro Centro e o bairro Floresta. A pista de rolamento do viaduto conforma-se enquanto grande cobertura linear para a área subjacente, que apresenta, assim, características muito propícias à apropriação. Tal área ou, mais especificamente, a parte desta que localiza-se em frente à Serraria Souza Pinto, constitui o nosso objeto de estudo, que engloba também a rua Aarão Reis até o seu encontro com a Praça da Estação. A morfologia apresentada no final da rua Aarão Reis faz com que esta constitua verdadeiro desdobramento espacial da área subjacente ao Viaduto. Se considerada a partir de uma perspectiva abrangente, observa-se que a área de estudo é margeada por um grande número de equipamentos culturais, que podem ser observados na Figura 36 – ampliação do mapa georreferenciado analisado no último capítulo.


153 Figura 36 – Mapa cultural de Belo Horizonte com enfoque na área do Viaduto Santa Tereza

Fonte: Adaptado do Google Maps

Dentre os equipamentos presentes destacam-se a Serraria Souza Pinto, o teatro Espanca!, o espaço cultural Nelson Bordelo e o Museu de Artes e Ofícios. Enquanto o teatro Espanca! e o Nelson Bordelo assumem interação efetiva com o


154 local, incluindo-se muitas vezes nas ocupações temporárias que se dão em seu espaço, a Serraria Souza Pinto e o Museu de Artes e Ofícios estabelecem relação fronteiriça com o mesmo. As atividades de tais equipamentos são desenvolvidas sobretudo em seu ambiente interno, em um sistema caracterizado pelo estabelecimento de limites claros, que restringe o acesso aos equipamentos e conseqüentemente seleciona o seu público. O espaço da Serraria Souza Pinto é normalmente usado para feiras, festas e exposições, na maioria das vezes não relacionadas ao contexto local, e acessíveis apenas mediante pagamento ou convite. Também o Museu de Artes e Ofícios, do outro lado da rua Aarão Reis, qualifica-se enquanto espaço fechado, de acesso restrito. O caráter enclausurado do museu cria, além das já existentes fronteiras materiais, fortes limites simbólicos entre a sua estrutura e a rua. Tal caráter engloba muitas vezes a própria Praça da Estação que, por localizar-se imediatamente à frente da entrada principal do edifício, tem sua dinâmica fortemente controlada pelas leis internas da instituição. Essa situação, no entanto, ao invés de inserir o museu no contexto local, faz o movimento contrário, dotando a própria praça de caráter privado e retirando-a, assim, também do mesmo. Os vendedores ambulantes são muitas vezes proibidos de circular por ali, assim como os moradores de rua, que além de impedidos de permanecer na praça, não podem utilizar o banheiro da instituição. Isso ocorre porque a presença destes atores locais supostamente afastaria possíveis turistas e freqüentadores do museu, gerando problemas para a sua dinâmica de funcionamento. Além disso, a praça configura-se, mediante pagamento12, como palco para diversos eventos privados, tais como o FIFA Fan Fest, a ser realizado durante a Copa do Mundo de 2014. Tais situações configuramse enquanto exemplos reais da conversão do espaço público em privado, bem como da tentativa, analisada nos capítulos precedentes, de construir-se uma cidade higiênica e consensual, pensada a partir das lógicas externas de seus visitantes e não das reais necessidades dos que nela vivem. Tal dinâmica, na qual questões

12

De acordo com o Decreto n.13.961 de 4 de maio de 2010 o uso da praça para eventos particulares fica condicionado ao pagamento de valor que vai desde 9.600 reais (para eventos realizados em 1 ou 2 dias) a 19.200 reais (para eventos realizados em 6 dias).


155 econômicas sobrepõem-se às sociais, evidencia o caráter mercadológico muitas vezes observado no planejamento urbano atual da cidade. A Figura 37 mostra os limites e a conformação morfológica da área em estudo. O alargamento apresentado pela rua Aarão Reis em seu encontro com a área subjacente ao Viaduto Santa Tereza conforma uma pequena praça, ou largo, que unindo-se à área coberta pelo viaduto, gera um local de permanência. Tal largo é margeado de um lado pelo espaço cultural Nelson Bordelo, pelo teatro Espanca e por uma Igreja, e do outro por um galpão fechado, que integra a estrutura do estacionamento adjacente. À sua frente encontra-se a entrada da Serraria Souza Pinto e na sua parte posterior têm-se a continuação da rua Aarão Reis, que interrompe-se novamente na Praça da Estação. Nesta rua destaca-se a presença do Edifício Central, uma construção de quatro pavimentos na qual encontram-se diversas atividades comerciais abertas diretamente para a rua. Em frente à esse edifício, assim como em frente ao teatro Espanca! e ao Nelson Bordelo, tem-se pontos de ônibus, nos os quais observa-se constante aglutinação de pessoas durante o dia e à noite. No outro lado da rua Aarão Reis tem-se o edifício da estação ferroviária, por meio do qual faz-se o embarque e o desembarque dos passageiros nos trens, e um estacionamento, que inclui um pequeno galpão situado no alargamento da rua embaixo do Viaduto. Tanto o edifício destinado ao estacionamento quanto o galpão pertencente a ele possuem fachadas cegas, tendo sido ambas apropriadas por inscrições urbanas (pixações e graffiti).


156 Figura 37 - Limites da área de estudo e equipamentos presentes

Fonte: Adaptado de Google Maps

De acordo com a Lei de Uso e Ocupação do Solo de Belo Horizonte (Lei 7166/96) a área em questão inclui-se na ZHIP (zona hipercentral), que corresponde a uma subdivisão da ZC (zona central). Em tal zona são permitidos os maiores índices de adensamento demográfico e verticalização da cidade. O coeficiente de aproveitamento (que corresponde a 3,0) e a altura máxima permitida na divisa das edificações (de 10,8m para divisa de fundo) são os maiores índices observados, e a quota de terreno por unidade habitacional (10m2/unidade) corresponde ao menor índice presente na regulamentação da cidade. A área de estudo configura-se também enquanto parte da Área de Diretrizes Especiais (ADE) do Vale do Arrudas. As ADEs representam formas de valorização de áreas referenciais para a população da cidade, que possuam características que


157 mereçam cuidados especiais. (PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, 2013) Segundo o artigo 79 da Lei 7166/96, a ADE do Vale do Arrudas foi estipulada em função de sua localização estratégica e de sua importância como eixo simbólico, histórico e de articulação viária, e devido ao fato de as suas condições de degradação

ou

subutilização

demandarem

projetos

de

reurbanização

e

requalificação urbana. (art. 79, da Lei 7.166/96) Tal ADE engloba grande parte do curso do Ribeirão Arrudas, abrangendo áreas de características bastante heterogêneas. Dentre as diretrizes para sua regulamentação, encontram-se: “o estímulo à requalificação das fachadas das edificações e dos galpões; a criação de áreas de lazer, com incremento da arborização e da implantação de ciclovias; promoção e/ou estímulos à realização de grandes eventos de interesse cultural; melhoria de padronização da acessibilidade para pedestres, principalmente em relação ao acesso às estações do metrô e à transposição do curso d’águia e das pistas veiculares” (art. 79, § 1o, da Lei 7.166/96)

De acordo com a Lei 9959 / 2010, publicada em 21 de julho de 2010, a área em questão inclui-se também em zona prioritária para o desenvolvimento de Operações Urbanas Consorciadas (OUC) no centro da cidade. As Operações Urbanas Consorciadas representam um instrumento por meio do qual são promovidos planos de ocupação específicos para determinada área da cidade, envolvendo o poder público, a iniciativa privada, empresas prestadoras de serviços públicos, moradores e usuários. Por meio das OUC os parâmetros urbanísticos da área podem ser alterados, de forma a propiciar atividades as quais julga-se prioritárias para a região. Não se sabe, no entanto, se há alguma Operação Urbana específica para essa área em curso atualmente na prefeitura, sabe-se apenas que está sendo desenvolvida, pela mesma, a Operação Urbana Consorcida Leste-Oeste. (Informação verbal)13 Essa operação é uma ação mais abrangente, que vai desde Contagem até Sabará. 4.2 O Projeto “Corredor Cultural da Praça da Estação”

13

Informação obtida na apresentação de Rafael Barros, integrante do Conselho Municipal de Cultura de Belo Horizonte em audiencia pública ocorrida no centro cultural CentroeQuatro em 28 de mai. de 2013.


158 O “Corredor Cultural da Praça da Estação” é um projeto de reforma urbana proposto pela Fundação Municipal de Cultura (FMC) de Belo Horizonte, que compreende a “revitalização” da áreas adjacentes à Praça da Estação – local no qual será montado a estrutura da FIFA durante a Copa do Mundo de 2014. A proposta refere-se à área compreendida entre a Avenida dos Andradas, na altura da rua Varginha, e o Parque Municipal – na qual se incluem a Praça da Estação, a rua Aarão Reis e o baixio do Viaduto Santa Tereza, objetos de análise neste trabalho – e a rua Sapucaí. Conforme explicitado pelo presidente da FMC, Leônidas de Oliveira, o projeto objetivaria mudar o visual e fortalecer a vocação artística da região. O escopo da proposta inclui, além de um projeto urbanístico e arquitetônico de reformulação de toda a área, a inclusão de sinalização interpretativa, de iluminação monumental e a futura sede da Escola Livre de Artes. O valor total do projeto foi estimado em 21,8 milhões de reais e será pleiteado junto ao Ministério da Cultura, por meio do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) das Cidades Históricas. A confirmação de que os recursos serão concedidos será dada, no entanto, somente após a entrega do projeto básico, até o fim de maio, ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Tal órgão é ligado ao Ministério da Cultura e responsabiliza-se pelo repasse dos recursos referentes as PAC. Segundo Oliveira, após a liberação dos recursos, haverá licitação para o projeto executivo e as obras, que devem ser concluídas antes da Copa de 2014. O projeto básico está sendo desenvolvido pelo escritório André Buarque Arquitetura, contratado pela Construtora Patrimar sem ter passado por nenhum processo de licitação. A construtora responsabilizou-se pela escolha do escritório de arquitetura por ter sido incumbida de financiar o projeto, enquanto contrapartida pela aprovação de nova edificação em imóvel pertencente ao Conjunto Urbano Avenida Barbacena/Grandes Equipamentos. (BELO HORIZONTE, 2013) A primeira reunião pública para a discussão do projeto foi realizada em 13 de março de 2013, no Museu de Artes e Ofícios, e contou com a participação de gestores culturais, artistas e representantes de entidades do entorno. Na reunião foi apresentado um diagnóstico, feito pela Fundação Municipal de Cultura, que apontou para a presença de mais de vinte equipamentos culturais na área. Foram apresentadas também as diretrizes gerais do projeto (Figura 38) e em seguida, dada a palavra aos presentes, que puderam expressar sua opinião e apontar questionamentos a respeito do mesmo. Dentre as falas dos representantes


159 destacam-se as proferidas por Flávio Carsalade, arquiteto e professor da Escola de Arquitetura da UFMG e por Gustavo Bones, integrante do grupo de teatro Espanca. Carsalade, que estuda a área há mais de vinte e cinco anos, sugeriu que o projeto, que limitava-se à Avenida do Contorno, se estendesse até a Rua Varginha, de forma a englobar a área de galpões e estacionamentos localizada entre estes dois pontos. Bones, por sua vez, defendeu a idéia de que o corredor cultural já existe e de que o objetivo do projeto devia ser o de “torná-lo mais possível” a partir da inclusão de todos os agentes que compõem o espaço, tais como os moradores de rua, os trabalhadores e os agentes dos equipamentos culturais. O ator propôs ainda, que fosse incluído no âmbito do projeto um centro de referência para a população de rua. Figura 38 – Esquema de projeto apresentado pela Fundação Municipal de Cultura

Fonte: Adaptado de Google Maps

4.2.1 Comissão representativa da sociedade civil No decorrer do processo de concepção do projeto, foi solicitado, junto à Fundação Municipal de Cultura, que houvesse um acompanhamento direto do mesmo por parte de uma Comissão Representativa da Sociedade Civil. Tal medida mostrou-se necessária por a área em questão apresentar-se como extremamente relevante para a vida cultural da cidade e pelo fato de que, se mal conduzido, o


160 projeto poderia acarretar a destituição das especificidades locais, gerando graves prejuízos para a cena cultural da mesma. Tal pedido foi acatado e a Comissão Representativa foi eleita em audiência pública, realizada na FUNARTE, em 21 de Março de 2013. Nesta ocasião, agentes da Fundação Municipal de Cultura apresentaram os principais pontos da proposta – que já haviam sido apresentados na reunião no Museu de Artes e Ofícios e constam na Figura 38 - bem como projetos já existentes de reformulação da área do baixio do Viaduto Santa Tereza. Em seguida foram ouvidos os presentes, os quais mostraram-se bastante críticos frente ao conteúdo que lhes foi apresentado. Em suas falas incluíram-se questionamentos sobre a real pertinência de se fazer a revitalização de uma área a qual já apresenta extrema vitalidade cultural e a respeito do risco de o projeto acarretar, ao invés de melhorias locais efetivas, um enfraquecimento da multiplicidade cultural característica da mesma. Foram expostas, também, reflexões sobre quem seriam os verdadeiros beneficiados pelo projeto e sobre a necessidade de inclusão dos moradores de rua nos processos. Além disso, questionou-se a eficácia da promoção de uma iluminação “monumental”, focalizada nos edifícios e não nos trajetos percorridos pelos usuários da área. Segundo o arquiteto Roberto Andrés, a proposta deveria priorizar a ação dos indivíduos e não a estetização do espaço público através de iluminação

dos

monumentos

e

de

reformas

“cosméticas”.

Muitos

dos

questionamentos apresentados referiram-se, também, à proveniência dos recursos a serem utilizados e ao caráter visivelmente mercadológico do projeto, que segundo muitos dos presentes, acabaria por expulsar os freqüentadores e moradores atuais. Após a exposição das perguntas e considerações dos presentes, foi feita uma votação para eleger os integrantes da comissão representativa da sociedade civil no desenvolvimento do projeto. Foram eleitos, como se pode observar na lista que se segue, um representante para cada “esfera” social presente na área, bem como um arquiteto e um representante da própria FMC. - Representante da FMC: Álvaro Américo Moreira Sales - Representante do Conselho Municipal de Cultura: Rafael Barros Gomes - Representante dos equipamentos e espaços culturais: Gustavo Bones - Representante dos movimentos sociais: Thiago Antônio Costa de Almeida - Representante da classe artística: Henrique Alexandre de Sena


161 - Representante dos comerciantes: Antônio Eustáquio Pereira dos Santos - Representante dos moradores do entorno: Andréia Costa - Representante dos arquitetos e urbanistas: Flavio de Lemos Carsalade - Representante dos esportes urbanos: João Francisco Emmermacher Seixas - Representante da população em situação de rua: Jadir de Assis - Representante da mobilidade e acessibilidade: João Paulo Alves Fonseca (DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO, 2013) A Comissão Representativa foi oficializada no dia 18 de abril, por meio de publicação feita no Diário Oficial do Município. O principal escopo da mesma seria o de garantir a participação efetiva da população local, principalmente das parcelas menos favorecidas, na concepção e no usufruto posterior do projeto. Os representantes eleitos deveriam, assim, impedir que o projeto estimulasse um processo de gentrificação da área, de expulsão dos moradores de rua e da conseguinte destituição do atual “circuito cultural” de suas características vitais. Um dos pontos relevantes, pelos quais a comissão deveria lutar, seria justamente a manutenção da heterogeneidade presente no local, estimulando que o projeto fosse concebido a partir de uma visão plural e contextualizada, centrada nas questões sociais, e não apenas em termos econômicos. Durante os meses de março, abril e maio a comissão promoveu diversas reuniões, das quais eu participei enquanto ouvinte. A primeira delas, realizada em 28 de março no Edifício Central, foi feita apenas entre os seus próprios integrantes, que reuniram-se com o intuito de discutir as diretrizes e estratégias que pautariam a sua ação. A segunda reunião foi realizada no dia 4 de abril e contou com a presença do escritório André Buarque Arquitetura (responsável pelo projeto), da comissão e de representantes da Fundação Municipal de Cultura. Na ocasião foram apresentados, pelos representantes da Fundação, além das diretrizes gerais do projeto, questões referentes à ordem dos recursos orçamentários necessários e o esclarecimento de que estes ainda não estariam garantidos. Além foi estabelecido que o projeto não deveria se restringir ao volume de recursos previstos – que se mostraria pequeno diante das melhorias necessárias - mas que deveria incluir questões mais amplas, que conformariam pauta de futuros debates entre a comunidade e o poder público. No dia 25 de abril o escritório de arquitetura encontrou-se com a SUDECAP, a Secretaria de Governo, a Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento Urbano, a


162 Secretaria Municipal de Políticas Sociais, a Secretaria Adjunta de Fiscalização e um representante da Câmara Municipal do gabinete do vereador Arnaldo Godoy. Na ocasião foram explicitadas informações sobre os projetos em execução ou a serem executados na área. Dentre estes destaca-se a Operação Urbana Consorciada (OUC) Leste-Oeste, que está sendo desenvolvida pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte com o intuito de promover uma grande reformulação urbana na cidade. Nos foi informado, no entanto, que o projeto do Corredor Cultural estaria sendo desenvolvido de maneira independente de tal operação. Na reunião discutiu-se também a respeito do projeto para o Centro de Referência da Juventude, cuja obra já estaria em andamento. O centro será localizado em área onde antes situava-se o Miguilim, projeto que prestava atendimento à crianças moradoras de rua do local e foi, assim, tranferido para um edifício do bairro Floresta. O projeto arquitetônico do edifício que abrigará o Centro de Referencia para a Juventude foi desenvolvido sem nenhum tipo de debate junto à comunidade jovem da cidade e, segundo a comissão, apresentaria diversos problemas. Dentre eles destaca-se o fato de o edifício, concebido a partir de uma forma fechada, não estabelecer relação de interação com o espaço urbano ao seu entorno e não mostrar-se, assim, indutor de relações de reciprocidade entre os freqüentadores da intituição e a dinâmica da vida local. Ao contrário, o prédio, tal como ele foi projetado, conformaria uma espécie de barreira, a qual fortaleceria as fronteiras imateriais já tão presentes na apropriação do espaço público da cidade. Na reunião nos foi informado, também, que um projeto de reforma do baixio do Viaduto Santa Tereza - realizado previamente a pedido da prefeitura de Belo Horizonte, estaria em vias de ser aprovado. A comissão, solicitou, assim, ao vereador Arnaldo Godoy, que fosse feito um pedido de vista ao projeto antes de sua votação na Câmara. Tal pedido foi acatado e o projeto (Figura 39) pôde ser analisado e discutido de maneira mais detalhada.


163

Figura 39 – Projeto para o baixio do Viaduto Santa Tereza

Fonte: BHZ, 2013

Como pode ser observado, a proposta incluía, além da pintura dos muros da área por tinta de pó de pedra, a melhoria do sistema de drenagem, a construção de uma quadra de basquete, a inclusão de uma pista direcionada aos ciclistas e a reforma dos banheiros públicos e da escada de acesso à parte superior do viaduto. Tal projeto apresentava uma série de problemas, que referiam-se, sobretudo, à sua inadequabilidade às práticas exercidas no local. A pintura dos muros, por exemplo, extinguiria todas as inscrições (pixações e graffiti) existentes no mesmo, que representam, de forma emblemática e significativa, os conflitos e as dinâmicas que o caracterizam. Outros exemplos de inadequação a serem mencionados referem-se à ciclovia. O formato da mesma contribuía para a geração de pequenos espaços residuais, cuja presença se mostra extremamente maléfica em zonas de apropriação pública. Além disso, a pista era demasiadamente restrita, não apresentando nenhum tipo de conexão com as áreas externas ao baixio do viaduto. A arquibancada proposta mostrava-se também inadequada, já que gerava a separação do espaço do anfieatro em duas áreas setorizadas, e contribuía, assim, para uma separação do público dos eventos que ocorrem no local, gerando um


164 espaço ocioso e marginalizado durante a ocorrência dos mesmos. Também a quadra de basquete foi tida pela comissão como inadequada, já que gerava um espaço cercado e restritivo, limitando as possibilidades de ocupação livre do espaço público. O projeto mostrava-se, assim, desamasiadamente setorizado e portanto, inadequado a uma área na qual a liberdade e a flexibilidade de modos de apropriação é algo imprescindível. A comissão pediu, portanto, que fossem retiradas a arquibancada, a ciclovia e a quadra de basquete, e que fossem manutidas das inscrições presentes nos muros do local. Tais pedidos, explicitados na Câmara durante a votação do projeto, foram todos aprovados. Esse fato aponta para uma grande vitória da comissão no sentido de promover a integração dos projetos em curso referentes à área do projeto. No dia 7 de maio foi realizada outra reunião, dessa vez apenas entre os membros da comissão. Tal reunião pautou-se principalmente sobre a discussão dos marcos legais que poderiam legitimar a participação popular no projeto, como, por exemplo, o estabelecimento de um possível Plano Diretor Participativo a ser implementado na área. Tal medida mostra-se extremamente relevante no sentido de garantir que os esforços despendidos até o momento e de que as decisões provenientes das discussões populares realizadas, sejam considerados na execução das fases posteriores do projeto. Na ocasião, foram também analisadas questões referentes o decreto, publicado no dia 4 de maio de 2010 pela Prefeitura de Belo Horizonte, que instituiu a cobrança para a realização de eventos na Praça da Estação, bem como os demais decretos que restringem o seu uso. Os representantes presentes entraram em comum acordo de que o decreto em voga deveria ser revisto e de que um dos horizontes comuns de luta da comissão deveria pautar sobre a desburocratização do acesso à Praça da Estação e do seu uso. As regras que regem o funcionamento do Parque Municipal foram também discutidas na ocasião. Decidiu-se pela realização de um pedido formal para que o seu horário de funcionamento fosse prolongado até as 22 horas e para que o uso de skate, patins e bicicletas fosse permitido em seu interno. Tais questões, juntamente com as referentes ao decreto da Praça da Estação e ao estabelecimento do Plano Diretor Participativo, conformariam uma suposta agenda de pontos a serem discutidos junto ao prefeito e aos órgãos governamentais.


165 Com esse intuito, a comissão solicitou a convocação de três outras reuniões. Uma delas realizou-se no dia 8 de maio e contou com a presença de representante da Diretoria de Ação Cultural da Fundação Municipal de Cultura e do chefe de gabinete da presidência da Fundação. A segunda reunião foi feita no dia 17 de maio e incluiu a participação de representates da Policia Militar, da Belotur, do Departamento Jurídico da Fundação Municipal de Cultura e da Fundação Municipal de Parques. A reunião com o prefeito foi solicitada, mas não se obteve, até o momento, qualquer tipo de retorno. Finalmente, foi promovida uma última reunião entre a comissão, a Fundação Municipal de Cultura e o escritório de arquitetura antes da apresentação do projeto à população. No encontro, que ocorreu no dia 23 de maio na Fundação Municipal de Cultura, os arquitetos responsáveis apresentaram para os demais presentes o projeto executado, a fim de garantir que as propostas encontravam-se alinhadas com

as

perspectivas

e

desencadeadas na ocasião

pedidos

dos

mesmos.

As

principais

discussões

referiram-se à quantidade de banheiros públicos

presentes no projeto e à possível inclusão de mais deles na Praça da Estação. Além disso, foram analisadas questões referentes ao centro de referência para a população de rua, posicionado pelos arquitetos em terrenos que, até o momento, não incluem-se na área oficialmente destinada ao projeto. Foram discutidas, assim, possíveis formas de viabilizar a manutenção de sua localização e as lutas futuras que poderiam auxiliar neste processo. Deve-se salientar que, além dos encontros citados,

foram promovidas

diversas reuniões entre os representantes da sociedade civil e os seus pares, nas quais os primeiros puderam tomar conhecimento das reais necessidades do grupo a quem representavam. Além destas, o escritório de arquitetura promoveu pelo menos uma reunião específica com cada um dos membros da comissão, a fim de escutar de maneira mais pontual as exigências apresentadas por cada “esfera” social enquadrada na área. Dentre os pedidos específicos feitos pelos moradores de rua destacam-se a construção do centro de referência da população de rua e a inclusão de mais banheiros públicos na área, bem como a exigência por uma participação efetiva na construção do projeto como meio de incremento de sua renda. Dentre os principais pedidos dos praticantes de esportes radicais incluiu-se o de que os materiais utilizados no projeto fossem pensados de forma a permitir o uso de bicicletas, skates, bem como a sua apropriação por parte dos praticantes do


166 Parcours. Os artistas de rua solicitaram que fossem mantidos espaços passíveis de apropriação artística, já os comerciantes, por sua vez, discutiram possibilidades de transformação do estacionamento presente na rua Aarão Reis em uma espécie de mercado de pulgas. Finalmente, os participantes dos movimentos culturais solicitaram que o projeto fosse pensado de forma a potencializar os eventos que ocorrem periodicamente debaixo do viaduto, através de uma arquibancada mais apropriada e da colocação de mais banheiros. 4.2.3 Resultados parciais Os resultados parciais do projeto foram apresentados para a população em audiência pública, realizada no dia 28 de maio de 2013, no centro cultural CentoeQuatro. Nesta ocasião a comissão representativa teve a oportunidade de explicitar a metodologia adotada para o trabalho e o escritório pôde apresentar os desenhos realizados. Conforme pode ser visto na Figura 40, o projeto de arquitetura englobou basicamente três áreas principais : a rua Sapucaí, a rua Aarão Reis e os quarteirões situados entre a Avenida do Contorno e a rua Varginha. Figura 40 - Esquema do projeto apresentado pelo escritório André Buarque Arquitetura

Fonte: Adaptação do Google Maps


167 Na rua Sapucaí foram propostas mudanças de cunho urbanístico, tais como o o alargamento de calçadas e a melhoria da iluminação pública, bem como a utilização do platô intermediário presente entre nível da rua e o nível da Praça da Estação para a instalação de feiras urbanas. Nos quarteirões situados entre a Avenida do Contorno e a rua Varginha foi proposto um grande parque, no qual seria instalado o centro de referência para a população de rua e quadras para a prática de esportes. Além disso, foi proposta a construção de uma espécie de concha acústica, apropriavel pelos praticantes de skate, a qual poderia ser utilizada para shows e eventos. Na parte da rua Aarão Reis localizada entre a Avenida do Contorno e a Praça da Estação, também foram propostas diversas mudanças de cunho urbanístico, que visavam, principalmente, a melhoria das condições dos pedestres. Analisaremos com mais detalhe, no entanto, a parte dessa rua que conforma-se enquanto foco de estudo neste trabalho, ou seja, a parte localizada entre a Praça da Estação e o baixio do Viaduto Santa Tereza. As modificações propostas para essa área foram esquematizadas na Figura 41.


168 Figura 41 - Esquema do projeto apresentado pelo escritório André Buarque Arquitetura – Área de Análise

Fonte: Adaptação do Google Maps

Dentre as principais propostas formuladas para a área encontram-se o alargamento das calçadas da rua Aarão Reis e a retirada do estacionamento de carros do local. Do lado da calçada onde se tem o edifício de embarque e desembarque para a os trens foi proposta a instalação de uma ciclovia, que se conectaria com a entrada do metrô situada na Praça da Estação. Foi sugerido,


169 também, que a calçada incluísse uma faixa contínua revestida de material liso, propício à prática de skate e patins. Quanto ao mobiliário urbano, foram propostos bancos curvos, passíveis de apropriação pelos praticantes de skate, e bancos girados, a serem colocados nos pontos de ônibus para facilitar a visão dos que aguardam a chegada dos mesmos. Quanto aos abrigos dos pontos de ônibus foi sugerida uma estrutura metálica, a qual serviria de suporte para a instalação de flores, que constituiriam uma cobertura tipo trepadeira. A estrutura foi pensada, segundo os arquitetos, de forma a gerar abrigos leves, que não interferissem de maneira grosseira com a pasagem do local. Dentre as outras modificações propostas pelo projeto, inclui-se a de tranformação do edifício que hoje funciona como estacionamento em mercado popular. Inicialmente os arquitetos haviam proposto que a área fosse transformada em mercado gastronômico, focado em especialidades mineiras e com forte apelo turístico. Durante a reunião do dia 23 de maio, no entanto, foi reivindicado pela comissão que o mercado fosse pensado a partir de uma perspectiva popular, mais conectada com a realidade do local e mais acessível para os habitantes e frequentadores do mesmo. Essa proposta se aproximaria, também, da demanda inicial do grupo de comerciantes, que havia sugerido que tal edifício fosse transformado em mercado de pulgas. O edifício seria aberto em suas duas extremidades, e daria, assim, acesso aos passantes provenientes da rua, a uma área próxima ao trilho dos trens, que poderia ser observado a partir de uma vedação de vidro. Tal área se conectaria com uma praça aberta projetada para situar-se no local onde hoje se encontra o galpão. Tal praça conformaria-se em vários níveis, de forma a possibilitar múltiplas possibilidades de apropriação. Na área debaixo do viaduto foi proposta a inserção de dispositivos chamados traffic-calming, que elevam o nível da rua ao nível da calçada, gerando a diminuição da velocidade dos carros. Tal estratégia é uma forma de dificultar, de certa maneira, a passagem de veículos no local, privilegiando a passagem e a permanência dos pedestres no mesmo. Além disso, na área atualmente ocupada por uma igreja, o projeto prevê a implantação da Escola das Artes, cuja construção havia sido definida anteriormente pela própria Fundação Municipal de Cultura. Os arquitetos também propuseram a reforma dos banheiros públicos presentes debaixo do viaduto e, posteriormente, a inclusão de outros na Praça da Estação. Esta ação foi reivindicada pela comissão, que, a partir de discussões


170 realizadas no dia 23 de maio, concluiu que a praça, por representar importante local de encontro de fluxos, necessitaria da inclusão de banheiros públicos. Deve-se salientar que o projeto, tal como ele foi apresentado, ultrapassa em muito os limites, tanto orçamentarios quanto físicos, impostos inicialmente enquanto balisadores para a sua concepção. Os 21,8 milhões de reais a serem pleiteados junto ao Ministério da Cultura mostram-se visivelmente insuficientes para a realização do que foi proposto pelos arquitetos e alguns dos terrenos utilizados, como é o caso do terreno localizado entre a Avenida do Contorno e a rua Varginha pertencente à Polícia Militar, não estariam incluídos, oficialmente, no Corredor Cultural. A grande abrangência do projeto aponta, no entanto, para uma série de medidas que, mesmo se não realizadas a curto prazo, terão a partir deste, meios de se desenvolver e de integrar pautas futuras de reivindicação da população frente ao poder público. Dentre estas pode-se pontuar a luta pela efetivação do centro de referência da população de rua, posicionado no terreno acima mencionado enquanto pertencente à Polícia Militar. O centro foi posicionado em tal área por considerar-se que esta apresente condições ideais para abrigá-lo, e por acreditar que a partir da união e luta da população, esta possa ser futuramente cedida pelo governo para a sua realização. As propostas, assim, ao invés de restringir-se às condições apresentadas, contemplaram um cenário ideal, de forma a gerar meios para que as ações sejam realizadas, futuramente, de uma maneira mais adequada. Evidentemente foram apontados alguns pontos prioritários, a serem realizados com os recursos disponíveis e de maneira imediata. Dentre eles destacase a inclusão de banheiros públicos na área e a reformulação das calçadas e da iluminação. A importância do projeto reside, no entanto, em justamente não limitarse aí, mas em conformar-se enquanto base para ações futuras mais amplas, que seriam capazes de mudar, de forma realmente profunda, a dinâmica urbana e o cenário sócio-espacial da cidade. A ação da comissão incluiu, também, medidas que ultrapassam o cunho projetual. Entre estas tem-se a luta pela instauração de marcos legais, que oficializem a área enquanto corredor cultural e que impeçam possíveis projetos externos de sobreporem-se ao que já foi discutido de maneira democrática junto à população. Para que todas essas reivindicações se concretizem mostra-se necessário, no entanto, que sejam incorporadas, no edital que regulamentará as futuras licitações - para a realização do projeto executivo e da construção do


171 corredor cultural - exigências que apontem para a continuidade da participação ativa da comissão. Somente através da continuidade de tal participação pode-se garantir que as exigências resultantes do processo participativo serão realmente cumpridas, e de que a ação da comissão terá realmente contribuído para a concepção do projeto e não somente servido enquanto ação legitimadora para a realização do mesmo pelo governo e pelos agentes privados. De maneira geral pode-se dizer que o processo apresentou diversos pontos positivos, mas também muitas falhas. A falha principal residiu no fato de o chamado à participação popular ter se dado em um momento no qual as principais decisões já haviam sido tomadas. A própria pertinência da realização de um corredor cultural naquela área não foi discutida de maneira democrática, sendo a participação da comissão restrita a questões de desenho e formalização daquilo que, em princípio, já havia sido imposto. Se consultada anteriormente, a comissão certamente se mostraria contrária à realização de um corredor cultural em um local no qual o mesmo já existe. No entanto, partindo do pressuposto de que o projeto deveria de qualquer forma realizar-se, a tentativa da comissão foi a de atenuar os seus possíveis efeitos maléficos. Entretanto, para que os resultados de tal ação fossem realmente efetivos, o processo participativo deveria ter sido iniciado antes mesmo da escolha do arquiteto. A equipe de arquitetura deveria ter sido selecionada através de licitação, por meio de edital formulado pela própria comissão. Essa estratégia garantiria, por exemplo, que o método utilizado pelo arquiteto fosse compatível e condizente com aquele necessário para a realização das exigências populares. Além disso, o prazo estipulado para o desenvolvimento do projeto deveria ser maior. No caso explicitado a sociedade civil teve apenas três meses para se organizar e contribuir com o escritório na formulação de espaços adequados às suas necessidades. No entanto, apesar de tais falhas, o processo colaborativo representou um primeiro e muito importante passo a ser dado no sentido de dotar as decisões governamentais de cunho mais democrático e de incluir a participação da população nas decisões referentes à concepção dos espaços públicos da cidade. Assim, apesar de estar longe de configurar o cenário ideal, tal experiência se mostrou extremamente válida, principalmente no sentido de mostrar à população que mudanças são possíveis e podem ser alcançadas a partir da sua própria ação, se organizada e conjunta.


172

4.3 O corredor cultural já EXISTE! A grande questão que se põe a respeito do projeto do Corredor Cultural da Praça da Estação - sobre a qual a Comissão Representativa da Sociedade Civil não foi nem ao menos consultada - refere-se à própria pertinência de se construir um corredor cultural em um local no qual o mesmo já exista. Tal questão serviu enquanto ponto de partida para o desenvolvimento, no primeiro semestre de 2013, da disciplina UNI009 da Escola de Arquitetura da UFMG da qual eu participei enquanto monitora. Tal disciplina, coordenada pela professora Natacha Rena, recebeu durante esse semestre o nome de Cartografias Críticas e teve como escopo a realização de mapeamentos da área do Corredor Cultural - mais especificamente da parte que constitui o foco de estudo deste trabalho - com o intuito de demonstrar que o corredor cultural já existe. Tais mapeamentos resultariam na promoção de um evento, o qual se apresenta como atividade conclusiva do presente trabalho. Para a realização dos mapeamentos a turma foi dividida em quatro grupos, a partir do mesmo princípio que norteou a conformação da comissão representativa atuante no projeto do corredor cultural. Um dos grupos ficou responsável pelos comerciantes, outro pela população de rua, outro pelos movimentos artísticos e culturais e o último pela arte de rua. Cada qual deveria mapear, a partir de uma perspectiva criítica, a situação atual dos atores sociais que configuravam o foco de seu estudo. Analisaremos a seguir alguns resultados de tais mapeamentos. 4.3.1. Comerciantes O grupo responsável por mapear o comércio optou por priorizar a atividade dos comerciantes ambulantes, pelo fato de considerarem que tais atores personificam uma forma bastante particular e significativa de apropriação do espaço urbano. A atividade dos ambulantes pauta-se pelo próprio movimento do corpo pela cidade, o que, de acordo com o que foi analisado no capítulo 2 deste trabalho, representaria uma forma de experiência corpográfica da mesma, a partir da qual ocorreriam isncrições e atualizações mútuas entre o corpo humano e o corpo urbano. Além disso, tal atividade, por ser considerada informal, configura-se


173 enquanto cotidiano ato de resistência às restrições estabelecidas pelo poder público quanto ao usufruto do espaço da cidade. A partir da análise dos caminhos percorridos diariamente por dois desses comerciantes o grupo pôde perceber como se dá a distribuição do comércio itinerante na área, que concentra-se sobretudo na área dos pontos de ônibus da rua Aarão Reis, onde há continua aglomeração de pessoas e nos arredores da Praça da Estação. Além disso, por meio de conversas com tais vendedores pode-se perceber, que cada qual carrega em si e no movimento próprio do seu corpo, estórias e reivindicações significativas dessa área da cidade, Figura 42 – Mapeamento comerciantes ambulantes

Fonte : JACOB, BRISOLA, AMATO, LOBATO, 2013

4.3.2 População de rua O grupo responsável pelo mapeamento da população de rua decidiu basear a sua análise no acompanhamento do cotidiano de um dos moradores que vivem no local. Tal estratégia reflete a tentativa de abordar a situação de tais atores sociais não de maneira homogênea, mas a partir da consideração da especificidade e individualidade de cada um. O principal objetivo do grupo foi o de desmistificar o preconceito histórico que existe frente aos moradores de rua, fazendo com que fosse possível uma maior aproximação entre estes e a cidade dita formal. Salientase, também, que a dinâmica de vida dos moradores de rua mostrou-se bastante


174 regrada, hierarquizada e pautada pela individualidade. Cada morador demonstrou possuir o seu território demarcado e as suas funções definidas por aqueles que detém o poder local. A maior concentração dos mesmos pôde ser observada na área em frente ao estacionamento localizado na rua Aarão Reis. A seguir, tem-se a breve estória do Aparecido José da Silva, uma das tantas singularidades que compõe a heterogênea comunidade de rua local. Figura 43 – Mapeamento população de rua

Fonte : CIOFFI, GONÇALVES, KUBITCHEK , 2013

4.3.3 Movimentos artísticos e culturais O grupo responsável pelo mapeamento dos movimentos artísticos e culturais optou por desenvolver uma plataforma virtual colaborativa (Figura 44), através da qual a própria população, de forma democrática e aberta, pode incluir os movimentos artísticos itinerantes realizados no local. Dentre os principais eventos que ocorrem na área destaca-se o Duelo de Mc’s, realizado há mais de seis anos durante as noites de sexta-feira, no anfiteatro localizado abaixo do viaduto. Tal evento, que reúne um público bastante heterogêneo, caracteriza-se pelas chamadas


175 "batalhas", nas quais os artistas se enfrentam através da prática do hip hop. Ao final de cada round há uma votação, por meio da qual o público elege o vencedor. No público do evento incluem-se moradores e trabalhadores da área, o que aponta para o caráter intrinsecamente local do mesmo. Figura 44 – Mapeamento de movimentos artísticos e culturais

Fonte : Google Maps, 2013b

4.3.4 Arte de rua O grupo que se ocupou da arte de rua optou por enfatizar a inscrição urbana, que configura-se enquanto elemento extremamente representativo da área em questão. Tais inscrições podem ocorrer por meio de graffiti ou de pixação, e ocupam, como pode ser observado na Figura 45, grande parte das superfícies presentes no local. O grupo distinguiu diversos tipos de pixações presentes, dentre os quais destacam-se a pixação legível e a pixação figurativa. Como forma de complementar o mapeamento foram realizadas entrevistas a passantes, moradores e trabalhadores locais. As perguntas feitas nas

entrevistas problematizavam a


176 questão da pixação e do graffiti enquanto formas de expressão artística e meios de comunicação de setores marginalizados da população. A maior parte dos entrevistados mostrou-se, no entanto, contrária à pixação, demonstrando o grande preconceito que ainda existe com respeito a esse tipo de manifestação artística. Muitos deles entraram em contradição em meio às perguntas, já que quando questionados sobre o que seria a arte, muitos responderam que esta seria uma forma de expressão. Ao serem perguntados sobre a pixação diziam que esta também configurava-se enquanto meio de expressão. Quando questionados, enfim, o por que de não considerarem a pixação enquanto arte, muitos disseram que isso devia-se ao fato de considerarem a pixação “feia”. A questão que se coloca, assim, é a de até que ponto o que é válido ou não em termos de ocupação urbana pode ser definido a partir de julgamentos subjetivos sobre o “belo”? E até que ponto tais julgamentos não seriam fortemente influenciados pelas imagens, signos e padrões vendidos e manipulados pela mídia? Figura 45 – Mapeamento arte de rua

Fonte: ALENCAR, BASTOS, BOUZADA, 2013

Observa-se, a partir dos mapeamentos produzidos pelos alunos, que a área em questão mostra-se bastante dinâmica. O espaço é palco de muitos conflitos, mas tais conflitos são, justamente, como explicitado no Capítulo 2, a origem do caráter vivo e político da mesma. Se atenuadas as tensões existentes, o espaço urbano se tornaria vazio e sem vida. Conclui-se, assim, que a área necessita não da construção de mais equipamentos - sobretudo de equipamentos direcionados ao


177 turismo, que contribuiriam para a atenuação das tensões presentes na área a partir da expulsao dos seus atores sociais - mas de uma maior articulação entre os equipamentos já existentes e da inclusão, ainda maior, de tais atores sociais nas atividades culturais por eles promovidas. 4.4 O Evento Com o intuito de potencializar as conexões entre os equipamentos já existentes na região, e de, assim, fazer com que o espaço constitua uma rede realmente articulada e coesa propõe-se a realização, no baixio do Viaduto Santa Tereza de “O EVENTO”. Tal evento configura-se enquanto atividade conclusiva do presente trabalho, já que envolverá, por meio das ações propostas, grande parte dos questionamentos levantados ao longo da pesquisa. Durante o evento serão propostas atividades artístico-arquitetônicas que estimulem a apropriação do território e o fortalecimento de um pensamento crítico frente as relações de poder a ele envolvidas. A idéa é estimular, junto à população, um sentimento de pertencimento real à área, bem como potencializar um espírito coletivo, capaz de unir os vários atores sociais que integram a mesma em prol de um objetivo comum. Dessa maneira se alcançaria uma maior coesão na área, dotando-a, assim, de mais força política para resistir a projetos urbanos segregadores e gentrificadores. Pensase que as atividades artísticas possam em muito contribuir para isso, principalmente as que referem-se diretamente à experiência corporal da cidade, as que comportam práticas comunitárias e as que estimulam a apropriação das superficies como meio de expressão. Dentre as propostas de intervenção a serem realizadas que se relacionam diretamente com a questão corporal, destacam-se a construção de balanços - a partir de pneus pendurados por meio de cordas no viaduto - a promoção de um “banquete”, com a ajuda dos artistas Louise Ganz e Breno Silva, a promoção de uma roda de histórias direcionadas aos vendedores ambulantes, os quais teriam oportunidade de compartilhar as estórias de resistência impressas em seus corpos a partir do seu movimento pela cidade, e a demarcação, por meio de tinta, dos vários fluxos presentes no local. Tais práticas objetivariam despertar nos participantes um outro tipo de sensação espacial, diversa daquela que corriqueiramente é experimentada por eles naquele espaço. Tal mudança de sensação pode ser muito


178 eficaz no sentido de dotar tais lugares de outros significados, e torná-los, improvisamente mais habitáveis e convidativos. Além disso, através do estímulo ao uso do corpo na relação com o espaço urbano, tais práticas fazem com que seja estabelecida

uma

relação

corpo-humano/corpo-urbano

diferente

daquela

normalmente oferecida pela cidade-espetáculo, cuja leitura deve ser feita de maneira apenas contemplativa e portanto, essencialmente rasa. Assim, o próprio ato de apropriação corporal da cidade representaria uma espécie de resistência à cidade que se impõe apenas como imagem e passa, improvisamente, a ser recebida com o tato. Dentre as atividades propostas que referem-se diretamente à experiência comunitária do espaço, tem-se a produção um mapeamento coletivo, no qual a população demarcará, de maneira conjunta, os problemas e potencialidades presentes na área. A produção cartográfica mostra-se extremamente eficaz no sentido de promover questionamentos coletivos a respeito do espaço e das dinâmicas de poder a ele envolvidas e, com isso, de estimular o estabelecimento de horizontes comuns de luta pelos habitantes da área. Além disso, está previsto um mutirão de limpeza, a ser realizado no dia anterior ao evento, que se dará, também, a partir de um ato cooperativo entre os integrantes da comunidade. A respeito das práticas que objetivarão a apropriação das superficies urbanas destaca-se a realização de uma oficina aberta de graffiti, bem como a aplicação de stencil com os ditos “o que existe no seu corredor cultural?” Como foi explicitado no capítulo 2, tais estratégias representam importantes meios expressão, capazes de estimular um sentimento de pertencimento ao local, e assim, contribuir para a criação de um espírito político de resistência. As superficies urbanas também serão ocupadas por meio de cartazes e projeções, que serão realizadas tanto no viaduto quanto na fachada da Serraria Souza Pinto. As projeções mostrarão vídeos produzidos durante a disciplina, que problematizam, justamente, a questão da apropriação das superficies através da pixação e do graffiti. Além dessas atividades está prevista, também, a produção coletiva de um mapa das manifestações e movimentos culturais que ocorrem em outros pontos da cidade. Esta ação se conformaria enquanto tentativa de promover um panorama geral das ações de microrresistência espalhadas pela cidade, possibilitando assim, que haja uma maior inter-conexão entre estas e consequentemente, que o movimento geral ganhe mais força. Tal atividade pode ser relacionada ao que foi


179 estudado no Capítulo 2 a respeito do conceito de Multidão. Esse conceito representa, justamente, a união entre movimentos ou pessoas singulares, dispersas no território, em prol de um ganho de força e abrangência para o movimento com um todo. Assim, as propostas de intervenção a serem realizadas no evento buscam, de maneira lúdica e ao mesmo tempo política, explicitar os conflitos existentes e induzir novas articulações sócio-espaciais na área e da mesma com outros pontos da cidade. Com isso, pretende-se o desenvolvimento de um espírito coletivo e crítico por parte da população, que seja capaz de configurar um movimento de resistência da mesma frente às forças do mercado e a um planejamento urbano pautado em princípios espetaculares e consensuais. Acredita-se que eventos como este sejam extremamente importantes no sentido de fomentar a união da coletividade em prol da luta por reivindicações comuns, tais como as tantas sinalizadas pela comissão representativa da sociedade civil para a área.


180 5 CONCLUSÃO Dentre as constatações que se obtiveram por meio da pesquisa, das ações de extensão, de ensino e das práticas de mapeamento, tem-se primeiramente, que a esfera dita sociológica da cultura, ligada ao circuito organizado, conforma-se enquanto a mais privilegiada por parte dos investidores, em detrimento da esfera dita antropológica da mesma, que constitui aquela presente no plano do cotidiano. Tal constatação pôde ser feita com base na análise dos mapas de Belo Horizonte, que apontam para a alta concentração de investimentos em equipamentos pertencentes ao circuito cultural institucionalizado. Além da nítida concentração de recursos nos equipamentos formais, tem-se ainda uma visível concentração dos mesmos em equipamentos localizados na região Centro-Sul, que corresponde à zona mais rica da cidade. Observa-se também, uma clara tendência de as empresas privilegiarem, ao investirem em cultura, se não a zona com maior poderio econômico da cidade, locais nos quais elas têm interesse em se legitimar.

Pode-se dizer,

assim, que a distribuição territorial de recursos para o setor cultural encontra-se fortemente atrelada às lógicas internas das empresas financiadoras, as quais utilizam, muitas vezes, tal instrumento enquanto meio publicitário. Essa situação passa a representar um problema se considerarmos que mais de 90% dos recursos destinados à cultura no ano de 2011 no Brasil procederam das empresas privadas via Lei de Incentivo Fiscal. Como alternativa à esse quadro apresenta-se a política dos Pontos de Cultura, que apesar de não mostrar-se ainda completamente consolidada, apresenta um caminho possível, alternativo à lógica mercadológica que rege, hoje, o setor cultural. Por apresentarem uma dinâmica que independe do lucro das empresas, os Pontos de Cultura podem contribuir para a configuração de um cenário cultural mais democrático e acessível, de caráter polifônico e rizomático. Esse tipo de politica apresenta caminhos para a priorização do caráter social no tratamento urbano, e pelo fim de um planejamento urbano baseado em aspectos estritamente econômicos. Outra conclusão a que se chega é a de que as práticas arquitetônicas colaborativas, como a que configurou a ação da comissão representativa da sociedade civil junto ao projeto "Corredor Cultural da Praça da Estação", representam alternativas extremamente benéficas no sentido de se construir uma cidade mais participativa e justa. Apesar de o processo participativo, no caso do


181 corredor cultural, ter se mostrado bastante limitado, é nítida a mudança de perspectiva observada em setores da população que nunca tinham tido acesso a processos dessa natureza, e que, através dessa tentativa puderam, mesmo que de forma incipiente, participar de alguma forma das decisões tomadas pelo arquiteto. Deve-se ressaltar, no entanto, o risco de tais processos configurarem apenas uma maneira de legitimação de projetos já definidos e manipulados pelas forças mercadológicas e pelos interesses do governo. Para que isso não ocorra, é necessário que a população participe desde o início dos processos de projeto, o que não ocorreu, por exemplo, no caso analisado. Apesar dessa limitação, o processo observado na cidade de Belo Horizonte mostrou-se positivo por ter dado um primeiro passo no sentido de abrir caminhos para que novas e mais efetivas práticas participativas ocorram no futuro. Além das práticas arquitetônicas colaborativas e da priorização de politicas culturais democráticas, conclui-se que, para a conformação de um espaço urbano verdadeiramente múltiplo e democrático, as iniciativas culturais organizadas pela própria população, de maneira independente, desempenham papel fundamental. Eventos culturais e artísticos que envolvam a participação do corpo na cidade, a inscrição nas superficies urbanas e a ocupação de espaços de forma coletiva, mostram-se extremamente relevantes para a indução do desenvolvimento de um pensamento crítico, por parte da população, frente ao território o qual ocupa. A partir do estabelecimento de uma relação verdadeiramente corpórea com a cidade, tais iniciativas fazem um contraponto direto às experiências rasas e meramente contemplativas promovidas pelas cidades-cenário atuais. Esses processos criativos representam, assim, uma forma de resistência à lógica do biopoder e das novas indústrias criativas, que tendem a transformar a cidade em algo pasteurizado, consensual e apolítico. Conclui-se também, que tais iniciativas devam acontecer de maneira conectada, a fim de abarcar a esfera micro - e assim as especificidades e problemáticas concernantes a cada local - mas também a esfera macro, constituindo um movimento maior, e mais forte, que possa incitar verdadeiras e profundas mudanças no contexto socio-espacial da cidade. Tais iniciativas conformariam, assim, uma espécie de rede rizomática, mutante e horizontal, na qual a potência residiria na própria ligação entre os pontos, no caso os eventos. A fim de exemplificar tal movimento propõe-se "O evento", que conforme veremos adiante,


182 devido à realização espontânea de "outros eventos", teve a sua data alterada e não poderá, assim, ser descrito no presente trabalho. Os "outros eventos" são as grandes manifestações que tomaram as ruas da cidade de Belo Horizonte (e de todo o Brasil) nas últimas semanas, e passaram a utilizar, a própria área do viaduto, enquanto palco das assembléias. Tal fato evidencia o caráter extremamente propício à ocupação popular apresentado pelo local e sua real consolidação enquanto ponto de encontro politico da cidade, o que em vistas do que estávamos propondo neste trabalho, mostra-se bastante animador. É como se a teoria se tranformasse em prática e a Multidão, o rizoma, os corpos na rua, tudo o que estudamos aqui, acontecesse, espontaneamente e em toda a sua potência.


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