Inê
Gonzaga
Quatro
crônicas
uma luz azul escura paira seu corpo e uma música prateada começa a tocar. em poucos minutos tudo se transmuta e a fantasia revira o mundo. seu nome é Vera. é Vera sob o clarão azul o clima é frio. chove. tanto dentro quanto fora. seus olhos ardem. Vera olha. Vera diz: — eu sinto meu corpo. sou feita do que vocês sentem que eu sou. eu sinto. eu sinto minha carne, seus relevos e partes ásperas e macias. mas eu trans formo, não sou incerta, sou certeira. não estou sob o mundo, estou sobre. sou um dos seres, sou o ser. feminina definitivamente, definitivamente não me corrompo. eu sei de mim. Vera flutua só sobre a escuridão. apesar de tudo é frágil, sente. sente muito. não entende. um sol vermelho contrasta o frio. Vera ainda inerte. agora tudo é tangível e visível. a sua volta há muito verde. flores e galhos molhados, ainda frios. não há casas. não há outras pessoas. ainda chove sem parar. o céu é tris te. Vera começa a cantar uma melodia acompanhando a música prateada. a música entorta e quebra os galhos. é doce, afiada. sua voz é bela. ela em si já é toda bela. de repente silêncio. Vera finalmente se move. ela começa a dançar no silêncio. o mundo explode em cores. ela é eterna. Tudo aconteceu no seu tempo.
o martelo da máquina em que escrevo está impregnado de tinta vermelha. é a tinta preta que eu quero. o papel branco que suporta o texto é borrado e mescla entre vermelho e preto. o erro faz parte da história. não é só isso que me incomoda os acentos no "ã" e "é" coloridos que se destoam, a palavra coração que é demasiadamente usada também né incomoda. como escrever poema sem coração? qualquer coisa que seja escrita é só mais uma tentativa de olhar atrás das minhas costas. ou além ou de não olhar. certo dia cheguei a conclusão de que o ambiente em que vivo não colabora com o que escrevo. como se a imaginação fosse tão pura que minha casa não fosse digna de recebê-la. então comecei a mudar as coisas de lugar. mudei minha cama, colo quei virada para a janela. descobri trauma de coisas que não sabia. trauma de vestir certas roupas de um dia de um ato vergonhoso e intenso. trauma de sentar no pé da cama, pois ali sentou a pessoa que eu fiz mal. o trauma é minha culpa. nunca sofri, só causei. retorno de tudo o que fiz e escrevo. me sinto cansada e reflito nesse cansaço. o sol bate só até o meu pé e meus dedos começam a doer de tanto digitar. eu paro.
persistir dói mais que tudo.
se eu morrer, não anunciem minha morte no rádio. não quero me revirar no túmulo mais uma vez. não quero ouvir a morte do pronome do nome de quem se foi a muito tempo para renascer — E ser quem se é de fato. não quero passar por essa humilhação, mais uma, de uma vida inteira. mas o mundo é esse lugar que se mostra. ele é, sem chance alguma de fantasia, essa carne crua. ele é esse sangue que pinga da geladeira: cruel. é tudo o que os poetas disseram que era e que seria. e não há mais nada. Não há mais poesia para tirar. eu ouço o amor, sim eu ouço. mas ouço também o alarme que toca, anunciando — ABRE ALAS, que chegou do ladrão! e ouço o sons dos tiroteios que não o reabilitam. que não da pão e fralda para seus filhos. eles dizem que não tem esperança. e, olhando bem este mundo, é compreensível como chegaram a essa conclusão. mesmo o amor tem seu lado escuro. tudo é um conto, tudo isso que digo. mas me diga você, por que grito? o grito de sangue de todos os poetas desde antes de Cristo à hecatombe. Por quê? se eu morrer não anunciem minha morte no rádio. eu, como o ladrão, e todo mundo peço um pouquinho de piedade. o pouco que resta desta porra de cinza fria. se eu morrer NÃO anunciem minha morte no rádio. não quero ouvir o nome de quem morreu a muito tempo. — morre Mateus Gonzaga, garoto de dezoito anos de idade no bairro Rio Morto. Causa da morte desconhecida. –D desgosto, talvez.
enquanto faço café, limpo a louça e varro o quarto descubro o sorriso de minha avó. descubro o final daquele filme brasileiro e digo em voz alta para mim mesma — que lindo! meu... eu vou guardar o pó para fazer a composteira que meu irmão me ensinou a fazer. vou guardar e cuidar da planta que roubamos juntos do leito do rio. o café ficou doce, doce como minha mãe gosta — o meu café é o único que ela gosta. eu fico feliz que o café ficou doce, que o dia é limpo e minha avó está pegando sol lá fora. enquanto isso Lorenzo corre pelo pátio, jogando sua risada aberta em cima de nossos sorrisos. por fim explico à Jacy, vizinha do número 6 como se usa um celular touchscreen. a atenção dessa mulher me prende, amo ensinar. eu deveria ser professora, deveria ser escritora, poeta, eletricista, política, filósofa aí meu Deus!! ainda falta o quarto e a cozinha para limpar! fui falando falando meu café esfriou.